Ementa - Dossiê: Racionalidade neoliberal e processos de subjetivação contemporâneos (Mediações, vol. 25, n. 2 - 2020/2)

2019-09-12

Organizadores: Elton Corbanezi (UFMT) e José Miguel Rasia (UFPR)

São cada vez mais recorrentes notícias sobre o aumento da incidência de sofrimento psíquico em indivíduos nas sociedades ocidentais contemporâneas. Com efeito, o modo de conduzir a vida em uma cultura cujos fundamentos são a altíssima competitividade, a responsabilidade individual pelo sucesso ou fracasso na vida social, familiar e afetiva, a constante exigência de realização e superação de metas, a permanente disponibilidade para o trabalho proporcionada pelo avanço de dispositivos e redes tecnológicas de comunicação instantânea e o consequente ocaso da separação entre tempo de trabalho e tempo livre tem produzido efeitos destrutivos sobre os indivíduos.

No domínio sociológico, diferentes conceitos já foram elaborados para compreender as transformações sociais ocorridas desde os anos 1970/1980: “sociedade pós-industrial”, “modernidade líquida”, “capitalismo cognitivo”, “economia imaterial, “sociedades do desempenho”, “sociedade pós-disciplinar”, “biopolítica”, “sociedades de controle”, entre outros. As designações do homem como “hipermoderno”, “impreciso”, “flexível”, “precário” e “fluido” procuram igualmente analisar as implicações das transformações sociais no plano individual. A despeito do matiz analítico diverso de cada uma dessas expressões conceituais, todas elas indicam a constituição de uma nova subjetividade num contexto em que as redes de solidariedade e de proteção social tendem a desaparecer para assumir lugar de destaque na sociedade a relação direta entre mercado e indivíduo, em que ao segundo se atribui a responsabilidade exclusiva sobre seu destino social.

Sabe-se que o que hoje chamamos convencionalmente de “neoliberalismo” provém, em termos esquemáticos, de ao menos três perspectivas teóricas relativamente distintas e elaboradas em contextos específicos: a Escola Austríaca de Economia, representada por Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, o Ordoliberalismo alemão, cujos expoentes são Walter Eucken e Franz Böhm e a Escola de Chicago, influenciada pela tradição austríaca e  constituída em torno dos economistas Milton Friedman,  George Stigler e Gary Becker.

Não obstante suas especificidades, todas as perspectivas insurgiram-se em comum, desde o início, contra os seguintes princípios básicos do socialismo e do keynesianismo: planificação econômica, intervencionismo estatal, coletivismo e proteção social. Como mostram Christian Laval e Pierre Dardot em A nova razão do mundo, a “refundação intelectual” do liberalismo se inicia, de fato, em 1938, no Colóquio Walter Lippmann e de maneira absolutamente cindida:  de um lado está a tentativa de retomada radical da doutrina econômica clássica do laissez-faire, segundo a qual o mercado configura-se como instituição natural autorreguladora (escola austro-americana), e, de outro lado, a elaboração de uma política econômica liberal dependente do quadro jurídico do Estado para o funcionamento adequado do mercado (ordoliberalismo alemão).

Apesar da proveniência relativamente diversa e remota, o “neoliberalismo”, percebido culturalmente como um bloco quase homogêneo, instala-se em nossas sociedades capitalistas ocidentais apenas por volta dos anos 1980 e 1990, constituindo-se, aos poucos e desde então, como uma racionalidade que organiza a vida social como um todo. Com efeito, esta é a tese dos autores de A nova razão do mundo, na esteira dos estudos foucaultianos sobre o tema: nos dias atuais, o neoliberalismo não é apenas uma doutrina política e econômica, ou mesmo uma ideologia dominante forjada por uma classe instalada também no Estado. Trata-se de uma racionalidade que orienta o cosmos social, à maneira como Max Weber compreende o processo de racionalização no mundo moderno.

A fim de justificar e evidenciar a relevância do tema aqui proposto atinente aos processos de subjetivação atuais, destaquemos um dos princípios fundamentais da doutrina neoliberal enraizado profundamente no tecido social: a competição como modo de organização da vida social para além do âmbito econômico. Com efeito, sabemos que a competição se tornou globalizada e generalizada em todos os sentidos: ao mesmo tempo em que se difunde mundialmente, em transações internacionais, ela implica, de forma indistinta, todos os indivíduos e todas as dimensões da vida em sociedade. Motivados pela lógica competitiva total, os indivíduos perseguem, de forma obstinada e nem sempre consciente, os imperativos da autorrealização, do desempenho, da mobilidade, da velocidade e da superação constantes como forma de sobrevivência e de sucesso.

Não à toa, ao lado dos imperativos mencionados, as verdadeiras capacidades e habilidades que norteiam a vida bem-sucedida social e economicamente são “criatividade”, “iniciativa”, “projeto”, “motivação”, “capacidade de comunicação” hábil e instantânea, “flexibilidade” etc. É conhecida a teoria do capital humano elaborada por economistas da Escola de Chicago: na qualidade de capital, os indivíduos devem se comportar e conduzirem-se como verdadeiros ativos cuja valorização e rentabilidade dependem apenas deles. Toda a vida é atravessada por essa forma de racionalidade contábil que funciona como critério de decisão: não apenas o trabalho e a escolarização formal, mas relações de amizade, tempo de lazer, tempo de afeto dedicado aos filhos, constituição genética e cuidado com a própria saúde constituem formas de investimentos cujos efeitos esperados são melhores condições de empregabilidade, rentabilidade futura e distinção social. Daí a ideia corrente de que a vida se tornou uma carreira e o indivíduo, empresário de si.  Lançando mão do modelo de análise estabelecido pelo sociólogo Alain Ehrenberg, tudo se passa como se nos tornássemos, todos, indistintamente, atletas de alta performance, cujos objetivos são o cumprimento e a superação constante de metas, que se tornam assim, paradoxalmente, inalcançáveis. Com efeito, desde o Nascimento da Biopolítica, curso ministrado por Foucault em 1979 – às vésperas, portanto, dos governos de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan –, até o recente livro de Laval e Dardot, está claro que a estratégia neoliberal de governo reside em conduzir as condutas dos indivíduos a partir de suas próprias racionalidades. Daí conduzirem-se, naturalmente, como capital, com subjetividades integralmente competitivas e moduladas como tal desde a infância (socialização primária, pedagogias diferenciadas etc.).  

O termo “subjetivação neoliberal” tem, pois, ao menos dois sentidos precisos: modo de produção de existência e sujeição. Para o primeiro sentido, a subjetivação neoliberal nada mais é do que a produção em série de indivíduos que incorporam – naturalmente, é sempre válido frisar – o princípio da competição e do desempenho em todas as dimensões da vida. Corolário óbvio, o segundo sentido (sujeição) indica o fato de que os indivíduos estão submetidos a tal racionalidade sob a ilusão de valores como liberdade, autonomia e autorrealização. Em todos os aspectos da vida, o indivíduo é avaliado conforme seu desempenho, o que significa dizer que o desempenho constitui o critério e a medida a partir de que se atribui valor à vida. Se, para Protágoras, o homem era a medida de todas as coisas, podemos dizer, hoje, que a performance é a medida do homem.  O darwinismo social spenceriano, que estabelece a sobrevivência dos mais aptos e constitui uma das proveniências radicais do neoliberalismo, torna-se realidade quando o desempenho funciona como medida absoluta do sucesso e do fracasso. Não se trata apenas de reduzir a sociedade a indivíduos, como certa vez proclamou Thatcher, mas de cindi-los entre “vencedores” e “perdedores”, responsáveis, eles próprios, exclusivamente, por seus destinos sociais desiguais.

Levando em conta este diagnóstico estabelecido por uma série de estudiosos críticos do neoliberalismo (Michel Foucault, Robert Castel, Richard Sennett, Christian Laval, Pierre Dardot, Judith Butler, Wendy Brown, Nikolas Rose, Byung-Chull Han, Guillaume Boccara, Maurizio Lazzarato, Alain Ehrenberg, entre tantos outros), este dossiê pretende receber contribuições inéditas, teóricas e empíricas que abordem as relações entre neoliberalismo e subjetividade nas sociedades contemporâneas, de modo a compreender os diferentes processos de subjetivação atuais. Trata-se de poder reunir estudos que abordem o tema desde a produção de condutas de vida e suas implicações subjetivas e psíquicas decorrentes da incorporação e da naturalização de preceitos fundamentais do imaginário neoliberal até os efeitos sociopolíticos provenientes da radicalização do discurso neoliberal e a consequente emergência de governos populistas e autoritários que tendem a capturar a subjetividade dos indivíduos e a lançar a precariedade da vida ao paroxismo.