Ementa – Dossiê: Desobediência civil e ilegalidades politicamente motivadas: casos e experiências do sul global. (Mediações, vol. 31, n.3 – 2026/3)

2024-06-19

Organizadores: Bruno Camilloto (UFOP) e Guilherme Cardoso de Moraes (USP).

Os protestos contra a Guerra do Vietnã e a mobilização em prol de direitos civis nos Estados Unidos podem ser mencionados como alguns dos acontecimentos políticos que empurraram a ideia de desobediência civil para o centro das preocupações de alguns dos mais destacados teóricos políticos, filósofos morais e juristas durante os anos de 1960 e 1970. Hannah Arendt (2010), Ronald Dworkin (2010), Jürgen Habermas (2015, 2020) e John Rawls (2008) foram algumas das vozes responsáveis por delinear os contornos conceituais que balizaram, e seguem orientando, a atual compreensão teórica, além de oferecer uma defesa da prática da desobediência civil como um tipo de ilegalidade politicamente motivada, mas compatível com a gramática democrática de contestação e resistência às diversas formas de injustiça e opressão. Na esteira de William E. Scheuerman (2021, p. 1) poderíamos questionar: “o que resta a ser dito sobre algo que fascinou alguns dos pensadores políticos mais influentes do século passado?”.

A desobediência civil é uma forma particular de ilegalidade politicamente motivada. No relato mais amplamente aceito, a desobediência civil é uma violação pública, não violenta e conscienciosa da lei, realizada com o objetivo de provocar uma mudança nas leis ou políticas governamentais (RAWLS, 2008, p. 453). Trata-se, ainda, de uma ação coletiva, conduzida em grupo ou em nome de um grupo social (ARENDT, 2010, p. 54-5). No debate teórico, praticamente todos os aspectos dessa definição têm se mostrado controversos e vêm sendo alvo de contestação por diferentes autores e tradições de pensamento. Ideias como (não)violência e (in)civilidade estão no centro das disputas contemporâneas, que buscam debater sobre o papel que tais ideias devem desempenhar na noção mais ampla de desobediência civil e como devemos interpretá-las (CELIKATES, 2016; DELMAS, 2018).

Para além das disputas acerca da melhor definição de desobediência civil, há ainda outros repertórios de ação política ilegal que podem ser compreendidos no interior da gramática de luta e resistência democrática. Nesse caso, a “objeção de consciência” é talvez o exemplo mais largamente teorizado como um tipo de violação individual da lei e que pode, ou não, ser pública e ter motivação política (RAWLS, 2008, p. 458; ARENDT, 2010, p. 55). Contudo, nos últimos anos, outras ilegalidades politicamente motivadas vêm recebendo a atenção de cientistas sociais e teóricos políticos, como o “hackativismo”, termo usado para se referir aos hackers que, com finalidade política, invadem redes e sistemas de computadores protegidos, ou a “ecossabotagem”, que se refere especificamente às práticas, por vez ilegais, de grupos ambientalistas, como Just Stop Oil e o Greenpeace (SCHEUERMAN, p. 2021, p.7).

Em comum os repertórios de ação política ilegal que integram a gramática democrática de luta e contestação devem estar situados nos limites constitucionais, isto é, sua extensão ou ambição não deve ser tamanha a ponto de ameaçar a ordem constitucional ou propor uma ruptura democrática. Dito de outro modo, em uma política liberal e democrática, as ilegalidades politicamente motivadas reforçam o empenho de cidadãos livres e iguais no combate a leis injustas. Não se trata de uma ruptura com a ordem democrática legal, mas, sim, de um forte tensionamento da ordem social e jurídica com vista à promoção da justiça, de modo que poderíamos entendê-la como ilegal, mas normativamente legítima (SCHEUERMAN, 2018, p. 35).

Embora Arendt (2010, p. 75) reconhecesse que a desobediência civil havia sido incorporada ao repertório das lutas democráticas em todo o mundo, a autora chegou a se referir ao fenômeno como algo proeminentemente anglo-americano, “em origem e substância” e de difícil “tradução” para outras sociedades. Na década de 1980, Habermas (2015) já associava a ideia de “desobediência civil” ao que chamou de “a nova cena dos protestos”, tendo orientado sua reflexão a partir de casos ocorridos na Alemanha, durante a década anterior.

Se os acontecimentos políticos das décadas de 1960 e 1970 foram fundamentais para despertar a atenção da teoria política da época para a desobediência civil, as práticas das ruas e as tendências políticas atualmente em curso parecem mais uma vez justificar uma retomada desta ideia. Após décadas de “esquecimento”, a teoria política, mais uma vez, voltar-se para a ideia de desobediência civil como uma forma de interpretar algumas manifestações políticas que, embora diversa em suas demandas, tem na ilegalidade de seus atos uma marca comum. Autores como Candice Delmas (2018) e William E. Scheuerman (2018) encontraram no debate filosófico sobre a desobediência civil uma ferramenta importante para a compreensão de fenômenos como as mobilizações iniciada nos Estados Unidos sobre o nome de Black Lives Matter (DELMAS, 2018), bem como o crescente, e flagrante, descontentamento dos cidadãos com o desempenho imperfeito dos regimes democráticos em algumas das democracias mais estandardizadas do globo (SCHEUERMAN, 2018).

As manifestações contra o racismo e a violência policial liderada pelo grupo Black Lives Matter; os vazamentos de dados e informações sigilosas promovidas por hackers e ativistas como Chelsea Manning e Edward Snowden contra as práticas de espionagem estadunidenses; os protestos de ambientalistas e ativistas climáticos do Just Stop Oil, que chamaram a atenção para sua causa ao colarem as próprias mãos em obras de arte, ou ao atirar sopas de tomates em pinturas nas principais galerias e museus da Europa, e as pichações de monumentos nas cidades como, por exemplo, a estátua de Winston Churchill em 2020, são apenas alguns exemplos recentes de ilegalidades politicamente motivadas ocorridas no Norte global e que vem recebendo atenção da mídia, de cientistas sociais e filósofos de todo mundo (SCHEUERMAN, 2021). Os casos recentes, aos poucos, vão se somando aos já clássicos exemplos de Rosa Parks, Martin Luther King e Henry David Thoreau como figuras recorrentemente lembradas pela literatura como símbolo da desobediência civil no século passado (LIVINGSTON, 2020; SCHEUERMAN, 2018).

Se a afirmação de Arendt (2010, p.75), anteriormente apresentada, pode ser considerada controversa mesmo em seu tempo, é consenso que hoje a desobediência civil e outras ilegalidades politicamente motivadas compõe um repertório de lutas e contestações que também encontra “substância” e expressão nas práticas políticas do Sul global. 

Em uma breve recapitulação, podemos mencionar o emprego da tática black bloc, marcadas por suas ações virulentas, pela quebra de vidraças de bancos e lojas de luxo, pichações e por enfrentamentos com a polícia militar que, após emergir durante as chamadas “jornadas de Junho de 2013”, especialmente em São Paulo, hoje estão presentes em diversas manifestações pelo Brasil (SOLANO; MANSO; NOVAES, 2014). Ou ainda, a recente onda de manifestações “iconoclastas” que ganharam o mundo ao atacar monumentos que homenageavam figuras controversas, sobretudo com passado escravocrata, colonizador e ligado ao tráfico de pessoas. No dia 24 de julho de 2021, o grupo Revolução Periférica assumiu a responsabilidade por incendiar a estátua do bandeirante Borba Gato durante um protesto em São Paulo. No mesmo ano, na Colômbia, ao menos três atos se valeram de estratégia e justificativa semelhantes. No dia 28 de abril, um grupo de manifestantes indígenas da etnia Misak derrubaram a estátua do colonizador Sebastián de Balalcázar, em Cali. Posteriormente, em 07 de maio, o mesmo grupo voltou a agir, dessa vez tendo como alvo o monumento que homenageava Gonzalo Jiménez de Quesada, em Bogotá. Já no dia 28 de junho, manifestantes colombianos derrubaram uma estátua do explorador Cristóvão Colombo, situada em Barranquilla.

Se as práticas políticas, do passado ou do presente, especialmente nos Estados Unidos e Europa, foram fundamentais para despertar a atenção das ciências sociais para a ideia de desobediência civil, as tendências políticas atualmente em curso no Sul global podem também justificar a necessidade de revisitar esta e outras ilegalidades politicamente motivadas. Reunir e inspirar esses trabalhos e reflexões, nas ciências sociais e áreas afins, é o que esta proposta de Dossiê buscará fazer. Esta é também uma forma de atualizar possibilidades de respostas à pergunta de William E. Scheuerman (2021, p.1) com que abrimos esta proposta.