Ementa - Dossiê: Mulheres e política, e políticas para mulheres no obscurantismo do início do Século XXI (Mediações, vol. 29, n. 1 - 2024/1).

2022-06-01

Organizadores: Daniela Tonneli Manica (Unicamp)e Martha Célia Rámirez-Gálvez (UEL).

Nos últimos anos, o Brasil foi se tornando cada vez mais parecido com o universo distópico de Gilead, imaginado por Margaret Atwood na década de 1980 n’O Conto da Aia: uma colônia nos confins do que restou do mundo, onde a vida das mulheres não vale absolutamente nada, onde elas são postas para trabalhar até morrer para assegurar a manutenção de uma elite branca, misógina e violenta (Atwood, 2017 [1985]).

Muitas e múltiplas são as formas de violência e vulnerabilidade a que mulheres e outras minorias estão sujeitas no Brasil, sobretudo, nos últimos anos com o tsunami ultra-conservador-bolsonarista. De assédios sexuais a feminicídios, passando por violências psicológicas cotidianas, precarização total do trabalho e extinção de direitos com a reforma trabalhista, diversas situações sociais evidenciam que as desigualdades históricas de gênero estão muito longe de serem resolvidas. Ao contrário, intensificaram-se com o empobrecimento geral da população agravado, ainda mais, no contexto de pandemia. Com a desdemocratização nos últimos anos, as conquistas construídas ao longo do século XX foram sendo colocadas em risco, quando não destruídas ou burladas, como por exemplo o preenchimento de cotas para mulheres nas eleições (ou o desvio de recursos de campanha para candidatas), e o direito ao aborto em casos previstos por lei.

O desenvolvimento teórico e conceitual conquistado no campo multidisciplinar dos estudos de gênero nas últimas décadas complexificou e multiplicou as diferenças internas no que se poderia arregimentar em torno da categoria “mulher”, pluralizando-a e obrigando-a a se recompor em múltiplas intersecções (Crenshaw, 1989; Brah, 2006; Akotirene, 2019): mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres trans, mulheres lésbicas, mulheres de periferia, mulheres ribeirinhas, etc. A despeito dessa multiplicidade, no entanto, desigualdades estruturais seguem colocando essa pluralidade de mulheres em situações desfavoráveis em relação aos homens (Biroli, 2018).

Ao se analisar a distribuição de gênero em todas as áreas dos espaços de poder e de tomada de decisões, no Brasil, as mulheres configuram uma minoria explícita em relação aos homens. Um dos campos nos quais essas desigualdades se tornam mais evidentes é o da política institucional - as esferas de poder executivo, legislativo e judiciário (Miguel; Biroli, 2015). Isso sugere a persistência da estrutura patriarcal e a ausência de uma representatividade democrática efetiva, que leve em conta a multiplicidade de temas, agentes e questões que se poderiam articular em torno de representantes mulheres, pautadas por questões de gênero.

Nos últimos seis anos, desde o golpe parlamentar de 2016, tornaram-se ainda mais evidentes as perseguições políticas a mulheres. Seja com a destituição da presidenta Dilma Rousseff em 2016, o assassinato de Marielle Franco em 2018, ou as notícias falsas veiculadas sobre a candidata à vice-presidência Manuela D’Ávila, também em 2018, observa-se a intensificação de forma escandalosa de reações misóginas à presença e atuação de mulheres na política e na esfera pública de maneira geral, bem como a desvalorização e o desmonte de políticas públicas voltadas para mulheres no Brasil (D'Ávila, 2022).

Essa tendência contemporânea brasileira à violência política de gênero deveria parecer anacrônica a essa altura do século XXI, mas se mostra não somente atual como ainda crescente no contexto autoritário e fascista em que nos encontramos. Tendo isso em vista, com este dossiê pretendemos abrir um espaço de reflexão e registro desse retrocesso, a partir das Ciências Sociais e das Ciências Humanas, com foco nas políticas públicas voltadas para mulheres que estão em desmonte (mais provável), ou em desenvolvimento.

Neste sentido, a proposta desta chamada para artigos é reunir análises recentes sobre as articulações entre mulheres e política, e política(s) para mulheres, levando em conta as várias interseccionalidades possíveis ao se tratar da categoria mulher (com gênero, raça/etnia, sexualidade, religião, deficiências etc.). Esperamos reunir trabalhos que abordem a presença de mulheres na política, em diversos cargos representativos, executivos e legislativos nos âmbitos municipais, estaduais e federal; nos processos eleitorais (sobretudo os de 2020 e 2022); que discutam experiências de violência política de gênero e misoginia; e que pensem políticas públicas voltadas para as mulheres, como por exemplo sobre pobreza ou dignidade menstrual; maternidades; contracepção e aborto; gestação, parto e puerpério; reprodução assistida; o combate à violência de gênero, ao feminicídio e transfeminicídio, entre outras.