Ementa - Dossiê: Subjetivação religiosa: práticas, representações e experiências (Mediações, vol. 29, n. 3 - 2024/3).
Organizadores: Bruno Ferraz Bartel (UFPI) e Emanuel Freitas da Silva (UECE)
A organização deste dossiê é inspirada nos estudos cujos dispositivos indutores e/ou modos de vivência experiencial (Asad, 1993; Hirschkind, 2006; Mahmood, 2005) proporcionam a formação de elementos que atuam diretamente sobre os comportamentos religiosos (percepção, cognição, emoção e motivação) dos praticantes. Nesses casos, as formas de expressão devocional devem ser observadas como técnicas disciplinares que realcem os conhecimentos e as capacidades éticas dos sujeitos inseridas em um contexto compartilhado. Pretendemos reunir textos que enfoquem os processos de subjetivação cuja compreensão leve em consideração a dinâmica de construção dos sujeitos por influência das práticas religiosas.
No campo das Ciências Sociais, o sujeito (empírico e conceitual) tem sido enquadrado com base na configuração individualista moderna (Dumont, 1985) e, muitas vezes, reduzido a esta pela abordagem das representações sociais (Maluf, 2013). Para as teorias sociais críticas contemporâneas, o sujeito da razão (e sua universalidade) é uma ficção política, visto que ele foi considerado um representante moral e empírico do individualismo moderno, ente unificado, substantivo, prévio à experiência. Nesse sentido, pensar o sujeito não apenas como objeto da análise, mas como categoria analítica (e como paradigma) se mostra relevante para uma abordagem antropológica e sociológica do contemporâneo (Maluf, 2010).
Entretanto, mesmo em algumas discussões recentes sobre o sujeito como condição de descentramento e de relativização do conceito de identidade (Agier, 2012) ou em análises das diferenças que permitam recolocar a questão da relação entre o universal e o sujeito moderno (Balibar, 2012), a premissa kantiana da consciência de si persiste em estruturar a dimensão compreensiva sobre a produção dos sujeitos. O sujeito kantiano é “transcendental” à medida que ele interioriza uma ideia do universal na conformação de uma consciência de si individual imediatamente ligada à racionalidade e à moral no sentido construído ao longo da “história ocidental”. Por esse ângulo, o sujeito se torna uma ficção (como ente unificado, substantivo, prévio à experiência e sujeito da razão) e o que passa a existir são os regimes e modos de subjetivação (Maluf, 2010). Dito de outra forma, uma discussão sobre a constituição, os agenciamentos e os diferentes atravessamentos (Maluf, 2013) que produzem “os sujeitos no mundo” é o que permitirá compreender as formas de subjetivação fabricadas e as construções das subjetividades rotinizadas em situações concretas de interação e socialização.
No início do século XIX, Hegel inovou ao postular que toda consciência resulta de um processo de formação histórico-cultural, posição também assumida por Marx, Freud e Nietzsche e, que mais tarde, influenciaria ainda a obra de Foucault. O filósofo francês se tornou uma das mais renomadas referências no debate acerca das relações entre o sujeito e o poder, notabilizando-se ao elaborar uma perspectiva teórica na qual a noção de insubmissão da liberdade ocupa um lugar privilegiado. Partindo dessa perspectiva, interessa-nos também refletir sobre a relevância da religiosidade na produção de modos de ser/estar no mundo, enfocando, em especial, práticas, representações e experiências que orientam as estratégias de luta empregadas por diferentes sujeitos para fazer frente às relações de poder que se lhes impõem nas múltiplas e variadas esferas da vida religiosa.
Tomamos como ponto de partida que a subjetivação não se limita a designar o resultado de dispositivos e elementos atuantes sobre os sujeitos para alcançarem determinados valores/atitudes socialmente reconhecidos. Assim, o regime disciplinar direcionado para a constituição dos sujeitos promoveria a possibilidade de tornar as relações de si para consigo um alvo de preocupação por parte dos agentes na construção de suas experiências religiosas ao longo do cotidiano e como parte de algum processo iniciático específico. Desse modo, objetivamos compreender os processos de subjetivação religiosa responsáveis pela formulação de sujeitos morais e éticas individuais tendo como alicerce um conjunto habitual de práticas engajadas nos locais de culto. Se o regime disciplinar define os “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1999: 118), torna-se imprescindível, portanto, refletir sobre as consequências disso com base nos conteúdos práticos assumidos pela subjetivação religiosa.
O tema da disciplina foi amplamente estudado por Foucault (1977; 1979; 1984; 1985; 1999) ao longo de sua trajetória intelectual. Os conceitos de disciplina e de dispositivo formaram os arcabouços teóricos para a maioria de suas análises sobre o que ele mesmo definiu, por diversas vezes, como sendo o “exercício do poder” (Foucault, 1979: 189). A subjetivação, ou seja, a maneira pela qual o indivíduo é chamado a se reconhecer como sujeito moral da conduta pode ser resumida a partir das quatro dimensões contidas na perspectiva de Foucault (1984), a saber: a substância ética, os tipos de sujeição, as formas de elaboração de si e, por último, sua teleologia moral.
Entretanto, em um de seus últimos trabalhos, todo o legado e esforço de compreender as “tecnologias do poder”, ou seja, os mecanismos “que determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação, objetivando o sujeito” (Foucault, 1988: 18), foi deslocado para a análise das “tecnologias do self”. Por este termo, o autor compreendeu as técnicas “que permitem que os indivíduos efetuem por seus próprios meios ou com a ajuda de outros um certo número de operações em seus próprios corpos e almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a se transformarem a fim de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade” (Foucault, 1988: 18). Neste sentido, o foco na transformação do self problematizou a interação entre si e com os outros por meio de tecnologias de dominação individual, ou seja, através de uma história de como os indivíduos agem sobre si mesmos.
Uma perspectiva pouco distinta sobre a problemática do “eu” na formulação de processos de subjetivação foi apresentada por Asad (1993) por meio da importância do “conceito de disciplinaridade” em sua análise sobre a produção de identidades religiosas. Ele definiu práticas disciplinares como “os múltiplos percursos nos quais os discursos religiosos regulam, informam e constroem selves religiosos” (Asad, 1993: 125). Tendo Foucault (1988; 1999) como interlocutor, Asad remonta a ideia de um programa disciplinar capaz de formar o “self” a partir das trilhas deixadas por Mauss (2003), em que o corpo era visto como um instrumento e objeto das referidas práticas, posto que elas regulavam as disposições mentais e morais dos sujeitos.
Asad rejeitou a noção clássica de ritual que preconiza a comunicação de significados, sugerindo a ideia de um processo de disciplinaridade que “forma ou reforma dispositivos morais” (Asad, 1993: 130). Além disso, os significados das performances convencionais, bem como das emoções e intenções dos sujeitos não estão completamente separados, tendo nas práticas disciplinares sua centralidade a partir da sua capacidade de unir ambas as dimensões. Tal perspectiva figura um ponto fundamental para refletimos sobre as capacidades da vida devocional religiosa em proporcionar elementos que efetivamente constroem “sujeitos no mundo”.
Para o desenvolvimento do processo de disciplinaridade, o modelo de Asad (1993) preconiza o reconhecimento de uma autoridade para a manutenção de dispositivos morais. Asad insistiu na necessidade de investigar a produção de discursos e representações em meio a práticas sociais, envolvendo instâncias de autoridade e processos de subjetivação (Giumbelli, 2001). Para a primeira situação, o termo “tradição” se propõe a definir tanto a autoridade existente no contexto religioso quanto a vida cotidiana dos sujeitos (Asad, 2015). Quanto a segunda, somente um regime disciplinar poderia conduzir as proposições almejadas pelos sujeitos na produção de uma ética religiosa. É com base nisso que insistimos na centralidade das práticas como um modo de viver ou como técnicas “para ensinar o corpo e a mente a cultivar virtudes e habilidades específicas que foram autorizadas, transmitidas e reformuladas ao longo das gerações” (Asad, 2001: 216).
Diante disso, a chamada convida à submissão de artigos de natureza etnográfica interessados em constituir um espaço de diálogo e reflexão em torno de fenômenos como: ações rituais coletivas, controvérsias públicas, modos de engajamento disciplinar, mobilizações políticas etc., cuja análise servirá de subsídio a uma problematização mais ampla do papel desempenhado pela religiosidade na produção da consciência e, por conseguinte, na construção de sujeitos nas sociedades contemporâneas.