Ementa - Dossiê: Continuidades esquecidas e ruturas construídas entre ditaduras e democracias (Mediações, vol. 28, n. 2 - 2023/2).

2022-05-30

Organizadora: Ana Carina Azevedo (Universidade de Coimbra).

Da Península Ibérica à América Latina, são vários os exemplos de processos revolucionários ou de transição democrática que, ao longo do século XX, colocaram fim a décadas marcadas por regimes ditatoriais. Independentemente das suas particularidades, a análise destes processos é tendencialmente marcada pelos conceitos de rutura e/ou descontinuidade. Sob este prisma são feitas as reflexões sobre as alterações ocorridas ao nível do caráter e organização do Estado, das suas formas de relação com os cidadãos, da definição de políticas públicas e das visões sobre a sociedade e a cultura. De facto, as mudanças de regime trazem consigo profundas alterações a todos os níveis. Contudo, poderá o foco nestas ruturas obscurecer continuidades menos visíveis, mas fulcrais para o entendimento destes processos? Da mesma forma, será a própria ideia de rutura fruto de uma conceção política que coloca de parte vários outros segmentos da realidade? E ainda, poderá um foco demasiado forçado e simplista sobre as descontinuidades obscurecer as verdadeiras ruturas, aquelas que permeiam os processos de continuidade estrutural, orgânica ou teórica?

Não está em causa, na visão aqui apresentada, o conceito de periodização histórica. Como refere Brown, “periods are entities we love to hate” (2001, p.309). Estes podem ser, de certo modo, uma projeção fictícia sobre o passado, sendo entendidos por alguns autores como meros artifícios que obscurecem mais do que revelam. Porém, trata-se de uma estratificação necessária pois, além do seu carácter utilitário, atribuem ao investigador ferramentas que lhe permitem compreender dados históricos. Da mesma forma, também não é colocada em causa a existência de pontos de viragem abruptos na História, de verdadeiras ruturas políticas, económicas, sociais ou culturais, contrariamente ao que é defendido por algumas das teorias da continuidade. Como afirmou Michel Foucault, a ênfase na continuidade não pode atenuar a importância da mudança, sendo necessário caracterizar e compreender as transformações operadas (1968, p.855).

É importante caracterizar as origens e objetivos da primazia atribuída aos fenómenos de rutura e descontinuidade nos estudos oriundos de várias áreas do saber, da Sociologia à Ciência Política, da História à Antropologia. Por um lado, porque o conceito de rutura manifesta a manutenção do primado do político na análise da realidade. Este facto é bastante visível no caso português, onde uma simples pesquisa nos repositórios universitários demonstra como o dia 25 de abril de 1974, dia da Revolução que pôs fim ao Estado Novo, continua, na atualidade, a servir de baliza cronológica inicial ou final de estudos sobre os mais variados temas que não se relacionam diretamente com a Revolução. Além de claros prejuízos para a mais ampla compreensão das temáticas em estudo, poderão estas delimitações temporais artificiais, definidas sobre lógicas políticas, impedir análises transversais entre regimes, criando uma falsa noção de rutura que se relaciona mais com a metodologia de análise escolhida do que com a realidade?

Por outro lado, a ênfase na rutura carece, também, de explicações históricas, sociológicas e antropológicas. Esta acaba por decorrer dos processos de polarização política dos tempos revolucionários ou de transição, quando se denota uma necessidade de corte com o passado, com os seus erros e formas de estar, enfatizando os aspetos negativos do regime anterior e caracterizando os positivos como conquistas da nova política. É, igualmente, sinal da permanência de traumas, memórias e posições diferenciadas quanto ao passado, bem como resultado das políticas de neutralização da memória.

É interessante verificar que também o conceito de continuidade é muitas vezes usado unicamente sob parâmetros políticos, sendo comum muitos estudos atentarem sobre as permanências visíveis ao nível das estratégias e legados autoritários em períodos democráticos. Porém, raramente as investigações atentam sobre as continuidades visíveis entre regimes ao nível de instituições, indivíduos, discursos, representações ou políticas públicas. No entanto, sem esta compreensão, torna-se impossível identificar e analisar as origens de correntes, políticas e movimentos que, tendo sido iniciados durante a ditadura, apenas em Democracia alcançaram as condições políticas necessárias para se poderem desenvolver. Numa época em que os extremismos ganham terreno globalmente torna-se cada vez mais necessário desmistificar as noções simplistas e polarizadas das transições entre regimes. Importa demonstrar que o completo entendimento do passado e dos mecanismos de memória é essencial para a compreensão de movimentos sociais atuais e explicar que, muitas vezes, em épocas de rutura política, agentes e organismos mantiveram a sua agenda, adaptando-se a novas condições políticas.

Sob a lente da continuidade é possível responder a várias questões que nos ajudarão a compreender os próprios processos revolucionários ou de transição, bem como entender o modo como ideias, organismos e indivíduos se adaptaram a diferentes realidades políticas. Terão as mudanças de regime transformado totalmente a orientação de políticas públicas ou, pelo contrário, é possível encontrar nelas uma evolução que perpassa vários regimes? De que modo organismos e instituições fizeram a transição política mantendo premissas semelhanças? Que elites se adaptaram às novas situações? Qual o nível de continuidade visível na economia, nos negócios, nas artes, na cultura? Que capacidade de adaptação a uma nova realidade política foi demonstrada por indivíduos, organismos, agendas pessoais e institucionais? Estas questões não esgotam a diversidade de problemáticas passíveis de estudo por várias áreas das Ciências Sociais e Humanas. Dar-lhes resposta é essencial para compreender a manutenção ou dissolução de ideias, projetos e programas que fizeram – ou não – o seu caminho entre a ditadura e a Democracia.

Na atualidade é imprescindível que se ultrapassem barreiras epistemológicas, metodológicas, políticas e de memória no estudo das transições. Não só porque dessa revisão depende a completa compreensão de processos históricos, sociológicos, económicos, culturais e artísticos, mas também porque somente através da lente da continuidade é possível identificar as verdadeiras ruturas, bem como os mecanismos de adaptação e de reconversão da memória que ainda hoje apresentam impacto na sociedade.