Ementa - Dossiê: A morte e o processo de morrer nas Ciências Sociais: perspectivas em torno de um fenômeno multidimensional (Mediações, vol. 28, n. 1 - 2023/1).

2022-05-30

Organizadores: Rachel Aisengart Menezes (UFRJ) e Lucas Faial Soneghet (UFRJ).

Estudos sobre a morte e o processo do morrer têm uma longa história e múltiplas faces nas Ciências Sociais. Algumas de suas manifestações mais antigas podem ser encontradas na obra de Émile Durkheim. Seu argumento sobre os “ritos piaculares” e práticas funerárias em sociedades aborígenes (Durkheim, 1996 [1912]) pode ser assim resumido: as diversas manifestações e as emoções em ritos associados à morte são lidas como resultados de normas internalizadas que prescrevem ao indivíduo uma resposta apropriada ao enfraquecimento da coesão social, causada pela perda de um membro do grupo. Morrer é um problema social, na medida em que pode significar o afrouxamento dos laços morais que mantêm uma comunidade unida, razão da centralidade dos rituais em torno do término da vida.

Philippe Ariès (1981), historiador medievalista francês, investigou as representações da morte no Ocidente, mais especificamente na França, da Idade Média até o século XX. Para ele, a morte é um fenômeno universal e o que muda ao longo da história são as “atitudes” culturais a ela associadas. O historiador argumenta que a morte na Idade Média era um evento corriqueiro, familiar e vivido em comunidade. O moribundo sabia de sua morte e a enfrentava diretamente, exercendo papel importante na organização do processo de morrer, com apoio da comunidade e da família. A tal atitude Ariès nomeia de “morte domada”. Em contraste, a sociedade moderna ocidental do século XX lidaria com a morte de maneira privada, medicalizada, com mecanismos de negação e ocultamento. A imagem do leito de morte cercado pela família e por amigos, com o moribundo consciente de si e de sua jornada, é substituída pela imagem no leito hospitalar, do doente cercado por aparelhos e máquinas.  O enfermo encontrava-se isolado e, frequentemente, ignorante acerca do seu destino. Norbert Elias (2001) chega a conclusões semelhantes acerca da morte e do morrer na modernidade. Diferente do historiador, Elias identifica processos sociais subjacentes às transformações da morte na história do Ocidente, os quais, em conjunto, resultam na erosão do papel social do moribundo e de sua possibilidade de identificação com os que o cercam. Na modernidade, a morte passou a ser estranha, afastada da vida cotidiana, oculta do cenário social pelas barreiras produzidas pela instituição e pelos profissionais da saúde. Assim, a “solidão dos moribundos” é existencial, causada pela erosão das bases simbólicas e materiais que garantiam seus vínculos com aqueles de que mais precisam em seu momento de necessidade.

Na Sociologia, especialmente de matriz estadunidense, há estudos sobre a morte e o morrer que abordam tópicos como medicalização, secularização e racionalização. Olivro Awareness of Dying (1965) de Anselm Strauss e Barney Glaser é exemplo por excelência dessa vertente. Glaser e Strauss examinam a morte em unidades de tratamento intensivo em hospitais dos Estados Unidos, para entender como o processo social de morrer é construído nas interações cotidianas de atores sociais. Entre as conclusões do estudo, destaca-se a crítica aguda aos ambientes hospitalares modernos, cuja função não seria a busca do bem-estar do paciente internado e de seus familiares, mas a manutenção da ordem institucional, mediante controle e da expressão de sentimentos. Os estudos em torno da morte e do morrer sob a perspectiva dos processos saúde-doença incluem não somente reflexões sobre a morte em hospitais, como também as inúmeros conexões entre políticas e sistemas de saúde, racionalidades médicas, profissões de saúde, organizações não governamentais, Estados e mercado, entre outras referências que marcam o processo de morrer (Menezes, 2004; Kaufman, 2005; Alonso et al, 2013; Das e Han, 2016).

Paralela às vertentes antropológica, sociológica e sócio-histórica, encontra-se uma miríade de estudos recentes em torno do conceito de “necropolítica”, cunhado por Achille Mbembe (2016) a partir de diálogo com a noção de “biopolítica” de Michel Foucault (2005). Mbembe articula o biopoder ao estado de exceção, conforme conceituado por Agamben (2005), e ao estado de sítio, para descortinar a construção contínua de estados de “exceção, emergência”, bem como de uma “noção ficcional do inimigo” (Mbembe, 2016, p. 128). O conceito indica, portanto, a produção da morte como parte da reprodução de regimes de poder que demarcam certos espaços e sujeitos como objetos de eliminação.

Entre distintas vertentes e disciplinas, uma multiplicidade de temas e de perspectivas teóricas povoam a literatura sobre a morte e o morrer. Nos estudos sobre saúde/doença, destaca-se a crescente literatura sobre o movimento hospice e os Cuidados Paliativos (Menezes, 2004; Soneghet, 2020), etnografias críticas sobre as relações entre morte, pobreza, doença e saber médico (Fazzioni, 2018) e as reflexões mais recentes sobre a pandemia COVID-19, que conduziu o tópico para a pauta da agenda política contemporânea. Quando a questão é segurança pública e violência, são desenvolvidas reflexões sobre a natureza do luto e regimes de desumanização (Butler, 2004), bem como acerca da construção da morte como categoria estatal apoiada por dispositivos de registro (Ferreira, 2009; Medeiros, 2015). No âmbito da teoria social a nível macro, as transformações nas representações e atitudes diante da morte são objeto de debates, com críticas e adições às historiografias clássicas de Ariès e Elias (Kellehear, 2007; Jacobsen, 2016).

O dossiê está aberto a submissões em todas as perspectivas acima elencadas, desde que a morte e o morrer sejam o tópico central. Privilegiamos, portanto, contribuições teóricas e empíricas que dialoguem com esta literatura. Em concordância com a proposta da revista Mediações, receberemos contribuições na área das Ciências Sociais e afins, caso pertinentes à temática.