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Thu, 30 Nov 2023 in Mediações - Revista de Ciências Sociais
Da Autonomia ao Declínio da Vida: Impasses Familiares na Experiência com a Doença de Alzheimer
Resumo
Este texto discute a percepção do decréscimo progressivo da autonomia enquanto uma condição que leva à revisão da imagem social da pessoa com Doença de Alzheimer. Realizaram-se entrevistas com 15 familiares e 8 gestoras das regionais da Associação Brasileira de Alzheimer. Os(as) interlocutores(as) acionam uma concepção da doença associada à pessoa social do adoecido e às trajetórias de vida, em que autonomia e declínio marcam o enfrentamento pessoal e familiar com o adoecimento. O(a) cuidador(a) sente os impactos da perda da autonomia e da qualidade de vida diante do potencial do familiar em “poder ou não poder fazer” as tarefas cotidianas. A perda da autonomia e o declínio demarcam o fim da trajetória de vida e o ingresso em mudanças, adaptações e negociações, em que pensar novas perspectivas parece algo inalcançável diante do reconhecimento da fragilidade da vida.
Main Text
Introdução
O objetivo deste artigo é trazer alguns elementos acerca da experiência de adoecimento e dos processos de sociabilidade na vivência com pessoas acometidas pela doença de Alzheimer, como resultado de pesquisa realizada junto às pessoas cuidadoras e gestoras das regionais da Associação Brasileira de Alzheimer. A Doença de Alzheimer (DA)3 emerge como patologia em 1907, a partir de estudos do neuropatologista alemão Alois Alzheimer. Estima-se que mundialmente 35,6 milhões de pessoas estejam afetadas pela DA; já no Brasil, essa estimativa chega a 1,2 milhão de casos, conforme a Associação Brasileira de Alzheimer – Abraz (ABRAZ, 2022). A mudança demográfica e o envelhecimento da população mundial confirmam, à medida que a expectativa de vida se torna mais elevada, o correspondente aumento da prevalência da DA.
Em termos da biomedicina, a DA se caracteriza como uma doença progressiva, que afeta a memória da pessoa acometida, a capacidade de orientar-se no tempo e espaço, acarreta dificuldades de comunicação e raciocínio lógico (chamadas deficiências cognitivas), assim como desencadeia alterações comportamentais. Ou seja, afeta a dimensão relacional da vida social, das relações intersubjetivas e da própria subjetividade. Nas ciências sociais, integra o conjunto das chamadas doenças de “longa duração ou [...] compridas são aflições que não podem ser ‘curadas’, mas sim ‘controladas’ graças aos avanços da biotecnologia e da medicina” (Fleischer; Franch, 2015, p. 13).
Na perspectiva biomédica, a DA chama a atenção em decorrência de algumas incertezas ou controvérsias a respeito do diagnóstico, sendo a ausência de nexo causal físico/corporal um aspecto típico. Kucmanski et al. (2016) rebatem a ideia de causalidade única e reforçam a possibilidade de convergência de diferentes fatores, tais como traumas cranianos, genética, infecções virais, etc. Outro aspecto relevante remete ao componente genético e hereditário, definindo os tipos da doença. Em geral, o acometimento tardio ocorre em torno dos 60 anos de idade, enquanto a DA chamada de precoce tende a ocorrer em torno dos 40 a 50 anos de idade; em ambas pode haver recorrência familiar. Alguns estudos, dentre eles o de Lock (2005, p. 217), enfatizam que “há mais de vinte anos que raros genes autossômicos dominantes estão inevitavelmente associados com o que se conhece como ‘Doença de Alzheimer precoce’”. Esse acometimento em pessoas não idosas, conforme referido acima, alcança apenas 5% do total de casos, de modo que a maior incidência reside na faixa etária acima de 65 anos de idade.
Outro aspecto a ser pontuado diz respeito ao diagnóstico da DA, caracterizado por longos itinerários e peregrinação entre especialistas, tais como geriatras, neurologistas e psiquiatras. Além disso, esse itinerário arrasta-se por anos de angústias e incertezas, precariedades e fragilidades, pesquisas e descobertas. De modo geral, um itinerário de diagnóstico “envolve exames de imagem, testes cognitivos e entrevistas com diversos profissionais sobre os tipos de dificuldades enfrentadas no cotidiano” (Engel, 2017, p. 301). O diagnóstico tardio e impreciso provoca múltiplas emoções e dificulta o acesso a tratamento qualificado diante das necessidades no enfrentamento da doença.
Para as famílias que vivem com uma pessoa com DA, são os aspectos relacionais que chamam a atenção em razão das mudanças na vida pessoal, familiar e social da pessoa acometida com a doença. Eventos comportamentais, episódios de esquecimento e distúrbios da memória, alterações nos hábitos de cuidado de si indicam que está em curso um estado alterado nos modos de vida rotineiros do/da parente ou familiar.
Com esses elementos, nossas inquietações aportaram em questões relacionadas à experiência social de conviver com uma doença de longa duração, progressiva e que atinge a dimensão relacional da vida social, afetando esferas da vida pessoal, familiar e interpessoal. Centramos no indicativo – segundo questões de pesquisas já investigadas por autoras/es como Feriani (2017, 2019) – de que a perda de memória é um aspecto significativo na doença. A correlação entre DA e perda de memória tem sido usada recorrentemente no senso comum, inclusive de forma jocosa. Segundo Feriani (2019), essa correlação foi um aspecto considerado essencial para a visibilidade da DA desde a década de 1980. Dentre as suas manifestações, a categoria autonomia tem sido acionada diante das dificuldades de realizar as atividades da vida cotidiana e comportamentais, repercutindo, de forma intensa e significativa, na vida das famílias.
Ao fazer uma busca nos sites relacionados ao tema do envelhecer ou envelhecimento/ Alzheimer, o/a leitor/a se depara com termos como “independência” e “autonomia”. Cabe ressaltar que cada expressão tem seu próprio sentido; assim, a independência é descrita como a capacidade física e funcional, já a autonomia expressa a habilidade de gerenciar decisões e planos, inclusive nas atividades cotidianas. Problematizando a gramática das demências, tomamos para reflexão a noção de autonomia das famílias de pessoas com DA enquanto um “direito sobre seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem” (FOUCAULT, 1984, p.96), incluindo a capacidade de gestão de decisões que refletem o direito à vida. Corroborando essa reflexão, Martins (2004, p. 22) fomenta a ideia da autonomia4 enquanto um processo de respeito à realidade de cada um, o que inclui possibilidades de tratamento e modo de vida/conduta.
Metodologia de Pesquisa
Em termos metodológicos, o artigo fundamenta-se em pesquisa realizada durante os anos de 2018 e 2021, de natureza qualitativa, respeitando-se os parâmetros éticos relacionados à pesquisa envolvendo seres humanos. Foram realizadas entrevistas com 15 famílias e com 8 gestoras ligadas às regionais da Associação Brasileira de Alzheimer, nas quais dialogamos acerca de temáticas relacionadas à concepção da pessoa com DA, à concepção e gestão da doença, às redes sociais de apoio das famílias, às relações com serviços e profissionais de saúde e ao convívio cotidiano com um familiar com DA. Os relatos foram analisados e compilados a partir do processo de categorização de expressões, experiências, sentimentos e impressões das famílias envolvidas no atendimento no atendimento de pessoas com DA e de suas necessidades. As falas dos(as) interlocutores(as) são citadas ao longo do artigo como F1, F2, F3 e seguintes quando oriundas das conversas com familiares; e G1, G2, G3 e seguintes para relatos oriundos dos diálogos com as gestoras, indicando-se o estado de residência de cada interlocutor(a).
Quanto aos perfis dos entrevistados, foram oito gestoras, com média de idade de 57 anos, sendo a mais jovem com 36 e a mais idosa com 81 anos. Quatro são naturais do Rio Grande do Sul e as demais se dividem entre Pernambuco e Paraíba. Seis possuem ensino superior com pós-graduação e duas, ensino médio. Três são aposentadas e as demais se mantêm no mercado de trabalho. Quanto à renda, recebem em torno de seis salários mínimos, sendo a menor renda de dois salários mínimos e a maior de quatorze. Em média, frequentam a Abraz há 13 anos. No entanto, uma das interlocutoras estava vinculada à instituição há 20 anos no momento da entrevista. Duas gestoras não tiveram ou não têm integrante da família com DA, sendo que as demais seis tiveram familiares com DA, já falecidos.
Quanto às(aos) entrevistadas(os) das famílias, quatro são homens e doze são mulheres, perpetuando a visão do cuidado como voltado ao universo feminino. Entre os homens, três são filhos e um é cônjuge de familiar com DA. Entre as mulheres, onze são filhas e uma é nora de pessoas com DA. Em média, essas pessoas têm 53 anos, sendo que a mais jovem tem 21 anos – com mãe com DA precoce – e o mais velho, 83 anos. Oito possuem ensino superior, sendo uma pós-graduada. Os(as) demais têm ensino médio completo. Quanto às rendas, em média recebem cinco salários-mínimos, sendo a maior renda de quinze salários mínimos e três interlocutores com a menor renda de um salário mínimo e meio. Em média, frequentam os grupos da Abraz há três anos, sendo que o maior tempo de frequência é de nove anos e o menor é de um ano.
A noção de autonomia explorada pelas famílias remete a outras problemáticas, tais como perda da memória, demência, dificuldade da tomada de decisão e realização de tarefas rotineiras, fragilidade, dependência, declínio, morte, entre outros sentidos. São essas categorias que indicam as mudanças na percepção da pessoa com DA pelos seus familiares, invertendo a ordem de autoridade e o papel frente às responsabilidades familiares.
Dessa forma, o artigo está estruturado de modo a dar conta dessas reflexões, dividindo-se em dois itens, além da introdução e das considerações finais. No primeiro, reflete-se sobre os impactos dos primeiros sintomas da DA na vida familiar, envolvendo, além da perda de memória, a gradativa perda da independência e as alterações comportamentais. Essas mudanças interferem na imagem socialmente construída da pessoa com DA, especialmente quando relacionada à história de vida que antecede a experiência com a doença.
No segundo item, explanam-se os entraves vivenciados no processo de reconstrução da imagem da pessoa com DA, o que evidencia a necessidade de ressignificação do seu lugar social e familiar. Debate-se o impacto que as supostas “fases” ou os “estágios” da doença podem acarretar sobre a vida cotidiana da família, os cuidados exigidos e a proximidade com a morte, enquanto processo biológico e social que resulta na ruptura crescente das interações sociais e familiares. Nas considerações finais, pontuamos os elementos centrais dessa reflexão, em que as pessoas narram suas experiências, indicando as repercussões de um fenômeno biopsicossocial (Mauss, 2003) que atravessa relações sociais e a vida cotidiana de famílias.
Entre Memórias e Fazeres: O Lugar da Autonomia na Construção da DA
Como lembra Duarte (1983, p. 38), a “memória tornou-se uma categoria muito importante para as sociedades modernas, não só porque se trata das experiências individuais, mas fundamentalmente por sua acumulação na constituição da memória coletiva”. Essa afirmação torna-se relevante quando se recorre ao papel da memória no contexto da experiência com a DA, já que a memória do(a) acometido(a) é instituinte da história pessoal e familiar, conferindo-lhe valor social. Por isso, a questão da memória e a das lembranças têm sido centrais quando se dialoga sobre a DA, considerando que o déficit da memória representa um aspecto central na determinação do “provável diagnóstico” em comparação com outros tipos de demência. Também Lock (2005, p. 215) reforça que “a doença de Alzheimer é uma condição que está associada sobretudo à perda de memória”, comumente caracterizada, no consultório médico, como de “perda cognitiva”.
É justamente o processo progressivo de perda da memória e da capacidade de articular níveis de conhecimento e expressão dos enfermos e presente nos relatos que é trazido pelas famílias. O aspecto da memória desponta como significante quando associado ao contexto das atividades cotidianas, tal como se apresenta no relato a seguir: “As pessoas se preocupam, porque as pessoas querem lembrar das coisas, né? Ninguém quer ser dependente de ninguém, sabe que a dependência é muito séria” (G1, mãe com DA, Paraíba). A este respeito, Feriani (2017, 2019) argumenta que o estranhamento mais preocupante das famílias e demais cuidadores formais não se centra totalmente na perda da memória, mas nas consequências cotidianas que se apresentam, ou seja, na forma como afeta as ações simples da vida diária, tais “como vestir uma camisa como se fosse calça, não conseguir ligar a máquina de lavar roupa, mudar o canal da televisão com um chinelo, usar detergente para cozinhar, achar que os alimentos da geladeira vão atacá-lo [...]” (Feriani, 2019, p. 536).
Nessa perspectiva, as famílias indicam que existe uma relação entre o “não lembrar” e o “não conseguir fazer”, tal como se encontra nos estudos de Feriani (2017, 2019). As relações entre esses dois processos são reconhecidas pelos familiares como “impedimento cognitivo e projeção de incapacidade”, nos termos de Von der Weid (2018, p. 58), referências da dependência. Conforme se registra no relato abaixo,
Desta forma, “poder lembrar” é importante para “poder fazer algo sozinho(a)”; a perda da memória aflige as famílias, visto que as consequências dessas mudanças exigem um processo de reorganização do cotidiano e das relações sociais entre os membros da família. A reorganização começa pela reordenação das autoridades familiares e a decisão de quem realiza as atividades cotidianas, acrescentando-se o cuidado do(a) enfermo(a) a ser assumido pela família.
O fato é que a memória se torna o cerne da reconfiguração das relações sociais entre os adoecidos, seus familiares e cuidadores/as (familiares ou privados), o que se dá tanto pelo seu embaçamento (indivíduo como referente histórico familiar) quanto pelo embaçamento sobre as regras e posição sociais. As alterações da memória na DA afetam também a capacidade de julgamento para a realização das atividades do cotidiano que envolvem o cuidar de si mesmo, dos outros e demais ações atribuídas à pessoa – ou a chamada autonomia –, resultando no descrédito e dependência do entorno social. Nesse caso, o decréscimo da memória engendra a descaracterização da representação coletiva da pessoa por aquelas que a rodeiam, redefinindo imagem e status consolidados pelo indivíduo em sua trajetória de vida.
Nesse universo de mudanças, que oscila entre saúde e doença, sentir e viver a experiência da DA passam a ser mediados pelos níveis pendulares de autonomia e dependência da pessoa. O “mundo” das famílias se estrutura entre as perdas progressivas – que, enquadradas a partir das interpretações biomédicas, sugerem que o não lembrar levaria a uma dissolução do self (Feriani, 2019) – e a possível preservação, mesmo que mínima, de algumas atividades da vida diária, em um esforço de manter as características da “pessoa” de seu familiar, conforme a família a reconhecia antes da doença. Nesse sentido, para as famílias e para as pessoas enfermas, as alterações da memória e do comportamento são aspectos centrais para definir a aflição que as atinge, como pode ser observado no relato abaixo.
Os lapsos de memória, mesmo representando sinal de preocupação, nem sempre são considerados graves. Quando associados às mudanças de comportamento, tidas como ações atípicas ao perfil do(a) familiar, acende-se um alerta acerca do nível de comprometimento, a qual provoca uma reorientação na imagem da pessoa. Recorre-se à desconstrução das expectativas sociais, principalmente quando se compara a imagem atual do(a) familiar com aquela socialmente construída antes do diagnóstico da doença, ao lembrar dos impasses relacionados ao diagnóstico e dos sentimentos de espanto, insegurança e impotência que daí resultam.
Esse relato é exemplar do impacto do diagnóstico na história de vida familiar e, em especial, para os mais próximos à pessoa acometida. Esse espanto desponta nas entrevistas à medida que diferenciações e comparações surgiam sobre os chamados “antes” e “depois” do diagnóstico de DA, tal como num processo de ruptura na biografia (Bury, 2011) da pessoa e na história familiar. Cabe ressaltar que a imagem do(a) familiar ancora-se em papéis sociais consolidados de longa data, conforme exposto pela interlocutora da Família 12 (mãe com DA, Rio Grande do Sul): “A minha mãe sempre foi muito independente. Meu pai não era uma pessoa muito presente, então, ela segurou sempre a família, as contas, as pontas, sabe?”. O adoecimento impõe, consequentemente, uma mudança significativa na distribuição dos papéis sociais, em razão de que aquele(a) sempre reconhecido(a) como cuidador(a) passa a demandar apoio, colocando a família, em alguns momentos, em pânico diante da transformação.
A interlocutora retrata a perda do papel social da pessoa com DA, ressaltando o caráter relacional da doença e os processos de causalidade-interpretação da enfermidade, como nos lembra Laplantine (2010) acerca da doença tomada entre altos e baixos de harmonia/desarmonia e equilíbrio/desequilíbrio. Perdura um processo espaçotemporal, associado aos desequilíbrios do sujeito no cotidiano, marcado por restrições e limitações na vivência, especificamente no “mundo das relações” familiares (esquecimentos dos(as) filhos(as), percepção do(a) cuidador(a) como outra pessoa). O relato é exemplar dos sentimentos de espanto, inquietação e indignação na busca por explicações para o acometimento do familiar como tendo “sido escolhido(a)” pela doença, principalmente quando o(a) referido(a) familiar era visto(a) como referência e suporte tanto financeiro quanto emocional. Outro sentimento marcante é o de incerteza imposto pelas dificuldades e pelo diagnóstico de DA, especialmente quanto às expectativas da família, como se vê abaixo:
Dentro do universo de incertezas, as famílias não compreendem como uma pessoa cujo histórico de saúde razoável, incluindo rotinas intensas de cuidados, passa a ser acometido(a) pela DA, direcionando as interpretações para a dimensão corporal/biológica do adoecimento e do autocuidado. Perdura um imaginário de que ter saúde está ligado aos cuidados diários e às responsabilidades individuais, e esse imaginário dialoga diretamente com o biopoder (Ortega, 2003; Rabinow; Rose, 2006) no contexto da racionalidade neoliberal (Foucault, 2010). Esse sentimento de surpresa e espanto emergiu em vários momentos entre uma conversa e outra nos relatos, sempre oscilando entre causalidade de ordem biofisiológica, estilo de vida, personalidade e atuação social.
A surpresa resulta da incongruência entre o estilo de vida, o autocuidado e o adoecimento por DA. O estilo de vida é entendido como um “regime de verdade” corrente no campo da saúde e suas instituições, quando o risco é associado não apenas à dimensão corporal, mas também moral. Nos relatos, os/as enfermos/as correspondem ao modelo do estilo de vida diferente do sedentarismo ou de uma trajetória de transgressão, de modo que é difícil responsabilizá-los/as pela enfermidade. Nesta perspectiva, estilo de vida se conjuga com desempenho e autonomia, valores relacionados à racionalidade neoliberal que atribui ao indivíduo a responsabilidade pelos infortúnios sociais, morais e corporais. Essa é a dimensão política e ideológica da concepção de “estilo de vida saudável”, tal como discutido por Korp (2008), atuante na concepção da DA como enfermidade “democrática”. Essa concepção não reconhece as diferenças e desigualdades (social, racial, de gênero e classe) como condições de vida que acarretam adoecimento e cerceiam o acesso aos suportes, serviços e profissionais de saúde disponíveis.
Buscando entender a enfermidade, as famílias retomam a história familiar e das gerações passadas, quando as velhices não se caracterizaram como patológicas para justificar adoecimento contemporâneo. É, então, o comprometimento da memória e das alterações no comportamento que reforça o crescente descrédito da pessoa enferma cujo valor social e familiar fora acumulado em sua trajetória; daí a sensação de que não existe mais a “pessoa”, cada vez mais distante ou “ausente” da rotina e história familiares. A este respeito, Engel (2017, p. 306) afirma que as famílias alegam que, “antes da doença, as pessoas agiam no mundo, consciente ou inconscientemente motivadas, e eram lidas, em suas personalidades, em diferentes contextos. Mas, com o avanço da doença, algo essencial parece mudar”. Para alguns familiares, perduram sentimentos de “morte simbólica” ou “morte em vida” – termos utilizados em estudos, como, por exemplo, os realizados por Engel (2013) – daquela pessoa detentora de tanto dinamismo e autoridade antes da DA.
Nesse embate entre “antes” e “depois” da DA, os(as) interlocutores(as) buscam atribuir o surgimento da doença aos fatores relacionados às motivações, aos comportamentos e à personalidade do enfermo. Assim, para além do estilo de vida – alimentação e exercícios, responsabilidade social –, acontecimentos e dificuldades da história de vida que modelam a personalidade são mobilizados para justificar o acometimento.
Assim, a ênfase sobre as questões relativas ao gênero emerge de maneira marcante. De fato, os familiares apontam como as tensões e o papel social ligado à condição feminina marcam a trajetória das mulheres, em que reprodução e cuidado despontam como parte da pressão social. Em que medida as imposições e constrangimentos de gênero reforçam um processo de adoecimento para as mulheres? Essa interrogação, no entanto, não mobiliza estudiosos da DA, mesmo considerando que mulheres são mais afetadas pela enfermidade, como nos apresentam Souza, Monteiro e Gonçalves (2022) em seu levantamento sobre gênero em estudos sobre DA.
Essa é também a reflexão realizada por Lock (2005) ao considerar como os fatores sociais são subestimados no desencadeamento da enfermidade, assim como a dominação da abordagem biomédica (biologia/genética), de caráter reducionista traduzida na relação genótipo/fenótipo. A esse respeito, alega que é preciso “reconhece[r] que o ambiente e as variáveis sociais desempenham papel crucial na modificação dos organismos; mesmo assim, essas variáveis são isoladas na preferência por uma abordagem decididamente preocupada com interações internas ao corpo material” (Lock, 2005, p. 211).
Ao longo das interlocuções, os(as) interlocutores(as) foram abordados(as) acerca da genética e hereditariedade associada à DA. Entretanto, esse tema não repercutiu nos relatos, o que corrobora estudos de Gibbon (2019) acerca das causas do câncer de mama. A autora aponta que, no universo de crenças das mulheres, perdura diferentes entendimentos sobre fatores genéticos e hereditários. A maioria das integrantes da sua pesquisa não conectam esses termos, de modo que: “existia uma saliência cultural no contexto em torno do risco hereditário, e não nos genes” (Gibbon, 2019, p. 91). Nos raros diálogos sobre hereditariedade da DA, manifestou-se um temor diante da possibilidade do diagnóstico da doença, o que remete às considerações de Keck e Rabinow (2006, p. 82, tradução nossa) quando indicam que a identificação de genes pode ser “uma luz de esperança, e muitas vezes uma decepção, em que o destino pessoal pode assumir a forma de um gene identificável”. Uma luz no sentido de estabelecer uma causa, mas uma decepção por estabelecer o destino dos demais membros da família.
Além do surgimento da DA estar atrelado aos diferentes fatores de risco, tais como autocuidado, estilo de vida, temperamento, percepção quanto às relações sociais e posição na vida social (status), outros fatores podem ser acionados, a exemplo dos achados do estudo de Gibbon (2019).A autora aborda fatores de natureza externa, ou seja, aqueles fora do domínio do controle do indivíduo, como, por exemplo, sofrer uma “pancada” no caso do câncer de mama. Assim, perdura a ideia de que os “agentes etiológicos causadores da doença mais importantes são aqueles que impactam na pessoa, corpo ou personalidade, ao invés de serem gerados de dentro do corpo ou que surgiram como o resultado das ações do próprio indivíduo” (Gibbon, 2019, p. 96). Essa reflexão se aproxima da perspectiva da maioria dos(as) entrevistados(as) nesse estudo sobre a DA, na medida em que a hereditariedade e a genética não são consideradas no conjunto de fatores que podem estar associados ao adoecimento. Esse entendimento – processo de fora (ambiente físico ou social) para dentro do corpo – aparece nas narrativas, incluindo os traumas relacionados às perdas de familiares, por exemplo.
Outro aspecto relevante advém da visão que a família tem sobre apatia, inércia ou falta de perspectiva do(a) doente diante da vida. Apesar disso, alega-se que as pessoas com DA podem ter os chamados “lapsos de consciência”, quando manifestam entendimento sobre os fatos em seu entorno. Articulam, assim, dilemas existenciais e de personalidade na condição da pessoa com DA. Para Engel (2017, p. 314), a subjetividade constitui engajamentos que se dão “a partir do presente, e não formatados pela memória”; é isso que compõe a experiência das pessoas com DA e seus familiares, em contraposição à “narrativa insistente sobre o Alzheimer que afirma que há como deixar de ser sujeito quando se perdem funções do cérebro” (Engel, 2017, p. 314). Nessa perspectiva, alguns interlocutores confirmam as estratégias utilizadas pelas(os) enfermos diante das consequências da doença.
Outra estratégia consiste no uso de termos genéricos, quando são abordadas por pessoas de quem não conseguem se lembrar, tais como “querida”, “querido”. É também o caso da repetição da rotina e da tentativa de se manter no ambiente que lhe é familiar e considerado seguro. Os(as) interlocutores(as) alertam para a persistência de uma consciência da “perda de si” pelas pessoas com DA, especialmente nas fases iniciais, e para a relevância em estabelecer atividades rotineiras que reforcem o seu sentimento de segurança.
Para além da segurança, a estruturação do cotidiano aciona a categoria da dependência crescente da pessoa com DA e torna-se crucial para quem cuida, articulada com a autonomia nas sociedades contemporâneas. Filosoficamente, autonomia pode ser entendida como a capacidade humana de se autodeterminar; assim, entende-se que o sujeito que tem autonomia tem a capacidade de governar-se pelos próprios meios. A reflexão sobre autonomia tornou-se uma arena de disputas entre diferentes vertentes, como nos aponta Von Der Weid (2018); entretanto, entre as/os interlocutoras/es, autonomia parece ocupar um campo semântico entre desempenho, realização de atividades cotidianas e capacidade de tomada de decisão – expectativas da normalidade do indivíduo. Dessa forma, cabe lembrar as ponderações de Engel (2017, p. 317) quando indica que os “corpos podem experimentar modos de existência [sic] singulares à normalidade. Normalidade representa, aqui, um ordenamento limitador dos modos de existência: só aqueles que produzem são viáveis”.
Ao longo das entrevistas, ficou evidente o quanto a autonomia ou a falta dela assombra as famílias. Não ter autonomia pode ser comparado ao perder o “roteiro da vida”: a obra ficou incompleta, os(as) atores(atrizes) esqueceram as falas e o seu papel social. Nesse sentido, “novos roteiros” de cuidados e relações sociais passam a ser assumidos diante das fragilidades decorrentes da doença.
(Re)Construindo Imagens: Novos Papéis no Cuidado da Pessoa com Doença de Alzheimer
A maneira como cada família enfrenta a enfermidade e suas fases assume características que variam com as condições familiares, envolvendo renda familiar, afetos e emoções, história familiar, acesso a bens e serviços, rede de apoio, etc. Para Gibbon (2019, p. 82), reafirmando o pensamento de Lock (2008), há “muita dificuldade em criar um regime de cuidado para uma doença incurável e cuja condição é frequentemente debilitante”. Por isso, considera-se que a “doença extrapola o evento biológico em si, pois é uma construção sociocultural que possui diferentes significados e interpretações de acordo com quem a vivencia e suas relações interpessoais, principalmente dentro da família” (Oliveira; Caldana, 2012, p. 677).
Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ, 2022), a DA é uma demência caracterizada geralmente por três fases ou estágios, que progressivamente modificam o cotidiano da família e do sujeito acometido pela doença. A fase inicial seria caracterizada pela perda de memória recente e pelas dificuldades em exercer atividades diárias. Ao evoluir para a fase moderada, as dificuldades do indivíduo ficam mais acentuadas e evidentes, afetando o cuidado pessoal. Já na fase grave, observar-se-iam complicações na fala, na noção de espaço e no uso de objetos. Essas fases ou estágios são referências/parâmetros tanto para as famílias quanto para as equipes de saúde na definição de tratamentos e demandas por profissionais especializados. Atuam como guias para que as famílias possam “preparar-se” em termos do porvir.
Esse cenário torna-se doloroso, por um lado, porque as famílias ficam angustiadas com as expectativas de futuro e, por outro lado, torna-se perverso pelo fato de que as pessoas passam a ser “categorizadas” conforme as fases da doença, como se todas vivenciassem a DA de forma idêntica, de modo que persiste certa homogeneização do processo de adoecimento e da vivência pelas famílias. Em conformidade com o discurso biomédico homogeneizador sobre a DA e suas fases indicadas nos protocolos terapêuticos, poucas famílias demonstram fazer o movimento de refletir sobre as diferentes experiências da doença. Dentre as entrevistadas, somente duas expressaram essa compreensão, como se vê abaixo:
O processo de envelhecimento é tão heterogêneo quanto o adoecimento por DA, de modo que “a fisicalidade do Alzheimer, ao mesmo tempo em que é evidente para pesquisadores e profissionais de saúde, não é óbvia, não é de um tipo só e não causa consequências lineares em termos de sintomas” (Engel, 2017, p. 303). As vivências e sentidos atribuídos à enfermidade também são diferentes e atravessados por desigualdades sociais, raciais e de gênero.
O incentivo ao apego às “fases ou estágios” pela biomedicina remete às reflexões de Keck e Rabinow (2006) quando abordam os “corpos portadores de estatísticas”, ou seja, criando padrões previsíveis de comportamento, em que se naturalizam “comportamentos desviantes” por serem próprios de determinada fase da doença. Daí a ênfase sobre a medicina preventiva, cuja incumbência visaria não propriamente a cura, mas a antecipação da doença e preparação para sintomas e os cuidados a serem oferecidos.
A experiência de conviver com um familiar com DA e o processo de ressignificação da percepção que se tem sobre o enfermo são atravessados por sentimentos de incertezas e oscilação. É do cenário de dependência, fragilidade e declínio da vida que se dá a reorientação sobre a organização da vida familiar. A partir da emergência de sentimentos de resiliência, algumas famílias expressam sentirem alguma esperança de melhora do quadro da doença, assim como identificam mudanças nas relações familiares em razão do processo de adoecimento. Assim, em alguns casos ocorrem aproximações entre os membros da família e o enfermo, em outros persistem o afastamento e distanciamento. Esse fato se agrava à medida que nas famílias entrevistadas perdura, de forma significativa, a sensação de decadência da pessoa com DA, que se agrava com o avanço das consequências da doença, como diz uma interlocutora: “Eu não quero ver ela desse jeito. Ela era uma pessoa muito ativa, eu não consigo olhar ela desse jeito. Eu acho muito doloroso essa doença que afasta até as pessoas, afasta as famílias” (F4, mãe com DA, Paraíba).
As famílias atrelam o sentimento de “decadência” às fragilidades impostas pela doença, principalmente em decorrência da debilitação cognitiva, que não somente implica necessidade de intensificação de cuidados, medicação e internações, como também cessa as perspectivas de interação social. Esses cenários acabam levando os(as) familiares a se sentirem inseguros quanto à melhor postura de enfrentamento, tanto que Vianna (2015) reflete sobre diferentes posturas adotadas por cuidadores(as) que transitam entre ápices de medicação e “entrar no mundo” do(a) familiar:
Alguns relatos sugerem que, nesse contexto de cuidado, parece ocorrer uma simbiose entre o sujeito que tem a doença e os(as) cuidadores(as) que acompanham intensamente os sintomas e as consequências dela. Feriani (2019, p. 26), ao se referir aos cuidadores(as), indica que “alguns chegam a sentir os efeitos da doença, como dissolução, desorientação, esquecimento, confusão, loucura, estranheza, e [sic] eles/elas precisam reinventar o cotidiano, a linguagem e o rosto”. É como se a família passasse a sentir e a ser afetada pela fragilidade que assola o outro. A fragilidade se apresenta também no âmbito [sic] da ordem financeira e das relações que são estabelecidas na família.
As mudanças comportamentais se intensificam, assim como a dependência e necessidade de incremento de cuidados por parte das famílias. É quando as famílias expressam o quanto estão afetadas pelo que chamam de “inversão de papéis”. Estudos de Oliveira e Caldana (2012) também indicam que, além das demandas de cuidado afetarem aspectos físicos, mentais e sociais, a “dependência psicofuncional do idoso com demência, ao modificar a rotina, a dinâmica e a relação de troca [sic] entre os membros da família, pela inversão de papéis, coloca uma série de demandas novas e inesperadas” (Oliveira; Caldana, 2012, p. 677). Tais situações levam ao que chamam de “labilidade afetiva” em uma perspectiva de regulação interna dos afetos.
Mesmo em meio às várias mudanças ocasionadas pela doença, algumas famílias consideram que, diante das inúmeras desorientações e alterações comportamentais do(a) doente, certas características perduram e ultrapassam as nuances da DA. Nesse sentido, como já referido anteriormente, alguns familiares expressam que a enfermidade altera o “poder fazer do familiar”, ou seja, suas atividades práticas da vida diária, o que não necessariamente afeta seu modo de vivenciar e sentir as relações interpessoais – internas ao núcleo familiar.
Feriani (2019, p. 28), ao se referir às pessoas que cuidam de outras com DA, lembra que “estão sentindo, dizendo, pintando, escrevendo, dançando, cantando [...]. Narram a perda do narrar ou possibilidades outras de narrativas. Inventam uma vida, um rosto, uma linguagem”. Em meio aos diálogos, as famílias expressam que, por momentos, reconhecem estar presente o antigo “Eu” de seu familiar, mesmo que em episódios temporários. E isso pode se tornar tão significativo ao ponto de a família nutrir esperanças quanto às possibilidades de melhoria ou reversão de sintomas:
Nesse universo, entre o “antes” e o “depois”, o que resta em uma pessoa com DA? Engel (2017, p. 313) aponta que, “para entender corpos adoentados, é necessário que fisiologia, mente e mundo não sejam divorciados e que se pense em várias maneiras de ser corpo e de ser consciência”. Feriani (2019, p. 35) ainda nos mostra a importância da linguagem enquanto agência em constante movimento, visto que “constitui uma autoridade ao mesmo tempo que foge do controle daquele que a tem, permite olhar para os descolamentos, as sobreposições, as tensões da composição da doença de Alzheimer que transbordam do campo médico”, conforme expressa em quadros, blogs, redes sociais de pessoas com DA.
Ao escutar as famílias, parece que essa tênue linha entre o antes e o depois da enfermidade torna-se uma constante na experiência com a doença, criando um contraste na vida do/a enfermo/a que exige reinvenções em lidar com a gradual perda cognitiva. O contraste emerge também entre um corpo, ainda saudável muitas vezes, e a dimensão cognitiva que se esfacela – se esvai numa perda de si mesmo/a. Por isso, existem momentos de desespero, resiliência, novo desespero, sendo que algumas famílias procuram encontrar pontos positivos que emergem em um cenário de construção de imagens, relações e afetos que são únicos para cada membro da família.
Os trechos trazem elementos positivos relacionados ao adoecimento que não seriam, normalmente, esperados quando se pensa nas perdas (cognitivas, por exemplo), tal como na recomposição de relações entre filhos/as e enferma. É interessante como essa dimensão positiva pode advir das formas de cuidar, enquanto um ato praticado que aciona estados afetivos e obrigação moral, atrelado à economia política e não reduzido ao poder, como nos lembra Buch (2015, p. 278).
Ainda, parece que a perda da autonomia e o declínio demarcam o fim de uma trajetória de mudanças, adaptações e negociações para outra envolvendo o reconhecimento da fragilidade vivida em suas múltiplas formas e o processo de morte. Nesse sentido, Engel (2017, p. 311) indica que “mudanças na substância orgânica promovem, por fim, mudanças na própria dimensão de estar no mundo”; assim, fragilidade e declínio levam os familiares a pensar sobre a morte como uma possibilidade, em que a corrida contra o tempo se torna uma constante: “[...] ao observar cuidadoras e pessoas com Alzheimer tentando habitar determinado mundo, observo acoplamentos, compartilhamento orgânico de mundos e disputas cotidianas sobre a vida e a morte” (Engel, 2017, p. 318). Quando a morte se torna uma possibilidade, emergem sentimentos de naturalização da morte, de missão cumprida diante de um cuidado “bem realizado”, em um claro movimento do que se chama de “‘boa morte’, ‘com dignidade’, pacífica, tranquila, aceita, visível e compartilhada socialmente” (Menezes; Barbosa, 2013, p. 2653). É um trabalho de resiliência que busca superar a dor pelo amor: “Eu disse assim: ‘eu prefiro acolher a morte no amor, do que na dor. Eu prefiro colher as perdas e o desapego no amor, do que na dor’. Porque querendo ou não, se a pessoa estiver morrendo, vai morrer e você vai ter que se consolar, não adianta” (F8, mãe com DA, Paraíba). O reconhecimento do “processo de morrer” do enfermo impregna o cuidado com práticas voltadas ao conforto e à qualidade de vida (Soneghet, 2020), num esforço de absorver a perda com a afetividade, como se expressa no relato acima.
Enquanto a “morte não chega”, o pensar sobre o(a) familiar em uma perspectiva de reconstrução da imagem do Outro passa a transitar entre a reflexão, a razão e a inconsciência. É quando a vida familiar passa a se organizar, gestada dentro das possibilidades do “mundo” da pessoa com a Doença de Alzheimer. Nesse sentido, são pertinentes as indicações de Vianna (2015, p. 303) quando demonstra que “o ato de cuidar não é apenas uma prática ‘socialmente construída’, mas sim um processo de transformação por sociabilidade em imediação” que perpassa tempo e consciência. O cuidado como “sociabilidade em imediação” remete às “relações de amor e carinho”, empatia e “envolvimento do cuidador no mundo do doente”, “em que ambos estão vivendo processos diferentes, mas interligados” (Vianna, 2015, p. 310). Por isso, Vianna (2015) propõe uma reflexão em torno do que ele define como “ontologia da demência”, como um movimento de compreensão antropológica do emaranhado de relações que são estabelecidas entre o cuidado e as sociabilidades possíveis a uma condição humana que se encontra em declínio de vida.
No cenário da DA, Engel (2017, p. 319) reforça a ideia de “relações cruzadas”, quando identifica o fato de poder “haver acoplamentos de cuidadoras com médicos e substâncias para controlar e normalizar seus parentes, sendo o cuidado também um controle do corpo e dos humores do outro”. Isso é algo que ficou nítido na fala de um dos interlocutores: “Antes ele tomava fluoxetina, só que ele ficava mais mole. Já com a mediquilina ele fica, às vezes, fica muito espertinho e já teve vez que ficou em pé. Aí de vez em quando eu não dou porque a gente fica com medo dele se levantar sozinho” (F5, pai com DA, Pernambuco). Nesse caso, a medicação é utilizada como estratégia ou recurso agenciado por médicos e outros profissionais, a partir de tecnologias biomédicas, para funcionar como mecanismo de controle sob gestão da/o cuidadora/or.
As relações familiares passar a ser afetadas por contextos de angústia, ansiedade, dor, amor, em que os papéis são socialmente reatribuídos, apesar de persistir um nítido desconforto familiar em ressignificar o olhar que se tem sobre o familiar. Aqui parece que emerge novamente o “fantasma” do “não saber fazer”, ou seja, como agir diante do diferente? Como cuidar de quem “sempre cuidou”? Como determinar o certo e o errado? Enfim, embora cada experiência se diga única e passível de descobertas, o cuidar abre um leque de práticas, possibilidades e sentimentos, socialmente construídos, mobilizados pelas experiências, sociabilidades e recursos disponíveis – políticos e institucionais – para a convivência humana num processo de demência progressiva e reinvenção constante.
Considerações Finais
Nossa reflexão, nesse texto, teve o objetivo de trazer alguns elementos que compõem as experiências de pessoas cuidadoras vinculadas às associações de Alzheimer em seus respectivos estados. É interessante refletir sobre como as narrativas apontam para as dificuldades do cotidiano, da reinvenção contínua da pessoa com DA, do progressivo acometimento pela enfermidade. Queremos enfatizar a relevância da sociabilidade e das associações em compartilhar práticas de cuidado e conforto emocional aos participantes, especialmente pelo sentimento de “processo de morte” que se configura em determinadas fases da doença. Aqui, evitamos estabelecer uma polarização entre doença do corpo e doença da mente, considerando que se trata da “pessoa com DA”, cuja condição apenas pode ser expressa nos termos de uma ontologia da demência, como nos afirmou Vianna (2015).
É mister reconhecer a elevação dos índices mundiais de casos de Doença de Alzheimer, e também que se trata de um processo de longa duração que exige significativo potencial de (re)organização das dinâmicas familiares. Da dimensão estatística-global para o local-familiar, a aflição se inicia com a busca por diagnóstico, se desdobra em inúmeras emoções e demandas crescentes de cuidado pelo/a enfermo/a, o que leva ao entendimento de que os processos demenciais implicam aspectos relacionais da vida social.
Para os familiares, embora a memória seja um aspecto marcante da doença, pois afeta a história de vida pessoal e familiar, a perda da autonomia é o grande fator a ser manejado por ele(as); principalmente, repercutem nele(as) de forma preponderante as necessidades das atividades da vida diária ocasionadas pelas mudanças comportamentais. Segundo os familiares, na maioria das vezes esse déficit de desempenho nas atividades cotidianas, atrelado principalmente às questões comportamentais, causa uma ruptura com a imagem pregressa da pessoa acometida pela DA – sua biografia –, afetando as relações familiares com implicações para o regime de autoridade e responsabilidades familiares.
Emerge em meio ao processo de cuidado a categoria “autonomia” como sendo basilar no reconhecimento do conviver com a DA, uma vez que a “governança” corpórea e vivencial passa a ser fragilizada, distanciando-se dos padrões de normalidade do autocuidado, principalmente em se tratando de envelhecimento marcado por diferentes estigmas e pelo esperado declínio de vida. E isso em uma sociedade capitalista em que ser útil e produtivo torna-se de fundamental importância.
A exemplo de outros estudos, consideramos que, na perspectiva das famílias, o declínio da memória é traduzido em termos das práticas cotidianas em que perdura a relação entre o “não lembrar” e o “não conseguir fazer”. Dessa forma, “poder lembrar” é importante para “poder fazer algo sozinho(a)”, ideia que faz parte do repertório da independência e do desempenho – valores que podem ser atribuídos ao modelo neoliberal da sociedade contemporânea. Nesse universo de mudanças, que oscila entre saúde e doença, o lembrar e o fazer se tornam referentes para definir o grau de autonomia e dependência da pessoa. É nesse processo relacional que emerge a categoria “autonomia”, com um sentido relacionado ao desempenho, ao exercício do papel social e ao cuidado de si.
As famílias narraram que vivenciaram sentimentos de espanto, impotência e insegurança diante da situação do diagnóstico da enfermidade – DA –, tendo em vista as perdas progressivas, a irreversibilidade do acometimento e o processo de morte que se configura. Trata-se de reinventar a biografia e de reconhecer a fragilidade estabelecida pela doença, visto que era evidente, à medida que as entrevistas foram se desenvolvendo, o fato de que se estabelecem diferenciações e comparações quanto ao “antes” e ao “depois” do diagnóstico de DA, como se o diagnóstico fosse um momento de ruptura biográfica (Bury, 2011).
A família passa a ter seu cotidiano organizado a partir da gestão das possibilidades de autonomia ou dependência de seu(sua) familiar, em meio ao jogo de tentar encontrar explicações para o acometimento da doença. Na busca pelo entendimento do que está acontecendo aos seus familiares, os(as) interlocutores(as) indicam elementos relacionados à personalidade, à trajetória de vida, às dificuldades e responsabilidades (pessoais, familiares e sociais), assim como aos incidentes dolorosos como condicionantes para o aparecimento da DA.
De modo emblemático, os fatores biofisiológicos são lembrados quando se trata de pensar o autocuidado e o estilo de vida da pessoa com DA. Nesses casos, desponta uma forte tendência de culpabilização e responsabilização do enfermo pela doença, numa perspectiva associada ao risco e reducionista quanto à relação entre autocuidado e adoecimento. A partir desse processo, os(as) interlocutores(as) acionam uma concepção da doença associada às personalidades e às suas trajetórias de vida. A questão de gênero emerge como fator importante, seja o fato das mulheres serem mais atingidas, seja porque a elas é atribuído o papel do cuidado, cujas tensões despontam como parte da pressão social.
Cabe ressaltar, ainda, que, nitidamente, o universo de organização da família e reconstrução da imagem do(a) familiar é assombrado pelo que chamam de “fases da doença”, sendo que as pessoas passam a ser “categorizadas” como se todas vivenciassem a DA de forma idêntica, persistindo certa homogeneização na percepção do processo de adoecimento e da vivência da doença pelas famílias. Algumas famílias revelam sentirem alguma esperança de melhora do quadro da doença, em fases iniciais dela, apesar de que, para muitas, perdura, de forma significativa, a sensação de decadência que se tem sobre o familiar com DA.
A demanda por cuidado é crescente à medida que a chamada autonomia decresce. É nesse contexto que alguns relatos sugerem a existência de simbiose entre o sujeito que tem a doença e os(as) cuidadores(as), resultado da empatia e do envolvimento deste(as) no mundo do enfermo. Essa simbiose aparece, nos relatos, como parte da “inversão de papéis”, principalmente entre os familiares, quando quem cuidava passa, com a enfermidade, a ser cuidado.
De fato, a percepção do decréscimo progressivo da autonomia enquanto uma situação de reordenamento da imagem da pessoa com DA é marcada por experiências relacionais que podem girar em torno de fatores tanto mecânicos – quando a família assume padronização de cuidados e naturalização dos processos de demências – quanto de reinvenções de perspectiva de vida que buscam aderir ou aproximar-se de um “novo mundo” – da pessoa enferma, no qual o instante de vida é o presente de cada dia nas experiências de cuidado de um familiar com a Doença de Alzheimer.
Num último esforço, cabe-nos trazer um desafio aos pesquisadores do tema do envelhecimento e de suas experiências. Além da denúncia de etarismo e de outras formas de discriminação, nos questionamos sobre como essas famílias têm conseguido manter cuidado em condições de desigualdade social e econômica. Como a DA afetou grupos familiares cujas condições de vida e reprodução são precárias, como se vivenciou nas últimas gestões do Estado brasileiro, entre 2016 e 2022? Quais são os arranjos familiares adotados? Como a emergência de biotecnologia – genética e farmacêutica – tem afetado a progressão da doença num contexto em que a saúde mental está em evidência pelo sofrimento social?
Como se vê, são muitas as inquietações provocadas pelas condições de vida, pela crise sanitária e pela ausência de políticas públicas e de suporte social para aqueles que percebem as interpelações ontológicas, epistemológicas e políticas representadas por um contexto de luta pela sobrevivência e de (des)governança da vida, diante das iniquidades produzidas no Brasil. A esperança é que os direitos e acesso a bens e serviços públicos de saúde sejam restaurados, respeitando-se a justiça e a equidade social. Pensamos que a experiência coletiva de justiça social possibilitará o entendimento de que não há “democracia” na DA, visto que as pessoas enfermas e seus familiares são afetados pelas desigualdades, que são socialmente e sistematicamente produzidas como tecnologia de biopolítica5.
Resumo
Main Text
Introdução
Metodologia de Pesquisa
Entre Memórias e Fazeres: O Lugar da Autonomia na Construção da DA
(Re)Construindo Imagens: Novos Papéis no Cuidado da Pessoa com Doença de Alzheimer
Considerações Finais