Ementa - Dossiê: Entre a hegemonia cibernética e emergências socioambientais: investigando conflitos ontoepistêmicos, práticas de conhecimento e lutas tecnopolíticas (Mediações, vol. 29, n. 2 - 2024/2).
Organizadores: Henrique Zoqui Martins Parra (UNIFESP) e Alana Moraes (IBICT-RJ).
A emergência ecológica-sanitária produzida pela pandemia de Covid-19 reconfigura nossa experiência como espécie. O colapso planetário e a crise civilizacional do movimento incessante de modernização capitalista recolocam na cena pública um conjunto de evidências geo-históricas que tornam ainda mais tangíveis os limites de um “povoamento erradicador” (Mbembe, 2020:126) inaugurado pelo empreendimento colonial. O regime racializado de asfixia e morte diferenciada combinado a um novo ciclo de aceleração extrativa – do trabalho subalternizado, da vida dataficada, do conhecimento e ecossistemas inteiros – fez da pandemia um inaudito laboratório tecnopolítico do capitalismo cibernético-extrativista, ela própria sendo um produto direto das práticas extrativistas e de simplificação ecológica (Moraes, Parra, 2021). Além disso, o regime de confinamento acelerou a ampliação do domínio do codificável, intensificando a corrosão das infraestruturas coletivas e de cuidados.
Para além dos grandes esquemas conceituais que logo surgiram a fim de confirmar sua contemporaneidade e relevância diante do colapso, há também uma certa intuição generalizada de que nem a política moderna e suas tecnologias de governo, nem a arquitetura ontoepistemológica da ciência moderna e seu funcionamento disciplinar são capazes de oferecer caminhos para além daqueles que nos fazem voltar sempre ao mesmo “beco sem saída”, como lembrava Aimé Césaire. Simplificação ecológica, expropriação, deslocamentos forçados, contaminação, confinamento, pandemias: o arsenal da colonialidade é o que permite e incrementa novas tecnologias de extração e controle para além da já conhecida “coleta de dados”, produzindo o próprio meio da vida social pela expansão da tecnosfera, permitindo assim que a economia suplante, dia após dia, a vida mesma. Há, assim, um novo e inédito avanço sobre o Comum (em suas diferenças constitutivas e irredutíveis) operado pelas dinâmicas de extração transnacionais na escala planetária: energia, bens materiais, corpos e tempo vital (GAGO; MEZZADRA, 2015; ROLNIK, 2019).
Relatórios sobre novos contágios e mortes decorrentes da catástrofe pandêmica se cruzam agora com outros sobre o aquecimento talvez irreversível do planeta. Eventos climáticos extremos coexistem com o delírio expansionista e extraterrestre das chamadas Big Tech que não apenas planejam novas expedições extrativistas em Marte, como já tomam a dianteira da “aceleração da inovação na agricultura”, como define a Microsoft, em muitas regiões do planeta. A condição de confinamento parece ter sido a tempestade perfeita para a expansão do domínio do codificável e consolidação das grandes corporações tecnológicas que hoje aparecem como “indispensáveis” para o funcionamento de muitas dimensões da vida social – a “vida social”, aliás, encontra-se em suspensão inédita enquanto categoria capaz de expressar um mundo comum. A governamentalidade algorítmica tem como “unidade de medida não o cidadão e nem o estado-nação, mas sim as populações-público para quem podem se dirigir em qualquer ponto do globo” (Costa, 2021) e hoje possui acesso irrestrito à um circuito de valor que só é possível pela extração da mais-valia relacional, interacional e psíquica promovida, gestada e comercializada pelas corporações que conduzem os ambientes digitais em que estamos inseridos.
A nova governamentalidade algorítmica (Rouvroy; Berns, 2015) pode ser então pensada como atualização tecnopolítica de um regime estrangeiro e deslocalizado de controle total, domesticação e ordenamento do mundo da vida (e não apenas do trabalho, como já demonstram os inúmeros estudos sobre plataformização ou uberização do trabalho). Com o colonialismo, ela compartilha “o prazer da racionalização ultrajante, a paixão pela redução, o gozo do achatamento binário”. Como lembra Flavia Costa, essa nova forma de controle busca não só saber o que as pessoas fazem e porquê, mas intervir em suas próximas condutas. Expande-se assim a chamada Data-driven rationality : “Um novo regime de produção de conhecimento em que o processamento de dados por meio de estatísticas avançadas e os modelos de previsão informam as decisões, ações e relações” (Ricaurte, 2019: 1).
Pegando emprestada a semiótica da “geologia branca” e sua gramática de extração, o capitalismo cibernético soube converter em “dados” e “informação” - fazendo atuar assim a ficção de uma matéria não-humana e inerte - um conjunto de relações, afecções, criações, aprendizagens e a própria produção do mundo social, ao mesmo tempo em que converte em “recursos” uma série de ecossistemas minerais e sua gente, ampliando as “zonas sacrificáveis” do planeta em nome de um inquestionável “progresso tecnológico”. O truque da gramática geológica, afirma Yusoff, foi imprimir no mundo uma grande classificação hierarquizada entre coisas vivas e inertes, e assim neutralizar, mas também “desanimar” o mundo, como fala Aílton Krenak sobre o colonialismo e seus modos de conhecer.
Tomar o capitalismo cibernético como herdeiro da catástrofe ancestral (Povinelli, 2016) do colonialismo é partir também da constatação de que “para muitas regiões do Sul, na verdade, recriar a vida a partir do invivível tem sido a condição reinante ao longo de séculos “ (Mbembe, 2021:26). Como sabemos, o colonialismo foi justificado, muitas vezes, por uma suposta “superioridade técnica” do mundo ocidental que conferia um consequente dever moral de “civilizar” e “desenvolver” o mundo “selvagem”, “caótico”, “lento”, “ineficiente”. O extrativismo pode ser pensado como aquilo que oferece toda a gramática que garante a expansão da colonialidade para além dos regimes propriamente coloniais, atuando como esse “patrón de relacionamiento instituido como pilar estructural del mundo moderno, como base fundamental de la geografía y la “civilización” del capital, pues el capitalismo nace de y se expande con y a través del extractivismo” (Araoz, 2016:15). A virada cibernética intensifica o pressuposto de "que a natureza se encontra totalmente disponível aos processos de recuperação, processamento e armazenamento de informação, possibilitados pela máquina universal”.
Noutra escala do problema, a noção de Tecnoceno utilizada por Hermínio Martins, nos permite analisar os processos que tornam possível o Antropoceno sob uma perspectiva complementar, na qual os efeitos que produzem essa nova era geológica resultariam da agência tecnológica que ultrapassa os processos psico-físico-biológicos que constituem o Homo sapiens sapiens. O autor argumenta que a trajetória da nossa espécie se tornou interdependente e mutuamente promotora da tecnicização e da mercantilização; a combinação do desenvolvimento tecnocientífico com as dinâmicas capitalistas de mercantilização promovem transformações radicais na própria caracterização do humano, do seu corpo e das instituições que regulam a vida social, dando forma ao Tecnoceno (MARTINS, 2018)
Desta forma, a virada cibernética oferece a infraestrutura e imaginação técnica para o que Naomi Klein identificou como o “capitalismo de catástrofe”: é através da atmosfera de catástrofes permanentes que governos e seus arsenais militares junto de interesses privados produzem a condição necessária para violar direitos e expandir a razão tecnocrática na gestão de corpos e territórios, tornando ilegível qualquer movimento de interrupção do funcionamento da ordem.
Como lembrava Laymert Garcia dos Santos, a virada cibernética acelerada pela Segunda Guerra Mundial foi o que conferiu “à tecnociência a função de motor de uma acumulação que vai tomar todo o mundo existente como matéria-prima à disposição do trabalho tecnocientífico”. Esse ímpeto de uma “dominação irrestrita da natureza pelo homem” não pode ser pensado, entretanto, sem o próprio repertório da colonialidade. De certa forma, talvez a “virada cibernética” possa ser interpretada como uma “continuação das narrativas da plantação/plantation” (McKittrick, 2013) na medida em que ela expressa ainda a operação colonial que converteu, como elabora Sylvia Wynter (2003), o objetivo supraordenador de redenção espiritual e salvação eterna da ordem feudal em uma redenção racional de domínio racializado.
Seja pelas intervenções militares mais diretas cujo objetivo enunciado pertence ainda ao projeto civilizatório, securitário e pacificador, seja pela produção de uma urbanização predatória e financeirizada que reserva às regiões mais degradadas e vulneráveis aos eventos climáticos extremos para as populações mais pobres, ou seja ainda pela expansão da tecno-indústria do agronegócio que se amplia deslocando populações, monopolizando bens naturais, suscitando epidemias e promovendo silenciosas guerras químicas, o capitalismo de catástrofe foi capaz de articular, de forma inédita, um circuito distribuído de dispositivos cuja legitimidade se ampara em uma “racionalidade funcional aparentemente neutra” (FEENBERG, 2010). Como Horácio Machado (2016) analisa sobre o ciclo neoextrativista neoliberal, “estamos hablando de un incremento, a inéditas escalas históricas, de la capacidade de disposición del capital sobre la vida en general y sobre el conjunto de los procesos y manifestaciones de la vida”.
Neste dossiê, gostaríamos de convocar pesquisas e reflexões que percorram algumas zonas de contato entre os campos transdisciplinares dos estudos do Antropoceno e do Tecnoceno. Esses cruzamentos percorrem os estudos decoloniais, os estudos da técnica e da ciência, as reflexões críticas sobre a cibernética tecnoautoritária e seus regimes de conhecimento, mas também se nutrem de práticas terranas de conhecimento que resistem abrindo outros possíveis - e que possam oferecer outras chaves de investigação para a compreensão do capitalismo cibernético, sua razão logística e o regime ecológico de fraturação em curso.
Tanto as lutas anticoloniais (ou contracoloniais, como prefere o pensador quilombola Nego Bispo), como as lutas coletivas que se abrem a partir do Novo Regime Climático, mas também as lutas epistêmicas que irrigam práticas de conhecimento de defesa de territórios e todas as múltiplas entidades humanas e outras que humanas que os compõem, encontram hoje o desafio de compor um campo fecundo de experimentações técnicas-científicas. O que poderia ser também uma perspectiva tecnopolítica decolonial que percorra as reflexões sobre "decrescimento", "pós-crescimento", as alternativas às imaginações do "progressismo", do "tecnosolucionismo" e do "aceleracionismo" que apresentam-se como horizonte da governamentalidade de crise do capitalismo pós-pandêmico. Como recorda Bruno Latour (2021), fazendo ecoar uma constatação já muito antiga de povos da Terra: “por trás da crise política irrompe uma crise cosmológica”.