Ementa - Dossiê: Arqueologias políticas do futuro: do aceleracionismo ao antropoceno (Mediações, vol. 27, n. 1 - 2022/1).
O pensamento político atual encara uma redefinição dos seus supostos em torno de duas grandes problemáticas: a mudança climática e a revolução tecnológica. Em ambos os casos, se produz uma transformação da escala das questões que abre a pergunta pelas mesmas possibilidades de definir algo como político. O que é e o que não é político? Esta velha questão se atualiza de um modo radical. O anterior se explica por uma série de razões: a primeira, porque boa parte dos debates sobre o antropoceno colocam em xeque a dicotomia natureza/sociedade e com ela a delimitação do propriamente político à esfera do social (ou uma natureza isenta de política). A segunda, porque as discussões sobre o antropoceno e a tecnologia tem levado a objetar o limite do humano, isto é, o pós-humanismo tem se transformado no horizonte irredutível do nosso tempo abrindo a possibilidade de pensar uma definição da política que ultrapasse os limites da espécie humana. A terceira, porque no cerne destes debates uma das categorias que tem começado a ser questionada é a de ação e/ou agência (e desta maneira o humano como portador exclusivo da ação e da liberdade como agente da história). Estes três aspectos e outros derivados deles, têm desenhado todo um campo de discussões em torno dos limites do político e, neste sentido, têm dado passo a indagações sobre como intervir e como fazer política no meio da redefinição de escalas.
Neste marco, se nos circunscrevermos estritamente ao âmbito da tecnologia, existe um conjunto de problemas teóricos e práticos que resultam incontornáveis para o mundo contemporâneo. Uma destas questões é como o pensamento crítico se ocupa do vínculo entre a tecnologia e a política. Se trata, ao mesmo tempo, de redefinir as categorias do pensamento político e discutir como abordá-las desde uma perspectiva crítica. Se, por uma parte, reduzir o político ao social e o humano à ação parece não dar mais conta da configuração do mundo atual; por outra, os critérios de orientação direita ou esquerda, crítico ou conservador, entre outros, procuram novos modos. Não resulta simples definir o que é esquerda e/ou crítico hoje. Esta vacilação das categorias não se inscreve em uma ausência de teorias e/ou conceitos, senão pelo contrário, em uma proliferação de novas linguagens da crítica que ainda não constituem uma teoria unificada. Se contemplamos a possibilidade de que cada geração tenha de pensar tudo de novo, esta exigência parece definir com particular potência nosso presente.
O pensamento político soube se definir, em termos muito amplos, desde a articulação de uma crítica do poder (da dominação, do governo, etc,) com uma perspectiva emancipatória. Como têm demonstrado diversos autores, compõe uma crítica de caráter multifacético das relações de poder contemporâneas inscritas numa lógica do capital com indagações em torno das práticas de liberdade, uma justiça por vir ou a intensificação de potências. Através da análise, questiona formas de subordinação e exclusão para dar lugar a outras relações possíveis. Neste sentido, resulta de particular importância a pergunta por como dar lugar a uma imaginação de outro mundo possível sem postular uma teoria normativa. Isto implica, ao mesmo tempo, se debruçar sobre os modos de pensar este futuro emancipatório na tradição crítica e dar abertura pros modos impensados ao respeito.
Não só a crítica do presente, senão os modos de imaginar o futuro. Ou, se quiser: um pensamento político crítico atual deve misturar uma crítica das relações de poder com uma imaginação dos futuros possíveis. O anterior nos confronta não só com a apropriação normativista do futuro senão com uma imaginação exclusivamente capitalista do mesmo. Isto significa desatar o vínculo entre capitalismo, tecnologia e política, ou melhor, desarticular o capitalismo como único lugar possível de imaginar futuros tecnológicos. Não quer dizer que seja uma tarefa simples já que a discussão não se reduz só ao desenvolvimento de argumentos, de uma ordem de razões como também à disputa no terreno da imaginação e/ou imaginário. Em boa medida, para o pensamento crítico se trata de reconhecer e apontar as misérias do presente alojando ali a potência de um futuro possível justamente quando a definição do político encara hoje à articulação de uma imagem de futuro absoluto (a tecnologia total), com uma imagem de destruição do futuro (a natureza devastada).
Este dossiê propõe incorporar artigos derivados de pesquisas que dentro das Ciências Sociais, a Filosofia e as Humanidades indaguem sobre as dificuldades e possibilidades de definir o político hoje; que abordem os problemas que devem ser confrontados na tentativa de definir uma orientação dentro da crítica e das esquerdas contemporâneas que contemple a possibilidade de imaginar outros futuros. É assim como esta proposta procura dar especial ênfase ao futuro como uma questão chave. Isto significa não só se perguntar pelas condições da crítica do presente e de como temos chegado a ser o que somos, senão analisar as características dos futuros possíveis, dos imaginários de futuro. Se uma das questões que podem ser rastreadas na atualidade é a destituição da noção de “progresso” como aquela que modela de maneira mais preciso o futuro (uma destituição em quanto o futuro parece absolutamente definido por uma devastação apocalíptica), nos interessa pensar como o futuro aparece no pensamento político configurado por uma “nova cena da teoria”.
Quando falamos de uma “nova cena da teoria” nos referimos ao surgimento de um conjunto de autores, correntes e temas que propõem a transformação de algumas das discussões centrais do pensamento político contemporâneo. Podemos arriscar que a configuração desta nova cena surge da reação aos problemas mais urgentes do mundo contemporâneo e ainda que não se trate exclusivamente de uma resposta a estes fenômenos, a pergunta pelo futuro orienta as indagações desta transformação teórica. Desta maneira, têm surgido, pelo menos, duas orientações gerais que propõem certos deslocamentos teóricos: por um lado, o que tem se chamado “realismo especulativo” que em autores como Quentin Meillassoux, Graham Harman, Ray Brassier e Iain Hamilton Grant inauguram uma crítica radical do correlacionismo e com ele, alguns dos supostos que têm definido a pesquisa filosófica desde os últimos anos do século XVIII. Por outro lado, o que tem se chamado “virada ontológica na antropologia” que em autores como Bruno Latour, Eduardo Viveiros de Castro, Isabelle Stengers e Donna Haraway têm articulado uma crítica radical à divisão natureza/cultura e humano/não humano. Em ambas as correntes, ao tempo que se consegue identificar a herança do pensamento radical do século XX se produzem certas reorientações: antes que nada a preocupação por exceder a centralidade das mediações culturais e/ou linguísticas como lugar de reflexão irrebatível para o pensamento.