Ementa – Dossiê: África Global e Diásporas Africanas: novas perspectivas para se trabalhar com pertencimento, identidades e práticas culturais. (Mediações, vol. 30, n.3 – 2025/3)

2024-05-24

Organizadores: Karina Almeida de Sousa (UFM) e Hasani Elioterio dos Santos (UFSCar).

A disseminação e consolidação do termo “diáspora africana” têm desempenhado um papel fundamental na construção de uma área de pesquisa e estudos abrangente e diversificada nas disciplinas das humanidades. A área dos “Estudos da Diáspora Africana” emergiu do esforço de cientistas em reexaminar e reposicionar a experiência de dispersão de africanos(as) e negros(as), inicialmente no Novo Mundo e agora globalmente. Dentre os principais estudiosos do tema (WILLIAMS, 1999; MANNING, 2003; DAVIES, 2008) já está aceito que a “diáspora africana” ganhou destaque e status de conceito apenas a partir da década de 1950.

Em um contexto impulsionado pelas correntes políticas que surgiram no contexto das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e dos movimentos de libertação nacional na África, foram os historiadores Joseph E. Harris e George Shepperson que apresentaram o conceito de "diáspora africana" pela primeira vez. Isso ocorreu durante duas conferências promovidas pela UNESCO: uma no First International Congress of Negro Writers and Artists (Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros), em Paris, em 1956, e outra no International Congress of African Historians (Congresso Internacional de Historiadores Africanos), em Dar es Salaam, Tanzânia, em outubro de 1965 (SILVÉRIO et al, 2020).

O Seminário ocorrido no First African Diaspora Institute (Primeiro Instituto da Diáspora), 1979, organizado por Joseph E. Harris, na Howard University, apresentou a primeira edição da coletânea Global dimensions of the African Diaspora (Dimensões Globais da Diáspora Africana), na qual, também pela primeira vez, a dimensão semântica do conceito de diáspora foi apresentada. Segundo Harris (1994[1982]) a diáspora africana representa “A dispersão global (voluntária e involuntária) de africanos através da história; a emergência de uma identidade cultural no exterior com base na origem e condição social; e o retorno psicológico ou físico à pátria, África” (HARRIS, 1994).

Dez anos após a The First International Conference of Negro Writers and Artists foi realizado no continente africano, em Dakar, Senegal, o 1° Festival Mondial Des Arts Nègres. Nesse evento, o Brasil inscreveu-se definitivamente nos caminhos da diáspora africana por meio de uma carta aberta enviada por Abdias do Nascimento, a qual denunciava os motivos, em sua visão, da exclusão de sua participação e do Teatro Experimental do Negro (TEN) no Festival (SILVÉRIO et al, 2020).

As práticas culturais de africanos(as) e seus descendentes têm sido compreendidas enquanto espaços e dinâmicas capazes de recriar o continente africano nas Américas e Caribe de modo intrinsecamente político. Sendo assim, as artes, a dança e a música já não podem mais ser considerados por cientistas sociais como domínios independentes das experiências de opressão, resistência e superação do processo colonial, ou seja, compreendem, contemporaneamente espaços e dinâmicas centrais na análise da diáspora africana no mundo global.

Essas práticas constituem formas transversais de identificação. Analisá-las e descrevê-las na perspectiva dos Estudos da Diáspora Africana nos conduz à interpretações dessas expressões estéticas como espaços de manifestação da diáspora, onde ocorre a (re)criação de vínculos sociais e a elaboração de uma memória coletiva derivada da experiência compartilhada da escravidão e dos impedimentos impostos pela racialização. As práticas, portanto, se encontram em espaços de produção de novos significantes e significados que delineiam novas formas de ser, estar, agir e pensar  associados à diáspora africana.

Podemos identificar nas ações sociais, culturais e políticas construídas nos interstícios da violência colonial e racial a criação de novos horizontes de expectativas orientados pela possibilidade de aglutinação de africanos e seus descendentes em uma rede de solidariedade global. Estas ações articulam tanto a prática política quanto a reflexão teórica das ciências humanas, logo, os Estudos da Diáspora Africana (African Diaspora Studies) e o que Silvério (2022) tem classificado como “Transnacionalismo Negro” apontam para um cosmopolitismo que surge dos processos e experiências de rejeição que ocorrem no interior dos Impérios e Estados Nacionais (NWANKWO, 1970; M’BAYE, 2017).

Assim, o que vivenciamos contemporaneamente nas Ciências Sociais pode ser interpretado como um confronto/disputa por hegemonia, em termos Gramscianos, entre uma narrativa clássica que reduz a humanidade à visão branca, masculina e eurocêntrica versus uma leitura que expande a noção de humanidade e considera as experiências, as diferenças culturais e as contribuições de africanos(as), asiáticos(as) e dos povos originários para a construção de um conhecimento sobre o humano para além dos imperativos hierárquicos das Ciências Sociais, como modernidade e tradição; cultura e natureza, ética e estética, que traduzem o que Stuart Hall (1992) chamou de “West/Rest”, o ocidente e o resto do mundo. Dito de outra forma, não basta reduzir a subordinação de uma raça sobre outra do imaginário social coletivo. Como cientistas sociais temos o compromisso de construir um conhecimento que seja capaz de conectar as diferentes experiências e culturas humanas e que gere uma nova consciência e formas de valorização da humanidade em sua diferença (Bhambra, 2014). Isso ocorre, por exemplo, quando consideramos a cultura africana e sua importância no desenvolvimento da história da humanidade.

Trabalhar com a diáspora africana, como categoria analítica, oferece a possibilidade de percorrer e responder o questionamento feito por Stuart Hall (2008) “Quem precisa de identidade?”. Esse questionamento nos permite demonstrar, a partir de exemplos empíricos, a importância dos processos de identificação que tomam a experiência empírica, política e histórica da diáspora africana em gerar novos modos de ser, agir e pensar. Os Estudos da Diáspora Africana também viabilizam leituras e interpretações críticas da contemporaneidade a partir das novas dinâmicas da vida social que são decorrentes não do movimento de contracultura de maio de 1968 que se opôs às formas de autoridade na França, da teoria crítica da Escola de Frankfurt e os trabalhos sobre autoritarismo e indústria cultural, ou do feminismo liberal e sua relação com o princípio de igualdade (Collins, 2009).

As novas dinâmicas que organizam o mundo atual, na perspectiva da diáspora africana, são resultados dos processos de libertação do continente africano e de uma maior identificação positivada de negros(as) do Novo Mundo com o continente africano. É a partir dessas considerações que a presente proposta de dossiê temático - África Global e Diásporas Africanas: novas perspectivas para se trabalhar com pertencimento, identidades e práticas culturais - tem como objetivo apresentar uma seleção de textos que dialoguem com os estudos da diáspora africana e a presença global de africanos e seus descendentes. Esta proposta busca responder à seguinte pergunta: Quais são os desafios e deslocamentos teóricos e metodológicos que o estudo das práticas culturais dos africanos e seus descendentes, na perspectiva interpretativa da diáspora africana, pode trazer para as ciências sociais?

Em relação ao processo de seleção e organização dos textos, daremos prioridade para pesquisas que adotem abordagens metodológicas consolidadas nas ciências sociais, entretanto, consideramos também trabalhos que articulem uma variedade de recursos metodológicos, que sejam fundamentados numa abordagem multi-métodos. Selecionaremos os textos considerando a relação dos temas dos trabalhos com a diáspora africana, ou seja, os trabalhos selecionados serão aqueles que trabalhem com a diáspora como uma categoria analítica que possibilita a compreensão e interpretação de fenômenos, práticas e instituições sociais. Pretendemos que este dossiê seja uma referência nos Estudos da Diáspora Africana no Brasil, apresentando um conjunto de trabalhos e discussões relevantes para as disciplinas das ciências sociais.

Os textos do dossiê irão apresentar para os(as) leitores(as) uma diversidade de casos empíricos e experiências de vida que serão interpretadas a partir da perspectiva da diáspora africana, de forma que a análise possa deslocar e tensionar aspectos que são significativos nas Ciências Sociais, tais como o nacionalismo metodológico criticado por Ribeiro (2019) e Silvério (2022) como a  ênfase do  espaço  nacional  como termo privilegiado das análises, o reducionismo econômico que dilui a experiência negra-africana em uma perspectiva da “classe”, como já fora observado por Stuart Hall (1980), e o que Spillers (2006) classificou como a “cegueira” da cultura ocidental, que é o aprisionamento da produção científica e do humanismo em um único viés que não reconhece plenamente a contribuição africanos(as) e seus descendentes para a história da humanidade.