REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA
ANPOLL
Revista Boitat uma publicao semestral, de
acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de
Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)
GT LITERATURA ORAL E POPULAR
BINIO 2020/2022
COORDENADORA
Profa. Dra. Dlcia Pombo
Secretaria Estadual de Educao do Par
delciauab@gmail.com
VICE-COORDENADORA
Profa. Ma. Dia Favacho
PPGED-UEPA
favachodia1@gmail.com
SECRETRIO
Profa. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
SEDUC/UFPA
alexandre_ranieri@hotmail.com
IDADE MDIA
ORALIDADE E PERFORMANCE
Dados Internacionais de Catalogao na
Publicao (CIP)
Bibliotecrio: Marcos
Moraes – CRB: 9/1701
Boitat:
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa
e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] /
Universidade Estadual de Londrina - n. 32, v. 2, jul. /dez., 2021. –
Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2021. Semestral Requisitos do sistema: Adobe Reader. Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index> ISSN: 1980-4504 1.
Literatura oral 2. Narrativas orais 3. Imaginrio nas Formas Narrativas Orais
Populares da Amaznia Paraense (IFNOPAP) I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Fernandes, Frederico Augusto Garcia III.
Universidade Estadual de Londrina. IV. Associao Nacional de Pesquisa e
Ps-graduao em Letras e Lingustica. V. Ttulo: Boitat: Revista do GT de
Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao
em Letras e Lingustica - ANPOLL |
CDD: 808.5
CDU: 82
ndice
para o catlogo sistemtico:
1. 2. |
Oralidade Cultura popular |
82 |
EXPEDIENTE
EDIO
Dr. Alexandre Ranieri
Ferreira (UFPA)
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes (UEL)
EDITORIA ASSISTENTE
Dr. Alexandre Ranieri
Ferreira (UFPA)
ORGANIZAO
Dra. Maria do Socorro
Simes
COMISSO EDITORIAL
Dra. Anna Christina
Bentes
Universidade Estadual de
Campinas
Dra. Ana Lcia Liberato
Tettamanzy
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Berenice Araceli
Granados Vsquez
Universidad Nacional Autnoma
de Mxico
Dra. Cludia Neiva de
Mattos
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da
Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da
Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes
Universidade Estadual de
Londrina
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve
(Portugal)
Dr. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa
(Canada)
Dr. Jos Guilherme dos
Santos Fernandes
Universidade Federal do
Par
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do
Par
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do
Sul
Dra. Maria do Socorro
Galvo Simes
Universidade Federal do
Par
Dra. Maria Incoronata
Colantuono
Universitat Autnoma de
Barcelona
Dr. Mrio Cezar Silva
Leite
Universidade Federal de
Mato Grosso
Dr. Ronald Ferreira da
Costa
Professor do Instituto
Federal do Paran
Dr. Slvio Renato Jorge
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Vanderci de Andrade
Aguilera
Universidade Estadual de
Londrina
Dra. Vera Lcia Medeiros
Universidade Federal do
Pampa
PARECERISTAS DESTE NMERO
Dr. Alexandre Ranieri
Ferreira
Universidade Federal do
Par
Dra. Berenice Araceli
Granados Vsquez
Universidad Nacional
Autnoma de Mxico
Dra. Claudia Freitas
Pantoja
Faculdades Integradas do
Vale do Iva
Dr. Dejair Dionsio
Universidade Estadual do
Centro-Oeste
Dra. Dlcia Pombo
Secretaria Estadual de
Educao
Dra. Francisca Pereira
dos Santos
Universidade Federal do
Cariri
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes
Universidade Estadual de
Londrina
Dra. Laura Regina dos
Santos Dela Valle
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Lnia Mrcia
Mongelli
Universidade de So
Paulo
Dra. Maria do Socorro
Galvo Simes
Universidade Federal do
Par
Dra. Maria Incoronata
Colantuono
Universitat Autnoma de
Barcelona
Dra. Mauren Pavo da Hora
Vidal
Instituto Federal Baiano
REVISO
Dos
autores
SUMRIO
EDITORIAL
IFNOPAP:
uma nascente de histrias
Alexandre Ranieri Ferreira, Maria do
Socorro Simes ...................................................................5
CONVIDADO
IFNOPAP em memrias: comeo e meio
Alexandre Ranieri
Ferreira...............................................................................................................8
DOSSI
Corpo-velho: reflexes sobre o envelhecimento feminino em
narrativas orais da Matintaperera
Andressa Arajo, Rafaella Costa, Maria do
Socorro Simes, Rubenil da Silva Oliveira ..............17
O maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade
Sylvia Maria Trusen........................................................................................................................29
SEO LIVRE
Intertextos de Romeu e
Julieta nos folhetos nordestinos
Weber Firmino Alves, Naelza de Arajo Wanderley ....................................................................39
O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas de
enterro produzidas em comunidades quilombolas
Emanuel Fontel, Regina Cruz, Benedita
Borges, Thaynara Paixo................................................52
Oralidade e quadrinhos: possibilidades pedaggicas
Alberto Ricardo Pessoa, Cristiano Clemente de
Souza..................................................................64
Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de
reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG
Fbio Martins, Leonel Brizolla Monastirsky..................................................................................71
Poesia in concert:
a palavra de volta rua
Kaedmon Sellberg Soares...............................................................................................................85
Vozes poticas e (re)existncias quilombolas do grupo Razes
do Samba de Tocos de Antnio Cardos-BA
Eliziane Santos e Santos, Renailda Ferreira
Cazumb................................................................102
APRESENTAO
IFNOPAP: uma
nascente de histrias
Um
dossi temtico com o Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da
Amaznia Paraense de uma responsabilidade muito grande. O IFNOPAP um
projeto importante para os estudos das Poticas Orais. Com quase 30 anos de
existncia, uma infinidade de Teses, Dissertaes, TCCs e artigos cientficos
ele talvez seja mais que um projeto, um adjetivo, gentlico, como a professora
Socorro Simes; capit desde batel que flutua entre rios, florestas, espaos e
ciberespaos chama-nos. Somos todos Ifnopapianos de muitos costados.
E, em
mais essa viagem do IFNOPAP, comeamos com algumas memrias de Alexandre
Ranieri que entrou quase que por acaso no projeto e nunca mais saiu. O texto IFNOPAP em memrias: comeo e meio recheado
de emoo e carinho, alm de demonstrar a maneira como o projeto perpassa o
percurso acadmico do convidado.
O primeiro
artigo deste dossi assinado por Andressa Ramos, Rafaella Costa e Rubenil
Oliveira em parceia com a professora Socorro Simes Corpo-velho: reflexes sobre o envelhecimento feminino em narrativas
orais da Matintaperera traz a lume uma questo relevante aos dias de hoje:
o padro de beleza associado ao corpo feminino, sempre julgado e pressionado,
ao passo que, em tempos de pandemia, os corpos velhos sofreram mais que outros
o descaso de polticas pblicas e a indiferena dos jovens. Portanto, publicar
este artigo que desbanca os esteretipos em torno do corpo feminino envelhecido
a partir de narrativas orais amaznicas de Matintaperera (re)humanizar esses
corpos subalternizados que retomam sua condio de sujeito ora discriminados
nessa modernidade cada vez mais lquida, egocntrica e narcisita.
O
prximo artigo do dossi assinado pela professora Sylvia Maria Trusen da
Universidade Federal do Par, O
maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade, faz uso das narrativas do
projeto publicadas no Abaetuba conta... destacando a categoria da alteridade,
muitas vezes esquecida e engolida pela arrogncia do ego, para a leitura das
narrativas do Imaginrio Amaznico.
Mas
no s o IFNOPAP que feito de histrias. Recebemos, nesta edio, tambm
artigos de outras paragens, outros nortes, prenes de diversidade. E essa viagem
comea pelos folhetos de cordel nordestinos e suas verses de uma obra prima da
Literatura mundial: Intertextos de Romeu
e Julieta nos folhetos nordestinos de Weber Firmino Alves e Naelza de
Arajo Wanderley trata da relao entre esses textos do imaginrio popular e a
histria imortalizada por William Shakespeare.
Voltando
ao norte o artigo de Emanuel Fontel, Regina
Cruz, Benedita Borges, Thaynara Paixo intitulado O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas de enterro
produzidas em comunidades quilombolas mergulha nas comunidades quilombolas
do Estado do Par para desvelar o estatuto mtico das narrativas de enterro.
Saindo mais uma vez do norte e voltando ao nordeste, mais
especificamente Paraba, os autores Alberto Ricardo Pessoa e Cirstiano
Clemente de Souza analisam uma relao que, para algumas pessoas no parece
clara, mas que vai se tornando a medida em que lemos o artigo Oralidade e quadrinhos: possibilidades
pedaggicas. Pensando nisso os autores exploram essas possibilidades que os
quadrinhos proporcionam ao estudo da oralidade.
Descendo do nordeste ao sudeste, da
Paraba a Minas Gerais, Fbio Martins, Leonel Brizolla Monastirsky nos
transportam paisagem religiosa criada pelo catolicismo popular da campanha de reis e do Menino Jesus de
Carmo do Rio Claro no artigo Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de
reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG. E nessa viagem que empreendemos
lendo o texto nos faz ver as paisagens sonoras e gustativas que ajudam a
compor a religiosa.
Descendo um pouco mais, ao Sul, no
norte do Paran, em Londrina, Kaedmon Selberg Soares em Poesia in concert: a palavra de volta rua trata do agrupamento Poesia in concert e a sua reincorporao no Festival Literrio de Londrina
(Londrix), ressaltando a importncia social do evento para a cidade e
relembrando outros tempos do Bar Valentino.
Saindo do norte do Paran, nossa viagem termina em Antnio
Cardoso na Bahia onde Renailda Ferreira Cazumb e Eliziane Santos e Santos
tratam das histrias e vida dos mestres e mestras do Grupo Razes do Samba e
seus sambadores e sambadeiras no artigo Vozes
poticas e (re)existncias quilombolas do Grupo Razes de Toco de Antnio
Cardoso – BA.
Esperamos que a vigem por todos esses lugares e pessoas e
seres e histrias seja profcua e encante aos leitores da mesma forma que nos
encantou como revista.
Maria do Socorro Simes
CONVIDADO
IFNOPAP em memrias:
comeo e meio
Memory IFNOPAP: beginning and middle
Alexandre Ranieri
Ferreira[1]
https://orcid.org/0000-0002-3689-9682
Resumo: Tratar da minha relao
com o IFNOPAP (O imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense) simplesmente mesclar boa parte
da minha vida pessoal e acadmica. Falar do meu percurso acadmico iniciar
com o projeto IFNOPAP, ter em mente que boa parte dessa vivncia se deve a ele
e que no existe um fim em que se possa dizer que a minha relao com o projeto
h de acabar. As memrias que apresento neste artigo demonstram a importncia
da minha relao com o projeto e a professora Socorro Simes que desembocou em
desdobramentos vrios sem os quais tantas outras conquistas acadmicas no seriam
possveis.
Palavras-Chave: IFNOPAP; Acadmico; Memrias.
Abstract: Dealing with my relationship with IFNOPAP (The Imaginary in Popular Oral
Narrative Forms of the Amazonian Paraense) is simply mixing a most of my
personal and academic life. To talk about my academic path is to start with the
IFNOPAP project, keeping in mind that a good part of this experience is due to
it and that there is no end in which it can be said that my relationship with
the project will end. The memories I present in this article demonstrate the
importance of my relationship with the project and Professor Socorro Simes
ended up in several developments without which so many other academic
achievements would not be possible.
Keywords:
IFNOPAP; Academic; Memories.
Um comeo
Nos idos dos anos 2004 retornava a Universidade
Federal do Par de pois de passar trs longos anos afastado e cursando
Processamento de Dados no Centro Universitrio do Par (CESUPA). Na realidade,
as poucas aulas, a pouca intimidade com os colegas de turma e as poucas
possibilidades de emprego no ano de 1999 me fizeram procurar outra formao e
melhores oportunidades. Era uma formao particularmente difcil para algum
pouco apegado a nmeros. Mas os anos que passei l me ensinaram mais do que eu
achava que aprenderia e me presenteariam com amigos que at hoje cultivo.
Terminado o curso, no satisfeito com a formao
em computao, decidi fazer uma ps-graduao em Marketing na Universidade da
Amaznia (UNAMA). Como as aulas eram a noite e apenas uma semana por ms,
decidi retornar ao curso de letras. Para explicar as minhas ausncias em
detrimento do curso, conversei com a professora Germana Sales, professora de
Literatura Portuguesa. Quando ela soube da minha formao, imediatamente me
convidou a conhecer a professora Socorro Simes e o projeto Multiletras.
Em pouco tempo constru o site do projeto,
organizei obras e ajudei a coordenador o primeiro encontro do projeto. Desde
ento muitas outras propostas se seguiram, criando logomarcas para projetos,
sites e prestando consultoria em informtica a vrias pessoas que me
procuravam. Outros projetos se seguiram mas acredito que a minha grande virada
acadmica se deu no ano de 2005 quando fui convidado a fazer parte da equipe do
Encontro IFNOPAP (O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da
Amaznia Paraense) em Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arar.
Foi
a partir daquele momento que percebi o que queria ser: pesquisador. O trabalho
era rduo, cansativo, s vezes desorganizado, mas no consigo imaginar que hoje
estaria onde estou se no tivesse participado daquele evento.
Olhava
embasbacado a pessoas como Josebel Akel Fares, Frederico Fernandes, Mrio Cezar
Leite, Arion Rodrigues, Ana Suelly dentre outros. Eu os olhava, admirava e
queria um dia poder dividir uma mesa com eles.
Naquele
ano, a alegria foi tanta que alm de escrever uma pea bem humorada sobre as
agruras que vivemos, escrevi um texto em homenagem ao evento e professora
Socorro Simes. Foi a primeira vez que me imaginei pesquisador, estudante de
Mestrado e posteriormente de Doutorado, professor universitrio e quem sabe um
dia apresentando ou dividindo mesas com aqueles que tanto admirava.
No
ano seguinte, em 2006: Ponta de Pedras. Foi quando tive oportunidade de
reencontrar o professor Willi Bolle, que conhecera durante o CIELLA, rever
Fred, Mrio, Josebel e conhecer Edil Costa.
Em
2007 retornamos s origens e partimos em direo a Bragana. Agora como
estudante da ps em Lngua Portuguesa: uma abordagem textual seguimos pelos mesmo
caminhos e como sempre ajudamos aqueles que mais precisavam. Levamos o
conhecimento de todos esses grandes nomes s cidades de Bragana e Capanema.
Em
2008, j no mestrado, fomos a mosqueiro. Levamos no apenas conhecimento, mas
ajuda de parceiros como o PROPAZ. A emoo veio com a gratido das pessoas
atendidas.
No
ano de 2009 vistamos as ilhas ao redor de Belm e mais uma vez pude comprovar
que de pouco serve o conhecimento acadmico se ele no puder ser compartilhado
com a sociedade.
Um meio[2]
Alm
do projeto MultiLetras, tive oportunidade de trabalhar no projeto LAPEL e
colaborei em outros como o Oua os Mitos e Rotas do Mito. Durante as reunies
do projeto Oua os Mitos tive contato com o CD-ROM
Caleidoscpio amaznico: uma aventura em imagens e cores feito com recursos
da UNESCO (United Nations Educational,
Scientific and Cultural Organization) e da UNAMAZ (Associação
de Universidades Amazônicas). Minha primeira impresso foi de profundo
fascnio, de tal forma que, quando comecei meus estudos de doutorado sob a
orientao do professor Dr. Frederico Fernandes na Universidade Estadual de
Londrina (UEL), no pensei em outro objeto de estudo que no fosse aquele
CD-ROM.
Obtive uma cpia do material e durante alguns
dias li, reli, escutei e re-escutei cada uma daquelas historietas completamente
fascinado, porque me via em muitas delas. Reencontrava em cada uma delas o
passado, a infncia, parentes, amigos, Camet, Belm e vov, em meio s
personagens que j estavam no meu subconsciente e com quem me deparei com
prazer frente a uma proposta que eu nunca havia visto.
Naquele mesmo ano, recebi outro convite da mesma
professora para fazer parte da equipe de organizao do IX Encontro IFNOPAP.
Fomos ao Maraj, e, entre as cidades de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari,
entrei em contato com o mundo acadmico das poticas orais. Conheci professores
que reencontrei em todos os encontros posteriores, fiz amizades para toda a
vida, mas, principalmente, me reaproximei do (ou me reencontrei com o) cotidiano
de algumas comunidades to prximas geograficamente e to distantes de mim at
ento, como na noite em que sentei com alguns professores em um bar em frente
ao trapiche de Soure, onde estava ancorado o barco da nossa comitiva. O
professor Frederico Augusto Garcia Fernandes, que viria a ser meu orientador no
doutorado, conversava com um senhor de uma
maneira bem amigvel e prxima, quando me viu e disse: venha c, sente aqui.
Voc quer conhecer a narrativa oral da Amaznia, ento sente aqui.... E foi mais um momento de revelao:
passamos boa parte da noite escutando histrias de fogo-ftuo, matintas,
carroas fantasmas, mulheres cheirosas e tantas outras que me fizeram quebrar
um ritual quase sagrado que me levava todas as noites Praia do Pesqueiro, para
conversar, beber e paquerar.
Foi naquele momento que o menino da
Informtica que namorava com livros impressos durante os tempos de greve na
universidade virou um homem. Naquele instante, vi outra beleza, nem mais nem
menos bonita que a do livro impresso, nem mais nem menos bonita que a do CD-ROM, mas que emprestava boa parte
dela a um e a outro. Vi a beleza, ainda com todos os dedos que at hoje tenho
sobre o assunto, brotar ante os meus olhos e, em especial, ante aos meus
ouvidos, e eu me perguntava como aquilo foi parar naquele lugar, como
aquele cancioneiro foi parar naquele disco compacto, daquela forma, naquele
formato e com qual objetivo.
No apenas o CD mas as histrias que deram
origem s verses animadas em flash num outro formato, retextualizadas,
reoralizadas e que agora atendiam a um objetivo e pblico diverso. Por isso
mergulhei nas narrativas originais. Escutei as gravaes, procurei saber um
pouco melhor sobres os pesquisadores que haviam coletado aquelas narrativas,
mas tambm os narradores orais. Procurei imergir naquele universo to distante
de mim pesquisando nos arquivos do projeto IFNOPAP.
Aprofundei-me no estudo dos mtodos de coleta e
transcrio, analisando com cuidado os objetivos, de tal forma que pude
entender as intenes de um projeto pioneiro no Estado do Par e que enfrentou
grandes resistncias at tornar-se umas das maiores referncias em oralidade no
Norte do pas.
Neste momento, analisei os mtodos utilizados
pelo IFNOPAP com base, em especial, mas no exclusivamente, no documento
fornecido pela coordenao do Projeto: Achegas para tcnica e tica da coleta
(1994). O documento dividido em trs partes: a propsito do entrevistador,
a propsito do informante e a propsito da gravao. O ltimo item
divide-se em antes, durante e depois da entrevista.
O que primeiro chamou ateno nesta espcie de
pequeno manual elaborado pelo IFNOPAP foi o nome dado a ele: achegas, que,
segundo Vilhena, era um termo muito usado pelos folcloristas para publicaes
curtas – de cerca de trs laudas datilografadas – e indicava que o
autor pretendia apresentar hipteses gerais sobre um problema, aproximar-se
ligeiramente de um assunto, ou somente acrescentar algumas informaes a um
debate (VILHENA, 1997, p.177). O termo, outrora utilizado para aqueles
pequenos artigos, foi bem empregado para esse documento – tambm em trs
laudas – que trata de maneira geral de algumas (poucas) regras para a coleta
de narrativas.
Segundo a professora Maria do Socorro Simes, em
entrevista concedida para mim no dia 06 de janeiro de 2014, as achegas foram
feitas em parte com base na intuio dos professores que participavam do
projeto, e em parte com mtodos cientficos orientados pelo professor Cristophe
Golder, que, na poca, acabara de defender a sua tese de doutorado em semitica
pela Universit de Franche-Comt, cujo tema versava sobre o bumba-meu-boi do
Maranho.
Pensando nisso, no livro Belm conta... (1995),
o depoimento da pesquisadora Tnia Pereira me chamou ateno:
Mais um pouco de conversa e vem o aceite,
a abertura da porta, quase um ritual. Chegamos sala, sua vida, s suas
histrias. Mais um pouco e estaremos em sua cozinha, com o copo dՇgua, o cafezinho,
at o almoo. E escutamos uma infinidade de histrias, entremeadas pela
apresentao de um filho, de um vizinho, quase-parente. Nem todos so assim.
Existem aqueles que insistem em manter alheia, aos nossos olhos, a sua
intimidade. No tem importncia: seu santurio ser sempre respeitado.
Basta-nos a maneira, h uma ambiguidade: no somos um deles. Somos intrusos em
seu ninho. Mas, de repente, nos sentimos como que fazendo parte do seu mundo
(SIMES; GOLDER, 1995, p.180).
Dessa
imerso pude entender o percurso movente que fez com que aquelas narrativas
sassem do cancioneiro popular, fossem gravadas em arquivos sonoros que dessem
outra dimenso ao oral, depois fossem transcritas de acordo com critrios
preestabelecidos e posteriormente reescritas apagando grande parte de traos
latentes de oralidade. Depois disso novas vozes trabalhadas e com forte
apagamento de traos regionais as recontariam em portugus, ingls, francs e
espanhol.
As
imagens, os sons de fundo e as animaes representavam um novo ponto de vista
de tcnicos e colaboradores e as suas percepes acerca das lendas e mitos
recontadas, mas que ao mesmo tempo guardavam com os originais estreita relao
arquetpica de tal forma que no se poderia negar tal relao. Ao mesmo tempo
que tambm no se poderia dizer que
no seria um produto novo.
Outro aspecto importante desse estudo foi o de
discutir dois temas caros aos estudos das poticas orais: o uso das tecnologias
na coleta de campo e a adaptao de narrativas a outros meios. Desde o uso dos
primeiros gravadores – talvez, desconfio, desde o uso da caneta e do
papel na presena do informante – que se discute o uso de equipamentos
que proporcionem o registro da performance – realizao potica plena,
segundo Zumthor (2005, p.87) – oral e/ou gestual. As discusses versam
desde a maneira como us-los at necessidade de us-los. Sabendo que essa
discusso est longe de ser esgotada, trago-a luz aqui, bem como discuto o
processo de adaptao das narrativas orais a outras mdias distintas e suas
especificidades.
O meu fazer como pesquisador, portanto,
aproximou-se muito mais ao do antroplogo, na medida em que
a escrita etnogrfica configura-se na
prpria trade autor/tradutor/texto na conformao da prtica investigativa ao
oportunizar a sistematizao de seus pensamentos interiores e a construo de
aes estveis em relao cultura e sociedade pesquisada (ECKERT &
ROCHA, 2005, p.04).
Se, para o mercado e para a mdia que o serve, o
popular no interessa como tradio que perdura, para o acadmico, a mdia
uma maneira que aquele tem de se perpetuar, um novo caminho que percorre para
se manter vivo, transmutando-se do oral para o digital.
Aquele livro partiu do acadmico e das relaes
deste com o popular para adentrar o campo das novas tecnologias. Por isso,
tratei dos mtodos de coleta, passei pelos de gravao – dando um breve
mergulho na questo das mdias – e de transcrio, para poder chegar,
enfim, ao processo de produo do CD-ROM. Para seguir esse percurso, no
poderia ter melhor objeto de pesquisa, visto que tive minha disposio todo o
acervo IFNOPAP e sua documentao disponvel, sem a qual minha tese de
doutorado e meu livro no existiriam.
O prprio desenvolvimento da arte popular se
d a partir de transformaes (CANCLINI, 2015, p.366). Portanto, uma pretensa
morte dela seria um grande contrassenso. O ambiente acadmico e o novo suporte
so, portanto, espaos de transformao do popular.
No existem grupos de indivduos propriamente
folclricos; o que h so situaes mais ou menos propcias para que o homem
participe de um comportamento folclrico (BLANCH, 1988, p.29 apud CANCLINI,
2015, p.220). Somos capazes de nos integrar a diversas prticas sociais, e as
aqui citadas e muitas outras esto em nosso cotidiano, e podemos perceb-las
como uma experincia esttica ou fazer de conta que elas no existem como tal.
Todavia, se o pesquisador em campo precisa de
espontaneidade e deseja uma proximidade maior com o Etnotexto que pretende
estudar, a melhor forma de fazer a entrevista – que nesse caso no seria
mais uma entrevista – atravs da convivncia o mais prximo possvel da
comunidade, sem auxlio do gravador, deixando que a prpria memria do
pesquisador se confunda com a da comunidade, selecionando os fatos que o seu
inconsciente assimile e deixe aflorar no papel.
Isso comprova que a oralidade amaznica ainda
vive em som, imagem e movimento, expandindo seus horizontes e influenciando
outros meios que fazem uso dela para criar algo novo. E ainda que esses novos
meios concorram por espao com os antigos na vida das pessoas, um acaba fazendo
uso do outro num processo de retroalimentao constante num ciclo e num reciclo
ininterruptos.
Nesse sentido, as narrativas que haviam comeado
um processo de desenraizamento passaram por processos de reenraizamento por
onde passaram, seja nos meios acadmicos ou escolares por onde circularam os
udios e transcries, seja nos lares ou demais lugares por onde passaram as
cpias dos CD-ROM.
O desenvolvimento moderno no apaga as culturas
populares tradicionais, porque essa ampliao modernizadora no conseguiu
extinguir o folclore, e os estudos mostram que nas ltimas dcadas as culturas
tradicionais se desenvolveram, transformando-se (CANCLINI 2015, p. 215). Por
outro lado, as culturas camponesas e tradicionais no representam a maior parte
da cultura popular, e os meios eletrnicos so, em parte, responsveis por
isso, bem como o turismo, as migraes, a religiosidade, dentre outros
(CANCLINI, 2015, p.218).
O popular no se concentra nos objetos, porque
um mecanismo de escolha, e mesmo de inveno, projetado em direo ao passado
para legitimar o presente (BLACHE, 1988, p.27 apud CANCLINI, 2015, p.219). E,
falando da influncia interacionista e etnometodolgica: todos os objetos so dramatizaes
dinmicas da experincia coletiva (CANCLINI, 2015, p.219).
O Caleidoscpio, dessa forma, a encenao no
de uma, mas de vrias experincias coletivas agrupadas, concentrando o popular
num patrimnio de bem estvel, voltado para o passado para legitimar o
presente.
As pessoas de hoje no precisam menos dos mitos
do que as de outrora (ZUMTHOR, 2010). No entanto, a aldeia (comunidade), que
antes era um espao restrito e limitado pela geografia, agora outra, uma
Aldeia Global, lugar (ou no-lugar) do tudoaomesmotempoagora, na qual o
tempo cessou e o espao desapareceu. O CD-ROM essa materialidade que, mesmo
afastada do Etnotexto, ecoa os tambores de tribos distantes, ainda que os
escutemos na solido dos nossos computadores (MCLUHAN, 1969).
Nesse sentido, a produo de um objeto
miditico, como o Caleidoscpio Amaznico, pertinente na medida em que no se
exime do popular em prol do acadmico ou tecnolgico. Essas instncias no so
antagnicas e, portanto, no se excluem mutuamente, ao contrrio, funcionam
como complementares na contemporaneidade. Com a legitimao cada vez mais
presente do ambiente digital, quem procura separ-las e no admite a
possibilidade da relao ecumnica entre elas no est valorizando a cultura em
si, e cai na armadilha do logocentrismo.
Claro que, se tivssemos um ecumenismo maior,
desde as primeiras fases do projeto, talvez tivssemos um objeto cultural mais
prximo do Etnotexto que busca representar. Mas esse produto novo no seria uma
espcie de Etnotexto em si?
Da mesma forma que no podemos dizer que as
comunidades so apenas aquelas que vemos nos bairros pobres, interiores
pequenos, grupos excludos etc., no podemos dizer que no h Etnotexto alm
desses ambientes. O que h so pontos de vista e formas distintas de
valorizao das narrativas.
Foi tambm graas a esse trabalho de doutorado
que pude conhecer grandes colegas na UEL e compartilhar conhecimentos nos
vrios Seminrios Brasileiros de Poticas Orais como Ana Liberato e Mauren
Pavo.
O estgio doutoral em Coimbra tambm foi outra
experincia enriquecedora. Em 2015 pude ter contanto com os pesquisadores do
Grupo de Materialidades da Literatura e coorientao do professor Manuel
Portela. O perodo profcuo de troca de saberes enriqueceu a minha tese de
doutorado atravs de novas teorias e novas perspectivas com colegas de vrias
partes do mundo.
Depois de retornar, em 2016 defendi minha tese
de doutorado que em 2018 seria lanada em livro sob o ttulo Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som,
imagem e movimento com o selo da editora Paka-Tatu. Nesse mesmo ano iniciei
a minha gesto como Coordenador do Grupo de Trabalho de Literatura Oral e
popular.
Em 2019 fui convidado, por sugesto da
professora Socorro a compor a equipe tcnica da Feira Pan-amaznica do Livro e
suas multivozes. Na ocasio dividi uma mesa redonda com Mauren Pavo e pudemos
falar das relaes entre oralidade e mediao.
Nesse mesmo ano durante a gesto do GT, com
ajuda (ou talvez muito mais que isso) de Dlcia Pombo (vice-coordenadora) e Dia
Favacho (Secretria) realizamos o Quinto seminrio Brasileiro de Poticas Orais
em Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari entre os dias 13 e 16 de novembro,
com apoio do Campos da UFPA de Soure, do Campus da UEPA de Salvaterra e da
Prefeitura Municipal de Cacheira do Arari. Em parceira com o IFNOPAP, no pude
deixar de relembrar o meu primeiro evento ifinopapiano em que estive nessas
trs cidades. Foi um desafio para todos ns que alm de todas as dificuldades
dos anos estranhos que at hoje vivemos, no tnhamos um barco de apoio to
tradicional nos encontros coordenados pela professora Socorro.
Durante o evento fizemos uma singela homenagem a
Socorro Simes, com uma mesa redonda da qual participei na companhia de
Frederico Fernandes, Eder Jaster, Josebel Akel e Ana Zuelly. Tive a misso de
representar alguns aspectos da vida pessoal dela. Depois de nossas falas a
performance de Eder Jaster, a entrega de flores e a leitura de uma homenagem
feita pro professor Silvio Augusto de Oliveira Holanda (in memorian) deixou a todos bastante emocionados.
Em 2021 dei uma entrevista ao Jornal Dirio do
Par a propsito do Halloween, e dentre outras coisas usei como referncias as
histrias de assombrao do presentes no corpus do INFOPAP. Neste mesmo ano, em
dezembro, agora como como secretario do GT organizamos um grande evento on-line, devido s restries da
pandemia, de poticas orais com a presena de grandes nomes, como a professor
Ana Pizarro do Chile.
Sem Fim
Pensar em futuro acadmico sem pensar que o
IFNOPAP esteja direta ou indiretamente presente no faz parte dos meus planos.
Toda vez que imagino algum projeto de pesquisa envolvendo alunos de iniciao
cientfica ou at mesmo um possvel ps-doutorado, no consigo pensar que o
acervo ou a experincia adquiridas com o projeto no possam estar presentes.
At hoje, como colaborador do Portal Brasileiro
de Poticas Orais ainda me dedico a alimentar o site com arquivos do projeto,
tentando fazer com aqueles arquivos to valiosos aos estudos culturais no se
percam de alguma forma.
O IFNOPAP parece fazer parte de mim de tal forma
que qualquer esboo de projeto comea ou termina com ele presente em minha
mente. As vezes penso, em meio a devaneios, continuar o projeto de alguma forma
e no deixar que o legado da professora Socorro Simes se perca na dobras do
tempo. Este um projeto que mesmo dando origem a dezenas de trabalhos de
concluso de curso, dissertaes e teses ainda tem muito a oferecer
comunidade acadmica.
Referncias
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CANCLINI, Nestor Garcia. La modernidad despus de la
posmodernidad. In:
BELLUZO, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade:
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Editora da UFRGS, 2006.
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SIMES.
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[06/01/2014]. Entrevistador: Alexandre Ranieri. Belm: [s. n.], 2014. Gravao
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ZUMTHOR,
Paul. Introduo poesia oral. Belo
Horizonte: UFMG, 2010.
[Recebido:
10 dez 21]
DOSSI
Corpo-velho: reflexes sobre
o envelhecimento feminino em narrativas orais da Matintaperera
Old body: reflections on female
aging in the oral narratives of Matintaperera
Andressa de Jesus Arajo Ramos[3]
https://orcid.org/0000-0002-1113-443X
Maria
do Perptuo Socorro Galvo Simes[4]
https://orcid.org/0000-0001-7678 -2895
Rafaella Contente Pereira da Costa[5]
https://orcid.org/0000-0001-6692-7763
Rubenil da Silva Oliveira[6]
https://orcid.org/0000-0001-9846-4695
Resumo: De acordo com
Lesnoff-Caravaglia (1984), o cenrio atual ensina e conserva a depreciao da
mulher idosa, iniciando com a representao da mulher velha nas histrias
tradicionais como bruxas, feias e malvadas. A anci , conforme Salgado (2002),
universalmente ofendida e enxergada como uma carga. parcela de uma maioria
invisvel cujas dificuldades emocionais, econmicas e fsicas continuam, em sua
maioria, ignoradas. Contudo, os resultados de nossa pesquisa no acervo do O
Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense
(IFNOPAP) apontam para uma nova traduo do envelhecimento feminino, atravs
das narrativas orais da Matintaperera, que no vem carregada de imagens
negativas, preconceituosas e nem estereotipadas, pois trazem histrias de
mulheres velhas que continuam se divertindo, cantando, danando, desejando e
sendo desejadas, no esto isoladas da sociedade e nem habitam em cavernas, mas
que buscam e valorizam o contato com o outro. Em vista disso, este
trabalho reflete sobre o envelhecimento feminino em narrativas da
Matintaperera. Trata-se de uma pesquisa bibliogrfica, com abordagem
qualitativa, cuja metodologia consistiu em: a) reviso da literatura; b) o
estudo da velhice; c) o exame das narrativas orais da Matintaperera; d) seleo
de dois contos da Matinta; e) anlise literria das narrativas escolhidas.
Palavras-Chaves: Corpo-velho; Velhice; Feminino; Narrativas Orais; Matintaperera.
Abstract: According
to Lesnoff-Caravaglia (1984), the current scenario educates and conserves the
depreciation of the elderly woman, beginning with her representation in
traditional stories as witches, ugly, and wicked. According to Salgado (2002),
the elderly woman is universally reviled and considered a burden. She is part
of an invisible majority whose emotional, financial, and physical difficulties
are mostly ignored. However, the findings of our research in the collection
"The Imaginary in Popular Oral Narrative Forms of the Paraense Amazon (IFNOPAP)"
point to a new translation of female aging via Matintaperera's oral narratives,
one that is not laden with negative, prejudiced views and stereotypes because
they bring stories of old women who continue to have fun, singing, dancing,
wishing and being desired. Women who are not isolated from society and do not
live in caves but seek and value contact with others As a result, this research
focuses on female aging in Matintaperera narratives. It is a bibliographic
study with a qualitative approach, which employs the following methodology: a)
literature review; b) study of old age; c) examination of Matintaperera's oral
narratives; d) selection of two Matinta tales; and e) literary analysis of the
chosen narratives.
Keywords: Old body; Old age; Female;
Oral narratives; Matintaperera.
Introduo
A
professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de
Ps-graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mirian Goldenberg em
sua obra Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade (2008)
salienta que na cultura brasileira atual, certo padro de corpo um bem,
talvez o mais cobiado pelos sujeitos das classes mdias urbanas e tambm das
classes mais humildes, que o percebem como um importante meio de ascenso
social. Nesse sentido, o corpo um capital, que alm de fsico simblico,
econmico e social. Desde que seja um fsico [] sexy, jovem, magro e em boa
forma (GOLDENBERG, 2008, p. 15).
A
apologia forma perfeita foi, nas palavras de Goldenberg
(2008), uma das mais terrveis fontes de insatisfao feminina no sculo
XX. A compulso pelo emagrecimento virou, efetivamente, uma epidemia. E, a
procura pelo corpo pleno foi entendida como uma regresso no processo de
emancipao da mulher.
Dados da poca comprovam, conforme Goldenberg (2008), que a
brasileira se tornou campe na tentativa de ter um corpo impecvel. A revista Time
destacou esse fato, trazendo na capa a imagem da apresentadora, cantora e
danarina brasileira Carla Perez, acompanhada da seguinte legenda: A mania pela cirurgia plstica: as mulheres
latino-americanas esto esculpindo seus corpos como nunca antes - nos moldes da
Califrnia. Seria isso um imperialismo cultural? (GOLDENBERG, 2008, p. 52,
traduo nossa)[7].
Segundo o cirurgio plstico Pedro Nery Bersan que publicou uma notcia no
Jornal do Estado de Minas, em 2019, o Brasil ocupa o 2 lugar no ranking
mundial de Cirurgia Plstica, ficando atrs somente dos Estados Unidos. O
recente estudo da Sociedade Internacional de Cirurgia Plstica e Esttica
(Isaps) demonstrou que os brasileiros efetuaram cerca de 2,5 milhes de
procedimentos em 2017, correspondendo a 10,4% das cirurgias estticas mundiais.
Desse
modo, em uma cultura em que o corpo um capital no mercado do casamento, no
mercado sexual e no mercado profissional, o fsico gordo, envelhecido ou fora
de forma , como ressalta Goldenberg (2008), rejeitado por muitos e,
principalmente, pelas mulheres brasileiras que apresentam um verdadeiro pavor
de envelhecer. Isso acontece, na verdade, porque ela foi destinada a ser, na
viso do homem, um objeto sexual e a partir do momento, no qual se torna
envelhecida e feia perde o seu espao, o qual foi determinado pela sociedade,
tornando-se assim [...] um monstrum que suscita repulsa e at mesmo
medo (BEAUVOIR, 2018, p. 129, grifo da autora). Para o poeta lrico e satrico
romano Horcio:
A aparecia da mulher idosa
hedionda: Teu dente preto. Uma antiga velhice cava rugas em tua fonte...teus
seios so flcidos como as mamas de uma jumenta. Ela cheira mal: Que suor,
que horrvel perfume se desprende, por todo lado, dos seus membros flcidos
(BEAUVOIR, 2018, p. 128-129).
Contudo, os resultados
de nossas investigaes no acervo do IFNOPAP revelaram uma nova traduo[8] da velhice feminina, que
no vem carregada de preconceitos e nem de esteretipos, mas de novidade,
contemporaneidade e liberdade, uma vez que as mulheres velhas[9] descritas nos contos
analisados no so assustadoras, nem usam roupas rasgadas e nem realizam o mal,
como nas narrativas tradicionais. Mas so mulheres comuns, capazes de se
apaixonar, de encantar as pessoas, sentir desejos e no vivem isoladas em casa
ou em cavernas, alm de apreciarem o contato com o Outro.
Em
vista disso, o objetivo geral deste trabalho foi refletir sobre o
envelhecimento feminino em narrativas da Matintaperera, recolhidas pelo
IFNOPAP. Para tanto nos amparamos nos estudos de Beauvoir (2018), Mucida
(2018), Goldenberg (2008), (2017), Zimerman (2007), Vieira (2007), Viana
(2013), Salgado (2002), entre outros. A metodologia consistiu, primeiramente,
em uma reviso da literatura, depois um estudo sobre a velhice e/ou
envelhecimento, em seguida, o exame das narrativas
orais da Matintaperera, aps isso, selecionamos quatro contos da Matinta e, por
fim, a anlise literria das narrativas escolhidas.
Este
artigo, alm desta Introduo e das Consideraes Finais, apresenta duas
sees. A primeira, intitula-se Velhas, bruxas e Matintas: reflexes sobre
o envelhecimento feminino reflete sobre a associao entre a mulher
velha e a bruxa, para isso, fizemos um resgate histrico da representao
feminina, na fase de transio do mundo medieval ao mundo moderno. Alm disso,
nessa seo tambm apresentamos a associao que feita entre a velha e o mito
da Matintaperera. A segunda seo, por sua vez, designada A velhice no
imaginrio nas formas narrativas orais populares da amaznia paraense apresenta a anlise literria
de dois contos da Matinta, recolhidos pelo IFNOPAP.
Velhas,
bruxas e matintas: reflexes sobre o envelhecimento feminino
Beauvoir
(2018) acentua que tanto na Antiguidade quanto no folclore, a mulher velha foi
constantemente associada a uma feiticeira. Franois Rabelais retrata a sibila
de Panzoust com caractersticas de uma anci em condio deplorvel, visto que
estava [...] malvestida, malnutrida, desdentada, remelosa, curvada, nariz
escorrendo (BEAUVOIR, 2018, p. 158). Essa aproximao entre a mulher velha e a
bruxa foi construda no passado e vem carregada, de acordo com Vieira (2007),
de preconceitos e esteretipos.
A
bruxa imaginada como sendo uma [...] mulher, velha, cansada, solteira, de
cabelos brancos, com uma verruga no nariz e possuidora de uma risada
assombrosa (VIEIRA, 2007, p. 01). Essa representao negativa da bruxa pode
ser confirmada no Dicionrio, que a define como uma [] mulher muito feia e/ou
azeda e mal-humorada (HOUAISS, 2009, p. 333).
Neste sentido, os livros infanto-juvenis costumam narrar histrias onde existe
uma fada boa e formosa, s vezes loira, e uma bruxa m e monstruosa.
Como
vimos, a bruxa descrita, na maioria das histrias tradicionais, como uma
velha de aparncia assustadora e que realiza o mal. Porm tambm encontramos
narrativas, nas quais ela vista como algum est sempre doente, que apresenta
[...] alguma deficincia fsica, idosa, mentalmente
perturbada (VIEIRA, 2007, p. 01-02).
As bruxas, no fim da
Idade Mdia e incio da Idade Moderna foram perseguidas pela Igreja Catlica
porque, de acordo com Viana (2013), efetivaram um pacto com o Belzebu, atravs
do qual desprezavam o catolicismo. Esse movimento de perseguio religiosa e
social ficou conhecido como a Caa s bruxas que durou [] aproximadamente
trs sculos, comeando em 1450 e terminando em 1750 com a ascenso do
Iluminismo (VIEIRA, 2007, p. 02). Na realidade, as bruxas no apareceram
automaticamente, mas foram
[...] fruto de uma campanha
de terror realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres realmente
pertenciam bruxaria, porm, criou-se uma histeria generalizada na populao,
de forma que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que eram mesmo
bruxas e que possuam um pacto com o demnio. (VIEIRA, 2007, p. 02).
No livro Malleus
Maleficarum (O Martelo das Bruxas ou O Martelo das feiticeiras), Heinrich
Kraemer e James Sprenger explicavam que as bruxas se aliavam, conforme Viana
(2013), aos diabos em sabats, orgias
e ritos de profanao aos sinais do cristianismo. Seres diablicos eram
convocados em preces que combinavam frases crists com vocbulos e sinais
hereges. Os inquisidores do sculo XV revelam que as bruxas deliberavam seus
sacrilgios atravs de contrato explcito de lealdade, concebido no coito
carnal com os diabos. O voto sacrilgio poderia ser realizado em ritual pblico
ou em qualquer hora em segredo. Em troca de sua alma, as bruxas ganharam
poderes que eram usados para causar problemas temporais.
Para
Kramer e Sprenger todas as bruxas entregavam-se, segundo Viana (2013), de corpo
e alma prtica do mal. As aparentes bruxas eram reconhecidas por um grupo de
aspectos fsicos e comportamentais e incriminada de entregarem-se,
constantemente, a todo tipo de atos libidinosos com ncubo e scubos. As
crianas cujas mes, por justificao de algum distrbio passional ou mental,
ofertavam o filho, cegamente, desde o ventre, ao Demnio, eram a todo momento,
at a sua morte, propensas perpetrao da bruxaria. Normalmente, todas as
crianas no batizadas estavam em perigo, pois as bruxas as consumiam ou
ofereciam a Lcifer.
Kramer
e Sprenger confessavam que as bruxas exterminavam, nos estudos de Viana (2013),
os animais e arruinavam as plantaes. Eram capazes de seduzir animais e homens
unicamente com um sinal de mos ou com o olhar. Elas tambm recorriam a
feitios ou amuletos, que eram guardados sempre em locais discretos ou
secretos. Acreditava-se que, atravs delas, os demnios seriam capazes de produzir
raios, tempestades comuns e de pedras; levar a infecundidade aos animais e aos
seus donos; intoxicar rios e poos; exterminar lavouras com a utilizao de
lagartas daninhas ou grandes nuvens de gafanhotos. As bruxas tinham poder de se
metamorfosear em animais, como cachorro, gato, lobo e serpente, e de
transformar homens em feras. Para Kramer e Sprenger, todas as doenas do corpo,
at mesmo a lepra ou a epilepsia, poderiam ser, nas palavras de Viana (2013),
promovidas pelas bruxas. Elas tambm usavam ervas que deixavam os homens
alegres, tristes, tontos ou loucos. Com ajuda diablica, elas podiam, pois,
afetar os sujeitos de todas as formas possveis, desgraando-os em suas
profisses, em sua reputao, em seu corpo, em seu intelecto e em suas vidas.
Vieira
(2007) destaca que quando revivemos o contexto histrico da Idade Mdia, vemos
que bruxas poderiam ser as parteiras, as enfermeiras e as suas auxiliares.
Dominavam e compreendiam o uso de plantas medicinais para a cura de
enfermidades e epidemias nas comunidades em que moravam e, regularmente,
possuam um alto poder social. Elas eram, constantemente, a nica esperana de
atendimento mdico para mulheres e indivduos carentes financeiramente. Elas foram, por um longo tempo, mdicas sem ttulo. Aprendiam
o ofcio umas com as outras nas noites das igrejas e repassavam esse
conhecimento para suas descendentes, vizinhas e confidentes. O semilogo,
antroplogo e filsofo colombiano Jess Martn-Barbero ressalta que:
Eram as mulheres que presidiam as viglias,
as reunies das comunidades aldes ao cair da tarde, nas quais se conservaram
alguns modos tradicionais de transmisso cultural. Viglias em que, junto ao
relato de contos de terror e de bandidos, faz-se a crnica dos sucessos das
aldeias, transmite-se uma moral de provrbios e partilham-se receitas
medicinais que renem um saber sobre as plantas e o ciclo dos astros. A bruxa
representa, junto com os levantes, segundo Michelet, um dos modos de expresso
fundamentais da conscincia popular (MARTN-BARBERO apud VIEIRA, 2007, p. 02).
Na verdade, essas
mulheres concebidas como bruxas no estavam, segundo Vieira (2007), utilizando
poderes sobrenaturais para produzir suas poes, o que muitos assistiam como a
prtica de bruxaria eram na realidade, os incios do que atualmente conhecemos
como aromaterapia, fitoterapia e farmacologia domstica. Alis quem de ns
nunca foi curado de uma gripe com um chazinho feito pela nossa av? Para essas
senhoras, a produo de tais poes no era um simples modo de colocar todos
os elementos juntos, acompanhar as instrues e aguardar o resultado. Essas
senhoras estavam, mesmo que inconscientemente, experimentando suas poes,
elas possuam oportunidades para pensar/estudar e obter conhecimento com seus
erros e acertos. Em uma viso patriarcal, era muita informao para uma mulher.
Alm dessa possvel intimidao ao domnio da ordem simblica, a ocorrncia
dessas mulheres utilizarem seus saberes para a eliminao de epidemias que por
acaso sucediam em seus vilarejos, desencadeou a [...] ira da instituio
mdica masculina em ascenso, que viu na Inquisio uma maneira de eliminar
suas concorrentes (VIEIRA, 2007, p. 02).
Lamentavelmente, muito sobre medicina natural que hoje poderia salvar vidas foi
exterminado quando [...] essas mulheres foram queimadas nas fogueiras ou
enforcadas. Percebo que no somente os corpos foram ali queimados, mas tambm
seus manuscritos, ervas, poes, e seus conhecimentos anotados (VIEIRA, 2007, p. 02).
Carvalho
(2013) salienta que Russel e Alexander asseguram que bruxas existem, e que nos
dias de hoje a bruxaria reconhecida como religio. Portanto devemos denunciar
uma imagem formada pela Inquisio e repassada atravs do tempo no imaginrio,
alm disso a estudiosa salienta que precisamos deixar claro que h alguns
grupos com particularidades normalmente alusivas bruxaria, mas que no so: o
curandeiro que realiza magia com o intuito de derrotar bruxaria, a possesso
que a carga interna de maus espritos, e a obsesso que o repente externo e
fsico por maus espritos.
Em
resumo, a transformao da feitiaria em algo ruim foi, no entendimento de
Carvalho (2013), um profundo processo de mudana da sociedade e da religio
pag, mesmo que de forma gradativa ocorreu em toda a Europa Ocidental. Santo
Agostinho, como grande lder cristo afirmava que [...] a magia, a religio e
a feitiaria pags eram obras inventadas pelo diabo e ao referenciar deuses
pagos, ciente ou no do feito estavam na verdade invocando demnios
(CARVALHO, 2013, p.173). Essa justificativa utilizada pelo Santo e pela Igreja
converteu no catlicos em efetivos monstros confiantes da recm-nascida
divindade, que corria perigos diante da ameaa cruel, por isso deveria ser
destruda para [] no atrapalhar a salvao do mundo, pois a prtica de
feitiaria era um crime contra a sociedade e contra Deus. (CARVALHO, 2013,
p.173).
Josebel
Akel Fares (1997) acentua que os termos Bruxas e Feiticeiras aparecem, em alguns
autores, com significados distintos e estes, essencialmente, coabitam na
indissociabilidade da natureza, ou no, dos artifcios mgicos. Na viso de
alguns estudiosos, a feitiaria :
[] uma prtica aprendida, no inata.
As feiticeiras estudam o uso dos elementos animais, minerais e vegetais para
elaborara seus fluidos, ungentos, chs que receitam para aqueles que as
procuram, no importam se os remdios curam feridas ou abrem chagas (FARES,
1997, p. 138).
Por outro lado, as
Bruxas, na concepo de alguns autores, estudados por Fares (1997) possuem,
igualmente, a faculdade de elaborar receitas mgicas, entretanto este dom
inato, isto , nasce com elas. Neste estudo, assim como Fares (1997),
consideramos os vocbulos (bruxas e feiticeiras) como sinnimos, pois ambas se
descobrem e mudam de trajetria, e aqui so pensadas como sujeitos que []
desenvolvem prticas mgicas, seja para ajudar espritos demonacos
incorporados, seja por dom hereditrio, seja por estudiosos e experimentaes
(FARES, 1997, p. 138 – 139).
Como
observamos, a mulher velha foi historicamente e culturalmente comparada a uma
bruxa europeia, descrita como [...] enrugada, vesga, s vezes, desdentada ou
com alguns cacos negros espalhados pela boca babosa, verruga peluda no queixo
protuberante ou na ponta do enorme nariz adunco (SOUZA, 1995, p. 14). Alm
desse aspecto amedrontador, a anci tambm foi constantemente associada a
algum que est com uma doena muito grave, podendo morrer a qualquer momento.
Essa associao entre a velha e a bruxa faz com que tanto a mulher como a
velhice sejam vistas de forma negativa e estereotipada. No caso da mulher isso
acontece porque no patriarcado, sob dominao masculina, o corpo feminino foi
limitado, segundo Cesidio e Boris (2007) a ser
um objeto sexual, uma vez que seu corpo era sujeitado ao prazer e ao desejo do
homem. No casso da velhice isso ocorre porque no fomos ensinados a conceber a
senescncia como um processo natural, pois vivemos em
[...] uma
cultura em que os jovens e adultos procuram ignorar a realidade do
envelhecimento gradual de cada um. Com o progresso moderno, diminumos o valor
do envelhecer, no consideramos o idoso como detentor de extensos e slidos
conhecimentos, talentos e experincias que podem auxiliar as geraes futuras.
(GUIMARES, 2007, p. 14).
Sobre a aproximao entre
as mulheres velhas e as bruxas podemos mencionar o mito da Matintaperera[10]. Essa lenda conta a
histria de uma anci que se metamorfoseia em pssaro durante a noite. A
maioria das narrativas clssicas dessa personagem apresentam uma viso
distorcida, negativa e preconceituosa dessa entidade e, sobretudo, da velhice
feminina que a coloca como sendo uma mulher de aparncia assustadora,
debilitada e doente, que realiza o mal devorando as crianas e trazendo
epidemias e enfermidades as comunidades locais.
Figura1 - Imagem do rosto da Matintaperera com
tratamento digital
Fonte: (COSTA, 2013, p. 91)
Na
cultura indgena, a Matintaperera concebida, de acordo com Carvalho (2014),
como uma perigosa feiticeira, ou melhor, como uma bruxa velha que, na
juventude, cometeu graves pecados e, por conta disso, precisa cumprir o fado.
Cumprir o fado significa efetivar o destino que foi estabelecido por intermdio
de uma fora sobrenatural. Os indivduos que cumprem um fado, nas palavras de
Carvalho (2014), so julgados como sujeitos que efetivaram [] um pacto com o
demnio em troca de alguma vantagem ou vinganas pessoais, recebendo por isso
uma punio, como a de se transformarem em animais durante a noite (CARVALHO,
2014, p. 225). Cmara Cascudo, por sua vez, defende que a Matinta o nome de
[...] uma pequena coruja, que se
considera agourenta. Quando, a horas mortas da noite, ouvem cantar a
mati-taper, quem a ouve e est dentro de casa, diz logo: Matinta, amanh podes
vir buscar tabaco. Desgraado – deixou escrito Max. J. Roberto, profundo
conhecedor das coisas indgenas – quem na manh seguinte chega primeiro
quela casa, porque ser ele considerado como o mati. A razo que, segundo a
crena indgena, os feiticeiros e pajs se transformavam neste pssaro para se
transportarem de um lugar para o outro e exercer suas vinganas. Outros
acreditam que o mati uma maaiua, e ento o que vai noite gritando
agoureiramente um velho ou uma velha de uma s perna, que anda aos pulos
(CASCUDO, 2012, p. 442).
Contudo, os resultados
de nossas investigaes das narrativas orais da Matintaperera, recolhidas pelo
IFNOPAP revelaram uma nova traduo da
velhice feminina, que no vem carregada de preconceitos e nem de esteretipos,
mas de novidade, contemporaneidade e liberdade. Nesse sentido, na prxima seo
apresentamos a anlise de dois contos da Matintaperera, ambos recolhidos pelo
IFNOPAP, retiradas da coletnea de textos Abaetetuba conta, que
refletem sobre a representao da velhice feminina.
A
velhice no Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia
Paraense
[]
tornavam a contar que essa velha era Matintaperera
(SIMES;
GOLDER, 1995c, p. 20).
Comeamos,
pois, esta seo de anlise literria com fragmento do conto Fiu! Fiu!,
narrado por Manoel da Fonseca e recolhido pelo Projeto IFNOPAP, que revela
histria de Dona Laura, uma mulher de 70 anos que se transformava em
Matintaperera, visto que [] L, tinha uma velha chamada Laura, uma velha,
uma velha, assim, de uns 70 anos, sabe? E essa velha, tornavam a
contar que essa velha era Matintaperera (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 20,
grifo nosso). Percebeu-se, neste
trecho de narrativa, que a palavra velha comparece cinco vezes, confirmando
assim a intensa relao entre a personagem e a senescncia.
A
velhice retratada na maioria das histrias tradicionais da Matintaperera
caracterizada, geralmente, pela presena acentuada de adjetivos negativos, que
contribuem para uma viso preconceituosa e estigmatizada do envelhecimento
feminino. Consoante Ribeiro (2007), Aristteles concebia a senescncia como uma
quarta idade, determinada pela senilidade[11], degenerao e doena,
colocando a senectude nos 50 anos de idade. Hipcrates relacionou a senioridade
ao Inverno aos 56 anos. Sneca (4-65 D.C.) tambm considerou a velhice numa
viso negativa, como uma enfermidade incurvel.
Ribeiro
(2007) salienta ainda que na Idade Renascentista e na Idade Mdia, a compreenso
negativa do envelhecimento continuou a manifestar-se: a mulher velha era
concebida como bruxa e cmplice de agentes demonacos, e os velhos no coletivo,
eram enxergados como submissos e escravos dos mais fortes. Nesta poca, Santos
(2008) evidencia que se destacava, especialmente a juventude e a formosura das
mulheres juvenis.
Contudo,
veremos nesta seo uma nova traduo do envelhecimento feminino, atravs das
narrativas orais da Matintaperera, recolhidas pelo IFNOPAP, que revelam
histrias de mulheres comuns, que envelheceram, mas que continuam passeando, se
divertindo, cantando, danando, se apaixonando, amando, desejando e sendo
desejadas, no esto isoladas e nem escondidas em cavernas, mas que buscam e
valorizam o contato com o outro (alteridade).
Voltando
ao conto Fiu! Fiu!, o narrador conta que, certo dia, Dona Laura ficou doente
de uma febre muito forte que
levou muitos sujeitos a bito e como era costume dos mais velhos socorrer quem
estivesse enfermo, Raimundo terminou de fazer a farinha no final da tarde, umas
seis e meia e decidiu ir do trabalho direto casa da velha Laura para prestar
socorro. Porm, no meio do caminho algo inusitado aconteceu, ela pulou: []
Pah! E suspendeu a bunda pra cima e a saia, e acendeu a bunda pro lado dele e
fez assim: -Fiu, Matintaperera! A, ela se endireitou e disse: - Agora vai
contar, ouviste? (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 21). Neste conto, observamos que
Raimundo se surpreende com uma idosa cheia de energia, vitalidade e muita
sensualidade. A velha demonstrou ainda no se preocupar com o julgamento da
sociedade em relao ao seu corpo envelhecido, dado que quando viu Raimundo no
escondeu seu corpo e nem o rejeitou, mas o aceitou e o exibiu, provando a ele e
a todos que o seu corpo-velho no feio, o que ridculo o preconceito em
relao a ele. Nesta narrativa, tambm possvel fazermos uma reflexo em
torno da sexualidade feminina na velhice, uma vez que foi estabelecido um
prottipo que a velha um sujeito assexuado e isso uma crena que no se
sustenta.
Carmen
Salgado (2002) salienta que a cultura hispano-americana, especialmente,
assimila a sexualidade da mulher velha como fonte de risibilidade,
apresentando-se como cmica e inapropriada. Esse preconceito acontece, em
geral, ao igualar equivocadamente a sexualidade feminina a sua potencialidade
reprodutiva. Essa discriminao para com a anci est profundamente associada
ao [...] sexismo e a extenso lgica da insistncia de que as mulheres valem
na medida em que so atrativas e teis ao homem (SALGADO, 2002, p.12). Dentro
desta situao, isto , na persistncia das mulheres de serem atraentes a
aproximao delas com a velhice resulta aterrorizante e assustadora e terrvel,
pois elas tm sido [...] socializadas e treinadas para temer a velhice.
Negando o prprio processo de envelhecimento (SALGADO, 2002, p.12).
Porm,
Arajo e Carlos (2018) destacam que a sexualidade no se restringe ao ato
sexual em si, mas sim em uma combinao de prazer, cumplicidade e amor entre
dois indivduos, como modo de percepo de seu corpo e do outro.
Dependendo da maneira como a velhice concebida e das transformaes que ela
pode sofrer em inmeros aspectos da vida, o sexo nesse estgio pode sim
promover liberdade e garantir o prazer. E, para isso necessrio que a velha
use sua criatividade para alcanar novas maneiras de satisfao.
O
conto, intitulado Fite!, narrado por Joana dArc nos revela a histria de
uma velha, que surgiu no meio do trajeto da viagem de um grupo de msicos a
bordo de uma canoa, pedindo carona, os quais atenderam o seu pedido. Depois de
colocarem a idosa na canoa, eles saram, foram remando, remando e de repente,
Ela virou a bunda pra cima e deu um assobio. – Fite! Matintaperera. Ela
fez (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 175). Como podemos observar nesta narrativa, a
mulher velha no est isolada da sociedade e nem do mundo e muito menos est
deitada em casa deprimida, esperando a morte chegar, mas est querendo, assim
como todo mundo, passear, viajar, se divertir, caminhar, estar entre os velhos,
mas tambm entre os jovens, entre os msicos. A mulher velha, nesta narrativa,
quer andar de canoa, participar de eventos, apresentaes, shows, amar e ser
amada, desejar e ser desejada, dar e receber carinhos. Desse modo, este conto
nos revela que a mulher na velhice no deixou de ter os mesmos sentimentos da
juventude e nem intil porque deixou de ter filhos, ela continua [...]
cantando, danando, criando, amando, brincando, trabalhando, transgredindo
tabus etc (GOLDENBERG, 2017, p. 11).
Como
podemos observar, anteriormente, as duas narrativas orais da Matintaperera nos
revelam histrias de mulheres velhas que no so seres repugnantes e
assustadores que realizam o mal, fazendo aluso s bruxas europeias, mas que
trazem uma nova traduo da velhice feminina, pois elas se tratam de velhas
agitadas, animadas e que valorizam o contato com o outro.
As
velhas dos contos ifnopapianos no sentem vergonha de seus corpos envelhecidos,
mas os revelam, sem medo, sem tabu, o que traz reflexes importantes em relao
a velhice e a sexualidade. Alm disso, notamos nos contos que as idosas no
querem apenas estar apenas com pessoas da idade delas, mas querem conversas com
outras velhas e tambm com jovens, adolescentes e crianas para trocar
experincias, pois elas tm muito o que falar e ensinar, comprovando assim que
a velhice no interfere nas relaes sociais e na sexualidade, no querem
tambm ficar presas em casa, mas sair, viajar, passear, namorar e se
divertir.
Conhecer
essas histrias de Matintapereras, representadas por mulheres velhas
importante, pois nos revelam um novo olhar sobre a velhice feminina, para no
cairmos nos erros de acharmos que as velhas de hoje (sculo XXI) so as mesmas
de outrora, isso est mudando, pois elas no esto em cavernas, no esto
trancadas em casa. Elas so de uma nova gerao que, segundo Goldenberg
(2017), modificou comportamentos e conceitos, que tornou a sexualidade natural
e prazerosa, que criou variados arranjos amorosos e conjugais, que legitimou
modernas formas de famlia e que expandiu as chances de ser me, pai, av e
av.
Consideraes finais
Este artigo objetivou
refletir sobre o envelhecimento feminino em narrativas da Matintaperera,
recolhidas pelo IFNOPAP. Para tanto tivemos com referencial terico os estudos
de Beauvoir (2018), Mucida (2018), Goldenberg (2008), (2017), Zimerman (2007),
Viana (2013), Vieira (2007), Salgado (2002), entre outros.
Consideramos
ter alcanado nosso objetivo geral, uma vez que apresentamos a anlise
literria de dois contos da Matintaperera, da coletnea Abaetetuba conta que
revelaram uma nova traduo da mulher na velhice, que no vem repleta de
preconceitos e nem de esteretipos, mas de novidade, contemporaneidade e
liberdade, uma vez que elas so descritas como mulheres comuns, como todos ns,
capazes de se apaixonar, de encantar as pessoas, sentir desejos e que no vivem
isoladas, mas que apreciam o contato com o Outro.
Nesta
pesquisa fizemos importantes reflexes sobre a aproximao que se estabeleceu
historicamente e culturalmente entre a velhice e a bruxa, trazendo o pensamento
de Beauvoir (2018), os estudos de Viana (2013) e Vieira (2007) sobre a
representao de mulher velha no perodo de transio entre o mundo medieval
para o moderno, bem como as contribuies tericas de Carvalho (2013) sobre a
noo que temos hoje de bruxaria. Alm disso, tambm discorremos sobre relao
entre a velhice, a bruxa e Matintaperera, apresentando as definies da
personagem.
Acreditamos
que esta pesquisa trar importantes contribuies ao estudo da velhice
feminina, pois em nossas investigaes nos Repositrios Institucionais on-line
das renomadas Universidades verificamos que existem pouqussimos trabalhos
sobre esse tema na rea de Cincias Humanas, sobretudo, nos Cursos de Doutorado
em Letras (Literatura) e essa carncia acaba se tornando algo extremamente
preocupante, pois nos impede de desenvolvermos nossa funo social, enquanto
literrios que o de humanizar os sujeitos atravs dos textos literrios, conforme
afirma Antnio Candido (1989). Desse modo, este estudo, alm de nos ajudar a
desenvolvermos nossa funo social enquanto literrios nos possibilitar
entendermos a mulher velha para alm de suas representaes fsicas, dado que o
envelhecer no pressupe apenas mudanas corporais, mas tambm psicolgicas,
sociais, econmicas, polticas e culturais.
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[Recebido: 16 abr 21 -
Aceito: 16 mai 21]
O maravilhoso amaznico, uma potica da
alteridade
The Amazonian Marvellous, Poetics of
Alterity
Sylvia Maria Trusen[12]
https://orcid.org/0000-0003-4248-929X
Resumo:
De modo geral, as pesquisas em torno das narrativas tradicionais de fundo
maravilhoso assentam-se sobre a dicotomia real x fabuloso, natural x
sobrenatural, verossmel x inverossmel, conforme lemos nas postulaes de
Todorov (1975), Bessire (1974), Max Lthi (1992), Hetmann (1982), dentre
outros. Contudo, quando tais teorizaes so confrontadas com o corpus
narrativo de tradio mtica e oral, recolhido na Amaznia Paraense, elas
revelam-se insuficientes para tratar da recepo do maravilhoso neste
territrio, uma vez que tais narrativas no se escoram na antinomia assinalada
acima. Partindo de tal constatao,
elegeu-se a categoria da alteridade, conforme proposio de Victor Bravo,
sugerindo, assim, possvel clave para o estudo do que nomeia-se aqui
maravilhoso amaznico. Desse modo, revistando os textos consagrados em torno do
gnero, tais como o Introduo
literatura fantstica (T.
Todorov), Das europische
Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit fantastique (I. Bessire), por um lado, e, por outro, a
recolha de narrativas da Amaznia paraense efetivada pelo Projeto O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais
Populares da Amaznia Paraense, o
artigo destaca a categoria da alteridade como termo de importncia central para
a leitura de tais narrativas.
Palavras-Chave: Maravilhoso, Alteridade, Amaznia
Abstract: In general, the research of the
traditional narratives with a background of the Marvellous are based on the
real dichotomy x fabulous, natural x supernatural, verossimel x unlikely, as we
read in the postulations of Todorov (1975), Bessire (1974), Max Lthi (1992),
Hetmann (1982), among others. However, when such theories are confronted with
the narrative corpus collected in the Amazon Region of Par, they are
insufficient to deal with the reception of the marvellous in this territory,
since such narratives do not stand in the antinomy indicated above. Starting
from this observation, the category of alterity was chosen, according to Victor
Bravo's proposition, thus suggesting a possible key to its study. Thus, reviewing the established texts
around the genre, such as Introduction to fantastic literature (T.
Todorov), Das europische Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit
fantastique (I. Bessire), on the one hand, and, on the other, another, the
collection of narratives from the Par Amazon carried out by the Project O
Imaginrio nas Formas Oral Narrativas Populares da Amaznia Par, the
article highlights the category of alterity as a term of central importance for
the reading of such narratives.
Keywords: Marvellous, Alterity, Amazon
O
ttulo dado a este trabalho coloca a quem o escreve e, possivelmente, a quem o
l, diante de pelo menos duas indagaes – o que o autor deste texto
compreende por maravilhoso amaznico, e qual o elo vislumbrado com o que se
denomina potica da alteridade.
O termo
maravilhoso, recorrente na teorizao que se debrua sobre as fronteiras da
literatura do fantstico (TODOROV, 1975)
ou, de modo mais abrangente, do inslito (GARCIA, 2012) frequentemente
invocado para tratar de uma multiplicidade de formas artsticas – no s
literrias (SCHUHL, 1969) – que por si s demandaria uma vasta reviso
bibliogrfica, inexequvel nos limites de um artigo. Schuhl (1969) j o anotou,
advertindo que para dar conta de sua magnitude haveria que se enveredar por
sendas to diversas como as do maravilhoso religioso, ferico, utpico, mtico,
cientfico, etc. Todorov (1975), de modo mais conciso, referiu-se a trs modos
de representao do maravilhoso na literatura – o extico, o hiperblico
e o intelectual – ao passo que I. Chiampi (1980) teorizou acerca do
realismo maravilhoso estabelecendo as balizas para a distino do realismo
mgico.
Face
amplitude dos estudos e diante das mltiplas configuraes que o gnero pode
assumir, importa aqui ater-se apenas aos trabalhos cuja leitura torna-se
necessria para compreenso do que se designa maravilhoso amaznico. Inevitvel
no percurso deste texto o Introduo
literatura fantstica, obra na qual o fantstico descrito como gnero
evanescente, provisoriamente sustentado sobre as hesitaes das personagens (e,
por extenso, do leitor implcito), diante de uma realidade, tornada a seus
olhos inverossmil ou inacreditvel. O maravilhoso, por conseguinte,
constituiria gnero, em que se encena o sobrenatural sem que os fenmenos
descritos despertem qualquer reao de assombro por parte do leitor.
No fim da
histria fantstica, o leitor, quando no a personagem, toma, contudo, uma
deciso, opta por uma ou outra soluo saindo desse modo do fantstico. Se ele
decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os
fenmenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gnero: o estranho.
Se ao contrrio, decide que se devem admitir novas leis da natureza pela quais
o fenmeno pode ser explicado, entramos no gnero maravilhoso. (TODOROV, 1975,
p. 42)
Para
Todorov, portanto, o maravilhoso, como gnero literrio delimitado pelo
fantstico, depende da presena ou negao da credulidade (por parte da
personagem e/ou leitor) diante de
fenmeno inslito.
Tal
descrio do fantstico, vale assinalar, deve bem mais ao ensaio freudiano, O
Estranho (FREUD, 1996a), do que admite seu tratado. Conquanto o linguista e
pensador blgaro faa referncia explcita ao artigo de 1919, a meno pouco
revela do fato de que boa parte de sua fundamentao erige-se sobre este
trabalho de Freud. Com efeito, deve-se primeiramente ao psicanalista, em seu
estudo sobre a novela de Hoffmann, a diferenciao entre o maravilhoso ferico
e o estranho, tomando por base o contraste com a realidade construda pelo
leitor. Assim, se o texto freudiano j assinalara que o reino da fantasia
depende, para seu efeito, do fato de que o seu contedo no se submete ao teste
de realidade (FREUD, 1996, p. 266), ele antecipa muito das proposies de
Todorov. Em ambos, entretanto, a
descrio do maravilhoso comparece sob a clave do fabuloso, extraordinrio,
daquilo que no se submete aos critrios de veracidade - aspecto que pode ser
lido em uma variedade de textos tericos produzidos a respeito, particularmente
no continente europeu. Assim tambm, por exemplo, o do suo Max Lthi ao
distinguir os elementos constitutivos do conto maravilhoso (Mrchen)[13], que observa.
No conto
maravilhoso (Mrchen), o heri que encontra um animal, planta, ou astro
falante, no demonstra nem medo nem espanto. Isto, no porque o animal ou
planta falante lhe fosse familiar; eles no integram seu habitat natural. Nada
indica que ele soubesse da existncia de tais animais falantes. Mas ele no se
admira, e no teme: o sentimento para o extravagante lhe falta. Para ele, tudo
parece pertencer mesma dimenso. (1992, p. 10) [14]
Assim,
noes tais como fabuloso, extraordinrio, sobrenatural so termos recorrentes
na literatura que aborda esse gnero descrito na regio limtrofe do
fantstico, como se l tambm, dentre outros, em Hetmann (1982) e Bessire (1974).
O
problema, porm, como j se assinalou anteriormente (TRUSEN, 2015) que tais
categorias operam a partir de convenes extremamente variveis e cada vez mais
deslizantes na contemporaneidade. Se a vasta literatura medieval, com suas
ilhas venturosas, seus objetos mgicos e protetores sugerem em seu amplo
espectro a crena fincada no mirabilia
(LE GOFF, 1994), a compilao de narrativas amaznicas, no outro extremo
temporal e geogrfico, igualmente testemunha a incorporao do maravilhoso ao
mundo prosaico e cotidiano.
Assim,
consideraes como as de Hetmann que, citando a Polivka e Bolte afirma que o
conto maravilhoso (Mrchen) so
histrias extraordinrias no ancoradas nas condies de vida real, e que
ouvimos com maior ou menor prazer, embora as consideremos inacreditveis
(1982, p. 12), conquanto sejam apropriadas no contexto europeu, pouco auxiliam
na compreenso das narrativas do maravilhoso amaznico.
A
impreciso de seus termos deriva basicamente de dois fatores – o primeiro
deles porque se referem a um conjunto de textos que passou por percurso que se
vem assinalando, em outros trabalhos (TRUSEN, 2012), como processo de
domesticao e alijamento do maravilhoso ao mbito dos lares burgueses quando,
a partir do surgimento do pensamento ilustrado, assiste-se a crise da
cosmologia crist que ter, como efeito mais imediato, a emergncia do sujeito
racional como entidade privilegiada para o conhecimento das coisas no mundo.
Efetivamente, pontua, igualmente a respeito, David Roas:
A rejeio ao sobrenatural
se traduziu tambm em condenao de seu uso literrio e esttico. As
perspectivas ilustradas da segunda metade do sculo XVIII enalteceram os
conceitos de verossimilhana e mimese como armas fundamentais para desterrar a
presena do sobrenatural e do maravilhoso dos textos literrios. (ROAS, 2006,
p. 24) [15]
Explica-se,
assim, que as teorizaes em torno do inslito terminem, majoritariamente, a
referir-se ao conto maravilhoso, mediante sua identificao e circunscrio a
rbita do moralizante, anotando nele feio resignatria.
Ele [o conto
maravilhoso] usa o universo dos fantasmas e da no-coincidncia do
acontecimento com a realidade evidente, no para romper nossos vnculos com
essa realidade, mas para nos assegurar (nos tranquilizar) da nossa capacidade e
da validade dos meios (a moral, as leis da conduta e do conhecimento de nosso
domnio prtico) (BESSIRE, 1974, p. 57)
A
afirmao parece, como visto, respaldar-se em certa compreenso do maravilhoso
que o vincula muito fortemente funo que o gnero desempenharia. Nesse
sentido, ele estaria voltado no tanto para a ruptura com o que rodeia e ordena
o mundo para o homem – algo que, segundo a autora, seria bem mais
perceptvel na literatura fantstica – mas destinado harmonizar, ou
melhor, a ajustar o indivduo ao seu meio ambiente.
Postura
bem similar a que lemos no ensaio de Rosie Jackson:
As fantasias
que penetram no reino do maravilhoso so as nicas que tem sido toleradas e
que tem alcanado uma ampla disseminao social. A criao de mundos
secundrios atravs do mito religioso, a magia ou a fico cientfica se baseia
em mtodos legalizados - a religio, a magia, a cincia – para o
estabelecimento desses outros mundos, que so compensatrios, pois preenchem
uma lacuna a partir de uma apreenso da atualidade como algo desordenado e insuficiente
(...). Sua base novelesca d a entender que o universo , em ltima instncia,
um mecanismo autorregulado no qual a bondade, a estabilidade e a ordem acabaro
por impor-se. Essas fantasias,
pois, servem para estabilizar a ordem social ao minimizar a necessidade de
interveno humana em um mecanismo csmico organizado segundo um principio de
benevolncia. (JACKSON, 2002, p. 144)
,
pois, nesse sentido que se vem sustentando ser necessrio distinguir entre o
uso, vale dizer, a instrumentalizao que a cultura ocidental, em muitos
momentos, empreendeu do maravilhoso, e a potica que lhe prpria. Assim, por
exemplo, a anlise da compilao, realizada pelos Irmos Grimm, evidencia que o
emprego do gnero a servio de uma dada concepo de lar, implicou no s a
domesticao do maravilhoso, mas que, igualmente, significou, muitas vezes,
reduo da potncia que lhe prpria. Em outros termos, resultou no
confinamento de um conjunto de procedimentos criativos, cuja ordenao de
ordem inversa ao cogito racional, a um territrio frequentemente relacionado ao
era uma vez dos contos recolhidos e ajustados mentalidade burguesa crist,
nos moldes da famlia dos sculos XVIII e XIX.
Essa
observao crtica a certa teorizao sobre o maravilhoso, se talvez
pertinente no contexto europeu, faz-se to mais urgente quando confrontada com
certo repertrio de narrativas amaznicas, igualmente atravessas pelo
mirabilia.
A
urgncia dessa releitura resulta, porm, de um segundo fator. A conceituao do
maravilhoso identificando-o, ora a um tempo perdido, ora ao aparecimento do que
no se subjuga esfera do que se concebe por natural, pouco ou nada se coaduna
com as narrativas ouvidas e/ou lidas em textos que transcrevem para o impresso
o repertrio do imaginrio amaznico. A referncia aqui particularmente aos
relatos coligidos pelo projeto integrado IFNOPAP (O Imaginrio nas Formas
Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense), nas colees Santarm conta....,
Abaetetuba conta...., Belm conta...., Bragana conta.... , dentre outras,
realizado na regio norte do pas. Com efeito, ao leitor que se disponha a
folhear algumas delas, logo se evidenciar a dificuldade para o estudioso
brasileiro de manejar tais narrativas a partir de claves de leitura to pouco
afeitas como as forjadas no continente europeu. No s a indefinio de tempo e
lugar revertida em favor da localizao geogrfica do que se narra, mas
sobretudo a oposio real x irreal, natural x sobrenatural completamente
suspensa em prol da aliana entre termos considerados antagnicos, pelo
pensamento ocidental moderno.
Que quando a
minha me saiu do quarto. A, ela apareceu grvida, s que j nasceu j
diferente, j um pouco, sabe? Muita coisa ela j trouxe. Eu queria que tu o
visses, rapaz (..). Era jito aquele, aquela [boquinha] [16] digo, boquinha, sabe. Tinha tudo,
aqueles leros do boto, aquele jeito, tudo . (SIMES; GOLDER, 1995, p. 24)
O
fragmento acima, retirado da narrativa contada por Manoel da Fonseca foi
transcrito por Conceio Vasconcelos e encontra-se na coletnea Abaetetuba
conta....., que rene causos, relatos, em narrativas do nordeste paraense, no
municpio de Abaetetuba, localidade situada s margens do rio Marataura, afluente
do Tocantins. Nela, se leem os indcios da gravidez de mulher seduzida por
figura recorrente nas histrias da regio, que, como a Cobra Grande, emprenha
as mulheres. Se aqui a concepo pelo golfinho sugerida com naturalidade, em
outras, a palavra do narrador certifica a veracidade do relato.
Bom, ento a
minha palavra que eu vi, isso (...) . Agora, os antigos diziam que existia
esse navio encantado, entre vspera de So Joo, [que o navio aparecia]. Muita
gente, teve gente que quis atirar, mas no teve coragem, porque dizem, assim,
se atirassem desencantava. Mas, temiam no desencantar, n? (SIMES; GOLDER, 1995, p. 99)
Ambos
os fragmentos servem para ilustrar no s o frtil imaginrio da regio, mas
tambm para sublinhar a recorrente marca de testemunhos – amigos,
familiares, o prprio narrador – e/ou locais e situaes, de modo a certificar
o ouvinte e provvel leitor de que o narrado corresponde verdade dos fatos.
Contudo, se o registro da autenticidade se faz necessrio, porque ele se tece
na fronteira com a suposta (in)credulidade do interlocutor. Resulta da um
curioso liame entre a percepo de que aquilo que se narra extraordinrio,
porm crvel, dado que verdadeiro, como asseguram seus narradores. De todo
modo, invocada a confiabilidade, tais narrativas parecem contradizer a
literatura sobre o maravilhoso que opera a partir das antinomias aqui
assinaladas.
Esta
relao peculiar entre o campo do natural e do sobrenatural faz assomar
memria certa descrio do maravilhoso na literatura do continente americano.
No prlogo do El reino de este mundo, Carpentier postula sua teoria do
maravilhoso americano em que se entretece uma dada percepo do continente,
cedida pelos primeiros cronistas, com uma reinveno da escrita latino americana,
como bem o anotou o estudo de Irlemar Chiampi (1980). Com efeito, no manifesto,
Carpentier procurando definir os meandros dessa elaborao sincrtica, traada
a partir da conjuno da histria haitiana com o universo do mirabilia, tambm
prope as balizas para uma escritura para o continente, demarcada pelo encontro
entre o prprio e o alheio.
Havia respirado
a atmosfera criada por Henri Christophe, monarca de incrveis realizaes,
muito mais surpreendentes que as de todos os surrealistas, muito afeitos a
tiranias imaginrias, ainda que no padecidas. A cada passo encontrava-me com o
real maravilhoso [grifo do autor]. Mas, pensava, ademais, que essa presena e
vigncia no era privilgio nico do Haiti, seno patrimnio da Amrica inteira
(). (CARPENTIER, 1975, p. 55) [17]
Tentador,
portanto, resgatar a conceituao do escritor cubano para compreender as
narrativas da regio amaznica brasileira, em que se nota a indistino entre o
terreno do excepcional e do ordinrio, entre o fabuloso e o verdico. Contudo,
um rpido exame logo identificar a impossibilidade do nexo. O conceito
proposto por Carpentier deriva de uma proposta ontolgica para a Amrica, no
s resultante do entrelaamento entre mito e histria, como tambm deriva de
perspectiva realista, cedida pelo extraliterrio (o real maravilhoso
caracterstico da realidade haitiana (CHIAMPI, 1980. p. 37 e passim). As
narrativas a que se faz aluso aqui no encenam a conjuno pleiteada por
Carpentier entre mito e histria – embora suspendam as relaes de
antinomia – tampouco constituem elaboraes ficcionais de um escritor
particular, mediatizadas por uma dada perspectiva do real. Parece-lhe, todavia,
ser caracterstica a presena de elementos do maravilhoso, fortemente fincadas
em figuras mticas (Boto, Cobra Grande, Matintaperera, Nau encantada, dentre
outros) que revelam uma relao especfica com o espao – a floresta e os
rios.
Outrossim,
essas narrativas que aqui nomeia-se maravilhoso amaznico denotam marcas de
testemunho em relatos que admitem, como forma discursiva inversa
racionalidade moderna, a relao harmoniosa, isto , no excludente entre
contrrios, mediante metamorfoses que assumem ora a forma humana, ora a animal.
E,
finalmente, um terceiro aspecto a ser considerado que muitas das figuras
mticas a presentes situam-se na interseco entre natureza e civilizao, a
exemplo da Cobra Grande e do Boto, resultante de sua natureza errante entre
rios e vilarejos.
A
direo da argumentao aqui, conduz, como se v, noo de alteridade, operador
com que o pensamento filosfico do sculo XX e a psicanlise, a partir de
Freud, e sobretudo desde Lacan (SPIELMANN, 2000), tm destacado a relao no
excludente entre pares contrrios (Mesmo/Outro, Civilizao/Natureza,
Razo/Loucura, Dentro/Fora, Masculino/Feminino, Natural/Sobrenatural).
Efetivamente, se o termo oriundo do latim altarǐtas aponta para as
relaes de contraste (HOUAISS,
2001) ele designa no s o que diverso, mas sobretudo a relao entre
dois seres ou entidades distintas ou supostas como tal. Nesse sentido, a alteridade o contrrio da
identidade, como o outro o contrrio do mesmo. Poder-se-ia fazer disto um
princpio: toda coisa sendo idntica a si mesma (princpio da identidade)
tambm diferente de todas as outras (princpio da alteridade).
(COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 53). [18] Donde,
a noo de alteridade, significando e abrangendo a ideia da diferena
efetiva-se dialogicamente – isto , na relao entre termos opostos, mas
no excludentes, uma vez que o Outro s pode ser apreendido como tal em relao
ao Mesmo. Compreendida a alteridade, portanto, como categoria imprescindvel
para o entendimento das relaes humanas no campo inter e intrasubjetivo, ela
passou a ocupar lugar central no somente entre os cientistas sociais, mas
tambm no meio psicanaltico e nos estudos literrios. Concernente a esses
ltimos, cabe aqui assinalar os nomes de Octavio Paz e o de Victor Bravo, com
os quais pretende-se, por fim, estabelecer o lao final entre o que se designou
maravilhoso amaznico e uma potica prpria, enunciadora da alteridade humana e
literria.
O
crtico literrio venezuelano em obra que est ainda aguardando traduo para o
portugus e urgente reedio, partindo da noo de alteridade dada pelo poeta e
pensador mexicano, bem como dos estudos de Foucault, observa que a cultura
judaico-crist operou, no Ocidente, por um sistemtico repdio s formas
culturais que se antagonizaram razo, ou para usar a terminologia do autor,
s formas do Mesmo. Com efeito, na obra citada por Bravo, Conjunciones y
Disyunciones, O. Paz, tratando das polivalncias abrigadas sob a picardia,
aponta para o problema da metfora e as faces que a compe – o lugar da
civilizao e o princpio da realidade, por um lado, e, por outro, o territrio
do desgoverno, e o princpio do prazer. Nesse sentido, anota o poeta e ensasta
mexicano, a picardia, e a gargalhada, que dela resulta, ordenam uma sntese que
traduz duas caras – o Eu e o Outro [19]
– que nos (des)governam. Nesse sentido, a picardia desvelaria e simultaneamente
mascararia os segredos, face ao nosso dia-a-dia do mundo civilizado.
L-lo
participar de um segredo. Em que consiste este segredo? Este livro nos ensina
nossa outra cara, a oculta e inferior. O que digo deve entender-se
literalmente: falo da realidade que est abaixo da cintura e que a roupa nos
cobre. Refiro-me a nossa cara animal, sexual: ao cu e aos rgos genitais (PAZ,
1969, p. 12) [20]
Se
bem verdade que o problema foi abordado bem anteriormente por Freud, em Os
chistes e sua relao com o inconsciente,
este enlace pe em relevo a articulao Mesmo/Outro,
Civilizao/Natureza, indicando a dinmica de alteridade, a mesma que serve ao
crtico Victor Bravo para pensar a literatura do fantstico e do maravilhoso.
O drama de toda
cultura o intento de reduzir o irredutvel, a alteridade, tranquilidade
ideolgica do Mesmo, da Identidade. A alteridade parece ser o insuportvel. A
ordem que toda cultura de alguma maneira sacraliza a inteno de reduzir a
alteridade s formas do Mesmo. (BRAVO, 1985, p. 16) [21]
Assim,
se a alteridade assinala a relao no excludente entre pares antinmicos, ela
aponta igualmente para a dinmica subjacente dolorosa experincia humana de
saber-se racional, sujeito da cultura, e, simultaneamente, Outro – ser
primitivo, intuitivo, desgovernado - malgrado os ditames da razo.
H,
todavia, assinala o Los poderes de la ficcin (BRAVO, 1985) formas literrias
que pem a descoberto, de modo mais ou menos flagrante, tanto a alteridade
humana, como aquela que constitui o prprio discurso literrio, em seu processo
mimtico de reproduzir e simultaneamente desrealizar o mundo emprico. Com
efeito, se o texto literrio sobrevive no tnue liame entre a representao
especular das coisas circundantes e a encenao de sua prpria espessura
literria, o fantstico e o maravilhoso, para Bravo, constituem os modos
discursivos que mais evidenciam a alteridade prpria do homem e das narrativas
por ele produzidas. Dito em outros termos, se a literatura vive da complexa e
tensa relao com a realidade que lhe exterior, entre representar-se a si
prpria e o representar o mundo, o texto fantstico o que expe de modo mais
inquietante a possiblidade de transgresso entre essas fronteiras. Contudo,
como pondera o venezuelano em seu debate com o Introduo literatura
fantstica de Todorov, se o fantstico deriva da experincia limtrofe entre
esses territrios, o maravilhoso o lugar da alteridade como espetculo.
Quando o limite
persiste e um mbito outro se pe em cena sem atender s verossimilhanas das
certezas do real e sem penetrar estas certezas e question-las, quando o limite
persiste deslindando o mbito outro do mbito do real, estamos em presena do
maravilhoso. Poderia dizer-se que no fantstico o outro uma irrupo, e, no
maravilhoso, um espetculo. [22] (Bravo, 1985, p. 244)
Nesse
sentido, a noo de fronteira, como eixo no qual se deparam noes tidas como
antagnicas e apartadas pela civilizao - por exemplo, natural e sobrenatural,
real e fabuloso, verdico e inveridco – adquire relevncia na
argumentao de V. Bravo que eleva o problema da alteridade como conceito a
partir do qual possvel pensar esses gneros literrios. Nesta outra proposio, o maravilhoso
redimensionado e pensado para alm dos antagonismos constatados nas teorizaes
forjadas pelo pensamento europeu.
Assim,
se o maravilhoso o tema do mundo s avessas, universo outro que desde o
perodo medieval manifesta-se como potncia de insurreio, o maravilhoso que
se apresenta em narrativas mticas ao norte do pas, que aqui nomeamos como
maravilhoso amaznico, ao suspender as relaes de antinomia prprias da
cilivizao moderna, que reduzem e
solapam a alteridade humana sob as formas do Mesmo, deve ser pensado sob a
clave da alteridade. Suas narrativas, efetivamente, conciliando o sobrenatural
e o natural, o animal e o humano, a natureza e a civilizao, tecidas que so
para alm da fronteira, representam uma potica da alteridade. E, para no
encerrar, poder-se-ia ademais acrescentar que, em sendo o inconsciente o lugar
por excelncia da alteridade – pois nele os contrrios no se excluem
(FREUD, 1996b)-, tais narrativas encenam a resistncia do inconsciente toda
forma de subjugao. Mas isso j outra histria.
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[https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/13010/9510] Acesso
em: 03 maio 2018.
[Recebido: 20 dez 21 – Aceito: 20 jan 21]
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Intertextos de Romeu e
Julieta nos folhetos nordestinos
Intertexts of Romeo and Juliet in northeastern
leaflets
Weber Firmino Alves[23]
https://orcid.org/0000-0001-9012-9112
Naelza
de Arajo Wanderley[24]
https://orcid.org/0000-0002-3622-7317
Resumo: As adaptaes constituem
um fenmeno longevo que remonta Grcia antiga, quando os poetas iniciaram a
prtica da releitura dos mitos, com a liberdade de modific-los e introduzir
inovaes. Semelhantemente, os
cordelistas nordestinos, ao adaptarem narrativas cannicas para os versos
populares dos folhetos, assumiram o papel de tradutores de uma tradio
literria que passa a ser escrita em uma linguagem mais prxima do povo. Assim, o presente artigo discute a presena do intertexto de Romeu
e Julieta em folhetos nordestinos, incorporando adaptaes dos textos-fonte. A leitura dos textos estabelece uma
comparao com os intertextos desse amor contrariado nos cordis de Joo
Martins de Athayde, Maria Ilza Bezerra, Sebastio Marinho e Stlio Torquato
Lima, a partir das ideias de Abreu (2004), Hutcheon (2013), Kristeva
(2005), Rougemont (1988), entre outros. Faz-se
uma avaliao da construo do enredo de Romeu
e Julieta na tradio literria, com vistas a perceber nas adaptaes para
o romanceiro nordestino, suas divergncias e semelhanas, compreendendo-se que
as adaptaes no so cpias, mas funcionam como produes distintas,
assumindo importantes funes sociais no contexto da cultura-alvo,
principalmente a de socializar um texto universal para a cultura local.
Palavras-Chave: Amor contrariado; Romeu e Julieta; Literatura; Cordel.
Abstract: Adaptations are a long-lived phenomenon that dates
back to ancient Greece, when poets began the practice of re-reading myths, with
the freedom to modify them and introduce innovations. Similarly, Northeastern
poets, by adapting canonical narratives to the popular verses of the leaflets,
assumed the role of translators of a literary tradition that is now written
in a language closer to the people. Thus, this article discusses the presence of
the Romeo and Juliet intertext in northeastern leaflets, incorporating
adaptations from the source texts. Reading the texts establishes a comparison
with the intertexts of this forbidden love in the cordel booklets of Joo Martins de Athayde, Maria Ilza Bezerra, Sebastio Marinho and
Stlio Torquato Lima, based on the ideas of Abreu (2004), Hutcheon (2013),
Kristeva (2005), Rougemont (1988), among others. An evaluation of the
construction of the plot of Romeo and Juliet in the literary tradition is made,
with a view to realizing in the adaptations for the Northeastern flyers, their
divergences and similarities, understanding that the adaptations are not
copies, but function as distinct productions, assuming important social
functions in the context of the target culture, mainly that of socializing a
universal text for the local culture.
Keywords:
Forbidden love; Romeo and Juliet; Literature; Cordel
booklets.
Introduo
A histria de Romeu e Julieta conhecida como a grande narrativa ocidental do
amor romntico e retrata o sentimento puro de afeio entre dois jovens de
famlias rivais que se apaixonam e pem em xeque a tradio de dio entre suas
famlias. Embora seja conhecida muito mais pela pea de Shakespeare, a
construo dessa histria ocorreu ao longo de vrios sculos at tomar a forma
proposta pelo bardo ingls. Entretanto, as adaptaes do enredo no se
encerraram na literatura inglesa, pois continuam sendo (re)elaboradas atravs
de recontos que so apresentados ao pblico em diferentes suportes e
linguagens.
Entre esses recontos encontram-se as adaptaes
elaboradas por cordelistas nordestinos, os quais tambm se interessaram pela
temtica da histria desses amantes, sobretudo pelo aspecto de contrariedade da
realizao amorosa. Em um processo de recorte, inveno e adaptao, estes
tradutores do povo colocaram no papel o produto de suas leituras, adaptando a
trama ao contexto da regio e linguagem de seu pblico leitor.
Romeu e Julieta e a temtica do sofrimento amoroso
A palavra
amor um substantivo cuja definio evoca conceitos diversos, seja devido
diversidade do objeto a quem o dirigimos, ou mesmo devido s intenes de quem
o experimenta. O verbo amar, seu derivado, pode designar, no uso cotidiano,
desde o sentimento de afeio por um familiar, um carinho fraterno, ou mesmo a
atrao ertica. A literatura se apropriou deste sentimento como tema de suas
produes artsticas porque, enquanto manifestao do fazer humano, a arte
reflete nossas experincias.
A clssica histria de Romeu e Julieta remonta a
uma tradio literria que tematiza o amor a partir de suas contrariedades,
sendo herdeira de diversos enredos cuja trama culmina na morte dos amantes, sob
a gide de que Ҏ melhor morrer do que no amar. Na tradio latina, temos
cincia do poema Pramo e Tisbe, de
Ovdio, publicado na sua Metamorfoses,
uma histria que se acredita fazer parte do conjunto de narrativas que
inspiraram a composio romejulietiana[25].
Esse mito latino explica a cor avermelhada da
amora em face de que, perante uma amoreira plantada junto ao sepulcro do rei
Nine, matou-se pelo amor um casal de jovens apaixonados. Os jovens so vizinhos
na Babilnia, se apaixonam e fazem votos de casar, mas os seus pais probem o
enlace amoroso, impedindo-os at de conversarem. Diante disso, trocam apenas
gestos e olhares, at descobrirem uma fenda no muro de suas casas, por onde
secretamente trocam declaraes de amor e sentem o hlito um do outro. Ento,
pela fenda, os amantes marcam um encontro noturno no sepulcro do rei Nino.
Tisbe chegou primeiro, mas acabou se escondendo numa gruta prxima diante da
chegada de uma leoa ainda com o sangue da presa na boca, em direo fonte
para saciar sua sede. A fera rasgou o leno cado da jovem, deixando-o
embebecido de sangue. Ao chegar na fonte, Pramo entendeu que sua amada teria
sido tragada por uma fera e resolveu tirar sua prpria vida com sua espada,
culpando-se da morte de Tisbe. Por sua vez, chegando junto amoreira,
estranhando a mudana na cor da amora que, de branca se tornara escura como o
sangue, gritou ao ver o corpo de Pramo. Desesperada, a jovem decide tambm se
juntar na morte ao seu amado, conforme registra Ovdio (2016, p.120):
Teu
amor, tua mo te ho dado a morte!
Eu
tambm tenho mos (exclama a triste),
Eu
tambm tenho amor capaz de extremos,
Que
esforo me dar para seguir-te.
Sim,
eu te seguirei, serei chamada
Da
tua desventura a causa, a scia.
Ai!
S podia a morte separar-nos...
Mas
no, nem ela mesma nos separa.
vs, dai terno ouvido s preces de ambos,
Mseros
pais de mseros amantes,
Que
une por lei do Fado Amor, e a Morte;
Deixai
que o mesmo tmulo os encerre.
E
tu, rvore, tu, que ests cobrindo
Agora
um s cadver miserando,
Logo
dois cobrirs. Sinais conserva
Da
tragdia que vs, e por teus frutos
Difunde
sempre a cor de luto, e mgoa,
Monumento
fatal do negro caso.
A
composio dramtica do poema constri um clima de sensibilidade e pureza entre
os amantes, despertando no leitor a compreenso de que, em face do impossvel,
quando contrariado, o puro amor no teme e prefere a morte. De tristeza, os
alvos frutos da amoreira se tornaram rubros de negra cor, umedecidos pelo
sangue dos amantes para nunca mais serem como antes. Finalmente, os pais do
casal aceitam reunir as cinzas dos dois numa mesma urna e, apenas na morte, o
casal termina junto.
Encontra-se,
pois, estabelecido o enredo que passa a se caracterizar pela composio dos
seguintes elementos: jovens apaixonados; oposio do amor dos familiares;
ruptura entre a proibio parental; estratgia dos amantes em romper a
separao; aparente morte de um dos amantes; suicdio do sobrevivente;
consequente suicdio do amante aparentemente morto. Em todos os casos, o
derramamento do prprio sangue caracteriza a expresso dos amantes, pois viver
sem amor a pior de todas as tragdias.
No Oriente, a histria de Laila e Kais (Laila e Majnun), uma lenda popular rabe de tradio
oral que remonta ao sculo VII, foi registrada em mais de oito mil versos, pelo
poeta Nizami em 1188, por encomenda do soberano Shirvanshah. A trama conta
sobre a paixo proibida de dois jovens, as aflies da separao e a
consequente dor da perda. Essa histria de amor da literatura persa foi
amplamente utilizada como fonte de inspirao por escritores ao longo dos
sculos, fazendo parte do conjunto de histrias clssicas de amores condenados
que estabelecem relao
com o enredo de Romeu e Julieta.
Seguindo a tradio temtica do sofrimento
amoroso, na Idade Mdia, sobretudo na pena dos trovadores, a
ideia do amor corts se revelava como a contemplao de um objeto superior,
perante quem o poeta se submete, numa condio de vassalagem, experimentando o
prazer de amar e sofrer. Acerca disso, Rougemont (1988, p. 63) escreve:
Que a poesia dos
trovadores? A exaltao do amor infeliz. Em toda a lrica e na lrica de
Petrarca e Dante h somente um tema: o amor; no o amor feliz, pleno ou
satisfeito (esse espetculo nada pode engendrar), mas, ao contrrio, o amor
perpetuamente insatisfeito; enfim, h apenas dois personagens: o poeta, que
oitocentas, novecentas ou mil vezes repete seu lamento, e uma bela, que sempre
diz no.
Observemos
que as tramas com o tema do sofrer por amor possuem exatamente em seus
conflitos a razo de ser da histria, pois os autores encontrados no
representam necessariamente algo objetivamente insuportvel, mas os entes
renunciam em nome da felicidade. Assim, o tema das narrativas de amor
contrariado exatamente a separao dos amantes, mas em nome da paixo e do
amor que lhes atormenta, razo pela qual esse sentimento exaltado e
transfigurado, mesmo em prejuzo da felicidade e da prpria vida. As tramas de
amor contrariado, ento, retratam amores correspondidos que enfrentam
dificuldades para se concretizarem. Konder (2007, p.119) destaca, remetendo-se
a Agnes Heller que, na obra Shakespeare, os amores so sempre correspondidos. O
estudioso, contudo, destaca que, ao longo da produo shakespeariana,
[...]
estavam sendo criadas novas condies histricas, nas quais a abertura para o
dilogo no podia ficar limitada a algo visvel e tinha de admitir a
legitimidade da suspeita do corao na relao com os outros, no confronto da
minha subjetividade com a subjetividade deles. Nem os que amavam, nem os que
queriam entender o que era o amor podiam recorrer a esquemas fatalistas. O
amor, em especial, passava a exigir a participao efetiva dos sujeitos
diferentes, movendo-se dos dois lados; ele passava a exigir o espao necessrio
para que cada sujeito pudesse fazer suas opes, tomar suas iniciativas.
Rougemont
v em Romeu e Julieta, de
Shakespeare, a tragdia corts que representa a mais bela ressurreio do mito
de Tristo e Isolda, ainda anterior adaptao da pea de Wagner. O estudioso
desconsidera, contudo, que a composio da pea shakespeariana possui trs
verses italianas: Il Novellino, de
Masuccio Salernitano, de 1476, com a novela 33, que descreve a histria de
Mariotto e Giannozza, dois jovens amantes da nobreza, cujo amor proibido pelo
dio de suas famlias; Historia
novellamente ritroata di due nobili amanti, de Luigi da Porto, de 1530, com
traos romejulietianos, pois a trama
ocorre em Verona, as famlias so chamadas de Montecchi e Cappelletti,
divergindo no fato de que a moa se apaixona primeiro e mais oferecida; Romeo e Giulietta, escrita em 1554 por
Matteo Bandello, bispo e poeta do sculo XVI, compondo um conjunto de novelas,
cuja escrita se enquadra no que atualmente denominamos conto, visto que o texto
original possui uma escrita corrida, numa narrativa curta de nico clmax e
desfecho.
Na Inglaterra, Shakespeare tambm
no foi o primeiro a adaptar a narrativa romejulietiana,
pois, em 1559, Arthur Brooke publicou um longo poema com 3020 versos,
intitulado A trgica histria de Romeu e
Julieta. A pea de Shakespeare aproveita deste poema a trama da tragdia e
informaes sobre a Itlia e os hbitos culturais e sociais do pas.
Entretanto, faz mudanas que ultrapassam a transmutao do enredo, pois Brooke
estabelecia um axioma moralizante de que a desobedincia dos amantes teria sido
a causa de sua tragdia, mas o dramaturgo ingls retira a responsabilidade
deles e transfere para o dio das duas famlias. Heliodora (2014, p.98)
argumenta:
Copiando
a trama muito fielmente de um poema moralizante do ingls Arthur Brooke, que
tivera imenso sucesso, em vez de condenar os dois jovens pelo imperdovel
pecado de desobedincia aos pais, Shakespeare os faz vtimas da luta entre suas
famlias, e escreve no apenas uma grande histria de amor como tambm uma
grave denncia contra a guerra civil, ilustradas na pea por meio do conflito
entre os Montquio e os Capuleto.
Outra diferena na composio est associada
durao dos fatos, pois Shakespeare compe a ao em cinco dias – do
conhecimento do casal ao suicdio, ao passo que, no poema de Brook, o casal
permanece casado por seis meses. Quando a verso de Shakespeare (2017)
comparada com a de Bandello (2012), possvel perceber tambm significativas
distines: no desfecho da novela, Romeu se suicida com veneno e a jovem apela
para a morte e morre repentinamente de dor; por sua vez, na pea
shakespeariana, Romeu se envenena e a jovem se suicida com o punhal do seu
amante, aproximando-se da teia significante de Pramo e Tisbe. Ao final, tanto Shakespeare
quanto Bandello informam da reconciliao das famlias, sendo que a novela
bandelliana prev que tal paz no durou muito tempo depois. A verso
shakespeariana concebe um final de paz duradoura e a fala do prncipe de Verona
culpa o dio das famlias e a condescendncia do poder do Estado.
A
seguir, ento, examinaremos o modo como o romanceiro nordestino se apropriou do
enredo romejulietiano, oferecendo uma
nova composio adaptada ao cordel.
Adaptaes
de Romeu e Julieta para os cordis nordestinos
Na Grcia antiga, os poetas realizavam releitura
dos mitos, com a liberdade de modific-los. Sfocles, por exemplo, entre outras
mudanas, altera o nome da me de dipo, introduz a enigmtica esfinge e a
peste. Essas inovaes eram adaptaes que chamavam a ateno do pblico, sem a
preocupao de fidelidade total ao texto-fonte. Linda Hutcheon (2013, p. 23-24)
diz que os adaptadores narram histrias ao seu prprio modo, asseverando que:
Eles utilizam
as mesmas ferramentas que os contadores de histrias sempre utilizaram, ou
seja, eles tornam as ideias concretas ou reais, fazem selees que no apenas
simplificam, como tambm ampliam e vo alm, fazem analogias, criticam ou
mostram seu respeito, e assim por diante. As histrias que contam, entretanto,
so tomadas de outros lugares, e no inteiramente inventadas. Tal como as
pardias, as adaptaes tm uma relao declarada e definitiva com textos
anteriores, geralmente chamados de fontes; diferentemente das pardias,
todavia, elas costumam anunciar abertamente tal relao
Adaptar um texto significa traduzi-lo para um
suporte, gnero ou linguagem diferente. A depreciao que ainda nutrimos pelas
adaptaes produto da valorizao romntica da originalidade e do gnio
criativo, bem como do prprio apego que fs tm pela fidelidade s fontes.
Contudo, as adaptaes so fundamentais cultura ocidental, de modo que as
histrias so sempre recontadas por suportes diferentes. Hutcheon (2013, p. 27)
afirma:
Trabalhar
com adaptaes significa pens-las como obras inerentemente palimpsestuosas
[...] assombradas a todo instante pelos textos adaptados. Se conhecemos esse
texto anterior, sentimos constantemente sua presena pairando sobre aquele que
estamos experienciando diretamente. Quando dizemos que a obra uma adaptao,
anunciamos abertamente sua relao declarada com outra(s) obra(s). isso que
Grard Genette (1982, p. 5) entende por um texto em segundo grau, criado e
ento recebido em conexo com um texto anterior. Eis o motivo pelo qual os
estudos de adaptao so frequentemente estudos comparados.
assim que o enredo romejulietiano chega ao Nordeste do Brasil na pena de cordelistas
que assumem o papel de contar para o povo a clssica histria de amor adaptada
nos versos dos folhetos. Ao menos quatro cordis nordestinos realizaram
adaptaes da narrativa de Romeu e Julieta, em tempos diferentes, sob os
seguintes ttulos: Romance de Romeu e Julieta (1975), atribudo a Joo
Martins de Athayde (Paraba); Romeu e Julieta (2001), de Maria Ilza
Bezerra (Piau); Romeu e Julieta em cordel (2011), de Sebastio Marinho
(Paraba); Romeu e Julieta: William Shakeaspere (2012), de Stlio
Torquato Lima (Cear). A recepo no Nordeste do enredo de amor contrariado
lembra os diversos casos no locus
sertanejo de conflitos familiares com numerosas mortes.
Assim como Shakespeare, Bandello e tantos outros
foram adaptadores, os poetas populares assumem esse compromisso, trazendo para
o verso as narrativas de outros, fazendo referncia ou no s fontes de sua
composio. Ariano Suassuna (1973 apud SUASSUNA, 2012, p.176) comenta esse
papel do cantador nordestino:
O cantador nordestino no se detm
absolutamente diante dessas consideraes: apropria-se tranquilamente dos
filmes, peas de teatro, notcias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros.
Que importa o comeo, se, no final, a obra sua? Ele, depois de tudo,
acrescentou duas ou trs cenas, torceu o sentido de trs ou quatro outras, de
modo que a obra resultante nova. No era assim que procediam Moilire,
Shakespeare, Homero e Cervantes? [...] Os cantadores procedem do mesmo jeito.
H mesmo, uma palavra que entre eles, indica o fato, o verbo versar, que
significa colocar em verso a histria em prosa de outro. Quando Shakespeare
escreveu Romeu e Julieta no fez mais do que versar as crnicas
italianas de Luigi Dal Porto e Bandello.
Tradicionalmente, os cordis se apresentam mais
atrativos do que os textos em prosa para o pblico leitor por serem escritos em
versos compostos num padro que favorece as leituras coletivas em voz alta,
pois, conforme Abreu (2004), fazendo referncia s palavras do poeta Manoel
dAlmeida Filho, o povo nordestino se acostumou a ler o verso como quem canta.
Ainda segundo essa autora, as adaptaes de
textos clssicos realizadas pela literatura de cordel no ocorrem
aleatoriamente, mas seguem um certo padro que caracteriza a composio e a
recepo dos folhetos. H um certo padro no processo de adaptao dos textos
eruditos, pois, de modo geral, os cordelistas escolhem narrativas que sejam prximas
do que se convencionou denominar romances de cordel, um subgnero de folheto
nordestino com 24 ou mais pginas, com narrativas ficcionais, tematizadas entre
o amor e a luta, privilegiando histrias semelhantes s narrativas tradicionais
da literatura popular.
Os folhetos nordestinos, publicados desde a
segunda metade do sc. XIX tornaram os homens pobres na posio de autores,
leitores, editores e crticos de composies poticas, envolvendo pessoas
simples no mundo das letras, pelo vis da composio e recepo dos versos. Foi
assim que Romeu e Julieta, como diversas outras narrativas cannicas, chegaram
ao Nordeste, pelo vis da recepo dos cordelistas, como destaca Abreu (2004,
p. 200):
A distino
entre a composio e a recepo de folhetos nordestinos e a produo e a
leitura de obras literrias eruditas fica clara quando se examinam verses para
folheto de narrativas eruditas, fato relativamente comum no interior da
literatura de folhetos, em que h verses de A Escrava Isaura, de Bernardo Guimares,
de Ubirajara, Iracema, A Viuvinha, de Jos de Alencar, de Amor de Perdio, de
Camilo Castelo Branco, de Paulo e Virgnia, de Bernardin de Saint Pierre, de
Romeu e Julieta, de Shakespeare, de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre
Dumas, para citar apenas alguns exemplos.
Segundo Abreu (2004), a recepo e nova
composio dos poetas leva em conta a seleo de narrativas eruditas com
enredos, cujo tema central envolve, basicamente, o amor e a luta, variando
entre os trs ncleos temticos seguintes: mulheres virtuosas perseguidas por
perversos apaixonados; amores contrariados; e enfrentamentos entre poderosos e
valentes. As adaptaes romejulietianas
se enquadram, certamente, nos romances de amor contrariado.
Ademais, a estudiosa afirma que a seleo e adaptao
dos textos cannicos para o cordel segue os seguintes critrios: semelhana de
enredo com os romances tradicionais dos folhetos; transposio da prosa para o
verso setisslabos (padro dos folhetos); adequao da sintaxe e do lxico;
desembaraamento da trama com a reestruturao do enredo, reduzindo personagens
e aes; caracterizao sucinta das personagens com poucos atributos fsicos e
morais, basicamente para identific-las no enredo como boas ou ms, viles ou
heris, etc.; por vezes, faz-se a alterao do enredo para adequar ao final dos
paradigmas do cordel, qual seja, a felicidade dos apaixonados; apresentao dos
sentimentos mais por aes do que por descries. Alm disso, geralmente, os
folhetos privilegiam o tipo de narrador-onisciente, com o papel preponderante
de interpretar as atitudes dos personagens e fazer juzo de valor tico e
moral, pois as histrias tm um carter exemplar.
Semelhantemente, os quatro cordis romejulietianos constroem a narrativa de
forma lrica, de modo que possvel reconhecer os aspectos destacados por
Abreu (2004). Quando comparados, percebemos que os cordis possuem um enredo
cuja estrutura bsica pode ser resumida assim: inimizade entre as proles; amor
ingnuo entre os filhos dos patriarcas; a igreja como medianeira na
reconciliao; casamento secreto entre os namorados/rivais; morte do primo de
Julieta; exlio de Romeu; acordo secreto da morte de Julieta; m comunicao
com Romeu; morte do conde Pris; suicdio dos jovens.
Cordis
nordestinos: intertextos de Romeu e Julieta
A produo literria dialoga com outras
produes artsticas, culturais e do prprio universo da literatura. Kristeva
(2005) v o texto como um mosaico de citaes, retomando sempre outros textos,
seja pela vinculao, a retomada explcita, um ato legtimo ou a ilegalidade do
plgio.
A intertextualidade admite a formao de uma
grande rede de textos que sempre retoma produes anteriores, cujos fios se
encontram com outros, formando um grande mosaico caleidoscpico e
multidimensional. Assim, a criao artstica tanto individual como coletiva,
pois a memria do artista tambm se compe de citaes, lembranas e
esquecimentos involuntrios ou no.
Os quatro cordis romejulietianos dialogam intertextualmente com a tradio europeia
da qual so herdeiros, mas, ao faz-lo, reconstroem o prototexto original,
adaptando ao novo contexto de produo. Tal processo de reescritura muito
mais percebido sob a pena do cordel mais antigo de Athayde, devido ao seu vnculo
com a tradio amparada na cultura de conflitos parentais do incio do sculo
XX no serto nordestino.
Do ponto de vista do suporte, Athayde e Ilza
Bezerra, mantm a publicao no modelo tipogrfico do folheto de cordel. Por
outro lado, os cordis de Marinho e Lima foram publicados em livros por
editoras de divulgao nacional, respectivamente, a Nova Alexandria e o Armazm
da Cultura.
Quanto fonte de adaptao, os trs cordis
recentes de Bezerra, Lima e Marinho apresentam-se claramente identificados com
a pea de William Shakespeare[26], conforme se pode
perceber, a seguir:
Vasculhando alfarrbios
Desbotados na gaveta,
Deparei-me com a obra
Maior de todo planeta:
a shakespeariana
De Romeu e Julieta (MARINHO, 2011,
p.13)
Atravs desta histria
Resgatarei a leitura
De um drama muito antigo,
Famoso em sua candura,
Porque o cordel arte
E valoriza a cultura.
As personagens do drama
Comoveram muita gente
Por mostrar um grande amor
Profundo e contundente,
Criadas por Shakespeare
Pra se amar eternamente (BEZERRA, 2011,
p.1)
No h em todo o planeta
Algo que vena o amor,
Que belo qual borboleta,
Forte qual mar em furor.
o que mostra a historieta
De Romeu e Julieta.
Shakespeare seu autor. (LIMA, 2012,
p.70)
No
caso do cordel de Athayde, no encontramos nenhuma indicao textual que
relacione o texto com a obra de Shakespeare. Todavia, desde que Ariano Suassuna
(2018) adaptou o cordel de Athayde para sua pea A histria do Amor de Romeu
e Julieta: imitao Brasileira de
Matteo Bandello, referenciou,
pelo prprio ttulo, o conto italiano como sendo a fonte usada por Athayde. O
texto de Athayde, porm, no nos permite ter tanta certeza disso, embora
possamos inferir, pelas duas primeiras sextilhas, que o autor tenha conhecido a
histria atravs do cinema ou de alguma encenao teatral:
Vou
contar neste romance
a
desdita de Romeu
na
sua curta existncia
de
tudo que padeceu
foi a lenda mais tocante
que
a nossa imprensa escreveu
Essa
histria conhecida
em
quase toda nao
no teatro e no cinema
tem
causado sensao
deixando
amarga lembrana
no mais brutal corao. (ATHAYDE, 1975, p.1)
A
poesia de Athayde estabelece uma teia intertextual produtiva que ultrapassa os
limites da linguagem verbal dos textos fundantes e chega a outros universos
semiticos, visto que o prprio poeta admite que esta histria j foi traduzida
para outras mdias, como o teatro e o cinema, e j Ҏ conhecida em quase toda
nao.
Athayde (1975) incorpora alteraes
significativas, como o juzo de valor negativo para a famlia Capuleto (raa
tirana), em detrimento descrio positiva da famlia Montquio (famlia
honesta e humana). Assim, esta representa o bem e a honra, valores exaltados na
tica nordestina, enquanto aquela retrata a impiedade e o autoritarismo.
No conto de Bandello, no h essa dicotomia
moralista retratada no romanceiro popular, de modo que um amigo de Romeu,
embora reconhea o afeto de Montquio pelo filho, descreve a sua dureza e apego
aos bens materiais: [...] voc – deixe-me ser sincero – corts,
virtuoso, amvel e de boa cultura, o que muito valoriza sua juventude. Alm
disso, nico filho de um pai cuja grande riqueza de todos conhecida;
possvel que ele seja avaro e o repreenda se voc esbanja os seus dotes
(BANDELLO, 2012, p.19).
O
enredo athaydiano desenvolve o conflito das duas famlias, acrescentando uma
tragdia no apresentada em nenhuma das tradies romejulietianas. No cordel, Montquio foi preso por Capuleto e
assistiu o assassinato brutal de sua esposa, que ainda tinha Romeu nos braos.
A composio deste conflito aumenta o drama, pois no houve qualquer
misericrdia do tirano Capuleto:
Montequio inda pediu
mas ele no atendeu,
disse o duque a um carrasco
esse logo obedeceu
dos braos da propria me,
foi arrancado Romeu. [...]
Ali tirou um punhal
Que na cinta carregava
Cravou-o no peito da jovem
Dizendo: eu bem que jurava;
O punhal ia rangindo
Com a fora que ele botava
Disse ela: senhor duque
seu corao perverso
tenha d do meu filhinho
que ainda fica no bero;
ele calcou no punhal
que sumiu-se at no tero (ATHAYDE, 1975,
p.4-5)[27]
Na
continuidade da narrativa, Montquio retira o punhal da esposa e jura que seu
filho haver de vingar-se do algoz inimigo. Como se no bastasse o assassinato
a mo armada, Capuleto arrastou pela cidade o corpo da esposa de Montquio e
mandou jog-la no mar, privando-lhe at de um enterro digno.
Alm disso, a presena de Romeu no baile de
mscaras da famlia Capuleto retratada de forma diferente. No conto, Romeu
reconhecido e tolerado sem troca de ofensas, sobretudo por ser muito jovem. Na
verso de Athayde, o jovem Montquio comparece com o punhal para vingar-se,
conforme incumbncia do pai. Entretanto, ao se apaixonar por Julieta, Romeu
obrigado a fazer uma escolha entre o amor de seu pai e o da jovem Capuleto,
numa tenso cuja escolha pesa a balana contra o cdigo de tica nordestino,
conforme descreve o poeta:
Por fim falou o mancebo:
escuta, loura criana
do castelo do meu pai
vim tomar uma vingana;
e arrastando um punhal
aos ps da moa lhe lana
Diante a tua beleza
eu sinto o peito chagado
pelos teus olhos azuis
tornei-me escravizado
e te confesso sem pejo
Por ti, vivo apaixonado
Teu pai matou minha me
Quando eu era pequenino,
E eu ving-lo jurei
Mas a fora do destino
Fez com que tudo acabasse
Ante o teu porte divino
Serei perjuro e jamais
Ao meu pas voltarei
Aos teus ps palida imagem
Como escravo viverei
Juro-te em nome dos cus
Que junto a ti morrerei (ATHAYDE, 1975,
p.15,16)
A
deciso de Romeu est tomada e no h retorno, razo pela qual o cordelista
emite seu parecer, apresentando um juzo de valor com base na tica sertaneja
para a qual a desonra famlia uma atitude imperdovel e, diante da qual, o
eu lrico esquece a abnegao dos jovens apaixonados e execra:
Quem possui este romance
conhece bem o que leu,
a esposa de Montequio
em que condio morreu
tambm conhece a misria,
e covardia de Romeu. [...]
Romeu fez como saguim
que se ilude com careta
bastou ver no peito dela
um ramo de violeta
foi perguntar logo seu nome
lhe dissera; Julieta
Nas condies que ele estava
no tinha mais um rodeio
era vingar-se de tudo
fingindo como um passeio
no tinha o que perguntar
quem bonito nem feio
Mas ele no fez assim
depois que se achou na sala
viu Julieta danando
fez tudo pra namor-la
inda ela sendo uma deusa
ela devera odi-la
Romeu foi falso a seu pai
por isto teve castigo
como faltou-lhe a coragem
para enfrentar o perigo
casou-se com a prpria filha
do seu fatal inimigo (ATHAYDE, 1975, p.30,31)
O enredo athaydiano construiu a imagem de um
Montquio vitimado para, ao final, emitir um juzo de valor sobre a tomada de
atitude de Romeu ao renunciar a vingana em nome do amor filha do inimigo. A
composio de cordelista certamente considera o silncio que o enredo
bandelliano realiza em relao esposa de Montquio, pois, no conto, a famlia
Capuleto composta por um casal e a sua filha, mas isso no sucede na famlia
Montquio, em que apenas o pai e o filho so retratados. Certamente, essa uma
das razes porque Bandello tido como fonte de Athayde e no Shakespeare, para
quem a me de Romeu morreu devido ao seu exlio em Mntua.
Na verso de Athayde, Romeu no apresentado
como um heri, assim como acontece nas verses clssicas ou mesmo no romanceiro
popular dos outros cordis. Aqui, ele tratado como um traidor dos seus
progenitores, algum que renegou o seu sangue. No dizer de Oliveira (2019,
p.1003), o cordel assumindo o papel de correia transmissora de alguns
valores culturais nordestinos. O estabelecimento de uma moral no plena
novidade dos romances nordestinos, pois, conforme Oliveira (2019, p.998), os
autores europeus j o faziam:
Brooke pregava em seu poema que a
desobedincia de Julieta foi a causa deflagradora da tragdia dos dois jovens,
uma vez que Julieta no quis ouvir os conselhos da me. Com seu poema, Brooke
deixa para os jovens a lio de que o ato de no obedecer s ordens dos pais
pode gerar consequncias amargas e irreversveis. Esse tom moralizante foi
relutado por Shakespeare em sua pea que retirou a responsabilidade da tragdia
das mos de Julieta, transferindo-a para as duas famlias nobres e o seu eterno
dio.
No cordel de Lima (2012), a moral da narrativa
pronunciada no incio e no final do cordel, exaltando o poder do amor que une o
casal na morte e pacifica a relao entras famlias rivais:
No h em todo
o planeta
Algo que vena
o amor,
Que belo qual
borboleta,
Forte qual mar
em furor.
o que mostra
a historieta
De Romeu e
Julieta.
Shakespeare
seu autor. [...]
Mas, no fim, o
amor ganhou
pois o dio ali
morreu
E a verdade
floresceu
Mesmo sendo
borboleta,
Nenhuma fora
excedeu
Ao amor, neste
planeta
Diz
Shakespeare, no eu,
Na histria que
escreveu
De Romeu e Julieta. (LIMA, 2012, p.70,74).
Na narrativa de Bezerra (2011), a moral aparece
tambm no final do romance, enfatizando as consequncias do dio e o modo como
a paz selou-se:
E a que ponto
chega o dio
Ficou marcado
no instante.
A Maldio teve
o fim
Selou-se a paz
doravante.
Isto serviu de
lio. (BEZERRA, 2011, p.31)
O tempo da narrativa semelhante em todos os
cordis, tal como em Shakespeare cuja ao transcorre num perodo de cinco
dias, quando os jovens se conhecem, se casam, consumam o amor, Romeu foge e
acabam se encontrando no sepulcro com a morte.
No cordel de Lima (2012), o casal se conhece na
festa, com Romeu mascarado e oculto, resolvem se casar e a morte de Teobaldo
no desenvolvida, como um elemento da composio que potencializou o conflito
das famlias, apenas exilando Romeu, sem qualquer comprometimento de Julieta.
Nos folhetos de Bezerra (2011) e de Marinho (2011), por outro lado, Romeu
reconhecido por Teobaldo no baile de mscaras, mas Capuleto reconhece a virtude
do jovem Montquio e tolera sua presena, orientando o sobrinho a nada fazer,
tendo em vista que o rapaz se mostrava virtuoso e educado. Em todos os cordis,
Romeu mata Teobaldo apenas aps a provocao deste, que chega a matar Mercrio,
amigo do jovem Montquio.
Entretanto, apenas os cordis de Bezerra (2011)
e de Marinho (2011) desenvolvem o drama de Julieta entre o primo morto e o
marido exilado, exaltando ainda mais a natureza do conflito familiar e
desencadeando a angstia da moa. Na verso de Bezerra (2011), a senhora Capuleto, relacionava o sofrimento de Julieta
morte do Teobaldo, e promete que Romeu pagaria, sem saber, contudo, que a jovem
chorava pela saudade do seu esposo.
Somente no cordel de
Marinho (2011), aparece a senhora Montquio, apelando ao prncipe para no
estabelecer a pena capital a Romeu devido morte de Teobaldo, tal como
requeria a senhora Capuleto. Tal construo estabelece uma forte distino do
carter narrativo de Athayde, para quem a morte da senhora Montquio no incio
do folheto elemento fundamental do conflito entre os rivais.
Cabe ainda registrar
que as ltimas estrofes dos cordis de Bezerra e Marinho encerram em forma de
acrstico, um carimbo de autoria caracterstico do cordel.
Consideraes
finais
talo Calvino (1993, p.11) define um clssico
como um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. No que
pese a diversidade de reescrituras de Romeu e Julieta, possvel consider-lo
o grande enredo do ocidente, com o qual qualquer narrativa de amor proibido
ser sempre comparada. Sendo assim, no
de se estranhar que os poetas populares tenham encontrado razes para
traduzir Romeu e Julieta para o
cordel.
Enfatizamos, porm, que as adaptaes dos
cordis demonstram a liberdade dos autores em contar ao seu modo a trama.
Contudo, do ponto de vista do enredo, foi possvel perceber muito mais
liberdade no texto de Athayde, sobretudo pela incorporao de fatos e temas que
permitem a identificao do pblico leitor dos folhetos com o texto.
Entretanto, no se percebe o mesmo processo criativo nos demais textos aqui
estudados, que se mostram mais propensos a cristalizar a histria de
Shakespeare.
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SUASSUNA, Ariano. A compadecida e o romanceiro nordestino. In: ______. Almanaque Armorial. 3. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2012.
[Recebido: 16 ago 21- Aceito: 16 set 21]
O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas
de enterro produzidas em comunidades quilombolas
The mythical status and the argumentative dimension in buried treasure
narratives produced in quilombola communities
Emanuel da Silva Fontel[28]
https://orcid.org/0000-0002-7805-6464
Regina Clia Fernandes
Cruz[29]
https://orcid.org/0000-0003-3985-1024
Benedita do Socorro
Pinto Borges[30]
https://orcid.org/0000-0002-8188-9563
Thaynara Thays Ferreira
Paixo[31]
https://orcid.org/0000-0002-7363-8406
Resumo: Neste artigo, discutimos como a construo de mitos se
articula dimenso argumentativa em narrativas orais, mais especificamente em
narrativas de enterro, as quais habitam o imaginrio da cultura quilombola e se
referem ao enterramento de um tesouro por entidades mticas, que, considerando
as qualidades dos indivduos da comunidade, revelam-lhe no s a existncia da
riqueza, mas tambm o local onde ela est enterrada e as instrues necessrias
ao resgate. O corpus analisado tem
sido estudado por Borges (em andamento) e foi coletado em oito comunidades
quilombolas do Baixo Tocantins - PA: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola,
Taxizal, Tomzia, Frade e Laguinho. As bases terico-metodolgicas
fundamenta-se na Teoria da Argumentao no Discurso (AMOSSY, 2016, 2020), que
prope a noo de dimenso argumentativa como um efeito de sentido projetado
pelo enunciador, que pretende no a adeso explcita do enunciatrio a uma
tese, mas to somente lhe alterar os modos de ver e de sentir; na noo de mito
proposta por Chau (2020); nos estudos acerca das narrativas de enterro
desenvolvidos por Fernades (2007). As anlises demonstram que enunciador e
narrador mobilizam operaes argumentativas e retricas para divulgar e estimular
valores ticos e morais importantes para a sobrevivncia e resistncia da
comunidade.
Palavras-chave: Narrativa oral;
Narrativa de enterro em comunidade quilombola; Estatuto mtico; Dimenso
argumentativa; Aspectos retricos.
Abstract: This research aims to
discuss how the construction of myths is articulated with the argumentative
dimension in oral narratives, more specifically in buried treasure narratives.
They inhabit the imagination of quilombola culture and refer to the burial of a
treasure by mythical entities, which, considering the qualities of the
individuals in the community, reveal the existence of wealth, the place where
it is buried and the necessary instructions for its rescue. The analyzed corpus
has been studied by Borges (in progress) and was collected in eight quilombola
communities in Baixo Tocantins - PA: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola,
Taxizal, Tomzia, Frad and Laguinho.
The theoretical-methodological bases subscribe to the Theory of
Argumentation within Discourse (AMOSSY, 2016, 2020), which proposes the notion
of argumentative dimension as an effect of meaning projected by the enunciator,
who intends not to explicitly persuade the enunciatee to a thesis, but only to
change their ways of seeing and feeling; to the notion of myth proposed by
Chau (2020); and to studies about burial narratives developed by Fernades
(2007). The analyzes demonstrate that both enunciator and narrator mobilize
argumentative and rhetorical operations to disseminate and encourage ethical and
moral values that are important for the communitys survival and
resistance.
Keywords: Oral narrative; Buried treasure
narrative in a quilombola community; Mythical status; Argumentative dimension;
rhetorical aspects.
Introduo
A narrativa de enterro[32] caracteriza-se como um
gnero discursivo que compe as prticas orais cotidianas de certas
comunidades. Fernandes (2007), em trabalho seminal, coletou e analisou vrias
formas narrativas orais no Pantanal sul-mato-grossense. Entre essas formas,
esto as aqui denominadas narrativas de enterro quilombola[33],
que tm sido estudadas, no mbito da Universidade Federal do Par, por Borges
(em andamento) e por Fontel (em andamento)[34]. Parte desse estudo j se
encontra publicado em Borges et. al. (2020). O corpus analisado foi
coletado na regio do Baixo Tocantins no Estado do Par, onde se encontram as
comunidades remanescentes de quilombo: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola,
Taxizal, Tomzia, Frade e Laguinho. Parte desse material exposto no presente
artigo.
Nas narrativas de enterro quilombola,
verificamos a presena de um narrador que lana mo de vrias estratgias
argumentativas com diferentes funes, como a de produzir uma instncia
discursiva cujo status garante a autoridade daquilo que enuncia. Desse modo,
pode-se atribuir ao narrador um ethos afianador das suas credenciais
para contar histrias nas quais o enunciatrio possa crer. A construo desse
estado de crena no pleiteia explicitamente a adeso a nenhuma tese. Muitas
vezes h investimentos em afetos e em sentimentos possivelmente despertados no
enunciatrio, adentrando, em virtude disso, no domnio do pathos. Assim,
o narrador no parece, stricto sensu, pretender persuadir ou convencer o
enunciatrio, mas apenas alterar o seu estado de crena. Nos casos sob anlise,
parece pretender retirar o enunciatrio de um estado de possvel descrena e
desconfiana acerca da veracidade da existncia de um tesouro que foi enterrado
por uma entidade mtica na comunidade e lev-lo a um estado de crena na existncia
do referido tesouro, o que configura, nos termos de Amossy (216, 2020), a
formulao de uma dimenso argumentativa, entendida como a configurao que um
discurso assume quando os objetivos de convencer ou persuadir no atendem a um
objetivo programtico, isto , no so primeiramente constitudos para fazer
com que o interlocutor adira a uma tese especfica. A busca de adeso a teses
, por assim dizer, acidental ou secundria. Nesses casos, afirma a autora, o
mais importante para o enunciador alterar os modos de ver e de sentir do
enunciatrio (AMOSSY, 2020).
Nesse processo de fazer crer nas narrativas de
enterro, entram discursivamente em cena uma srie de entidades mticas
associadas a explicaes de base sobrenatural, atuando, dessa maneira, no plano
simblico e constituindo, portanto, um mito (CHAU, 2020), que tm em vista
revelar e certificar a existncia do tesouro enterrado. O conhecimento do
narrador acerca da existncia tanto do tesouro quanto das entidades que o
gerenciam e das condies que elas impem ao escolhido para que ele tenha
acesso s riquezas o credenciam a dar conselhos e ensinamentos de ordem tica e
moral, a fim de garantir a existncia, o bom funcionamento e a resistncia da
comunidade quilombola
Adiante, situamos o gnero discursivo objeto do
presente estudo, a noo de estatuto mtico e apresentamos ainda uma anlise
possvel para as estratgias utilizadas pelo enunciador com vista a
sensibilizar o enunciatrio relativamente a determinados valores morais e
ticos.
O gnero narrativa de
enterro
Nesta seo, apresentamos os diferentes
significados e a estrutura narrativa desse gnero nos termos de Fernandes
(2007). Em Borges et. al (2020) e em Paixo; Borges; Cruz (2020) tanto os
significados quanto a estrutura esto amplamente explicados e exemplificados,
razo por que no procederemos de igual modo. Remetemos esses trabalhos ao
leitor interessado no tema.
As
narrativas de enterro caracterizam-se como uma narrativa oral cujo tema central
a saga de uma pessoa em busca de um tesouro encantado, o qual foi revelado
por meio de uma fora sobrenatural (FERNANDES, 2007). O pioneiro nos estudos
sobre o tema foi Fernandes (2007), que coletou e registrou vrias narrativas
orais no Pantanal sul-mato-grossense, entre elas, as narrativas de enterro. O
nome enterro foi dado pelos pantaneiros, pois geralmente o tesouro
perdido est escondido debaixo da terra, o que tambm simboliza a relao do
enunciador com o espao onde ele habita.
Apesar de caracterizarem-se como variaes de
uma mesmo gnero discursivo, dada a apenas relativa estabilidade dos enunciados
(BAKHTIN, 2011) e dividirem a mesma estrutura formal – o que foi
comprovado no estudo de Borges et. al. (2020) – as narrativas de enterro coletadas no
pantanal e as narrativas de enterro coletadas em comunidades quilombolas so
diferentes no que se refere a alguns aspectos do contedo temtico, o que pode
ser justificado pelas diferenas histricas e sociais de seu contexto de
produo.
O ponto comum entre as duas que a ausncia de
bancos para depsito do dinheiro justificava o enterro, porm, cada uma dessas
narrativas apresenta motivaes diferentes para que ele acontecesse. Segundo
Fernandes (2007), nas narrativas de enterro pantaneiras so citados fatos
histricos locais, como, por exemplo, a Guerra do Paraguai. Algumas fazem
meno poca das misses.
As comunidades quilombolas do Baixo Tocantins
foram construdas por meio de um processo histrico-social iniciado no tempo da
escravido. Atualmente, essas comunidades remanescente, apesar de no serem
mais constitudas por escravos, tentam manter sua identidade e culturas
preservadas. As memrias desse passado so recorrentes nas narrativas coletadas
nas comunidades.
O gnero discursivo em estudo pode ser definido,
de forma geral, como uma narrativa em que um tesouro enterrado revelado a uma
pessoa por meio de acontecimentos sobrenaturais. Fernandes (2007) classificou
as narrativas de enterro em quatro categorias, considerando a variao de
significados: o protoconto, a explicativa, a descritiva e o logro.
Etimologicamente, protoconto pode significar
conto inacabado, porm o verdadeiro sentido dessa categoria de narrativa de
enterro no se refere a uma histria acabada, mas sim em gestao, posto que se
desenvolve medida que a histria transcorre. Segundo Fernandes (2007, p.
287), o protoconto traz em seu significado certa aproximao com o conto
maravilhoso, porque em ambos Ҏ ressaltada a provao do escolhido e do heri.
O heri do conto maravilhoso passa por percalos e provaes at a resoluo
dos problemas. Dessa mesma forma,
nas narrativas de enterro quilombolas, o escolhido enfrenta algumas
dificuldades at encontrar e desenterrar o tesouro.
Na narrativa do tipo explicativa, h a insero
de elementos que so encontrados em mitos e lendas, com o objetivo de explicar
a existncia do enterro. Ou seja, quando um fenmeno incompreensvel acontece,
lana-se mo de explicaes do imaginrio popular para explic-lo. Nas
narrativas pantaneiras, Fernandes (2007) observou que o mito Me de Ouro era
mencionado para explicar manifestaes de enterro. J nas narrativas de enterro
quilombolas encontramos a histria do Pretinho, que, segundo a narradora,
antiga. A apario desse ser, que faz aluso lenda do saci, j faz parte do
imaginrio da comunidade e usada para justificar a existncia de um tesouro
encantado.
Alm disso, como afirma Borges (em
adamento), os relatos de apario de um ser com a mesma cor de pele dos
moradores produzem uma identificao e assumem uma posio de autoridade ao
orientar os indivduos para atitudes e valores que estimulam a resistncia do
povo negro.
A narrativa do tipo descritiva, por sua vez, tem
como finalidade descrever elementos do enterro, ou suas partes, geralmente a
marcao, a manifestao e a provao. Nessa categoria de narrativa, no h um
enredo propriamente dito. O foco explicar os detalhes do enterro, como: o
local do tesouro, os tipos de manifestaes que podem acontecer e as provaes
pelas quais o escolhido pode passar.
Alm da classificao das narrativas de enterro
de acordo com seu significado, Fernandes (2007) identificou que a estrutura
formal desse gnero poderia ser composta de at seis partes: origem,
anunciao, manifestao, marcao, provao e desenlace.
A parte denominada origem transporta a narrativa
ao eixo da temporalidade, (FERNANDES, 2007). A origem revela a procedncia da
riqueza enterrada, no caso das narrativas quilombolas, geralmente resgatado o
tempo da escravido.
Outra parte da estrutura definida por Fernandes
(2007) a anunciao: revelao do enterro ao escolhido, por meio de sonhos,
vises, vozes, dentre outros.
H casos ainda em que, quando o tesouro no revelado por meio de
sonhos ou vises, o prprio enterro se revela ao escolhido. Nesse caso,
trata-se da manifestao, que tambm est diretamente relacionada ligao
existente entre o narrador e a terra, pois se acredita que, quando o ouro entra
em contato com a terra, torna-se encantado e demonstra vontade prpria ao se
revelar a quem se supe ser merecedor dele, declara Fernandes (2007).
A marcao outra parte da estrutura da narrativa de enterro que
pode acontecer de duas maneiras distintas: geograficamente, situao em que o
dono do enterro conta ao escolhido onde est o tesouro; ou simbolicamente,
quando o escolhido, para quebrar o encanto do tesouro, marca, ou seja, batiza o
enterro, acendendo uma vela, pingando gotas do prprio sangue etc.
A
quinta parte da estrutura chamada de provao e acontece quando o escolhido
passa por testes para provar que merecedor do tesouro. A honestidade e a
moralidade do escolhido so testadas, especialmente em casos em que o tesouro
deve ser dividido.
Finalmente,
o desfecho da histria se d no desenlace, o qual pode ser positivo ou
negativo. Essa parte revela o que aconteceu com o escolhido e o enterro: o
xito, com a retirada do enterro e a obteno da riqueza; a perda, que pode
ocorrer porque o escolhido no teve coragem suficiente para passar pela
provao ou quando enganado por algum que rouba seu tesouro.
Fernandes (2007) destacou que esse gnero
discursivo expressa um anseio coletivo, transmite valores, costumes e preceitos
morais dos indivduos de uma comunidade. A estrutura formal da narrativa
percebida pelo narrador, o qual, por meio da conscincia lingustica, movimenta
suas partes de forma criativa, gerando atualizaes. Segundo o autor:
Por conscincia
lingustica compreende-se a assimilao, no mbito textual, de elementos
constitutivos de uma narrativa pelo ouvinte-leitor e do modo como eles se
apresentam na reatualizao do texto, quando o ouvinte-leitor torna-se
narrador. A conscincia lingustica capacita o narrador a articular e a
associar motivos, invariantes e variveis na atualizao de um arqutipo.
(FERNANDES, 2007, p. 229).
Em resumo, as
narrativas de enterro podem apresentar quatro diferentes significados, que so:
protoconto, o qual apresenta certa semelhana com o conto maravilhoso; a
narrativa explicativa, que utiliza os mitos e lendas como comprovao da
existncia do enterro; a descritiva, a qual tem como finalidade descrever e
detalhar algumas partes da estrutura da narrativa; o logro, narrativa na qual o desfecho da
histria se d com o roubo do tesouro. Sua estrutura pode ser constituda de
at seis partes: origem, anunciao, manifestao, marcao, provao e
desenlace.
Desse modo, constatamos
que a narrativa de enterro de cada comunidade possui uma identidade prpria,
que vai ao encontro dos seus valores e costumes, no entanto, essas diferentes
narrativas parecem encontrar-se no alinhavado produzido pelos diferentes
aspectos mticos que as atravessam. A seo seguinte apresenta uma breve
discusso terica acerca noo de mito, na qual este artigo se baseou.
Estatuto mtico da
narrativa de enterro
Um caixo aluminado,
uma galinha choca e o Pretinho[35]
so alguns dos elementos sobrenaturais presentes nas narrativas.
Visto que a prpria definio de narrativa
apresenta um carter fantstico – quando a revelao se d exclusivamente
ou por meio de sonhos e vises (anunciao), ou por meio de aparies
sobrenaturais (manifestao) –, fica evidente o estatuto mtico das
narrativas de enterro. Para compreender esse estatuto, devemos levar em
considerao a necessidade intrinsecamente humana de tentar entender e explicar
os fatos e os fenmenos incompreendidos, o que resulta na criao de mitos.
Segundo Chau (2000):
Um mito uma narrativa
sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das
plantas, dos animais, do fogo, da gua, dos ventos, do bem e do mal, da sade e
da doena, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raas, das guerras, do
poder etc.).
A palavra mito
vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo
(contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo
(conversar, contar, anunciar, nomear, designar) (CHAU, 2000, p. 32).
A definio acima
descrita se mostra pertinente para o entendimento da presena do mito na
narrativa de enterro, pois, de fato, entidades mticas so mobilizadas para
justificar a origem do tesouro. Chau (2000) afirma, ainda, que o mito:
tem como funo
resolver, num plano simblico e imaginrio, as antinomias, as tenses, os
conflitos e as contradies da realidade social que no podem ser resolvidas ou
solucionadas pela prpria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que
explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa
continuar com o problema sem ser destruda por ele (CHAU, 2000, p. 396).
No entanto, na
narrativa de enterro, no a inteno de resolver conflitos e contradies da
realidade social que justifica o emprego de elementos mticos e lendrios, mas
sim o intuito de explicar o enterro de um tesouro. Observamos que a prpria
meno ao enterro j revela o seu lugar na dimenso do fantstico.
Dessa forma,
consideramos relevante a explicao de Benjamin (1987) sobre a narrativa:
Cada manh recebemos
notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias
surpreendentes. A razo que os fatos j nos chegam acompanhados de
explicaes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servio da
narrativa, e quase tudo est a servio da informao (BENJAMIN,
1987, p. 203).
A liberdade de poder
ler o mundo conforme suas crenas permite aos moradores das comunidades onde os
dados foram coletados utilizar o extraordinrio, o mtico para explicar os
acontecimentos do mundo real.
Segundo Campbell (1990,
p. 25), preciso pensar os mitos de forma incorporada vida, pois a
mitologia tem muito a ver com os estgios da vida, com as cerimnias de
iniciao, quando voc passa da infncia para as responsabilidades do adulto,
da condio de solteiro para a de casado. Todos esses rituais so ritos
mitolgicos. Esses rituais so notrios em toda a trajetria do escolhido: na
anunciao e na manifestao do tesouro; na marcao simblica (batismo do
tesouro); na provao, na qual o escolhido passa por provas que exigem que ele
demonstre sua coragem (seguir uma galinha choca que sai da boca de um pote, por
exemplo) ou honestidade (dividir a riqueza com algum).
Alm disso, os
elementos e objetos das narrativas de enterro quilombolas que recebem essa
segunda camada, situada no campo mtico, fazem parte da identidade cultural e
dos costumes da comunidade: rvores, igaraps, tachos, fornos, bilhas. De
acordo com Lvi-Strauss (1993):
cada mitologia local,
confrontada com uma determinada histria e com um determinado meio ecolgico,
muito nos ensina acerca da sociedade de que provm, expe-lhe as foras
motrizes, esclarece o funcionamento, o sentido e a origem das crenas e
costumes /.../ (LVI-STRAUSS, 1993, p. 174).
Diante do exposto, fica
evidente, portanto, que as narrativas de enterro esto diretamente ligadas ao
mtico. A prpria definio desse gnero discursivo e os objetos mencionados no
enredo das histrias esto inseridos no campo do fantstico.
A seo seguinte
apresenta nove segmentos de vrias narrativas que compem o corpus da pesquisa.
Com base neles, busca-se demonstrar como o estatuto mtico atua na configurao
da dimenso argumentativa do gnero sob anlise.
Mitos e construo da
dimenso argumentativa em narrativas de enterro quilombolas: um exerccio de
anlise
Nesta seo, discutimos
a caracterizao de uma dimenso argumentativa com base na maneira como algumas
categorias retricas aliam-se a aspectos articulados ao que temos denominado de
estatuto mtico das narrativas de enterro quilombolas. Nessa articulao,
entidades mticas intervm tendo em vista alterar o estado de crena do
enunciatrio. Discutiremos ainda as maneiras como as narrativas de enterro
contribuem para a transmisso e a fomentao de princpios e de valores morais
comunidade.
Na provao, que
corresponde a uma das partes da estrutura formal dessas narrativas, o escolhido
deve enfrentar situaes que causam medo ou realizar um pedido que o ser
sobrenatural determinou como condio para ser merecedor do tesouro. Bom
carter, coragem, honestidade, lealdade e esperteza so algumas das virtudes
que o escolhido deve apresentar para receber a recompensa. Alis, a coragem a
caracterstica mais exigida como comprovao de merecimento do tesouro.
Observemos o segmento da narrativa Maldio:
SEGMENTO 01
quando a alma vem dizer
pras pessoa n (+) que t o dinheiro se a pessoa for l no tiver medo
ele tira o dinheiro e fica rico.
Para descrever o
raciocnio presente nesse trecho, podemos aplicar o modelo entimemtico,
proposto por Amossy (2020, p. 150) e abaixo exemplificado. Segundo a autora,
por meio desse quadro, pode-se reconstituir um raciocnio silogstico a partir
dos entimemas que se encontram subsumidos no discurso:
Quadro
1. Modelo entimemtico
aplicado ao segmento da Prova de coragem
Premissa maior (ausente) |
preciso no ter medo
para conseguir tirar o dinheiro e ficar rico. |
Premissa menor |
Se o escolhido no tiver
medo. |
se a pessoa for l no
tiver medo |
|
Concluso |
Logo, conseguir tirar o
dinheiro e ficar rico. |
ele tira o dinheiro e
fica rico |
Fonte: Elaborado pelos autores com base no
modelo de Amossy (2020).
De acordo com Amossy
(2020), o silogismo pode ser definido, de maneira ampla, como todo raciocnio
dedutivo; constitudo de duas premissas – premissa maior e premissa
menor – e de uma concluso. Conforme explica Fiorin (2018, p. 17),
Aristteles dividia os raciocnios entre necessrios e preferveis (ou
provveis).
O raciocnio necessrio
aquele cuja concluso decorre necessariamente das premissas colocadas, ou
seja, sendo verdadeiras as premissas, a concluso no pode no ser vlida
(FIORIN, 2018, p. 17). Do ponto de vista aristotlico, o tipo perfeito de
raciocnio necessrio era o silogismo demonstrativo. Podemos utilizar, a ttulo
de exemplificao, o clssico Todos os homens so mortais (premissa maior);
Scrates um homem (premissa menor); Logo, Scrates mortal (concluso).
Os raciocnios
preferveis so aqueles cuja concluso possvel, provvel, plausvel, mas
no necessariamente verdadeira, porque as premissas sobre as quais ela se
assenta no so logicamente verdadeiras (FIORIN, 2018, p. 18). Um exemplo
desse tipo de raciocnio o silogismo dialtico ou retrico. Emprestamos o
exemplo utilizado pelo autor:
Todo professor dedicado.
Ora, Andr professor.
Logo, Andr dedicado.
(FIORIN, 2018, p. 18)
provvel, possvel
que Andr seja um professor dedicado, mas no logicamente verdadeiro. Desse
modo, a admisso de certas premissas e, portanto, de determinadas concluses
depende de crenas e de valores (FIORIN, 2018, p.18). Os raciocnios
preferveis so estudados pela retrica, enquanto os raciocnios necessrios
pertencem ao campo da lgica.
O entimema, por sua
vez, corresponde a um silogismo truncado que se utiliza do implcito, na medida
em que o enunciador pode ocultar tanto a premissa maior quanto a concluso,
supondo que, mesmo no sendo enunciadas, sero deduzidas pelo ouvinte.
Retornando ao exemplo
do modelo entimemtico, podemos afirmar que provvel, ou seja, possvel que
o escolhido, se no tiver medo, consiga tirar o tesouro enterrado e ficar rico,
porm, no logicamente provvel. Tambm podemos provar que se trata de algo
plausvel se utilizarmos uma prova dentro do prprio gnero discursivo: a
narrativa com significado de logro, em que o escolhido, mesmo apresentando
coragem, ao final, se no for esperto o suficiente, pode ter seu tesouro
roubado. Essa reconstruo tambm demonstra que pathos, compreendido como as
emoes que o enunciador tenta gerar no enunciatrio e logos, que, grosso modo,
corresponde ao eixo que articula a razo linguagem, so muitas vezes
indissociveis no funcionamento discursivo (AMOSSY, 2020).
Nem todos os
ensinamentos e valores que podem ser transmitidos por meio das narrativas de
enterro so expostos explicitamente. o que demonstra o segmento 2, que
apresenta um trecho da narrativa Prova de coragem. Como sugere o ttulo, o enredo
voltado para a demonstrao de coragem do escolhido:
SEGMENTO 02
e a falaro pra ele OLHA se tu trazer o pacro
(++) corajuso (+) se tu no conseguir tirar com pacro c vo/ c vo
apanh /.../ agora se tu desist num vai ficar por isso vai acontecer alguma
cuisa contingo (Borges em andamento)
De acordo com o
segmento 02, o escolhido poderia convidar um parceiro que apresentasse coragem suficiente para
ir at o fim da empreitada. A desistncia implicaria punio: eles iriam
apanhar, ou seja, seriam castigados fisicamente, e, ainda mais, aconteceria
algo que a voz – como o narrador denomina esse ser sobrenatural
– no especifica (vai acontecer alguma cuisa contigo). Diferentemente
do que apresenta o segmento 02, no segmento 03, a provao anunciada pelo ser
sobrenatural. Nessa narrativa, a voz somente diz que ele e o parceiro devem
ser corajosos. O narrador continua a histria dizendo que o escolhido optou por
ir sozinho retirar o dinheiro. O segmento 3, abaixo, apresenta a estrutura
narrativa correspondente provao na narrativa Prova de coragem.
SEGMENTO 03
a chegu l comeu a cavar (+) a le/ ele
t pensando que s chegar e cavar que num tinha um movimento daqui alguma
cuisa estranha n (++) /.../ a veio uma voz (+) cava pra c pra
esquerda ele falava a: (+) mais pra direita (++) a: ele comeu ver o
negcio mu::ito aqui ele ficou com medo ele comeu quer sa ele
falou no tu vai t/ tu vai t que terminar o selvio (+) /.../ ele pensava
que num era assim (Borges em andamento)
O narrador afirma que o escolhido tinha uma
ideia equivocada de como seria essa retirada do dinheiro (ele t pensando que
s chegar e cavar; ele pensava que num era assim). A provao aconteceu de
duas formas: uma prova de obedincia, a voz dando instrues de onde cavar
para encontrar o dinheiro; uma prova de coragem, na qual algo que o escolhido
viu (ele comeu a ver o negcio) lhe causou medo.
A seguir, no segmento 04, temos o desenlace
tambm da narrativa Prova de coragem.
SEGMENTO 04
DEIXARO ele vim (+) e a ele veio (++) passu
a nuite inteira com dor de cabea e eu sei que at huje i:/ ele t meio
mais doido como diz do que bem (Borges em andamento)
Aps vrias tentativas de desistncia, enfim, o
escolhido consegue ir embora do local do enterro, porm, a punio foi
aplicada. Por no ter sido corajoso para finalizar a misso, o escolhido teve
dor de cabea a noite inteira, o que, aparentemente, causou-lhe doenas mentais
desde ento.
Diante desse cenrio, devemos buscar entender de
que maneira essa narrativa, mesmo sem pretenso explcita de busca de adeso a
uma tese, apresenta uma moral da histria. Podemos encontrar a
argumentatividade desse gnero discursivo investigando o no dito ou o poder
do explcito, de acordo com Amossy (2020).
O implcito contribui para a fora da
argumentao na medida em que empenha o alocutrio a completar os elementos
ausentes [...] [e] refora a argumentao ao apresentar, sob uma forma indireta
e velada, as crenas e opinies que constituem suas premissas incontestadas.
(AMOSSY, 2020, p. 178-179.).
Nesse vis, os ensinamentos compartilhados pela
histria contada sero construdos pelo ouvinte a partir de seus prprios
valores e crenas. Os excertos da narrativa Prova de coragem,
apresentados no segmento 04, permitem inferir que preciso ter coragem para
passar pelas provaes e alcanar sucesso. Isso se aplica tanto misso de
desenterrar um tesouro encantado quanto a outros percalos da vida.
O excerto 05, a seguir, pertence narrativa O
caixo aluminado. Em suma, trata-se de uma escolhida que v um caixo
aluminado (iluminado) e chamada por algum para buscar uma riqueza.
Amedrontada, conta para o marido, o qual vai ao lugar marcado tentar retirar,
entretanto, no encontra nada. Ao final da histria, ocorre o seguinte:
SEGMENTO 05
o cara veio no SONHO dela (+) e disse
olha ERA PRA TI no era pra ele (++) ento era pra ti ir s tu ir buscar
e num ia te acontecer nada agora tu no fica com nadinha nem tu e nem ele (Borges
em andamento)
A escolhida no cumpriu a regra segundo a qual
somente o escolhido pode retirar a riqueza. Observamos essa condio em vrias
narrativas, quando o tesouro se manifesta na presena de escolhido e some na
presena de outras pessoas. A punio para a infrao de regras a perda do
tesouro (tu no fica com nadinha).
Abaixo, no segmento 06, apresentamos outro
trecho da narrativa O fogo, na qual a escolhida tambm no teve coragem
de retirar o tesouro e contou para outras pessoas sobre a existncia dele.
SEGMENTO 06
e faziam tipo uma RIMPADA assim no punho
da rede a vov (+) ficava assim dizia assim tu vai apanhar pra ti
tudo tu conta pros outro (+) pra O QU tu saber tu no contar pro outro
(Borges em andamento)
Alm da falta de coragem para buscar o tesouro,
a escolhida infringiu outra regra frequentemente imposta como provao nas
narrativas de enterro: no se deve contar para ningum o segredo que envolve o
local onde o tesouro est enterrado, a no ser que seja permitido pelo dono da
relquia. Dessa forma, com base nos segmentos 05 e 06, o enunciatrio deve
alterar a sua viso de mundo, entendendo a importncia moral do ensinamento,
segundo o qual importante saber guardar segredos.
O segmento 07, apresentado a seguir, faz parte
da narrativa Ambio:
SEGMENTO 07
falaru que o dinheiro era pra ele com
paulo pinto que era irmo do tio roxo (++) e a o papai usou a imbio
e disse que o/ ele ia convidar o man borge que era irmo dele n /.../ e quando ele chegou l: (+) o
dinheiro j num estava mais j tinha/ sumido (Borges em andamento)
Nessa narrativa, tambm possvel observar a
transmisso de princpios morais; nesse caso, a honestidade e a desambio. O
dinheiro deveria ser dividido entre o protagonista e outro personagem que
tambm foi considerado merecedor do tesouro. Porm, como diz o narrador, ele
usou a ambio e chamou outra pessoa para retirar o tesouro com ele. Por ter
agido contra a determinao de quem lhe doou o dinheiro, tornou-se indigno de
retirar o referido tesouro (o dinheiro j num estava mais).
No segmento 08, exposto a seguir, temos um
trecho da narrativa Bico de vela:
SEGMENTO 08
disque o homem enganou ela (0.36)
DEU OUTRAS MOEDA e ficou com aquelas (+) e ela nu/ num se lucrou de nada
(2.33) (j) pensou (Borges em andamento)
interessante observarmos que a escolhida,
mesmo passando por todas as provaes (ter coragem e batizar o tesouro), perde
as moedas de ouro no final. A escolhida perdeu o tesouro para algum mais
esperto, dessa forma, o narrador alerta: a prudncia e a desconfiana em
relao a pessoas prximas devem permanecer sempre aguadas (FERNANDES, 2007,
p. 300).
Alm disso, tambm possvel perceber, no
trecho supracitado, o apelo ao pathos inscrito de forma implcita como
uma estratgia de sensibilizao do ouvinte. Toda essa histria pode suscitar
uma resposta emocional do interlocutor, porm, isso mais perceptvel no
trecho: ela num se lucrou de nada, seguido do convite da narradora
reflexo: j pensou?. De acordo com Amossy (2020, p. 208), a emoo pode ser
construda no discurso a partir de enunciados que carregam emoes e que levam
a uma determinada concluso afetiva. Nesse contexto, tendo em considerao
todo o enredo que leva ao logro da escolhida, podemos chegar a uma concluso:
ele [o homem que enganou a mulher] no foi justo. Nessa narrativa, so
mobilizados a compaixo pela escolhida e o sentimento de injustia.
Benjamin (1987, p. 200) declara que a narrativa:
tem
sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso utilitria. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto
prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida. [...] O extraordinrio e o
miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico da
ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como
quiser, e com isso o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na
informao. (BENJAMIN, 1987, p. 200-203)
Diante do exposto, conclumos que as narrativas
de enterro podem ser uma fonte de transmisso e fortalecimento de crenas e
valores, s vezes tcitos, compartilhados por uma comunidade.
Mais uma vez, a dimenso argumentativa se mostra
constitutiva das narrativas de enterro, visto que Amossy (2020, p. 12) define a
argumentatividade, tambm presente no enunciado, como algo que convida o outro
a compartilhar modos de pensar, de ver e de sentir. Por outro lado, so
recorrentes os elementos mticos que atuam nessa dimenso. A alma que vem dizer
algo; a voz espectral que exige uma prova de coragem; uma galinha choca; o
pretinho que se assemelha ao saci-perer; o cara que, em sonho, revela o local
do tesouro, mas exige a manuteno do segredo e do mistrio, entre outros, so
elementos que, ao intervirem diretamente nas aes narradas, instituem
claramente um estatuto mtico para as narrativas de enterro de tesouro em
comunidades quilombolas.
Consideraes finais
Nesse estudo, analisamos um aspecto especfico
da narrativa de enterro - o carter mtico - usado pelo narrador como
estratgia que autoriza considerar a existncia de uma dimenso argumentativa
nesse gnero do discurso, que, embora no apresente um carter tipicamente
persuasivo, na medida em que nele o enunciador no exige do enunciatrio a
adeso explcita a uma tese, sutilmente busca encaminhar a comunidade onde
circula o gnero a desenvolver valores ticos e morais primordiais para a sobrevivncia
e resistncia da comunidade.
No caso especfico das narrativas de enterro
quilombolas, a fomentao de valores morais e ticos como a coragem, a
capacidade de guardar segredos e a honestidade, tematizados nesse gnero
discursivo, so estratgias que parecem tentar encaminhar os indivduos para as
regras legais de sobrevivncia em sociedade e estimular neles a capacidade de
resistir tanto no mundo real quanto no imaginrio.
Referncias
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Paulo: Contexto, 2016. Disponvel em: https://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/389
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Disponvel em: <https://geolinterm.com.br/segel/?page_id=2471>
[Recebido:
28 set 21 - Aceito: 28 out 21]
Oralidade e quadrinhos:
possibilidades pedaggicas
Orality
and comics: pedagogical possibilities
Alberto Ricardo Pessoa[36]
https://orcid.org/0000-0002-0231-3778
Cristiano Clemente de Souza[37]
https://orcid.org/0000-0003-0868-7663
Resumo: A
proposta do artigo apresentar possibilidades pedaggicas que promovam o
ensino da oralidade por meio das Histrias em Quadrinhos. A Justificativa deste
estudo se deve ao fato dos quadrinhos serem uma mdia que tem como pblico
primordial a criana e adolescente e por ter um discurso verbal e no verbal do
qual apresenta um espao sonoro propcio para o estudo da oralidade.
Apresentamos o conceito de oralidade, os elementos das histrias em quadrinhos
pertinentes para o estudo da oralidade e possibilidades pedaggicas no intuito
de complementar as estratgias de ensino e aprendizagem do professor da
educao bsica.
Palavras-chave. Oralidade; Histria em quadrinhos; Parmetros Curriculares Nacionais;
Estratgias de ensino; Discurso verbal e no verbal.
Abstract: The purpose of the article is to present pedagogical possibilities that
promote the teaching of orality through Comics. The justification for this
study is due to the fact that comics are a medium whose primary audience is
children and teenagers and because they have a verbal and non-verbal speech
which presents a sound space suitable for the study of orality. We present the
concept of orality, the relevant elements of the comic books to the study of
orality and pedagogical possibilities in order to complement the teaching and
learning strategies of the basic education teacher.
Keywords: Orality; Comics; National Curriculum Parameters; Teaching Strategies;
Verbal and non-verbal speech.
Introduo
A educao brasileira sofreu ao
longo dos anos com discrepncias sociais, econmicas e tecnolgicas, oriundas de
polticas pblicas equivocadas e descaso administrativo.
Enquanto algumas escolas se
apresentam com infraestrutura capaz de oferecer a melhor experincia de ensino
para um aluno igualmente capaz de se desenvolver, h instituies e comunidades
que se encontram em condies precrias no que se refere a produzir um ambiente
propcio de aprendizagem.
Dentro deste contexto, os Parmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e mais
recentemente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel (ODS) se colocam como
um eixo norteador no intuito de dirimir essa discrepncia e que coloca o
professor como ator mediador deste processo educacional de tantas variveis.
O prprio docente muitas vezes se
encontra em sua jornada trabalhista atuando em escolas e comunidades com
possibilidades distintas de ensino e aprendizagem. O cenrio do ensino remoto
emergencial, decorrente da pandemia oriunda do COVID-19 apenas intensificou a
sensao de desigualdade educacional e da necessidade de uma reviso poltica e
de interesse pblico em considerar a educao como questo prioritria no
Brasil.
partir deste contexto, ns
docentes/pesquisadores devemos pelos mais diversos meios, inclusive na
apresentao de artigos, debater estratgias de ensino e aprendizagem possveis
em um ambiente educacional to desigual, no cabendo aqui dizer como um docente
deve ou no ministrar a sua aula, mas criar uma relao interpessoal de
pesquisa, emitindo e recebendo da comunidade acadmica apontamentos acerca da
educao.
Assim, uma das estratgias de ensino
que consideramos pertinente o do uso de produtos de fcil acesso pelo docente
e discente, que se caracteriza pela boa receptividade mtua, baixa dificuldade
em obter tal material, o baixo custo do mesmo e potencialidade como material
complementar para a relao interpessoal de ensino.
As histrias em quadrinhos so uma
das poucas mdias que tm a criana e adolescente como public-alvo. No
cotidiano brasileiro, as revistas de histrias em quadrinhos geralmente esto
posicionadas em bancas de jornais na parte de baixo de prateleiras, propondo
fcil acesso para o seu pblico ser capaz de pegar o produto e escolher de
forma autnoma, diferente de outros tipos de mdia que geralmente quem pode
acessar e apresentar criana o adulto.
Esta autonomia da criana no simples
ato de poder pegar e escolher as histrias em quadrinhos, agregado ao fato de
ainda ter um baixo custo propicia ao docente possibilidades de trabalho com
material de boa aceitao no somente pelo aluno mas a comunidade estudantil em
seu entorno.
As histrias em quadrinhos so
formadas por uma mirade de discursos verbais e no verbais conectadas por
signos dos quais amparados pelo arcabouo imaginrio do leitor apresentam
infinitas possibilidades de estudos em torno da oralidade.
Outro ponto positivo que as
histrias em quadrinhos possuem no seu uso para o ensino da oralidade o fato
de seu contedo ser em sua maioria, baseado em personagens da cultura pop e
assim, se ramificar para diferentes produtos como filmes, jogos, peas de
teatros e at mesmo marcas licenciadas para aplicao em diferentes formas de
consumo que formam novos discursos que so assimilados dentro do espao da
oralidade e que o docente e discente podem se beneficiar.
A concepo de histrias em
Quadrinhos
A
cincia acerca do que so histrias em quadrinhos de suma importncia para o
docente que pretende utilizar enquanto estratgia complementar de ensino, uma
vez que dever explicar, selecionar exemplos, manusear materiais e
principalmente, criar uma interlocuo com o discente que ao contrrio do
professor, possui em seu cotidiano a mdia, histrias e personagens, sejam
pelos prprios quadrinhos ou por outros meios de comunicao e linguagem.
Um
exemplo comum o docente utilizar o cartoon e a caricatura como histrias em
quadrinhos. Scott McCloud (1995 p.9) afirma que as histrias em quadrinhos so
imagens pictricas, concretas ou abstratas das quais em justaposio e em
sequncia se prope a se comunicar com o receptor. Ou seja, nesse caso a
caricatura e o cartoon no se aplicam pois eles no possuem a premissa de
comunicar com textos verbais e no verbais em sequncia.
Quando o leitor consegue realizar uma leitura fluida, a narrativa dos
quadrinhos atinge a sua completude, pois se eliminam as fronteiras entre a
leitura verbal e a visual, procedendo-se a uma leitura nica. Essa linguagem
autnoma e oferece ao seu leitor uma gama de elementos a serem observados
separadamente como tipografia, desenhos, perspectiva, onomatopias, narrativa,
oralidade e dependendo do gnero que se apresenta, diferentes formas de leitura
de uma mesma histria. (PESSOA, p.15, 2010)
Eisner (2005,
p.10) aproxima ainda mais as histrias em quadrinhos dos estudos orais quando
alega que os quadrinhos estruturam-se conforme disposio impressa de arte e
bales em sequncia, ou seja, o balo, para Eisner um elemento essencial e
dentro da estrutura da linguagem, o balo de texto simula dilogos e estruturas
orais que estimulam o imaginrio do leitor e refrata no seu cotidiano.
A Oralidade e
histrias em quadrinhos
A capacidade de
articulao oral enquanto forma de se comunicar a primeira a ser
desenvolvida, antes mesmo do indivduo ter idade para a vida escolar. A
habilidade de construo de textos verbais e no verbais so auxiliados por
tecnologias como a escrita e a relao entre textos por linguagens como as
histrias em quadrinhos.
O ensino dos
gneros orais por muitas vezes negligenciado na educao, muito em parte pela
prpria natureza do espao educacional que por si s um espao sonoro e por
assim dizer, repleto de manifestaes orais que podem se confundir com baguna,
falta de concentrao ou de aproveitamento escolar. O docente acaba por
privilegiar gneros textuais como uma estratgia disciplinar ou de conduo da
aula, uma vez que em muitas instituies o silncio em sala de aula ainda
considerado um item importante para o aprendizado.
Assim, os alunos
acabam em seu desenvolvimento apresentando dificuldades em relacionar a
oralidade, seja ela formal ou informal com gneros textuais, deixando-os com
marcas de oralidade no discurso. Ao mesmo tempo, o indivduo apresenta
problemas de oralidade em apresentao de seminrios ao ler o material de
apoio, como slides e textos complementares apresentao de maneira aptica,
sem a aplicao de entonao, pausa, alongamento, respirao, postura
comunicacional perante o seu pblico e tempo de leitura.
As histrias em
quadrinhos so em sua grande maioria baseadas em personagens que possuem arqutipos
nas histrias de tradio oral e que possuem dilogos com contextos
considerados de natureza universal, o que facilita o seu uso para estratgias
de ensino focados na oralidade.
As
histrias de tradio oral esto presentes em praticamente todas as
civilizaes, desde os tempos remotos. Elas so testemunhos, verdicos ou no,
que so transmitidos em forma de contos, provrbios, baladas, entre outras.
Dessa maneira, os contos tradicionais que conhecemos foram recolhidos por
pesquisadores que fizeram seu registro escrito, por vezes fidedigno, s vezes,
nem tanto, para que as mesmas no se perdessem ao longo do tempo e se tornassem
conhecidas por outras regies e at mesmo naes distintas. (S SILVA, MAI e
WANZELER p.79, 2018)
Neste contexto,
as histrias em quadrinhos apresentam algumas caractersticas em sua construo
que podem beneficiar o estudo da oralidade, pois apesar de ser em um primeiro
momento um material textual, ele bastante sonoro.
Nos
quadrinhos, a representao da fala na escrita ganhou um estudo particularmente
pertinente nossa discusso. Eguti (2001) mostrou que os quadrinhos possuem
mecanismos prprios de representao da oralidade. Todos os elementos da lngua
oral abordados aqui teriam um recurso correspondente. O turno representado
com o auxlio dos bales. O contorno do balo - tracejado, trmulo ou outro -
indica nfase ou tom de voz alto. A fala dos personagens indicada por meio de
uma seta, chamada de apndice (em Eguti, 2001) ou rabicho (em Vergueiro,
2005a), que vai na direo do personagem. As onomatopias indicam os sons (no
falados pelos personagens). (RAMOS, p.06, 2006)
O primeiro olhar
do uso das histrias em quadrinhos como estratgia complementar do ensino da
oralidade se d pelos seus elementos estruturais. O conectivo entre o texto
verbal e no verbal, o balo de texto se comporta como uma veiculao de
dilogo entre personagens, ou ainda entre leitor e personagem. Para tanto, o
balo de texto se apresenta de diferentes morfologias, com o intuito de
enfatizar emoes, entonaes, altura da fala dentre outras indicaes que
remetem fala.
As onomatopias
so outro elemento pertinente ao estudo da oralidade pelas histrias em
quadrinhos, uma vez que elas complementam a paisagem sonora de uma determinada
cena, ilustram um som de um golpe, um impacto, funcionamento de uma determinada
tecnologia entre outros.
Por
meio de onomatopias, o narrador das histrias orais consegue passar de forma
realista, vigorosa e convincente a carga emotiva que est por trs do gesto da
personagem, dando a ideia aproximada da dramaticidade da cena. (ALCOFORADO,
2008, p. 69-70)
O texto verbal
das histrias em quadrinhos so repletos de exemplos de discursos extrados da
oralidade, tanto em sua esfera informal quanto formal, uma vez que sua
aplicao reside na interpretao oral de seus respectivos personagens. A
natureza intrnseca das histrias em quadrinhos o ato de dialogar. Os
letristas, profissionais responsveis pela editorao e aplicao dos textos
nas artes, procuram explorar elementos que reforam o carter sonoro, tais como
o uso de exclamaes, palavras ou expresses em negrito, com tipografias ou
cores diferenciadas para determinados personagens.
A anatomia
expressiva, bem como os rostos ressaltam a dramaticidade do texto verbal, bem
como enquadramentos de cenas. O estilo de desenho ressalta um discurso formal
ou irnico.
Por fim,
importante destacar a natureza da criao de personagens e histrias que em
muitos casos remontam a tradio oral de contar histrias. Todos esses
elementos podem, portanto, servir de subsdios para a transposio do
aprendizado de gneros orais.
Possibilidades
Pedaggicas
recomendado ao
docente que o trabalho com oralidade seja constante e progressivo, ou seja, que
se inicie da sensibilizao, perpassando pela oralidade informal at os gneros
orais mais formais e tcnicos, aprofundando o tema gradativamente. Consideramos
que o mesmo deve ser feito em relao s histrias em quadrinhos.
Entendemos que a
troca de referncias de histrias em quadrinhos entre alunos e professor uma
experincia muito enriquecedora, uma vez que todos os atores envolvidos iro
aprender acerca de histrias, personagens, publicaes e o professor, enquanto
agente mediador de processo j pode estabelecer com essa sensibilizao
trabalhar alguns conceitos de oralidade, estimulando o ato da conversao, da
espera, do saber escutar o outro, de promover o ato de contar histrias ou das
razes que os motivam para gostar ou detestar um determinado personagem entre
outros. No espao da escola, outros agentes podem colaborar com a prtica da
oralidade enquanto meio de ensino e aprendizagem.
(...)
os profissionais envolvidos nas atividades de leitura podem ser bibliotecrios,
professores, pedagogos, escritores, voluntrios etc. os quais devem trabalhar
em conjunto com planejamento e discusses sobre o assunto, com intuito de
observar um excelente resultado no desempenho dos leitores. (CORRA, p.184,
2017)
Outra possibilidade que envolve
quadrinhos e oralidade a prtica da leitura dramtica, ou seja, a leitura
para o pblico de uma histria em quadrinhos. O docente pode iniciar promovendo
uma leitura de uma histria, de preferncia curta e rica de dilogos, com
conectivos, palavras em negritos, balo de texto em formas variadas e
personagens com discursos orais distintos.
O ato
de contar histrias atribudo, em grande parte dos casos, a algum com maior
experincia, como sendo uma atividade que merece ateno e trato refinados,
fazendo com que o ouvinte prenda sua ateno quilo que est sendo contado. Esse
fator de experincia maior reforado por Benjamin (1994, p. 200), quando diz
que o narrador um homem que sabe dar conselhos, ou seja, sendo possuidor de
vivncias maiores, aquele que narra assume a propriedade de passar a
experincia socialmente compartilhada aos outros membros do grupo. (HAERTER,
BARBOSA JNIOR e BUSSOLETTI, p.91, 2017)
A leitura pode
iniciar pelo professor e depois ser compartilhada entre os alunos. Essa prtica
ir estimular a relao entre leitura e discurso e por ser uma atividade
ldica, cabe ao docente gerenciar o espao de fala de cada um. A leitura
dramtica pode ser realizada com quadrinhos impressos, slides ou ainda em
dispositivos mveis.
Outra atividade
que atua na relao entre oralidade e escrita o de recriar dilogos nas
histrias em quadrinhos. O Docente pode apresentar histrias com bales de
texto em branco e solicitar que o aluno, baseado nas representaes visuais no
verbais como as expresses dos personagens, que escreva dilogos com elementos
pertinentes aos textos nos quadrinhos, tais como palavras em negrito,
exclamaes, frases com marcas de oralidade entre outros. O dilogo reescrito
pode servir de base para uma variao da leitura dramtica, pois desta vez
podemos observar a leitura a partir de um texto criativo e autoral, o que faz
com que o discurso ou a forma que o aluno faz a leitura do texto seja mais
espontnea e assertiva.
As histrias em
quadrinhos podem servir de escopo para a produo de seminrios, que envolvam a
leitura ou discusso de uma histria, ou um tema que possua subsdios para um
debate entre alunos.
O
mtodo para implantao dessas atividades , justamente, apresentar prticas de
leituras, com tarefas que podem ser desenvolvidas de diversas maneiras, tanto
em voz alta como em silncio absoluto, individual ou em grupo, na sala de aula
ou na biblioteca, com a utilizao de diferentes recursos para criar um maior
envolvimento do leitor com as histrias, tais como: msicas, ilustraes de
livros, dramatizao com a representao do modo de agir dos personagens,
material audiovisual (KUHLTHAU, 2006). Convm ressaltarmos que as atividades
devem ser adequadas s diferentes faixas etrias. (CORRA, p.184, 2017)
O escopo da histria pode ser
relacionado com a comunidade fandom dos personagens e com isso ser proposto a
criao de vdeos, podcasts ou resenha orais, sobre o quadrinho em questo. O
aluno passa de leitor a criador de contedo a partir das histrias em
quadrinhos. Neste caso o docente pode avaliar se o uso de tecnologias de
gravao audiovisual vivel para o espao educacional do qual ele e os alunos
esto inseridos propicia o desenvolvimento dessa atividade.
possvel tambm construir os
dilogos a partir de situaes elaboradas em um storyboard, por exemplo,
desse modo compreender como o contexto interfere diretamente no texto, pois
este decorrente daquele. Posteriormente seria possvel representar a cena
criada, seja ela um anncio, comercial, ou esquete, ressaltando como o texto
muda de acordo com a finalidade, regio, tempo, circunstncia e outras
situaes onde seja necessria a articulao entre o que ocorre e o que
falado.
Por fim, consideramos a criao de
histrias em quadrinhos e seu respectivo ato de ler e apresentar a histria
como um ponto relevante na prtica da oralidade, uma vez que o aluno ir criar
narrativas com marcas de oralidade para construir dilogos para a trama e
apresentar essa histria para receptores como alunos e professores. A leitura e
recepo iro trazer ao aluno uma compreenso acerca de sua assertividade
textual e oral, apontamentos que iro estimular o aprimoramento do texto
produzido e apresentar o aluno no apenas como um ator que aprende, mas como um
ator que possui contedo e est disposto a compartilhar com a comunidade
educacional do qual o mesmo est inserido.
Consideraes
O artigo apresenta uma proposta de
uso de histrias em quadrinhos como estratgia complementar de ensino de
oralidade na educao bsica, abordando desde a sensibilizao do aluno ao contexto
das histrias em quadrinhos at o estudo da oralidade a partir de quadrinhos
escritos e produzidos pelos prprios alunos. Para fundamentar nossa proposta,
apresentamos aqui autores que ressaltam o quanto importante o ensino de
oralidade e histrias em quadrinhos na educao bsica, alm de pesquisadores
que refletiram em concordncia com o autor deste artigo acerca do uso dos
quadrinhos para ensinar oralidade.
Dentro do contexto do uso das
histrias em quadrinhos e oralidade, importante que o docente esteja aberto a
compreender os elementos constituintes das HQs, tanto no contexto da leitura
quanto da criao. No solicitamos que o docente saiba desenhar ou escrever
quadrinhos, mas que, a partir do conhecimento da linguagem, narrativa e
construo de uma histria em quadrinhos seja capaz de gerenciar e apresentar
estratgias criativas, que o utilize para ensinar oralidade e os gneros orais
para criar quadrinhos.
Solicitamos ainda que o ensino da
oralidade seja pensado como um ato frequente e de evoluo ao longo do perodo
letivo, e no como uma aula isolada ou um tpico a ser estudado. A oralidade
um processo vivo de aprendizado, do qual o discente apresenta um conhecimento
anterior escola e ao ato de escrever ou desenhar. A oralidade no deve ser
negligenciada em nome de uma suposta ordem disciplinar. Silncio no sinnimo
de ateno ou de aula bem sucedida.
O mesmo pode ser recomendado em
relao s histrias em quadrinhos. Apesar de ser primordialmente um meio de
entretenimento, no devemos subestimar o seu potencial educacional, tanto na
questo da leitura, escrita verbal e no verbal, bem como na sua
potencialidade, enquanto uma linguagem sonora, a de apresentar potencialidades
no uso da oralidade.
No cabe aqui ponderar como ou quais
ferramentas o docente da educao bsica deve utilizar para realizar o seu
trabalho a contento. Apesar de buscarmos refletir o uso das histrias em
quadrinhos e oralidade em mltiplos contextos sociais, entendemos que o Brasil
um pas que tem na educao um dos maiores indicativos discrepantes no que se
refere condies igualitrias de ensino e aprendizagem.
O que objetivamos enquanto
pesquisadores apresentar propostas e ideias que podem ser aproveitadas e
debatidas na comunidade acadmica e desenvolvidas em sala de aula. O artigo no
apresenta resultados por no ser um relato de experincia. Entendemos o artigo
como uma proposta pedaggica, da qual pode ser incorporada e adaptada ao
docente dentro do seu contexto e realidade de trabalho em seu espao
educacional.
Referncias
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Rosrio Suarez. Contos populares brasileiros. Bahia; Recife: Fund. Joaquim
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funes narrativas de PROPP em duas verses do conto A Bela Adormecida e suas
implicaes para o contexto escolar. In: Boitat, Londrina, n. 26, ago.-
dez. 2018.
[Recebido:
01 jun 21 - Aceito: 01 jul 21]
Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de
reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG
Religious landscape: popular catholicism and the company of
kings and the company of the Baby Jesus of Carmo Do Rio Claro, MG
Fbio Martins[38]
https://orcid.org/0000-0003-4290-4086
Leonel Brizolla Monastirsky[39]
https://orcid.org/0000-0003-1853-8960
Resumo:
No municpio de Carmo do Rio
Claro-MG evidencia-se a expresso do catolicismo popular, com destaque para um
sistema cultural religioso e inmeras prticas de religiosidade vinculadas ao
calendrio litrgico. A partir da observao das Companhias de Reis e do Menino
Jesus buscou-se identificar as diversas prticas de religiosidade popular e a
espacialidade dos smbolos e manifestaes religiosas. Ainda focou-se na
identificao e interpretao da simbologia que as sustentam. Como metodologia
adotou-se a pesquisa de campo - com a observao participante e a realizao de
entrevistas. O conceito de paisagem religiosa foi contemplado na perspectiva da
Geografia Cultural como pressuposto para se pensar as Companhias de Reis e do
Menino Jesus enquanto um sistema de crena religiosa, permeada por cdigos,
smbolos e signos que revelam prticas histricas, vivncias, memrias
individuais e coletivas para ser preservadas.
Palavras-chave: Paisagem; Religiosidade;
Manifestaes religiosas; Catolicismo popular; Geografia Cultural.
Abstract:
In the municpality of Carmo do Rio
Claro-MG, the expression of popular Catholicism is evident, with emphasis on a
religious cultural system and numerous practices of religiosity linked to the
liturgical calendar. From the close observation of the Company of Kings and the
Company of the Baby Jesus, we sought to identify the various practices of
popular religiosity and the spatiality of symbols and religious manifestations.
It also focused on identifying and interpreting the symbolism that underpins
them. Field research was adopted as a methodology - with participant
observation and the conducting of interviews. The concept of religious
landscape was considered from the perspective of Cultural Geography as a
presupposition for thinking about the Company of Kings and the Company of Baby
Jesus as a system of religious belief, permeated by codes, symbols and signs
that reveal historical practices, experiences, as well as individual and
collective memories to be preserved.
Keywords: Landscape; Religiosity; Religious Manifestations;
Popular Catholicism; Cultural Geography.
Introduo
A presena das manifestaes de religiosidade do catolicismo
popular na paisagem de Carmo do Rio Claro-MG[40],
se configura desde a fundao do municpio, dos cinco grupos de Companhias de
Reis, quatro ternos de Congo, um terno de Moambique, alm de grupos de homens
rezadores para almas. Atualmente, apenas quatro grupos de Companhias mantm
suas atividades, sendo trs Companhias no permetro urbano: Companhia do Menino
Jesus e duas Companhias de Reis (Estrela da Guia e Estrela do Oriente), alm de
uma Companhia de Reis no distrito rural das Trs Barras.
Com a
significativa reduo dessas manifestaes de religiosidade popular e a
representatividade dessa tradio cultural no estado e no prprio municpio,
como elemento integrante da paisagem tem-se sua presena durante o ciclo
natalino, em locais como praas, igrejas, ruas, estradas, casas, na jornada dos
folies.
A
presente pesquisa tem como objetivo identificar as diversas prticas de
religiosidade popular e a espacialidade que assume os smbolos e manifestaes
religiosas. A escolha da temtica e do recorte espacial justificam-se pela
identificao de uma multiplicidade de saberes e prticas populares envolvendo
a religiosidade. Adotou-se como
aporte metodolgico a pesquisa de campo durante o perodo de 25 de dezembro de
2018 a 27 janeiro de 2019, atravs da observao participante e entrevistas
semiestruturadas.
O trabalho de campo permite captar subjetividades,
significados, sentidos e caractersticas socioculturais. Uma das prticas de
pesquisa qualitativa mais difundida a observao participante ou
participativa, em que existe mediao, ao dialgica e elaborao conjunta
entre o pesquisador com os interesses da comunidade ou grupo, envolvendo
tomadas de decises sobre uso de recursos, demanda ou adoo de polticas
pblicas. (HEIDRICH, 2016, p. 25).
Na primeira seo faz-se uma discusso terico-conceitual da
paisagem religiosa pela perspectiva da Geografia Cultural. Na segunda seo
revela-se a paisagem religiosa desde a fundao do municpio mineiro mantendo
viva uma srie de tradies, como as Companhias de Reis e do Menino Jesus. A
terceira seo aborda na paisagem a religiosidade popular atrelada ao
catolicismo.
A
paisagem religiosa na geografia cultural
As
pesquisas da geografia cultural, ps 1970, abordam [...] o simbolismo de
coisas e objetos na paisagem enfatizando aspectos materiais e imateriais da
cultura. (ROSENDAHL, 2012, p. 29-31). De acordo com Claval (1999, p. 14), a
paisagem como objeto de interpretao, pois carrega a marca da cultura e
serve-lhe de matriz, assim como, moldada e projetada pelas convices
religiosas.
Contudo,
a religio influencia, enfim, os ritmos de vida de todos pelos calendrios e
as festas que institui. Ela cria para os sacerdotes e religiosos, gneros de
vida especficos. E, a partir de 1976, em Yi-Fu Tuan destaca [...]o peso das
representaes religiosas, com intuito do conhecimento acerca da lgica
profunda das ideias, das ideologias ou das religies para ver como elas modelam
a experincia que as pessoas tm no mundo e como influem sobre sua ao.
(CLAVAL, 1999, p. 53).
A
paisagem descrita por Dardel (2015, p. 32) circunscreve a insero do homem no
mundo, lugar de um combate pela vida, manifestao de seu ser com os outros,
base de seu ser social.
A paisagem um conjunto, uma convergncia, um momento vivido, uma
ligao interna, uma impresso que une todos os elementos. [...] A paisagem se
unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente vlida,
ainda que refratria a toda reduo puramente cientfica. Ela coloca em questo
a totalidade do ser humano, suas ligaes existenciais com a terra, ou se
preferimos, sua geograficidade original: a terra como lugar, base e meio de sua
realizao. (DARDEL, 2015, p. 31).
A
Escola de Berkeley trouxe as qualidades simblicas da paisagem, que sustentam
seu significado social, como um texto [...] a ser lido e interpretado como
documento social, uma imagem cultural, que pode ser revelada enquanto configurao
de smbolos e signos atravs de diversos meios e superfcies [...]. (COSGROVE;
JACKSON, 2011, p. 137).
Geertz
(2012) prope a anlise de crenas e prticas religiosas enquanto um sistema
cultural, do qual o conceito semitico de cultura se adapta.
E sabendo-se que a paisagem conforme Torres (2013) est em
constante transformao e repleta de elementos simblicos, sua leitura de mundo
se estabelece a partir da experincia de cada indivduo que interage com ela,
[...] seja no plano da materialidade das coisas que os seres humanos
constroem/desconstroem e organizam no espao, seja no plano da imaterialidade;
dos sentidos e significados atribudos a cada elemento constituinte da
paisagem. (p. 95).
As paisagens segundo Torres (2013) contm histrias e
discursos, expressos em memrias individuais e coletivas de valores construdos
ao longo do tempo, alm de confirmarem-se no subjetivo de cada indivduo, as
paisagens tornam-se elos de contato a partir de experincias de coletividade.
Os discursos decorrentes da paisagem e presentes nela podem estar
contidos em uma ou mais formas simblicas (arte, mito, religio, linguagem), o
que garante o sentido atribudo a cada paisagem. Portanto, numa observao
esttica da paisagem que considere apenas os subsdios materiais visveis,
elementos do sagrado podem passar despercebidos, o que inviabiliza ou minimiza
o potencial do estudo da paisagem religiosa. (idem, p. 98).
Kozel
(2012) destaca a paisagem pelos mltiplos elementos (visuais, sonoros,
odorferos, palatveis e tcteis), sendo estes, portadores de significados por
aqueles que os vivenciam. Portanto, h inmeras maneiras de represent-la, uma
vez que tambm so inmeras as percepes, valores e significaes de quem vive
e capta essa paisagem. (p. 68).
Cada paisagem produto e produtora de cultura, e possuidora de
formas e cores, odores, sons e movimentos, que podem ser experienciados por
cada pessoa que nela se insira, ou abstrado por aquele que l pelos relatos
e/ou imagens. Nesse sentido, por meio da paisagem que os elementos que
integram no espao saltam aos olhos do ser humano, gritam aos seus ouvidos,
e envolvem-no nas suas dimenses sensveis. (KOZEL, 2012, p. 69).
Desse
modo, a reflexo posta por esses autores possibilita a compreenso da paisagem
das Companhias de Reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG enquanto um
sistema de crena religiosa permeada por cdigos, smbolos e signos, que se
revelam atravs das vivncias, memrias individuais e coletivas.
Paisagem
religiosa em Carmo do Rio Claro-MG
O
processo histrico de formao cultural em Carmo do Rio Claro-MG,
desenvolveu-se em face a uma paisagem marcada por serras, vales, ribeires,
cachoeiras, alm do Rio Grande (Jetic) e do Rio Sapuca. Conforme Grilo (1996,
p. 11-14), a paisagem revela-se pela linguagem potica e geogrfica:
Vemos l no alto. Depois de um breve descanso do esforo de
subida, calmamente fiquemos de p e olhemos a nossa volta. Se apontarmos o
nosso brao direito para o lado onde o sol est nascendo, veremos nossa
frente bem aqui embaixo, ao p da serra a cidade est acordando... Um pouco a
direita e seguindo para o norte, que tudo o que vemos nossa frente, h uma
superfcie prateada e recortada: so as guas da represa de Furnas que chegam
at perto da cidade. Depois das guas, cresce a silhueta escuro-azulada das
serras; comeam bem a frente, como Serra da Tromba e vo se espichando na
direo do nosso brao esquerdo (para Oeste), como Serra do Ferreira, Serra do
Tabuleiro e Serra dos Pinheiros, bem longe, na direo de Alpinpolis... Ali,
ao p do Tabuleiro e dos Pinheiros, h um represamento especial das guas. Hoje
no d pra perceber que um rio, mas um rio represado, e um rio muito
importante para ns: o Sapuca.
Enquanto isso, vamos olhar na direo do nosso brao esquerdo:
aqui embaixo, bem ao lado da cidade, comea uma outra serra formada por duas
sequncias: a da Rapadura e do Santana. Dirige-se sempre para o oeste
inclinando um pouco a norte: parece que vai se encontrar com a dos Pinheiros l
longe, j perto da Ventania.
Entre estas, e na mesma direo, fica, portanto, uma regio baixa,
alongada, com pouca elevao, vrios crregos pequenos que, daqui do alto,
quando os vemos, parecem fiozinhos de prata. Podemos chamar a esta rea de vale
e talvez pudssemos dar-lhe o nome de Vale do Itapich, pois este seu
principal ribeiro. Tambm segue na direo da Serra da Ventania e morre l,
aos seus ps.
Olhando, ao contrrio, na direo de nosso brao direito (leste)
vemos em primeiro lugar o prprio prolongamento da serra em que estamos, que
hoje chamada de Tormenta. Logo depois dela, mais gua, mais represa. A tambm
est o Rio que no vemos, o Sapuca...Para alm das guas, podemos ver um pouco
embaados os prolongamentos dos morros e as regies mais planas que formam os
campos. De um lado, os morros e as regies mais planas que formam os campos, os
Campos Gerais, o Campo do Meio e outros...Temos de virar de costas. Vamos
apontar agora o nosso brao esquerdo na direo do sol nascente e dando as
costas a Serra da Tromba e a cidade. Bem a nossa frente (Sul) logo ao p da
serra em que estamos, podemos ver uma ponta da represa que depois se prolonga
em dois fios de gua: onde o Rio Claro, que vem mais do sul, se encontra com
o Santa Quitria, que vem quase beirando a Serra da Rapadura. Hoje desaparecem
juntos na represa; antes, desaguavam juntos no Rio Sapuca, formando a barra do
Rio Claro. Depois se estendem outros morros, outras serras, outras pontas de
represa – uma delas, bem ao longe, a do Rio Moambo ou Muzambo –
outras, mais prximas so as do Correnteza, do Cavaco etc.
Nesta
paisagem to rebuscada de morros, serras, rios e crregos de Carmo do Rio
Claro-MG reverbera-se manifestaes de religiosidade popular vinculadas aos
calendrios litrgico e cclico, pautado em celebraes - missas, novenas,
procisses, comemoraes e festejos.
Identificou-se
a seguinte organizao das atividades religiosas e perodos em um calendrio
litrgico (Quadro 01): entre os meses de dezembro
e janeiro contempla-se o ciclo de
comemoraes natalinas que se encerra com a festa da epifania; entre os
meses de fevereiro, maro e abril,
contempla-se o perodo de quarenta dias da
quaresma, alm das celebraes da semana
santa; j entre os meses de junho a
novembro, contemplam-se as celebraes
e ou comemoraes mensais: Corpus Christi (junho), padroeira do municpio
Nossa Senhora do Carmo (julho), Bom Jesus dos Aflitos do Itacy (agosto), Nossa
Senhora Aparecida (outubro) e finados (novembro). (INFORMAO VERBAL[41]).
Quadro 01- Calendrio Litrgico
Celebraes e Manifestaes de Religiosidade em Carmo Do Rio
Claro (MG)
ATIVIDADE |
PERODO |
LOCAL |
DEZEMBRO |
||
Novenas
de Natal |
Durante todo o ms de dezembro |
Casa das famlias |
Apresentao
dos Grupos de Companhias de Reis e do Menino Jesus |
25 de dezembro a 06 de janeiro -
perodo que pode se estender em funo das demandas de promessas |
Casa das famlias (devotos de
Santos Reis) |
Missa
da Passagem de Ano |
ltimo dia do ms de dezembro |
Igreja Matriz Nossa Senhora de
Ftima e Sagrada Famlia |
JANEIRO |
||
Festejo
de chegada dos grupos de Companhia de Reis e do Menino Jesus |
Dia 06 de janeiro |
Participao dos grupos Companhias
nas missas. Chegada das Companhias de Reis:
Salo de festa Igreja Matriz Sagrada Famlia e do Menino Jesus: Lar do Idoso
Frederico Ozana |
FEVEREIRO - MARO - ABRIL |
||
Quaresma |
40 dias |
Vrias localidades: atividades que
se iniciam na Quarta-Feira de Cinzas e se estendem at a comemorao da
Pscoa |
Quarta-feira
de Cinzas |
Aps os festejos de carnaval entre
os meses de fevereiro ou maro |
Igreja Matriz Nossa Senhora de
Ftima e Sagrada Famlia: celebraes com a uno e distribuio de cinzas |
Vias
Sacras |
40 dias durante a quaresma:
quartas e sextas |
Pelas ruas da cidade ou dentro da
Igreja |
Procisso
Penitencial |
Todas as sextas durante a quaresma |
Ruas da cidade: 5 horas da manh |
Procisso
Domingo de Ramos |
Durante a Semana Santa |
Capela N. Sr. dos Passos at a
Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima |
Procisso
do Depsito |
Segunda-feira noite - Semana
Santa |
Conduo das Imagens de N. Sr. dos
Passos (por homens) e de N. Sr. das Dores (por mulheres) as suas Capelas de
origem |
Viglia
|
Segunda-feira noite - Semana
Santa |
Capela N. Sr. dos Passos |
Procisso
do Encontro |
Quarta-feira noite - Semana
Santa |
Conduo das Imagens de N. Sr. dos
Passos (por homens) e de N. Sr. a. das Dores (por mulheres) at a Igreja
Matriz Nossa Senhora de Ftima |
Instituio
da Eucaristia e Missa de Lava Ps |
Quinta-feira noite - Semana
Santa |
Igreja Matriz Nossa Senhora de
Ftima |
Ato
de Penitncia |
Quinta-feira noite - Semana
Santa |
Subida da Serra da Tormenta |
Via
Sacra dos Jovens |
Sexta-feira da paixo Semana Santa |
Subida da Serra da Tormenta |
Procisso
das Velas: Jesus morto com os esquifes |
Sexta-feira da paixo - Semana
Santa |
A imagem de Jesus morto com os
esquifes sai da Igreja Matriz e faz um percurso em torno da Praa Cap. Pedro
Tito Pereira com retorno Matriz |
Missa
de Aleluia |
Sbado aps sexta-feira da Paixo
de Cristo |
Igreja Matriz Nossa Senhora do
Carmo e Sagrada Famlia |
Procisso
da Ressurreio |
Domingo de manh aps Sbado de
Aleluia |
Igreja Matriz Nossa Senhora do
Carmo: Missa na Capela do Senhor dos Passos com procisso at a Matriz
Senhora de Carmo Sagrada Famlia: ruas do bairro
Jardim Amrica |
JUNHO |
||
Celebraes
de Corpus Christi |
Comemorado no ms de junho 60 dias
aps a Pscoa |
Igreja Matriz Nossa Senhora de
Carmo e Sagrada Famlia: confeco de tapetes artsticos para procisso nas
ruas prximas s igrejas |
JULHO |
||
Comemoraes
padroeira Nossa Senhora do Carmo: procisso e festejos |
16 de julho |
Igreja Matriz Nossa Senhora do
Carmo: Procisso de Nossa Senhora do
Carmo pelas ruas da cidade; alm de festa de barraca armada na praa em
frente Igreja |
AGOSTO |
||
Celebraes
e festejos Bom Jesus dos Aflitos do Itacy |
29 de julho a 06 de agosto |
Santurio Bom Jesus dos Aflitos:
Novena e missas do Bom Jesus dos Aflitos, distrito do Itacy, fluxo de 30 a 50
mil devotos |
OUTUBRO |
||
Nossa
Senhora Aparecida |
15 de outubro |
Subida da serra da tormenta at a
capelinha Nossa Senhora Aparecida; Celebraes de missas nas matrizes Nossa
Senhora de Ftima e Sagrada Famlia |
NOVEMBRO |
||
Finados |
O2 de novembro |
Visitao aos tmulos no cemitrio
municipal de Carmo do Rio Claro (MG) |
Fonte: Informao Verbal, 2029. Org.: O Autor
Existem
ainda, as prticas de religiosidade que acontecem semanalmente, como as missas
nos bairros e na zona rural, o tero dos homens, grupos de oraes, catequese e
visitao da capelinha Me Rainha nas casas dos devotos (Quadro 2).
Quadro 02- Atividades de Religiosidade que acontecem durante
todo o ano
LOCAL |
|
Missas
semanais nas Igrejas Matrizes |
Igreja Matriz Nossa Senhora de
Carmo e Sagrada Famlia |
Missas
com celebraes nos bairros |
Capela Nosso Senhor dos Passos,
Jacuba, Rosrio, Porto, Bananal, So Benedito e Nosso Senhor dos Aflitos |
Tero
dos homens |
Segunda-feira Parquia Sagrada
Famlia e quarta-feira Parquia Nossa Senhora do Carmo |
Grupos
de oraes |
Segunda-feira: Parquia Sagrada Famlia;
Quarta-feira: Capela do Hospital (So Vicente de Paulo) e sexta-feira: Capela
So Benedito |
Visitao
uma vez por ms da capelinha Me Rainha Nossa Senhora de Schoenstatt |
Casas de devotos |
Catequese
|
Parquia Nossa Senhora do Carmo
funciona de segunda a sexta com horrios especficos Parquia Sagrada Famlia: Primeira
etapa (eucaristia), quarta-feira s 17:30. Segunda etapa (crisma) domingo s
18:00 |
Missas
rurais |
Parquia Sagrada Famlia:
quinta-feira em um bairro rural. Parquia Nossa Senhora do Carmo:
quarta-feira em um bairro rural |
Missas
setoriais (bairros) |
Parquia Nossa Senhora do Carmo
celebra na segunda-feira e no sbado missas nos bairros |
Grupo
de Jovens |
Encontro semanal s quintas-feiras
noite aps a missa |
Fonte: Informao Verbal, 2029. Org.: O Autor
As
diversas prticas de religiosidade configuram a paisagem de Carmo do Rio Claro,
h cerca de um sculo e meio, por meio de elementos simblicos materiais e
imateriais que carregam consigo elos de uma tradio em celebraes e festejos,
experienciados de forma coletiva ou individual em face de distintas
espacialidades.
As
espacialidades (imagem 1) vivenciadas pelas
prticas de religiosidade do catolicismo popular vinculam-se a nove locais -
igrejas matrizes: Nossa Senhora do Carmo, situada no centro da cidade e a
Sagrada Famlia, situada no bairro Rua Nova; Capela Nosso Senhor dos Passos,
situada aos ps da Serra da Tormenta e a Capela de Nossa Senhora Aparecida no
alto da Serra da Tormenta; Igreja do Rosrio e Igreja So Benedito nos bairros
do Rosrio e So Benedito; Centro de Formao So Jos situado no bairro
Corao Eucarstico; Capela do Hospital So Vicente de Paulo situado no bairro
Santo Antnio; e o Cemitrio Municipal situado no bairro Rua Nova.
A
capela Nosso Senhor dos Passos, construda em estilo colonial aos ps da Serra
da Tormenta no ano de 1860, constitui-se a edificao mais antiga do municpio
e abriga a imagem de Nosso Senhor dos Passos que faz parte da prestigiada
Procisso do Encontro realizada durante a semana santa.
No centro da cidade fica a igreja matriz Nossa Senhora do
Carmo, onde h mais de um sculo ocorre a maior parte das celebraes e ritos
religiosos, como as procisses do Encontro e do Senhor Morto, que na semana
santa renem milhares de fiis em caminhada pelas ruas da cidade, alm das
celebraes de Corpus Christi e a festa em louvor a Nossa Senhora do Carmo.
Uma
espacialidade evidenciada na quarta-feira da semana santa, quando realizam a
procisso do Encontro. Enquanto a imagem sacra de Nosso Senhor dos Passos
carregada por homens que partem da Capela Nosso Senhor dos Passos com destino
igreja matriz Nossa Senhora do Carmo, a imagem de Nossa Senhora das Dores
paralelamente carregada at aquela, por mulheres da Igreja de Nossa Senhora
do Rosrio.
A
procisso de Jesus Morto com os Esquifes acontece na noite da sexta-feira da semana
santa (da paixo). Popularmente conhecida como procisso das Velas, os fiis,
empunhando suas velas acesas, conduzem oraes e cantos penitenciais fnebres
de aluso a Jesus Morto. Aps a procisso, a imagem de Jesus Morto adentra a
igreja Nossa Senhora do Carmo onde as pessoas fazem suas reverncias imagem.
No ms de julho, comemora-se o
aniversrio da padroeira do municpio com festejos de barraca em frente
igreja matriz, alm da procisso, na qual os fiis proferem hinos de louvor
imagem de Nossa Senhora do Carmo.
A
Igreja Nossa Senhora do Rosrio e So Benedito, at meados de 1990, realizavam
prticas vinculadas religiosidade de matrizes africanas, como a Congada e o
Moambique, quando existiam ternos de congo e Moambique que saam em cortejo
pelas ruas da cidade ao encontro do seu rei e da sua rainha. A chegada destes
grupos acontecia na praa localizada em frente Igreja do Rosrio, entre o
cruzeiro e a igreja, danavam e cantavam sincronizados sonoridade dos
instrumentos percussivos e das latinhas com pedrinhas e sementes amarradas nas
pernas. A praa tambm era palco de outras celebraes dedicadas Nossa Senhora
do Rosrio, onde se realizava a procisso pelo bairro, missas e o festejo.
Ainda
na praa em frente Igreja do Rosrio at a dcada de 1990, durante o ciclo
natalino, no dia 06 de janeiro, acontecia o rito de chegada (imagem 2) do grupo
de Companhia de Reis Estrela da Guia para celebrar o dia dos Santos Reis. Arcos
de bambu, fitas e correntes de papis coloridos enfeitavam a praa, de modo que
a paisagem se transformava no palco de consagrao de mais um ciclo de jornada
completado pelos folies.
Nos
meses de junho ou julho a praa do Rosrio era decorada com bandeirinhas. Ali
acontecia a festa junina com a apresentao de quadrilhas. Tambm era comum
nesse perodo a prtica de teros dedicados aos santos catlicos, como So Joo
e Santo Antnio. Em vrias casas da cidade erguiam-se mastros de bambu, com
limes espetados em suas varetas. No seu topo, colocava-se a imagem de um
santo, que era decorada com flores de plstico ao seu redor.
No
cruzeiro localizado em frente Igreja do Rosrio e em outros, realiza-se a
prtica de descarte de imagens de santos quebrados, devido tradio popular
de que o descarte incorreto traz castigos. O cruzeiro tambm era o local de
onde partiam na madrugada, no perodo da quaresma, um grupo de homens, os
cantadores para as almas. Acompanhados de um instrumento percussivo de madeira,
matraca, cantavam na frente de algumas casas para as almas de pessoas j
falecidas. Existia a crena de que no se podia observar esse rito, sobre o
risco de visualizar imagens das almas dos falecidos.
Na
Serra da Tormenta, todos os anos, milhares de fiis realizam a subida at seu
cume, onde encontra-se localizada a capela dedicada Nossa Senhora Aparecida,
para os agradecimentos, oraes e depsito de objetos pelas graas alcanadas.
No ano
de 2006, ocorreu a construo da Igreja Matriz Sagrada Famlia e com isso as
principais atividades religiosas, ritos e celebraes, passaram a acontecer de
forma paralela nas duas parquias.
O
Santurio Bom Jesus dos Aflitos atrai no ms de agosto um fluxo de 30 a 50 mil
pessoas, para as celebraes de missas e novenas. Parte dos fiis atravessa de
balsa a represa de Furnas, para visitar o santurio e depositar objetos s
graas alcanadas.
As
manifestaes ligadas ao catolicismo de Carmo do Rio Claro-MG fazem-se
presentes no calendrio litrgico durante todo o ano, de modo que milhares de
fiis (re)vivem prticas de f dedicadas a distintos santos em diferentes
espacialidades. Nesse contexto, marcado pelas manifestaes de religiosidade
popular, aprofundar-se- nas Companhias de Reis e do Menino Jesus.
Uma paisagem religiosa pelo catolicismo popular: as
Companhias de Reis e do Menino Jesus
1.Tendo, pois, Jesus nascido
em Belm de Jud, no tempo do rei Herodes, eis que magos vieram do Oriente a
Jerusalm. 2. Perguntaram eles: Onde est o rei dos judeus que acaba de
nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos ador-lo. 3. A essa notcia, o
rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalm com ele. 4. Convocou os prncipes
dos sacerdotes e os escribas do povo e indagou deles onde havia de nascer o
Cristo. 5. Disseram-lhe: Em Belm, na Judeia, porque assim foi escrito pelo
profeta: 6. E tu, Belm, terra de Jud, no s de modo algum a menor entre as
cidades de Jud, porque de ti sair o chefe que governar Israel, meu povo. 7.
Herodes, ento, chamou secretamente os magos e perguntou-lhes sobre a poca
exata em que o astro lhes tinha aparecido. 8. E, enviando-os a Belm, disse:
Ide e informai-vos bem a respeito do menino. Quando o tiverdes encontrado,
comunicai-me, para que eu tambm v ador-lo. 9. Tendo eles ouvido as palavras
do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi
precedendo at chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou. 10. A
apario daquela estrela os encheu de profunda alegria. 11. Entrando na casa,
acharam o menino com Maria, sua me. Prostrando-se diante dele, o adoraram.
Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e
mirra. 12. Avisados em sonhos de no tornarem a Herodes, voltaram para sua
terra por outro caminho. (MATHEUS II: 1-12).
Aps
um ano de espera, chegada a hora! J nasceu o menino Deus. Os instrumentos
que se encontravam adormecidos em um cantinho de suas moradas reavivam-se: a
sanfona volta a respirar as melodias da devoo; a caixa sente aos poucos o
despertar de sua couraa animal, que ressuscita ao esticar/estralar/receber o
pulsar das batidas, que emergem em comunho com o corao daqueles que insistem
em reviver esta tradio; o chocalho se contorce ao guizo movimento repetitivo;
o pandeiro se revolta ao trepidar de um ritmo frentico a sentir o contato das
mos que o movimenta de um lado a outro, num zigue-zague sonoro; os
encordoamentos aos poucos aproximam dedos e corpos em busca da afinao perfeita,
que dar ritmo aos diferentes timbres de vozes queles que esto em prontido:
chegada a hora!
Trs
Reis preparam-se novamente para sair em jornada. Guiados pela estrela do
oriente vo em busca do Menino Deus, da esperana e da f. Revelam-se atravs
do objeto sagrado: a bandeira, e seguem sempre frente acompanhados por
cantadores e basties que fazem aluso aos guardas de Herodes em disfarce, com
a misso de matar o recm-nascido em Belm de Jud.
A
paisagem sonora dos transeuntes/automveis/pssaros/ ou do silncio noturno
cede espao aos anjos que cantam na glria: chegada a hora! Assim, a paisagem
se transforma em face de uma melodia caracterstica, da qual o gingado da
sanfona, aliado batida da caixa anuncia: chegada a hora! Ao longe, a
populao avista a chegada dos Reis Santos que so escoltados pelo colorido dos
adereos/roupagens dos folies. Basties sussurram em meio a performances
corporais, e so observados por devotos em janelas/portas/caladas de suas
moradas.
As
portas abertas se fazem cdigo recepo: d licena patro/d licena patroa,
chegada a hora! Em silncio, junto ao representante da morada, Trs Reis
Santos adentram na busca pelo Menino Deus; msicos cantadores vo se
acomodando. Encontramos o menino Deus: chegada a hora da adorao! O smbolo
do arrependimento se revela na figura dos basties, que em nome dos Trs Reis
Santos proferem adoraes e ofertas simblicas: ouro, incenso e mirra na forma
de trovas.
Mas a
troca de ofertas vai alm; e os instrumentos musicais anunciam: chegada a
hora de beno s famlias! Em nome dos Trs Reis Santos, vozes germinam
solo-conjunto; embaixador-poeta-criador atento aos detalhes profere versos em
forma de cantos: bnos, pedidos e agradecimentos; e assim os salutares de
vozes encaixam-se em seis tonalidades distintas. Na paisagem ntima da morada,
devotos acompanhados de emoes distintas, expressam lgrimas em face de
olhares enobrecidos: reveladores testemunhos de splicas e graas. Completadas
as saudaes: chegada a hora da despedida. Um instante, pois Trs Reis Santos
ainda tero que visitar os cmodos da morada, neste ntimo sobrepem-se bnos
a objetos e fotografias dos entes familiares.
chegada a hora: pagamento de promessas! A retribuio de uma graa pode se
configurar atravs de um banquete: caf, almoo ou janta. A paisagem neste
momento se mistura entre as melodias de sons, devoo, aromas. Cardpios
variados exibem a diversidade de texturas/cores/sabores/paladares. Alimentos
que despertam gratido daqueles que em suas jornadas so contemplados com a
fartura e laos de sociabilidade, reveladores de trocas simblicas: alimentos
para corpo em contrapartida ao alimento para a alma: f/bnos ofertadas aos
familiares. Trs Reis Santos agradecem e vo embora descansar para mais um dia
de caminhada.
Aps cumprido mais um ciclo de jornada chegada a hora dos
festejos! Encontraram o menino Deus! A sociedade carmelitana, reunida, aguarda
a chegada dos viajadores. Bingos, leiles, comidas, bebidas e msica compem a
paisagem; arcos de bambu adornados por correntes coloridas de papel que so
rompidos, simbolizam as dificuldades superadas em cada dia desta longa jornada
que abre caminho a Belm. chegada
a hora: eis que vieram ador-lo! Ali est o Menino Deus! Viva o Menino Deus! Na
orla do altar, a musicalidade embriagada de emoo toma conta dos viajadores
que proferem versos e prosas atravs de cantos/adoraes ao Menino Deus! Salve,
Salve: Pastores e Folies! Eis que foi cumprida nossa misso; chegada a hora
do retorno e at o ano... se Deus quiser!
Esta
paisagem religiosa indica um mundo csmico, santificado no tempo sagrado das
festas, tempo mtico, tempo litrgico, ou seja, um tempo circular, reversvel,
recupervel, indefinidamente repetvel, espcie de eterno presente mtico que
o homem emprega periodicamente pela linguagem dos ritos. (ELIADE, 2018, p.
64).
As
Folias ou Companhias de Reis so construes cosmolgicas do catolicismo
popular orientadas pelo nascimento de Cristo e pela Epifania, de modo a
reproduzir a viagem dos Trs Reis Magos, guiados por uma estrela para a
adorao do menino Jesus em Belm. Brando (1977) destaca que as Folias de Reis
so formadas por um grupo de precatrios que saem em jornada no ciclo natalino
de 25 de dezembro a 6 de janeiro, composta por msicos, instrumentistas,
bandeiristas e palhaos - os folies vo de casa em casa apresentando suas
cantorias, levando bnos s famlias de devotos e recolhendo esmolas.
O fenmeno religioso conforme Pereira e Torres (2016) abarca
a experincia humana em extratos fsicos materiais e simblicos, e, funde o
mundo dos sentidos com o mundo da imaginao.
Assim, tem-se espacialidades fsicas, como templos,
igrejas, santurios, sinagogas, mesquitas, terreiros e demais construes
diversas; como tambm espacialidades no materiais: discursos, narrativas,
mitos, sistemas teolgicos, msicas, sons etc. Tais espacialidades podem estar
em movimento [...] como as peregrinaes, as romarias, as vrias jornadas
espirituais ou comportamentos rituais. (p. 98).
A Companhia do Menino Jesus, presente no municpio de Carmo
do Rio Claro-MG desde o ano de 1929, possui, inclusive, adaptaes em sua estrutura
e rito em relao s Companhias de Reis. Os personagens presentes so: Simeo,
trs reizinhos e os pastores-cantadores que carregam o oratrio com o menino
Jesus (prespio andante) at a casa dos fiis.
O espao sagrado que se constitui em torno dos referenciais
e simbologias divide-se segundo Gil Filho (2008) em trs espacialidades:
concreta de expresses religiosas, do pensamento religioso e das representaes
simblicas. Na espacialidade concreta tem-se o espao sagrado recebendo as
prticas religiosas. Na espacialidade das representaes simblicas projeta-se
o plano da linguagem aos referenciais religiosos e na espacialidade de
pensamento religioso articula o plano sensvel ao do conhecimento
religioso.
Estas
espacialidades podem ser observadas em Carmo do Rio Claro em uma das falas da
entrevista realizada em 2019 com um dos folies:
No evangelho existe uma pequena descrio, o que nos transmitido
que suas viagens tiveram incio no dia primeiro de janeiro e que saram cada
um de suas terras guiados por um sinal. Viajaram o dia todo e no final daquele
primeiro dia eles se encontraram, se conheceram, dormiram e no segundo dia
perceberam que apesar de serem de diferentes regies e sem estabelecer nenhuma
comunicao anterior, tinham o mesmo objetivo e receberam os mesmos sinais. Do
segundo ao quarto dia em suas caminhadas, foram conhecendo suas diferenas e o
que cada um poderia oferecer para o outro. No quinto dia avistaram Jerusalm,
uma cidade grandiosa, sede do poder, o que chamou a ateno dos Trs Reis.
Vislumbrados acreditavam que o Rei do mundo s poderia estar por ali,
esquecendo-se do humilde sinal, a estrela que os guiava at ento, e foram at
a cidade de Jerusalm. A partir da encontramos no evangelho de Matheus, o
relato de que chegando at a cidade, Herodes no sabia do que se tratava,
mandou que os Trs Reis seguissem viagem, pois ali no existia nenhum outro rei
alm dele, e pediu que sua guarda os acompanhasse. A partir do momento em que
deixaram a cidade de Jerusalm para trs com a iluso da claridade, conseguiram
avistar novamente o sinal da simplicidade, a luz da estrela que os guiavam em
sua viagem. Completando o sexto dia, chegaram at Belm, uma cidade pobrezinha
onde encontraram e adoraram o Menino Jesus. Esta caminhada do dia 01 ao dia 06
uma caminhada de aprendizado, partilha. Assim como em nossas vidas, eles
tiveram seus deslizes deixando se ofuscar pela grandeza de Jerusalm, mas
voltaram seu olhar novamente para a simplicidade do projeto de Deus para ns.
(INFORMAO VERBAL, 2019).
Gil
Filho (2008) tambm sugere quatro instncias de anlise aos estudos de
fenmenos religiosos, sendo, a paisagem religiosa com sua materialidade,
exterioridade e expresso do sagrado; o sistema simblico cultural com seu
referencial conceitual, a lgica simblica e o contexto religioso; as
escrituras e tradies sagradas com as construes epistemolgicas, seu
registro e transmisso; e o sentimento religioso como a experincia pessoal
do sagrado.
Nesse
sentido, compreende-se que as manifestaes de religiosidade popular:
Companhias de Reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG, constituem
elementos caractersticos de subjetividades presentes na paisagem religiosa
local. As Companhias, atreladas ao calendrio litrgico (natal/epifania),
expressam-se atravs de peregrinaes (espacialidades em movimentos em meio as
ruas, casas, igrejas) permeadas por distintos momentos: ritos, performances,
relaes de sociabilidades e trocas simblicas.
Consideraes finais
Desde
os fins do sculo XVIII, o processo de formao e desenvolvimento
histrico-cultural do municpio de Carmo do Rio Claro-MG se consolidou diante
de um sistema cultural religioso alicerado em valores e preceitos do
catolicismo. Inmeras prticas de religiosidade popular vinculadas ao
calendrio litrgico, se consagram h mais de dois sculos e seu reflexo faz-se
presente na paisagem. Para Torres (2013), a paisagem reflexo da relao
direta com o ser humano, no plano material ou imaterial, pois compem-se de
discursos e formas simblicas - arte, mito, religio e linguagem. Segundo
Torres (2013) e Kozel (2012) o conceito de paisagem configura-se pela trade:
olhar/sentir/ouvir e perpassa por diferentes aspectos sensitivos - formas,
cheiros, sons, texturas, cores, sabores, movimentos -, com os quais os
indivduos percebem e atribuem significados a cada elemento constituinte.
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[Entregue: 15 jul 21 –
Aceito: 15 ago 21]
Poesia in concert: a
palavra de volta rua[42]
Poesia in concert: the word back on the street
Kaedmon Sellberg[43]
https://orcid.org/0000-0002-4185-2598
Palavras-Chave: Poesia; Msica; Performance; Londrina; Poesia in Concert
Abstract (Times New Roman, 12, bold): Poesia in Concert is an artistic event in
Londrina, PR – Brazil, dating from the 1990s that still takes place to
this day. It revolves around presentations with music and poetry performed,
initially, by the group of poets and artists Mrio Bortolotto (playwright), Rodrigo
Garcia Lopes (poet), Maurcio Arruda Mendona (poet) and Slvio Demtrio
(musician). After a break in the mid-90s, the event returns in 2009, with the
same name, inserted in the literary festival of Londrina, Londrix, being
Christine Vianna, vocalist of the band Benditos Energmenos, the main
poet/singer. Between 1990 and 2009, there is, of course, a transformation
within the social, historical, political context, at national and regional
level, which motivates different strategies of insertion in the public space.
The article aims to study, comparatively and briefly, the two moments of Poesia
in Concert and its relations with the public space of Londrina. In short
terms, Poesia in Concert and its meaning have been updated for current
literary and artistic needs, educating the public to artistic expression less
common in the mainstream market. The research was based on the survey of
cultural references, interviews and theoretical contribution.
Keywords: Poetry; Music; Performance; Londrina; Poesia in Concert;
Introduo
O Poesia in Concert, iniciado em 1993, foi um agrupamento de
poetas, dramaturgos e msicos de Londrina: Mario Bortolotto (1962, ator,
diretor, dramaturgo, escritor), Rodrigo Garcia Lopes (1965, poeta, msico,
tradutor), Mauricio Arruda Mendona (1964, dramaturgo, poeta, msico, tradutor)
e Slvio Demtrio (1970, jornalista, professor universitrio, msico) que,
embora no estivesse ligado s produes artsticas, tinha um programa na Rdio
Uel da poca. O agrupamento lia poemas de diferentes origens (autorais,
tradues, nacionais) acompanhados de msica, frequentemente, blues, MPB e rock.
O primeiro momento do Poesia termina
em 1994, seguido de um hiato at a incorporao oficial do evento, retomado
pela atriz, poeta, cantora, professora Christine Vianna, no Londrix (festival literrio de Londrina)
em 2009. Durante esse perodo, concertos isolados aconteceram com a mesma
proposta: poema e msica. A dificuldade metodolgica de traar uma linha
temporal, contextual e coesa, a de discutir se essas expresses
independentes compartilhavam do mesmo significado social. Esteticamente,
v-se a coeso.
O que este artigo prope :
a) apresentar o Poesia in Concert nos dois
momentos citados, atravs de entrevistas coletadas, vdeos assistidos,
apresentaes analisadas;
b) comparar as duas expresses, localizar diferenas
e padres, que situem a importncia social do evento na histria de Londrina;
Para a realizao do artigo, alm de levantamentos de referncias
bibliogrficas sobre Londrina e sobre o Poesia
in Concert da dcada de 80 e 90, foram entrevistados Mrio Bortolotto,
Rodrigo Garcia Lopes, Slvio Demtrio e Cristiane Vianna, em 2018. Maurcio no
pde ser entrevistado devido a um problema de sade, infelizmente. Ao longo do
artigo, citaes das entrevistas sero colocadas entre aspas. Todas as
entrevistas estaro disponveis em link nas referncias. Os vdeos usados para
anlise podem ser encontrados no canal Cemitrio de Automveis, disponvel no
Youtube. Link nas referncias.
A partir daqui, apresento o Poesia in Concert que explora a
dimenso sonora da palavra com a funo de levantar bandeira poltica e
cultural: fazer a palavra voltar para a
rua, como dir Rodrigo Garcia Lopes. O autor observava que a palavra
permaneceu na torre de marfim do poeta (como diz o ditado) por muito tempo.
Entretanto, h diferentes formas de interpretar a torre de marfim em 1990: a
ditatura militar, que dcadas antes foi a principal fonte de censura literria;
o prprio circuito literrio, que era um ciclo privilegiado de escolarizados
at a segunda metade do sculo XX; ou, ainda, o espao que ocupava a literatura
nas universidades em relao ao espao pblico. Por pblico, entende-se o bar,
a rua, a esquina da praa.
H diversas torres de marfim que enclausuraram a palavra literria
no Brasil at 1990. O ponto comum entre todas as torres a palavra literria em
distanciamento social em relao rua. Ou seja, a palavra literria no
participava da esttica do papo furado, da conversa de meio-fio, da conversa
desengonada do bar. No participava da inevitabilidade do som. A pgina era
educada demais para se impor dessa forma. A palavra na rua evoca a
circunstncia biolgica, corporal, presencial – o som da cidade, a msica
tocada, a performance. Nesse sentido, o argumento do Poesia in Concert
que na palavra do distanciamento social h um silncio comum ao livro. Para
bem ou para mal, a mobilidade do objeto impresso fragmenta o significado do
texto conforme lido em diferentes contextos, a partir de diferentes leitores.
Por isso a brincadeira do distanciamento social da palavra que o Poesia,
desde 1993, quis fazer retornar rua. Quando a palavra solta na
performance sonora, o contexto da aglomerao, os significados se aproximam
porque se aproximam as pessoas.
Quem eram os atores e as influncias do Poesia in Concert, portanto?
Como se pode antecipar, inserir a poesia literria no espao pblico do campo
da margem, da juventude, da sensao e do corpo, que encontra ncora na
literatura beatnik e simbolista,
representada por Arthur Rimbaud. Essa foi, de fato, a bagagem que Mario
Bortolotto e Rodrigo Garcia Lopes trouxeram ao Poesia. Rodrigo estava
nos Estados Unidos entre 1990 e 1992, no Arizona, cursando o mestrado
Humanidades Interdisciplinares, que resultar no compndio de entrevistas, em
forma do livro Vozes & vises:
panorama da arte e da cultura norte americanas hoje, publicado no Brasil
pela Editora Iluminuras em 1996. Entre os entrevistados esto William
Burroughs, John Cage, Allen Ginsberg, Thom Gunn, Wanda Coleman, Amiri Baraka,
nomes associados arte de vanguarda, ao beatnik,
ao blues, cultura afrodescendente americana. Outros nomes citados por Rodrigo
Garcia Lopes, porm no entrevistados para o livro, so David Lynch e Francis
Ford Coppola.
Amigo de traduo do Rodrigo, Maurcio Mendona de Arruda, hoje
dramaturgo premiado internacionalmente, traduziu com ele Sylvia Plath, Poemas (1990) e Iluminuras
(1994), obra do Arthur Rimbaud. Vale a pena mencionar tambm a antologia Trilha Forrada de Folhas – Nenpuku
Sato, um Mestre de Haikai no Brasil (1999), do poeta japons Nenpuku Sato, o introdutor do haikai no Brasil.
Paulo Leminski bebeu dessa fonte.
J Mario Bortolotto traz consigo o teatro, o Chiclete com Banana, que a partir de 1987 ser chamado Cemitrio de Automveis. Na dcada de
1990, o grupo j era premiado e reconhecido em So Paulo e So Jos dos Campos.
Nessa mesma poca sentia-se a necessidade de advogar pela cena local, conforme
complementa Mario Bortolotto, pois a efervescncia oitocentista que tinha
levantado o teatro decaiu a partir dos anos 90. O mesmo ocorria com a
literatura londrinense. Os nomes artsticos de Londrina iam muito bem entre
grupos artsticos. O que faltava era realmente, tornar a arte da rua, torn-la uma experincia do pblico.
Cito trs trechos para os amarrar em seguida:
Ao pensar
sobre os sons de uma cidade, muitos ambientes sonoros emergem aos nossos
ouvidos. Certamente, os sons da cidade, diretamente ligados a sua
morfologia e sua arquitetura, nunca foram ou sero os mesmos, seja em
Tquio, Londres ou Londrina, pois, como o observa o gegrafo Frderic Roulier
(1999), os tipos de economia, os comportamentos sociais, a tecnologia e a
densidade populacional induzem variaes que fazem com que cada cidade possua
uma identidade sonora ou paisagens sonoras caractersticas. (CARNEIROS DOS
SANTOS, 2011, p. 83, negritos meus)
As
vanguardas histricas e a ps-vanguarda da segunda metade sculo XX deixaram
uma grande lio sobre dissoluo de fronteiras entre literatura e outras
artes, em que a performance se tornou uma importante referncia para a
crtica. (FERNANDES, 2017, p. 104, negritos meus)
Ora,
nestes fenmenos festivos, por um lado aplica-se o ajuntamento (endoidecimento)
e, por outro, a pluralidade de cada um. O imaginrio est na ordem do dia e com
ele a multiplicidade de sentidos que cada pessoa d sua existncia.
(MAFFESOLI, 2002, p. 84, negritos meus)
De cima abaixo, observa-se uma relao entre arquitetura urbana,
fsica, concreta, tambm abordada como uma estrutura abstrata, no sentido de um
comportamento artstico, ideolgico. De acordo com Frank (1979, p. 13), h um
espao de fazer arte e literatura que ocorre em funo do seu espao
arquitetnico, social e vice-versa. Ambos estabelecem uma identidade – e,
para este artigo, usarei o termo afinidade
– entre memria (passado) e criao (presente). A simbiose se processa em
fenmeno literrio. A afinidade entre arquitetura e literatura ser o
ponto-comum para o espao do Poesia in Concert em 1993. Qual era o
espao londrinense?
Londrina experienciava um refluxo da efervescncia cultural da dcada
de 80: o teatro era reconhecido. A msica sofria os voos de um MPB que discutiu
com o recm finado ufanismo ditatorial. A literatura tinha contato com: Paulo
Leminski, o inutenslio curitibano e com a influncia das tradues e
entrevistas de beatniks, simbolistas, vanguardistas e poemas minimalistas
(haikai). Era uma linguagem que flertava com a dramaturgia londrinense de
Bortolotto. Inclusive, essa linguagem fazia mais a cara dos bares do que dos
teatros tradicionais. O PROTEU (Projeto Experimental de Teatro
Universitrio, criado em 1978) era o teatro diferento, levou o papel
principal da boemia londrinense, alternativo em relao a valores
mercadolgicos e engajado na consolidao do FILO (Festival Internacional de Londrina). O PROTEU influencia os
nomes importantes da histria da arte em Londrina e tambm o teatro da
vanguarda de So Paulo. Por exemplo, Cemitrio
de Automveis ser o nome da importante Vila Cultural em Londrina,
inaugurada em 2007 por Christine Vianna via PROMIC (Programa Municipal de
Incentivo Cultura).
Ou seja, o Teatro em Londrina dos anos 80 e dos anos 90 no tinha do
que se envergonhar. Em um festival de teatro em So Jos dos Campos, o grupo
teatral Cemitrio de Automveis e a Cia. Dramtica Bombom pra Que se Pirulito
tem Pauzinho Pra se Chupar, tambm de Londrina, ganharam 10 dos 12 ou 13
prmios (Mario no se recorda). Sobrou pro resto do Brasil trs prmios,
conta Mrio em uma entrevista de 1990 na TV Tropical de Londrina, disponvel nas
referncias do artigo. J o pblico londrinense era um pouco recalcado na
dcada final. Lotar um teatro de 200 pessoas era muito difcil.
Partindo dessa conjectura que, em matria de literatura e de msica
no era muito diferente, nota-se uma presena cultural de peso em
contraste com um pblico escasso. O espao artstico de Londrina se organizava,
socialmente e esteticamente, em torno de uma certa bomia e da performance.
um terreno frtil para saudar a nostalgia de Rodrigo que um pouco antes estava
nos Estados Unidos traduzindo seus poemas em bares com acompanhamentos de
msicos no Arizona. Eu voltei de l querendo fazer coisas em Londrina, o
poeta conta. J se observa um deslocamento esttico dos beatniks norte-americanos e suas poesias bomias para dentro da
arquitetura londrinense. Caso se mergulhe um pouco mais na experincia esttica
beatnik, observa-se uma poesia que andava com o jazz estadunidense dos anos 50
e 60.
Rodrigo traz sua experincia estadunidense ao Brasil, cuja
predominncia esttica era o movimento neorrealista da dcada de 30, ecoada
pelo engajamento necessrio (sempre) de artistas locais, brasileiros. H uma
pequena barreira, embora no insupervel, entre uma tradio literria que
gostaria de subjugar a pura arte pela arte vanguardista (como de Mrio,
Rodrigo e Maurcio) e ainda educar o pblico arte. Aqui, Rodrigo faz sua
tarefa social e artstica: des-criptografar a urea escolstica de um poema,
torn-lo do bar, da rua, da boca, em oposio sacralidade dada palavra por
uma modernidade conservadora. sua flexibilizao da cultura da escrita.
Finalmente, j em termos geogrficos, a poesia da Rua pode ser
compreendida como uma poesia da Humait. Em 1990, na longa extenso entre as
ruas Prefeito Ferreira Lima e Humait, havia repblicas de jovens de maioria
universitria. Tambm se encontram bares que convidavam experincia bomia. Alm
dessas ruas, na Av. Bandeirantes, havia o Bar Valentino, palco principal das
apresentaes do Poesia in Concert. Curiosamente,
hoje o Bar Valentino se encontra na Prefeito Faria Lima. Mais abaixo se
encontram as imagens.
Portanto, h um duplo jogo semntico em poesia da Rua. Na semntica
da rua conotativa, um imaginrio de protesto aos espaos aristocrticos,
elitizados, um espao pensado pela sua mobilidade social. Na semntica da rua
denotativa, embora no seja uma regra, a rua era localizada geograficamente
entre a Prefeito Faria Lima-Humata-Av. Bandeirantes, onde se encontrava a
maioria dos atores sociais do evento Poesia
in Concert.
Nessa relao conotativa-denotativa, encontra-se a tal presena
arquitetnica-esttica da rua. Composto de sujeitos artsticos e
universitrios, a poesia voltou rua na Prefeitura Ferreira Lima com a Humait
e foi at ao Bar Valentino, na poca
presente na av. Bandeirantes, nmero 61. Como contam Slvio Demtrio e Mario
Bortolotto, os espetculos no bar estavam lotados. Era de um relativo sucesso,
de loucura, de encher a casa do Bar
Valentino, de deixar gente do lado de fora, de levar essas apresentaes
para fora de Londrina, at Curitiba. No sentido de ressignificar uma realidade
social, o Poesia in Concert de 1993
foi bem-sucedido.
Fora do Valeco
O Valeco ou O Bar Valentino era sofisticado, escreveu
Mario Bortolotto. Era o bar que a rapaziada do Grupo Proteu adotou e l sempre
estava cheio de atores, msicos, artistas plsticos, etc. E s tocava jazz de
trilha sonora, alm da melhor macarronada da cidade.
O Bar Valentino, hoje na rua Prefeito Faria Lima, 486, antigamente na
avenida Bandeirantes, 61, era um espao para pessoas artsticas, talvez tanto
quanto a Vila Cultural Cemitrio de Automveis seja hoje. Toda a rea entre a
rua Humait e a Ferreira Lima era contemplada pela juventude, aglutinada com antigas
repblicas da rua Humait. De manh, pra vir pra UEL, eles vinham de carona.
Ficavam pedindo carona, conta Slvio Demtrio. Eram lugares menos
gourmetizados, com tradio bomia, acessvel.
Extenso Prefeito Faria
Lima e Humata
Fonte: Google Maps de Londrina, 2022
No crculo vermelho
esquerda do leitor, prximo Rodovia Celso Garcia, encontra-se a UEL (Universidade Estadual de
Londrina). No crculo vermelho central, na rua Prefeito Faria Lima e ao lado da
Universidade Positivo, encontra-se hoje o Bar
Valentino. No balo direita, a rua Humait, que termina na Avenida
Higienpolis, uma das avenidas principais de Londrina. No crculo vermelho
direita, o antigo espao do Valentino. Entre o espao intelectual de Londrina
(UEL) e um dos espaos centrais do ponto de vista comercial (Av. Maring, Av.
Higienpolis, Av. Bandeirantes), havia extenso colonizada por repblicas e
espaos marginais (bares, adegadas) cruzando essas extremidades, observada na
linha preta. J o lago Igap, um dos pontos importantes de lazer da cidade,
cruza essa via de cima a baixo. No difcil imaginar como esse trfego
geogrfico influenciava na operao social desse perodo, desses artistas,
dessa juventude.
Como at 2005 o Bar Valentino era localizado na avenida Bandeirantes, o fluxo de
caronas e de pessoas exigia subir a Humait em direo Higienpolis e, em
seguida, descer uma das ruas perpendiculares at a rotatria da Bandeirantes.
Mrio e Slvio contam sobre uma agitao naquele espao. Mrio conta ainda uma
experincia pessoal:
Eu
gostava muito de l, embora o meu poder aquisitivo no me permitisse desfrutar
do whisky do lugar, mas eu tinha alguns amigos garons que conseguiam traficar
algumas doses pra mim. Eu ficava sentado no muro l fora e os copos de whisky
se materializavam nas minhas mos. [...] Era foda!
Extenso Prefeito Faria
Lima e Humait
Grifo rosa: Humait ao Bar
Valentino (ponto vermelho)
Fonte: Google Maps de Londrina, 2022
Nesse espao, jovens nascidos entre 1960 e 1970
viviam o rescaldo da abertura do pas aps o fim da ditadura. Por conta da
explorao comercial e da reabertura, essa juventude convivia com a mdia
estadunidense no Brasil. Havia, claro, nomes brasileiros ganhando peso –
a influncia da literatura beatnik j
aparecia em Paulo Leminski, por exemplo. Slvio Demtrio menciona alguns
brasileiros como artsticos autnticos avessos ao mercado de reprodutibilidade.
Havia, tambm, influncias de cinema, msica e at quadrinhos.
Fonte: Matria na Folha de Londrina, 1 Set 1993,
arquivada e emprestada por Silvio Demetro Reportagem
Os Insatisfeitos Matria
reporta juventude londrinense em 1993
Em uma matria publicada na Folha de Londrina em 1 de setembro de 1993, a manchete Os
Insatisfeitos descreve a situao de autoflagelo de uma garota de 21 anos, uma
tentativa de suicdio, suavizada pela prpria entrevistada: Acho que estava s
tentando chamar a ateno, no queria realmente morrer. Seguido de testemunhos
de denominados insatisfeitos, a matria chega at Slvio Ricardo Demtrio, 24
anos, estudante de jornalismo, solitrio divertido, cuja insatisfao fora
descrita como sinnimo de uma inquietao interna, uma insatisfao com o
social como se o questionasse. Quem novo e est esperando alguma coisa
insatisfeito. S os que no esperam nada que esto satisfeitos. I Cant Get
No Satisfaction, msica dos Rolling
Stones foi citada para descrever sua sensao, de quem via em Paulo Coelho
e Duran Duran acomodao cultural.
Logo abaixo, o cartunista Angeli continua o
assunto da insatisfao, expressando noes da vida bomia paulistana entre
1980 e 1990. H uma tirinha com dois personagens seus dessa poca: os velhos
hippies, Wood & Stock, referncia ao festival Woodstock da dcada de 60. Esses e outros personagens expressariam
traos da sua personalidade:
Eu sou recluso, quase no saio de
estdio. Sou uma pessoa deslocada, me sinto contemplador e no um cara
participativo; no compactuo com o mundo e isso atia o meu senso crtico. As
pessoas positivas demais no tem [sic] graa. Eu acho que todo alegre no fundo
um paranoico, algum que perdeu o senso crtico.
A matria (meio sensacionalista, meio tendenciosa)
vista, aqui, como registro de temas e de pensamentos dos jovens de 1993, que criavam
seu prprio discurso social, esttico, ideolgico, sobre seus comportamentos. A
insatisfao linha vertebral, um descontentamento com o sistema social e
poltico. Em sntese, um status quo que no valia a pena ser vivido. Slvio
Demtrio cita vrias influncias para os insatisfeitos: Sam Shepard citado
como influncia do pblico e dos artistas do Poesia in Concert, j que suas peas de teatro relatavam
personagens sintomticos de um sonho americano falho, de uma fratura no ideal
da famlia americana. No surpreende que Mario Bortolotto, em 2017 e 2016,
tenha dirigido as peas Oeste Verdadeiro (True West, de 1980) e Criana
Enterrada (Buried Child, de 1977),
no Teatro e Bar Cemitrio de Automveis em So Paulo[44]. J
nos filmes, assim como viu-se a inteno do Rodrigo Garcia Lopes em ter um
cara-a-cara com Francis Ford Coppola, Silvio cita O Selvagem da Motocicleta (Rumble
Fish, de 1983), do mesmo diretor, cujo personagem central um jovem lder
de gangue de uma famlia desajustada. E o filme Condenados pelo Vcio (Barfly,
de 1987) inspirado no alter ego de Charles Bukowski, Henry Chinaski, um
alcolico em Los Angeles, do diretor Barbet Schroeder.
Uma msica de Barfly, para citar uma
influncia prtica, foi usada como acompanhamento musical durante um dos
eventos do Poesia in Concert. Essas e
outras referncias menores marinavam, como caldos, a experincia juvenil. Por
exemplo, como conta Slvio, houve umas decises sem noo e tpicas de uma
juventude em busca de criar uma afinidade com a insatisfao. Decises como: vou
embora daqui porque t cansado; puts, cara, isso no se faz. Mas era assim que
as coisas funcionavam.. A aventura pessoal, o dizer sim vida que, como
veremos mais tarde, j estava registrada em Rimbaud, Nietzsche, beatniks, compartilhada pelos
personagens dos filmes.
Eram as influncias brasileiras no Poesia in
Concert mais hbridas que as influncias estadunidenses, pois nossos
brasileiros eram nmades. O Poesia no
tinha uma inteno regionalista; isso seria um ufanismo do perodo anterior ao
qual o Poesia queria marcar oposio,
a ditadura militar nacionalista. Slvio conta, a princpio, uma formao
musical do Hermano Reis, Grupo DAlma e outros nomes do universo violonstico
brasileiro. Mais tarde, o convvio com Mario traria uma msica ligada ao
universo da gerao beat: jaz bepop,
blues, trilha sonora do filme Paris, Texas (1984). De Londrina, at Bernardo Pellegrini e o Bando do Co Sem
Dono, embora no participasse diretamente do evento, dialogava com ele. Um
poema musicalizado pelo Rodrigo, trabalhado junto com o Slvio, com slides de
blues, foi gravado pelo Bernardo nos anos 90. As letras da msica, assim como o
estilo do Bando, mais uma vez,
colocam em evidncia a caracterstica bomia do som e das experincias de vida.
Dentro do Valeco
Segundo um documento publicado pelo site da Prefeitura de Londrina, na
primeira pgina:
No comeo
da dcada de 80, segundo Joo Henrique Bernardi, o Valentino era o local para
onde iam as pessoas que acompanhavam o movimento teatral da cidade quando uma
pea nova estreava, sendo cenrio da rivalidade entre os maiores grupos de
teatro de Londrina. O bar ainda passou pelas mos de outro dono, Marcos Marangoni,
at chegar aos donos atuais, Valdomiro e Rosangela Chamm, que esto frente
da administrao do Valentino desde 1991. Em 25 anos de histria, o bar foi
segunda casa dos bomios da cidade de todas as raas, crenas e opes sexuais,
foi palco de peas de teatro, shows musicais de todos os estilos, atividades do
FILO, exposies de artistas plsticos, lanamentos de livros e CDs, mostras de
vdeo. Foi inspirao para msicas, poemas, livro, curta-metragens, histrias
em quadrinhos. Recebeu visitantes ilustres, como Paulo Leminsky [sic], Glauco,
Angeli, Cssia Eller e diversos msicos e atores que se apresentaram na cidade.
O Valentino no apenas palco, mas Personagem da histria cultural de Londrina. (LONDRINA.PR.GOV.BR, p. 01)
Fonte: Matria na Folha de Londrina, 7 Abr 1993,
arquivada e emprestada por Silvio Demetro Poesia in Concert Reportagem de evento no bar
Valentino
Londrina
contava com um teatro que efervesceu a cidade, uma literatura em torno da
marginalidade beatnik (mesmo que a literatura
tenha ficado abandonada, como as notcias de 1993 mostram), MPB, rock e jazz,
um espao bomio para artistas. No Bar
Valentino, o Poesia in Concert cola
estes fragmentos artsticos em um caldo coeso. Veja, por exemplo, um dos
concertos que se chamava Palavra cantada palavra voando. A performance
trazia, por exemplo, Mario Bortolotto com textos do Bukowski, em seguida
tradues de Rimbaud, e, mais tarde, inclusive Maurcio com sua influncia
japonesa, o haikai. Uma verdadeira Jam Poetry, como conta Silvio, pois
envolve geleia, gosma, de misturas e sons de costura. At coisas improvisadas.
Billy Holliday foi cantada, alm de outras experincias de solido do gueto
americano. Essa geleia, que de um ponto de vista historiogrfico at pertence a
um ncleo relativamente estvel de influncias, encontra uma contradio do
ponto de vista crtico literrio.
A reportagem acima cita referncias marginais
(Leminski, Sylvia Plath, gerao beat: Burroughs, Kerouac) em relao ao cnone
tradicional. Mais curioso que, em certos momentos da crtica literria, essas
referncias degeneraram a cultura e a poesia cannica americana. Pargrafos
depois – assim como na outra notcia da Folha – introduz-se uma comparao com nomes aceitos pelo
cnone, como os trovadores do sculo medieval e os gregos. A reportagem e os
convidados pareiam comunidades culturais e estilsticas, aparentemente, vistas
como antteses. A Folha escreve salmo e rap e Allen Ginsberg, por
exemplo, ser recitado como se fosse um salmo.
O nivelamento entre dois estados distintos de
crtica (a gerao marginal e os trovadores, os rapsodos) selado pelo Poesia in Concert enquanto uma
reconquista de um lugar para a poesia na cidade. Assim fica registrado o
impacto do Poesia em mdia pblica: a flexibilizao da trova
para margem, a conciliao da progressista gerao beat com a tradio do rapsodo. Na dcada de 90 londrinense, essa
afinidade potica condizia com um pblico que intelectualizava o marginal e
marginalizava a canonicidade, como discurso crtico s bases morais da
ditadora, dos discursos cvicos, ufanistas.
Essa afinidade potica, entretanto, j era comum
no circuito crtico. Em uma entrevista com Burroughs, Rodrigo questiona o autor
sobre seu processo de autor marginal institucionalizao literria. Burroughs
responde: De certa forma isso verdade. Eu sou os Estados Unidos da Amrica!
(LOPES, 1996, p. 13), o mesmo Burroughs que, segundo Rodrigo Garcia Lopes, foi
um dos escritores do sculo 20 que mais levou adiante o desregramento gradual
e racional de todos os sentidos proposto por Rimbaud[45]
Outra afinidade entre o movimento crtico e o movimento artstico do Poesia
in Concert est Anna Balakian, no livro O
Simbolismo, publicado inicialmente em 1967, e publicado no Brasil pela
editora Perspectiva em 1985. A literatura de Rimbaud ocorre pelo afastamento do
literrio, com suas aventuras pessoais: Rimbaud foi, na verdade, o nico que
escolheu a chamada fuga da literatura (BALAKIAN, 1985, p, 49). Rimbaud voa
para a realidade, em oposio ao heri simbolista de Villiers, Axl, que se
isola na inao e no sonho da torre de mrmore literria. O tipo de viagem pessoal que encontra
nos beatniks uma soluo agradvel
– tornar a viagem (a perambulao na rua, o deslocamento social)
um processo literrio, bem ao jeito da anlise de Frank (1979, p. 13). A arquitetura da cidade, nesse sentido,
passa a ser um espao para o literrio do sculo XX. A experincia de viagem
transforma-se em viagem literria.
Rapidamente, aponto a institucionalizao de
Burroughs como um processo literrio da crtica americana que, ps dcada de
60, no conseguiria mais fingir que os Estados Unidos pertencia apenas aos
subrbios (LOPES, 1996, p. 15). Isso seria ser cmodo com o neoconservadorismo
que viria nos anos Ronald Reagan duas dcadas depois. Em direo a anlise de
uma performance do Poesia in Concert,
cito uma entrevista feita com Michael Maffesoli (2012, p. 166), no qual o autor
explica:
por
isso que o pensamento crtico no me parece mais ser um pensamento
contemporneo. difcil de dizer, eu sei. Quando pensamos como intelectuais,
pensamento crtico a grande tradio moderna do sculo XIX. O que quer dizer
crtica? Em grego, krimeia, a
balana do juiz. Pesam-se as coisas e retm-se o que precisa reter, jogando-se
fora o que no presta. Marx dizia que o intelectual o crebro, o proletrio
o vento, querendo dizer com isso que o proletrio agia, mas era necessrio o
crebro que lhe desse luz. Atualmente, parece-me prevalecer uma posio
afirmativa da existncia. O pensamento crtico o pensamento do no; o
pensamento afirmativo, alis, nietzschiano, o pensamento do sim. Dizer sim
vida. Ao passo que no pensamento crtico observam-se bem as formas de
perfeio, as formas de submisso, as formas de explorao, etc., mas apesar de
tudo existe o desejo de viver essa vida. O drama que existe uma discrepncia,
um fosso enorme entre o pensamento intelectual e o vivido social em geral, e em
particular no que tange s novas geraes. Para mim, todo o meu trabalho, tal
como disse no meu livro A razo sensvel (um livro de epistemologia) tem sido o
de mostrar que preciso desenvolver a existncia de um pensamento, que no
seja um pensamento do exterior e crtico, mas que seja um pensamento do
interior, que acompanha a vida.
No livro Elogio
Razo Sensvel (1998), Maffesoli discute uma forma de pensamento
orgnico, ou pensamento do ventre[46], no
qual o corpo ps-moderno, em ruptura com o pensamento crtico, escolstico,
vive um pr-moderno, uma organicidade arcaica (ou, chamadas assim apenas em
relao ao pensamento moderno) a fim de dar fora a esse ventre. De acordo com
Maffesoli (1998, p. 64-65), a organicidade remete para o vivente e para as
foras que o animam. O que vive tende a se reunir, a conjugar os elementos
dspares. quando o conjunto todo se sustenta que h vida. A observao
ressoa no apenas com a organizao de elementos dspares da crtica literria
no Poesia in Concert, como tambm com uma atitude especfica da
juventude da poca: uma intelectualizao (ento, afinal, um pensamento
crtico) das experincias do ventre, do corpo, da sensao. Dar o ventre palavra –
corporific-la em pblico.
De volta ao Bar Valentino, o deslocamento social para aquele ambiente de
Burroughs buscava flexibilizar uma crtica e um processo literrio que no
poderia ser vivida na inao e no sonho de Axl. Nietzscheanamente falando, o
dizer sim ao desregramento da vida, j prenunciado na aventura pessoal de
Rimbaud, precisava imergir na rua. Logo, pensar o Bar Valentino enquanto
espao do ventre no ignorar o pensamento crtico. Ao contrrio, pensar
os fenmenos do Poesia in Concert como articuladores crticos, intelectuais,
no apenas da experincia ditatorial, mas tambm como um espao de crticos
sobre a crtica literria tradicional.
Gostaria, portanto, de analisar uma performance
do Poesia in Concert da dcada de 90 disponvel no link a seguir, o qual sugiro acessar antes de avanar o texto:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ar2W0QdCl48>.
Em seguida, deixo um link, apenas para
comparao, da mesma performance sendo ensaiada:
<https://www.youtube.com/watch?v=H0qhVvquy3Q&t>
Sobre o equipamento do palco, nada muito
sofisticado em termos de equipamento, Mario e Rodrigo dizem. Microfones e um
violo. A balada em questo entre country e blues, tcnicas de slides
do violo e um som descontrado. Nada grave, nada melanclico, um pouco texano,
um pouco relaxado. Um pouco daquela msica de bar mesmo.
Rodrigo est prestes a ler uma traduo de
Lawrence Ferlinghetti (precursor dos beatniks),
Sometime During Eternity.... Destaco aqui uma frase de Leminski que Rodrigo
confidenciou a mim Cantar apenas a maneira mais bonita de dizer. Assim como
os slides do violo, haver uma escorregada – entre dizer e cantar
– durante a performance e, propositalmente, obscurecida sobre seu
ponto exato de transio. Ou seja, Rodrigo propositalmente quer obscurecer a
tcnica de sua voz, se canto ou se est dizendo. Escreverei um asterisco (*)
a fim de transcrever os momentos de impreciso. Entre parnteses est a
interveno de Rodrigo no poema, ou seja, partes que no correspondem a uma
traduo, correspondem a marca de oralidade performtica.
Rodrigo segura um papel na mo. Comea:
Era uma vez
Durante a eternidade
Uns carinhas entram em cena
e um deles
Que pinta meio tarde no pedao
um tipo de um carpinteiro, meio bicho grilo
Vindo de algum lugar careta, tipo... Galileia
E o cara comea a delirar e dizer que ele o O cara
– o O cara
E que t em ligao direta com a figura que fez o cu e a
terra
E que o sujeito que aprontou essa com a gente o papai dele
E tem mais: o carinha diz que tudo isso est escrito nos
rolos de pergaminho
que os brders dele mocozaram em algum canto do mar morto
*H muito tempo atrs...
E que vo ficar assim perdidos durante milhares e milhares e
milhares de anos
*1947, pra ser exato
E mesmo assim, ningum t nem a pra o que ele diz
A dizem assim pra ele, n (pro Jesus, obviamente, que a
figura toda): *bixo, voc quente
E penduram o cara numa cruz pra ele esfriar a cabea
E desse dia em diante todo mundo entra numas e comea a
fazer modelitos dessa cruz, que o cara t pregado, e ficam cantando embaixo
dela pedindo pra ele ([comea a gaguejar]) descer dali [caoa a orao
rabnica, fazendo sons guturais, incompreensveis] e entrar pro grupo e tirar
um som tambm, j que ele o fera, o cara quente, o... (tal, n, o cara) que
tem que mandar a ver (mesmo, n, porque se no for Jesus, hoje em dia, eu no
sei quem ), se no, nada v
s que dali o cara no desce nem a pau
Fica ali pendurado, fica ali frio, ali na dele, dando um time (meu time! [abre os
braos imitando a crucificao]
E, tambm, segundo informam as ltimas notcias das agncias
internacionais, vindo de fontes nada fidedignas, como sempre
realmente – morto
Na performance, h
palavras marginais, misturas entre ingls e portugus, uma caracterstica da
urbanidade brasileira – que tambm resgata um estilo vanguardista de
Oswald de 22. O nomadismo de informao, citado por Slvio, alm de referncias
artsticas, traz referncias lingusticas aportuguesadas. Observa-se, tambm,
inseres subjetivas de Rodrigo entre um verso e outro do poema de
Ferlinghetti, quando, por exemplo, caoa o termo time ao simular a
gravidade do Cristo na Cruz: Meu, time! (imita a crucificao). Entre
uma palavra e outra h o blues: a ateno desfoca, acidentalmente/escorregadiamente,
daquela semntica literria, ficcional, para a atmosfera bomia do bar, da rua:
as conversas paralelas, o trnsito dos carros, o rudo dos garfos e pratos, o
relacionar-se com a espuma da cerveja e beb-la enquanto algum assopra a
fumaa do cigarro e o country-blues os imerge no bar. Quase no se sente que se
trata de uma conversa sobre a bblia – ento volta-se narrativa, ao
eu-lrico que, localizado naquele espao com qual se relacionam, marca sua
presena como membro do espao.
A linguagem
performtica antropomorfiza a boemia e o violo como quem diz: Arthur
Rimbaud era como ns. Ns existimos com os gregos antigos. O blues foi
inventado em uma lira deitada de trovador que fumou algum pio; se perdeu em
herona encontrada no bar da av. Bandeirantes, nmero 61, banheiro do sculo
XX. E a santificao de Cristo um assunto para os slides dos negros
– porque, como a rua e como o blues, a cruz somos todos ns. Jesus,
afinal, era da margem e foi aoitado. Era grunge. Era da parte de baixo
do continente americano. Era de Londrina. Era do Valeco.
o limiar crtico por
onde nasce o Poesia in Concert: viver o arcasmo do ventre com a
experincia dionisaca sonora, grega, da maneira de um trovador. Nesta
performance, h o fenmeno crtico-literrio que, at hoje, faz parte da
herana cultural de Londrina: ser crtica, ser literria, e ainda assim
sentir a pulga atrs da orelha quando se trata do cnone.
Conforme explica
Rodrigo, no havia nada acadmico. Nada formal. Nada intencional. Era uma
maneira natural como viam a cultura: sincrnica, ver todos os poetas como
absolutamente contemporneos e, por isso, no haveria necessidade de deslocar
Shakespeare de um poeta contemporneo brasileiro. a viso sincrnica que
herda de Ezra Pound, sobretudo a viso da poesia produzida at hoje como um
manancial, como uma fonte rica, himalaia, como um topo que pode ser escalado
por vrios lugares. Nesta perspectiva de um manancial, Rodrigo acaba
recuperando a oralidade – traduz, por exemplo, o poema O Navegante
(The Seafarer), poema anglo-sax (antes da lngua inglesa) com mais de
900 anos de idade. curioso, portanto, a perspectiva do Rodrigo de observar o
Poesia in Concert como uma produo nada acadmica. Pois, embora no tenha
nascido pela Academia, os discursos e deslocamentos se tornaram pontualmente
crticos de um sistema de vida ufanista, tradicionalista, dos bons costumes,
dos bons valores.
O poema de volta
rua deve perder o carter escolstico para vocalizar a fora do ventre –
o deslize entre falar e cantar, como critrio esttico, seria o que
localizaria o poema na vanguarda ou no clssico, talvez, entre a universidade e
o mercado massivo. Enfim, importante que o poema esteja nos bares para
embebedar seu ventre. importante que se torne pblico para evitar, nos
momentos de distanciamento social, ser monopolizado pelo processo acadmico.
Legado e concluso
Trata-se de uma lei social bem conhecida:
todas as coisas tendem a debilitar-se. Perde-se memria da efervescncia
fundadora. O choque amoroso torna-se tdio conjugal, a energia revolucionria
metamorfoseia-se em partido poltico institucional, o dinamismo juvenil dos
comeos inverte-se em repetitividade montona. At mesmo a intuio criativa de
um pensamento inovador tende a tornar-se sistema esttico com os seus dogmas e
o seus ces de guarda zelando, ciosamente, pela rigidez doutrinal (MAFFESOLI,
2002, p. 22)
Os criadores do Poesia in Concert saem de
Londrina no final da dcada de 90. Depois dos anos 2000, Rodrigo, Mrio e
Maurcio permaneceram artistas com estticas performativas. Mrio participa de
dois grupos, Trovadores do Miocrdio e
o Jazz Poetry. O Trovadores trabalha com um DJ que providencia camas sonoras para as
leituras. Costuma trabalhar com temas. Em setembro do ano da concluso deste
trabalho (2018), pretendiam comemorar o aniversrio de Nick Cave. J no Jazz Poetry, os escritores escolhem o
jazz que acompanha textos autorais. Rodrigo desabafa sobre as apresentaes
contemporneas do Poesia em Londrina:
a nica coisa que parece repetitiva e sem criatividade que sempre o blues, conta.
Hoje, o Valentino,
na Rua Prefeito Faria Lima, passou a ser visto como um lugar menos da margem,
mais elitizado – de fato, em Londrina de 2018, os espaos das coisas marginais,
viscerais e espontneas so outros. Outras so, tambm, as estticas do
marginal. A Vila Cultura Cemitrio de Automveis o espao principal, onde,
inclusive, acontecem a maioria dos encontros de Poesia in Concert.
Christine Vianna, porta-voz do Benditos
Energmenos (banda de poema e msica blues, inicialmente fazia leituras de
poemas brasileiros, inclusive fora do Brasil, at, ultimamente, investir em
trabalhos autorais) era pblico do Poesia
in Concert em 1990. Aproximou-se da msica atravs do Poesia. Em 2009, reinsere o Poesia
na pauta londrinense celebrando o aniversrio da cidade de 75 anos, que
acontece em 10 de dezembro. Apresenta o show
no Museu de Arte, em julho e, em novembro, na Vila Cultural. A partir de 2010,
o incorpora ao Londrix, que planeja as apresentaes do Poesia principalmente na Vila Cultural (j aconteceu, tambm, na
Concha Acstica, em Londrina, em 2012).
O festival literrio de londrina, Londrix,
discute a palavra atravs de vrios ngulos: confraternizao com escritores,
oficinas, palestras, leituras, lanamentos de livros. Christine resolveu
retomar o Poesia in Concert neste
contexto de tate-lo, de perceb-lo, de expandir a experincia com a palavra. A
diferena que, anexado ao Londrix, o espao tambm de um pensamento conscientemente
crtico (uma vez que o festival organizado, principalmente, por nomes da
Universidade Estadual de Londrina). Nesse festival, de experincia crtica e de
experincia do ventre da palavra, a vida de bar mais limitada.
Entenda: na dcada de 90, o Poesia in Concert era um evento do bar. Um lugar de comrcio, aberto cotidianamente, no qual o pblico
vai e vem com liberdade. Com a insero do evento em um festival e um espao
cultural especfico, no qual a experincia direta da boemia no bar restrita,
a palavra-voz do Poesia sofre outra
experincia sociolgica. No corre o risco, como era o caso do Poesia em 90, de um cliente despreparado
entrar no bar e por acaso sentir o hlito alcolico de Rimbaud. H boemia e h
bebidas na Vila Cultural, mesmo assim. O que ocorre que quase 40 anos depois
da ditadura, as necessidades crticas da literatura so outras.
Com a insero do Poesia in Concert em um festival literrio, o equipamento e as
possibilidades aumentam com o investimento monetrio. Christine relatou o
nmero de bandas locais, por exemplo, que se empenham em trazer novas
materialidades sonoras palavra. Bonus
Trash, com punk rock e performances energticas, quase esquizofrnicas,
como se a ansiedade manaca ganhasse pernas. Outras bandas locais, como Radicais Livres que em parceria com o Benditos, sonorizaram poemas de Herman
Schmitz, curitibano naturalizado londrinense. Dentro de um festival literrio,
so vrias as conversas literrias, vrias as referncias e, conforme avanam
os anos e as percepes – e os poetas – natural que se notem
novas performances montadas. Inclusive novos objetivos.
Se antes o Poesia in Concert queria
questionar o conceito de literrio, hoje quer
assegurar uma educao poltica sobre o conceito. Christine, como
professora e musicista, usou o projeto para levar poemas londrinenses s
escolas. Alunos vinham pedir os poemas apresentados, ela conta a
experincia. Voc canta, professora? No canto, eu falo. – agora o
trajeto contrrio. O foco se torna questionar o conceito de msica e som
pela fora literria. Nesse percurso, a educao retira o aluno apenas da experincia do ventre para
inseri-lo experincia cognitiva (um objetivo que, na presente dcada, parece
mais adequado).
Antes o discurso fazia oposio ufanismo
ditatorial e priso da palavra acadmica; hoje, as necessidades de oposio
so outras. Christine reitera: as redes de literatura de massa no trabalham o
diferencial; e o diferencial desconstri uma estrutura de realidade fixa. Cabe
vanguarda, que est frente na questo cultural, mostrar coisas que so
produzidas margem da rede de massa.
Nesse sentido, no preciso mais recitar
Burroughs, Kerouac, Leminski; todos esses nomes vo muito bem e obrigado. O
atual levantar bandeira levantar o nome de um autor independente para o
conhecimento pblico. Esse o novo propsito do Poesia in Concert:
fundamentar um espao de arte independente, e disseminar a mesma arte
independente entre os espaos londrinenses, um circuito de divulgao e
fundamentao da arte local.
Observe uma diferena de resposta de palco: em
uma apresentao relatada por Christine com o Benditos em Curitiba,
havia 800 pessoas, espao lotado. Era uma homenagem a Paulo Leminski. Um
bbado, talvez drogado, subiu no palco e abaixou a cala. Segundo a autora, ele
ficou assim, meio de quatro. Aquilo foi constrangedor, desconcentrou, tirou a
ateno do show para o moo – e o que fazer, ento? O show no podia parar, conta Christine. Se
a poesia no enlaa o pblico, ele se perde; voc tem que prender ateno com o
fluxo. Eu abaixei no mesmo nvel que ele, ela diz. E fiz o poema pra ele.
Ele ficou calmo; estava agitado... e acredito que tenha sido envolvido pela
poesia – eu olhei pra ele, e as pessoas aplaudiram muito.
diferena dos msicos, poetas e tradutores
universitrios, recm-formados, que atuaram no primeiro Poesia in Concert para
um pblico de bar, o contexto escolar de Christine contextualiza a literatura
inicialmente com formar e educar, menos preocupada com o desregrar dos
sentidos. questionvel se a resposta de palco do primeiro Poesia ao
bbado teria sido acalm-lo.
Assim, menos preocupada com o discurso de uma
palavra no bar, h um discurso mais apegado palavra enquanto um direito
humano de Antonio Candido. Inclusive, literatura pensada como ativismo
poltico e manuteno de espao para os direitos humanos. Nesse sentido, no Poesia in Concert atual h uma ideologia da raiz, que parte, por exemplo, dos
poemas e do blues americanos, ressaltados nas figuras Amiri (1996, p. 44-47) e
Wanda (1996, p. 113-116), entrevistadas por Rodrigo Garcia Lopes. Embora nos
dois Poesias haja diferentes relaes sociolgicas com Londrina, o
evento permanece como um espao para discursar um processo crtico da
literatura contrrio cifra monetria da literatura de massa.
O sentido do Poesia in Concert (palavra
que retorna rua) um sentido que se ressignificou conforme as necessidades
sociolgicas da palavra e da rua mudaram. Antes, levar a palavra para rua e
para o bar. Agora, lev-la s escolas. Quando vestida de elite, dar-lhe roupas
da rua; quando se tornar marginalizada demais, reivindicar uma palavra que
resguarda direitos humanos. Se a palavra for monetizada pelos recursos de massa,
educar ao diferencial, educar palavra enquanto um outro. Ora, assim como Burroughs
foi institucionalizado pela crtica norte-americana, a qumica efervescente do Poesia
marginal se transformou em uma matria-prima. Agora, o que fazer com um
Burroughs que j vendido at em lojas de rodovirias? Responder com aqueles
que raramente conseguem uma prateleira.
A literatura, a palavra, participam dos
processos de lucro. indubitvel. A Forbes publica anualmente uma lista
com 10 escritores de fico norte-americana milionrios. A palavra
comercializada em forma de Facebook, Whats App e Tweets globalmente compartilhados. E, com o raciocnio relativista
ps-moderno, haver discusses interminveis sobre o que existe ou no de
literatura nisso. A palavra gira um capital considervel. O que o crtico
literrio e o empresrio tm em comum querer entender quais palavras so mais
capitalistas do que vanguardistas. Entre os dois momentos do Poesia, Rodrigo
Garcia e o Benditos Energmenos
quiserem abordar a palavra pelo sentido contrrio mare.
Embora os sentidos e as projees do Poesia
in Concert tenham sido atualizados, observa-se um espao londrinense para
se opor ao sentido mainstreem da palavra. Talvez seja essa a maior
herana de colocar a palavra na rua. Conhecer aquele que, no centro da cidade
ou na periferia, o outro.
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Resumo debate cultura em Londrina. Disponvel em <https://www.youtube.com/watch?v=hfLs-pmZWm0> Acesso em: 22 Jun 2018
Pasta com
entrevistas realizadas.
Disponvel
em: <https://1drv.ms/u/s!AknHzGD3Drz3gdYOg8ti2RsNAdRBqA?e=eltDAg> Acesso em: 4 de Maio de 2021
[Recebido: 04 mai 2021 – Aceito: 04 jun 2021]
Vozes poticas e
(re)existncias quilombolas do Grupo Razes do Samba de Tocos de Antnio
Cardoso - BA
Poetic voices and quilombola
(re)existences of the Razes do Samba de Tocos Group by Antnio Cardoso –
BA
Renailda Ferreira Cazumb[47]
https://orcid.org/0000-0002-3396-1962
Eliziane Santos e Santos[48]
https://orcid.org/0000-0001-9685-0066
Resumo: A vida e as histrias dos
mestres e mestras, sambadores e sambadeiras do grupo Razes do Samba de Tocos
de Antonio Cardoso - BA resguardam um precioso manancial potico e narrativo
corporificado em sambas e histrias tradicionais do grupo. Nesse sentido, este
artigo pretende visibilizar a interao e a recolha das vozes do repertrio
cultural oral e os referenciais ancestrais afro-brasileiros a partir do
levantamento e registro do seu repertrio oral. Fruto das aes da pesquisa
Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo Razes do Samba
de Tocos de Antonio Cardoso – BA, este estudo concentra-se em acessar as
narrativas de cunho oral e autobiogrficas dos mestres do samba rural. O aporte
terico-metodolgico se fundamenta na teoria de Benjamin (1994), nas concepes
de Costa (2015) acerca dos narradores tradicionais, em Ferraroti (1988), sobre
o mtodo autobiogrfico, e nas concepes de Hampat B (1977) a respeito da
tradio oral em comunidades africanas. O manancial narrativo insere os sambadores/sambadeiras
do Razes do Samba de Tocos dentre os guardies das vozes ancestrais que
reencenam as (re)existncias negras no interior da Bahia.
Palavras-Chave:
Razes do Samba de Tocos; Vozes poticas tradicionais; (Re)existncias.
Abstract: The
life and stories of mestres and mestras, sambadores and sambadeiras of the
group Razes do Samba de Tocos by Antonio Cardoso - BA
traditional knowledge constitute precious poetic and narrative source embodied
in sambas and traditional stories by the group. In this sense, this article
intends to make visible the interaction and collection of the voices of the
oral cultural repertoire and the Afro-Brazilian ancestral references from the
survey and registration of their oral repertoire. It is the result of the research
actions of the project Cacimba de histrias: vidas e saberes dos contadores de
histrias tradicionais de cidades do interior da Bahia, (UEFS/ UFSB/UNILAB),
study focuses on accessing the oral and autobiographical narratives of the
masters of rural samba. The theoretical and methodological contribution is
based on Benjamin's theory (1994), on Costa's (2015) conceptions about
traditional narrators, Ferraroti's (1988) theory about the autonomy of the
autobiographical method, and Hampat B's (1977) conceptions about oral
tradition in African communities. The narrative source inserts the
sambadores/sambadeiras of the Razes do Samba de Tocos among the keepers of
ancestral voices that re-enact black (re)existences in the interior of Bahia.
Keywords: Razes do Samba de Tocos; Traditional
poetic voice; (Re)existences.
Introduo
Neste artigo socializamos parte dos resultados
da pesquisa Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo
Razes do Samba de Tocos de Antonio Cardoso - BA (FAPESB/2019-2020), na qual
realizamos o levantamento do repertrio cultural de cunho oral advindo dos
mestres e mestras sambadeiras integrantes do Grupo Razes do Samba de Tocos, da comunidade quilombola situada no
municpio de Antnio Cardoso, estado da Bahia. Interessadas em investigar a
preservao e a visibilizao dos saberes populares provindos dos narradores
tradicionais do Recncavo Baiano, interagimos com o grupo por reconhecermos o
processo de silenciamento e marginalizao desse conhecimento no mbito da
educao formal, assim como o possvel apagamento desse acervo cultural na
sociedade moderna.
Neste sentido, focalizamos as vozes poticas
das sambadeiras e sambadores, por meio do intercmbio de saberes entre a
comunidade tradicional, que o campo emprico da nossa pesquisa, e os espaos
acadmicos envolvidos. Neste percurso, interagimos com o Mestre Saturnino Dias Neri,
de cognome Mestre Satu, e com as sambadeiras Antnia Neri e Valdemira Sena de
Almeida, Dona Mira, integrantes do grupo de samba tradicional na comunidade
quilombola de Tocos, atravs da Entrevista Narrativa. Tais aes resultaram no
levantamento e registro das histrias contadas – verses originais de
contos populares e de sambas rurais – de forma individual e coletiva
pelos sambadores, situados no estudo como narradores tradicionais e que
revelaram um manancial potico tradicional a ser reconhecido como repertrio
das reexistncias negras no contexto das comunidades quilombolas do interior da
Bahia.
O mestre e as sambadeiras, atores da pesquisa
em questo, foram situados a partir da concepo de narradores tradicionais,
adotada durante o processo de investigao. Para tanto, essa movimentao fundamentou-se
na teoria de Walter Benjamim a respeito de quais traos caracterizam um
narrador tradicional. Segundo o filsofo alemo:
Assim definido, o narrador figura entre os
mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para alguns casos, como o
provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode recorrer ao acervo de
toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria experincia, mas em
grande parte experincia alheia. O narrador assimila sua substncia mais
ntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom poder contar sua vida; sua
dignidade cont-la inteira. O narrador o homem que poderia deixar a luz
tnue de sua narrao consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIM,
1994, p. 221).
Alm da definio da figura do narrador
tradicional, que popularmente conhece e possui o acervo dos saberes, buscou-se,
de antemo, compreender qual a funcionalidade desse indivduo para a sociedade.
Segundo Edil Costa (2015, p.06): O papel dos narradores tradicionais o de
interpretao e recriao da memria ancestral que herdaram e, a seu modo,
preservam. Sendo assim, chegamos at Mestre Satu, Dona Antnia e Dona Mira, um
trio de ancies que representam a sua comunidade e resguardam saberes coletivos.
Ouvimos e aprendemos com o mestre e as sambadeiras sobre a importncia da
preservao desse manancial cultural, pois que tais saberes, segundo esses
sujeitos, esto se tornando raros na contemporaneidade.
A perspectiva metodolgica autobiogrfica
O Grupo Razes do Samba de Tocos liderado
pelo Mestre Satu e se constitui como grupo h cerca de 16 anos, a partir dos
encontros entre vizinhos, amigos e familiares que se reuniam de forma frequente
a fim de celebrar as datas religiosas como as novenas, a festa de Reisado (o
Rei, segundo denominam) e as festas para os caboclos – manifestaes estas
sempre regadas com rezas, cantigas e sambas que variam em suas mltiplas
modalidades, como o samba coco, o cantado e o pisado. O grupo formado
principalmente por camponeses e camponesas que vivem na regio da antiga
fazenda de Tocos, municpio de Antnio Cardoso, no interior da Bahia, a 30 km
de Feira de Santana, o qual tem como principal atividade econmica a produo
agrcola, especialmente do fumo, milho e feijo (SESC, 2014). Para alm do
lder, integram esse coletivo Roque da Viola, Afonso das Virgens, Antnio Luiz,
Manoel Conceio, Dona Antnia, Dona Edilma e Dona Maria de Lourdes.
Mestre Satu, Dona Antnia e
Dona Mira participam desta pesquisa por integrarem especialmente uma comunidade
afro-brasileira, na qual est concentrada a cultura negra ancestral de forma
muito potente atravs, sobretudo, da memria e da oralidade. Esse aspecto
torna-se relevante ao considerarmos a concepo do etnlogo e filsofo malins
Amadou Hampat B sobre a relao da oralidade com a formao das sociedades
africanas, a saber:
Quando falamos de tradio em
relao histria africana, referimo-nos tradio oral, e nenhuma tentativa
de penetrar a histria e o esprito dos povos africanos ter validade a menos
que se apie nessa herana de conhecimentos de toda espcie, pacientemente
transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discpulo, ao longo dos sculos.
Essa herana ainda no se perdeu e reside na memria da ltima gerao de
grandes depositrios, de quem se pode dizer so a memria viva da frica (HAMPATE B, 1977, p. 1).
A contribuio de um dos
maiores pensadores africanos do sculo XX para que a oralidade fosse
reconhecida como uma fonte significativa e especialmente legtima de circulao
de conhecimento histrico foi a fundamentao indispensvel para o
desenvolvimento desta pesquisa. Pensar na histria e na cultura pertencentes aos
diversos povos africanos falar de oralidade e memria e, portanto, no
haveria via mais simblica para nosso estudo do que a de adentrar em uma
comunidade quilombola afro-brasileira atravs das manifestaes de cunho oral
em toda a sua multiplicidade, a fim de acessar e fazer o levantamento dos seus
saberes presentes nas memrias do grupo.
Ao se referir ao saber
tradicional dos narradores enquanto um acervo resultante de toda a trajetria de
vida desses indivduos, o autor supracitado Walter Benjamim (1944) nos
apresenta um importante recurso para a gerao de dados de pesquisa: os relatos
autobiogrficos.
A fim de alcanar estes materiais, adotamos a
perspectiva metodolgica autobiogrfica e nos embasamos nas concepes do
socilogo Franco Ferraroti em relao autonomia do mtodo (auto)biogrfico,
com base na etnografia, e
considerando as prticas e saberes de alguns dos integrantes do grupo Razes do
Samba de Tocos. Segundo aquele
que foi descrito como pai da sociologia italiana moderna: (...) o nosso
sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um
dos nossos sonhos, delrios, obras, comportamentos. E a histria deste sistema
est contida por inteiro na histria da nossa vida individual (FERRAROTTI,
1988, p. 26). Dessa forma, tencionamos partir da investigao das histrias
individuais do Mestre Satu, da Dona Antnia e da Dona Mira a fim de, para alm
dos relatos de suas vivncias, abranger narrativas que dialoguem com a memria
de Tocos enquanto uma coletividade. Para isso, foi utilizado um dispositivo de produo e anlise de dados de
pesquisas, qual seja, a Entrevista Narrativa:
Idealizada por Fritz Schtze como um
dispositivo para compreender os contextos em que as biografias foram
construdas, os fatores que produzem mudanas e motivam s aes dos portadores
da biografia, essa entrevista produz textos narrativos sobre as experincias
das pessoas, expressando maneiras como os seres humanos vivem o mundo por meio
de histrias pessoais, sociais e coletivas. Ela tem como objetivo incentivar a
produo de uma narrativa pelo depoente (MOURA;
NACARATO, 2017, p. 17).
Este dispositivo tende, na verdade, a promover uma ruptura com o
padro de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas e oferta uma maior
flexibilidade para que o entrevistado tenha a fluidez necessria para transitar
por diversos temas de seu interesse, sem que uma sequncia de perguntas limite
suas narrativas. Ademais, propicia no apenas o levantamento de histrias
pessoais como tambm a anlise do contexto no qual o indivduo est inserido,
considerando os atravessamentos de idade, gnero, raa, etnia, classe social e
momento histrico.
Dessa forma, a nossa entrevista narrativa ocorreu de forma coletiva
e on-line no dia 26 de maio de 2021,
atravs da plataforma digital Google
Meet, assim configurando as adaptaes que j estavam previstas desde o
incio da pesquisa devido s restries consequentes da pandemia de COVID-19.
De antemo, foi elaborado um material com algumas questes disparadoras apenas
para nos guiar durante a entrevista, mas o contedo real foi conduzido pelos
mestres e pelas mestras que, com pouco tempo de gravao, j se sentiam
vontade para fazer da memria o seu principal orientador. Em sequncia ao
trabalho de interao com os mestres da comunidade de Tocos, o movimento foi
registrar todo o material coletado, que variou desde os relatos autobiogrficos
at verses de contos populares e letras de samba.
No processo de entrevista aos mestres h muitos detalhes da
performance oral e narrativa que, infelizmente, apenas a escrita no capaz de
captar. Os corpos desses contadores tradicionais narram significativamente, bem
como o olhar, os gestos, o riso e outros elementos contribuem para uma
compreenso mais ampla do que est sendo narrado e cantado. Portanto, dentro de
todas as limitaes dos textos escritos, buscamos transpor para as letras
algumas dessas manifestaes, deciso que tornou o processo de transcrio um
dos mais rduos de toda a pesquisa. Traremos, no corpo da anlise, trechos das
narrativas com o mestre e sambadeiras, a fim de potencializar o texto escrito
com a riqueza do manancial potico-narrativo do grupo.
As vozes
poticas do Razes do Samba de Tocos: ancestralidade e reexistncia
Nossa inteno no a de dar voz ao grupo de sambadores e
narradores tradicionais, pois cremos que nosso percurso se concentra em
dialogar e aprender com o grupo, ponderando que a voz j pertence aos narradores
e so sua fonte de vida e reexistncias. A Entrevista Narrativa coletiva
concedida a ns pelo Mestre Satu, pela Dona Antnia e pela Dona Mira foi
organizada de forma a promover a socializao de narrativas, aps pedirmos
licena para adentrar ao espao da ancestralidade do grupo. Nas conversas, os
sambadores nos revelaram, no primeiro momento, a sua identidade enquanto
indivduos; em sequncia, como sujeitos imersos em um determinado grupo e, por
fim, enquanto mestres da tradio popular do Recncavo Baiano. A ttulo de
exemplo desse movimento tem-se o relato do Mestre Satu acerca da origem do seu
nome, portanto, do comeo da sua histria de vida:
Saturnino
Dias Neri, meu apelido Satu, Mestre Satu e meu nome Saturnino Dias Neri.
Meu pai me contou um negcio do nascimento era que os pai pra registrar os fi
tinha que v um livro, um almanaque de pensamento que era pra escolher o nome
dos meninos quando nascia, ai escolhia, fulano nasceu nim tal ms ai botava o
nome, quer dizer que era um pensamento que as pessoa tinha, iai botaram meu
nome Satu, Saturnino e botaram o apelido Satu e , acho que bem pouco que tem
aqui no municpio porque o povo no, hoje tudo pensando como eles quer
fazer, antes dos meninos nascer j t com nome marcado n: vou botar fulano de
tal, isso e aquilo outro. Papai e mame se reuniram e botaram Saturnino (Mestre Saturnino Neri).
Nascido
e criado no municpio de Antnio Cardoso, o Mestre Satu filho de Jovina Neri de Souza e Isdio Dias de Souza, e possui oito irmos, dentre os quais sete
so mulheres e um homem. A memria muito viva um dos traos que nos saltaram
aos olhos durante a interao com o Mestre Satu, no auge dos seus 79 anos: cantador,
contador e rezador, ele nos narrou histrias completas da sua infncia e
juventude, perodo este marcado especialmente pelo trabalho manual nas roas:
Era tudo devagar, mas dava pra passar, dava pra
divertir, a gente ia trabalhava mais os pais, mais as mes, a vaidade era
passear mais os amigo. j era tudo marcado e a ida era marcada, ali a gente no
podia sair pra ir pra canto nenhum, era tudo dominado, escravizado. Quando
terminava o servio iam pra roa, ia pisar milho, catar baxeiro, sentar pra
amarrar fumo, era um bocado de coisa. Iai quando terminava de tarde : vo pra
roa fazer a rocinha de vocs, ai a gente vinha fazer a rocinha da gente,
prantava um feijozinho, prantava um pezinho de fumo, no tinha munturo naquele
tempo, a gente ia pros matos, pros morros pra pegar folha de Gravat pra fazer
os munturo, a gente no podia sair numa estrada se no fosse acompanhado que
naquele tempo a polcia pegava, os inspeto pegava (sinal de lavar as mos) e
ajeitava l, ai ia levar pros pais chegava l entregava pros pais. Mai, mai! eu
no tenho tristeza por isso no, gostei muito, eu prantava meu fumo, prantava
meu feijo, no vendia, mas dava pra gente cumer, quando eu peguei a me
entender, a eu peguei, plantei minha roa, prantando minha farinha e levando
pra Anguera pra vender pra eu comprar roupa pra vestir, chapu sapato... (Mestre
Saturnino Neri).
A memria da infncia e juventude do Mestre Satu demonstra como a
explorao pode ser relativizada no meio das comunidades afro-brasileiras. Apesar
de reconhecer a grande sobrecarga de trabalho presente no seu cotidiano e no
dos seus pares, ao empregar termos como escravizados e dominados, o mestre
afirma que no sente remorsos ou tristeza ao se recordar do passado, e que dava
para se divertir. Dessa forma, podemos refletir que, apesar de em nenhum
momento o Mestre ter abordado de forma literal as questes raciais, esse
discurso se revelou atravs da sua fala e do relato de como os seus corpos
foram estruturalmente controlados e destinados, quase que integralmente, ao
labor e subsistncia – enquanto o lazer, as brincadeiras e o aspecto
ldico, que deveria predominar durante sua infncia, foram elementos distantes
da realidade desse sujeito e das outras crianas do seu entorno.
Na vida do Mestre Satu essa problemtica no se restringe aos
primeiros anos de sua vida, mas segue ao longo de sua trajetria, visto que ele
afirma, nos desdobramentos finais da entrevista, no dominar a linguagem
escrita devido s suas jornadas de trabalho. Essa temtica surgiu enquanto
falvamos da literatura de cordel, muito bem representada na comunidade por
Antnio Ribeiro da Conceio, nacionalmente reconhecido como Mestre Bule-Bule. Outras
possveis literaturas poderiam ter feito parte das suas vidas e da memria do
grupo, conforme Dona Mira nos revela: Vou dizer, eu no sei l, no sei l,
guardo tudo na minha cabea. Essa declarao ensejou o mestre a contar tambm
a sua experincia e a forma com que a necessidade de trabalhar para sustentar
seus doze filhos o impediu de dedicar o seu tempo aos estudos, escrita e aos
livros:
Meu tempo no dava pra eu l esse negcio de
cordel, meu cordel era rancar toco pra criar meus fio, aqui em Cruz das Almas
pra c, eu rancava toco ai em So Gonalo, Santa Matibiri, Conceio de Feira,
esses pau tudo, a gente saa daqui com uma mochila nas costas pra ir trabalhar,
rancar toco, cortar lenha pra poder criar os filhos, mas graas a Deus meus fi
ta criado e eu tambm no perdi a minha disposio, a minha vontade, sou
feliz, hoje eu sou o que eu no esperava, meus filho no me d dor de cabea,
todo mundo tem seu trabalhozinho pra trabalhar, todo mundo tem seu larzinho pra
colocar, tem seu motorzinho, ento eu tenho alegria (Mestre Saturnino
Neri).
Ainda nesse contexto possvel trazer para a discusso os relatos
das vivncias da Antnia Lima Neri, sambadeira e companheira do Mestre Satu h
mais de cinco dcadas, alm de me de doze filhos que, segundo ela, foram
criados com muito esforo e trabalho: (...) tudo nesses bracinhos capinando terra,
prantando mandioca, batata, fumo, pisando milho pra fazer cuscuz, mucunz pra
criar, criei. Graas a Deus eu t reagindo ainda, pareceu um sambinha a nois
samba n, graas a Deus, t arrependida no. Em relao aos estudos, Dona
Antnia afirma que tambm no domina as letras, entretanto, lista uma srie de
outros saberes que ela possui: (...) sei fazer um caruru, um
vatapazinho de So Cosme, sambar, trabalhar de enxada, fazer beiju no forno,
isso a eu sei ne, e passear.
Ademais, tambm conseguimos fazer o levantamento das narrativas da Valdemira Sena de Almeida, filha de Valeriana Sena e Firmino Gonalves, viva de Adolfo Paulino dos Santos e que se apresenta pelo apelido Dona Mira. As falas dessa sambadeira nos trouxeram resultados bastante enriquecedores, pois, ao fazer relatos de sua infncia, ela estabeleceu um panorama do modo com o qual tanto ela como seus pares foram introduzidas no samba e nas tradies populares da comunidade quilombola de Tocos:
A gente ia pro samba, minha me botava a gente
pra ir pra uma reza, a gente ia mais ela, chegava l o pessoal botava uma
esteira no cho, as mes falava "vocs tem que ficar aqui comigo, at
terminar a reza" a gente ficava l, quando terminava a reza ia cantar o
rei, ia cantar o rei a gente ficava l de junto do Rei tambm cantando,
parmeando e tudo, a as amiga falava o samba no d pra gente que o povo t
sambando caboclo, bora cantar roda, a gente saia pra cantar roda (Dona Mira Almeida).
O municpio de Antnio Cardoso possui antigas tradies populares e de referncia africana que so indispensveis para a preservao da cultura sertaneja no estado da Bahia, sendo estas, muitas vezes, pautas da nossa entrevista narrativa. De acordo com Edil Costa (2016, p. 54): Sendo a Bahia um forte reduto de afrodescendentes, sabemos que a contribuio de povo africanos na nossa formao cultural inegvel. Assim, o mestre e as sambadeiras autoras da nossa pesquisa expuseram relatos das celebraes e fazeres culturais, como as rodas de Samba Rural, a festa do Reisado, as cantigas que nascem e circulam nesses meios festivos, assim como as comidas tpicas que fazem parte do saber ancestral das mulheres da comunidade e os contos populares que tambm compem o acervo da cultura oral e de cunho afrodescente.
A respeito de sua insero no universo do samba, o Mestre Satu confirma que, na comunidade de Tocos, isso ocorre de forma muito natural (assim como narrado acima pela Dona Mira), j que a maior parte das crianas se inicia na prtica acompanhando os pais e, dali em diante, elas no deixam mais a roda. Ademais, o Mestre ainda traz em sua colocao uma crtica s novas geraes que, segundo ele, no se interessam mais por aprender as tradies como em seu tempo de juventude:
A dana a gente mesmo aprende, s bastava o
vento tocar, marminino! O samba tambm, hoje que ningum quer nada mais, (...)
no aguentava v um camarada tocar. Eu fazia samba aqui (...) eu fazia samba
esse mundo todo. Em Feira de Santana meu mestre foi Gonalo Barbosa,
cumpanheiro, os dois cumpanheiros de encontro era Francisco e Joo Quente, e a
a gente ia fazendo festa nesse Brasil todo, daqui a gente cantava, eu e Joo
cantava, Francisco tocava violo e eu tocava o pandeiro e Joo tocava o
pandeiro, naquele tempo no tinha marcao. O primeiro sanfoneiro que tinha
aqui era Simplcio e tinha o Roque Gasparino que era violeiro tambm, tocava
viola e esse Mudesto e o Simplcio era quem fazia as festas da gente e era
direto! A gente no passava um sbadu dendi casa no, pouca hora ele chamava,
ou muntado ou andando. Era reza direto e samba, era samba at 8 hora at 9 hora
do dia (Mestre Saturnino Neri).
A festa de Reisado tratava-se do movimento mobilizador da comunidade e partia de um grupo formado, geralmente, pelos familiares, amigos e vizinhos que se organizavam com o objetivo de visitar, de surpresa, a casa um dos outros e festejar com msica, dana e bebidas – ao denominada por eles de roubar reis. Essa tradio integra o repertrio das Festas Natalinas e realizada em um perodo que se estende do dia 24 de dezembro at o dia 6 de janeiro. Dona Mira relata como era a experincia da festa de Reis:
mintira
que o Rei era l em sua casa, a gente marcava que era longe pra voc no ir,
(...) quando era de noite a gente fazia, pegava as coisas botava no saco: era
bolacha, acar, caf, bibida, xarope. [...]. Num tinha um dia, todo santo dia
a gente cantava rei na casa do povo, hoje quetou por causa dessa impidemia,
tudo caro, e a gente sambava sabe como era que a gente sambava? Era sanfona e
rapa cul e o prato de fronte que a gente fazia rei. Os homi com uma foice
fazendo ten ten ten terenren tocanu (som dos instrumentos) com a foice, cul,
enxada, tudo que viesse a gente pegava tudo, prato de pranta (...) a que era
um samba gostoso, a gente sambava at de manh (Dona Mira).
Para alm do relato acima, tanto o Mestre como as sambadeiras entoaram versos e cantaram as cantigas que comumente faziam parte dessa festividade, no momento da chegada e da sada do Reis, respectivamente, os quais alegravam a festividade:
Dona da
Casa vim lhe ver, vim lhe ver, vim lhe ver
Uma
garrafa de cachaa/ Pra me dar pra eu beber
Oh Dona
da casa me d licena
Que eu
vou sambar na varanda
Com um
chapu na cabea/ E meu faco numa banda
Oh gente vamos embora
Que aqui no fica ningum
S fica o dono da casa
Encostado com seu bem
So Cosme e So Damio
Sua casa cheira
Cheira cravo e cheira rosa
Cheira a flor de laranjeira
A msica uma linguagem artstica universal
porque, ainda que expressa em diferentes idiomas, tem a capacidade de produzir
sensaes nos ouvintes: de enlevo, de medo, de suspense, de alegria, de
tristeza (...). uma forma de comunicao que se utiliza de sons. Os elementos
constituintes da linguagem musical: o ritmo, a melodia, o timbre e a harmonia
so utilizados para comunicar ideias, sentimentos e sensaes aos ouvintes
(ROCHA, 2010, p. 209).
Dessa forma, a pesquisa em questo buscou
demonstrar qual o papel das letras dos sambas e da corporeidade na difuso e
perpetuao das histrias, das vivncias e das tradies do grupo Razes do
Samba de Tocos. Neste caminho, interessou-nos a pesquisa de Paul Zumthor (2010) sobre a predominncia da vocalidade das
narrativas tradicionais; o autor enfatiza que foi por meio de lendas, mitos,
histrias, contos e reminiscncias que determinados povos se situaram e se
estabeleceram no/com o mundo. A partir dessa abordagem, possvel ento
acessar o patrimnio cultural e os saberes da tradio afro-brasileira,
especialmente das suas cantigas, sendo algumas delas registradas a seguir:
O
sapato que eu usei/ No lixo eu j joguei/ No importo que tu use/ Daquele que
eu j usei/ Meu anel de trinca trinca/ Bateu na pedra trincou/ Quem achar no
jogue fora/ Quebre- se dizia amor
Oh
Deolina, oh Deolina, oh Deolina/ Qual a moa que no pode namorar? (2x) /
Mulher bonita voc vai se casar (2x) / J me casei deixei pra namorar (2x) / Oh
Deolina, oh Deolina, oh Deolina
A partir das letras dessas cantigas supracitadas, foi possvel compreender a relevncia dessas manifestaes musicais para a circulao e resguardo da cultura/tradio de cunho oral da comunidade de Tocos. muito comum em alguns espetculos de contao de histrias, ou at mesmo em determinados contos, haver a presena da msica em meio s narrativas. No caso desse grupo tnico em questo, os sambas no apenas se fundem contao, como so a prpria contao. A ttulo de exemplo, tem-se a primeira cantiga, que, segundo Dona Mira, nasceu como uma forma de afronta ou resposta s jovens que roubavam os parceiros umas das outras, e at mesmo o quarto samba, que apresenta uma verdade abertamente disseminada durante a entrevista em relao ao matrimnio.
Na casa do Mestre Satu, cenrio no qual os mestres se encontravam no perodo em que a entrevista narrativa se desenvolveu, e apesar das limitaes da imagem devido ao formato adotado durante a ida a campo (on-line, via Google Meet) foi possvel notar a presena de imagens de diversos santos do Catolicismo, simbologia essa que foi confirmada pelo Mestre Satu e pela Dona Antnia que se declararam catlicos praticantes. Nesse nterim, tornou-se bastante relevante ponderar as crenas dos sujeitos entrevistados e perceber que o sincretismo religioso presente na comunidade de Tocos.
Dona Mira no se autodeclarou praticante de nenhuma religio especfica, no entanto, ao longo de suas falas foi possvel constatar que a f da sambadeira incorpora, em concomitncia, elementos pertencentes tanto s prticas catlicas como aos rituais advindos das religies afro-brasileiras. A ttulo de exemplo, h o relato da anci sobre uma promessa feita aos santos gmeos So Cosme e So Damio: Cosme e Damio um menino que cura todas as feridas, se ele prometer, ele d. Eu fui me operar, me operei me peguei, oh eu no sabia se eu tinha vida, me operei pedi a Bom Jesus da Lapa e a Santa Brbara que era pra eu chegar nos ps dele, de joelho, pra cumprir minha promessa.
Alm da forte f nos santos catlicos, Dona Mira tambm demonstrou ser iniciada na Umbanda ao relatar receber Caboclo no s nas rodas de samba, mas tambm em atividades cotidianas e no trabalho na roa. Ademais, a sambadeira tambm narrou, com detalhes, um ritual de purificao do qual fez parte. No entanto, nessa ocasio, as letras do Samba de Caboclo no foram expostas, pois tanto Mestre Satu como Dona Antnia julgaram melhor no entoar os cantos. Sobre isso, Adil Costa (2016, p. 57) chama a ateno de que (...) at hoje, assumir a publicamente sua pertena ao candombl tabu para os iniciados. Assim, ficamos atentas aos sentidos estabelecidos pelo grupo, mas sem impor a nossa viso. A fuso de elementos pertencentes a variadas crenas em um indivduo dialoga tambm com a concepo de Edil Costa acerca da multiplicidade presente nas culturas que emergem a partir da influncia de outras: [...] pois quando se trata de culturas mestias, como o caso da cultura afrodescendente, inevitavelmente se est abordando produes culturais fronteirias (Ibidem, p. 51).
No decorrer desta pesquisa, nos interessvamos
muito a coleta, o registro e a catalogao dos possveis contos populares que
nos fossem narrados; no entanto, os mestres se estenderam na contao das
histrias autobiogrficas. O Mestre Satu afirma que seu pai no lhe contava
histrias, pois a gente era mais andeiro, tinha reza a gente
saa pra rezar, chegava l ensinava as meninas cantar roda e tal, os meninos
oiando e a gente rezando, terminava de rezar fazia uma roda de samba ia tomar
uma birinight e pronto. J Dona Mira enfatiza que no conhece muitas
histrias, mas que o seu falecido marido detinha um repertrio vasto que,
inclusive, foi transmitido a um dos seus filhos.
Entretanto,
para alm dos sambas que so histrias musicalizadas, coletamos quatro contos
que, segundo a classificao do folclorista brasileiro Lus da Cmara Cascudo
(1898-1986), enquadra-se como causos. Segundo a classificao do Sistema
Aarne-Thompson, que divide os contos em trs grandes grupos (a saber: contos de
animais, contos de fadas propriamente ditos e faccias e anedotas, sendo todos
esses subdivididos em demais categorias), as narrativas coletadas durante a
entrevista com os narradores populares da comunidade de Tocos so classificadas
como contos com opositor sobrenatural, que est englobado no segundo grupo
supracitado. A seguir h o registro da transcrio original:
Eu fui
numa festa na Pedra Branca e vim de l pra c de noite, eu Francisco e Joo
Quente, cheguei l em Margarida, l na casa de Arlindo, ali encostado a Joo de
Luca. Tinha um p de caju denda baixada e a gente vinha de l de Lourdes, trs
pra quatro horas da manh que a gente no amanheceu o dia, e vem dois pssaro
branco de l pra c, a Francisco disse Ҏ a cavala, a ela gritou: cavala,
cavala, cavala. Oh nossa senhora, minha gente, pelo amor de Jesus que eu no
t contando mentira. A gente disparou, ela no ar desapareceu, e eu cheguei em
casa bati na porta, bati na porta, vea j tava dormindo, deu trabalho de abrir
a porta e Francisco mais Joo eu no sei aonde foi parar (Mestre Saturnino
Nery).
Ele some,
o lobisomem uma pessoa. Minha me j viu e eu j vi tambm, quando eu tava
parida desse menino a oh, de Paulo. A eu tava com a panela no fogo, e eu fui
que a casa era pequenininha, s tinha uma, assim, uma parede e o fogo era
assim de junto. A Adolfo saiu eu fui botar um Andu no fogo e fui oiar essa
panela. Quando eu fui oiar a panela eu vi um negcio e fez vup, quando fez vup
eu fechei a porta, quando eu fechei a porta o lobisomem saiu de debaixo do
fogo, dirrubou a panela do andu, aonde eu achei mais comida pra comer? Quando
ele chegou e perguntou o que foi ele viu l no cho a panela no cho, quebrou e
ficou sem comer, foi dormir com fome e quando no outro dia de manh cedo que
ele levanta vai ver o pelo do lobisomem l no arame (Dona Mira).
Minha
me tambm contava que o lobisomem dirrubou ele com um tacho de beiju na cabea
com o menino no brao. Ele veio da casa de farinha com um chal vermei, que
antigamente tinha esses chal, pegava o chale e jogava em cima do menino,
pegava o tacho e botava na cabea e saa e ia embora umas dez hora da noite
sozinha, a lua bonita que lobisomem gosta de lua bonita. Ela saiu e Oh cumadi,
eu vou pra casa que fulano de tal ta me esperando e eu t com os meninos em
casa, a ela pegou o tacho botou na cabea, o beiju, pegou o menino jogou no
ombro e foi se embora. Quando chegou adiante o lobisoni mutuo ela e ela pegou o
tacho do beiju e jogou na cabea do lobisomi e o lobisomi querendo lascar ela e
quederrei quederrei quederrei, gente! a saiu um homem: Oh fulana de tal ta
ali gritando vai ver o que ta acontecendo. Quando falou vou pegar o faco e a
faca de cortar fumo, oxe! ele se mandou. Quando ela chegou, que ela j sabia
que era um lobisomi, quando ela chegou na casa do candidato oa o dente com o
chale, com um pedao da coisa do chale no dente. Ai a mulher disse assim Oh
cumadi Valria o que a senhora vem fazer uma hora dessa aqui? No, eu vim ver
um negcio que me pegou ontem di noite, fulano de tal t ai? T, t deithado.
Chama ele a pra eu ver, pra conversar com ele. A quando ele levantou ela
oiou, ela oiou e viu o dente do cara com um pedao de chale na boca. Dest
camarada, eu vou te pegar no caminho ainda de novo, tu me dirrubo, mai tu j ta
marcado, vai me pagar. Quando foi quatro dia ele morreu (Dona Mira).
Consideraes
finais
A interao
com os mestres e mestras, sambadores e sambadeiras pertencentes comunidade de
Tocos permitiu percebermos que a vocalidade e a memria so os principais
propiciadores de circulao das tradies populares. Na localidade quilombola
de Tocos permanece o reconhecimento de que a tradio dos sambas, festas e
celebraes tradicionais esteja passando por um processo de escassez, caso
estas sejam comparadas com outras pocas em que eram mais cultivadas,
sobretudo, entre os mais jovens.
De tal modo,
ressaltamos a importncia do levantamento e do registro feitos atravs da
pesquisa de recolha das cantigas e dos contos, assim como das histrias de vida
de trs ancies atravs da Entrevista Narrativa. O legado potico e cultural do
grupo indica uma contribuio importante para as geraes mais jovens, que
podem aprender com os sambas, com os cantos e com as histrias tradicionais
reencenadas no presente.
Referncias
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cultura tradicional africana, suas mltiplas facetas, a oralidade, mitologia,
religiosidade e formas de expresso. In: Introduo Cultura Africana. Lisboa:
Edies 70, 1977, p. 167-212.
BENJAMIM, Walter. O narrador: consideraes
sobre a ora de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios
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COSTA,
Adil Silva. Tradies orais e afrodescendncia. In: Sete estudos de
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DE MOURA, Jnata Ferreira de; NACARATO, Adair Mendes.
A entrevista
narrativa: dispositivo de produo e
anlise de dados sobre trajetrias de professoras. Cadernos de Pesquisa, So Lus, v. 24, n. 1, p. 15-30, jan./abr. 2017.
FERRAROTTI,
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formao. Lisboa: Ministrio da Sade. Depart. de Recursos Humanos da
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ROCHA, Vivian Munhoz. Aprender pela arte a arte de narrar: educao esttica e artstica
na formao de contadores de histrias.
2010. 343f. Tese (doutorado em Artes) – Escola de Comunicaes e Artes da
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.
SESC Santana Catarina - Razes do Samba de Tocos (BA) circula SC no Sonora Brasil.
Disponvel em: https://www.sesc-sc.com.br/blog/cultura/raizes-do-samba-dehttps://www.sesc-sc.com.br/blog/cultura/raizes-do-samba-de-tocos--ba--circula-sc-no-sonora-brasiltocos--ba--circula-sc-no-sonora-brasil. Acesso em: 02 mai.
2021.
ZUMTHOR, Paul. Introduo poesia oral. Traduo Jerusa Pires Ferreira, Maria
Ines de Almeida, Maria Lucia Diniz Pochat. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
[Recebido:16
ago 21 - Aceito: 16 set 21]
[1] Doutor em Estudos Literrios
pela Universidade Federal de Londrina. Porfessor da Secretaria Estadual e tutor
EAD na Universidade Federal do Par.
[2] Alguns trechos deste
captulos foram retirados da minha tese de doutorado Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som imagem e movimento
defendida em 2016 na Universidade Estadual de Londrina.
[3] Doutoranda
em Estudos Literrios pelo Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade
Federal do Par
(PPGL-UFPA), vinculada linha de pesquisa
Literatura, memria e identidade. E-mail: adjaramos@gmail.com
[4] Doutora em Letras (Letras Vernculas) pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Professora permanente do Programa de Ps-Graduao em Letras,
Belm, PA. Coordenadora do Programa de Estudos Geo-BioCulturais da Amaznia
–Campus Flutuante, da Universidade Federal do Par (UFPA). E-mail: galvao@ufpa.br
[5] Doutora em Letras –
rea de concentrao em Estudos Literrios (UFPA). Professora da Universidade
Rural da Amaznia (UFRA) e vice-coordenadora do projeto de pesquisa e extenso
Poticas Orais e Pensamento Decolonial (LANMO/UNAM) E-mail:
rafaellacontente@gmail.com
[6]
Doutor em Letras – rea de concentrao em Estudos Literrios (UFPA).
Professor Adjunto I de Literaturas de
Lngua Portuguesa (UFMA). Professor permanente do
Programa de Ps-Graduao em Letras de Bacabal
(PPGLB). Lder do Grupo de Pesquisa em Literatura,
Negritude e Diversidade (GEPELIND). Vice-lder do Grupo de Pesquisa em Literatura, enunciao e cultura (LECULT).
E-mail: rubenoliveira50@hotmail.com/
rubenil.oliveira@ufma.br
[7] The plastic surgery craze: latin american women are sculping their bodies as never before - along California lines. Is this cultural imperialism? (GOLDENBERG, 2008, p. 52, traduo nossa).
[8] Neste estudo entendo a traduo no como um trabalho entre lnguas distintas ou iguais, mas como um ato interpretativo, que produz transformao, baseado em um jogo de diferenas, isto , como os narradores do IFNOPAP compreendem a figura da Matintaperera. Para tanto, pautamo-nos no pensamento do espanhol Jorge Larrosa em sua obra La Experiencia de la Lectura: estudios sobre literatura y formacin (1996).
[9] Neste artigo empregamos a palavra velha, pois acreditamos, assim como Zimerman (2007), que o termo no carrega nada de pejorativo. Pelo contrrio: pejorativo substituir o nome velha por eufemismo, como se a velha fosse uma irregularidade ao ser escondida. Na realidade, o que precisa ser mudado no a maneira de se cham-la, mas sim o jeito de trat-la.
[10] Nos estudos sobre a Matintaperera existes distintas grafias para a personagem estudada, tais como, Matinta perera, Matinta pereira e Matintaperera. Para este trabalho adotamos a escrita da palavra Matintaperera de Silva Junior (2014), pois acreditamos que seus objetivos de pesquisa se aproximam dos nossos.
[11] A senilidade refere-se, de acordo com Mucida (2018), s patologias do envelhecimento.
[12] Doutorado
em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil(2006). Professor Associado II da Universidade Federal do Par
, Brasil
[13] Em
outros trabalhos, j se anotou os problemas envolvidos no traslado do termo Mrchen, algumas vezes traduzidos para o
portugus por conto de fadas,
outras, por conto maravilhoso. Optou-se por esta ltima variante, em razo da
etimologia do termo. (TRUSEN, 2012)
[14] Trad nossa de Im
Mrchen zeigt der Held, der sprechenden Tieren, Winden oder Gestirnen begegnet,
weder Verwunderung noch Angst. Dies nicht, weil ihm das sprechende Tier oder
Gestirn von Haus aus vertraut wre; es gehrt durchaus nicht zu der ihm
gewohnten Umwelt, nichts deutet an, dass er von der Existenz solcher
sprechenden Tiere auch nur gehrt hat. Aber er verwundert sich nicht, und
frchtet sich nicht: das Gefhl fr das Absonderliche fehlt ihm. Ihm
scheint alles zur selben Dimension zu gehren.
[15] Trad nossa de
El rechazo de lo sobrenatural se tradujo tambin en la condena de su uso
literario y esttico. Las perspectivas ilustradas de la segunda mitad del siglo
XVIII enarbolaron los conceptos de verosimilitud y mmesis como armas fundamentales
para la presencia de lo sobrenatural y lo maravilloso de los textos literarios.
[16] Conforme nota explicativa, o
projeto procurou manter tanto quanto possvel os ndices de oralidade,
utilizando-se, quando necessrio, dos colchetes para indicar expresses ou
palavras que suscitaram dvida por parte do transcritor.
[17]
Trad
nossa de : Haba respirado la
atmosfera creada por Henri Christophe, monarca de increble empeos, mucho ms
sorprendente que todos los reyes inventados por los surrealistas, muy afectos a
tiranas imaginarias, aunque no padecidas.
A cada paso hallaba lo real maravilloso
[grifo do autor]. Pero pensaba, adems. que esa presencia y vigencia de lo real
maravilloso no era privilegio nico de Haiti, sino patrimonio de la Amrica
entera (...)
[18] Trad.
nossa de Cest le contraire de lidentit, comme lautre est le contraire du mme.
On pourrait en faire un principe : toute chose tant identique soi
(principe didentit) est aussi diffrente de toutes les autres (principe
daltrit).
[19] No original, La carcajada
es un sntesis (provisional) entre el alma y el cuerpo, el yo y el otro.(PAZ, 1969, p. 15)
[20] Trad. nossa de Leerlo es
participar en el secreto. En qu consiste ese secreto? Este libro nos ensea
nuestra otra cara, la oculta e inferior. Lo que digo debe entenderse
literalmente: hablo de la realidad que est debajo de la cintura y que la ropa
cubre. Me refiero a nuestra cara animal, sexual: al culo y los rganos
genitales.
[21] Trad.
nossa de El
drama de toda cultura (....) es el intento de reducir lo irreductible, la
alteridad, hacia la tranquilidad ideolgica de lo Mismo, de la Identidad. La
alteridad parece ser lo insoportable. El orden que toda cultura de alguna
manera sacraliza, es el intento de reducir la alteridad hacia las formas de lo
Mismo.
[22]
Trad nossa de Cuando el limite persiste y un mbito otro se pone en escena
sin atender a las verosimilitudes de las certezas de lo real, y sin penetrar
estas certezas y cuestionarlas, cuando el lmite persiste deslindando el mbito otro del mbito de lo real,
estamos en presencia de lo maravilloso. Podra decir-se que en lo fantstico lo
otro es una irrupcin y, en lo maravilloso, un espectculo.
[23] Doutorando em Linguagem e
Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestre em Literatura e Interculturalidade pela
Universidade Estadual da Paraba (2011). Professor efetivo do Instituto Federal de
Educao, Cincia e Tecnologia da Paraba (IFPB). Contato: prweberalves@gmail.com
[24] Doutora em Letras
pela Universidade Federal da Paraba (2005) e Ps-doutorado na rea de Letras
pela Universidade Federal de Pernambuco (2007). Atualmente, professora
Associada da Universidade Federal de Campina Grande (UAEF/PPGCF/PPGLE/UFCG)..
Contato: naelzanobrega@gmail.com
[25] Utilizaremos esse
neologismo para se referir trama de Romeu e Julieta, considerando as mais
diversas obras medievais que remontam ao mesmo enredo.
[26] A preocupao em
contar a verso do autor, certamente justifica a pouca modificao no enredo
por estes autores.
[27] Foi preservada a
escrita original dos cordis.
[28] Doutor em Estudos
lingusticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da
Universidade Federal do Par.
[29] Doutora em Cincias Humanas pela
Universit d'Aix-Marseille I – Frana. Professora Titular da Universidade
Federal do Par. Bolsista Produtividade CNPq-PQ2.
[30] Doutoranda em Letras –
Lingustica do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do
Par.
[31] Graduanda da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Par
[32] As
narrativas de enterro aqui analisadas tm sido estudadas no contexto das aes
propostas por dois projetos de pesquisa desenvolvidos no mbito da Universidade
Federal do Par. Um deles denomina-se Vozes da Amaznia, coordenado pela
Profa. Dra. Regina Clia Fernandes Cruz. Nesse projeto, integram-se os planos
de trabalho desenvolvidos por Thaynara Thays Ferreira Paixo, em nvel de
Iniciao Cientfica (PIBIC) e a pesquisa de doutorado de Benedita do Socorro
Pinto Borges, que tm coletado, transcrito e analisado as narrativas de enterro
em localidades do Baixo-Tocantins. O outro projeto denomina-se Estrutura
retrica de crnicas brasileiras e sua aplicao no ensino, coordenado pelo
Prof. Dr. Emanuel da Silva Fontel. A produtiva interlocuo entre os
pesquisadores tem permitido um debate em torno de como as narrativas de enterro
incorporam as questes do cotidiano, tema central nas pesquisa que envolvem o
gnero crnica. Alguns trabalhos acadmicos, fundamentados, semelhana do
presente artigo, na interface sociolingustica e Estudos do Texto e do
Discurso, j foram desenvolvidos com base na aproximao entre esses dois
gneros discursivos investigados nos projetos supramencionados.
[33] No ignoramos que o vocbulo
quilombola nesse contexto gera ambiguidades, no entanto, por economia
lingustica, manteremos o termo, em vez de narrativa de enterro de tesouro
em comunidade quilombola, que mais literalmente expressaria a funo desse
gnero discursivo.
[34] Em uma das aes do projeto de pesquisa Estrutura
retrica de crnicas brasileiras e sua aplicao no ensino (em andamento),
busca-se estabelecer um dilogo entre as narrativas de enterro e as crnicas,
considerando um ponto de contingncia entre esses dois gneros, que
promoo do debate da vida cotidiana.
[35] Entidade que guarda semelhana com o saci-perer.
[36]
Doutorado
em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil (2011), Professor
Titular da Universidade Federal da Paraba , Brasil.
[37] Professor de Ensino
Fundamental II e Mdio – Artes. Licenciatura em Artes Visuais - Centro
Universitrio talo Brasileiro
[38] Doutorando no Programa
de Ps-graduao em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa,
Mestre em Gesto do Territrio pelo PPGEO-UEPG, Especialista em Histria, Arte
e Cultura pelo PPGH-UEPG, Graduado (Bacharel e Licenciatura) em Artes Plsticas
pela UFU, Integrante dos grupos de pesquisa CNPQ: Geografia e Histria: memria
social e patrimnio cultural UEPG, Grupo de
Prticas de Pesquisas Qualitativas em Geografia UEPG e do Ncleo de
Pesquisa em Pintura e Ensino UFU, Atua como professor de Artes pela Secretaria
de Estado da Educao do Paran, Artista Visual, suas pesquisas abarcam os
seguintes temas: Arte - Educao, Paisagem, Bens Culturais, Antropologia Visual
e Folias de Reis.
[39] Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007),
Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997),
Especialista em Geografia Humana pela Unicentro (1991), licenciado em Geografia
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1984) e Bacharel em Administrao
de Empresas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1984). Professor
Associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa: Programa de Ps-graduao
em Geografia e Departamento de Geocincias. reas de atuao: Geografia Social
e Cultural, Geografia Histrica (memria social, patrimnio cultural, histria
da cidade, planejamento urbano e turismo). Lder do Grupo de Pesquisa
(CNPq/UEPG): Geografia e Histria: Patrimnio Cultural e Memria Social.
Presidente da Associao de Preservao do Patrimnio Cultural e Natural (APPAC).
Membro do Conselho Municipal do Patrimnio Cultural de Ponta Grossa (COMPAC)
– UEPG.
[40] O municpio de Carmo do Rio Claro situa-se na mesorregio
Sul/Sudoeste do estado de Minas Gerais, a 363 quilmetros da capital Belo
Horizonte e possui populao estimada pelo IBGE (2018) entorno de 21.180
habitantes.
[41] Entrevista concedida ao autor em 23/01/2019 com os membros
das equipes pastorais do Conselho pastoral paroquial Sagrada Famlia e do
Conselho pastoral paroquial Nossa Senhora do Carmo.
[42] Artigo escrito inicialmente como relatrio de
iniciao cientfica entre 2017-2018, com bolsa CNPq.
[43] Aluno de doutorado em Letras pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL) desde 2021. E-mail para contato:
kaedmon.sellberg@hotmail.com.
[44] Notcia disponvel em:
https://guia.folha.uol.com.br/teatro/2017/04/mario-bortolotto-dirige-texto-do-dramaturgo-americano-sam-shepard.shtml,
publicada em 7 de Abril de 2017.
[45] Disponvel em:
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,poeta-narra-encontro-com-william-burroughs,1125360>
publicado
[46] [...] percebemos que o
importante hoje o ventre, isto , o emocional, as emoes, e no o racional.
por esta razo que a palavra histrico" – no numa acepo
pejorativa – mostra a importncia do tero, isto , do ventre. Em grego, hysterus o ventre. Disponvel em: <
https://www.fronteiras.com/entrevistas/michel-maffesoli-nao-e-mais-o-futuro-que-importa-e-sim-o-presente>
publicado em
[47] Doutorado em Memria pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil(2016). Professora Adjunta A - Dedicao Exclusiva da Universidade Estadual de Feira de Santana.
[48] Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras
com Lngua Portuguesa, ofertado pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Poticas Orais na UEFS, com
participao no Projeto de Pesquisa Cacimba de Histrias:vidas e saberes dos
contadores de histrias tradicionais de cidades do interior da Bahia. Compe a
atual gesto do Diretrio Acadmico de Letras Jos Jernimo de Moraes como
diretora de viagens e eventos.