Ementa - Dossiê: Estudos de clima, humor e atmosfera no Brasil. (Mediações, vol. 31, n.1 – 2026/1)

2024-06-17

Organizadores: Paulo Gajanigo (UFF) e  Manuela de Mattos Salazar (University of Sussex).

Nas últimas duas décadas, observamos o desenvolvimento de um campo de pesquisas e de estudos que tomam os aspectos etéreos dos fenômenos sociais como foco de análise. Determinados conceitos e categorias têm servido para produzir esse enfoque: atmosfera, humor, clima, mood, Stimmung, vibe, estrutura de sentimentos, ambiência, entre outros. Cada um destes evoca contextos intelectuais específicos em sua formulação e desenvolvimento. Recentemente, porém, passaram a encontrar ambientes comuns de trocas e articulações, impulsionados em geral pelos efeitos da “virada afetiva” (Griffero, 2019). Hoje, portanto, é possível identificar diversas iniciativas que seguem o caminho da constituição de um campo de estudos, cujo nome pode ser rascunhado como Mood Studies.

Como indícios da construção desse campo, podemos citar os seguintes dossiês em revistas: “In the mood” na New Literary History (Felski; Fraiman, 2012); “Mood work” na New Formations (Highmore; Taylor, 2014); “Staging Atmospheres: Materiality, Culture, and the Texture of the In-Between” na Emotion, Space and Society Journal (Bjerregaard; Sørensen, 2015); “The Meaning of Moods” na Philosophia (Krebs; Ben-Ze’ev, 2017); “Moods” na Studi di Estetica (Griffero, 2019); e “Atmosphere and Mood” na Art Style (Sauer; Wang, 2023). Além desses, podemos também citar publicações coletâneas como Atmosphere/Atmospheres: testing a new paradigm (Griffero; Moretti, 2018); Atmosphere and aesthetics: a plural perspective (Griffero; Tedeschi, 2019); Mood: interdisciplinar perspectives, new theories (Breidenbach; Docherty, 2016); Atmospheres and Shared Emotions (Trigg, 2022); além de dezenas de mesas redondas, seminários e sessões temáticas.

É possível identificar certas tradições intelectuais que têm servido como fontes principais na construção desse campo (Gajanigo, 2024). Uma delas é a fenomenologia, em especial a produção de Hermann Schmitz a partir do final dos anos 1960 cuja centralidade no conceito de atmosfera inspira estudos com notável desenvolvimento nas últimas décadas. A contribuição de Gernot Böhme (1993), por exemplo, aponta a atmosfera como elemento principal do que ele chama de nova estética; já Tim Ingold (2012b) utiliza o conceito para ressaltar a impossibilidade de uma teoria do sujeito apartada da corporalidade/materialidade. Sobre atmosferas, há ainda um notável desenvolvimento de estudos que se voltam para questões urbanísticas e arquitetônicas demonstrado, por exemplo, pela rede internacional Ambiances, que tem dado consistência institucional ao campo do Mood Studies. Criada por Jean-Paul Thibaud, abriga pesquisas que tratam da “concepção sensorial de espaços arquitectónicos e urbanos e à compreensão das ontologias, formas e potências das intensidades afetivas das atmosferas”.

Outro termo, também de origem germânica, é Stimmung. Presente há séculos nas discussões filosóficas, tem sido retomado especialmente a partir da formulação heideggeriana, para quem Stimmung é a condição do ser-aí de estar jogado no mundo, de se sintonizar ao mundo. Como um modo de afetação, Stimmung tem sido traduzido com frequência nos estudos pelo termo inglês mood. Tomado a partir do Stimmung heideggeriano, mood se afasta do conceito de emoção, com o qual é muitas vezes confundido. Mood, por influenciar “mais a forma como se percebe do que do conteúdo percebido, leva apenas indiretamente a comportamentos e não motiva diretamente emoções.” (Griffero, 2019a, p.133-134). Essa acepção demonstra o porquê de o campo Mood Studies não ser absorvido, ainda que parcialmente, pela Sociologia das Emoções. De fato, ele pode ser entendido como mais próximo aos Estudos Culturais, particularmente a partir do modo como os sentimentos e afetações foram tratados por sua geração inicial. Autores referenciados nos Estudos Culturais têm trabalhado o termo mood em relação ao conceito de estrutura de sentimento de Raymond Williams (Anderson, 2009; Highmore, 2017; Coleman, 2018). Tem servido de elo entre os conceitos o foco pré-discursivo de ambos.

As Ciências Sociais tendem a se beneficiar com o desenvolvimento dos Mood Studies. Diversos temas caros à nossa disciplina são tocados pelas propostas, com abordagens voltadas para o aspecto etéreo dos fenômenos sociais. Por exemplo, a já citada contribuição de Tim Ingold sobre atmosfera se articula com sua proposta de antropologia ecológica (2012a). Além disso, o termo mood, entendido para além das emoções individuais, desafia abordagens dos estudos sobre public mood e análise dos humores nas redes sociais virtuais (Gajanigo, 2024). Ainda que Hartmut Rosa (2019) não faça uso explícito dos conceitos como Stimmung ou Atmosfera, seu uso da ideia de ressonância se aproxima das contribuições que mapeamos aqui e desafia, tal como os Mood Studies o fazem, a primazia da racionalidade na compreensão da esfera pública.

No Brasil, identificamos poucas iniciativas em torno dos Mood Studies, mas que já indicam uma crescente relevância desse campo entre nós. A falta de um termo correlato para mood ou Stimmung pode ser uma dificuldade para a visualização de uma unidade no campo de pesquisa, e pode ainda dificultar sua própria construção como campo. O epicentro principal hoje tem sido em torno do termo Stimmung e se concentra fundamentalmente em estudos de estética, arte e literatura. Muito disso se deve à influência de Hans Ulrich Gumbrecht no Brasil, especialmente a partir da publicação em português da obra Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura (2015). Na última década, podemos encontrar estudos que evocam a noção de ambiência, aura e tonalidade afetiva do termo em pesquisas sobre arte e arquitetura (Sträter, 2008; Müller, 2013; Coradini, 2013; Magno; Costa, 2017; Amaral, 2018; Duarte et al., 2023), jogos eletrônicos (Aguiar, 2016; Reis, 2018) e historiografia (Araújo, 2009; Rangel, 2016). A discussão sobre atmosfera tem se dado principalmente via arte, arquitetura e antropologia pela recepção de autores como Tim Ingold (Couto, 2017), de Gernot Böhme (Cajaíba, 2008; Carvalho, 2016, Salazar, 2023), além do próprio Gumbrecht. No caso do conceito de “estrutura de sentimento”, houve uma primeira apropriação no Brasil na virada do século (Cevasco, 2001; Ridenti, 2000, Lopes, 1999). Mas há um renovado interesse, influenciado por esse novo clima que tratamos aqui, visível nos estudos sobre comunicação (Moraes, 2016, Marquioni, 2018) e sociologia (Miglievich-Ribeiro; Fernandes, 2017; Miglievich-Ribeiro, 2018; Girelli, 2018; Silva, 2019), e, em particular, pela articulação entre estrutura de sentimentos e afeto realizada por Lawrence Grossberg (Gutmann, 2015; Gajanigo, 2016; Gomes; Antunes, 2019). Por fim, há pesquisas e estudos bastante recentes que buscam articular conceitos entre essas tradições, operacionalizando-os dentro da preocupação comum do que acreditamos ser a base dos Mood Studies (Miglievich-Ribeiro, 2021; Cestari, 2018; Gajanigo, 2020 e 2024).

A proposta deste dossiê se insere neste esforço de fortalecimento do campo no país. O objetivo é, de forma inédita, oferecer um espaço comum para produções contemporâneas que tenham se inspirado nas contribuições desse campo e incentivar o diálogo entre pesquisas que usam algum ou vários desses conceitos. Particularmente, o dossiê também tem como objetivo reforçar a relevância das discussões dentro dos Mood Studies para as Ciências Sociais. Chamamos os colegas a enviarem estudos e pesquisas a partir de diversos temas que têm composto as preocupações desse campo:  Climas políticos e esferas públicas; As relações entre mood e o ambiente virtual;  Presenças atmosféricas no espaço urbano; Atmosferas e regimes estéticos; Mood studies e a questão ambiental; Estruturas do sentimento e política; Metodologias no contexto dos Mood Studies; Estados da arte de conceitos dos Mood Studies; Texturas climáticas e etnografia sensorial; Moods studies no contexto brasileiro ou latinoamericano;  Estudos de clima ou atmosfera em relação à pandemia do Covid-19; Estudos de mídia e mood; Mood e críticas epistemológicas.