Presentation
Abstract
Os materiais orais podem ser definidos como “ todas aquelas produções de discurso que geram atos comunicativos em que estão presentes o emissor e o receptor em um mesmo espaço-tempo e as quais tem como suporte a voz, o corpo e a memória. O significado destes materiais de natureza efêmera depende não só das emissões linguísticas, mas também da interação entre o verbal, o não-verbal e os fatores contextuais” (www.lanmo.unam.mx). Muitas áreas do conhecimento têm utilizado esta fonte complexa de informação como matéria prima para suas investigações. Em nossas conversas cotidianas, no que contamos, no que cantamos e na maneira pela qual fazemos estão codificadas as chaves culturais para entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas e, inclusive, uma boa parte do modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica. Devido à sua natureza efêmera e dispersa, as investigações que os utilizam sempre enfrentaram limitações importantes para seu registro e manuseio.
Tendo tido como abordagem formas metodológicas de tratamento de materiais orais em sua documentação, processamento ou análise, textos que versassem sobre o processo de gestão e registro de informação no trabalho de campo, sistematização e resguardo de materiais orais, apresentação de repositórios, catálogos e coleções de materiais orais, assim como modelos analíticos que procurem explicar uma realidade a partir destes, o artigo que abre este número e a sessão “ Materiais Orais: metodologias” é de co-autoria de uma de suas organizadoras, Berenice Araceli Granados Vázquez, juntamente com Santiago Cortés Hernandez. Isso não foi escolhido à toa, ou simplesmente por querer privilegiar-nos. Nosso intuito foi o de começarmos pela reflexão que impulsionou o número 29 e a criação dessa equipe de organização: a metodologia para tratamento de materiais orais.
Em reflexão intitulada El Laboratorio Nacional de Materiales Orales, conceptos, antecedentes, código de ética y protocolo de documentación, os pesquisadores, que também são coordenadores do laboratório, apresentam alguns resultados do trabalho de sistematização que vem realizando. Fazem um percurso histórico do LANMO e suas bases teóricas, para depois apresentarem os dois instrumentos originados dele: um código de ética e um protocolo para documentação de materiais orais em trabalho de campo.
O segundo artigo da sessão, Da Oralidade à voz hipermedia, em que Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal, também à frente deste número, colabora com a autora principal Jennifer Paola Pisso Concha objetiva focar-se em uma comunidade indígena (os Misak no departamento de Cauca, Colômbia) e em um sujeito periférico (Marco Almeida, o Maragato, na Restinga, Porto Alegre, Brasil), com o intuito de não só contribuir no processamento de materiais orais na documentação e análises da informação, mas também refletir nas diversas formas de narrar o mundo. As autoras esperam “ estimular diversos olhares frente as novas narrativas contemporâneas: cibernarrativas e aproximar-se de narradores/ força modalizante que possam fornecer e amadurecer o trabalho de campo e o processamento de materiais orais para os pesquisadores ou interessados no assunto”.
Passando a uma persectiva mais tradicional da cultura popular a sessão Questões épicas e ibéricas em narrativas oraiscontará com dois artigos de grande relevância para o tema:
Por campos da Península Ibérica e do Sertão Tocantinense, cavaleiros e jagunços tecem narrativas , de autoria de Maria de Fátima Medina, nos apresenta El cantar de Mío Cid cuja cópia mais recente de que se tem notícia é do copista Per Abbat e a Serra dos Pilões (1995), romance de Moura Lima, analisando suas personagens desde a perspectiva bakthniana do cronotopo. A autora conclui que “ No percurso de caminhos desconhecidos, ao ocuparem o lugar social de quem se preocupava com a justiça, sob leis régias ou na ausência do Estado, personagens de ambas as narrativas agiram, passaram por transformações e revelaram seres humanos singularizados. E no grande tempo são construídos novos significados”.
Já Manuel Francisco Ramos em Voz na Actio Retórica analisa o surgimento da figura do ator no teatro grego, e a actio/pronuntiatio (representação) que foi separada da composição teatral. Explora, assim, a partir de ensinamentos dos Padres, como S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Gregório; a teoria da voz, os gestos e rosto com grande inovação, a qual completa e dá plenitude à teoria retórica antiga.
A última sessão, intitulada Narrativas orais: perspectivas etnográficas, nos apresenta artigos que passeiam entre as lendas e a perspectiva do pesquisador participante, flâneur, que divide suas vivências e experiências.
Em “Quelle est votre tribu?” Identidade, diferença e modernização na República Democrática do Congo Ari Lima, Pautado em inquietações e desejos pessoais, embarca em uma viagem autofinanciada que se torna objeto de estudo ao observar as construções e desconstruções identitárias na República Democrática do Congo. Dividindo o artigo em três tópicos, nos apresenta algumas questões sobre como o continente africano é visto e interpretado a partir do território geopolítico brasileiro. Neste primeiro tópico nos vemos imersos em um relato de viagem, um diário de bordo cheio de cores com uma leitura fluida que nos abraça e envolve. No segundo tópico ao traçar o percurso histórico-político da RDC, descreve os impactos da colonização e da luta pela independência da RDC e como a crueldade capitalista têm contribuído para a crescente invasão de igrejas evangélicas neopentecostais com o discurso de progresso e salvação para uma população que sofre há décadas com a exploração de seus corpos e territórios. Ao concluir, descrevendo situações da realidade atual observadas nas cidades de Lubumbashi e Kamina, o autor faz uma crítica sóbria e pertinente sobre como a identidade dos africano-congoleses se constrói a partir de perspectivas distintas do afro-brasileiro, embora ambos sejam constante em situações opressivas impostas pela colonialidade do poder capitalista.
Joseane Costa Santana e Cyntia de Cássia Santos Barra em A pedagogia artesã de Maragogipinho: experiências de autoria poética abordam, a partir da experiência em Maragogipinho (BA), relações entre artesanato, repetição-recriação e ensino, tomando o primeiro como um ato de resistência que se constititui em patrimônio cultural material e imaterial e tendo, n o/a artesão/ã , o sujeito constituído na e constituinte da tradição. As autoras destacam que “ao relatar encontros com Mestres e Mestras da Tradição Artesanal de Maragogipinho, por meio de uma experiência de autoria com estudantes do Curso integrado em Agroecologia e Agropecuária do Instituto Federal Baiano (campus Valença), buscou-se refletir sobre potências de repetição-criação-recriação, de modos de ensino e de pesquisa na Educação Básica e no Ensino Superior. As olarias e os vários labirintos das peças (artefatos) da arte do barro e da memória narrativa dos/as Mestres e Mestras de Maragogipinho são espaços abertos ao encontro e à educação dialógica.”
As representações da literatura oral nas esculturas de Mestre Nêgo, de Carolina Reichert do Nascimento, apresenta-nos uma abordagem de pesquisa que reflete sobre a vida e a obra do escultor Mestre Nêgo, residente em Barreiras, Bahia. A autora analisa a relação entre a produção artística escultórica e a literatura oral. Investiga três esculturas de lendas brasileiras do artista apoiadas nos enredos das memórias relatadas ao longo de entrevistas realizadas na Casa das Artes, atelier do artista.
Por fim, A peregrinação de romeiros para o Círio de Nazaré na cidade de Belém-PA, se torna objeto de estudo para os pesquisadores Luiz Guilherme dos Santos Júnior e Daniele dos Santos Pimentel em “A romaria no Círio de Nazaré: interação social, reciprocidade e um olha etnográfico sobre a peregrinação”, ao analisarem as interações sociais entre pessoas de diferentes visões e credos. Na voz e no caminhar dos peregrinos são encontrados os percursos desse trabalho etnográfico. Entrevistando os sujeitos da pesquisa em plena caminhada, pesquisadores, peregrinos e romeiros participam das interações e trocas simbólicas que a festa religiosa oferece. Tendo a reciprocidade como elemento marcante desse período na cidade de Belém, a pesquisa revela como as pessoas se envolvem direta ou indiretamente na culminação do Círio de Nazaré. Em uma celebração não restrita a um credo, mas de fé, amor e alegria como aspectos da humanidade, bem como elemento constitutivo da tradição local e da cultura popular, a pesquisa olha para o fenômeno social religioso como marco de uma sociedade e representativo de uma cultura.
A sessão livre, que encerra o número 29, nos apresenta dois artigos que enfocam narrativas a partir de seus aspectos históricos e lendários.
Em “Refletindo sobre as articulações da literatura e cultura popular presentes na tradição oral caxiense: a lenda da Veneza como viés de abordagem”, ao examinarem sobre literatura e cultura popular na tradição oral de Caxias-MA, Odilene Silva do Nascimento Almeida e Algemira de Macêdo Mendes trazem à tona a Lenda da Veneza, uma história perpetuada nas narrativas orais e memória coletiva da cidade. A partir de um local físico que se configura como cartão postal da cidade, o Balneário Veneza, sendo ponto turístico e recebendo inúmeros visitantes em busca de sua lama medicinal, os moradores de Caxias contam e recontam a história da cidade bem como seus encantos e particularidades. A menina Veneza, cujo corpo negro é transformado em lama com poder curativo, é simbólico na luta e resistência de um povo. Marco da história local, a Lenda da Veneza representa a memória coletiva de um grupo social, fazendo da oralidade parte da sua tradição cultural.
Finalmente, Emanuelle Tronco Bueno e Sylvie Dion, na reflexão intitulada A história do “Buraco Fundo” contada por diferentes gerações da cidade de Restinga Sêca, RS fazem um aprofundamento dos relatos históricos e lendários de uma comunidade situada em Restinga Sêca (RS). As pesquisadoras se valeram da leitura de referenciais teóricos, pesquisa documental e a aplicação da entrevista semidirigida. Ao final, concluíram que é possível, a partir de tal abordagem, disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo. As pesquisadoras concluem com seu estudo a possibilidade de se disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo.
Assim, os 10 artigos desse número, divididos em 3 sessões, nos apresentam a pluralidade da voz e da literatura. Para além disso, percebe-se a importância dos sujeitos pesquisados, do respeito que se deve a eles e ao tratamento dos materiais. As narrativas, tendo elas sido contadas por narradores vivos ou registradas por etnógrafos e/ou autores da literatura tradicional, são capazes, através da voz, do corpo, da performance de retirarem da invisibilidade diversos indivíduos e a nós, pesquisadores da área dos estudos literários, cabe sensibilidade, seriedade e ética, sobretudo – e principalmente – quando estamos em contato com sujeitos advindos de espaços periféricos (sejam eles indígenas, de comunidades de favela, tradicionais).
Esperamos que este número, aos moldes do que pensa o LANMO, nos auxilie a entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas e, mas principalmente o modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica.
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