Chamada para Dossiê Temático

2024-01-11

Na perspectiva literária brasileira, o termo “marginal” se aloca tensionado. Primeiramente, foi empregado para designar a produção de poetas ligados ao movimento de contracultura nas décadas de 1960 e 1970 do século passado. Ana Cristina César, Cacaso, Ricardo Chacal, Paulo Leminski, Torquato Neto, Nicolas Behr, são alguns dos nomes mais proeminentes. No limiar dos anos 2000, o termo “marginal” é reivindicado e utilizado pelo escritor Ferréz para nomear a produção litero-cancional (romances, poemas, contos, crônicas, saraus, rap) com traços mestiços, atravessada pela oralidade e produzida por indivíduos provenientes de comunidades periféricas. Mais adiante, em 2008, o poeta Sergio Vaz publica, em forma de poema, o “Manifesto da Antropofagia Periférica”, cujo primeiro verso diz: “a periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor”. A partir disso, o termo “marginal” vai sendo ora preterido, ora atrelado ao termo “periférico”. Assim, a expressões “literatura marginal” e “literatura marginal periférica” passam a coexistirem em tensão, numa espécie de “dialética da marginalidade” (Castro Rocha, 2007).
Contextualizando: é em meio ao turbulento cenário sociopolítico-cultural dos anos de 1970, que surge a chamada “poesia marginal”, conhecida também como “independente” ou “mimeógrafo”. Isso, em função dos “meios marginais” de produção e difusão de suas mensagens que caminhavam na contramão dos ditames institucionais e comerciais. Seus principais artífices a fizeram circular além dos espaços formais dos livros e da palavra escrita, alcançando espaços mais amplos: o corpo, a oralidade e a performance, “corpo na ação”, atravessamento à vida cotidiana. Oliveira (2011) argumenta que, do ponto de vista artístico, os artistas marginais desse período buscavam desafiar as normas estéticas, alinhando-se à essência do Modernismo, cuja principal meta era a busca incessante pela inovação. Inspirados pelo lema "make it new", de Ezra Pound, esses artistas compartilhavam o "fascínio pela heresia", nas palavras de Gay (2009, p. 20), estimulando ações que confrontavam as sensibilidades e sistemas convencionais. Nessa época, a literatura marginal destacava-se por sua existência à margem do sistema sociocultural predominante e por um forte posicionamento político, com isso não apenas renovou formas estéticas, mas também desafiando as práticas culturais estabelecidas, questionando a tradicional noção de cultura, séria e erudita (Oliveira, 2011, p. 31). Com efeito, a abertura política e a implementação do processo de redemocratização do país, após a derrocada da Ditadura Militar (1964-1985), possibilitaram o surgimento de novas vozes no cenário sociocultural e político (Napolitano, 2001;2004). Diante disso, ocorre uma reorientação do olhar, uma outra forma de se pensar sobre o fazer artístico (literário, poético e cancional) entre o centro e às margens (Sussekind, 2005; Tennina, 2017). Esse processo está em constante ebulição, na medida em que as convenções estéticas que outrora estavam segregadas, agora reivindicam e disputam os espaços de representação/de poder. A arte elaborada por artistas de origem periférica, apresentam forte teor político ao tratar das pautas sociais e das questões de representação e autorrepresentação na esfera cultural (Dalcastagnè, 2012), ao passo que demonstra uma potente capacidade de mobilização dos jovens.
Não alheio a tal contexto, este dossiê propõe uma discussão crítica sobre as produções litero-cancionais brasileiras de cunho marginal e/ou periférico. Nesse sentido, agregará artigos que abordem as tensões, os diálogos, as rupturas e resistências entre as relacionadas com a contracultura dos anos 1970, até as produzidas na atualidade (inclui-se aqui rap, slam, saraus) por sujeitos e sujeitas historicamente subalternizados, oriundos das periferias. Amplificar o debate sobre tais produções e discutir as possíveis continuidades e descontinuidades entre uma e outra são os objetivos centrais aqui. Nesse sentido, considera que uma compreensão ampla e profunda de como essas engrenagens estéticas se ajeitam e se movimentam em organizações socioculturais hibridas como a nossa, conforme asseverado por Canclini (2019), possibilita uma ampliação e enriquecimento dos estudos literários e da cultura nacional na atualidade.


Referências


CANCLINI, N. G. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Edusp, 2019.
CASTRO ROCHA, J. C. A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a
“dialética da marginalidade”. Revista 01. Rio Grande do Sul: UFSM, 2007.
DALCASTAGNÈ, R. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.
GAY, Peter. Modernismo, o fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NAPOLITANO , M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/69). São Paulo: Nablume, Fapesp, 2001.
NAPOLITANO. MPB sob suspeita: a cena musical vista sob a ótica dos serviços de vigilância política. Revista Brasileira de História, v.24, n.47, p.103-26, jan./jul. 2004.
OLIVEIRA, Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária -Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.
SUSSEKIND, F. Desterritorialização e forma literária. Literatura brasileira contemporânea e experiencia urbana. Literatura e sociedade.USP, n 08, p. 60-81, 2005.
TENNINA, L. Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Trad. Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2017.

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Datas:

Submissão: 30/01/2024 a 22/04/2024

Previsão para Publicação: 30/06/2024