Ementa - Dossiê: Conhecimentos Canábicos: Práticas sociopolíticas emergentes de pesquisa e de produção de conhecimentos (Mediações, vol. 28, n. 3 - 2023/3).

2022-05-30

Organizadores: Marco Castro (UFJF) e Victor Mourão (UFV).

Atualmente, temas que abrangem substâncias categorizadas como drogas converteram-se em importante campo de produção de pesquisas e de conhecimento para as ciências sociais em geral, com fluxo significativo de investigações sobre aspectos diferenciados acerca de suas implicações na vida social. O sociólogo francês Henri Bergeron (2012) considera a existência de uma “Sociologia das Drogas” e a propõe como um locus de reflexão próprio da relação entre essas substâncias com elementos morais, de poder, do direito, bem como entre as classificações arbitrárias e de interações entre grupos, indivíduos e populações. Logo, temas relacionados às drogas inseriram e continuam levantando debates, ações e relações no âmbito da saúde, do direito, das políticas públicas e das relações de classe.

Em uma mirada histórica, o debate público sobre maconha/cannabis sofreu forte inflexão na última década. No Brasil, pesquisas anteriores identificaram, em uma abordagem histórica de longo prazo, vários ciclos de atenção no âmbito de uma “arena pública da maconha”  que culminaram na consolidação de um paradigma proibicionista jurídico-securitário (BRANDÃO 2014, 2017). Antes delimitado por movimentos contestatórios de corte liberal (como por exemplo, Fiore 2012), as lutas antiproibicionistas se transformaram a partir da disseminação de informações e práticas terapêuticas na grande mídia e nas redes sociais. Nesse sentido, além da demanda pela legalização do uso psicoativo da cannabis, cresceu a reivindicação pela regulação de sua utilização para fins terapêuticos (CARVALHO, BRITO e GANDRA, 2017).

 Esse processo se deu alinhado à emergência de novas maneiras de produzir conhecimentos sobre a planta. A literatura científica sobre o assunto reiteradamente destaca como as famílias de crianças com epilepsia refratária produziram uma expertise leiga perante a ausência de conhecimento consolidado nas classes médica, científica e institucional (OLIVEIRA, 2016a; OLIVEIRA, 2016b). De maneira associada, também se ressaltou como o movimento grower clandestino auxiliou essas famílias a ter acesso à substância no contexto proibicionista (MOTTA, 2019). Helen Caetano (2021) identificou que é possível observar na literatura científica duas abordagens fundamentais que não dialogam entre si: uma focada nos malefícios associados ao consumo intoxicante da planta, outra vinculada à emergente ciência canábica que planteia investigar propósitos terapêuticos da planta e de seus derivados. Esse ciência/medicina canábica estabelece uma agenda de pesquisa ao redor da noção de sistema endocanabinóide que logrou realizar um processo de canabização do humano e debelar, ao menos parcialmente, a configuração moral-simbólica da “erva do diabo” intoxicante do paradigma proibicionista (MOURÃO, 2021). De maneira correlata, a discussão e as investigações sobre as subespécies da planta, os critérios fundamentais de sua distinção (em termos de composição de cabinoides), além das suas propriedades e aplicações industriais, energéticas, ambientais e alimentares também apontam para a configuração de redes heterogêneas cujas controvérsias e atores centrais ainda estão por ser mapeados (ALT e REINHARDT, 1998; DEELEY, 2002; REHMAN et al., 2013)

Esse movimento de reenquadramento da questão no âmbito público foi acompanhado por debates nas esferas legislativas buscando reformar a legislação e comportar uma regulação mais apta ao uso medicinal da planta e derivados (REZENDE E PEREIRA, 2020). O caso mais notório é o do Projeto de Lei 399/2015, de autoria do deputado Fábio Mitidieri, que teve tramitação concluída no âmbito de uma comissão especial com a aprovação, em 2021, de um texto substitutivo ao projeto original. No âmbito do judiciário é possível observar uma movimentação por parte de famílias e de associações que buscam conseguir salvo condutos e habeas corpus para prosseguir com o cultivo de cannabis voltado aos cuidados aos pacientes que se utilizam de compostos derivados da cannabis (POLICARPO et al., 2017; POLICARPO e MARTINS, 2020).

Trata-se, portanto, de um tema “quente”, que envolve esferas societais, científicas e institucionais da sociedade, e que aponta para uma nova configuração política e moral do tema (POLICARPO, 2019). Trata-se também de um tema transversal às áreas fundamentais que conformam as Ciências Sociais. Tradicionalmente vinculado a antropologia (sob perspectiva culturalista e/ou focaultiana) e, em menor grau, a sociologia, tem atraído reflexões no âmbito da ciência política em função das temáticas dos movimentos sociais pelo uso da cannabis, tanto psicoativo quanto medicinal, e pelos processos de mudanças legislativa/regulatória da área

A partir dessas proposições, a proposta do dossiê é reunir pesquisas e reflexões que têm como foco a produção de conhecimentos nas esferas sociais diversas nas quais a cannabis tem sido objeto de interesse e na compreensão das trajetórias deproibicionistas diversas que tem metamorfoseado a institucionalidade proibicionista da cannabis. Desse modo, estamos interessados não apenas em contribuições voltadas para o âmbito nacional, regional e local, mas também para experiências de outros países, de maneira isolada (estudo de caso) ou comparada. Logo, convidamos pesquisadores a apresentarem textos oriundos de trabalhos investigativos, empíricos e teóricos, inspirados no campo transdisciplinar dos estudos sociais da ciência e tecnologia, e que contribuam com esse campo de debate emergente sobre a produção de conhecimentos canábicos nas várias esferas em que essa produção se dá (saúde, religião, movimentos sociais, políticas públicas, mercados lícitos/ilícitos, economia, tecnociência, justiça, etc.).