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Thu, 30 Nov 2023 in Mediações - Revista de Ciências Sociais
Depois do Homo Sacer: o Confederalismo Democrático Curdo como Profanação do Estado-Nação
Resumo
Neste trabalho realizamos uma análise teórica das práticas de resistência e organização política do povo curdo, na assim chamada Questão Curda, a partir da obra de Giorgio Agamben. Se a Soberania moderna estabelece as relações do poder político a partir de uma origem romana que define a exceção e exclusão dos povos matáveis como parte de sua natureza, a desativação desses institutos se dá quando outra lógica impera. Assim, trazemos a Questão Curda como exemplo de profanação do sistema moderno de Estado-Nação e Democracia, a partir das próprias propostas teóricas agambenianas, uma vez que uma tradição decolonial dos povos oprimidos toma o lugar da exceção que determina o homo sacer.
Main Text
1 Introdução
O filósofo italiano Giorgio Agamben realiza uma ampla e importante análise da conformação da política, democracia e Estado-Nação ocidentais a partir do século XX. Em suma, Agamben parte de concepções fundamentais do Direito Romano e como tais apreensões perduraram durante a transformação do poder na (suposta) secularização da Soberania, transferida da Igreja Católica para o Estado-Nação.
A análise agambeniana estabelece como quadro da realidade do Estado-Nação e das democracias atuais a consolidação de um poder teológico na forma da Soberania, que, na prática, estabelece distâncias de status políticos entre categorias distintas da população. No cenário mais grave, Agamben concebe a existência do homo sacer: aquele destituído de qualquer outra potência senão a eliminação da vida.
A partir dessa leitura, o autor percebe que tal status foi mantido na proposta de Estado a partir do contrato social hobbesiano. Assim, o poder soberano do Estado se constituiu como definidor da vida nua, ao separar um Povo legítimo de um povo completamente matável.
É neste cenário que inserimos o contexto da Questão Curda. A resistência histórica do povo curdo, renegado no sistema internacional de Estados durante o século XX, foi agravada pelas políticas de eliminação perpetradas, sobretudo, pelo Estado da Turquia. Em meio a Guerra Civil na Síria, o povo curdo propôs como alternativa histórica à exceção em que vivia, o Confederalismo Democrático. Uma aposta na democracia radical, que não se constitui como a Soberania explicada por Agamben e consagrada no Contrato Social moderno-europeu, haja vista que busca desativar os mecanismos de exclusão, próprios do Estado mesmo.
Por “Questão Curda” nos referimos à resistência histórica empenhada pelo povo da etnia curda, principalmente a partir do século XX. Historicamente, o povo curdo habita um território montanhoso, situado no Crescente Fértil, que perpassa o território dos estados da Turquia, Irã, Iraque e Síria. Em 1916, o acordo de Sykes-Picot (firmado entre França e Reino Unido) ― que visava dividir politicamente o Oriente Médio entre as potências europeias ― possibilitou que em 1920 o Tratado de Sèvres previsse, inicialmente, a existência de um Curdistão independente, com a iminente derrota do Império Otomano. Porém, a liderança e as vitórias do general otomano Mustafá Kemal3 lhe deram condições para negociar o Tratado de Lausanne, que, ao dar maior espaço ao Estado da Turquia, acabou com a ideia de um Curdistão. Com isso, o povo curdo se viu literalmente sem espaço e com uma nacionalidade não prevista no pacto turco-europeu (Cruz, 2022; Öcalan, 2008; Ribeiro, 2019; Simões, 2021). A Questão Curda pode ser entendida, nesse sentido, como a história de um povo em seu território histórico que, em termos recentes, desde o século XX tem sido alvo de interesses e ocupações por distintos Estados sem que seus habitantes tradicionais – os curdos – tenham podido decidir por si mesmos (Vásquez, 2017, p. 16).
Analisamos, então, o Confederalismo Democrático, em aspectos teóricos e práticos, em sua organização, como proposta-resposta do povo curdo situado no norte da Síria (Rojava) e no sul da Turquia (Bakur) aos processos de apagamento étnico-cultural perpetrados por esses Estados ao longo do século XX. Evidenciamos como a organização na forma do Confederalismo Democrático e suas características rompem com o sistema político europeu colonial-tradicional, a partir da própria experiência curda, objetivando uma experiência decolonial autônoma e radicalmente democrática, protagonizada por um povo que outrora se encontrava subjugado e alienado de sua própria história.
Desta feita, assim como o fazem os curdos, pretende-se enxergar essa história, como propõe Walter Benjamin, por uma outra tradição, justamente a tradição dos povos oprimidos, ou a tradição daqueles marcados como homines sacri, segundo o pensamento agambeniano. Tal se configura como um giro decolonial dos marcos postos do Estado-Nação, haja vista que o centro das ações políticas não se encontra mais na Soberania moderna, mas na própria tradição dos povos outrora considerados matáveis.
Assim, fazendo uso das ferramentas teóricas que Agamben propõe, temos por objetivo principal explicar de que forma o Confederalismo Democrático e a história de resistência do povo curdo operam como prática de profanação dos dispositivos de exceção postos com base no Estado-Nação. Para tanto, e especificamente, objetivamos explicar como a noção de homo sacer é consagrada na forma Estado-Nação a partir da lógica da soberania; de que forma a exclusão do povo curdo do reconhecimento nacional nos estados da Síria, Turquia, Irã e Iraque evidencia o caráter colonial de necessária uniformização e hegemonia como política de Estado; e, por fim, explicitar de que forma o Confederalismo Democrático opera enquanto proposta decolonial de profanação à sacralização do homo sacer sob o Estado-Nação."
2 Homo sacer e Soberania Moderna
2.1 Vidas Matáveis
Giorgio Agamben, em sua análise de alguns institutos do direito romano, na obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua”, compreende homo sacer como aquele status adquirido por uma vida (sujeito) quando esta pode ser “matável”, sem que com isso se incorra em uma conduta punível, no sentido amplo do termo. Por uma decisão do Soberano, determinada pessoa adquiria o status de sacer, o que significaria que sua vida podia ser matável, não na forma dos ritos sacrificiais (de dedicados aos deuses), mas de forma distinta (Agamben, 2007b, p. 81).
Portanto, a vida sacralizada é aquela que pode ser morta, porém de forma distinta do rito sacrificial de culto. Em outras palavras, é uma vida dada à morte sem qualquer objetivo distinto da própria morte. Nesse conceito a mortalidade dessa vida não é, em si, uma questão extraordinária em relação ao mundo jurídico, uma patologia ou um problema, de modo que não acarreta qualquer consequência. Não só, a mortalidade dessa vida não implica pena. E o autor dessa morte não pode ser considerado, em alguma medida, infrator. O sagrado, no pensamento agambeniano, é aquilo, então, que foi separado das demais coisas de modo que sua matança não era ilícita e não importava em sacrilégio (ofensa), pois tinha natureza banal.
Agamben argumenta que este mesmo padrão lógico do homo sacer e seu mecanismo estão refletidos no fundamento da soberania estatal. Nesse sentido, recorda-se que, na obra de Agamben, os conceitos políticos se apresentam como a secularização de conceitos teológicos, porque o autor italiano estabelece um debate crítico a partir da obra de Carl Schmitt e sua Teologia Política. Schmitt, autor alemão que escreveu nas primeiras décadas do século XX, justificava, em seu trabalho, a ideia de uma Soberania transcendente do Soberano-Estado – que posteriormente seria a figura do Führer – como Ordem política fundamental anterior ao Direito e ao próprio Estado (Agamben, 2007a, 2007c; Schmitt, 2009).
Em suma, Schmitt defendia o Soberano como defensor da Ordem da sociedade, no mesmo papel que outrora fora da Igreja e do Imperador de Roma. Por isso, compreendia a Soberania fundada em um poder que, uma vez, já fora divino (e, de certa forma, conservava essa divindade) (Matos, 2014, p. 230; Schmitt, 2009). De forma crítica, Agamben adota a posição de Schmitt de que a concepção do Soberano enquanto capaz de dizer o Direito e até suspendê-lo – para manutenção da Ordem social – colocava o Soberano numa posição única: aquele que pode decidir pela exceção. Daí a clássica frase de Schmitt, reproduzida por Agamben: “soberano é quem decide pelo Estado de exceção” (Agamben, 2007c, p. 11).
A exceção é, portanto, o momento de suspensão da ordem – do direito ou dos direitos – em nome da salvaguarda da própria sociedade (ou do Estado, uma vez que em Schmitt há uma confusão entre Estado e Sociedade, na mesma entidade). É uma suspensão a partir da decisão. Ou, em contrassenso, uma decisão para suspender. Essa é a exceção, que, no pensamento de Agamben, com base em uma leitura crítica de Carl Schmitt, define a própria formação do Estado-Nação moderno. Para ele, toda a ordem (composta na relação Estado-Direito-Sociedade, na modernidade) é fundada nessa exceção (Agamben, 2007c, p. 13). Assim, essa exclusão originária constitui a política moderna, no pensamento do autor. Na lógica do homo sacer, Agamben identifica essa mesma exclusão: o status do sagrado legitima uma exclusão, um homicídio que, em última instância, não é um homicídio (ou não é considerado um homicídio) (Agamben, 2007b, p. 80).
Nestes termos, Soberano e homo sacer se apresentam como duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são correlatas: em relação ao soberano, todas as vidas são potencialmente homines sacri (ou vidas matáveis). E mais, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos (Agamben, 2007b, p. 90-92).
É a partir dessa lógica de soberania que se produz o que ele chama de vida nua: a sujeição da vida a um poder de morte, “[...] a sua irreparável exposição na relação de abandono”, nas palavras do autor (Agamben, 2007a, p. 91). Isto porque a sacralidade é a forma originária de implicação desta vida nua na ordem jurídico-política moderna. Se essa ordem é composta a partir da exceção do Soberano que tanto põe quanto suspende a ordem, a vida presa na decisão soberana é sacra e, portanto, matável, por definição.
Essa vida matável está inserida, assim, nessa zona originária da política, que consiste numa indecisão entre ordem e não ordem. É interessante anotar que Agamben aponta que aquele que adquiriu o status de homo sacer, mas ainda não foi morto, vaga entre os mundos, um morto-vivo: um penhor constante à sujeição da morte pelo Soberano (Agamben, 2007b, p. 106); uma vida totalmente consagrada à espera da própria morte.
2.2 Vida e Morte como Contrato Social
Agamben busca ilustrar o que chama de marco originário da política – a exceção e a vida nua do homo sacer – a partir de uma leitura incisiva de Thomas Hobbes e seu Contrato Social. Na concepção hobbesiana, o estado de natureza é aquele pré-político, pré-estatal, no qual impera um estado de guerra de todos contra todos (Hobbes, 2003). Uma condição em que cada um é, para o outro, um homo sacer: uma vida matável. Se todos estão em guerra contra todos, todos podem matar-se uns aos outros. Assim, portanto, todos são homines sacri (Agamben, 2007b, p. 112).
Porém, na passagem da natureza para a civilização (para o Estado), o acordo hobbesiano compreende que os homens cedem seu direito de matar ao Estado-Soberano, o único que teria tal direito de forma legítima, com a intenção de proteger a própria sociedade (dentro dos limites dos participantes do Estado). Há aqui, então, uma concentração e conservação da “natureza” de homo sacer na mão do Soberano-Estado (Agamben, 2007b, p. 113).
Contudo, entendemos que, dessa forma, não há uma passagem da natureza à civilização, como a leitura moderna insiste em fazer, mas uma preservação organizada, sistemática e institucionalizada da lógica do homo sacer na figura do Estado-Nação, por meio de sua soberania (que, em última instância, torna a todos potenciais homines sacri). Para Agamben, essa “confusão” interpretativa da passagem do estado de natureza para o Estado, em Hobbes, “condenou” a democracia à impotência, uma vez que toda tentativa de enfrentar o poder do Soberano não conseguia pensar, de forma alguma, uma política não estatal, que fuja dessa lógica (Agamben, 2007a, p. 113).
Noutro momento, Agamben compreende o Estado totalitário nazista como a escalada máxima desta figura: a confusão entre direito-medicina-política, um símbolo da biopolítica, na medida em que a própria ordem se fundava, manifestamente, na exceção, e mais, na exclusão e eleição para a morte de parcelas “indesejáveis” da população (Agamben, 2007b, p. 149).
Porém, em relação a um momento histórico anterior, o mesmo autor diz que é na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (1948) que se dá a consagração da biopolítica como parte natural da ordem na modernidade. O “direito à vida” é inserido na Declaração de Direitos agora como parte do destino da ordem estatal. Portanto, na consolidação do Estado moderno burguês, vê-se a cristalização da gestão da vida como marco da política institucional (Agamben, 2007b, p. 134).
Neste contexto, Agamben apresenta o que entende por vida: há a vida como dos seres viventes, zoe, e a vida política, bios (por isso a biopolítica). A vida nua é, então, consequência dessa vida política, uma vez que é a vida politizada e criada pelo próprio poder soberano, marcada pelo poder soberano sobre o próprio status da vida (Agamben, 2007b, p. 115; 2015, p. 11)
Além disso, Agamben trabalha outro conceito importante. No texto “O que é o povo”, no livro “Meios sem fim”, apresenta a oposição entre Povo (maiúsculo) e povo (minúsculo). Na mesma investigação da formação do Estado moderno, ele percebe que, nessa lógica da exclusão/exceção como paradigma político da modernidade, a formação de um Povo nacional implica, necessariamente, a exclusão de um povo (Agamben, 2015, p. 27). Esse povo, embora, teoricamente, faça parte da sociedade, não é, de fato, incluído nessa mesma sociedade. A proposta da soberania moderna de criação de um Povo nacional uno e indivisível produz, necessariamente, a exclusão daquele povo que não faz, de fato, parte dessa sociedade. Por isso Agamben afirma que, onde há a dualidade Povo e povo, existe vida nua. A vida nua pressupõe a existência de um Povo e um povo (Agamben, 2015, p. 28).
3 Resistência como Vida e Política contra o Status de Homo Sacer
3.1 A Vida do Povo Curdo
Partindo desse arcabouço teórico que subsidia nosso estudo, trazemos uma análise da resistência do povo curdo, enquanto mecanismo de profanação do status moderno de homo sacer adquirido a partir de sua exclusão da participação institucionalizada do Estado-Nação. Historicamente, o povo curdo é reconhecido como o maior povo sem Estado no mundo, uma nação sem Estado. Mas importa explicitar qual o significado desta afirmativa (Belkaïd, 2020).
O povo curdo ou povos curdos (que são cerca de 40 milhões de pessoas) são um povo que habita, há muitos séculos, a região montanhosa e fronteiriça entre o sul da Turquia, o noroeste do Irã e o nordeste do Iraque. Até o século XX, o povo curdo tinha garantida sua autonomia territorial e cultural dentro do Império Otomano. Com a dissolução do Império na I Guerra Mundial, no pacto feito entre as potências vencedoras, o Império Britânico e a França e os poderes remanescentes do Império Otomano (o general Kemal Ataturk), a divisão do Oriente Médio não garantiu a criação de um Estado do Curdistão. Ao contrário, a região que esses povos habitavam foi divididai entre outros Estados-Nação, que reivindicavam sua própria etnia, língua, cultura, religião (Araripe, 2012; Cruz, 2022; Öcalan, 2008; Ribeiro, 2019; Simões, 2021). Isso implicou uma total “estrangeirização” do povo curdo em diversos Estados diferentes, ainda que tenha permanecido no mesmo território geográfico de sempre.
Muito embora o povo curdo empreenda uma luta de resistência, para preservar seus direitos de existir, ao longo do século XX sofreu diversos processos de assimilação cultural como política dos Estados. Para exemplificar, na Turquia, durante muito tempo, a língua curda era proibida, como também as expressões culturais típicas dos turcos. O Estado Turco considerou, durante muito tempo, os curdos como “turcos da montanha”, com clara intenção de apagamento existencial dessa diferença. No mesmo sentido, a Síria, por exemplo, declara-se como República Árabe da Síria, numa ideia moderna de uma nação una e indivisível, que é, por definição, etnicamente árabe, o que, mais uma vez, exclui o povo curdo de sua própria autonomia existencial (Veríssimo, 2021; Öcalan, 2008, p. 148).
Como exemplo desse histórico processo de políticas de assimilação, a própria Turquia tornou o lema “uma só língua, uma só nação, uma só cultura” em prática de Estado, definindo na Constituição de 1924 (pós-Tratado de Lausanne) a exclusão das palavras “curdo” e Curdistão (anteriormente utilizada para se referir ao sul do país, onde tradicionalmente habitou a população de maioria curda) (Vásquez, 2017, p. 26). Assim, os curdos – entre outras minorias étnicas – que já habitavam o território antes da fundação do Estado da Turquia foram excluídos da “república”.
De semelhante modo, a República Árabe da Síria, a partir do movimento pan-arabista que consagrou o baathismo no poder, significou, também, a exclusão dos curdos do espaço público. Assim, após o censo de 1962, cerca de 120.000 curdos perderam seu registro civil, uma vez que um dos objetivos do governo sírio era diferenciar os “cidadãos sírios” dos imigrantes que haviam cruzado a fronteira da Turquia com a Síria ilegalmente nos anos 1920 (em que os mesmos curdos foram excluídos do pacto curdo), sendo-lhes proibido o acesso a educação, saúde, propriedade, livre circulação, matrimônio e atravessar as fronteiras (Vásquez, 2017, p. 37).
Buscamos aqui evidenciar como esse exemplo prático dá corpo às proposições de Agamben, que se tornam corriqueiras ao enxergarmos a realidade da consolidação do Estado-Nação na modernidade, a partir da ideia de exceção e soberania, e sua capacidade produtora da vida nua e do homo sacer. Não à toa o autor considera que a exceção é o paradigma das democracias no século XX. O povo curdo é, nos termos do autor, o povo, a vida nua para que o Povo (o povo turco, o povo sírio) possa ser (Agamben, 2007c, p. 13).
A política de assimilação sofrida pelos curdos é justamente parte do processo de invisibilização que é inerente à condição de soberania do Estado-Nação, produtor da biopolítica, das vidas matáveis, como temos trazido. Portanto, muito embora se autocompreenda como um povo com características étnicas, linguísticas e religiosas singulares, no arranjo moderno, os curdos se viram confinados às fronteiras nacionais que não os incluíam enquanto membros da comunidade.
3.2 Uma Proposta de Vida Decolonial
Na história do Estado-Nação, o povo curdo não é a exceção, ou, melhor dizendo, não é o único exemplo. As contribuições da teoria decolonial de Enrique Dussel (filósofo argentino) enxergam um ponto histórico dessa mudança na sociedade ocidental, o que ele denominou de “mito da modernidade”. Dussel compreende que a modernidade se constitui pelo processo sistemático de “encobrimento” do outro. As diferenças existenciais entre as populações não europeias para com o modo de ser europeu foram interpretadas pelos europeus como uma distância hierárquica temporal, e havia uma missão redentora a ser realizada pelos colonizadores. Isso implicava a caracterização das populações indígenas como vítimas de sua própria condição existencial, e, para Dussel, o projeto moderno tinha essa missão sacrificial de libertação dos indígenas de si próprios (Dussel, 1993, p. 75-78).
Recordando o status agambeniano do homo sacer, podemos, aqui, invertê-lo. Se no Direito Romano o homo sacer era indigno de ser sacrificado aos deuses e, por isso, era morto de forma banal, sem seguir os ritos tradicionais, a proposta moderna enxergada por Dussel é que o homo sacer (aqui visto como os povos indígenas) seja sacrificado num verdadeiro rito de libertação de sua própria condição de vida nua.
Em Dussel, a marca principal da modernidade europeia, com a consolidação do Estado-Nação, é justamente a intolerância em relação à diversidade: há uma clara política institucional de uniformização e hegemonia, que considera o modo de vida ocidental-burguês como o único possível, ao mesmo tempo que tudo que diverge dele deve ser eliminado (Dussel, 1993). Desta feita, o paradigma moderno-europeu de que o Estado-Nação se colocava enquanto estrutura sociopolítica hierárquica dentro de um determinado território, a partir da hegemonização de uma figura do cidadão-nacional, entrava diretamente em choque com a realidade dos povos originários em que conceitos como nação, fronteiras e Estado não faziam sentido.
Não obstante, podemos ver como a modernidade europeia empregou o mesmo sistema de eleição de tantos povos matáveis ao redor do globo. Não à toa, Ailton Krenak, a partir do caso brasileiro, pontua que os povos indígenas estão em guerra contra o homem branco desde 1500 (Guerras [...], 2020). O mesmo autor também critica as afirmações de que as lutas de resistência indígena implicariam um benefício generalizado (e abstrato) para toda a humanidade, porque questiona-se se, de fato, as populações integram o que se entende “por humanidade” (Krenak, 2019, 2020).
Não é novidade pontuar, ainda que sucintamente, os métodos e processos da colonização portuguesa entre as populações indígenas originárias no Brasil: genocídio, extinção cultural, confinamento territorial, escravização fazem questionar como a conformação do Estado-Nação brasileiro passou, inevitavelmente, pelo estabelecimento de um Povo, em face de outro povo. Há, portanto, na fala de Krenak uma clara demarcação existencial, que tem grande afinidade com a fratura biopolítica que Agamben conceitua, na medida em que há uma parcela de “povo” que é excluída nessa “exceção cotidiana” (Leal; Thibau, 2015). Aliás, é um exemplo claro da exclusão pela inclusão: o aparato institucional e legal, mesmo que disposto na forma legal da Constituição, não é suficiente para garantir liberdade e autonomia de existência para populações indígenas.
Outrossim, nesse sentido, Agamben entende que a própria Declaração de Direitos é o marco inicial da biopolítica: leis, instituições públicas e civis, tratados internacionais e a própria Constituição garantem, normativa e formalmente, os Direitos Humanos em suas mais diversas extensões, ao mesmo tempo que fundamentam políticas de exclusão das mesmas categorias que se dispõem a proteger.
3.3 Profanação como Alternativa de Vida
O diagnóstico feito por Agamben pode parecer como uma aporia diante do dilema do Estado de Exceção e do homo sacer que ele mesmo explica. Porém, o mesmo autor, na obra “Profanações”, em um pequeno texto chamado “O Elogio da Profanação”, oferece caminhos de respostas interessantes que podem ser potencializados na nossa leitura. Em sua arqueologia filosófica, que busca investigar sentidos originários de termos atuais e comuns da política, Agamben trabalha os conceitos de religião, sacralização e profanação (Agamben, 2007a).
Em sua leitura, religio não vem do termo religare (que busca conectar humanidade e divino), mas de relegere (reler). No direito romano, sagradas ou religiosas eram as coisas que pertenciam aos deuses e eram subtraídas do livre uso dos humanos. Dessa forma, consagrar (o sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano. E, no outro sentido, profanar era justamente o ato que restituía as coisas ao livre uso dos homens. A profanação se dava por meio do sacrilégio, que era todo ato que violasse ou transgredisse a indisponibilidade especial que as coisas sagradas possuíam (Agamben, 2007a, p. 58). Esse quadro demonstra a ideia do que o autor chama de “puro”: aquilo que não era nem sagrado, nem santo, nem religioso, mas liberto de todos os nomes desse gênero. Assim, a definição de religião para Agamben é: aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Religião é, então, a marca da separação das coisas. Não existe, desta forma, religião sem separação (Agamben, 2007a, p. 58).
Por isso, em Agamben, religio tem o sentido do relegere: o reler as formas (e fórmulas romanas, uma vez que o direito romano era considerado formular, na medida em que para cada rito e situação jurídica específica havia uma fórmula procedimental correspondente) que deveriam ser observadas para respeitar a separação entre o sagrado e o profano (Agamben, 2007a, p. 59).
Um outro termo importante é a ideia de secularização – lembremos que, em sua teoria, os conceitos políticos são conceitos teológicos secularizados. A secularização é uma forma de remoção das coisas sagradas, sem, porém, profaná-las. Ela tem uma aparência de transgressão, mas apenas desloca as forças de lugar, permanecendo a estrutura original. Agamben exemplifica, na política, que a Soberania do Estado apenas transmuta a monarquia celeste em monarquia terrena, mantendo intacto seu poder (Agamben, 2007a, p. 60).
3.3.1 Separação como Religião do Estado Moderno
Nesses termos é interessante que Abdullah Öcalan, autor curdo, inserido no movimento de resistência explicado anteriormente, em sua análise crítica do Estado-Nação, afirma que a criação de um Curdistão independente não resolveria a situação da questão curda, justamente porque o Estado-Nação é parte do problema (Öcalan, 2012, p. 7-8).
Também utilizando uma alegoria teológica da política, Öcalan entende que na modernidade o Estado substituiu a figura da Igreja/Deus e consagra a nacionalidade como a religião desta divindade. Ou seja, a nacionalidade é a marca que caracteriza a pertença de um grupo e a fidelidade a um determinado Estado. Do contrário, quem não possui determinada nacionalidade não faz parte de determinado Estado (Öcalan, 2018, p. 14-15).
E se determinado Estado não inclui determinada nacionalidade, acaba por excluir determinado povo dessa participação. É isso que ocorre com o povo curdo, o povo romani (cigano), o povo palestino e várias minorias étnicas/nacionais que se encontram enclausuradas em Estados Nacionais que não os incorporam ou preservam sua autonomia. Como vimos, é essa inclusão biopolítica realizada pela Soberania nacional – da nação una, indivisível, homogênea e hegemônica – que é a grande produtora da vida nua, das vidas invisibilizadas da modernidade.
É interessante pensar, a partir disto, a ideia de representação. Para Hana Pitkin, o termo repraesentare, no direito romano, significava “tornar presente” e era utilizado em ritos para imagens/objetos que encarnavam abstrações que ocupavam o lugar de algo, ou correspondiam a outro algo ou alguém. Em outros termos, a representação significa ocupar uma lacuna de algo ausente, tornar presente algo que, em certo sentido, não está lá (Pitkin, 2006, p. 19-20; Lima, 2018, p. 11).
Podemos enxergar como essa situação se opera pela política moderna. As democracias representativas operam por meio do paradigma da exceção, de incluir para excluir. As representatividades, na prática, não se perfazem, na medida em que fingem tornar presente algo que, essencialmente, está ausente, não se encontra ali. Trata-se da presença de algo que está, em suma, ausente (Lima, 2018).
3.3.2 ‘Bios’ em Profanação: o Confederalismo Democrático
Mais uma vez, compreendemos que estas aporias podem ser superadas. O antropólogo francês Michel Agier, a partir de estudos realizados em campos de refugiados, compreende que estes – os refugiados – são um símbolo da incongruência dessa biopolítica moderna do Estado-Nação e sua soberania. Em geral são pessoas que, pela impossibilidade de vida em seu território, tiveram que cruzar fronteiras e se tornaram um “problema” no lugar de destino, pois não são, em essência, cidadãos nacionais.
Michel Agier entende que essa situação é também um símbolo da exceção: essas são pessoas extraterritorializadas. Elas se situam nos campos de refugiados, que são “lugares fora dos lugares”. São espaços onde a ordem democrática é suspensa, para acomodar um contingente que, embora esteja no território, não faz parte dele. Não possui direitos. É uma vida, como Foucault coloca, dos encarcerados do lado de fora. Vivem nesse limiar fronteiriço, onde não são nem dentro nem fora. Como os homines sacri marcados para morrer, mas que não são mortos. Vivem uma “sobrevida”, como o próprio Agier coloca (Agier, 2015, p. 45).
Mas a análise do antropólogo denota que as dinâmicas dos refugiados indicam movimentos de resistência no próprio campo. Se, para Agamben, campo é o conceito utilizado para denotar o espaço em que a própria exceção ocorre, Agier entende que ocorre um processo de guetização do campo: os refugiados começam a atribuir seu próprio significado ao campo, dentro das limitações que aquela vida impõe (Agier, 2015, p. 45; Agamben, 2007b, p. 126).
Assim, eles acabam por nomear seus campos, nomear ruas, abrir praças, criar suas próprias dinâmicas, transformar materiais em decoração, arte e assim por diante. Para o antropólogo, essa transformação do campo em gueto favorece estratégias identitárias de resistência, na medida em que os refugiados adotam sua própria linguagem para se distinguir das fronteiras que os delimitam. Trata-se de um próprio re-uso desse espaço (Agier, 2015, p. 49). Esse re-uso é bem diferente do “reler” da religião para Agamben. Ao contrário, trata-se de verdadeira profanação do campo, na medida em que o campo, como próprio espaço religioso (de separação), é restituído, ainda que nas limitações daquela existência, às pessoas refugiadas.
Nesse contexto, vemos como relevante a expressão utilizada por Abdullah Öcalan para simbolizar a resistência e a própria existência do povo curdo. Ao discorrer, em uma de suas obras, sobre os processos de assimilação e apagamento sofridos pelo povo curdo, faz a interjeição: “Entretanto, os curdos existem” (Öcalan, 2008, p. 10). A fala assertiva de Öcalan se dá para sinalizar a existência de um povo que é sumariamente apagado, invisibilizado. É algo análogo ao que faz Krenak ao exclamar que os indígenas do Brasil estão em guerra. E assim como no caso dos refugiados de Agier, é preciso estabelecer um ponto de resistência, um ponto de profanação ao sistema soberano do Estado-Nação na modernidade.
O próprio povo curdo já demonstra um exemplo. Desde 2012 a Guerra Civil na Síria abriu uma fratura institucional no Estado da Síria. O avanço do Daesh (autoproclamado “Estado Islâmico”) retraiu o governo sírio à capital Damasco. O norte do país, cuja população tem maioria curda, viu-se relegado à própria sorte frente ao inimigo. O povo curdo, que historicamente habitava as montanhas, inclusive com milicias armadas, viu-se obrigado a resistir (Cruz, 2022; Simões, 2021). Com o passar dos anos a resistência sucede, o Daesh se retrai, e o povo curdo passa a exercer sua autonomia nas regiões em disputa, uma vez que, até o presente dia, o Estado da Síria não reivindicou de volta seu pretenso território.
Assim, a resistência organizada do povo curdo se apresenta como situação extraordinária, no sentido exato da palavra. Tem-se uma organização territorial que não se conforma ao padrão enxergado no Estado-Nação. Entre os curdos habitam, na verdade, diversos povos de várias etnias. Yazidis, sírios, assírios, turcomenos, armênios, entre tantos outros, que se organizam numa rede confederada de vilas e cidades que se reúnem em assembleias, com participação direta. Essa formatação sociopolítica nem se encaixa no Estado-Nação nem é legitimada ou reconhecida pela Sociedade Internacional (de Estados). A resposta proposta à Questão Curda não passou pela defesa da criação de um Estado do Curdistão independente, que reificasse, mais uma vez, a autodeterminação num projeto de Estado-Nação. Como dito, a resposta de Öcalan foi de que a criação de um Estado-Nação curdo acabaria por reproduzir todo o sistema ocidental que é, justamente, o ponto inicial da crítica.
Por isso, a organização sob as instituições do Confederalismo Democrático visa, justamente, romper esse sistema. O Confederalismo Democrático prima por uma organização radicalmente democrática e descentralizada, na medida em que se organiza da base para o topo do sistema (Öcalan, 2012, p. 33-34).
Para compreender o Confederalismo Democrático, é necessário levar em consideração seus significados, que são tanto múltiplos como complementares. Murray Bookchin (1990), a principal influência epistemológica de Öcalan para conceber teoricamente o Confederalismo, pensou este sistema no que denominou “Municipalismo Libertário”; em suas palavras:
Desta forma, sem operar na forma-representação tradicional do Estado Democrático de Direito (considerado como a junção das formas “democracia representativa” e “Estado-Nação”), o Confederalismo estabelece uma clara distinção entre a elaboração e formulação das políticas (de forma direta, nas assembleias, ou comunas) e sua execução por meio de conselhos executivos, cuja função é puramente administrativa e vinculada às decisões comunais. Portanto, ao se estruturarem em redes, essas comunidades seriam capazes de preservar suas identidades locais ao mesmo tempo que estabeleceriam o compartilhamento de recursos, evitando os problemas que Bookchin identificou na oposição entre poder paroquial e poder nacional (Bookchin, 1990, p. 7).
Bookchin entendia que o Municipalismo partiria de “estratégia revolucionária anarquista que supera as velhas estratégias sindicalistas revolucionárias e anarcossindicalistas” (Cruz, 2022, p. 63). Tratava-se então, de afastar-se das propostas burocráticas do Estado-Nação, ao propor a recuperação da esfera pública, por meio de um autêntico exercício de cidadania, rompendo com o que chamou de “mística” dos partidos e da representação política, denominadas pelo autor como sombrias e estéreis (Bookchin, 2019, p. 143).
Já no contexto curdo, para Aslan (2021), o Confederalismo Democrático significa um exercício consolidado de autonomia democrática. Trata-se do “direito da sociedade curda de determinar seu próprio destino”, de modo que essa sociedade manifesta seu desejo de autogovernar-se e decidir sobre sua vida em aspectos individuais e coletivos (Aslan, 2021, p. 135). Portanto, para a autora, a autonomia democrática e o Confederalismo Democrático se apresentam como uma nova e diferente interpretação do direito à autodeterminação nacional, em franca oposição ao Estado-Nação, haja vista tratar-se da autodeterminação de uma comunidade, e não de uma nação (pelo menos não no sentido colonial) (Aslan, 2021, p. 134). Esta escolha evidencia que a luta curda para se autogovernar não é um direito requerido ao Estado, mas, ao contrário, “[...] uma política organizacional alternativa contra o sistema estatal” (Aslan, 2021, p. 136).
Em análise semelhante, o Confederalismo também pode ser entendido como uma estratégia, haja vista que seus elementos constitutivos, tais como o antifundamentalismo, a libertação da mulher, o ecologismo e a autodefesa, se interrelacionam em todo o Movimento Curdo e operam como norte frente ao objetivo de “desmantelar” o Estado (Vásquez, 2017, p. 88). Assim, como paradigma prático – tanto quanto teórico – busca ir além de suas influências marxistas e anarquistas, respaldado por um histórico movimento popular antiestatal (Vásquez, 2017, p. 88).
Vê-se, pois, que o Confederalismo Democrático se apresenta, entre seus vários sentidos, como um projeto político e como teoria do Movimento Curdo para dar sentido ao mundo através de sua própria luta (Aslan, 2021, p. 137).
Como dito, desde 2012, a partir do contexto gerado com a Guerra Civil na Síria, a Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria – AANES – tem estabelecido um autogoverno de curdos e demais povos que habitam a região, sob a forma do Confederalismo Democrático. Assim, levando em consideração as propostas teóricas de Abdullah Öcalan, o sistema busca criar suas próprias soluções com base nos princípios históricos de resistência do próprio movimento curdo desde o começo do século XX. Desta feita, diferentemente de um arranjo pautado na uniformização do mito da modernidade, como propõe Dussel, ou da exceção, como percebe Agamben, o Confederalismo Democrático prima por uma democracia sem Estado, como preceitua Öcalan.
Dividido em quatro níveis, que vão das comunas ao congresso dos povos, o Confederalismo apresenta uma importante distinção que centra nas assembleias o cerne de seu sistema político. Neste nível, organizado regionalmente a partir de bairros e comunidades de bairros, as pessoas são diretamente livres para exercer – sem representação – sua participação na elaboração das políticas diárias, de modo que se estabeleça uma distinção entre a elaboração destas políticas e a execução das mesmas (que fica a cargo de uma comissão executiva composta por delegados eleitos). Além disso, institucionalmente, segundo Veríssimo (2021), podem-se perceber três importantes rupturas institucionais que são propostas pelo Confederalismo Democrático.
Primeiramente, a partir do conceito de Nação Democrática, Öcalan compreende que a ideia de nação implica uma mutilação identitária de cidadãos que foram conformados na “ideologia do Estado-Nação”, de modo que passaram a experimentar desigualdades nos aspectos coletivos e individuais de sua vida (Öcalan, 2018, p. 14, 21-22). Desta forma, a ideia de Nação Democrática – que em nossa análise tem pouco do que se compreende modernamente por “nação” – tem como caráter unificador da união voluntária de indivíduos e comunidades livres e autônomas justamente a livre iniciativa de participar e pertencer (Öcalan, 2018, p. 24). Outrossim, a nomeação no Contrato Social (em suas duas versões, 2016 e 2023) das várias nacionalidades e etnias “[...] introduz e incorpora em toda a estrutura a diversidade, a pluralidade e o multiculturalismo, muito diferente da uniformidade nacional (identitária) proposta no Estado-Nação” (Veríssimo, 2021, p. 65).
De modo relevante, Öcalan propõe que a modernidade capitalista, formada pela junção histórica de patriarcado, capitalismo e Estado-Nação, só poderia ser enfrentada por um sistema que propusesse a libertação das mulheres como ponto de partida (Üstündağ, 2016, p. 131). Assim, o Confederalismo Democrático, que herda um amplo histórico de resistência organizada do Movimento das Mulheres Curdas (Ribeiro, 2019), preza a garantia de participação ativa das mulheres por meio do sistema de copresidência de gênero (em que cada posição de presidência nas instituições deve ter, no mínimo, uma mulher), bem como instituições políticas compostas exclusivamente por mulheres. Com isso, o Confederalismo Curdo visa garantir espaços politicamente relevantes que sejam ocupados necessariamente por mulheres, de forma a propor uma formatação institucional e um ethos que enfrentam radicalmente a exclusão das mulheres do espaço público como historicamente se consolidaram a sociedade ocidental e a própria democracia burguesa (Federici, 2017).
Por fim, o Confederalismo Democrático enfrenta a Soberania moderna, como entendida por Schmitt e Agamben, na medida em que ele quebra o monopólio da violência estatal, conforme definida tradicionalmente por Max Weber, Norberto Bobbio e Charles Tilly (Bobbio, 2007; Tilly 1996; Weber, 2007). O arranjo descentralizado é caracterizado por ser a segurança interna e externa submetida às decisões comunais, seja com a substituição de um exército nacional pelas YPG e YPJ (Unidade de Defesa Popular e Unidade de Defesa das Mulheres, respectivamente), seja pelas Asayish (força civil de segurança), ou ainda com a estruturação de um sistema judiciário que vise garantir tanto a eleição de juízes (inclusive leigos), as Comissões de Paz (que em nível comunal prezam o consenso) bem como a formação de um corpo de juízas mulheres para julgar casos relativos à violência de gênero, a estruturação institucional diverge das formas monopolistas e violentas do Estado-Nação moderno (Dirik, 2017a, 2017b).
Por isso, o que podemos perceber a partir da sucinta exposição é que a Questão Curda se coloca como uma tentativa real de profanação não só do modelo produtor de exceção do Estado-Nação, mas também como uma profanação da democracia propiciada por uma comunidade que historicamente ocupava o papel de homo sacer em seu território. Se historicamente os curdos são invisibilizados nas estruturas de sacralização da política moderna, o que hoje é proposto é um sistema de resistência que não só resiste, mas também profana as dimensões da política moderna.
E os curdos, assim como os refugiados trazidos por Agier, são um, entre tantos exemplos, que, mesmo que profanatórios, são também invisibilizados, tais como os próprios indígenas, que, como Krenak coloca, estão há 500 anos encontrando formas de resistir e permanecer mesmo em meio as tentativas de apagamento.
Semelhantemente, os zapatistas, na região de Chiapas no México, desde o começo da década de 1990 se organizam em territórios autônomos e autodefendidos, em clara negligência (política e consciente) do Estado mexicano. Esse é um claro exemplo de profanação, de trazer a política da dimensão da separação para o uso comum, cotidiano das pessoas (Gennari, 2004).
Ao mesmo tempo, é interessante perceber que, no Sermão do Espírito Santo (1657), o Padre Antônio Vieira relata a dificuldade da catequese com os indígenas, utilizando uma alegoria em relação à diferença enxergada entre as estátuas de mármore e as estátuas de murta. As de mármore são difíceis de cortar, moldar, construir, mas uma vez prontas, permanecem para sempre. As de murta (planta) são maleáveis, fáceis e rapidamente estão prontas. Porém, facilmente perdem sua forma e têm que estar sempre sendo moldadas (Castro, 2002; Vieira, 2016).
Vieira compara os indígenas à murta, porque na mesma medida em que ouviam tudo atentamente e de forma “dócil e fácil”, como ele coloca, rapidamente se recusam e negligenciam tudo que foi falado, voltando-se ao que eram antes. É dessa negligência e dessa recusa que falamos. Trata-se do que o Padre Antonio Vieira denominou, e do que atualmente o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro trabalha como a ideia da “inconstância da alma selvagem”, que possui uma resistência, uma recusa a ser capturada nos esquemas e categorias do poder soberano moderno, como relata o Sermão (Castro, 2002).
4 Por uma Tradição Profanatória dos Povos Oprimidos
Nos exemplos que trouxemos, embora experiências distintas, é possível perceber uma característica em comum. São projetos realizados por pessoas, povos e comunidades que outrora recebiam o status de homo sacer. São, cada um a seu modo, invisibilizados pelas estruturas de poder que os cercam.
Assim, é importante trazer uma breve digressão sobre o conceito de “tradição do povo oprimido” de Walter Benjamin, filósofo judeu-alemão, também do começo do século XX, que é uma das principais referências de Giorgio Agamben. Para Benjamin, na modernidade os conceitos de história se baseiam numa visão da história a partir dos vencedores. O estabelecimento da sociedade burguesa significou, inevitavelmente, a derrocada de outras tantas parcelas da sociedade. Uma proposta positivista sobre a história, que a enxerga como ordem natural de um suposto progresso, atribui à história uma racionalidade abstrata e homogênea, como forma de legitimar uma falsa ideia de continuidade. Essa proposta quer legitimar o estabelecimento de certas categorias populacionais sobre outras (Matos, 2014, p. 77-82; Silva, 2018, p. 183).
Esses vencidos (na batalha da história), para Benjamin, significam o povo oprimido. Isto implica a necessidade de uma importante virada hermenêutica ao olhar para a história: contá-la a partir da tradição do povo oprimido. Significa, portanto, apresentar outras abordagens da história, outras propostas de vida, que questionam a história hegemônica do próprio Estado-Nação, como temos trazido neste texto (Matos, 2014; Querido, 2010). Por trazer relevância à disputa pela construção de uma memória coletiva, trata-se “[...] de uma subjetividade revolucionária das classes subalternas, na contramão da temporalidade abstrata do progresso, que vê no passado tão-apenas a prefiguração de um presente agora absoluto” (Querido, 2010, p. 31).
É essa guinada na história que propõem os povos curdos, refugiados, indígenas, como temos abordado. Trata-se de um giro interpretativo que rejeita a proposta de uma história fechada, encerrada, limitada ao estado de coisas em que a realidade, supostamente, ora se apresenta. Percebemos que também é parte da sacralização da modernidade o apagamento, a invisibilização das próprias histórias de resistência. É parte da política de manutenção da vida nua a partir da Soberania do Estado-Nação o ocultamento e supressão das resistências e das próprias histórias de resistências e proposições que busquem a ruptura com este estado de coisas.
5 Conclusão
Desta feita, pensamos que, a partir dos exemplos citados, é, sobretudo, possível pensar na profanação da democracia moderna e do próprio Estado-Nação. Contudo, uma profanação que parta da tradição dos povos oprimidos, ou, para ater-nos ao tema de nossa discussão, uma profanação promovida pela tradição dos povos invisibilizados, que seja capaz de articular outras propostas de subjetividades e suas próprias produções territoriais verdadeiramente democráticas.
Enxergamos, a partir da experiência curda, uma profanação que desative os dispositivos do poder, capaz de transformar o campo em gueto, e que frature a dimensão sacrificial e sagrada da exceção promovida pela Soberania. Uma profanação capaz de superar a confusão interpretativa identificada por Agamben, que consiga pensar a política além da dimensão estatal, como propõem os curdos e os zapatistas. Uma profanação que, em última instância, traga a democracia de volta para o uso comum dos seres humanos.
Para tanto, as experiências consideradas profanatórias apresentam como característica em comum um paradigma que opera pela diversidade, antes da uniformização. Assim, ao garantir a existência de instituições que primem pela participação direta das pessoas, fazendo a construção política como parte da vida ordinária, o Confederalismo Democrático rompe a sacralização da democracia moderna, propondo sua direta profanação.
Além disso, uma estruturação institucional que não articule a soberania de forma hierárquica e rígida, e sim proponha outro fundamento da política – de modo que o conceito de soberania, em si, não seja relevante –, de acordo com as noções de elaboração e execução das deliberações comunais na forma dos delegados e comissões, profana a Soberania produtora da exceção como entendeu Agamben.
Garantias de participação que não se limitem à figura do cidadão nacional, mas que comportem uma multiplicidade de etnias, nacionalidades, línguas e religiões, numa região tão diversa como o Oriente Médio, evidenciam que o Confederalismo Democrático não caminha pelas mesmas estradas do Estado-Nação. Se a democracia do Estado-Nação é pautada na representação, que tem por objetivo tornar e fazer presente o povo, que é separado por meio da exceção, a radicalidade do Confederalismo Democrático se encontra numa proposta de democracia que não considere a categoria “Estado” primordial para seu exercício, pelo contrário.
Pode-se perceber que o Confederalismo Democrático, ao evocar uma tradição de povos oprimidos, visa eliminar o poder da Soberania moderna de eleger os homines sacri em sua circunscrição territorial, na medida em que a representação – capacidade de fazer presente quem está ausente – é substituída pela democracia direta comunal. Dessa forma, a exceção enquanto regra das democracias ocidentais pós-século XX se encontra neutralizada na própria configuração do Confederalismo.
Além disso, a partir da ideia de nação democrática, em que o fundamento da organização social não seja mais a nação concebida como homogênea e indivisível, e sim a abertura da comunidade às diversidades nacionais, étnicas, linguísticas e religiosas, a partir da autonomia territorial local de cada uma das comunas e regiões, a relação entre Povo e povo tende a desaparecer. Em seu lugar, surgiria uma coletividade plural e diversa, que reconhece as diferenças não como um critério de distinção no exercício da democracia, mas como a base essencial para a participação democrática, transformando radicalmente – para alguns, profanando – a própria ideia tradicional de democracia.
Resumo
Main Text
1 Introdução
2 Homo sacer e Soberania Moderna
2.1 Vidas Matáveis
2.2 Vida e Morte como Contrato Social
3 Resistência como Vida e Política contra o Status de Homo Sacer
3.1 A Vida do Povo Curdo
3.2 Uma Proposta de Vida Decolonial
3.3 Profanação como Alternativa de Vida
3.3.1 Separação como Religião do Estado Moderno
3.3.2 ‘Bios’ em Profanação: o Confederalismo Democrático
4 Por uma Tradição Profanatória dos Povos Oprimidos
5 Conclusão