Ementa – Dossiê: Usos da interseccionalidade - lutas políticas e reflexões teóricas (Mediações, vol. 30, n.1 – 2025/1).
Organizadoras: Marcella Beraldo de Oliveira (UFJF) e Marilis Lemos de Almeida (UFPEL).
O conceito de interseccionalidade, cunhado em 1989 pela jurista negra Kimberlé Crenshaw, tem seus antecedentes situados por volta dos anos 1970, tendo como referência os debates trazidos pelas ativistas de movimentos sociais e intelectuais negras. Nos Estados Unidos e Grã-Bretanha destaca-se, segundo Collins (2017), a coletânea editada por Toni Cade Bambara, nos anos 1970, intitulada The Black Woman; o manifesto A Black Feminist Statement e o manifesto A Black Feminist Statement, ambos do coletivo Combahee River, lançados em 1982, e o livro Mulher, Raça e Classe de Ângela Davis, de 1981.
No Brasil, as ativistas negras também apontavam para a necessidade de pensar na singularidade de sua situação social. Lélia Gonzales (1984) propôs uma perspectiva teórica engajada politicamente dentro das ciências sociais, construindo um feminismo afro-latino americano, apontando entre outras questões o peso do mito da democracia racial sobre as mulheres negras. Beatriz Nascimento (2006) destacava que na mulher negra se cristaliza de modo mais contundente a estrutura de dominação: por ser mulher e por ser negra. Ainda como exemplo, Sueli Carneiro (2021) destaca a importância de enegrecer o feminismo, dada a singularidade da experiência histórica das mulheres negras em nosso país, argumentando que o racismo superlativa os gêneros através de privilégios oriundos da exploração e da exclusão dos gêneros subalternos.
A perspectiva interseccional descortinou novas possibilidades analíticas, tanto na academia quanto nos movimentos sociais, renovando as formas de abordar sistemas de opressão e desigualdade, trazendo explicitamente o debate acadêmico articulado à arena política. É amplamente reconhecido que sistemas de dominação se assentam sobre (e reforçam) classificações sociais como gênero, raça, classe, sexualidade, geração, nacionalidade entre outras categorias, reconfigurando e ressignificando estas próprias categorias em cada contexto experimentado por atores sociais diversos. Este debate produziu construções teóricas e empíricas que reconfiguraram o “lugar” da reflexão analítica, trazendo outros olhares para temas já consolidados no campo das ciências sociais, estabelecendo diálogos com a luta anti-capitalista e anti-racista, discutida, por exemplo, por Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser no “Feminismo para os 99% um manifesto” (2019) e com o feminismo negro não ocidental, de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021). Somando-se ao debate crítico anti-colonial ou decolonial (termo usado mais recentemente) de autores como Kabenguele Munanga (1999) e Achie Mafeje (2019), trazendo uma perspectiva crítica sobre as bases das categorias e filosofias ocidentais de classificação do mundo. Igualmente há um encontro com os estudos culturais no desenvolvimento da conceitualização das noções de hibridismo (Bahbha, 2010), de diasporia (Gilroy, 2012) e na construção das identidades (Avtar Brah, 2006), fortalecendo a ideia de que as identidades são relacionais, flexíveis e produtos das dimensões do social, da experiência, da subjetividade e da própria identidade, rebatendo concepções fixas de identidades, convergindo e reforçando o conceito de interseccionalidade.
Nesta direção, um importante passo é dado com a abordagem interseccional ao tratar a inseparabilidade das identidades e dos efeitos indissociáveis na produção de hierarquias de poder e sistemas de subordinação, trazendo o foco para a experiência de vida dos sujeitos em cada contexto. A perspectiva interseccional operou, inegavelmente, um giro epistemológico, analítico, metodológico e político que transformou análises sociais e práticas políticas. Sobretudo, ao estabelecer um compromisso com a justiça social, por meio da crítica radical e da luta política pela emancipação da mulher negra.
A despeito da rápida difusão do conceito e ampla mobilização do mesmo no campo político e acadêmico, permanece ainda uma grande heterogeneidade acerca do seu entendimento que anima o debate em torno dos sentidos desta categoria político-teórico-metodológica. Este aspecto foi apontado, por exemplo, por Collins e Bilge, na obra Interseccionalidade, em 2016, e no Prefácio da tradução da obra para o português, feita por Bueno (2020). De forma similar, Henning (2015) destaca que apesar do significativo volume de textos e debates sobre Interseccionalidade não há uma coesão nos olhares teóricos, tendo em vista que há uma vigorosa e acalorada profusão de visões contemporâneas acerca desse conceito. Ao mesmo tempo, Interseccionalidade “(...) tende a ser vista como teoria, método, abordagem, paradigma, conceito, preocupação heurística, “lente de análise social”, base de trabalho analítico, metáfora analítica, etc. (HENNING, 2015, p. 101 – 102).
Este é justamente um dos aspectos que anima a proposição deste Dossiê, juntamente com a recepção do debate no Brasil e América Latina e suas implicações para o fortalecimento das lutas pela justiça social. A experiência das proponentes com a organização de um Dossiê sobre o tema (ALMEIDA; SPOLLE; OLIVEIRA; MELLO, 2022), bem como a coordenação de GT na SBS (2023, GT 9) e na ANPOCS (2023, GT 25), revelou uma multiplicidade de perspectivas sobre interseccionalidade e, mesmo entre aqueles autores que utilizam este conceito, observa-se variações de concepção significativas. Enquanto para alguns a interseccionalidade vincula-se umbilicalmente com o feminino negro e ao ativismo político, retomando sua conexão com o feminismo negro e com as perspectivas anticapitalista e decolonial, para sua potencialidade reside na capacidade descritiva das relações sociais estruturantes da vida social, que sustentam sistemas de opressão e matrizes de dominação que se reforçam mutuamente, privilegiando as dimensões gênero, raça ou classe, não necessariamente nessa ordem. Outros ainda mobilizam a interseccionalidade para pensar relações articuladas e contingentes que produzem situacionalmente formas de dominação.
Se por um lado, verifica-se uma boa acolhida a esta perspectiva, atestada pelo uso crescente do termo, de outro elevam-se proporcionalmente as críticas ao mesmo, anunciando que o debate sobre o quão novo de fato se mostra esta abordagem, sobre seus limites e potencialidades está longe de terminar. Uma das críticas "mais relevantes é sobre o enfraquecimento da dimensão política da interseccionalidade e o afastamento em relação aos pontos centrais do debate, relacionados à crítica radical e à emancipação da mulher negra." (ALMEIDA; SPOLLE; OLIVEIRA; MELLO, 2022, p. 9).
Nesta direção, Collins (2017) situa na própria difusão no âmbito acadêmico e na popularização do termo a origem do afastamento do mesmo em relação aos propósitos iniciais, resgatando que "nos movimentos de mulheres negras, a intersecção entre gênero, classe, raça e sexualidade tinha por objetivo denunciar as formas de opressão que se interpenetram e, ao mesmo tempo, pensar na emancipação das mulheres negras" (ALMEIDA; SPOLLE; OLIVEIRA; MELLO, 2022, p. 10). Para a autora, a interseccionalidade paulatinamente foi distanciando-se dos aspectos outrora centrais, ao ponto de ser desvinculada do compromisso com a justiça social e da experiência das pessoas. BILGE (2018) de forma similar, fala em um uso superficial da interseccionalidade, relacionado a sua crescente apropriação pela academia e minimização da centralidade da raça.
Outra ordem de críticas, sistematizadas por Hirata (2014), apontam como ponto central de controvérsia o risco de diluição na categoria interseccionalidade de relações sociais fundamentais, mais precisamente classe, gênero e raça, em favor da “interseccionalidade de geometria variável”, que incluiria outras relações como idade, religião, sexualidade, região e outras mais, colocando no mesmo plano categorias de análise e relações sociais.
Tais críticas não invalidam as contribuições da interseccionalidade, mas apontam para diferenças interpretativas e usos variados que de alguma forma remetem para o que HERTZOG e MELLO (2020) consideram umas de suas grandes contribuições, que é a "ruptura com visões hierarquizadas que tendem a analisar as desigualdades e mecanismos de opressão em termos hierárquicos." Neste sentido, as potencialidades do conceito e mesmo sua pertinência parecem se revelar sobretudo na análise das experiências e vivências dos indivíduos e como nas mesmas operam, de forma imbricada e transversal, os múltiplos sistemas de subordinação.
A proposição deste Dossiê visa oferecer um conjunto de artigos que aprofundem e sistematizam as reflexões e resultados de pesquisa que estão se dando no campo das ciências sociais. Sugerimos como eixos a serem privilegiados: (i) discussões acerca da potencialidade política e emancipatória da categoria interseccionalidade, a partir de experiências empíricas; (ii) os avanços obtidos à partir da sua utilização na luta contra as invisibilidades de diferentes formas de opressão; (iii) usos da interseccionalidade como conceito, limites e possibilidades, bem como os diferentes sentidos atribuídos ao mesmo; (iv) análise histórica do surgimento do conceito e sua vinculação com o engajamento social e ativismo politico e as (v) estratégias metodológicas que operacionalizam o conceito de interseccionalidade na pesquisa empírica. Em outra vertente, podemos pensar interseccionalidade a partir de eixos temáticos que articulam debates sobre gênero, sexualidade, classe, geração, nacionalidade, raça, sem perder o foco político que aponta para como as desigualdades sociais são construídas e reafirmadas em contextos específicos eleitos para a análise.
Assim, esse Dossiê abre-se para as perspectivas que articulam a questão das classificações identitárias com a luta anti-capitalista, as abordagens afro-latino americanas, trazidas pelo feminismo negro e não-ocidental, a luta antirracista e feminista, que dialogam com outras perspectivas, como a crítica ao ocidentalismo e decolonialidade.