Wed, 30 Nov 2022 in Mediações - Revista de Ciências Sociais
Do Araguaia à Democracia. O Estado Brasileiro e a Violência Política no Pará
Resumo
O objetivo deste artigo é propor uma interpretação sobre elementos de continuidade – bem como algumas inflexões importantes – na atuação do Estado brasileiro para fomentar violência política desde a época de combate à guerrilha do Araguaia, nos conflitos de terra e em outras lutas sociais subsequentes no Sul do Pará, até os anos de vigência do Estado democrático de direito. Se, nas operações para a eliminação dos militantes comunistas, forjou-se um aparato de repressão política, os anos seguintes inauguram um novo ciclo de monitoramento, tortura e assassinato na região que acompanha e sustenta o desenvolvimento capitalista na Amazônia. Além dessa estrutura de perseguição ganhar controle político e da entrada em cena de novos atores, camponeses, posseiros, religiosos e indígenas passam a ser considerados inimigos da nação.
Main Text
Introdução
Em 1966, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) enviou o primeiro militante, Osvaldo Orlando da Costa, para a região do Bico do Papagaio, no sudeste do estado do Pará, na fronteira com o Maranhão e Goiás (hoje, Tocantins), local escolhido para a implantação de uma guerrilha rural contra a ditadura civil-militar brasileira, a guerrilha do Araguaia (1972-1974).
Para o PCdoB, as características da região eram ideais para a guerrilha rural. O isolamento e o difícil acesso possibilitariam a organização da guerrilha sem despertar maiores suspeitas e serviriam de obstáculo para a ação das forças repressivas; a ausência de representantes do Estado, à exceção dos cobradores de impostos e da Polícia Militar, que eventualmente intervinha em disputas de terras ao lado de grileiros, permitia que os militantes treinassem no mais absoluto segredo; a exploração da população local, seja pelos grileiros que a expulsava das terras, seja pelos madeireiros e castanheiros, gerava tensões e conflitos que poderiam servir de combustível para a expansão da luta armada.
O objetivo deste artigo é analisar como o Estado brasileiro agiu para fomentar os altos índices de violência política nessa região, desde a época da guerrilha, em conflitos de terras e outras lutas sociais subsequentes no Sul do Pará, até os anos da democracia no país. Por meio de uma leitura sobre a atuação de setores oficiais, extraoficiais e clandestinos do aparato de repressão da ditadura civil-militar brasileira naquela região, este artigo sublinha seus elementos de continuidade – bem como algumas de suas inflexões importantes – ao longo das décadas.
A partir de 1974, inicia-se uma espécie de um novo ciclo que pode ser caracterizado por elementos de rupturas e continuidades com o período de perseguição à guerrilha. Além da entrada em cena de novos atores, os grupos e setores que serão considerados inimigos da nação alteraram sua composição e fisionomia. Se, anteriormente, o propósito de algumas benesses e terror desmesurado contra a população local era romper seus vínculos de solidariedade com os guerrilheiros, a partir de então a sanha se voltava sem rodeios aos camponeses, castanheiros, religiosos e indígenas.
Embora fosse uma região já marcada por conflitos e disputas entre posseiros e grileiros, a presença do exército para eliminar a guerrilha incrementou não apenas quantitativamente a violência na região, mas dotou-a de sistematicidade e planejamento. Ainda que nem sempre o resultado fosse o mesmo, paulatinamente, trabalhadores e trabalhadoras rurais envolvidos em conflitos por terra ou suas iniciativas de organização sindical sofreram perseguições, ameaças, prisões, torturas e outros expedientes que haviam sido mobilizados para a eliminação da guerrilha.
Outro elemento importante a ser sublinhado é a entrada em cena de um novo ator na região – o grande capital. Se, em um primeiro momento, a doutrina de espaços vazios pressupunha um desapiedado trabalho de esvaziar espaços ocupados (Martins, 1980, p. 139), o incentivo aos grandes investimentos privados na região não se baseou apenas nas vultosas concessões de créditos e outros benefícios por parte do Estado, ou nas melhorias da infraestrutura necessária para escoar a produção – era preciso também manter a população sob controle diante das aviltantes condições de vida e de renda a que era submetida, e enquadrar aqueles que lutavam por seus direitos e melhoria de vida dentro dos rigores das ameaças e violências de uma lei marcial.
Apesar do silêncio imposto pela censura em torno da existência da guerrilha do Araguaia, com o passar dos anos, diferentes documentários, filmes e investigações jornalísticas foram realizados sobre o evento, tornando-o relativamente conhecido no país. Contudo, menos foi falado e escrito acerca das ações da ditadura contra a população camponesa local e sua perpetuação após a mudança de regime.
Para esta pesquisa foram realizadas três viagens à região estudada. Entre 2016 e 2019, foram feitas entrevistas com participantes da guerrilha, camponeses que acompanharam os conflitos na época da guerrilha e depois e familiares de mortos e desaparecidos da repressão à guerrilha e dos conflitos de terra subsequentes. Foram ainda consultados documentos disponíveis no Arquivo Nacional e no Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade de Campinas e fontes secundárias.
A análise é organizada em duas seções principais. Inicialmente, apresentaremos a região escolhida pelo PCdoB para a implantação da guerrilha, as relações que os militantes comunistas teceram com os camponeses e o impacto da repressão estatal para esta população. Na segunda parte, iremos percorrer uma série de conflitos sociais e disputas por terra que se desdobraram na região após a eliminação da guerrilha – o propósito principal será apresentar os elementos de continuidade no aparato de repressão e vigilância, instaurado naqueles territórios durante o combate à guerrilha e composto por membros do Exército, agentes públicos, setores do Judiciário, representantes das elites locais, seus capazes e pistoleiros.
A Guerra no Bico do Papagaio
Se a guerrilha rural estava no horizonte das organizações da esquerda que recorreram à luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira (Ridenti, 2010), o PCdoB foi aquele que chegou mais próximo de concretizar essa estratégia de luta, com a guerrilha do Araguaia. Crítico à estratégia do foco guerrilheiro – hegemônica entre as organizações da esquerda armada no Brasil –, o PCdoB defendia uma guerra popular prolongada, o cerco das cidades pelo campo, nos moldes chineses3.
Elza Monnerat, membro do Comitê Central do PCdoB, descreveria assim a região escolhida pelo partido à qual chegou em dezembro de 1967:
O relato de um militante anônimo do PCdoB5, com data de janeiro de 1975, publicado por Clóvis Moura, detalha as condições de trabalho daquela população:
A estratégia do PCdoB foi a seguinte: alguns militantes escolhidos foram, paulatinamente, levados à região do Bico do Papagaio, e ali se integraram à vida local, trabalhando em pequenas posses de terra, como barqueiros, ou em pequenos comércios abertos por eles. Além de favorecerem a aproximação com a população local, esses comércios permitiam que medicamentos e mantimentos necessários para a preparação da guerrilha chegassem à área.
Por se tratar de uma região de fronteira agrícola – a maioria da população era formada por camponeses migrantes da região nordeste ou de Goiás –, esperava-se que a presença dos militantes comunistas não despertasse suspeitas. Embora a estratégia de luta armada defendida teoricamente pelo PCdoB fosse a guerra popular prolongada, na qual o envolvimento da população era essencial, o partido avaliava que a forte repressão aos movimentos contestadores do regime inviabilizava, naquele momento, um trabalho político dos guerrilheiros com os moradores da região onde estava sendo preparado o movimento armado.
A estrutura da guerrilha era formada por três destacamentos com 21 membros, que se dividiam em três grupos cada. Os destacamentos encontravam-se distantes entre si, em diferentes municípios da região. Até 1972, 69 membros do partido foram para lá, adotando diferentes formas de integração à vida local. “Tinha uma reza, e chamavam a gente; tinha uma festa, a gente ia lá”, explica José Genoino Neto, que chegou à região em julho de 1970 (Dória et al., 1978, p. 29).
Mesmo que a presença de pessoas de outros lugares do Brasil não fosse estranha à região, a origem social distinta da maioria dos recém-chegados – em grande parte estudantes e pessoas com nível superior completo – não passou despercebida. A inabilidade inicial dos novos moradores no trato com terra e a sobrevivência na selva foi logo percebida pela população local, cujos ensinamentos foram fundamentais para a adaptação dos comunistas, como conta o guerrilheiro Glênio Sá (2004, p. 7-8):
Ao mesmo tempo, naquela região absolutamente carente da assistência estatal, alguns conhecimentos dos comunistas foram muito valorizados. Os relatos dos camponeses que conheceram os guerrilheiros fazem referência a diferentes formas de assistência prestadas pelos últimos, por essa razão, sempre referidos nesses discursos como pessoas boas, pessoas educadas, que ajudavam quem precisava (Pannain, 2022). A militante Áurea Valadão, por exemplo, é lembrada como a primeira professora da região de Boa Vista, na qual lecionava para crianças numa escolinha construída pelos próprios camponeses. O médico João Carlos Haas Sobrinho é lembrado pela assistência médica à população. Outros profissionais de saúde, ou pessoas com algum conhecimento médico, também foram enviados para a região. Foi o caso, por exemplo, da enfermeira do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo Luiza Garlippe e de Criméia Alice de Almeida, que, por indicação do partido, estudara enfermagem em sua preparação para a guerrilha. Muitos partos foram feitos por diferentes militantes comunistas e são lembrados até hoje. Também o são as diferentes formas de assistência médica que prestaram os guerrilheiros, que dispunham não só de algum conhecimento, mas também de remédios para tratar as doenças típicas locais, como a malária. A população também recorria aos comunistas para intermediar brigas entre vizinhos ou familiares, e até mesmo para negociar dívidas e pedir empréstimos para pagamento de multas, como conta Criméia6.
Sobre a relação dos militantes do PCdoB com a população, o padre francês Humberto Railland, que vivia na região desde 1972, fez o seguinte relato:
Enquanto os comunistas tocavam suas roças, também aprendiam a sobreviver na floresta, a caçar, a conhecer o terreno, a se localizar, a achar água e outras estratégias de sobrevivência. Os conhecimentos aprendidos com moradores ou com os militantes já adaptados às condições da floresta foram fundamentais quando o ataque das forças repressivas do Estado contra a guerrilha foi deflagrado em abril de 1972. A guerrilha estava ainda em estágio de preparação quando os militares lançaram as primeiras ofensivas. Iniciava-se o período conhecido como “a guerra”, conforme a definição no léxico da população local.
A Repressão à Guerrilha e os Impactos para a População Local
Avisados pela população da chegada do Exército, os guerrilheiros fugiram para a mata, deixando mantimentos, algumas armas em reparo e fabricação, roupas, livros, etc. Suas roças e paióis foram queimados pelo exército, obrigando-os a recorrer à caça, aos esconderijos dentro da floresta nos quais haviam estocado alimentos secos e remédios e à ajuda dos camponeses. Com efeito, essa colaboração com alimento, abrigo e informação foi fundamental para a sobrevivência dos guerrilheiros durante as primeiras fases da luta armada, já que muitos desses pontos foram descobertos pelo Exército à medida que guerrilheiros eram feitos prisioneiros ou eram encontrados por guias recrutados entre a população local (Campos Filho, 2012).
Alguns camponeses se juntaram à guerrilha. Encontramos um deles, que sobreviveu às torturas e vive hoje em São Geraldo do Araguaia. Muitos apoiaram o movimento. Contudo, apenas um pequeno número pode ser considerado “colaborador”, no sentido usado por Viterna (2006) no estudo da salvadorenha Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, ou seja, pessoas ocupando um papel formalmente determinado de apoio ao movimento. Pessoas que ainda vivem na região explicam que a ajuda aos guerrilheiros era motivada por pena, pelo fato de eles serem “boas pessoas” e porque as pessoas tinham o costume de se ajudarem naquela época. Esse traço da sociabilidade camponesa – marcado, por exemplo, pela ajuda mútua entre vizinhos, pelos mutirões e pela solidariedade com viajantes – é, de fato, recorrente nas histórias contadas sobre a vida “antes da guerra” (Pannain, 2022).
Em seus relatos, os camponeses afirmam terem ficado bastante surpresos quando o Exército chegou procurando os “paulistas”, acusando-os de serem terroristas, ladrões de bancos, etc. As boas lembranças da convivência com os militantes comunistas e a violência com a qual o exército reprimiu a população local eram as razões para a sua incredulidade frente a essas acusações. A violência era indiscriminada e brutal. Lourival de Souza Paulino, barqueiro e amigo dos guerrilheiros, apareceu morto em uma cela em Xambioá, depois de preso pelo Exército sob a acusação de participar do movimento armado (Campos Filho, 2012, p. 142). O padre Humberto Railland conta que um morador deu o nome dos compadres de Flávio, que eram muitos, e esses foram “os primeiros presos e os primeiros torturados” (Dória et al., 1978, p. 61). O padre Roberto de Valicourt e a irmã Maria das Graças também foram presos e torturados, sendo libertados apenas após intervenção do bispo de Marabá (Campos Filho, 2012, p. 143).
José Genoino Neto, preso nos primeiros dias da campanha das forças governamentais, passou parte dos meses de maio e junho de 1972 preso em um buraco, com vários camponeses, no município de Xambioá: “[...] um deles, com um tumor na perna, foi se tratar em São Geraldo e acabou preso. Outro me perguntou que negócio era aquele que amarravam na orelha dele e ele começava a ‘pular como sapo’. Era choque elétrico” (Dória et al., 1978, p. 44). O primeiro contato de muitos daquela região com a eletricidade se deu durante as sessões de tortura7. Esse centro de detenção e tortura montado em Xambioá aparece descrito em uma reportagem do jornalista Henrique Gonzaga Júnior (1972), que esteve na região, e que foi publicada por O Estado de S. Paulo, em 24 de setembro de 1972: “Há nos acampamentos muitos oficiais do Cenimar, que interrogam os prisioneiros. Esses foram reunidos num enorme buraco cavado e coberto por uma rede de arame farpado. Acima do buraco, três soldados mantêm guarda permanente”.
Os preparativos para a deflagração da guerra de guerrilhas pelo PCdoB ainda não tinham terminado quando seus planos foram descobertos. Havia pouco e precário armamento, alguns militantes haviam chegado há pouco tempo à região (dois chegaram junto com o Exército) e não estavam preparados para sobreviver na selva, os estoques de alimento e remédio na mata ainda não eram suficientes, além de muitos outros problemas. Contudo, a primeira campanha das forças governamentais, que mobilizou principalmente recrutas inexperientes, foi extremamente ineficiente na guerra de guerrilha.
Durante o período de trégua entre a primeira e a segunda campanhas, os militantes do PCdoB intensificaram o trabalho político com a população local. Os moradores da região que ali viviam na época dos confrontos relatam que os guerrilheiros iam a suas casas para explicar por que estavam sendo perseguidos, as razões de sua luta.
A segunda campanha militar contra a guerrilha começou em setembro de 1972. Segundo documentos militares oficiais, havia uma simpatia da população pelos guerrilheiros, que resultava em apoio (Campos Filho, 2012; Morais; Silva, 2011). Os militares desenvolveram uma nova tática para conquistar a confiança da população:
Essas ações indicam que o combate à guerrilha não se limitava às Forças Armadas e à Polícia Militar do Pará, havendo um envolvimento de diferentes esferas do Estado brasileiro. O Incra, por exemplo, além de desenvolver um projeto buscando conquistar “corações e mentes” da população local, também emprestou maquinário e pessoal para a construção de estradas dentro do território dos guerrilheiros (Morais; Silva, 2011, p. 307). As chamadas Ações Cívico-Sociais (Aciso) forneceram assistência médica, dentária, veterinária, orientação para agricultores, promoveram atividades para “divertir” a população, como gincanas e competições esportivas (Morais; Silva, 2011, p. 331). A atuação das Aciso incluía também a perseguição de “pistoleiros e grileiros” e “vários fazendeiros foram obrigados a resolver a situação trabalhista de seus peões, inclusive com o pagamento de Funrural e a assinatura de carteiras de trabalho” (Campos Filho, 2012, p. 153).
Não obstante a nova estratégia, manteve-se a violência contra a população local. Camponeses continuaram sendo presos, e os indígenas Suruí-Aikewara foram obrigados a trabalhar como guias do Exército, que ocupou sua aldeia e cortou suas terras com a construção de uma estrada para o transporte de tropas. O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade trata das violações sofridas por esse povo:
Sem conseguir derrotar os guerrilheiros, a segunda campanha terminou em apenas dois meses. Houve uma trégua de quase um ano até a terceira campanha das forças federais contra os guerrilheiros. Durante esse período, o serviço de inteligência do Exército e o Serviço Nacional de Informações mantiveram agentes disfarçados de posseiros, de funcionários do Incra e de postos de saúde na região do Bico do Papagaio, recolhendo informações para a campanha militar seguinte. Ademais, como parte da estratégia de controle da região do conflito, essa passou a ser atravessada por três novas estradas, e também foram construídos quartéis militares nas duas maiores cidades da região, Marabá e Imperatriz (Campos Filho, 2012, p. 167-170). Tanto as estradas quanto os quartéis, ainda hoje, seguem em funcionamento.
Segundo o relatório do guerrilheiro Ângelo Arroyo, em abril de 1973, o aniversário de um ano do início dos confrontos teria sido comemorado com a presença de moradores da região e o destacamento A teria organizado uma reunião com 50 moradores para discutir medidas contra o Incra. Arroyo afirma igualmente que teriam sido criados 13 núcleos da ULDP (União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo) e que o cordel escrito pelo guerrilheiro Lúcio Petit da Silva, A vida de um lavrador, foi bastante disseminado na região. Essas informações são de difícil comprovação, e é possível que o comandante guerrilheiro tenha exagerado nos seus relatos; contudo, é fato que a terceira campanha iria perseguir de forma ainda mais violenta os moradores da região e seriam adotadas estratégias mais drásticas para isolar os guerrilheiros.
Muitos camponeses foram presos e torturados. Para evitar qualquer contato com os guerrilheiros e um possível apoio a eles por parte da população, pessoas foram expulsas de suas terras e tiveram suas plantações, casas e paióis destruídos pelas Forças Armadas. Um morador da região conta que “quando eles não tiravam o morador, para a cidade para não ficar no local, aí ficava quase uma base na casa do morador, ficava direto”9. No caso das terras das quais os camponeses foram expulsos, “os fazendeiros tomaram de conta”, afirma outro morador10.
As graves violações dos direitos humanos cometidas pelos representantes estatais foram apresentadas em um relatório elaborado por membros do Ministério Público Federal do Pará e de São Paulo, em 2002, e no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, onde consta a denúncia de que mais de 200 camponeses foram presos, durante a terceira campanha, acusados de fornecer apoio à guerrilha.
Com base em relatórios produzidos pelas próprias Forças Armadas, fica evidente que as prisões de camponeses foram feitas de forma massiva e indiscriminada, pois 90% dos acusados de colaborarem com a guerrilha o faziam, segundo análise desses documentos oficiais, “dentro do hábito de hospitalidade da área, ou premidos pela presença do grupo armado”. “Gente que – mais uma vez citando os relatórios das próprias Forças Armadas –, ‘inadvertidamente, vinha apoiando a ação guerrilheira’ era presa e, da mesma maneira que os próprios guerrilheiros, era posta imediatamente sob tortura” (Brasil, 2014, v. 1, p. 701).
O relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta, entre as “figuras de destaque no funcionamento da Casa Azul”, o centro clandestino de tortura localizado em Marabá, Sebastião Rodrigues de Moura (Brasil, v. 1, p. 695). Esse militar, conhecido como Major Curió, havia sido adjunto do coordenador da Operação Sucuri (a segunda campanha de combate à guerrilha) e se tornaria uma figura central para a manutenção do controle da região pelo serviço de inteligência militar, mesmo após a redemocratização, como veremos mais adiante. Cinquenta e seis guerrilheiros foram mortos nessa terceira campanha, e seus corpos continuam desaparecidos (Brasil, v. 1, p. 691)11. Já o número de camponeses mortos e desaparecidos segue desconhecido.
“A guerrilha é uma história suspensa no tempo”, afirma Peixoto (2011, p. 486). Isso se deve tanto ao seu desfecho, que resultou na execução e no desaparecimento de militantes que perduram até os dias atuais, quanto ao fato de que o direito à terra para quem nela trabalha, presente nos documentos elaborados pelo movimento guerrilheiro, não foi ainda alcançado (Peixoto, 2011, p. 486).
O Estado, o Capital e a Luta pela Terra
Seguindo a estratégia inaugurada com a Marcha para o Oeste do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1937-1945), o I Plano Nacional de Desenvolvimento, elaborado em 1971, previa mudar os fluxos migratórios internos do país, cuja principal região de atração era a Sudeste, direcionando a mão de obra oriunda do Nordeste para as Regiões Centro-Oeste e Norte. O plano tinha igualmente entre suas metas o desenvolvimento de um polo agropecuário no Planalto Central e na Amazônia, com a estratégia de “integrar para desenvolver” (Brasil, 1971). Com efeito, desde o golpe de 1964, foram vários os planos governamentais para a Amazônia com esse objetivo, como explica Octávio Ianni (1981, p. 132):
O II Plano Nacional de Desenvolvimento, elaborado um ano após a derrota da guerrilha do Araguaia, redirecionou o modelo de colonização, visando atrair para a região grandes empresas nacionais e multinacionais (Campos Filho, 2014, p. 143). Concedendo vultosos incentivos fiscais e outros benefícios legais e econômicos, a nova política estatal atraiu investimentos de bancos, companhias de seguros, mineradoras, empresas de transporte e de construção civil sobretudo para grandes projetos de criação de gado (Kohlhepp, 2002, p. 40).
A doutrina de ocupação dos chamados “espaços vazios” era, na verdade, uma “doutrina de esvaziamento de espaços ocupados”; assim, “o chão que era antes do homem transforma-se em chão da vaca e do capital” (Martins, 1980, p. 139). Como consequência, as políticas governamentais levaram a uma “generalização da luta pela terra” (Ianni, 1981, p. 134). Durante o período da ditadura civil-militar, “quase seiscentos camponeses foram assassinados em conflitos na região amazônica, por ordem de proprietários que disputavam com eles o direito à terra” (Martins, 1996, p. 27).
A região sudeste do Pará seria especialmente impactada por essa política da ditadura para a Amazônia. Localizada em uma área de transição do Cerrado para a Floresta Amazônica, na fronteira das Regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, a área escolhida pelo PCdoB representou, inicialmente, uma das portas de entrada da região para posseiros oriundos do Nordeste e de Goiás. Atravessada pela rodovia Transamazônica, a região do Bico do Papagaio estava incluída nos planos governamentais de integração do Norte com o resto do país. Como explica Ianni, os conceitos de desenvolvimento e segurança nacional eram indissociáveis na economia política dos governos militares. Assim, antes mesmo de deflagrada a primeira ação militar contra os militantes comunistas, o município de Marabá já havia sido tornado área de segurança nacional, com o Decreto-Lei n° 1.131 de outubro de 1970. Após a guerrilha do Araguaia, assumirá novas dimensões o entendimento da região como uma área de segurança nacional.
Após desempenhar um papel de destaque na captura e assassinato dos militantes do PCdoB que rumaram para o Araguaia ao final dos anos 1960, o oficial do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como Major Curió, foi nomeado pelo governo federal interventor na região. Durante a época da guerrilha, Curió havia sido responsável por infiltrar agentes onde os guerrilheiros atuavam, criando uma rede de informantes que cobriam uma área de 12 mil km2 (Nossa, 2012, p. 150). Com o fim da guerrilha, os antigos guias do Exército, conhecidos na região como “bate-paus”, foram assentados às margens das rodovias construídas durante a repressão. Curió manteve assim sob seu controle parte daqueles que haviam colaborado com o Exército. Por meio dos relatórios de Curió enviados a Brasília, “qualquer manifestação de posseiros era interpretada como ameaça de retorno da guerrilha”, e “setores do Serviço Nacional de Informação entendiam que a ameaça era real” (Nossa, 2012, p. 231).
Com o fim da guerrilha, ao mesmo tempo que se tornava a figura central para rearticular os instrumentos e instituições oficiais e as redes clandestinas de terrorismo e perseguição nesse novo contexto, o famigerado Major Curió também garantiu as condições econômicas, sociais e políticas para o avanço – cada vez mais célere e devastador – do grande capital pela região do Sul do Pará. Após a guerrilha, Curió esteve “no centro de todos os conflitos” posteriores ao controlar uma área de 166,5 mil km2, que engloba “dezesseis cidades do Maranhão, 25 do Pará e 42 do Tocantins” (Nossa, 2012, p. 241), tornando-se a principal autoridade no garimpo de Serra Pelada, a mando da ditadura.
A Violência Política na Luta pela Terra
Localizado nas cercanias de onde se instalara um dos destacamentos da guerrilha do Araguaia, o povoado de Perdidos tornou-se cenário de um importante conflito entre, de um lado, posseiros e camponeses que viviam no local e, de outro, instituições públicas e agentes estatais, Forças Armadas e policiais, setores do Poder Judiciário, pistoleiros e os interesses de grandes grupos econômicos que direcionavam seus investimentos para a região.
Em outubro de 1976, o tenente Walmary comandou uma tropa de 18 outros soldados do Exército para garantir a demarcação de uma vasta área de terras – 11 glebas de 4.356 hectares cada (Pereira, 2014, p. 10) – no povoado de Perdidos em favor da Indústria Madeireira Paraense e Agropecuária Ltda (Impar), empresa do grupo Óleo Pacaembu, cujos títulos de propriedade foram cedidos pela Fundação Brasil Central (FBC). Entrincheirado para defender seus direitos de posse sobre as terras, um grupo de camponeses trocou tiros com os militares, resultando na morte de dois soldados e no ferimento à bala de outros dois. Um dos camponeses que participou do movimento explica:
Além de incendiar casas e destruir roçados dos posseiros, um contingente de 50 policiais militares voltou à região três dias após esses conflitos, e torturou e prendeu mais de 100 camponeses. O informante mencionado conta que o Incra transformou um colégio em cadeia para prender e torturar os posseiros. Trinta foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional e transferidos para Belém. Essa mesma operação também vitimou alguns religiosos acusados de colaboração com os posseiros – o padre Florentino Malboni e o seminarista Hilário Lopes da Costa foram presos e torturados; Dom Estevão de Avelar e Dom Alano Maria Pena, bispos de Conceição de Araguaia e Marabá, também foram processados pela Lei de Segurança Nacional (Pereira, 2014, p. 11). Os posseiros defendidos pelo advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Paulo Fonteles, tiveram seu direito reconhecido e receberam os títulos das terras em disputa. Contudo, a maioria acabou vendendo suas terras, seja por falta de assistência dos governos, seja pela dificuldade em conviver com as lembranças traumáticas causadas pela violência estatal, como explicam alguns antigos posseiros entrevistados.
Não muito longe de onde ocorreu a Revolta dos Perdidos, as tentativas de organização sindical de trabalhadores e trabalhadoras em Rio Maria eram escrutinadas com rigor e covardia13. Após uma inusitada vitória judicial pelo direito de posse sobre terras cuja propriedade formal era reivindicada pelo fazendeiro Neif Murad e pelo grupo Bamerindus Agropastoril S/A, na região de Itaipavas (Campos Filho, 2014, p. 214), um grupo de camponeses se organizou para lançar uma chapa de oposição para a disputa da presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, em 1980. Paulo Fonteles, advogado responsável pelo bem-sucedido processo dos posseiros na Justiça, e os padres François Gouriou, Aristide Camio, Nicola Arpone e outros religiosos ligados à CPT participaram ativamente da iniciativa dos camponeses.
Além de uma ampla repercussão nacional a partir de reportagens em órgãos de imprensa – dentre as quais uma da revista Veja em junho de 1980, intitulada “Araguaia: guerra à vista” – que lançaram luz sobre as aviltantes condições de vida dos camponeses e posseiros da região e as ameaças constante que sofriam, essas movimentações dos trabalhadores e trabalhadoras rurais também suscitaram um informe do SNI que alertava sobre a iminência de um conflito na região e ressaltava a participação direta de elementos notoriamente comunistas e de setores progressistas do clero para a politização dos camponeses (Campos Filho, 2014, p. 221).
Doze dias após a elaboração do informe do SNI e a um mês das eleições do sindicato, Raimundo Ferreira Lima – conhecido como Gringo e candidato à presidência pela chapa – foi assassinado em Araguaína no dia 29 de maio de 1980. Apesar da confissão de José Antônio, filho do fazendeiro Fernão Leitão Diniz morto dias antes em outro conflito com os posseiros, o assassinato de Gringo jamais foi esclarecido pela Justiça e os responsáveis por ele nunca foram punidos (Figueira, 1986, p. 63).
As ações oficiais e clandestinas de vigilância, as ameaças e intimidações por parte das forças de repressão do Estado, órgãos da Justiça, fazendeiros e pistoleiros continuaram nos anos seguintes. Pouco mais de um ano após o assassinato de Gringo, sua viúva, Maria Oneide da Costa Lima, e os padres que com ele trabalhavam, Aristide Camio e François Gouriou, foram presos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Em reportagem de 8 de novembro de 1981, O Estado de S. Paulo anunciava que a polícia teria encontrado, na casa dos padres, documentos provando sua associação com membros do PCdoB. Segundo o jornal, “oficiais de informações em seus relatórios sigilosos” informavam que “a luta armada agora pode voltar à região agora com o apoio de padres, missionários leigos e sindicalistas, que se estariam aproveitando dos complexos conflitos de terra para acirrar os ânimos de posseiros, invasores e fazendeiros” (Os padres [...], 1981).
Camio e Gouriou foram condenados por um tribunal militar, em 1983, a dez e oito anos de prisão, respectivamente, por incitar 13 posseiros “à luta pela violência entre as classes sociais” e “desobediência coletiva às leis” (Art. 36 parágrafos II e IV da Lei 6.620/78, a Lei de Segurança Nacional) (Brasil, 1978). Apesar da significativa mobilização popular contra as sentenças e do apoio da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de organizações internacionais, como a Anistia Internacional, os padres ficaram mais de dois anos em cárcere, sendo liberados apenas depois das mudanças na Lei de Segurança Nacional elaboradas pelo Congresso Nacional, em 1983.
No ano de transição para a democracia, 1985, João Canuto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, foi assassinado a mando de fazendeiros. Sua filha, Luzia Canuto, explica que na época eles sabiam “quais as fazendas em conflito e quais os fazendeiros que ameaçavam, mas a polícia de Rio Maria era totalmente envolvida com os crimes” (LUIZA [...], 2009). Cinco anos após o crime contra João Canuto, seus filhos José e Paulo Canuto foram mortos por um pistoleiro ex-policial militar. No ano seguinte, em 1991, outro presidente do mesmo sindicato, Expedito Ribeiro de Souza, que anos antes havia escrito um poema dedicado ao advogado da CPT Paulo Fonteles, assassinado em 1985, cujos versos prometiam: “Tua morte, querido poeta, será vingada!” (Fonteles Filho, 2014), também foi assassinado. Naquele ano, latifundiários haviam fundado a União Democrática Ruralista (UDR), com o objetivo de defender, por vias legais e ilegais, seus interesses.
Os crimes violentos contra camponeses e posseiros continuaram. Em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar quando participavam de uma manifestação pacífica, no evento que ficou conhecido como o massacre de Eldorado dos Carajás. Muitas dessas vítimas foram executadas de forma premeditada, como indicam os laudos do médico legista. Mais uma vez, os agentes do Estado agiram para atender os interesses dos proprietários de terras. As vítimas do massacre faziam parte de um grupo de 3.500 famílias que haviam acampado próximo à Fazenda Macaxeira, em setembro de 1995, reivindicando a sua desapropriação. Organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), essas famílias questionavam o laudo emitido pelo Incra – obtido por meio de subornos, segundo o MST – que declarava que se tratava de uma propriedade rural produtiva. Em março de 1996, com o objetivo de relançar as negociações com o Incra, as famílias ocuparam a fazenda (Barreira, 1999, p. 137).
Cerca de 1.500 trabalhadores sem-terra iniciaram uma marcha no sul do estado em direção a Belém depois que não foram cumpridas promessas de envio de alimentos e remédios para o acampamento, acordado em negociação com o Incra, tendo como intermediário o presidente do Instituto de Terras do Estado do Pará. Chegando perto do município de Eldorado dos Carajás, os manifestantes optaram por bloquear a estrada PA-150, reivindicando ajuda com comida e transporte para chegarem até a capital do estado. Apesar de terem suas demandas inicialmente aceitas, mais uma vez as promessas não foram cumpridas, desencadeando o fechamento da rodovia por parte dos manifestantes, que “foram literalmente cercados: a oeste por policiais do quartel de Parauapebas e a leste por policiais do batalhão de Marabá” (Barreira, 1999, p. 137).
Onze anos depois, seria perpetrado outro massacre contra trabalhadores rurais no estado, agora no município de Pau D’Arco, ao sul de Rio Maria. Na manhã do dia 24 de maio de 2017, os sons e sirenes de carros de polícia despertaram um grupo de 25 trabalhadores rurais sem-terra, acampados na mata nas cercanias da fazenda Santa Luzia, que visavam ocupar. As execuções – ora sumárias, ora após sessões de tortura – dizimaram dez dos integrantes do grupo, e, conforme relatório da CPT baseado em investigações da Polícia Federal e o Ministério Público, foram planejadas pelo comando da Polícia Civil de Redenção, especialmente pelas figuras do delegado Antônio Miranda Gomes Neto e do tenente-coronel Kennedy, comandante da PM na região. Valendo-se de informações de pessoas infiltradas nas reuniões e assembleias que visavam organizar a malograda ocupação, essa aliança de policiais civis e militares não apenas assassinou essas pessoas, como também alterou completamente a cena do crime, amontoando os corpos de suas vítimas em uma caminhonete da Delegacia de Conflitos Agrários de Redenção, e os levou ao necrotério do hospital da cidade – um expediente bastante corriqueiro desde os tempos dos combates contra a guerrilha do Araguaia.
Tal como outrora, outras instituições e agentes públicos tomaram partido para que a violência do Estado permanecesse bastante atuante na região. Mesmo com o massacre suscitando uma ampla cobertura na mídia nacional, o inquérito foi encerrado cinco anos depois do ocorrido, sem apontar nenhum possível mandante do crime. Apesar do Ministério Público do Pará apresentar acusação contra 17 policiais militares e civis por crime de homicídio, tortura, associação criminosa e fraude processual, ainda não há data prevista para a realização do julgamento. Entretanto, testemunhas do massacre e lideranças populares do município seguem sendo intimidadas, ameaçadas e até mesmo assassinadas sem que os órgãos responsáveis atuem para esclarecer ou impedir que a violência de instituições e agentes públicos siga como método no interior de um Estado Democrático de Direito. Em janeiro de 2021, Fernando dos Santos Araújo, sobrevivente do massacre de Pau D’Arco e principal testemunha do caso, foi assassinado.
Além daqueles apresentados, houve muitos outros assassinatos de camponeses envolvidos nas disputas de terras da região do sul do Pará desde a década de 1970, descortinando uma das faces mais violentas da relação entre o Estado brasileiro e o avanço do capitalismo na Amazônia.
Considerações Finais
Se na época da guerrilha do Araguaia a região escolhida pelo PCdoB era coberta pela floresta, hoje o gado ocupa essas terras. Cruzando a Transamazônica ou as estradas construídas durante os conflitos (as Operacionais 1, 2 e 3), vemos a floresta preservada apenas nas terras demarcadas dos Suruí-Aikewara. A mudança na paisagem reflete o avanço do capital na região.
Durante a repressão da guerrilha, constitui-se uma vasta e perigosa rede de instituições oficiais e clandestinas, forças policiais e militares, membros do Judiciário, fazendeiros, grileiros e pistoleiros, informantes e infiltrados, que, entre outras coisas, tornou a violência de Estado em moeda corrente. Já na década de 1970, essa estrutura de perseguição, monitoramento, tortura e assassinato foi agraciada com o controle político da região, voltando-se com fúria e barbárie contra camponeses, posseiros, religiosos e indígenas. É possível perceber uma espécie de marcha – soturna e brutal – que parte dos territórios nos quais os guerrilheiros do Araguaia concentraram seus três destacamentos e se espraia até a região do garimpo de Serra Pelada, espalhando, ano após ano, arbitrariedades e terror. Seguindo seus passos e ditando seu ritmo, o capital pavimentou essa tenebrosa vereda para que o seu imperativo de lucro sempre renovado não encontrasse barreiras – fossem vidas humanas, a fauna ou a, até então, impenetrável floresta que existia na região.
Embora a atuação desses setores não tenha permanecido, evidentemente, a mesma, o processo de democratização do país não foi radical o suficiente para dissolver antigas e renovadas alianças entre instituições e agentes do Estado, os interesses socioeconômicos de grandes, médios e pequenos capitais, e membros das elites políticas, econômicas e sociais dessas localidades. Se, por um lado, as caravanas de familiares, as organizações e as lutas em torno da memória e justiça, as comissões da verdade e a dedicação de procuradoras e procuradores do Ministério Público Federal lançaram novas luzes e expectativas com relação à eliminação da violência do passado e sua perpetuação no presente, por outro lado, as contradições, limites e vieses do Estado brasileiro, do Poder Judiciário, das Forças Armadas e, talvez como esteio material, os modelos de desenvolvimento econômico implementados na região mantiveram acesos as sombras e os expedientes mobilizados no combate à guerrilha e nas lutas e conflitos posteriores ao levante dos comunistas, desde os primeiros momentos da democracia. Em 4 de maio de 2020, o então presidente Jair Messias Bolsonaro recebeu o infame Major Curió no Palácio do Planalto, subscrevendo a violência que nunca foi rompida.
Resumo
Main Text
Introdução
A Guerra no Bico do Papagaio
A Repressão à Guerrilha e os Impactos para a População Local
O Estado, o Capital e a Luta pela Terra
A Violência Política na Luta pela Terra
Considerações Finais