REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitat uma publicao semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)

 

GT LITERATURA ORAL E POPULAR

 BINIO 2020/2022

 COORDENADORA

Profa. Dra. Dlcia Pombo

Secretaria Estadual de Educao do Par

delciauab@gmail.com

 

 

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com

 

 

 

SECRETRIO

Profa. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

SEDUC/UFPA

alexandre_ranieri@hotmail.com

 

 

 

 

 

IDADE MDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE

 

 

 

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

Bibliotecrio: Marcos Moraes – CRB: 9/1701

 

 

Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 32, v. 2, jul. /dez., 2021. – Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2021.

 

Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

ISSN: 1980-4504

 

1. Literatura oral 2. Narrativas orais 3. Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense (IFNOPAP) I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Fernandes, Frederico Augusto Garcia III. Universidade Estadual de Londrina. IV. Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica. V. Ttulo: Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL

 

CDD: 808.5

CDU: 82

 

 

ndice para o catlogo sistemtico:

1.

2.

Oralidade

Cultura popular

82




 

EXPEDIENTE

 

EDIO

 

Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (UFPA)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)

 

 

EDITORIA ASSISTENTE

 

Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (UFPA)

 

 

ORGANIZAO

 

Dra. Maria do Socorro Simes

 

 

COMISSO EDITORIAL

 

Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas

 

Dra. Ana Lcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Berenice Araceli Granados Vsquez

Universidad Nacional Autnoma de Mxico

 

Dra. Cludia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia

 

Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados

 

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina

 

Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)

 

Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)

 

Dr. Jos Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Par 

 

Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Par

 

Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul

 

Dra. Maria do Socorro Galvo Simes

Universidade Federal do Par

 

Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autnoma de Barcelona

 

Dr. Mrio Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso

 

Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paran

 

Dr. Slvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina

 

Dra. Vera Lcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa

 

 

PARECERISTAS DESTE NMERO

 

Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

Universidade Federal do Par

 

Dra. Berenice Araceli Granados Vsquez

Universidad Nacional Autnoma de Mxico

 

Dra. Claudia Freitas Pantoja

Faculdades Integradas do Vale do Iva

 

Dr. Dejair Dionsio

Universidade Estadual do Centro-Oeste

 

Dra. Dlcia Pombo

Secretaria Estadual de Educao

 

Dra. Francisca Pereira dos Santos

Universidade Federal do Cariri

 

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina

 

Dra. Laura Regina dos Santos Dela Valle

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Lnia Mrcia Mongelli

Universidade de So Paulo 

 

Dra. Maria do Socorro Galvo Simes

Universidade Federal do Par

 

Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autnoma de Barcelona

 

Dra. Mauren Pavo da Hora Vidal

Instituto Federal Baiano

 

 

 

 

REVISO

 

Dos autores

 

 



 

 

SUMRIO

 

EDITORIAL

 

IFNOPAP: uma nascente de histrias

Alexandre Ranieri Ferreira, Maria do Socorro Simes ...................................................................5

 

CONVIDADO

 

IFNOPAP em memrias: comeo e meio

Alexandre Ranieri Ferreira...............................................................................................................8

 

DOSSI

 

Corpo-velho: reflexes sobre o envelhecimento feminino em narrativas orais da Matintaperera

Andressa Arajo, Rafaella Costa, Maria do Socorro Simes, Rubenil da Silva Oliveira ..............17

 

O maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade

Sylvia Maria Trusen........................................................................................................................29

 

SEO LIVRE

 

Intertextos de Romeu e Julieta nos folhetos nordestinos

Weber Firmino Alves, Naelza de Arajo Wanderley ....................................................................39

 

O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas de enterro produzidas em comunidades quilombolas

Emanuel Fontel, Regina Cruz, Benedita Borges, Thaynara Paixo................................................52

 

Oralidade e quadrinhos: possibilidades pedaggicas

Alberto Ricardo Pessoa, Cristiano Clemente de Souza..................................................................64

 

Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG

Fbio Martins, Leonel Brizolla Monastirsky..................................................................................71

 

Poesia in concert: a palavra de volta rua

Kaedmon Sellberg Soares...............................................................................................................85

 

Vozes poticas e (re)existncias quilombolas do grupo Razes do Samba de Tocos de Antnio Cardos-BA

Eliziane Santos e Santos, Renailda Ferreira Cazumb................................................................102

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APRESENTAO

IFNOPAP: uma nascente de histrias

 

 

            Um dossi temtico com o Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense de uma responsabilidade muito grande. O IFNOPAP um projeto importante para os estudos das Poticas Orais. Com quase 30 anos de existncia, uma infinidade de Teses, Dissertaes, TCCs e artigos cientficos ele talvez seja mais que um projeto, um adjetivo, gentlico, como a professora Socorro Simes; capit desde batel que flutua entre rios, florestas, espaos e ciberespaos chama-nos. Somos todos Ifnopapianos de muitos costados.

E, em mais essa viagem do IFNOPAP, comeamos com algumas memrias de Alexandre Ranieri que entrou quase que por acaso no projeto e nunca mais saiu. O texto IFNOPAP em memrias: comeo e meio recheado de emoo e carinho, alm de demonstrar a maneira como o projeto perpassa o percurso acadmico do convidado.

O primeiro artigo deste dossi assinado por Andressa Ramos, Rafaella Costa e Rubenil Oliveira em parceia com a professora Socorro Simes Corpo-velho: reflexes sobre o envelhecimento feminino em narrativas orais da Matintaperera traz a lume uma questo relevante aos dias de hoje: o padro de beleza associado ao corpo feminino, sempre julgado e pressionado, ao passo que, em tempos de pandemia, os corpos velhos sofreram mais que outros o descaso de polticas pblicas e a indiferena dos jovens. Portanto, publicar este artigo que desbanca os esteretipos em torno do corpo feminino envelhecido a partir de narrativas orais amaznicas de Matintaperera (re)humanizar esses corpos subalternizados que retomam sua condio de sujeito ora discriminados nessa modernidade cada vez mais lquida, egocntrica e narcisita.

O prximo artigo do dossi assinado pela professora Sylvia Maria Trusen da Universidade Federal do Par, O maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade, faz uso das narrativas do projeto publicadas no Abaetuba conta... destacando a categoria da alteridade, muitas vezes esquecida e engolida pela arrogncia do ego, para a leitura das narrativas do Imaginrio Amaznico.

Mas no s o IFNOPAP que feito de histrias. Recebemos, nesta edio, tambm artigos de outras paragens, outros nortes, prenes de diversidade. E essa viagem comea pelos folhetos de cordel nordestinos e suas verses de uma obra prima da Literatura mundial: Intertextos de Romeu e Julieta nos folhetos nordestinos de Weber Firmino Alves e Naelza de Arajo Wanderley trata da relao entre esses textos do imaginrio popular e a histria imortalizada por William Shakespeare.

Voltando ao norte o artigo de Emanuel Fontel, Regina Cruz, Benedita Borges, Thaynara Paixo intitulado O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas de enterro produzidas em comunidades quilombolas mergulha nas comunidades quilombolas do Estado do Par para desvelar o estatuto mtico das narrativas de enterro.

Saindo mais uma vez do norte e voltando ao nordeste, mais especificamente Paraba, os autores Alberto Ricardo Pessoa e Cirstiano Clemente de Souza analisam uma relao que, para algumas pessoas no parece clara, mas que vai se tornando a medida em que lemos o artigo Oralidade e quadrinhos: possibilidades pedaggicas. Pensando nisso os autores exploram essas possibilidades que os quadrinhos proporcionam ao estudo da oralidade.

Descendo do nordeste ao sudeste, da Paraba a Minas Gerais, Fbio Martins, Leonel Brizolla Monastirsky nos transportam paisagem religiosa criada pelo catolicismo popular  da campanha de reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro no artigo Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG. E nessa viagem que empreendemos lendo o texto nos faz ver as paisagens sonoras e gustativas que ajudam a compor a religiosa.

Descendo um pouco mais, ao Sul, no norte do Paran, em Londrina, Kaedmon Selberg Soares em Poesia in concert: a palavra de volta rua trata do agrupamento Poesia in concert e a sua reincorporao no Festival Literrio de Londrina (Londrix), ressaltando a importncia social do evento para a cidade e relembrando outros tempos do Bar Valentino.

Saindo do norte do Paran, nossa viagem termina em Antnio Cardoso na Bahia onde Renailda Ferreira Cazumb e Eliziane Santos e Santos tratam das histrias e vida dos mestres e mestras do Grupo Razes do Samba e seus sambadores e sambadeiras no artigo Vozes poticas e (re)existncias quilombolas do Grupo Razes de Toco de Antnio Cardoso – BA.

Esperamos que a vigem por todos esses lugares e pessoas e seres e histrias seja profcua e encante aos leitores da mesma forma que nos encantou como revista.

 

 

Maria do Socorro Simes

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONVIDADO

 

 

 

 

 

 

 

 

IFNOPAP em memrias: comeo e meio

 

 

Memory IFNOPAP: beginning and middle

 

 

Alexandre Ranieri Ferreira[1]

https://orcid.org/0000-0002-3689-9682

 

 

 

Resumo: Tratar da minha relao com o IFNOPAP (O imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense) simplesmente mesclar boa parte da minha vida pessoal e acadmica. Falar do meu percurso acadmico iniciar com o projeto IFNOPAP, ter em mente que boa parte dessa vivncia se deve a ele e que no existe um fim em que se possa dizer que a minha relao com o projeto h de acabar. As memrias que apresento neste artigo demonstram a importncia da minha relao com o projeto e a professora Socorro Simes que desembocou em desdobramentos vrios sem os quais tantas outras conquistas acadmicas no seriam possveis.

Palavras-Chave: IFNOPAP; Acadmico; Memrias.

 

Abstract: Dealing with my relationship with IFNOPAP (The Imaginary in Popular Oral Narrative Forms of the Amazonian Paraense) is simply mixing a most of my personal and academic life. To talk about my academic path is to start with the IFNOPAP project, keeping in mind that a good part of this experience is due to it and that there is no end in which it can be said that my relationship with the project will end. The memories I present in this article demonstrate the importance of my relationship with the project and Professor Socorro Simes ended up in several developments without which so many other academic achievements would not be possible.

Keywords: IFNOPAP; Academic; Memories.

 

 

Um comeo

 

Nos idos dos anos 2004 retornava a Universidade Federal do Par de pois de passar trs longos anos afastado e cursando Processamento de Dados no Centro Universitrio do Par (CESUPA). Na realidade, as poucas aulas, a pouca intimidade com os colegas de turma e as poucas possibilidades de emprego no ano de 1999 me fizeram procurar outra formao e melhores oportunidades. Era uma formao particularmente difcil para algum pouco apegado a nmeros. Mas os anos que passei l me ensinaram mais do que eu achava que aprenderia e me presenteariam com amigos que at hoje cultivo.

Terminado o curso, no satisfeito com a formao em computao, decidi fazer uma ps-graduao em Marketing na Universidade da Amaznia (UNAMA). Como as aulas eram a noite e apenas uma semana por ms, decidi retornar ao curso de letras. Para explicar as minhas ausncias em detrimento do curso, conversei com a professora Germana Sales, professora de Literatura Portuguesa. Quando ela soube da minha formao, imediatamente me convidou a conhecer a professora Socorro Simes e o projeto Multiletras.

Em pouco tempo constru o site do projeto, organizei obras e ajudei a coordenador o primeiro encontro do projeto. Desde ento muitas outras propostas se seguiram, criando logomarcas para projetos, sites e prestando consultoria em informtica a vrias pessoas que me procuravam. Outros projetos se seguiram mas acredito que a minha grande virada acadmica se deu no ano de 2005 quando fui convidado a fazer parte da equipe do Encontro IFNOPAP (O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense) em Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arar.

            Foi a partir daquele momento que percebi o que queria ser: pesquisador. O trabalho era rduo, cansativo, s vezes desorganizado, mas no consigo imaginar que hoje estaria onde estou se no tivesse participado daquele evento.

            Olhava embasbacado a pessoas como Josebel Akel Fares, Frederico Fernandes, Mrio Cezar Leite, Arion Rodrigues, Ana Suelly dentre outros. Eu os olhava, admirava e queria um dia poder dividir uma mesa com eles.

            Naquele ano, a alegria foi tanta que alm de escrever uma pea bem humorada sobre as agruras que vivemos, escrevi um texto em homenagem ao evento e professora Socorro Simes. Foi a primeira vez que me imaginei pesquisador, estudante de Mestrado e posteriormente de Doutorado, professor universitrio e quem sabe um dia apresentando ou dividindo mesas com aqueles que tanto admirava.

            No ano seguinte, em 2006: Ponta de Pedras. Foi quando tive oportunidade de reencontrar o professor Willi Bolle, que conhecera durante o CIELLA, rever Fred, Mrio, Josebel e conhecer Edil Costa.

            Em 2007 retornamos s origens e partimos em direo a Bragana. Agora como estudante da ps em Lngua Portuguesa: uma abordagem textual seguimos pelos mesmo caminhos e como sempre ajudamos aqueles que mais precisavam. Levamos o conhecimento de todos esses grandes nomes s cidades de Bragana e Capanema.

            Em 2008, j no mestrado, fomos a mosqueiro. Levamos no apenas conhecimento, mas ajuda de parceiros como o PROPAZ. A emoo veio com a gratido das pessoas atendidas.

            No ano de 2009 vistamos as ilhas ao redor de Belm e mais uma vez pude comprovar que de pouco serve o conhecimento acadmico se ele no puder ser compartilhado com a sociedade.

 

 

Um meio[2]

 

            Alm do projeto MultiLetras, tive oportunidade de trabalhar no projeto LAPEL e colaborei em outros como o Oua os Mitos e Rotas do Mito. Durante as reunies do projeto Oua os Mitos tive contato com o CD-ROM Caleidoscpio amaznico: uma aventura em imagens e cores feito com recursos da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) e da UNAMAZ (Associação de Universidades Amazônicas). Minha primeira impresso foi de profundo fascnio, de tal forma que, quando comecei meus estudos de doutorado sob a orientao do professor Dr. Frederico Fernandes na Universidade Estadual de Londrina (UEL), no pensei em outro objeto de estudo que no fosse aquele CD-ROM.

Obtive uma cpia do material e durante alguns dias li, reli, escutei e re-escutei cada uma daquelas historietas completamente fascinado, porque me via em muitas delas. Reencontrava em cada uma delas o passado, a infncia, parentes, amigos, Camet, Belm e vov, em meio s personagens que j estavam no meu subconsciente e com quem me deparei com prazer frente a uma proposta que eu nunca havia visto.

Naquele mesmo ano, recebi outro convite da mesma professora para fazer parte da equipe de organizao do IX Encontro IFNOPAP. Fomos ao Maraj, e, entre as cidades de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari, entrei em contato com o mundo acadmico das poticas orais. Conheci professores que reencontrei em todos os encontros posteriores, fiz amizades para toda a vida, mas, principalmente, me reaproximei do (ou me reencontrei com o) cotidiano de algumas comunidades to prximas geograficamente e to distantes de mim at ento, como na noite em que sentei com alguns professores em um bar em frente ao trapiche de Soure, onde estava ancorado o barco da nossa comitiva. O professor Frederico Augusto Garcia Fernandes, que viria a ser meu orientador no doutorado, conversava com um senhor de uma maneira bem amigvel e prxima, quando me viu e disse: venha c, sente aqui. Voc quer conhecer a narrativa oral da Amaznia, ento sente aqui.... E foi mais um momento de revelao: passamos boa parte da noite escutando histrias de fogo-ftuo, matintas, carroas fantasmas, mulheres cheirosas e tantas outras que me fizeram quebrar um ritual quase sagrado que me levava todas as noites Praia do Pesqueiro, para conversar, beber e paquerar.

Foi naquele momento que o menino da Informtica que namorava com livros impressos durante os tempos de greve na universidade virou um homem. Naquele instante, vi outra beleza, nem mais nem menos bonita que a do livro impresso, nem mais nem menos bonita que a do CD-ROM, mas que emprestava boa parte dela a um e a outro. Vi a beleza, ainda com todos os dedos que at hoje tenho sobre o assunto, brotar ante os meus olhos e, em especial, ante aos meus ouvidos, e eu me perguntava como aquilo foi parar naquele lugar, como aquele cancioneiro foi parar naquele disco compacto, daquela forma, naquele formato e com qual objetivo.

No apenas o CD mas as histrias que deram origem s verses animadas em flash num outro formato, retextualizadas, reoralizadas e que agora atendiam a um objetivo e pblico diverso. Por isso mergulhei nas narrativas originais. Escutei as gravaes, procurei saber um pouco melhor sobres os pesquisadores que haviam coletado aquelas narrativas, mas tambm os narradores orais. Procurei imergir naquele universo to distante de mim pesquisando nos arquivos do projeto IFNOPAP.

Aprofundei-me no estudo dos mtodos de coleta e transcrio, analisando com cuidado os objetivos, de tal forma que pude entender as intenes de um projeto pioneiro no Estado do Par e que enfrentou grandes resistncias at tornar-se umas das maiores referncias em oralidade no Norte do pas.

Neste momento, analisei os mtodos utilizados pelo IFNOPAP com base, em especial, mas no exclusivamente, no documento fornecido pela coordenao do Projeto: Achegas para tcnica e tica da coleta (1994). O documento dividido em trs partes: a propsito do entrevistador, a propsito do informante e a propsito da gravao. O ltimo item divide-se em antes, durante e depois da entrevista.

O que primeiro chamou ateno nesta espcie de pequeno manual elaborado pelo IFNOPAP foi o nome dado a ele: achegas, que, segundo Vilhena, era um termo muito usado pelos folcloristas para publicaes curtas – de cerca de trs laudas datilografadas – e indicava que o autor pretendia apresentar hipteses gerais sobre um problema, aproximar-se ligeiramente de um assunto, ou somente acrescentar algumas informaes a um debate (VILHENA, 1997, p.177). O termo, outrora utilizado para aqueles pequenos artigos, foi bem empregado para esse documento – tambm em trs laudas – que trata de maneira geral de algumas (poucas) regras para a coleta de narrativas.

Segundo a professora Maria do Socorro Simes, em entrevista concedida para mim no dia 06 de janeiro de 2014, as achegas foram feitas em parte com base na intuio dos professores que participavam do projeto, e em parte com mtodos cientficos orientados pelo professor Cristophe Golder, que, na poca, acabara de defender a sua tese de doutorado em semitica pela Universit de Franche-Comt, cujo tema versava sobre o bumba-meu-boi do Maranho.

Pensando nisso, no livro Belm conta... (1995), o depoimento da pesquisadora Tnia Pereira me chamou ateno:

Mais um pouco de conversa e vem o aceite, a abertura da porta, quase um ritual. Chegamos sala, sua vida, s suas histrias. Mais um pouco e estaremos em sua cozinha, com o copo dՇgua, o cafezinho, at o almoo. E escutamos uma infinidade de histrias, entremeadas pela apresentao de um filho, de um vizinho, quase-parente. Nem todos so assim. Existem aqueles que insistem em manter alheia, aos nossos olhos, a sua intimidade. No tem importncia: seu santurio ser sempre respeitado. Basta-nos a maneira, h uma ambiguidade: no somos um deles. Somos intrusos em seu ninho. Mas, de repente, nos sentimos como que fazendo parte do seu mundo (SIMES; GOLDER, 1995, p.180).

            Dessa imerso pude entender o percurso movente que fez com que aquelas narrativas sassem do cancioneiro popular, fossem gravadas em arquivos sonoros que dessem outra dimenso ao oral, depois fossem transcritas de acordo com critrios preestabelecidos e posteriormente reescritas apagando grande parte de traos latentes de oralidade. Depois disso novas vozes trabalhadas e com forte apagamento de traos regionais as recontariam em portugus, ingls, francs e espanhol.

            As imagens, os sons de fundo e as animaes representavam um novo ponto de vista de tcnicos e colaboradores e as suas percepes acerca das lendas e mitos recontadas, mas que ao mesmo tempo guardavam com os originais estreita relao arquetpica de tal forma que no se poderia negar tal relao. Ao mesmo tempo que tambm no se poderia dizer que  no seria um produto novo.

Outro aspecto importante desse estudo foi o de discutir dois temas caros aos estudos das poticas orais: o uso das tecnologias na coleta de campo e a adaptao de narrativas a outros meios. Desde o uso dos primeiros gravadores – talvez, desconfio, desde o uso da caneta e do papel na presena do informante – que se discute o uso de equipamentos que proporcionem o registro da performance – realizao potica plena, segundo Zumthor (2005, p.87) – oral e/ou gestual. As discusses versam desde a maneira como us-los at necessidade de us-los. Sabendo que essa discusso est longe de ser esgotada, trago-a luz aqui, bem como discuto o processo de adaptao das narrativas orais a outras mdias distintas e suas especificidades.

O meu fazer como pesquisador, portanto, aproximou-se muito mais ao do antroplogo, na medida em que

a escrita etnogrfica configura-se na prpria trade autor/tradutor/texto na conformao da prtica investigativa ao oportunizar a sistematizao de seus pensamentos interiores e a construo de aes estveis em relao cultura e sociedade pesquisada (ECKERT & ROCHA, 2005, p.04).

Se, para o mercado e para a mdia que o serve, o popular no interessa como tradio que perdura, para o acadmico, a mdia uma maneira que aquele tem de se perpetuar, um novo caminho que percorre para se manter vivo, transmutando-se do oral para o digital.

Aquele livro partiu do acadmico e das relaes deste com o popular para adentrar o campo das novas tecnologias. Por isso, tratei dos mtodos de coleta, passei pelos de gravao – dando um breve mergulho na questo das mdias – e de transcrio, para poder chegar, enfim, ao processo de produo do CD-ROM. Para seguir esse percurso, no poderia ter melhor objeto de pesquisa, visto que tive minha disposio todo o acervo IFNOPAP e sua documentao disponvel, sem a qual minha tese de doutorado e meu livro no existiriam.

O prprio desenvolvimento da arte popular se d a partir de transformaes (CANCLINI, 2015, p.366). Portanto, uma pretensa morte dela seria um grande contrassenso. O ambiente acadmico e o novo suporte so, portanto, espaos de transformao do popular.

No existem grupos de indivduos propriamente folclricos; o que h so situaes mais ou menos propcias para que o homem participe de um comportamento folclrico (BLANCH, 1988, p.29 apud CANCLINI, 2015, p.220). Somos capazes de nos integrar a diversas prticas sociais, e as aqui citadas e muitas outras esto em nosso cotidiano, e podemos perceb-las como uma experincia esttica ou fazer de conta que elas no existem como tal.

Todavia, se o pesquisador em campo precisa de espontaneidade e deseja uma proximidade maior com o Etnotexto que pretende estudar, a melhor forma de fazer a entrevista – que nesse caso no seria mais uma entrevista – atravs da convivncia o mais prximo possvel da comunidade, sem auxlio do gravador, deixando que a prpria memria do pesquisador se confunda com a da comunidade, selecionando os fatos que o seu inconsciente assimile e deixe aflorar no papel.

Isso comprova que a oralidade amaznica ainda vive em som, imagem e movimento, expandindo seus horizontes e influenciando outros meios que fazem uso dela para criar algo novo. E ainda que esses novos meios concorram por espao com os antigos na vida das pessoas, um acaba fazendo uso do outro num processo de retroalimentao constante num ciclo e num reciclo ininterruptos.

Nesse sentido, as narrativas que haviam comeado um processo de desenraizamento passaram por processos de reenraizamento por onde passaram, seja nos meios acadmicos ou escolares por onde circularam os udios e transcries, seja nos lares ou demais lugares por onde passaram as cpias dos CD-ROM.

O desenvolvimento moderno no apaga as culturas populares tradicionais, porque essa ampliao modernizadora no conseguiu extinguir o folclore, e os estudos mostram que nas ltimas dcadas as culturas tradicionais se desenvolveram, transformando-se (CANCLINI 2015, p. 215). Por outro lado, as culturas camponesas e tradicionais no representam a maior parte da cultura popular, e os meios eletrnicos so, em parte, responsveis por isso, bem como o turismo, as migraes, a religiosidade, dentre outros (CANCLINI, 2015, p.218).

O popular no se concentra nos objetos, porque um mecanismo de escolha, e mesmo de inveno, projetado em direo ao passado para legitimar o presente (BLACHE, 1988, p.27 apud CANCLINI, 2015, p.219). E, falando da influncia interacionista e etnometodolgica: todos os objetos so dramatizaes dinmicas da experincia coletiva (CANCLINI, 2015, p.219).

O Caleidoscpio, dessa forma, a encenao no de uma, mas de vrias experincias coletivas agrupadas, concentrando o popular num patrimnio de bem estvel, voltado para o passado para legitimar o presente.

As pessoas de hoje no precisam menos dos mitos do que as de outrora (ZUMTHOR, 2010). No entanto, a aldeia (comunidade), que antes era um espao restrito e limitado pela geografia, agora outra, uma Aldeia Global, lugar (ou no-lugar) do tudoaomesmotempoagora, na qual o tempo cessou e o espao desapareceu. O CD-ROM essa materialidade que, mesmo afastada do Etnotexto, ecoa os tambores de tribos distantes, ainda que os escutemos na solido dos nossos computadores (MCLUHAN, 1969).

Nesse sentido, a produo de um objeto miditico, como o Caleidoscpio Amaznico, pertinente na medida em que no se exime do popular em prol do acadmico ou tecnolgico. Essas instncias no so antagnicas e, portanto, no se excluem mutuamente, ao contrrio, funcionam como complementares na contemporaneidade. Com a legitimao cada vez mais presente do ambiente digital, quem procura separ-las e no admite a possibilidade da relao ecumnica entre elas no est valorizando a cultura em si, e cai na armadilha do logocentrismo.

Claro que, se tivssemos um ecumenismo maior, desde as primeiras fases do projeto, talvez tivssemos um objeto cultural mais prximo do Etnotexto que busca representar. Mas esse produto novo no seria uma espcie de Etnotexto em si?

Da mesma forma que no podemos dizer que as comunidades so apenas aquelas que vemos nos bairros pobres, interiores pequenos, grupos excludos etc., no podemos dizer que no h Etnotexto alm desses ambientes. O que h so pontos de vista e formas distintas de valorizao das narrativas.

Foi tambm graas a esse trabalho de doutorado que pude conhecer grandes colegas na UEL e compartilhar conhecimentos nos vrios Seminrios Brasileiros de Poticas Orais como Ana Liberato e Mauren Pavo.

O estgio doutoral em Coimbra tambm foi outra experincia enriquecedora. Em 2015 pude ter contanto com os pesquisadores do Grupo de Materialidades da Literatura e coorientao do professor Manuel Portela. O perodo profcuo de troca de saberes enriqueceu a minha tese de doutorado atravs de novas teorias e novas perspectivas com colegas de vrias partes do mundo.

Depois de retornar, em 2016 defendi minha tese de doutorado que em 2018 seria lanada em livro sob o ttulo Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som, imagem e movimento com o selo da editora Paka-Tatu. Nesse mesmo ano iniciei a minha gesto como Coordenador do Grupo de Trabalho de Literatura Oral e popular.

Em 2019 fui convidado, por sugesto da professora Socorro a compor a equipe tcnica da Feira Pan-amaznica do Livro e suas multivozes. Na ocasio dividi uma mesa redonda com Mauren Pavo e pudemos falar das relaes entre oralidade e mediao.

Nesse mesmo ano durante a gesto do GT, com ajuda (ou talvez muito mais que isso) de Dlcia Pombo (vice-coordenadora) e Dia Favacho (Secretria) realizamos o Quinto seminrio Brasileiro de Poticas Orais em Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari entre os dias 13 e 16 de novembro, com apoio do Campos da UFPA de Soure, do Campus da UEPA de Salvaterra e da Prefeitura Municipal de Cacheira do Arari. Em parceira com o IFNOPAP, no pude deixar de relembrar o meu primeiro evento ifinopapiano em que estive nessas trs cidades. Foi um desafio para todos ns que alm de todas as dificuldades dos anos estranhos que at hoje vivemos, no tnhamos um barco de apoio to tradicional nos encontros coordenados pela professora Socorro.

Durante o evento fizemos uma singela homenagem a Socorro Simes, com uma mesa redonda da qual participei na companhia de Frederico Fernandes, Eder Jaster, Josebel Akel e Ana Zuelly. Tive a misso de representar alguns aspectos da vida pessoal dela. Depois de nossas falas a performance de Eder Jaster, a entrega de flores e a leitura de uma homenagem feita pro professor Silvio Augusto de Oliveira Holanda (in memorian) deixou a todos bastante emocionados.

Em 2021 dei uma entrevista ao Jornal Dirio do Par a propsito do Halloween, e dentre outras coisas usei como referncias as histrias de assombrao do presentes no corpus do INFOPAP. Neste mesmo ano, em dezembro, agora como como secretario do GT organizamos um grande evento on-line, devido s restries da pandemia, de poticas orais com a presena de grandes nomes, como a professor Ana Pizarro do Chile.

 

 

Sem Fim

 

Pensar em futuro acadmico sem pensar que o IFNOPAP esteja direta ou indiretamente presente no faz parte dos meus planos. Toda vez que imagino algum projeto de pesquisa envolvendo alunos de iniciao cientfica ou at mesmo um possvel ps-doutorado, no consigo pensar que o acervo ou a experincia adquiridas com o projeto no possam estar presentes.

At hoje, como colaborador do Portal Brasileiro de Poticas Orais ainda me dedico a alimentar o site com arquivos do projeto, tentando fazer com aqueles arquivos to valiosos aos estudos culturais no se percam de alguma forma.

O IFNOPAP parece fazer parte de mim de tal forma que qualquer esboo de projeto comea ou termina com ele presente em minha mente. As vezes penso, em meio a devaneios, continuar o projeto de alguma forma e no deixar que o legado da professora Socorro Simes se perca na dobras do tempo. Este um projeto que mesmo dando origem a dezenas de trabalhos de concluso de curso, dissertaes e teses ainda tem muito a oferecer comunidade acadmica.

 

 

Referncias

 

Acervo IFNOPAP. Belm: UFPA, 1994.

 

CANCLINI, Nestor Garcia. La modernidad despus de la posmodernidad. In: BELLUZO, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: vanguardas artsticas na Amrica Latina. So Paulo: UNESP, 1990. p.201-37.

 

CAUNE, Jean. Cultura e comunicao: convergncias tericas e lugares de mediao. So Paulo: UNESP, 2014.

 

ECKERT, Cornelia e ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. O tempo e a cidade. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2006.

 

MCLUHAN, Marshall. A galxia de Gutenberg. So Paulo: Nacional, 1972.

 

MORAES, Eneida de. Aruanda e banho de cheiro. Belm: Cejup, 1990.

 

PELEN, Jean-Nol. Memria da literatura oral: a dinmica discursiva da literatura oral: reflexes sobre a noo de etnotexto. Projeto Histria. So Paulo, v.22, p.49-77, 2001.

 

RANIERI, Alexandre. Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som, imagem e movimento. Tese de doutorado defendida em 21 de maio de 2015 pela Universidade Estadual de Londrina. Sob orientao do Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes.

 

______, Alexandre. Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som, imagem e movimento. Paka-Tatu: Belm, 2018.

 

SIMES. Maria do Socorro. Entrevista. [06/01/2014]. Entrevistador: Alexandre Ranieri. Belm: [s. n.], 2014. Gravao digital 1h30min estreo.

 

______,  Maria do Socorro; GOLDER, Christophe. Belm conta... Belm: CEJUP, 1995.

 

VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundao Getulio Vargas, 1997.

 

ZUMTHOR, Paul. Introduo poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

 

 

[Recebido: 10 dez 21]


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOSSI

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Corpo-velho: reflexes sobre o envelhecimento feminino em narrativas orais da Matintaperera

 

 

Old body: reflections on female aging in the oral narratives of Matintaperera

 

Andressa de Jesus Arajo Ramos[3]

https://orcid.org/0000-0002-1113-443X

 

Maria do Perptuo Socorro Galvo Simes[4]

https://orcid.org/0000-0001-7678 -2895

 

Rafaella Contente Pereira da Costa[5]

https://orcid.org/0000-0001-6692-7763

 

Rubenil da Silva Oliveira[6]

https://orcid.org/0000-0001-9846-4695

 

 

Resumo: De acordo com Lesnoff-Caravaglia (1984), o cenrio atual ensina e conserva a depreciao da mulher idosa, iniciando com a representao da mulher velha nas histrias tradicionais como bruxas, feias e malvadas. A anci , conforme Salgado (2002), universalmente ofendida e enxergada como uma carga. parcela de uma maioria invisvel cujas dificuldades emocionais, econmicas e fsicas continuam, em sua maioria, ignoradas. Contudo, os resultados de nossa pesquisa no acervo do O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense (IFNOPAP) apontam para uma nova traduo do envelhecimento feminino, atravs das narrativas orais da Matintaperera, que no vem carregada de imagens negativas, preconceituosas e nem estereotipadas, pois trazem histrias de mulheres velhas que continuam se divertindo, cantando, danando, desejando e sendo desejadas, no esto isoladas da sociedade e nem habitam em cavernas, mas que buscam e valorizam o contato com o outro. Em vista disso, este trabalho reflete sobre o envelhecimento feminino em narrativas da Matintaperera. Trata-se de uma pesquisa bibliogrfica, com abordagem qualitativa, cuja metodologia consistiu em: a) reviso da literatura; b) o estudo da velhice; c) o exame das narrativas orais da Matintaperera; d) seleo de dois contos da Matinta; e) anlise literria das narrativas escolhidas.

Palavras-Chaves: Corpo-velho; Velhice; Feminino; Narrativas Orais; Matintaperera.

 

 

Abstract: According to Lesnoff-Caravaglia (1984), the current scenario educates and conserves the depreciation of the elderly woman, beginning with her representation in traditional stories as witches, ugly, and wicked. According to Salgado (2002), the elderly woman is universally reviled and considered a burden. She is part of an invisible majority whose emotional, financial, and physical difficulties are mostly ignored. However, the findings of our research in the collection "The Imaginary in Popular Oral Narrative Forms of the Paraense Amazon (IFNOPAP)" point to a new translation of female aging via Matintaperera's oral narratives, one that is not laden with negative, prejudiced views and stereotypes because they bring stories of old women who continue to have fun, singing, dancing, wishing and being desired. Women who are not isolated from society and do not live in caves but seek and value contact with others As a result, this research focuses on female aging in Matintaperera narratives. It is a bibliographic study with a qualitative approach, which employs the following methodology: a) literature review; b) study of old age; c) examination of Matintaperera's oral narratives; d) selection of two Matinta tales; and e) literary analysis of the chosen narratives.

Keywords: Old body; Old age; Female; Oral narratives; Matintaperera.

 

 

Introduo

 

            A professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mirian Goldenberg em sua obra Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade (2008) salienta que na cultura brasileira atual, certo padro de corpo um bem, talvez o mais cobiado pelos sujeitos das classes mdias urbanas e tambm das classes mais humildes, que o percebem como um importante meio de ascenso social. Nesse sentido, o corpo um capital, que alm de fsico simblico, econmico e social. Desde que seja um fsico [] sexy, jovem, magro e em boa forma (GOLDENBERG, 2008, p. 15).

            A apologia forma perfeita foi, nas palavras de Goldenberg (2008), uma das mais terrveis fontes de insatisfao feminina no sculo XX. A compulso pelo emagrecimento virou, efetivamente, uma epidemia. E, a procura pelo corpo pleno foi entendida como uma regresso no processo de emancipao da mulher.

            Dados da poca comprovam, conforme Goldenberg (2008), que a brasileira se tornou campe na tentativa de ter um corpo impecvel. A revista Time destacou esse fato, trazendo na capa a imagem da apresentadora, cantora e danarina brasileira Carla Perez, acompanhada da seguinte legenda: A mania pela cirurgia plstica: as mulheres latino-americanas esto esculpindo seus corpos como nunca antes - nos moldes da Califrnia. Seria isso um imperialismo cultural? (GOLDENBERG, 2008, p. 52, traduo nossa)[7]. Segundo o cirurgio plstico Pedro Nery Bersan que publicou uma notcia no Jornal do Estado de Minas, em 2019, o Brasil ocupa o 2 lugar no ranking mundial de Cirurgia Plstica, ficando atrs somente dos Estados Unidos. O recente estudo da Sociedade Internacional de Cirurgia Plstica e Esttica (Isaps) demonstrou que os brasileiros efetuaram cerca de 2,5 milhes de procedimentos em 2017, correspondendo a 10,4% das cirurgias estticas mundiais.

            Desse modo, em uma cultura em que o corpo um capital no mercado do casamento, no mercado sexual e no mercado profissional, o fsico gordo, envelhecido ou fora de forma , como ressalta Goldenberg (2008), rejeitado por muitos e, principalmente, pelas mulheres brasileiras que apresentam um verdadeiro pavor de envelhecer. Isso acontece, na verdade, porque ela foi destinada a ser, na viso do homem, um objeto sexual e a partir do momento, no qual se torna envelhecida e feia perde o seu espao, o qual foi determinado pela sociedade, tornando-se assim [...] um monstrum que suscita repulsa e at mesmo medo (BEAUVOIR, 2018, p. 129, grifo da autora). Para o poeta lrico e satrico romano Horcio:

A aparecia da mulher idosa hedionda: Teu dente preto. Uma antiga velhice cava rugas em tua fonte...teus seios so flcidos como as mamas de uma jumenta. Ela cheira mal: Que suor, que horrvel perfume se desprende, por todo lado, dos seus membros flcidos (BEAUVOIR, 2018, p. 128-129).

            Contudo, os resultados de nossas investigaes no acervo do IFNOPAP revelaram uma nova traduo[8] da velhice feminina, que no vem carregada de preconceitos e nem de esteretipos, mas de novidade, contemporaneidade e liberdade, uma vez que as mulheres velhas[9] descritas nos contos analisados no so assustadoras, nem usam roupas rasgadas e nem realizam o mal, como nas narrativas tradicionais. Mas so mulheres comuns, capazes de se apaixonar, de encantar as pessoas, sentir desejos e no vivem isoladas em casa ou em cavernas, alm de apreciarem o contato com o Outro.

            Em vista disso, o objetivo geral deste trabalho foi refletir sobre o envelhecimento feminino em narrativas da Matintaperera, recolhidas pelo IFNOPAP. Para tanto nos amparamos nos estudos de Beauvoir (2018), Mucida (2018), Goldenberg (2008), (2017), Zimerman (2007), Vieira (2007), Viana (2013), Salgado (2002), entre outros. A metodologia consistiu, primeiramente, em uma reviso da literatura, depois um estudo sobre a velhice e/ou envelhecimento, em seguida, o exame das narrativas orais da Matintaperera, aps isso, selecionamos quatro contos da Matinta e, por fim, a anlise literria das narrativas escolhidas.

            Este artigo, alm desta Introduo e das Consideraes Finais, apresenta duas sees. A primeira, intitula-se Velhas, bruxas e Matintas: reflexes sobre o envelhecimento feminino reflete sobre a associao entre a mulher velha e a bruxa, para isso, fizemos um resgate histrico da representao feminina, na fase de transio do mundo medieval ao mundo moderno. Alm disso, nessa seo tambm apresentamos a associao que feita entre a velha e o mito da Matintaperera. A segunda seo, por sua vez, designada A velhice no imaginrio nas formas narrativas orais populares da amaznia paraense apresenta a anlise literria de dois contos da Matinta, recolhidos pelo IFNOPAP.

 

 

Velhas, bruxas e matintas: reflexes sobre o envelhecimento feminino

 

            Beauvoir (2018) acentua que tanto na Antiguidade quanto no folclore, a mulher velha foi constantemente associada a uma feiticeira. Franois Rabelais retrata a sibila de Panzoust com caractersticas de uma anci em condio deplorvel, visto que estava [...] malvestida, malnutrida, desdentada, remelosa, curvada, nariz escorrendo (BEAUVOIR, 2018, p. 158). Essa aproximao entre a mulher velha e a bruxa foi construda no passado e vem carregada, de acordo com Vieira (2007), de preconceitos e esteretipos.

            A bruxa imaginada como sendo uma [...] mulher, velha, cansada, solteira, de cabelos brancos, com uma verruga no nariz e possuidora de uma risada assombrosa (VIEIRA, 2007, p. 01). Essa representao negativa da bruxa pode ser confirmada no Dicionrio, que a define como uma [] mulher muito feia e/ou azeda e mal-humorada (HOUAISS, 2009, p. 333). Neste sentido, os livros infanto-juvenis costumam narrar histrias onde existe uma fada boa e formosa, s vezes loira, e uma bruxa m e monstruosa.

            Como vimos, a bruxa descrita, na maioria das histrias tradicionais, como uma velha de aparncia assustadora e que realiza o mal. Porm tambm encontramos narrativas, nas quais ela vista como algum est sempre doente, que apresenta [...] alguma deficincia fsica, idosa, mentalmente perturbada (VIEIRA, 2007, p. 01-02).

            As bruxas, no fim da Idade Mdia e incio da Idade Moderna foram perseguidas pela Igreja Catlica porque, de acordo com Viana (2013), efetivaram um pacto com o Belzebu, atravs do qual desprezavam o catolicismo. Esse movimento de perseguio religiosa e social ficou conhecido como a Caa s bruxas que durou [] aproximadamente trs sculos, comeando em 1450 e terminando em 1750 com a ascenso do Iluminismo (VIEIRA, 2007, p. 02). Na realidade, as bruxas no apareceram automaticamente, mas foram

[...] fruto de uma campanha de terror realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres realmente pertenciam bruxaria, porm, criou-se uma histeria generalizada na populao, de forma que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que eram mesmo bruxas e que possuam um pacto com o demnio. (VIEIRA, 2007, p. 02).

            No livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas ou O Martelo das feiticeiras), Heinrich Kraemer e James Sprenger explicavam que as bruxas se aliavam, conforme Viana (2013), aos diabos em sabats, orgias e ritos de profanao aos sinais do cristianismo. Seres diablicos eram convocados em preces que combinavam frases crists com vocbulos e sinais hereges. Os inquisidores do sculo XV revelam que as bruxas deliberavam seus sacrilgios atravs de contrato explcito de lealdade, concebido no coito carnal com os diabos. O voto sacrilgio poderia ser realizado em ritual pblico ou em qualquer hora em segredo. Em troca de sua alma, as bruxas ganharam poderes que eram usados para causar problemas temporais. 

            Para Kramer e Sprenger todas as bruxas entregavam-se, segundo Viana (2013), de corpo e alma prtica do mal. As aparentes bruxas eram reconhecidas por um grupo de aspectos fsicos e comportamentais e incriminada de entregarem-se, constantemente, a todo tipo de atos libidinosos com ncubo e scubos. As crianas cujas mes, por justificao de algum distrbio passional ou mental, ofertavam o filho, cegamente, desde o ventre, ao Demnio, eram a todo momento, at a sua morte, propensas perpetrao da bruxaria. Normalmente, todas as crianas no batizadas estavam em perigo, pois as bruxas as consumiam ou ofereciam a Lcifer.

            Kramer e Sprenger confessavam que as bruxas exterminavam, nos estudos de Viana (2013), os animais e arruinavam as plantaes. Eram capazes de seduzir animais e homens unicamente com um sinal de mos ou com o olhar. Elas tambm recorriam a feitios ou amuletos, que eram guardados sempre em locais discretos ou secretos. Acreditava-se que, atravs delas, os demnios seriam capazes de produzir raios, tempestades comuns e de pedras; levar a infecundidade aos animais e aos seus donos; intoxicar rios e poos; exterminar lavouras com a utilizao de lagartas daninhas ou grandes nuvens de gafanhotos. As bruxas tinham poder de se metamorfosear em animais, como cachorro, gato, lobo e serpente, e de transformar homens em feras. Para Kramer e Sprenger, todas as doenas do corpo, at mesmo a lepra ou a epilepsia, poderiam ser, nas palavras de Viana (2013), promovidas pelas bruxas. Elas tambm usavam ervas que deixavam os homens alegres, tristes, tontos ou loucos. Com ajuda diablica, elas podiam, pois, afetar os sujeitos de todas as formas possveis, desgraando-os em suas profisses, em sua reputao, em seu corpo, em seu intelecto e em suas vidas.

            Vieira (2007) destaca que quando revivemos o contexto histrico da Idade Mdia, vemos que bruxas poderiam ser as parteiras, as enfermeiras e as suas auxiliares. Dominavam e compreendiam o uso de plantas medicinais para a cura de enfermidades e epidemias nas comunidades em que moravam e, regularmente, possuam um alto poder social. Elas eram, constantemente, a nica esperana de atendimento mdico para mulheres e indivduos carentes financeiramente. Elas foram, por um longo tempo, mdicas sem ttulo. Aprendiam o ofcio umas com as outras nas noites das igrejas e repassavam esse conhecimento para suas descendentes, vizinhas e confidentes. O semilogo, antroplogo e filsofo colombiano Jess Martn-Barbero ressalta que:

Eram as mulheres que presidiam as viglias, as reunies das comunidades aldes ao cair da tarde, nas quais se conservaram alguns modos tradicionais de transmisso cultural. Viglias em que, junto ao relato de contos de terror e de bandidos, faz-se a crnica dos sucessos das aldeias, transmite-se uma moral de provrbios e partilham-se receitas medicinais que renem um saber sobre as plantas e o ciclo dos astros. A bruxa representa, junto com os levantes, segundo Michelet, um dos modos de expresso fundamentais da conscincia popular (MARTN-BARBERO apud VIEIRA, 2007, p. 02).

            Na verdade, essas mulheres concebidas como bruxas no estavam, segundo Vieira (2007), utilizando poderes sobrenaturais para produzir suas poes, o que muitos assistiam como a prtica de bruxaria eram na realidade, os incios do que atualmente conhecemos como aromaterapia, fitoterapia e farmacologia domstica. Alis quem de ns nunca foi curado de uma gripe com um chazinho feito pela nossa av? Para essas senhoras, a produo de tais poes no era um simples modo de colocar todos os elementos juntos, acompanhar as instrues e aguardar o resultado. Essas senhoras estavam, mesmo que inconscientemente, experimentando suas poes, elas possuam oportunidades para pensar/estudar e obter conhecimento com seus erros e acertos. Em uma viso patriarcal, era muita informao para uma mulher. Alm dessa possvel intimidao ao domnio da ordem simblica, a ocorrncia dessas mulheres utilizarem seus saberes para a eliminao de epidemias que por acaso sucediam em seus vilarejos, desencadeou a [...] ira da instituio mdica masculina em ascenso, que viu na Inquisio uma maneira de eliminar suas concorrentes (VIEIRA, 2007, p. 02). Lamentavelmente, muito sobre medicina natural que hoje poderia salvar vidas foi exterminado quando [...] essas mulheres foram queimadas nas fogueiras ou enforcadas. Percebo que no somente os corpos foram ali queimados, mas tambm seus manuscritos, ervas, poes, e seus conhecimentos anotados (VIEIRA, 2007, p. 02).

            Carvalho (2013) salienta que Russel e Alexander asseguram que bruxas existem, e que nos dias de hoje a bruxaria reconhecida como religio. Portanto devemos denunciar uma imagem formada pela Inquisio e repassada atravs do tempo no imaginrio, alm disso a estudiosa salienta que precisamos deixar claro que h alguns grupos com particularidades normalmente alusivas bruxaria, mas que no so: o curandeiro que realiza magia com o intuito de derrotar bruxaria, a possesso que a carga interna de maus espritos, e a obsesso que o repente externo e fsico por maus espritos.

            Em resumo, a transformao da feitiaria em algo ruim foi, no entendimento de Carvalho (2013), um profundo processo de mudana da sociedade e da religio pag, mesmo que de forma gradativa ocorreu em toda a Europa Ocidental. Santo Agostinho, como grande lder cristo afirmava que [...] a magia, a religio e a feitiaria pags eram obras inventadas pelo diabo e ao referenciar deuses pagos, ciente ou no do feito estavam na verdade invocando demnios (CARVALHO, 2013, p.173). Essa justificativa utilizada pelo Santo e pela Igreja converteu no catlicos em efetivos monstros confiantes da recm-nascida divindade, que corria perigos diante da ameaa cruel, por isso deveria ser destruda para [] no atrapalhar a salvao do mundo, pois a prtica de feitiaria era um crime contra a sociedade e contra Deus. (CARVALHO, 2013, p.173).

            Josebel Akel Fares (1997) acentua que os termos Bruxas e Feiticeiras aparecem, em alguns autores, com significados distintos e estes, essencialmente, coabitam na indissociabilidade da natureza, ou no, dos artifcios mgicos. Na viso de alguns estudiosos, a feitiaria :

[] uma prtica aprendida, no inata. As feiticeiras estudam o uso dos elementos animais, minerais e vegetais para elaborara seus fluidos, ungentos, chs que receitam para aqueles que as procuram, no importam se os remdios curam feridas ou abrem chagas (FARES, 1997, p. 138).

            Por outro lado, as Bruxas, na concepo de alguns autores, estudados por Fares (1997) possuem, igualmente, a faculdade de elaborar receitas mgicas, entretanto este dom inato, isto , nasce com elas. Neste estudo, assim como Fares (1997), consideramos os vocbulos (bruxas e feiticeiras) como sinnimos, pois ambas se descobrem e mudam de trajetria, e aqui so pensadas como sujeitos que [] desenvolvem prticas mgicas, seja para ajudar espritos demonacos incorporados, seja por dom hereditrio, seja por estudiosos e experimentaes (FARES, 1997, p. 138 – 139).

            Como observamos, a mulher velha foi historicamente e culturalmente comparada a uma bruxa europeia, descrita como [...] enrugada, vesga, s vezes, desdentada ou com alguns cacos negros espalhados pela boca babosa, verruga peluda no queixo protuberante ou na ponta do enorme nariz adunco (SOUZA, 1995, p. 14). Alm desse aspecto amedrontador, a anci tambm foi constantemente associada a algum que est com uma doena muito grave, podendo morrer a qualquer momento. Essa associao entre a velha e a bruxa faz com que tanto a mulher como a velhice sejam vistas de forma negativa e estereotipada. No caso da mulher isso acontece porque no patriarcado, sob dominao masculina, o corpo feminino foi limitado, segundo Cesidio e Boris (2007) a ser um objeto sexual, uma vez que seu corpo era sujeitado ao prazer e ao desejo do homem. No casso da velhice isso ocorre porque no fomos ensinados a conceber a senescncia como um processo natural, pois vivemos em

[...] uma cultura em que os jovens e adultos procuram ignorar a realidade do envelhecimento gradual de cada um. Com o progresso moderno, diminumos o valor do envelhecer, no consideramos o idoso como detentor de extensos e slidos conhecimentos, talentos e experincias que podem auxiliar as geraes futuras. (GUIMARES, 2007, p. 14).

            Sobre a aproximao entre as mulheres velhas e as bruxas podemos mencionar o mito da Matintaperera[10]. Essa lenda conta a histria de uma anci que se metamorfoseia em pssaro durante a noite. A maioria das narrativas clssicas dessa personagem apresentam uma viso distorcida, negativa e preconceituosa dessa entidade e, sobretudo, da velhice feminina que a coloca como sendo uma mulher de aparncia assustadora, debilitada e doente, que realiza o mal devorando as crianas e trazendo epidemias e enfermidades as comunidades locais.

 

Figura1 - Imagem do rosto da Matintaperera com tratamento digital

 

 

Fonte: (COSTA, 2013, p. 91)

           

              Na cultura indgena, a Matintaperera concebida, de acordo com Carvalho (2014), como uma perigosa feiticeira, ou melhor, como uma bruxa velha que, na juventude, cometeu graves pecados e, por conta disso, precisa cumprir o fado. Cumprir o fado significa efetivar o destino que foi estabelecido por intermdio de uma fora sobrenatural. Os indivduos que cumprem um fado, nas palavras de Carvalho (2014), so julgados como sujeitos que efetivaram [] um pacto com o demnio em troca de alguma vantagem ou vinganas pessoais, recebendo por isso uma punio, como a de se transformarem em animais durante a noite (CARVALHO, 2014, p. 225). Cmara Cascudo, por sua vez, defende que a Matinta o nome de

[...] uma pequena coruja, que se considera agourenta. Quando, a horas mortas da noite, ouvem cantar a mati-taper, quem a ouve e est dentro de casa, diz logo: Matinta, amanh podes vir buscar tabaco. Desgraado – deixou escrito Max. J. Roberto, profundo conhecedor das coisas indgenas – quem na manh seguinte chega primeiro quela casa, porque ser ele considerado como o mati. A razo que, segundo a crena indgena, os feiticeiros e pajs se transformavam neste pssaro para se transportarem de um lugar para o outro e exercer suas vinganas. Outros acreditam que o mati uma maaiua, e ento o que vai noite gritando agoureiramente um velho ou uma velha de uma s perna, que anda aos pulos (CASCUDO, 2012, p. 442).

            Contudo, os resultados de nossas investigaes das narrativas orais da Matintaperera, recolhidas pelo IFNOPAP revelaram uma nova traduo da velhice feminina, que no vem carregada de preconceitos e nem de esteretipos, mas de novidade, contemporaneidade e liberdade.  Nesse sentido, na prxima seo apresentamos a anlise de dois contos da Matintaperera, ambos recolhidos pelo IFNOPAP, retiradas da coletnea de textos Abaetetuba conta, que refletem sobre a representao da velhice feminina.

 

 

 

A velhice no Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense

 

[] tornavam a contar que essa velha era Matintaperera

(SIMES; GOLDER, 1995c, p. 20).

 

            Comeamos, pois, esta seo de anlise literria com fragmento do conto Fiu! Fiu!, narrado por Manoel da Fonseca e recolhido pelo Projeto IFNOPAP, que revela histria de Dona Laura, uma mulher de 70 anos que se transformava em Matintaperera, visto que [] L, tinha uma velha chamada Laura, uma velha, uma velha, assim, de uns 70 anos, sabe? E essa velha, tornavam a contar que essa velha era Matintaperera (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 20, grifo nosso). Percebeu-se, neste trecho de narrativa, que a palavra velha comparece cinco vezes, confirmando assim a intensa relao entre a personagem e a senescncia.

            A velhice retratada na maioria das histrias tradicionais da Matintaperera caracterizada, geralmente, pela presena acentuada de adjetivos negativos, que contribuem para uma viso preconceituosa e estigmatizada do envelhecimento feminino. Consoante Ribeiro (2007), Aristteles concebia a senescncia como uma quarta idade, determinada pela senilidade[11], degenerao e doena, colocando a senectude nos 50 anos de idade. Hipcrates relacionou a senioridade ao Inverno aos 56 anos. Sneca (4-65 D.C.) tambm considerou a velhice numa viso negativa, como uma enfermidade incurvel.

            Ribeiro (2007) salienta ainda que na Idade Renascentista e na Idade Mdia, a compreenso negativa do envelhecimento continuou a manifestar-se: a mulher velha era concebida como bruxa e cmplice de agentes demonacos, e os velhos no coletivo, eram enxergados como submissos e escravos dos mais fortes. Nesta poca, Santos (2008) evidencia que se destacava, especialmente a juventude e a formosura das mulheres juvenis.

            Contudo, veremos nesta seo uma nova traduo do envelhecimento feminino, atravs das narrativas orais da Matintaperera, recolhidas pelo IFNOPAP, que revelam histrias de mulheres comuns, que envelheceram, mas que continuam passeando, se divertindo, cantando, danando, se apaixonando, amando, desejando e sendo desejadas, no esto isoladas e nem escondidas em cavernas, mas que buscam e valorizam o contato com o outro (alteridade).  

            Voltando ao conto Fiu! Fiu!, o narrador conta que, certo dia, Dona Laura ficou doente de   uma febre muito forte que levou muitos sujeitos a bito e como era costume dos mais velhos socorrer quem estivesse enfermo, Raimundo terminou de fazer a farinha no final da tarde, umas seis e meia e decidiu ir do trabalho direto casa da velha Laura para prestar socorro. Porm, no meio do caminho algo inusitado aconteceu, ela pulou: [] Pah! E suspendeu a bunda pra cima e a saia, e acendeu a bunda pro lado dele e fez assim: -Fiu, Matintaperera! A, ela se endireitou e disse: - Agora vai contar, ouviste? (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 21). Neste conto, observamos que Raimundo se surpreende com uma idosa cheia de energia, vitalidade e muita sensualidade. A velha demonstrou ainda no se preocupar com o julgamento da sociedade em relao ao seu corpo envelhecido, dado que quando viu Raimundo no escondeu seu corpo e nem o rejeitou, mas o aceitou e o exibiu, provando a ele e a todos que o seu corpo-velho no feio, o que ridculo o preconceito em relao a ele. Nesta narrativa, tambm possvel fazermos uma reflexo em torno da sexualidade feminina na velhice, uma vez que foi estabelecido um prottipo que a velha um sujeito assexuado e isso uma crena que no se sustenta.

            Carmen Salgado (2002) salienta que a cultura hispano-americana, especialmente, assimila a sexualidade da mulher velha como fonte de risibilidade, apresentando-se como cmica e inapropriada. Esse preconceito acontece, em geral, ao igualar equivocadamente a sexualidade feminina a sua potencialidade reprodutiva. Essa discriminao para com a anci est profundamente associada ao [...] sexismo e a extenso lgica da insistncia de que as mulheres valem na medida em que so atrativas e teis ao homem (SALGADO, 2002, p.12). Dentro desta situao, isto , na persistncia das mulheres de serem atraentes a aproximao delas com a velhice resulta aterrorizante e assustadora e terrvel, pois elas tm sido [...] socializadas e treinadas para temer a velhice. Negando o prprio processo de envelhecimento (SALGADO, 2002, p.12).

            Porm, Arajo e Carlos (2018) destacam que a sexualidade no se restringe ao ato sexual em si, mas sim em uma combinao de prazer, cumplicidade e amor entre dois indivduos, como modo de percepo de seu corpo e do outro. Dependendo da maneira como a velhice concebida e das transformaes que ela pode sofrer em inmeros aspectos da vida, o sexo nesse estgio pode sim promover liberdade e garantir o prazer. E, para isso necessrio que a velha use sua criatividade para alcanar novas maneiras de satisfao.

            O conto, intitulado Fite!, narrado por Joana dArc nos revela a histria de uma velha, que surgiu no meio do trajeto da viagem de um grupo de msicos a bordo de uma canoa, pedindo carona, os quais atenderam o seu pedido. Depois de colocarem a idosa na canoa, eles saram, foram remando, remando e de repente, Ela virou a bunda pra cima e deu um assobio. – Fite! Matintaperera. Ela fez (SIMES E GOLDER, 1995c, p. 175). Como podemos observar nesta narrativa, a mulher velha no est isolada da sociedade e nem do mundo e muito menos est deitada em casa deprimida, esperando a morte chegar, mas est querendo, assim como todo mundo, passear, viajar, se divertir, caminhar, estar entre os velhos, mas tambm entre os jovens, entre os msicos. A mulher velha, nesta narrativa, quer andar de canoa, participar de eventos, apresentaes, shows, amar e ser amada, desejar e ser desejada, dar e receber carinhos. Desse modo, este conto nos revela que a mulher na velhice no deixou de ter os mesmos sentimentos da juventude e nem intil porque deixou de ter filhos, ela continua [...] cantando, danando, criando, amando, brincando, trabalhando, transgredindo tabus etc (GOLDENBERG, 2017, p. 11).

            Como podemos observar, anteriormente, as duas narrativas orais da Matintaperera nos revelam histrias de mulheres velhas que no so seres repugnantes e assustadores que realizam o mal, fazendo aluso s bruxas europeias, mas que trazem uma nova traduo da velhice feminina, pois elas se tratam de velhas agitadas, animadas e que valorizam o contato com o outro.

            As velhas dos contos ifnopapianos no sentem vergonha de seus corpos envelhecidos, mas os revelam, sem medo, sem tabu, o que traz reflexes importantes em relao a velhice e a sexualidade. Alm disso, notamos nos contos que as idosas no querem apenas estar apenas com pessoas da idade delas, mas querem conversas com outras velhas e tambm com jovens, adolescentes e crianas para trocar experincias, pois elas tm muito o que falar e ensinar, comprovando assim que a velhice no interfere nas relaes sociais e na sexualidade, no querem tambm ficar presas em casa, mas sair, viajar, passear, namorar e se divertir.

            Conhecer essas histrias de Matintapereras, representadas por mulheres velhas importante, pois nos revelam um novo olhar sobre a velhice feminina, para no cairmos nos erros de acharmos que as velhas de hoje (sculo XXI) so as mesmas de outrora, isso est mudando, pois elas no esto em cavernas, no esto trancadas em casa. Elas so de uma nova gerao que, segundo Goldenberg (2017), modificou comportamentos e conceitos, que tornou a sexualidade natural e prazerosa, que criou variados arranjos amorosos e conjugais, que legitimou modernas formas de famlia e que expandiu as chances de ser me, pai, av e av.

 

 

Consideraes finais

 

            Este artigo objetivou refletir sobre o envelhecimento feminino em narrativas da Matintaperera, recolhidas pelo IFNOPAP. Para tanto tivemos com referencial terico os estudos de Beauvoir (2018), Mucida (2018), Goldenberg (2008), (2017), Zimerman (2007), Viana (2013), Vieira (2007), Salgado (2002), entre outros.

            Consideramos ter alcanado nosso objetivo geral, uma vez que apresentamos a anlise literria de dois contos da Matintaperera, da coletnea Abaetetuba conta que revelaram uma nova traduo da mulher na velhice, que no vem repleta de preconceitos e nem de esteretipos, mas de novidade, contemporaneidade e liberdade, uma vez que elas so descritas como mulheres comuns, como todos ns, capazes de se apaixonar, de encantar as pessoas, sentir desejos e que no vivem isoladas, mas que apreciam o contato com o Outro.

            Nesta pesquisa fizemos importantes reflexes sobre a aproximao que se estabeleceu historicamente e culturalmente entre a velhice e a bruxa, trazendo o pensamento de Beauvoir (2018), os estudos de Viana (2013) e Vieira (2007) sobre a representao de mulher velha no perodo de transio entre o mundo medieval para o moderno, bem como as contribuies tericas de Carvalho (2013) sobre a noo que temos hoje de bruxaria. Alm disso, tambm discorremos sobre relao entre a velhice, a bruxa e Matintaperera, apresentando as definies da personagem.

            Acreditamos que esta pesquisa trar importantes contribuies ao estudo da velhice feminina, pois em nossas investigaes nos Repositrios Institucionais on-line das renomadas Universidades verificamos que existem pouqussimos trabalhos sobre esse tema na rea de Cincias Humanas, sobretudo, nos Cursos de Doutorado em Letras (Literatura) e essa carncia acaba se tornando algo extremamente preocupante, pois nos impede de desenvolvermos nossa funo social, enquanto literrios que o de humanizar os sujeitos atravs dos textos literrios, conforme afirma Antnio Candido (1989). Desse modo, este estudo, alm de nos ajudar a desenvolvermos nossa funo social enquanto literrios nos possibilitar entendermos a mulher velha para alm de suas representaes fsicas, dado que o envelhecer no pressupe apenas mudanas corporais, mas tambm psicolgicas, sociais, econmicas, polticas e culturais.

 

 

Referncias

 

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[Recebido: 16 abr 21 - Aceito: 16 mai 21]

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade

 

The Amazonian Marvellous, Poetics of Alterity

 

 

Sylvia Maria Trusen[12]

https://orcid.org/0000-0003-4248-929X

 

 

Resumo: De modo geral, as pesquisas em torno das narrativas tradicionais de fundo maravilhoso assentam-se sobre a dicotomia real x fabuloso, natural x sobrenatural, verossmel x inverossmel, conforme lemos nas postulaes de Todorov (1975), Bessire (1974), Max Lthi (1992), Hetmann (1982), dentre outros. Contudo, quando tais teorizaes so confrontadas com o corpus narrativo de tradio mtica e oral, recolhido na Amaznia Paraense, elas revelam-se insuficientes para tratar da recepo do maravilhoso neste territrio, uma vez que tais narrativas no se escoram na antinomia assinalada acima.  Partindo de tal constatao, elegeu-se a categoria da alteridade, conforme proposio de Victor Bravo, sugerindo, assim, possvel clave para o estudo do que nomeia-se aqui maravilhoso amaznico. Desse modo, revistando os textos consagrados em torno do gnero, tais como o Introduo literatura fantstica (T. Todorov), Das europische Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit fantastique (I. Bessire), por um lado, e, por outro, a recolha de narrativas da Amaznia paraense efetivada pelo Projeto O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense, o artigo destaca a categoria da alteridade como termo de importncia central para a leitura de tais narrativas.

Palavras-Chave: Maravilhoso, Alteridade, Amaznia

 

Abstract: In general, the research of the traditional narratives with a background of the Marvellous are based on the real dichotomy x fabulous, natural x supernatural, verossimel x unlikely, as we read in the postulations of Todorov (1975), Bessire (1974), Max Lthi (1992), Hetmann (1982), among others. However, when such theories are confronted with the narrative corpus collected in the Amazon Region of Par, they are insufficient to deal with the reception of the marvellous in this territory, since such narratives do not stand in the antinomy indicated above. Starting from this observation, the category of alterity was chosen, according to Victor Bravo's proposition, thus suggesting a possible key to its study. Thus, reviewing the established texts around the genre, such as Introduction to fantastic literature (T. Todorov), Das europische Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit fantastique (I. Bessire), on the one hand, and, on the other, another, the collection of narratives from the Par Amazon carried out by the Project O Imaginrio nas Formas Oral Narrativas Populares da Amaznia Par, the article highlights the category of alterity as a term of central importance for the reading of such narratives.

Keywords: Marvellous, Alterity, Amazon

 

O ttulo dado a este trabalho coloca a quem o escreve e, possivelmente, a quem o l, diante de pelo menos duas indagaes – o que o autor deste texto compreende por maravilhoso amaznico, e qual o elo vislumbrado com o que se denomina potica da alteridade.

O termo maravilhoso, recorrente na teorizao que se debrua sobre as fronteiras da literatura do fantstico (TODOROV, 1975)  ou, de modo mais abrangente, do inslito (GARCIA, 2012) frequentemente invocado para tratar de uma multiplicidade de formas artsticas – no s literrias (SCHUHL, 1969) – que por si s demandaria uma vasta reviso bibliogrfica, inexequvel nos limites de um artigo. Schuhl (1969) j o anotou, advertindo que para dar conta de sua magnitude haveria que se enveredar por sendas to diversas como as do maravilhoso religioso, ferico, utpico, mtico, cientfico, etc. Todorov (1975), de modo mais conciso, referiu-se a trs modos de representao do maravilhoso na literatura – o extico, o hiperblico e o intelectual – ao passo que I. Chiampi (1980) teorizou acerca do realismo maravilhoso estabelecendo as balizas para a distino do realismo mgico.

Face amplitude dos estudos e diante das mltiplas configuraes que o gnero pode assumir, importa aqui ater-se apenas aos trabalhos cuja leitura torna-se necessria para compreenso do que se designa maravilhoso amaznico. Inevitvel no percurso deste texto o Introduo literatura fantstica, obra na qual o fantstico descrito como gnero evanescente, provisoriamente sustentado sobre as hesitaes das personagens (e, por extenso, do leitor implcito), diante de uma realidade, tornada a seus olhos inverossmil ou inacreditvel. O maravilhoso, por conseguinte, constituiria gnero, em que se encena o sobrenatural sem que os fenmenos descritos despertem qualquer reao de assombro por parte do leitor.

No fim da histria fantstica, o leitor, quando no a personagem, toma, contudo, uma deciso, opta por uma ou outra soluo saindo desse modo do fantstico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenmenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gnero: o estranho. Se ao contrrio, decide que se devem admitir novas leis da natureza pela quais o fenmeno pode ser explicado, entramos no gnero maravilhoso. (TODOROV, 1975, p. 42)

Para Todorov, portanto, o maravilhoso, como gnero literrio delimitado pelo fantstico, depende da presena ou negao da credulidade (por parte da personagem e/ou leitor)  diante de fenmeno inslito.

Tal descrio do fantstico, vale assinalar, deve bem mais ao ensaio freudiano, O Estranho (FREUD, 1996a), do que admite seu tratado. Conquanto o linguista e pensador blgaro faa referncia explcita ao artigo de 1919, a meno pouco revela do fato de que boa parte de sua fundamentao erige-se sobre este trabalho de Freud. Com efeito, deve-se primeiramente ao psicanalista, em seu estudo sobre a novela de Hoffmann, a diferenciao entre o maravilhoso ferico e o estranho, tomando por base o contraste com a realidade construda pelo leitor. Assim, se o texto freudiano j assinalara que o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato de que o seu contedo no se submete ao teste de realidade (FREUD, 1996, p. 266), ele antecipa muito das proposies de Todorov.  Em ambos, entretanto, a descrio do maravilhoso comparece sob a clave do fabuloso, extraordinrio, daquilo que no se submete aos critrios de veracidade - aspecto que pode ser lido em uma variedade de textos tericos produzidos a respeito, particularmente no continente europeu. Assim tambm, por exemplo, o do suo Max Lthi ao distinguir os elementos constitutivos do conto maravilhoso (Mrchen)[13], que observa.

No conto maravilhoso (Mrchen), o heri que encontra um animal, planta, ou astro falante, no demonstra nem medo nem espanto. Isto, no porque o animal ou planta falante lhe fosse familiar; eles no integram seu habitat natural. Nada indica que ele soubesse da existncia de tais animais falantes. Mas ele no se admira, e no teme: o sentimento para o extravagante lhe falta. Para ele, tudo parece pertencer mesma dimenso. (1992, p. 10) [14]

Assim, noes tais como fabuloso, extraordinrio, sobrenatural so termos recorrentes na literatura que aborda esse gnero descrito na regio limtrofe do fantstico, como se l tambm, dentre outros, em Hetmann (1982) e Bessire (1974).

O problema, porm, como j se assinalou anteriormente (TRUSEN, 2015) que tais categorias operam a partir de convenes extremamente variveis e cada vez mais deslizantes na contemporaneidade. Se a vasta literatura medieval, com suas ilhas venturosas, seus objetos mgicos e protetores sugerem em seu amplo espectro a crena fincada no mirabilia (LE GOFF, 1994), a compilao de narrativas amaznicas, no outro extremo temporal e geogrfico, igualmente testemunha a incorporao do maravilhoso ao mundo prosaico e cotidiano.

Assim, consideraes como as de Hetmann que, citando a Polivka e Bolte afirma que o conto maravilhoso (Mrchen) so histrias extraordinrias no ancoradas nas condies de vida real, e que ouvimos com maior ou menor prazer, embora as consideremos inacreditveis (1982, p. 12), conquanto sejam apropriadas no contexto europeu, pouco auxiliam na compreenso das narrativas do maravilhoso amaznico.

A impreciso de seus termos deriva basicamente de dois fatores – o primeiro deles porque se referem a um conjunto de textos que passou por percurso que se vem assinalando, em outros trabalhos (TRUSEN, 2012), como processo de domesticao e alijamento do maravilhoso ao mbito dos lares burgueses quando, a partir do surgimento do pensamento ilustrado, assiste-se a crise da cosmologia crist que ter, como efeito mais imediato, a emergncia do sujeito racional como entidade privilegiada para o conhecimento das coisas no mundo. Efetivamente, pontua, igualmente a respeito, David Roas:

A rejeio ao sobrenatural se traduziu tambm em condenao de seu uso literrio e esttico. As perspectivas ilustradas da segunda metade do sculo XVIII enalteceram os conceitos de verossimilhana e mimese como armas fundamentais para desterrar a presena do sobrenatural e do maravilhoso dos textos literrios. (ROAS, 2006, p. 24) [15]

Explica-se, assim, que as teorizaes em torno do inslito terminem, majoritariamente, a referir-se ao conto maravilhoso, mediante sua identificao e circunscrio a rbita do moralizante, anotando nele feio resignatria.

Ele [o conto maravilhoso] usa o universo dos fantasmas e da no-coincidncia do acontecimento com a realidade evidente, no para romper nossos vnculos com essa realidade, mas para nos assegurar (nos tranquilizar) da nossa capacidade e da validade dos meios (a moral, as leis da conduta e do conhecimento de nosso domnio prtico) (BESSIRE, 1974, p. 57)

A afirmao parece, como visto, respaldar-se em certa compreenso do maravilhoso que o vincula muito fortemente funo que o gnero desempenharia. Nesse sentido, ele estaria voltado no tanto para a ruptura com o que rodeia e ordena o mundo para o homem – algo que, segundo a autora, seria bem mais perceptvel na literatura fantstica – mas destinado harmonizar, ou melhor, a ajustar o indivduo ao seu meio ambiente.

Postura bem similar a que lemos no ensaio de Rosie Jackson:

As fantasias que penetram no reino do maravilhoso so as nicas que tem sido toleradas e que tem alcanado uma ampla disseminao social. A criao de mundos secundrios atravs do mito religioso, a magia ou a fico cientfica se baseia em mtodos legalizados - a religio, a magia, a cincia – para o estabelecimento desses outros mundos, que so compensatrios, pois preenchem uma lacuna a partir de uma apreenso da atualidade como algo desordenado e insuficiente (...). Sua base novelesca d a entender que o universo , em ltima instncia, um mecanismo autorregulado no qual a bondade, a estabilidade e a ordem acabaro por impor-se.  Essas fantasias, pois, servem para estabilizar a ordem social ao minimizar a necessidade de interveno humana em um mecanismo csmico organizado segundo um principio de benevolncia. (JACKSON, 2002, p. 144)

, pois, nesse sentido que se vem sustentando ser necessrio distinguir entre o uso, vale dizer, a instrumentalizao que a cultura ocidental, em muitos momentos, empreendeu do maravilhoso, e a potica que lhe prpria. Assim, por exemplo, a anlise da compilao, realizada pelos Irmos Grimm, evidencia que o emprego do gnero a servio de uma dada concepo de lar, implicou no s a domesticao do maravilhoso, mas que, igualmente, significou, muitas vezes, reduo da potncia que lhe prpria. Em outros termos, resultou no confinamento de um conjunto de procedimentos criativos, cuja ordenao de ordem inversa ao cogito racional, a um territrio frequentemente relacionado ao era uma vez dos contos recolhidos e ajustados mentalidade burguesa crist, nos moldes da famlia dos sculos XVIII e XIX.

Essa observao crtica a certa teorizao sobre o maravilhoso, se talvez pertinente no contexto europeu, faz-se to mais urgente quando confrontada com certo repertrio de narrativas amaznicas, igualmente atravessas pelo mirabilia.

A urgncia dessa releitura resulta, porm, de um segundo fator. A conceituao do maravilhoso identificando-o, ora a um tempo perdido, ora ao aparecimento do que no se subjuga esfera do que se concebe por natural, pouco ou nada se coaduna com as narrativas ouvidas e/ou lidas em textos que transcrevem para o impresso o repertrio do imaginrio amaznico. A referncia aqui particularmente aos relatos coligidos pelo projeto integrado IFNOPAP (O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares da Amaznia Paraense), nas colees Santarm conta...., Abaetetuba conta...., Belm conta...., Bragana conta.... , dentre outras, realizado na regio norte do pas. Com efeito, ao leitor que se disponha a folhear algumas delas, logo se evidenciar a dificuldade para o estudioso brasileiro de manejar tais narrativas a partir de claves de leitura to pouco afeitas como as forjadas no continente europeu. No s a indefinio de tempo e lugar revertida em favor da localizao geogrfica do que se narra, mas sobretudo a oposio real x irreal, natural x sobrenatural completamente suspensa em prol da aliana entre termos considerados antagnicos, pelo pensamento ocidental moderno.

Que quando a minha me saiu do quarto. A, ela apareceu grvida, s que j nasceu j diferente, j um pouco, sabe? Muita coisa ela j trouxe. Eu queria que tu o visses, rapaz (..). Era jito aquele, aquela [boquinha] [16] digo, boquinha, sabe. Tinha tudo, aqueles leros do boto, aquele jeito, tudo .  (SIMES; GOLDER, 1995, p. 24)

O fragmento acima, retirado da narrativa contada por Manoel da Fonseca foi transcrito por Conceio Vasconcelos e encontra-se na coletnea Abaetetuba conta....., que rene causos, relatos, em narrativas do nordeste paraense, no municpio de Abaetetuba, localidade situada s margens do rio Marataura, afluente do Tocantins. Nela, se leem os indcios da gravidez de mulher seduzida por figura recorrente nas histrias da regio, que, como a Cobra Grande, emprenha as mulheres. Se aqui a concepo pelo golfinho sugerida com naturalidade, em outras, a palavra do narrador certifica a veracidade do relato.

Bom, ento a minha palavra que eu vi, isso (...) . Agora, os antigos diziam que existia esse navio encantado, entre vspera de So Joo, [que o navio aparecia]. Muita gente, teve gente que quis atirar, mas no teve coragem, porque dizem, assim, se atirassem desencantava. Mas, temiam no desencantar, n?  (SIMES; GOLDER, 1995, p. 99)

Ambos os fragmentos servem para ilustrar no s o frtil imaginrio da regio, mas tambm para sublinhar a recorrente marca de testemunhos – amigos, familiares, o prprio narrador – e/ou  locais e situaes, de modo a certificar o ouvinte e provvel leitor de que o narrado corresponde verdade dos fatos. Contudo, se o registro da autenticidade se faz necessrio, porque ele se tece na fronteira com a suposta (in)credulidade do interlocutor. Resulta da um curioso liame entre a percepo de que aquilo que se narra extraordinrio, porm crvel, dado que verdadeiro, como asseguram seus narradores. De todo modo, invocada a confiabilidade, tais narrativas parecem contradizer a literatura sobre o maravilhoso que opera a partir das antinomias aqui assinaladas.

Esta relao peculiar entre o campo do natural e do sobrenatural faz assomar memria certa descrio do maravilhoso na literatura do continente americano. No prlogo do El reino de este mundo, Carpentier postula sua teoria do maravilhoso americano em que se entretece uma dada percepo do continente, cedida pelos primeiros cronistas, com uma reinveno da escrita latino americana, como bem o anotou o estudo de Irlemar Chiampi (1980). Com efeito, no manifesto, Carpentier procurando definir os meandros dessa elaborao sincrtica, traada a partir da conjuno da histria haitiana com o universo do mirabilia, tambm prope as balizas para uma escritura para o continente, demarcada pelo encontro entre o prprio e o alheio.

Havia respirado a atmosfera criada por Henri Christophe, monarca de incrveis realizaes, muito mais surpreendentes que as de todos os surrealistas, muito afeitos a tiranias imaginrias, ainda que no padecidas. A cada passo encontrava-me com o real maravilhoso [grifo do autor]. Mas, pensava, ademais, que essa presena e vigncia no era privilgio nico do Haiti, seno patrimnio da Amrica inteira (). (CARPENTIER, 1975, p. 55) [17]

Tentador, portanto, resgatar a conceituao do escritor cubano para compreender as narrativas da regio amaznica brasileira, em que se nota a indistino entre o terreno do excepcional e do ordinrio, entre o fabuloso e o verdico. Contudo, um rpido exame logo identificar a impossibilidade do nexo. O conceito proposto por Carpentier deriva de uma proposta ontolgica para a Amrica, no s resultante do entrelaamento entre mito e histria, como tambm deriva de perspectiva realista, cedida pelo extraliterrio (o real maravilhoso caracterstico da realidade haitiana (CHIAMPI, 1980. p. 37 e passim). As narrativas a que se faz aluso aqui no encenam a conjuno pleiteada por Carpentier entre mito e histria – embora suspendam as relaes de antinomia – tampouco constituem elaboraes ficcionais de um escritor particular, mediatizadas por uma dada perspectiva do real. Parece-lhe, todavia, ser caracterstica a presena de elementos do maravilhoso, fortemente fincadas em figuras mticas (Boto, Cobra Grande, Matintaperera, Nau encantada, dentre outros) que revelam uma relao especfica com o espao – a floresta e os rios.

Outrossim, essas narrativas que aqui nomeia-se maravilhoso amaznico denotam marcas de testemunho em relatos que admitem, como forma discursiva inversa racionalidade moderna, a relao harmoniosa, isto , no excludente entre contrrios, mediante metamorfoses que assumem ora a forma humana, ora a animal.

E, finalmente, um terceiro aspecto a ser considerado que muitas das figuras mticas a presentes situam-se na interseco entre natureza e civilizao, a exemplo da Cobra Grande e do Boto, resultante de sua natureza errante entre rios e vilarejos.

A direo da argumentao aqui, conduz, como se v, noo de alteridade, operador com que o pensamento filosfico do sculo XX e a psicanlise, a partir de Freud, e sobretudo desde Lacan (SPIELMANN, 2000), tm destacado a relao no excludente entre pares contrrios (Mesmo/Outro, Civilizao/Natureza, Razo/Loucura, Dentro/Fora, Masculino/Feminino, Natural/Sobrenatural). Efetivamente, se o termo oriundo do latim altarǐtas aponta para as relaes de contraste (HOUAISS,  2001) ele designa no s o que diverso, mas sobretudo a relao entre dois seres ou entidades distintas ou supostas como tal. Nesse sentido,  a alteridade o contrrio da identidade, como o outro o contrrio do mesmo. Poder-se-ia fazer disto um princpio: toda coisa sendo idntica a si mesma (princpio da identidade) tambm diferente de todas as outras (princpio da alteridade). (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 53). [18] Donde, a noo de alteridade, significando e abrangendo a ideia da diferena efetiva-se dialogicamente – isto , na relao entre termos opostos, mas no excludentes, uma vez que o Outro s pode ser apreendido como tal em relao ao Mesmo. Compreendida a alteridade, portanto, como categoria imprescindvel para o entendimento das relaes humanas no campo inter e intrasubjetivo, ela passou a ocupar lugar central no somente entre os cientistas sociais, mas tambm no meio psicanaltico e nos estudos literrios. Concernente a esses ltimos, cabe aqui assinalar os nomes de Octavio Paz e o de Victor Bravo, com os quais pretende-se, por fim, estabelecer o lao final entre o que se designou maravilhoso amaznico e uma potica prpria, enunciadora da alteridade humana e literria.

O crtico literrio venezuelano em obra que est ainda aguardando traduo para o portugus e urgente reedio, partindo da noo de alteridade dada pelo poeta e pensador mexicano, bem como dos estudos de Foucault, observa que a cultura judaico-crist operou, no Ocidente, por um sistemtico repdio s formas culturais que se antagonizaram razo, ou para usar a terminologia do autor, s formas do Mesmo. Com efeito, na obra citada por Bravo, Conjunciones y Disyunciones, O. Paz, tratando das polivalncias abrigadas sob a picardia, aponta para o problema da metfora e as faces que a compe – o lugar da civilizao e o princpio da realidade, por um lado, e, por outro, o territrio do desgoverno, e o princpio do prazer. Nesse sentido, anota o poeta e ensasta mexicano, a picardia, e a gargalhada, que dela resulta, ordenam uma sntese que traduz duas caras – o Eu e o Outro [19] – que nos (des)governam. Nesse sentido, a picardia desvelaria e simultaneamente mascararia os segredos, face ao nosso dia-a-dia do mundo civilizado.

L-lo participar de um segredo. Em que consiste este segredo? Este livro nos ensina nossa outra cara, a oculta e inferior. O que digo deve entender-se literalmente: falo da realidade que est abaixo da cintura e que a roupa nos cobre. Refiro-me a nossa cara animal, sexual: ao cu e aos rgos genitais (PAZ, 1969, p. 12) [20]  

Se bem verdade que o problema foi abordado bem anteriormente por Freud, em Os chistes e sua relao com o inconsciente,  este enlace pe em relevo a articulao Mesmo/Outro, Civilizao/Natureza, indicando a dinmica de alteridade, a mesma que serve ao crtico Victor Bravo para pensar a literatura do fantstico e do maravilhoso.

O drama de toda cultura o intento de reduzir o irredutvel, a alteridade, tranquilidade ideolgica do Mesmo, da Identidade. A alteridade parece ser o insuportvel. A ordem que toda cultura de alguma maneira sacraliza a inteno de reduzir a alteridade s formas do Mesmo. (BRAVO, 1985, p. 16) [21]

Assim, se a alteridade assinala a relao no excludente entre pares antinmicos, ela aponta igualmente para a dinmica subjacente dolorosa experincia humana de saber-se racional, sujeito da cultura, e, simultaneamente, Outro – ser primitivo, intuitivo, desgovernado - malgrado os ditames da razo.

H, todavia, assinala o Los poderes de la ficcin (BRAVO, 1985) formas literrias que pem a descoberto, de modo mais ou menos flagrante, tanto a alteridade humana, como aquela que constitui o prprio discurso literrio, em seu processo mimtico de reproduzir e simultaneamente desrealizar o mundo emprico. Com efeito, se o texto literrio sobrevive no tnue liame entre a representao especular das coisas circundantes e a encenao de sua prpria espessura literria, o fantstico e o maravilhoso, para Bravo, constituem os modos discursivos que mais evidenciam a alteridade prpria do homem e das narrativas por ele produzidas. Dito em outros termos, se a literatura vive da complexa e tensa relao com a realidade que lhe exterior, entre representar-se a si prpria e o representar o mundo, o texto fantstico o que expe de modo mais inquietante a possiblidade de transgresso entre essas fronteiras. Contudo, como pondera o venezuelano em seu debate com o Introduo literatura fantstica de Todorov, se o fantstico deriva da experincia limtrofe entre esses territrios, o maravilhoso o lugar da alteridade como espetculo.

Quando o limite persiste e um mbito outro se pe em cena sem atender s verossimilhanas das certezas do real e sem penetrar estas certezas e question-las, quando o limite persiste deslindando o mbito outro do mbito do real, estamos em presena do maravilhoso. Poderia dizer-se que no fantstico o outro uma irrupo, e, no maravilhoso, um espetculo. [22] (Bravo, 1985, p. 244)

Nesse sentido, a noo de fronteira, como eixo no qual se deparam noes tidas como antagnicas e apartadas pela civilizao - por exemplo, natural e sobrenatural, real e fabuloso, verdico e inveridco – adquire relevncia na argumentao de V. Bravo que eleva o problema da alteridade como conceito a partir do qual possvel pensar esses gneros literrios. Nesta outra  proposio, o maravilhoso redimensionado e pensado para alm dos antagonismos constatados nas teorizaes forjadas pelo pensamento europeu.

Assim, se o maravilhoso o tema do mundo s avessas, universo outro que desde o perodo medieval manifesta-se como potncia de insurreio, o maravilhoso que se apresenta em narrativas mticas ao norte do pas, que aqui nomeamos como maravilhoso amaznico, ao suspender as relaes de antinomia prprias da cilivizao moderna, que reduzem  e solapam a alteridade humana sob as formas do Mesmo, deve ser pensado sob a clave da alteridade. Suas narrativas, efetivamente, conciliando o sobrenatural e o natural, o animal e o humano, a natureza e a civilizao, tecidas que so para alm da fronteira, representam uma potica da alteridade. E, para no encerrar, poder-se-ia ademais acrescentar que, em sendo o inconsciente o lugar por excelncia da alteridade – pois nele os contrrios no se excluem (FREUD, 1996b)-, tais narrativas encenam a resistncia do inconsciente toda forma de subjugao. Mas isso j outra histria. 

 

Referncias

 

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BRAVO, V. Los poderes de la ficcin. Caracas: Monte vila, 1985.

 

CARPENTIER, A. El reino de este mundo. Buenos Aires : Libreria del Colegio, 1975 [].

 

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FREUD, S. O estranho. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Trad. sob dir. de Jayme Salomo. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. p. 235-273. (Ttulo original: The standart edition of the complete psychological works of Sigmund Freud)

 

FREUD, S. A interpretao dos sonhos. Edio Standard brasileira. Trad. do ingls e do alemo sob direo de Jayme Salomo. Rio de Janeiro : Imago, 1996b.  24 v. V. IV (Ttulo original The standard edition of the complete psychological Works of Sigmund Freud)

 

GARCA, F. Quando a manifestao do inslito importa para a crtica literria. In: BATALHA, M; GARCA, F. (Org.). In: ______. Vertentes tericas e ficcionais do inslito. Rio de Janeiro: Caets, 2012, pp. 13-29.

 

HETMANN, F. Traumgesicht und Zauberspur. Frankfurt a. Main: Fischer, 1982.

 

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LE GOFF, J. O imaginrio medieval. [Lisboa]: Estampa, 1994.

 

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[Recebido: 20 dez 21 – Aceito: 20 jan 21]


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SEO LIVRE


 

Intertextos de Romeu e Julieta nos folhetos nordestinos

 

 

Intertexts of Romeo and Juliet in northeastern leaflets

 

 

Weber Firmino Alves[23]

https://orcid.org/0000-0001-9012-9112

 

            Naelza de Arajo Wanderley[24]

            https://orcid.org/0000-0002-3622-7317

 

Resumo: As adaptaes constituem um fenmeno longevo que remonta Grcia antiga, quando os poetas iniciaram a prtica da releitura dos mitos, com a liberdade de modific-los e introduzir inovaes. Semelhantemente, os cordelistas nordestinos, ao adaptarem narrativas cannicas para os versos populares dos folhetos, assumiram o papel de tradutores de uma tradio literria que passa a ser escrita em uma linguagem mais prxima do povo. Assim, o presente artigo discute a presena do intertexto de Romeu e Julieta em folhetos nordestinos, incorporando adaptaes dos textos-fonte. A leitura dos textos estabelece uma comparao com os intertextos desse amor contrariado nos cordis de Joo Martins de Athayde, Maria Ilza Bezerra, Sebastio Marinho e Stlio Torquato Lima, a partir das ideias de Abreu (2004), Hutcheon (2013), Kristeva (2005), Rougemont (1988), entre outros. Faz-se uma avaliao da construo do enredo de Romeu e Julieta na tradio literria, com vistas a perceber nas adaptaes para o romanceiro nordestino, suas divergncias e semelhanas, compreendendo-se que as adaptaes no so cpias, mas funcionam como produes distintas, assumindo importantes funes sociais no contexto da cultura-alvo, principalmente a de socializar um texto universal para a cultura local.

Palavras-Chave: Amor contrariado; Romeu e Julieta; Literatura; Cordel.

 

Abstract: Adaptations are a long-lived phenomenon that dates back to ancient Greece, when poets began the practice of re-reading myths, with the freedom to modify them and introduce innovations. Similarly, Northeastern poets, by adapting canonical narratives to the popular verses of the leaflets, assumed the role of translators of a literary tradition that is now written in a language closer to the people. Thus, this article discusses the presence of the Romeo and Juliet intertext in northeastern leaflets, incorporating adaptations from the source texts. Reading the texts establishes a comparison with the intertexts of this forbidden love in the cordel booklets of Joo Martins de Athayde, Maria Ilza Bezerra, Sebastio Marinho and Stlio Torquato Lima, based on the ideas of Abreu (2004), Hutcheon (2013), Kristeva (2005), Rougemont (1988), among others. An evaluation of the construction of the plot of Romeo and Juliet in the literary tradition is made, with a view to realizing in the adaptations for the Northeastern flyers, their divergences and similarities, understanding that the adaptations are not copies, but function as distinct productions, assuming important social functions in the context of the target culture, mainly that of socializing a universal text for the local culture.  

Keywords: Forbidden love; Romeo and Juliet; Literature; Cordel booklets.

 

 

Introduo

 

A histria de Romeu e Julieta conhecida como a grande narrativa ocidental do amor romntico e retrata o sentimento puro de afeio entre dois jovens de famlias rivais que se apaixonam e pem em xeque a tradio de dio entre suas famlias. Embora seja conhecida muito mais pela pea de Shakespeare, a construo dessa histria ocorreu ao longo de vrios sculos at tomar a forma proposta pelo bardo ingls. Entretanto, as adaptaes do enredo no se encerraram na literatura inglesa, pois continuam sendo (re)elaboradas atravs de recontos que so apresentados ao pblico em diferentes suportes e linguagens.

Entre esses recontos encontram-se as adaptaes elaboradas por cordelistas nordestinos, os quais tambm se interessaram pela temtica da histria desses amantes, sobretudo pelo aspecto de contrariedade da realizao amorosa. Em um processo de recorte, inveno e adaptao, estes tradutores do povo colocaram no papel o produto de suas leituras, adaptando a trama ao contexto da regio e linguagem de seu pblico leitor.

 

 

Romeu e Julieta e a temtica do sofrimento amoroso

 

A palavra amor um substantivo cuja definio evoca conceitos diversos, seja devido diversidade do objeto a quem o dirigimos, ou mesmo devido s intenes de quem o experimenta. O verbo amar, seu derivado, pode designar, no uso cotidiano, desde o sentimento de afeio por um familiar, um carinho fraterno, ou mesmo a atrao ertica. A literatura se apropriou deste sentimento como tema de suas produes artsticas porque, enquanto manifestao do fazer humano, a arte reflete nossas experincias.

A clssica histria de Romeu e Julieta remonta a uma tradio literria que tematiza o amor a partir de suas contrariedades, sendo herdeira de diversos enredos cuja trama culmina na morte dos amantes, sob a gide de que Ҏ melhor morrer do que no amar. Na tradio latina, temos cincia do poema Pramo e Tisbe, de Ovdio, publicado na sua Metamorfoses, uma histria que se acredita fazer parte do conjunto de narrativas que inspiraram a composio romejulietiana[25].

Esse mito latino explica a cor avermelhada da amora em face de que, perante uma amoreira plantada junto ao sepulcro do rei Nine, matou-se pelo amor um casal de jovens apaixonados. Os jovens so vizinhos na Babilnia, se apaixonam e fazem votos de casar, mas os seus pais probem o enlace amoroso, impedindo-os at de conversarem. Diante disso, trocam apenas gestos e olhares, at descobrirem uma fenda no muro de suas casas, por onde secretamente trocam declaraes de amor e sentem o hlito um do outro. Ento, pela fenda, os amantes marcam um encontro noturno no sepulcro do rei Nino. Tisbe chegou primeiro, mas acabou se escondendo numa gruta prxima diante da chegada de uma leoa ainda com o sangue da presa na boca, em direo fonte para saciar sua sede. A fera rasgou o leno cado da jovem, deixando-o embebecido de sangue. Ao chegar na fonte, Pramo entendeu que sua amada teria sido tragada por uma fera e resolveu tirar sua prpria vida com sua espada, culpando-se da morte de Tisbe. Por sua vez, chegando junto amoreira, estranhando a mudana na cor da amora que, de branca se tornara escura como o sangue, gritou ao ver o corpo de Pramo. Desesperada, a jovem decide tambm se juntar na morte ao seu amado, conforme registra Ovdio (2016, p.120):

Teu amor, tua mo te ho dado a morte!
Eu tambm tenho mos (exclama a triste),
Eu tambm tenho amor capaz de extremos,
Que esforo me dar para seguir-te.
Sim, eu te seguirei, serei chamada
Da tua desventura a causa, a scia.
Ai! S podia a morte separar-nos...
Mas no, nem ela mesma nos separa.
vs, dai terno ouvido s preces de ambos,
Mseros pais de mseros amantes,
Que une por lei do Fado Amor, e a Morte;
Deixai que o mesmo tmulo os encerre.

E tu, rvore, tu, que ests cobrindo
Agora um s cadver miserando,
Logo dois cobrirs. Sinais conserva
Da tragdia que vs, e por teus frutos
Difunde sempre a cor de luto, e mgoa,
Monumento fatal do negro caso.

            A composio dramtica do poema constri um clima de sensibilidade e pureza entre os amantes, despertando no leitor a compreenso de que, em face do impossvel, quando contrariado, o puro amor no teme e prefere a morte. De tristeza, os alvos frutos da amoreira se tornaram rubros de negra cor, umedecidos pelo sangue dos amantes para nunca mais serem como antes. Finalmente, os pais do casal aceitam reunir as cinzas dos dois numa mesma urna e, apenas na morte, o casal termina junto.

            Encontra-se, pois, estabelecido o enredo que passa a se caracterizar pela composio dos seguintes elementos: jovens apaixonados; oposio do amor dos familiares; ruptura entre a proibio parental; estratgia dos amantes em romper a separao; aparente morte de um dos amantes; suicdio do sobrevivente; consequente suicdio do amante aparentemente morto. Em todos os casos, o derramamento do prprio sangue caracteriza a expresso dos amantes, pois viver sem amor a pior de todas as tragdias.

No Oriente, a histria de Laila e Kais (Laila e Majnun), uma lenda popular rabe de tradio oral que remonta ao sculo VII, foi registrada em mais de oito mil versos, pelo poeta Nizami em 1188, por encomenda do soberano Shirvanshah. A trama conta sobre a paixo proibida de dois jovens, as aflies da separao e a consequente dor da perda. Essa histria de amor da literatura persa foi amplamente utilizada como fonte de inspirao por escritores ao longo dos sculos, fazendo parte do conjunto de histrias clssicas de amores condenados que estabelecem relao com o enredo de Romeu e Julieta.

Seguindo a tradio temtica do sofrimento amoroso, na Idade Mdia, sobretudo na pena dos trovadores, a ideia do amor corts se revelava como a contemplao de um objeto superior, perante quem o poeta se submete, numa condio de vassalagem, experimentando o prazer de amar e sofrer. Acerca disso, Rougemont (1988, p. 63) escreve:

Que a poesia dos trovadores? A exaltao do amor infeliz. Em toda a lrica e na lrica de Petrarca e Dante h somente um tema: o amor; no o amor feliz, pleno ou satisfeito (esse espetculo nada pode engendrar), mas, ao contrrio, o amor perpetuamente insatisfeito; enfim, h apenas dois personagens: o poeta, que oitocentas, novecentas ou mil vezes repete seu lamento, e uma bela, que sempre diz no.

Observemos que as tramas com o tema do sofrer por amor possuem exatamente em seus conflitos a razo de ser da histria, pois os autores encontrados no representam necessariamente algo objetivamente insuportvel, mas os entes renunciam em nome da felicidade. Assim, o tema das narrativas de amor contrariado exatamente a separao dos amantes, mas em nome da paixo e do amor que lhes atormenta, razo pela qual esse sentimento exaltado e transfigurado, mesmo em prejuzo da felicidade e da prpria vida. As tramas de amor contrariado, ento, retratam amores correspondidos que enfrentam dificuldades para se concretizarem. Konder (2007, p.119) destaca, remetendo-se a Agnes Heller que, na obra Shakespeare, os amores so sempre correspondidos. O estudioso, contudo, destaca que, ao longo da produo shakespeariana,

[...] estavam sendo criadas novas condies histricas, nas quais a abertura para o dilogo no podia ficar limitada a algo visvel e tinha de admitir a legitimidade da suspeita do corao na relao com os outros, no confronto da minha subjetividade com a subjetividade deles. Nem os que amavam, nem os que queriam entender o que era o amor podiam recorrer a esquemas fatalistas. O amor, em especial, passava a exigir a participao efetiva dos sujeitos diferentes, movendo-se dos dois lados; ele passava a exigir o espao necessrio para que cada sujeito pudesse fazer suas opes, tomar suas iniciativas.

Rougemont v em Romeu e Julieta, de Shakespeare, a tragdia corts que representa a mais bela ressurreio do mito de Tristo e Isolda, ainda anterior adaptao da pea de Wagner. O estudioso desconsidera, contudo,  que a composio da pea shakespeariana possui trs verses italianas: Il Novellino, de Masuccio Salernitano, de 1476, com a novela 33, que descreve a histria de Mariotto e Giannozza, dois jovens amantes da nobreza, cujo amor proibido pelo dio de suas famlias; Historia novellamente ritroata di due nobili amanti, de Luigi da Porto, de 1530, com traos romejulietianos, pois a trama ocorre em Verona, as famlias so chamadas de Montecchi e Cappelletti, divergindo no fato de que a moa se apaixona primeiro e mais oferecida; Romeo e Giulietta, escrita em 1554 por Matteo Bandello, bispo e poeta do sculo XVI, compondo um conjunto de novelas, cuja escrita se enquadra no que atualmente denominamos conto, visto que o texto original possui uma escrita corrida, numa narrativa curta de nico clmax e desfecho.

Na Inglaterra, Shakespeare tambm no foi o primeiro a adaptar a narrativa romejulietiana, pois, em 1559, Arthur Brooke publicou um longo poema com 3020 versos, intitulado A trgica histria de Romeu e Julieta. A pea de Shakespeare aproveita deste poema a trama da tragdia e informaes sobre a Itlia e os hbitos culturais e sociais do pas. Entretanto, faz mudanas que ultrapassam a transmutao do enredo, pois Brooke estabelecia um axioma moralizante de que a desobedincia dos amantes teria sido a causa de sua tragdia, mas o dramaturgo ingls retira a responsabilidade deles e transfere para o dio das duas famlias. Heliodora (2014, p.98) argumenta:

Copiando a trama muito fielmente de um poema moralizante do ingls Arthur Brooke, que tivera imenso sucesso, em vez de condenar os dois jovens pelo imperdovel pecado de desobedincia aos pais, Shakespeare os faz vtimas da luta entre suas famlias, e escreve no apenas uma grande histria de amor como tambm uma grave denncia contra a guerra civil, ilustradas na pea por meio do conflito entre os Montquio e os Capuleto.

Outra diferena na composio est associada durao dos fatos, pois Shakespeare compe a ao em cinco dias – do conhecimento do casal ao suicdio, ao passo que, no poema de Brook, o casal permanece casado por seis meses. Quando a verso de Shakespeare (2017) comparada com a de Bandello (2012), possvel perceber tambm significativas distines: no desfecho da novela, Romeu se suicida com veneno e a jovem apela para a morte e morre repentinamente de dor; por sua vez, na pea shakespeariana, Romeu se envenena e a jovem se suicida com o punhal do seu amante, aproximando-se da teia significante de Pramo e Tisbe. Ao final, tanto Shakespeare quanto Bandello informam da reconciliao das famlias, sendo que a novela bandelliana prev que tal paz no durou muito tempo depois. A verso shakespeariana concebe um final de paz duradoura e a fala do prncipe de Verona culpa o dio das famlias e a condescendncia do poder do Estado.

            A seguir, ento, examinaremos o modo como o romanceiro nordestino se apropriou do enredo romejulietiano, oferecendo uma nova composio adaptada ao cordel.

 

 

Adaptaes de Romeu e Julieta para os cordis nordestinos

 

Na Grcia antiga, os poetas realizavam releitura dos mitos, com a liberdade de modific-los. Sfocles, por exemplo, entre outras mudanas, altera o nome da me de dipo, introduz a enigmtica esfinge e a peste. Essas inovaes eram adaptaes que chamavam a ateno do pblico, sem a preocupao de fidelidade total ao texto-fonte. Linda Hutcheon (2013, p. 23-24) diz que os adaptadores narram histrias ao seu prprio modo, asseverando que:

Eles utilizam as mesmas ferramentas que os contadores de histrias sempre utilizaram, ou seja, eles tornam as ideias concretas ou reais, fazem selees que no apenas simplificam, como tambm ampliam e vo alm, fazem analogias, criticam ou mostram seu respeito, e assim por diante. As histrias que contam, entretanto, so tomadas de outros lugares, e no inteiramente inventadas. Tal como as pardias, as adaptaes tm uma relao declarada e definitiva com textos anteriores, geralmente chamados de fontes; diferentemente das pardias, todavia, elas costumam anunciar abertamente tal relao

Adaptar um texto significa traduzi-lo para um suporte, gnero ou linguagem diferente. A depreciao que ainda nutrimos pelas adaptaes produto da valorizao romntica da originalidade e do gnio criativo, bem como do prprio apego que fs tm pela fidelidade s fontes. Contudo, as adaptaes so fundamentais cultura ocidental, de modo que as histrias so sempre recontadas por suportes diferentes. Hutcheon (2013, p. 27) afirma:

Trabalhar com adaptaes significa pens-las como obras inerentemente palimpsestuosas [...] assombradas a todo instante pelos textos adaptados. Se conhecemos esse texto anterior, sentimos constantemente sua presena pairando sobre aquele que estamos experienciando diretamente. Quando dizemos que a obra uma adaptao, anunciamos abertamente sua relao declarada com outra(s) obra(s). isso que Grard Genette (1982, p. 5) entende por um texto em segundo grau, criado e ento recebido em conexo com um texto anterior. Eis o motivo pelo qual os estudos de adaptao so frequentemente estudos comparados.

assim que o enredo romejulietiano chega ao Nordeste do Brasil na pena de cordelistas que assumem o papel de contar para o povo a clssica histria de amor adaptada nos versos dos folhetos. Ao menos quatro cordis nordestinos realizaram adaptaes da narrativa de Romeu e Julieta, em tempos diferentes, sob os seguintes ttulos: Romance de Romeu e Julieta (1975), atribudo a Joo Martins de Athayde (Paraba); Romeu e Julieta (2001), de Maria Ilza Bezerra (Piau); Romeu e Julieta em cordel (2011), de Sebastio Marinho (Paraba); Romeu e Julieta: William Shakeaspere (2012), de Stlio Torquato Lima (Cear). A recepo no Nordeste do enredo de amor contrariado lembra os diversos casos no locus sertanejo de conflitos familiares com numerosas mortes.

Assim como Shakespeare, Bandello e tantos outros foram adaptadores, os poetas populares assumem esse compromisso, trazendo para o verso as narrativas de outros, fazendo referncia ou no s fontes de sua composio. Ariano Suassuna (1973 apud SUASSUNA, 2012, p.176) comenta esse papel do cantador nordestino:

O cantador nordestino no se detm absolutamente diante dessas consideraes: apropria-se tranquilamente dos filmes, peas de teatro, notcias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros. Que importa o comeo, se, no final, a obra sua? Ele, depois de tudo, acrescentou duas ou trs cenas, torceu o sentido de trs ou quatro outras, de modo que a obra resultante nova. No era assim que procediam Moilire, Shakespeare, Homero e Cervantes? [...] Os cantadores procedem do mesmo jeito. H mesmo, uma palavra que entre eles, indica o fato, o verbo versar, que significa colocar em verso a histria em prosa de outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e Julieta no fez mais do que versar as crnicas italianas de Luigi Dal Porto e Bandello.

Tradicionalmente, os cordis se apresentam mais atrativos do que os textos em prosa para o pblico leitor por serem escritos em versos compostos num padro que favorece as leituras coletivas em voz alta, pois, conforme Abreu (2004), fazendo referncia s palavras do poeta Manoel dAlmeida Filho, o povo nordestino se acostumou a ler o verso como quem canta.

Ainda segundo essa autora, as adaptaes de textos clssicos realizadas pela literatura de cordel no ocorrem aleatoriamente, mas seguem um certo padro que caracteriza a composio e a recepo dos folhetos. H um certo padro no processo de adaptao dos textos eruditos, pois, de modo geral, os cordelistas escolhem narrativas que sejam prximas do que se convencionou denominar romances de cordel, um subgnero de folheto nordestino com 24 ou mais pginas, com narrativas ficcionais, tematizadas entre o amor e a luta, privilegiando histrias semelhantes s narrativas tradicionais da literatura popular.

Os folhetos nordestinos, publicados desde a segunda metade do sc. XIX tornaram os homens pobres na posio de autores, leitores, editores e crticos de composies poticas, envolvendo pessoas simples no mundo das letras, pelo vis da composio e recepo dos versos. Foi assim que Romeu e Julieta, como diversas outras narrativas cannicas, chegaram ao Nordeste, pelo vis da recepo dos cordelistas, como destaca Abreu (2004, p. 200):

A distino entre a composio e a recepo de folhetos nordestinos e a produo e a leitura de obras literrias eruditas fica clara quando se examinam verses para folheto de narrativas eruditas, fato relativamente comum no interior da literatura de folhetos, em que h verses de A Escrava Isaura, de Bernardo Guimares, de Ubirajara, Iracema, A Viuvinha, de Jos de Alencar, de Amor de Perdio, de Camilo Castelo Branco, de Paulo e Virgnia, de Bernardin de Saint Pierre, de Romeu e Julieta, de Shakespeare, de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, para citar apenas alguns exemplos.

Segundo Abreu (2004), a recepo e nova composio dos poetas leva em conta a seleo de narrativas eruditas com enredos, cujo tema central envolve, basicamente, o amor e a luta, variando entre os trs ncleos temticos seguintes: mulheres virtuosas perseguidas por perversos apaixonados; amores contrariados; e enfrentamentos entre poderosos e valentes. As adaptaes romejulietianas se enquadram, certamente, nos romances de amor contrariado.

Ademais, a estudiosa afirma que a seleo e adaptao dos textos cannicos para o cordel segue os seguintes critrios: semelhana de enredo com os romances tradicionais dos folhetos; transposio da prosa para o verso setisslabos (padro dos folhetos); adequao da sintaxe e do lxico; desembaraamento da trama com a reestruturao do enredo, reduzindo personagens e aes; caracterizao sucinta das personagens com poucos atributos fsicos e morais, basicamente para identific-las no enredo como boas ou ms, viles ou heris, etc.; por vezes, faz-se a alterao do enredo para adequar ao final dos paradigmas do cordel, qual seja, a felicidade dos apaixonados; apresentao dos sentimentos mais por aes do que por descries. Alm disso, geralmente, os folhetos privilegiam o tipo de narrador-onisciente, com o papel preponderante de interpretar as atitudes dos personagens e fazer juzo de valor tico e moral, pois as histrias tm um carter exemplar.

Semelhantemente, os quatro cordis romejulietianos constroem a narrativa de forma lrica, de modo que possvel reconhecer os aspectos destacados por Abreu (2004). Quando comparados, percebemos que os cordis possuem um enredo cuja estrutura bsica pode ser resumida assim: inimizade entre as proles; amor ingnuo entre os filhos dos patriarcas; a igreja como medianeira na reconciliao; casamento secreto entre os namorados/rivais; morte do primo de Julieta; exlio de Romeu; acordo secreto da morte de Julieta; m comunicao com Romeu; morte do conde Pris; suicdio dos jovens.

 

 

Cordis nordestinos: intertextos de Romeu e Julieta

 

A produo literria dialoga com outras produes artsticas, culturais e do prprio universo da literatura. Kristeva (2005) v o texto como um mosaico de citaes, retomando sempre outros textos, seja pela vinculao, a retomada explcita, um ato legtimo ou a ilegalidade do plgio.

A intertextualidade admite a formao de uma grande rede de textos que sempre retoma produes anteriores, cujos fios se encontram com outros, formando um grande mosaico caleidoscpico e multidimensional. Assim, a criao artstica tanto individual como coletiva, pois a memria do artista tambm se compe de citaes, lembranas e esquecimentos involuntrios ou no.

Os quatro cordis romejulietianos dialogam intertextualmente com a tradio europeia da qual so herdeiros, mas, ao faz-lo, reconstroem o prototexto original, adaptando ao novo contexto de produo. Tal processo de reescritura muito mais percebido sob a pena do cordel mais antigo de Athayde, devido ao seu vnculo com a tradio amparada na cultura de conflitos parentais do incio do sculo XX no serto nordestino.

Do ponto de vista do suporte, Athayde e Ilza Bezerra, mantm a publicao no modelo tipogrfico do folheto de cordel. Por outro lado, os cordis de Marinho e Lima foram publicados em livros por editoras de divulgao nacional, respectivamente, a Nova Alexandria e o Armazm da Cultura.

Quanto fonte de adaptao, os trs cordis recentes de Bezerra, Lima e Marinho apresentam-se claramente identificados com a pea de William Shakespeare[26], conforme se pode perceber, a seguir:

Vasculhando alfarrbios

Desbotados na gaveta,

Deparei-me com a obra

Maior de todo planeta:

a shakespeariana

De Romeu e Julieta (MARINHO, 2011, p.13)

 

Atravs desta histria

Resgatarei a leitura

De um drama muito antigo,

Famoso em sua candura,

Porque o cordel arte

E valoriza a cultura.

As personagens do drama

Comoveram muita gente

Por mostrar um grande amor

Profundo e contundente,

Criadas por Shakespeare

Pra se amar eternamente (BEZERRA, 2011, p.1)

 

No h em todo o planeta

Algo que vena o amor,

Que belo qual borboleta,

Forte qual mar em furor.

o que mostra a historieta

De Romeu e Julieta.

Shakespeare seu autor. (LIMA, 2012, p.70)

            No caso do cordel de Athayde, no encontramos nenhuma indicao textual que relacione o texto com a obra de Shakespeare. Todavia, desde que Ariano Suassuna (2018) adaptou o cordel de Athayde para sua pea A histria do Amor de Romeu e Julieta: imitao Brasileira de Matteo Bandello, referenciou, pelo prprio ttulo, o conto italiano como sendo a fonte usada por Athayde. O texto de Athayde, porm, no nos permite ter tanta certeza disso, embora possamos inferir, pelas duas primeiras sextilhas, que o autor tenha conhecido a histria atravs do cinema ou de alguma encenao teatral:

Vou  contar  neste  romance

a  desdita  de  Romeu

na  sua  curta  existncia

de  tudo  que  padeceu

foi a lenda mais tocante

que  a  nossa  imprensa  escreveu

Essa  histria    conhecida

em  quase  toda  nao

no teatro e no cinema

tem  causado  sensao

deixando  amarga  lembrana

no mais brutal corao. (ATHAYDE, 1975, p.1)

            A poesia de Athayde estabelece uma teia intertextual produtiva que ultrapassa os limites da linguagem verbal dos textos fundantes e chega a outros universos semiticos, visto que o prprio poeta admite que esta histria j foi traduzida para outras mdias, como o teatro e o cinema, e j Ҏ conhecida em quase toda nao.

Athayde (1975) incorpora alteraes significativas, como o juzo de valor negativo para a famlia Capuleto (raa tirana), em detrimento descrio positiva da famlia Montquio (famlia honesta e humana). Assim, esta representa o bem e a honra, valores exaltados na tica nordestina, enquanto aquela retrata a impiedade e o autoritarismo.

No conto de Bandello, no h essa dicotomia moralista retratada no romanceiro popular, de modo que um amigo de Romeu, embora reconhea o afeto de Montquio pelo filho, descreve a sua dureza e apego aos bens materiais: [...] voc – deixe-me ser sincero – corts, virtuoso, amvel e de boa cultura, o que muito valoriza sua juventude. Alm disso, nico filho de um pai cuja grande riqueza de todos conhecida; possvel que ele seja avaro e o repreenda se voc esbanja os seus dotes (BANDELLO, 2012, p.19).

            O enredo athaydiano desenvolve o conflito das duas famlias, acrescentando uma tragdia no apresentada em nenhuma das tradies romejulietianas. No cordel, Montquio foi preso por Capuleto e assistiu o assassinato brutal de sua esposa, que ainda tinha Romeu nos braos. A composio deste conflito aumenta o drama, pois no houve qualquer misericrdia do tirano Capuleto:

Montequio inda pediu

mas ele no atendeu,

disse o duque a um carrasco

esse logo obedeceu

dos braos da propria me,

foi arrancado Romeu. [...]

Ali tirou um punhal

Que na cinta carregava

Cravou-o no peito da jovem

Dizendo: eu bem que jurava;

O punhal ia rangindo

Com a fora que ele botava

Disse ela: senhor duque

seu corao perverso

tenha d do meu filhinho

que ainda fica no bero;

ele calcou no punhal

que sumiu-se at no tero (ATHAYDE, 1975, p.4-5)[27]

            Na continuidade da narrativa, Montquio retira o punhal da esposa e jura que seu filho haver de vingar-se do algoz inimigo. Como se no bastasse o assassinato a mo armada, Capuleto arrastou pela cidade o corpo da esposa de Montquio e mandou jog-la no mar, privando-lhe at de um enterro digno.

Alm disso, a presena de Romeu no baile de mscaras da famlia Capuleto retratada de forma diferente. No conto, Romeu reconhecido e tolerado sem troca de ofensas, sobretudo por ser muito jovem. Na verso de Athayde, o jovem Montquio comparece com o punhal para vingar-se, conforme incumbncia do pai. Entretanto, ao se apaixonar por Julieta, Romeu obrigado a fazer uma escolha entre o amor de seu pai e o da jovem Capuleto, numa tenso cuja escolha pesa a balana contra o cdigo de tica nordestino, conforme descreve o poeta:

Por fim falou o mancebo:

escuta, loura criana

do castelo do meu pai

vim tomar uma vingana;

e arrastando um punhal

aos ps da moa lhe lana

Diante a tua beleza

eu sinto o peito chagado

pelos teus olhos azuis

tornei-me escravizado

e te confesso sem pejo

Por ti, vivo apaixonado

Teu pai matou minha me

Quando eu era pequenino,

E eu ving-lo jurei

Mas a fora do destino

Fez com que tudo acabasse

Ante o teu porte divino

Serei perjuro e jamais

Ao meu pas voltarei

Aos teus ps palida imagem

Como escravo viverei

Juro-te em nome dos cus

Que junto a ti morrerei (ATHAYDE, 1975, p.15,16)

            A deciso de Romeu est tomada e no h retorno, razo pela qual o cordelista emite seu parecer, apresentando um juzo de valor com base na tica sertaneja para a qual a desonra famlia uma atitude imperdovel e, diante da qual, o eu lrico esquece a abnegao dos jovens apaixonados e execra:

 

Quem possui este romance

conhece bem o que leu,

a esposa de Montequio

em que condio morreu

tambm conhece a misria,

e covardia de Romeu. [...]

Romeu fez como saguim

que se ilude com careta

bastou ver no peito dela

um ramo de violeta

foi perguntar logo seu nome

lhe dissera; Julieta

Nas condies que ele estava

no tinha mais um rodeio

era vingar-se de tudo

fingindo como um passeio

no tinha o que perguntar

quem bonito nem feio

Mas ele no fez assim

depois que se achou na sala

viu Julieta danando

fez tudo pra namor-la

inda ela sendo uma deusa

ela devera odi-la

Romeu foi falso a seu pai

por isto teve castigo

como faltou-lhe a coragem

para enfrentar o perigo

casou-se com a prpria filha

do seu fatal inimigo (ATHAYDE, 1975, p.30,31)

O enredo athaydiano construiu a imagem de um Montquio vitimado para, ao final, emitir um juzo de valor sobre a tomada de atitude de Romeu ao renunciar a vingana em nome do amor filha do inimigo. A composio de cordelista certamente considera o silncio que o enredo bandelliano realiza em relao esposa de Montquio, pois, no conto, a famlia Capuleto composta por um casal e a sua filha, mas isso no sucede na famlia Montquio, em que apenas o pai e o filho so retratados. Certamente, essa uma das razes porque Bandello tido como fonte de Athayde e no Shakespeare, para quem a me de Romeu morreu devido ao seu exlio em Mntua.

Na verso de Athayde, Romeu no apresentado como um heri, assim como acontece nas verses clssicas ou mesmo no romanceiro popular dos outros cordis. Aqui, ele tratado como um traidor dos seus progenitores, algum que renegou o seu sangue. No dizer de Oliveira (2019, p.1003), o cordel assumindo o papel de correia transmissora de alguns valores culturais nordestinos. O estabelecimento de uma moral no plena novidade dos romances nordestinos, pois, conforme Oliveira (2019, p.998), os autores europeus j o faziam:

Brooke pregava em seu poema que a desobedincia de Julieta foi a causa deflagradora da tragdia dos dois jovens, uma vez que Julieta no quis ouvir os conselhos da me. Com seu poema, Brooke deixa para os jovens a lio de que o ato de no obedecer s ordens dos pais pode gerar consequncias amargas e irreversveis. Esse tom moralizante foi relutado por Shakespeare em sua pea que retirou a responsabilidade da tragdia das mos de Julieta, transferindo-a para as duas famlias nobres e o seu eterno dio.

No cordel de Lima (2012), a moral da narrativa pronunciada no incio e no final do cordel, exaltando o poder do amor que une o casal na morte e pacifica a relao entras famlias rivais:

No h em todo o planeta

Algo que vena o amor,

Que belo qual borboleta, 

Forte qual mar em furor.

o que mostra a historieta

De Romeu e Julieta.

Shakespeare seu autor. [...]

Mas, no fim, o amor ganhou

pois o dio ali morreu

E a verdade floresceu

Mesmo sendo borboleta,

Nenhuma fora excedeu

Ao amor, neste planeta

Diz Shakespeare, no eu,

Na histria que escreveu

De Romeu e Julieta. (LIMA, 2012, p.70,74).

Na narrativa de Bezerra (2011), a moral aparece tambm no final do romance, enfatizando as consequncias do dio e o modo como a paz selou-se:

E a que ponto chega o dio

Ficou marcado no instante.

A Maldio teve o fim

Selou-se a paz doravante.

Isto serviu de lio. (BEZERRA, 2011, p.31)

O tempo da narrativa semelhante em todos os cordis, tal como em Shakespeare cuja ao transcorre num perodo de cinco dias, quando os jovens se conhecem, se casam, consumam o amor, Romeu foge e acabam se encontrando no sepulcro com a morte.

No cordel de Lima (2012), o casal se conhece na festa, com Romeu mascarado e oculto, resolvem se casar e a morte de Teobaldo no desenvolvida, como um elemento da composio que potencializou o conflito das famlias, apenas exilando Romeu, sem qualquer comprometimento de Julieta. Nos folhetos de Bezerra (2011) e de Marinho (2011), por outro lado, Romeu reconhecido por Teobaldo no baile de mscaras, mas Capuleto reconhece a virtude do jovem Montquio e tolera sua presena, orientando o sobrinho a nada fazer, tendo em vista que o rapaz se mostrava virtuoso e educado. Em todos os cordis, Romeu mata Teobaldo apenas aps a provocao deste, que chega a matar Mercrio, amigo do jovem Montquio.

Entretanto, apenas os cordis de Bezerra (2011) e de Marinho (2011) desenvolvem o drama de Julieta entre o primo morto e o marido exilado, exaltando ainda mais a natureza do conflito familiar e desencadeando a angstia da moa. Na verso de Bezerra (2011), a senhora Capuleto, relacionava o sofrimento de Julieta morte do Teobaldo, e promete que Romeu pagaria, sem saber, contudo, que a jovem chorava pela saudade do seu esposo.

Somente no cordel de Marinho (2011), aparece a senhora Montquio, apelando ao prncipe para no estabelecer a pena capital a Romeu devido morte de Teobaldo, tal como requeria a senhora Capuleto. Tal construo estabelece uma forte distino do carter narrativo de Athayde, para quem a morte da senhora Montquio no incio do folheto elemento fundamental do conflito entre os rivais.

Cabe ainda registrar que as ltimas estrofes dos cordis de Bezerra e Marinho encerram em forma de acrstico, um carimbo de autoria caracterstico do cordel.

 

 

Consideraes finais

 

talo Calvino (1993, p.11) define um clssico como um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. No que pese a diversidade de reescrituras de Romeu e Julieta, possvel consider-lo o grande enredo do ocidente, com o qual qualquer narrativa de amor proibido ser sempre comparada. Sendo assim, no de se estranhar que os poetas populares tenham encontrado razes para traduzir Romeu e Julieta para o cordel.

Enfatizamos, porm, que as adaptaes dos cordis demonstram a liberdade dos autores em contar ao seu modo a trama. Contudo, do ponto de vista do enredo, foi possvel perceber muito mais liberdade no texto de Athayde, sobretudo pela incorporao de fatos e temas que permitem a identificao do pblico leitor dos folhetos com o texto. Entretanto, no se percebe o mesmo processo criativo nos demais textos aqui estudados, que se mostram mais propensos a cristalizar a histria de Shakespeare.

 

 

Referncias

 

ABREU, Mrcia. Ento se Forma a Histria Bonita - Relaes entre Folhetos de Cordel e Literatura Erudita. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 199-218, jul./dez. 2004. Disponvel em: <http://www.scielo.br/j/ha/a/QL9WD9 8KHC5wQFZY7CZ6LMK/?lang=pt.> Acesso em: 27 maio 2021.

 

ATHAYDE, Joo Martins de. Romance de Romeu e Julieta. Juazeiro do Norte: Joo Martins de Athayde, 1975.

 

BANDELLO, Matteo. Romeu e Julieta. So Paulo: Paulus, 2012.

 

BEZERRA, Maria Ilza. Romeu e Julieta. 3. ed. So Paulo: Editora Luzeiro Ltda., 2011.

 

CALVINO, Italo. Por que ler os clssicos. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

HELIODORA, Barbara. Shakespeare: o que as peas contam: tudo o que voc precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos. Rio de Janeiro: Edies de Janeiro, 2014.

 

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptao. Florianplis: UFSC, 2013.

 

KONDER, Leandro. Sobre o amor. So Paulo: Boitempo, 2007.

 

KRISTEVA, Julia. Introduo semanlise. 2. ed. So Paulo: Perspectiva, 2005.

 

LIMA, Stlio Torquato. Primas em cordel: verses rimadas de 12 clssicos da literatura universal. Fortaleza: Armazm da Cultura, 2012.

 

MARINHO, Sebastio. Romeu e Julieta em Cordel. So Paulo: Nova Alexandria, 2011.

 

NIZAMI , Laila e Majnun: A Clssica histria de amor da literatura persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.

 

OLIVEIRA, Elins de A. V. e. Romeu e Julieta na Histria da Literatura Ocidental. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2019. Disponvel em: <https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/ Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/29.pdf> Acesso em: 06 ago. 2021

 

OVDIO, Pblio Naso. Metamorfoses. Porto Alegre: Concreta, 2016.

 

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. So Paulo: Peixoto Neto, 2017.

 

SUASSUNA, Ariano. A histria de amor de Romeu e Julieta. In: ______. Teatro Completo de Ariano Suasuna: entremezes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. v.3.

 

SUASSUNA, Ariano. A compadecida e o romanceiro nordestino. In: ______. Almanaque Armorial. 3. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2012.

 

 

[Recebido: 16 ago 21- Aceito: 16 set 21]


 

O estatuto mtico e a dimenso argumentativa em narrativas de enterro produzidas em comunidades quilombolas

 

 

The mythical status and the argumentative dimension in buried treasure narratives produced in quilombola communities

 

Emanuel da Silva Fontel[28]

https://orcid.org/0000-0002-7805-6464

 

Regina Clia Fernandes Cruz[29]

https://orcid.org/0000-0003-3985-1024

 

Benedita do Socorro Pinto Borges[30]

https://orcid.org/0000-0002-8188-9563

 

Thaynara Thays Ferreira Paixo[31]

https://orcid.org/0000-0002-7363-8406

 

Resumo: Neste artigo, discutimos como a construo de mitos se articula dimenso argumentativa em narrativas orais, mais especificamente em narrativas de enterro, as quais habitam o imaginrio da cultura quilombola e se referem ao enterramento de um tesouro por entidades mticas, que, considerando as qualidades dos indivduos da comunidade, revelam-lhe no s a existncia da riqueza, mas tambm o local onde ela est enterrada e as instrues necessrias ao resgate. O corpus analisado tem sido estudado por Borges (em andamento) e foi coletado em oito comunidades quilombolas do Baixo Tocantins - PA: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola, Taxizal, Tomzia, Frade e Laguinho. As bases terico-metodolgicas fundamenta-se na Teoria da Argumentao no Discurso (AMOSSY, 2016, 2020), que prope a noo de dimenso argumentativa como um efeito de sentido projetado pelo enunciador, que pretende no a adeso explcita do enunciatrio a uma tese, mas to somente lhe alterar os modos de ver e de sentir; na noo de mito proposta por Chau (2020); nos estudos acerca das narrativas de enterro desenvolvidos por Fernades (2007). As anlises demonstram que enunciador e narrador mobilizam operaes argumentativas e retricas para divulgar e estimular valores ticos e morais importantes para a sobrevivncia e resistncia da comunidade.

Palavras-chave: Narrativa oral; Narrativa de enterro em comunidade quilombola; Estatuto mtico; Dimenso argumentativa; Aspectos retricos.

Abstract: This research aims to discuss how the construction of myths is articulated with the argumentative dimension in oral narratives, more specifically in buried treasure narratives. They inhabit the imagination of quilombola culture and refer to the burial of a treasure by mythical entities, which, considering the qualities of the individuals in the community, reveal the existence of wealth, the place where it is buried and the necessary instructions for its rescue. The analyzed corpus has been studied by Borges (in progress) and was collected in eight quilombola communities in Baixo Tocantins - PA: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola, Taxizal, Tomzia, Frad and Laguinho.  The theoretical-methodological bases subscribe to the Theory of Argumentation within Discourse (AMOSSY, 2016, 2020), which proposes the notion of argumentative dimension as an effect of meaning projected by the enunciator, who intends not to explicitly persuade the enunciatee to a thesis, but only to change their ways of seeing and feeling; to the notion of myth proposed by Chau (2020); and to studies about burial narratives developed by Fernades (2007). The analyzes demonstrate that both enunciator and narrator mobilize argumentative and rhetorical operations to disseminate and encourage ethical and moral values ​​that are important for the communitys survival and resistance.

Keywords: Oral narrative; Buried treasure narrative in a quilombola community; Mythical status; Argumentative dimension; rhetorical aspects.

 

 

Introduo

 

A narrativa de enterro[32] caracteriza-se como um gnero discursivo que compe as prticas orais cotidianas de certas comunidades. Fernandes (2007), em trabalho seminal, coletou e analisou vrias formas narrativas orais no Pantanal sul-mato-grossense. Entre essas formas, esto as aqui denominadas narrativas de enterro  quilombola[33], que tm sido estudadas, no mbito da Universidade Federal do Par, por Borges (em andamento) e por Fontel (em andamento)[34]. Parte desse estudo j se encontra publicado em Borges et. al. (2020). O corpus analisado foi coletado na regio do Baixo Tocantins no Estado do Par, onde se encontram as comunidades remanescentes de quilombo: Itabatinga, Itapocu, Laguinho, Mola, Taxizal, Tomzia, Frade e Laguinho. Parte desse material exposto no presente artigo.

Nas narrativas de enterro quilombola, verificamos a presena de um narrador que lana mo de vrias estratgias argumentativas com diferentes funes, como a de produzir uma instncia discursiva cujo status garante a autoridade daquilo que enuncia. Desse modo, pode-se atribuir ao narrador um ethos afianador das suas credenciais para contar histrias nas quais o enunciatrio possa crer. A construo desse estado de crena no pleiteia explicitamente a adeso a nenhuma tese. Muitas vezes h investimentos em afetos e em sentimentos possivelmente despertados no enunciatrio, adentrando, em virtude disso, no domnio do pathos. Assim, o narrador no parece, stricto sensu, pretender persuadir ou convencer o enunciatrio, mas apenas alterar o seu estado de crena. Nos casos sob anlise, parece pretender retirar o enunciatrio de um estado de possvel descrena e desconfiana acerca da veracidade da existncia de um tesouro que foi enterrado por uma entidade mtica na comunidade e lev-lo a um estado de crena na existncia do referido tesouro, o que configura, nos termos de Amossy (216, 2020), a formulao de uma dimenso argumentativa, entendida como a configurao que um discurso assume quando os objetivos de convencer ou persuadir no atendem a um objetivo programtico, isto , no so primeiramente constitudos para fazer com que o interlocutor adira a uma tese especfica. A busca de adeso a teses , por assim dizer, acidental ou secundria. Nesses casos, afirma a autora, o mais importante para o enunciador alterar os modos de ver e de sentir do enunciatrio (AMOSSY, 2020).

Nesse processo de fazer crer nas narrativas de enterro, entram discursivamente em cena uma srie de entidades mticas associadas a explicaes de base sobrenatural, atuando, dessa maneira, no plano simblico e constituindo, portanto, um mito (CHAU, 2020), que tm em vista revelar e certificar a existncia do tesouro enterrado. O conhecimento do narrador acerca da existncia tanto do tesouro quanto das entidades que o gerenciam e das condies que elas impem ao escolhido para que ele tenha acesso s riquezas o credenciam a dar conselhos e ensinamentos de ordem tica e moral, a fim de garantir a existncia, o bom funcionamento e a resistncia da comunidade quilombola

Adiante, situamos o gnero discursivo objeto do presente estudo, a noo de estatuto mtico e apresentamos ainda uma anlise possvel para as estratgias utilizadas pelo enunciador com vista a sensibilizar o enunciatrio relativamente a determinados valores morais e ticos.

 

 

O gnero narrativa de enterro

 

Nesta seo, apresentamos os diferentes significados e a estrutura narrativa desse gnero nos termos de Fernandes (2007). Em Borges et. al (2020) e em Paixo; Borges; Cruz (2020) tanto os significados quanto a estrutura esto amplamente explicados e exemplificados, razo por que no procederemos de igual modo. Remetemos esses trabalhos ao leitor interessado no tema.

As narrativas de enterro caracterizam-se como uma narrativa oral cujo tema central a saga de uma pessoa em busca de um tesouro encantado, o qual foi revelado por meio de uma fora sobrenatural (FERNANDES, 2007). O pioneiro nos estudos sobre o tema foi Fernandes (2007), que coletou e registrou vrias narrativas orais no Pantanal sul-mato-grossense, entre elas, as narrativas de enterro. O nome enterro foi dado pelos pantaneiros, pois geralmente o tesouro perdido est escondido debaixo da terra, o que tambm simboliza a relao do enunciador com o espao onde ele habita.

Apesar de caracterizarem-se como variaes de uma mesmo gnero discursivo, dada a apenas relativa estabilidade dos enunciados (BAKHTIN, 2011) e dividirem a mesma estrutura formal – o que foi comprovado no estudo de Borges et. al. (2020) –  as narrativas de enterro coletadas no pantanal e as narrativas de enterro coletadas em comunidades quilombolas so diferentes no que se refere a alguns aspectos do contedo temtico, o que pode ser justificado pelas diferenas histricas e sociais de seu contexto de produo.

O ponto comum entre as duas que a ausncia de bancos para depsito do dinheiro justificava o enterro, porm, cada uma dessas narrativas apresenta motivaes diferentes para que ele acontecesse. Segundo Fernandes (2007), nas narrativas de enterro pantaneiras so citados fatos histricos locais, como, por exemplo, a Guerra do Paraguai. Algumas fazem meno poca das misses.

As comunidades quilombolas do Baixo Tocantins foram construdas por meio de um processo histrico-social iniciado no tempo da escravido. Atualmente, essas comunidades remanescente, apesar de no serem mais constitudas por escravos, tentam manter sua identidade e culturas preservadas. As memrias desse passado so recorrentes nas narrativas coletadas nas comunidades.

O gnero discursivo em estudo pode ser definido, de forma geral, como uma narrativa em que um tesouro enterrado revelado a uma pessoa por meio de acontecimentos sobrenaturais. Fernandes (2007) classificou as narrativas de enterro em quatro categorias, considerando a variao de significados: o protoconto, a explicativa, a descritiva e o logro.

Etimologicamente, protoconto pode significar conto inacabado, porm o verdadeiro sentido dessa categoria de narrativa de enterro no se refere a uma histria acabada, mas sim em gestao, posto que se desenvolve medida que a histria transcorre. Segundo Fernandes (2007, p. 287), o protoconto traz em seu significado certa aproximao com o conto maravilhoso, porque em ambos Ҏ ressaltada a provao do escolhido e do heri. O heri do conto maravilhoso passa por percalos e provaes at a resoluo dos problemas.  Dessa mesma forma, nas narrativas de enterro quilombolas, o escolhido enfrenta algumas dificuldades at encontrar e desenterrar o tesouro.

Na narrativa do tipo explicativa, h a insero de elementos que so encontrados em mitos e lendas, com o objetivo de explicar a existncia do enterro. Ou seja, quando um fenmeno incompreensvel acontece, lana-se mo de explicaes do imaginrio popular para explic-lo. Nas narrativas pantaneiras, Fernandes (2007) observou que o mito Me de Ouro era mencionado para explicar manifestaes de enterro. J nas narrativas de enterro quilombolas encontramos a histria do Pretinho, que, segundo a narradora, antiga. A apario desse ser, que faz aluso lenda do saci, j faz parte do imaginrio da comunidade e usada para justificar a existncia de um tesouro encantado.

 Alm disso, como afirma Borges (em adamento), os relatos de apario de um ser com a mesma cor de pele dos moradores produzem uma identificao e assumem uma posio de autoridade ao orientar os indivduos para atitudes e valores que estimulam a resistncia do povo negro.

A narrativa do tipo descritiva, por sua vez, tem como finalidade descrever elementos do enterro, ou suas partes, geralmente a marcao, a manifestao e a provao. Nessa categoria de narrativa, no h um enredo propriamente dito. O foco explicar os detalhes do enterro, como: o local do tesouro, os tipos de manifestaes que podem acontecer e as provaes pelas quais o escolhido pode passar.

Alm da classificao das narrativas de enterro de acordo com seu significado, Fernandes (2007) identificou que a estrutura formal desse gnero poderia ser composta de at seis partes: origem, anunciao, manifestao, marcao, provao e desenlace.

A parte denominada origem transporta a narrativa ao eixo da temporalidade, (FERNANDES, 2007). A origem revela a procedncia da riqueza enterrada, no caso das narrativas quilombolas, geralmente resgatado o tempo da escravido.

Outra parte da estrutura definida por Fernandes (2007) a anunciao: revelao do enterro ao escolhido, por meio de sonhos, vises, vozes, dentre outros.

H casos ainda em que, quando o tesouro no revelado por meio de sonhos ou vises, o prprio enterro se revela ao escolhido. Nesse caso, trata-se da manifestao, que tambm est diretamente relacionada ligao existente entre o narrador e a terra, pois se acredita que, quando o ouro entra em contato com a terra, torna-se encantado e demonstra vontade prpria ao se revelar a quem se supe ser merecedor dele, declara Fernandes (2007).

A marcao outra parte da estrutura da narrativa de enterro que pode acontecer de duas maneiras distintas: geograficamente, situao em que o dono do enterro conta ao escolhido onde est o tesouro; ou simbolicamente, quando o escolhido, para quebrar o encanto do tesouro, marca, ou seja, batiza o enterro, acendendo uma vela, pingando gotas do prprio sangue etc.

A quinta parte da estrutura chamada de provao e acontece quando o escolhido passa por testes para provar que merecedor do tesouro. A honestidade e a moralidade do escolhido so testadas, especialmente em casos em que o tesouro deve ser dividido.

Finalmente, o desfecho da histria se d no desenlace, o qual pode ser positivo ou negativo. Essa parte revela o que aconteceu com o escolhido e o enterro: o xito, com a retirada do enterro e a obteno da riqueza; a perda, que pode ocorrer porque o escolhido no teve coragem suficiente para passar pela provao ou quando enganado por algum que rouba seu tesouro.

Fernandes (2007) destacou que esse gnero discursivo expressa um anseio coletivo, transmite valores, costumes e preceitos morais dos indivduos de uma comunidade. A estrutura formal da narrativa percebida pelo narrador, o qual, por meio da conscincia lingustica, movimenta suas partes de forma criativa, gerando atualizaes. Segundo o autor:

Por conscincia lingustica compreende-se a assimilao, no mbito textual, de elementos constitutivos de uma narrativa pelo ouvinte-leitor e do modo como eles se apresentam na reatualizao do texto, quando o ouvinte-leitor torna-se narrador. A conscincia lingustica capacita o narrador a articular e a associar motivos, invariantes e variveis na atualizao de um arqutipo. (FERNANDES, 2007, p. 229).

Em resumo, as narrativas de enterro podem apresentar quatro diferentes significados, que so: protoconto, o qual apresenta certa semelhana com o conto maravilhoso; a narrativa explicativa, que utiliza os mitos e lendas como comprovao da existncia do enterro; a descritiva, a qual tem como finalidade descrever e detalhar algumas partes da estrutura da narrativa;  o logro, narrativa na qual o desfecho da histria se d com o roubo do tesouro. Sua estrutura pode ser constituda de at seis partes: origem, anunciao, manifestao, marcao, provao e desenlace.

Desse modo, constatamos que a narrativa de enterro de cada comunidade possui uma identidade prpria, que vai ao encontro dos seus valores e costumes, no entanto, essas diferentes narrativas parecem encontrar-se no alinhavado produzido pelos diferentes aspectos mticos que as atravessam. A seo seguinte apresenta uma breve discusso terica acerca noo de mito, na qual este artigo se baseou.

 

 

Estatuto mtico da narrativa de enterro

 

Um caixo aluminado, uma galinha choca e o Pretinho[35] so alguns dos elementos sobrenaturais presentes nas narrativas.

Visto que a prpria definio de narrativa apresenta um carter fantstico – quando a revelao se d exclusivamente ou por meio de sonhos e vises (anunciao), ou por meio de aparies sobrenaturais (manifestao) –, fica evidente o estatuto mtico das narrativas de enterro. Para compreender esse estatuto, devemos levar em considerao a necessidade intrinsecamente humana de tentar entender e explicar os fatos e os fenmenos incompreendidos, o que resulta na criao de mitos. Segundo Chau (2000):

Um mito uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da gua, dos ventos, do bem e do mal, da sade e da doena, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raas, das guerras, do poder etc.).

A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar) (CHAU, 2000, p. 32).

A definio acima descrita se mostra pertinente para o entendimento da presena do mito na narrativa de enterro, pois, de fato, entidades mticas so mobilizadas para justificar a origem do tesouro. Chau (2000) afirma, ainda, que o mito:

tem como funo resolver, num plano simblico e imaginrio, as antinomias, as tenses, os conflitos e as contradies da realidade social que no podem ser resolvidas ou solucionadas pela prpria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruda por ele  (CHAU, 2000, p. 396).

No entanto, na narrativa de enterro, no a inteno de resolver conflitos e contradies da realidade social que justifica o emprego de elementos mticos e lendrios, mas sim o intuito de explicar o enterro de um tesouro. Observamos que a prpria meno ao enterro j revela o seu lugar na dimenso do fantstico.

Dessa forma, consideramos relevante a explicao de Benjamin (1987) sobre a narrativa:

Cada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A razo que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da informao (BENJAMIN, 1987, p. 203).

A liberdade de poder ler o mundo conforme suas crenas permite aos moradores das comunidades onde os dados foram coletados utilizar o extraordinrio, o mtico para explicar os acontecimentos do mundo real.

Segundo Campbell (1990, p. 25), preciso pensar os mitos de forma incorporada vida, pois a mitologia tem muito a ver com os estgios da vida, com as cerimnias de iniciao, quando voc passa da infncia para as responsabilidades do adulto, da condio de solteiro para a de casado. Todos esses rituais so ritos mitolgicos. Esses rituais so notrios em toda a trajetria do escolhido: na anunciao e na manifestao do tesouro; na marcao simblica (batismo do tesouro); na provao, na qual o escolhido passa por provas que exigem que ele demonstre sua coragem (seguir uma galinha choca que sai da boca de um pote, por exemplo) ou honestidade (dividir a riqueza com algum).

Alm disso, os elementos e objetos das narrativas de enterro quilombolas que recebem essa segunda camada, situada no campo mtico, fazem parte da identidade cultural e dos costumes da comunidade: rvores, igaraps, tachos, fornos, bilhas. De acordo com Lvi-Strauss (1993):

cada mitologia local, confrontada com uma determinada histria e com um determinado meio ecolgico, muito nos ensina acerca da sociedade de que provm, expe-lhe as foras motrizes, esclarece o funcionamento, o sentido e a origem das crenas e costumes /.../ (LVI-STRAUSS, 1993, p. 174).

Diante do exposto, fica evidente, portanto, que as narrativas de enterro esto diretamente ligadas ao mtico. A prpria definio desse gnero discursivo e os objetos mencionados no enredo das histrias esto inseridos no campo do fantstico.

A seo seguinte apresenta nove segmentos de vrias narrativas que compem o corpus da pesquisa. Com base neles, busca-se demonstrar como o estatuto mtico atua na configurao da dimenso argumentativa do gnero sob anlise.

 

 

Mitos e construo da dimenso argumentativa em narrativas de enterro quilombolas: um exerccio de anlise

 

Nesta seo, discutimos a caracterizao de uma dimenso argumentativa com base na maneira como algumas categorias retricas aliam-se a aspectos articulados ao que temos denominado de estatuto mtico das narrativas de enterro quilombolas. Nessa articulao, entidades mticas intervm tendo em vista alterar o estado de crena do enunciatrio. Discutiremos ainda as maneiras como as narrativas de enterro contribuem para a transmisso e a fomentao de princpios e de valores morais comunidade.

Na provao, que corresponde a uma das partes da estrutura formal dessas narrativas, o escolhido deve enfrentar situaes que causam medo ou realizar um pedido que o ser sobrenatural determinou como condio para ser merecedor do tesouro. Bom carter, coragem, honestidade, lealdade e esperteza so algumas das virtudes que o escolhido deve apresentar para receber a recompensa. Alis, a coragem a caracterstica mais exigida como comprovao de merecimento do tesouro. Observemos o segmento da narrativa Maldio:

SEGMENTO 01

quando a alma vem dizer pras pessoa n (+) que t o dinheiro se a pessoa for l no tiver medo ele tira o dinheiro e fica rico.

Para descrever o raciocnio presente nesse trecho, podemos aplicar o modelo entimemtico, proposto por Amossy (2020, p. 150) e abaixo exemplificado. Segundo a autora, por meio desse quadro, pode-se reconstituir um raciocnio silogstico a partir dos entimemas que se encontram subsumidos no discurso:

 

Quadro 1. Modelo entimemtico aplicado ao segmento da Prova de coragem

Premissa maior (ausente)

preciso no ter medo para conseguir tirar o dinheiro e ficar rico.

Premissa menor

Se o escolhido no tiver medo.

se a pessoa for l no tiver medo

Concluso

Logo, conseguir tirar o dinheiro e ficar rico.

ele tira o dinheiro e fica rico

    Fonte: Elaborado pelos autores com base no modelo de Amossy (2020).

 

De acordo com Amossy (2020), o silogismo pode ser definido, de maneira ampla, como todo raciocnio dedutivo; constitudo de duas premissas – premissa maior e premissa menor – e de uma concluso. Conforme explica Fiorin (2018, p. 17), Aristteles dividia os raciocnios entre necessrios e preferveis (ou provveis).

O raciocnio necessrio aquele cuja concluso decorre necessariamente das premissas colocadas, ou seja, sendo verdadeiras as premissas, a concluso no pode no ser vlida (FIORIN, 2018, p. 17). Do ponto de vista aristotlico, o tipo perfeito de raciocnio necessrio era o silogismo demonstrativo. Podemos utilizar, a ttulo de exemplificao, o clssico Todos os homens so mortais (premissa maior); Scrates um homem (premissa menor); Logo, Scrates mortal (concluso).

Os raciocnios preferveis so aqueles cuja concluso possvel, provvel, plausvel, mas no necessariamente verdadeira, porque as premissas sobre as quais ela se assenta no so logicamente verdadeiras (FIORIN, 2018, p. 18). Um exemplo desse tipo de raciocnio o silogismo dialtico ou retrico. Emprestamos o exemplo utilizado pelo autor:

 

Todo professor dedicado.

Ora, Andr professor.

Logo, Andr dedicado.

(FIORIN, 2018, p. 18)

 

provvel, possvel que Andr seja um professor dedicado, mas no logicamente verdadeiro. Desse modo, a admisso de certas premissas e, portanto, de determinadas concluses depende de crenas e de valores (FIORIN, 2018, p.18). Os raciocnios preferveis so estudados pela retrica, enquanto os raciocnios necessrios pertencem ao campo da lgica.

O entimema, por sua vez, corresponde a um silogismo truncado que se utiliza do implcito, na medida em que o enunciador pode ocultar tanto a premissa maior quanto a concluso, supondo que, mesmo no sendo enunciadas, sero deduzidas pelo ouvinte.

Retornando ao exemplo do modelo entimemtico, podemos afirmar que provvel, ou seja, possvel que o escolhido, se no tiver medo, consiga tirar o tesouro enterrado e ficar rico, porm, no logicamente provvel. Tambm podemos provar que se trata de algo plausvel se utilizarmos uma prova dentro do prprio gnero discursivo: a narrativa com significado de logro, em que o escolhido, mesmo apresentando coragem, ao final, se no for esperto o suficiente, pode ter seu tesouro roubado. Essa reconstruo tambm demonstra que pathos, compreendido como as emoes que o enunciador tenta gerar no enunciatrio e logos, que, grosso modo, corresponde ao eixo que articula a razo linguagem, so muitas vezes indissociveis no funcionamento discursivo (AMOSSY, 2020).

Nem todos os ensinamentos e valores que podem ser transmitidos por meio das narrativas de enterro so expostos explicitamente. o que demonstra o segmento 2, que apresenta um trecho da narrativa Prova de coragem. Como sugere o ttulo, o enredo voltado para a demonstrao de coragem do escolhido:

 

SEGMENTO 02

e a falaro pra ele OLHA se tu trazer o pacro (++) corajuso (+) se tu no conseguir tirar com pacro c vo/ c vo apanh /.../ agora se tu desist num vai ficar por isso vai acontecer alguma cuisa contingo (Borges em andamento)

 

De acordo com o segmento 02, o escolhido poderia convidar um parceiro que apresentasse coragem suficiente para ir at o fim da empreitada. A desistncia implicaria punio: eles iriam apanhar, ou seja, seriam castigados fisicamente, e, ainda mais, aconteceria algo que a voz – como o narrador denomina esse ser sobrenatural – no especifica (vai acontecer alguma cuisa contigo). Diferentemente do que apresenta o segmento 02, no segmento 03, a provao anunciada pelo ser sobrenatural. Nessa narrativa, a voz somente diz que ele e o parceiro devem ser corajosos. O narrador continua a histria dizendo que o escolhido optou por ir sozinho retirar o dinheiro. O segmento 3, abaixo, apresenta a estrutura narrativa correspondente provao na narrativa Prova de coragem.

 

SEGMENTO 03

a chegu l comeu a cavar (+) a le/ ele t pensando que s chegar e cavar que num tinha um movimento daqui alguma cuisa estranha n (++) /.../ a veio uma voz (+) cava pra c pra esquerda ele falava a: (+) mais pra direita (++) a: ele comeu ver o negcio mu::ito aqui ele ficou com medo ele comeu quer sa ele falou no tu vai t/ tu vai t que terminar o selvio (+) /.../ ele pensava que num era assim (Borges em andamento)

 

O narrador afirma que o escolhido tinha uma ideia equivocada de como seria essa retirada do dinheiro (ele t pensando que s chegar e cavar; ele pensava que num era assim). A provao aconteceu de duas formas: uma prova de obedincia, a voz dando instrues de onde cavar para encontrar o dinheiro; uma prova de coragem, na qual algo que o escolhido viu (ele comeu a ver o negcio) lhe causou medo.

A seguir, no segmento 04, temos o desenlace tambm da narrativa Prova de coragem.

 

SEGMENTO 04

DEIXARO ele vim (+) e a ele veio (++) passu a nuite inteira com dor de cabea e eu sei que at huje i:/ ele t meio mais doido como diz do que bem (Borges em andamento)

 

Aps vrias tentativas de desistncia, enfim, o escolhido consegue ir embora do local do enterro, porm, a punio foi aplicada. Por no ter sido corajoso para finalizar a misso, o escolhido teve dor de cabea a noite inteira, o que, aparentemente, causou-lhe doenas mentais desde ento.

Diante desse cenrio, devemos buscar entender de que maneira essa narrativa, mesmo sem pretenso explcita de busca de adeso a uma tese, apresenta uma moral da histria. Podemos encontrar a argumentatividade desse gnero discursivo investigando o no dito ou o poder do explcito, de acordo com Amossy (2020).

 

O implcito contribui para a fora da argumentao na medida em que empenha o alocutrio a completar os elementos ausentes [...] [e] refora a argumentao ao apresentar, sob uma forma indireta e velada, as crenas e opinies que constituem suas premissas incontestadas. (AMOSSY, 2020, p. 178-179.).

 

Nesse vis, os ensinamentos compartilhados pela histria contada sero construdos pelo ouvinte a partir de seus prprios valores e crenas. Os excertos da narrativa Prova de coragem, apresentados no segmento 04, permitem inferir que preciso ter coragem para passar pelas provaes e alcanar sucesso. Isso se aplica tanto misso de desenterrar um tesouro encantado quanto a outros percalos da vida.

O excerto 05, a seguir, pertence narrativa O caixo aluminado. Em suma, trata-se de uma escolhida que v um caixo aluminado (iluminado) e chamada por algum para buscar uma riqueza. Amedrontada, conta para o marido, o qual vai ao lugar marcado tentar retirar, entretanto, no encontra nada. Ao final da histria, ocorre o seguinte:

 

                                      SEGMENTO 05

o cara veio no SONHO dela (+) e disse olha ERA PRA TI no era pra ele (++) ento era pra ti ir s tu ir buscar e num ia te acontecer nada agora tu no fica com nadinha nem tu e nem ele (Borges em andamento)

 

A escolhida no cumpriu a regra segundo a qual somente o escolhido pode retirar a riqueza. Observamos essa condio em vrias narrativas, quando o tesouro se manifesta na presena de escolhido e some na presena de outras pessoas. A punio para a infrao de regras a perda do tesouro (tu no fica com nadinha).

Abaixo, no segmento 06, apresentamos outro trecho da narrativa O fogo, na qual a escolhida tambm no teve coragem de retirar o tesouro e contou para outras pessoas sobre a existncia dele.

 

SEGMENTO 06

e faziam tipo uma RIMPADA assim no punho da rede a vov (+) ficava assim dizia assim tu vai apanhar pra ti tudo tu conta pros outro (+) pra O QU tu saber tu no contar pro outro (Borges em andamento)

 

Alm da falta de coragem para buscar o tesouro, a escolhida infringiu outra regra frequentemente imposta como provao nas narrativas de enterro: no se deve contar para ningum o segredo que envolve o local onde o tesouro est enterrado, a no ser que seja permitido pelo dono da relquia. Dessa forma, com base nos segmentos 05 e 06, o enunciatrio deve alterar a sua viso de mundo, entendendo a importncia moral do ensinamento, segundo o qual importante saber guardar segredos.

O segmento 07, apresentado a seguir, faz parte da narrativa Ambio:

 

 

                                      SEGMENTO 07

falaru que o dinheiro era pra ele com paulo pinto que era irmo do tio roxo (++) e a o papai usou a imbio e disse que o/ ele ia convidar o man borge que era irmo dele n /.../  e quando ele chegou l: (+) o dinheiro j num estava mais j tinha/ sumido (Borges em andamento)

 

Nessa narrativa, tambm possvel observar a transmisso de princpios morais; nesse caso, a honestidade e a desambio. O dinheiro deveria ser dividido entre o protagonista e outro personagem que tambm foi considerado merecedor do tesouro. Porm, como diz o narrador, ele usou a ambio e chamou outra pessoa para retirar o tesouro com ele. Por ter agido contra a determinao de quem lhe doou o dinheiro, tornou-se indigno de retirar o referido tesouro (o dinheiro j num estava mais).

No segmento 08, exposto a seguir, temos um trecho da narrativa Bico de vela:

 

                                      SEGMENTO 08

disque o homem enganou ela (0.36) DEU OUTRAS MOEDA e ficou com aquelas (+) e ela nu/ num se lucrou de nada (2.33) (j) pensou (Borges em andamento)

 

interessante observarmos que a escolhida, mesmo passando por todas as provaes (ter coragem e batizar o tesouro), perde as moedas de ouro no final. A escolhida perdeu o tesouro para algum mais esperto, dessa forma, o narrador alerta: a prudncia e a desconfiana em relao a pessoas prximas devem permanecer sempre aguadas (FERNANDES, 2007, p. 300).

Alm disso, tambm possvel perceber, no trecho supracitado, o apelo ao pathos inscrito de forma implcita como uma estratgia de sensibilizao do ouvinte. Toda essa histria pode suscitar uma resposta emocional do interlocutor, porm, isso mais perceptvel no trecho: ela num se lucrou de nada, seguido do convite da narradora reflexo: j pensou?. De acordo com Amossy (2020, p. 208), a emoo pode ser construda no discurso a partir de enunciados que carregam emoes e que levam a uma determinada concluso afetiva. Nesse contexto, tendo em considerao todo o enredo que leva ao logro da escolhida, podemos chegar a uma concluso: ele [o homem que enganou a mulher] no foi justo. Nessa narrativa, so mobilizados a compaixo pela escolhida e o sentimento de injustia.

Benjamin (1987, p. 200) declara que a narrativa:

 

tem sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso utilitria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida. [...] O extraordinrio e o miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na informao. (BENJAMIN, 1987, p. 200-203)

 

Diante do exposto, conclumos que as narrativas de enterro podem ser uma fonte de transmisso e fortalecimento de crenas e valores, s vezes tcitos, compartilhados por uma comunidade.

Mais uma vez, a dimenso argumentativa se mostra constitutiva das narrativas de enterro, visto que Amossy (2020, p. 12) define a argumentatividade, tambm presente no enunciado, como algo que convida o outro a compartilhar modos de pensar, de ver e de sentir. Por outro lado, so recorrentes os elementos mticos que atuam nessa dimenso. A alma que vem dizer algo; a voz espectral que exige uma prova de coragem; uma galinha choca; o pretinho que se assemelha ao saci-perer; o cara que, em sonho, revela o local do tesouro, mas exige a manuteno do segredo e do mistrio, entre outros, so elementos que, ao intervirem diretamente nas aes narradas, instituem claramente um estatuto mtico para as narrativas de enterro de tesouro em comunidades quilombolas.

 

 

Consideraes finais

 

Nesse estudo, analisamos um aspecto especfico da narrativa de enterro - o carter mtico - usado pelo narrador como estratgia que autoriza considerar a existncia de uma dimenso argumentativa nesse gnero do discurso, que, embora no apresente um carter tipicamente persuasivo, na medida em que nele o enunciador no exige do enunciatrio a adeso explcita a uma tese, sutilmente busca encaminhar a comunidade onde circula o gnero a desenvolver valores ticos e morais primordiais para a sobrevivncia e resistncia da comunidade.

No caso especfico das narrativas de enterro quilombolas, a fomentao de valores morais e ticos como a coragem, a capacidade de guardar segredos e a honestidade, tematizados nesse gnero discursivo, so estratgias que parecem tentar encaminhar os indivduos para as regras legais de sobrevivncia em sociedade e estimular neles a capacidade de resistir tanto no mundo real quanto no imaginrio.

 

 

Referncias

 

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AMOSSY, R. A argumentao no discurso. So Paulo: Contexto, 2020.

 

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BAKHTIN, M. Esttica da criao verbal. 6 ed. Traduo Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

BENJAMIN, W. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. Traduo Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. So Paulo: Brasiliense, 1987. p. 197-221.

 

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BORGES, B.S.P. et al. Aspectos estruturais da narrativa de enterro. Sociodialeto, [s. l.], v.10, n. 30, p. 115-138, abr. 2020. Disponvel em: http://sociodialeto.com.br/index.php/sociodialeto/article/view/278. Acesso em: 22 set.2021.

 

CAMPBELL, J. Mito e o mundo moderno. In: O poder do mito. Traduo de Carlos Felipe Moiss. So Paulo: Palas Athena, 1990.

 

CHAUI, M. Convite Filosofia. So Paulo: Editora tica, 2000. p. 31-38, 395-400.

 

FERNANDES, F. A. G. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. So Paulo: Editora UNESP, 2007.

 

FIORIN, J. L. Argumentao. So Paulo: Contexto, 2018.

 

LVI-STRAUSS, C. Histria do Lince. Traduo Beatriz Perrone-Moiss. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 166-175.

 

PAIXO, T. T. F.; BORGES, B. S. P.; CRUZ, R. C. F. A estrutura formal das narrativas de enterro das comunidades quilombolas de Camet. In: VIII Seminrio de Geossociolingustica (SEGEL), 2020, Belm. Desafios para os estudos Geossociolingusticos: diversidade e respeito s identidades. Belm: UFPA/Faculdade de Letras, 2019. v. 8. p. 40-56. Disponvel em: <https://geolinterm.com.br/segel/?page_id=2471>

 

 

[Recebido: 28 set 21 - Aceito: 28 out 21]


 

 

 

 

 

 

 

Oralidade e quadrinhos: possibilidades pedaggicas

 

 

Orality and comics: pedagogical possibilities

 

 

Alberto Ricardo Pessoa[36]

https://orcid.org/0000-0002-0231-3778

 

Cristiano Clemente de Souza[37]

https://orcid.org/0000-0003-0868-7663

 

 

Resumo: A proposta do artigo apresentar possibilidades pedaggicas que promovam o ensino da oralidade por meio das Histrias em Quadrinhos. A Justificativa deste estudo se deve ao fato dos quadrinhos serem uma mdia que tem como pblico primordial a criana e adolescente e por ter um discurso verbal e no verbal do qual apresenta um espao sonoro propcio para o estudo da oralidade. Apresentamos o conceito de oralidade, os elementos das histrias em quadrinhos pertinentes para o estudo da oralidade e possibilidades pedaggicas no intuito de complementar as estratgias de ensino e aprendizagem do professor da educao bsica.

Palavras-chave. Oralidade; Histria em quadrinhos; Parmetros Curriculares Nacionais; Estratgias de ensino; Discurso verbal e no verbal.

 

Abstract: The purpose of the article is to present pedagogical possibilities that promote the teaching of orality through Comics. The justification for this study is due to the fact that comics are a medium whose primary audience is children and teenagers and because they have a verbal and non-verbal speech which presents a sound space suitable for the study of orality. We present the concept of orality, the relevant elements of the comic books to the study of orality and pedagogical possibilities in order to complement the teaching and learning strategies of the basic education teacher.

Keywords: Orality; Comics; National Curriculum Parameters; Teaching Strategies; Verbal and non-verbal speech.

 

 

Introduo

 

A educao brasileira sofreu ao longo dos anos com discrepncias sociais, econmicas e tecnolgicas, oriundas de polticas pblicas equivocadas e descaso administrativo.

Enquanto algumas escolas se apresentam com infraestrutura capaz de oferecer a melhor experincia de ensino para um aluno igualmente capaz de se desenvolver, h instituies e comunidades que se encontram em condies precrias no que se refere a produzir um ambiente propcio de aprendizagem.

Dentro deste contexto, os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e mais recentemente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel (ODS) se colocam como um eixo norteador no intuito de dirimir essa discrepncia e que coloca o professor como ator mediador deste processo educacional de tantas variveis.

O prprio docente muitas vezes se encontra em sua jornada trabalhista atuando em escolas e comunidades com possibilidades distintas de ensino e aprendizagem. O cenrio do ensino remoto emergencial, decorrente da pandemia oriunda do COVID-19 apenas intensificou a sensao de desigualdade educacional e da necessidade de uma reviso poltica e de interesse pblico em considerar a educao como questo prioritria no Brasil.

partir deste contexto, ns docentes/pesquisadores devemos pelos mais diversos meios, inclusive na apresentao de artigos, debater estratgias de ensino e aprendizagem possveis em um ambiente educacional to desigual, no cabendo aqui dizer como um docente deve ou no ministrar a sua aula, mas criar uma relao interpessoal de pesquisa, emitindo e recebendo da comunidade acadmica apontamentos acerca da educao.

Assim, uma das estratgias de ensino que consideramos pertinente o do uso de produtos de fcil acesso pelo docente e discente, que se caracteriza pela boa receptividade mtua, baixa dificuldade em obter tal material, o baixo custo do mesmo e potencialidade como material complementar para a relao interpessoal de ensino.

As histrias em quadrinhos so uma das poucas mdias que tm a criana e adolescente como public-alvo. No cotidiano brasileiro, as revistas de histrias em quadrinhos geralmente esto posicionadas em bancas de jornais na parte de baixo de prateleiras, propondo fcil acesso para o seu pblico ser capaz de pegar o produto e escolher de forma autnoma, diferente de outros tipos de mdia que geralmente quem pode acessar e apresentar criana o adulto.

Esta autonomia da criana no simples ato de poder pegar e escolher as histrias em quadrinhos, agregado ao fato de ainda ter um baixo custo propicia ao docente possibilidades de trabalho com material de boa aceitao no somente pelo aluno mas a comunidade estudantil em seu entorno.

As histrias em quadrinhos so formadas por uma mirade de discursos verbais e no verbais conectadas por signos dos quais amparados pelo arcabouo imaginrio do leitor apresentam infinitas possibilidades de estudos em torno da oralidade.

Outro ponto positivo que as histrias em quadrinhos possuem no seu uso para o ensino da oralidade o fato de seu contedo ser em sua maioria, baseado em personagens da cultura pop e assim, se ramificar para diferentes produtos como filmes, jogos, peas de teatros e at mesmo marcas licenciadas para aplicao em diferentes formas de consumo que formam novos discursos que so assimilados dentro do espao da oralidade e que o docente e discente podem se beneficiar.

 

 

A concepo de histrias em Quadrinhos

 

            A cincia acerca do que so histrias em quadrinhos de suma importncia para o docente que pretende utilizar enquanto estratgia complementar de ensino, uma vez que dever explicar, selecionar exemplos, manusear materiais e principalmente, criar uma interlocuo com o discente que ao contrrio do professor, possui em seu cotidiano a mdia, histrias e personagens, sejam pelos prprios quadrinhos ou por outros meios de comunicao e linguagem.

            Um exemplo comum o docente utilizar o cartoon e a caricatura como histrias em quadrinhos. Scott McCloud (1995 p.9) afirma que as histrias em quadrinhos so imagens pictricas, concretas ou abstratas das quais em justaposio e em sequncia se prope a se comunicar com o receptor. Ou seja, nesse caso a caricatura e o cartoon no se aplicam pois eles no possuem a premissa de comunicar com textos verbais e no verbais em sequncia.

Quando o leitor consegue realizar uma leitura fluida, a narrativa dos quadrinhos atinge a sua completude, pois se eliminam as fronteiras entre a leitura verbal e a visual, procedendo-se a uma leitura nica. Essa linguagem autnoma e oferece ao seu leitor uma gama de elementos a serem observados separadamente como tipografia, desenhos, perspectiva, onomatopias, narrativa, oralidade e dependendo do gnero que se apresenta, diferentes formas de leitura de uma mesma histria. (PESSOA, p.15, 2010)

Eisner (2005, p.10) aproxima ainda mais as histrias em quadrinhos dos estudos orais quando alega que os quadrinhos estruturam-se conforme disposio impressa de arte e bales em sequncia, ou seja, o balo, para Eisner um elemento essencial e dentro da estrutura da linguagem, o balo de texto simula dilogos e estruturas orais que estimulam o imaginrio do leitor e refrata no seu cotidiano.

 

 

A Oralidade e histrias em quadrinhos

 

A capacidade de articulao oral enquanto forma de se comunicar a primeira a ser desenvolvida, antes mesmo do indivduo ter idade para a vida escolar. A habilidade de construo de textos verbais e no verbais so auxiliados por tecnologias como a escrita e a relao entre textos por linguagens como as histrias em quadrinhos.

O ensino dos gneros orais por muitas vezes negligenciado na educao, muito em parte pela prpria natureza do espao educacional que por si s um espao sonoro e por assim dizer, repleto de manifestaes orais que podem se confundir com baguna, falta de concentrao ou de aproveitamento escolar. O docente acaba por privilegiar gneros textuais como uma estratgia disciplinar ou de conduo da aula, uma vez que em muitas instituies o silncio em sala de aula ainda considerado um item importante para o aprendizado.

Assim, os alunos acabam em seu desenvolvimento apresentando dificuldades em relacionar a oralidade, seja ela formal ou informal com gneros textuais, deixando-os com marcas de oralidade no discurso. Ao mesmo tempo, o indivduo apresenta problemas de oralidade em apresentao de seminrios ao ler o material de apoio, como slides e textos complementares apresentao de maneira aptica, sem a aplicao de entonao, pausa, alongamento, respirao, postura comunicacional perante o seu pblico e tempo de leitura.

As histrias em quadrinhos so em sua grande maioria baseadas em personagens que possuem arqutipos nas histrias de tradio oral e que possuem dilogos com contextos considerados de natureza universal, o que facilita o seu uso para estratgias de ensino focados na oralidade.

As histrias de tradio oral esto presentes em praticamente todas as civilizaes, desde os tempos remotos. Elas so testemunhos, verdicos ou no, que so transmitidos em forma de contos, provrbios, baladas, entre outras. Dessa maneira, os contos tradicionais que conhecemos foram recolhidos por pesquisadores que fizeram seu registro escrito, por vezes fidedigno, s vezes, nem tanto, para que as mesmas no se perdessem ao longo do tempo e se tornassem conhecidas por outras regies e at mesmo naes distintas. (S SILVA, MAI e WANZELER p.79, 2018)

Neste contexto, as histrias em quadrinhos apresentam algumas caractersticas em sua construo que podem beneficiar o estudo da oralidade, pois apesar de ser em um primeiro momento um material textual, ele bastante sonoro.

Nos quadrinhos, a representao da fala na escrita ganhou um estudo particularmente pertinente nossa discusso. Eguti (2001) mostrou que os quadrinhos possuem mecanismos prprios de representao da oralidade. Todos os elementos da lngua oral abordados aqui teriam um recurso correspondente. O turno representado com o auxlio dos bales. O contorno do balo - tracejado, trmulo ou outro - indica nfase ou tom de voz alto. A fala dos personagens indicada por meio de uma seta, chamada de apndice (em Eguti, 2001) ou rabicho (em Vergueiro, 2005a), que vai na direo do personagem. As onomatopias indicam os sons (no falados pelos personagens). (RAMOS, p.06, 2006)

O primeiro olhar do uso das histrias em quadrinhos como estratgia complementar do ensino da oralidade se d pelos seus elementos estruturais. O conectivo entre o texto verbal e no verbal, o balo de texto se comporta como uma veiculao de dilogo entre personagens, ou ainda entre leitor e personagem. Para tanto, o balo de texto se apresenta de diferentes morfologias, com o intuito de enfatizar emoes, entonaes, altura da fala dentre outras indicaes que remetem fala.

As onomatopias so outro elemento pertinente ao estudo da oralidade pelas histrias em quadrinhos, uma vez que elas complementam a paisagem sonora de uma determinada cena, ilustram um som de um golpe, um impacto, funcionamento de uma determinada tecnologia entre outros.

Por meio de onomatopias, o narrador das histrias orais consegue passar de forma realista, vigorosa e convincente a carga emotiva que est por trs do gesto da personagem, dando a ideia aproximada da dramaticidade da cena. (ALCOFORADO, 2008, p. 69-70)

O texto verbal das histrias em quadrinhos so repletos de exemplos de discursos extrados da oralidade, tanto em sua esfera informal quanto formal, uma vez que sua aplicao reside na interpretao oral de seus respectivos personagens. A natureza intrnseca das histrias em quadrinhos o ato de dialogar. Os letristas, profissionais responsveis pela editorao e aplicao dos textos nas artes, procuram explorar elementos que reforam o carter sonoro, tais como o uso de exclamaes, palavras ou expresses em negrito, com tipografias ou cores diferenciadas para determinados personagens.

A anatomia expressiva, bem como os rostos ressaltam a dramaticidade do texto verbal, bem como enquadramentos de cenas. O estilo de desenho ressalta um discurso formal ou irnico.

Por fim, importante destacar a natureza da criao de personagens e histrias que em muitos casos remontam a tradio oral de contar histrias. Todos esses elementos podem, portanto, servir de subsdios para a transposio do aprendizado de gneros orais.

 

 

Possibilidades Pedaggicas

 

recomendado ao docente que o trabalho com oralidade seja constante e progressivo, ou seja, que se inicie da sensibilizao, perpassando pela oralidade informal at os gneros orais mais formais e tcnicos, aprofundando o tema gradativamente. Consideramos que o mesmo deve ser feito em relao s histrias em quadrinhos.

Entendemos que a troca de referncias de histrias em quadrinhos entre alunos e professor uma experincia muito enriquecedora, uma vez que todos os atores envolvidos iro aprender acerca de histrias, personagens, publicaes e o professor, enquanto agente mediador de processo j pode estabelecer com essa sensibilizao trabalhar alguns conceitos de oralidade, estimulando o ato da conversao, da espera, do saber escutar o outro, de promover o ato de contar histrias ou das razes que os motivam para gostar ou detestar um determinado personagem entre outros. No espao da escola, outros agentes podem colaborar com a prtica da oralidade enquanto meio de ensino e aprendizagem.

(...) os profissionais envolvidos nas atividades de leitura podem ser bibliotecrios, professores, pedagogos, escritores, voluntrios etc. os quais devem trabalhar em conjunto com planejamento e discusses sobre o assunto, com intuito de observar um excelente resultado no desempenho dos leitores. (CORRA, p.184, 2017)

Outra possibilidade que envolve quadrinhos e oralidade a prtica da leitura dramtica, ou seja, a leitura para o pblico de uma histria em quadrinhos. O docente pode iniciar promovendo uma leitura de uma histria, de preferncia curta e rica de dilogos, com conectivos, palavras em negritos, balo de texto em formas variadas e personagens com discursos orais distintos.

O ato de contar histrias atribudo, em grande parte dos casos, a algum com maior experincia, como sendo uma atividade que merece ateno e trato refinados, fazendo com que o ouvinte prenda sua ateno quilo que est sendo contado. Esse fator de experincia maior reforado por Benjamin (1994, p. 200), quando diz que o narrador um homem que sabe dar conselhos, ou seja, sendo possuidor de vivncias maiores, aquele que narra assume a propriedade de passar a experincia socialmente compartilhada aos outros membros do grupo. (HAERTER, BARBOSA JNIOR e BUSSOLETTI, p.91, 2017)

A leitura pode iniciar pelo professor e depois ser compartilhada entre os alunos. Essa prtica ir estimular a relao entre leitura e discurso e por ser uma atividade ldica, cabe ao docente gerenciar o espao de fala de cada um. A leitura dramtica pode ser realizada com quadrinhos impressos, slides ou ainda em dispositivos mveis.

Outra atividade que atua na relao entre oralidade e escrita o de recriar dilogos nas histrias em quadrinhos. O Docente pode apresentar histrias com bales de texto em branco e solicitar que o aluno, baseado nas representaes visuais no verbais como as expresses dos personagens, que escreva dilogos com elementos pertinentes aos textos nos quadrinhos, tais como palavras em negrito, exclamaes, frases com marcas de oralidade entre outros. O dilogo reescrito pode servir de base para uma variao da leitura dramtica, pois desta vez podemos observar a leitura a partir de um texto criativo e autoral, o que faz com que o discurso ou a forma que o aluno faz a leitura do texto seja mais espontnea e assertiva.

As histrias em quadrinhos podem servir de escopo para a produo de seminrios, que envolvam a leitura ou discusso de uma histria, ou um tema que possua subsdios para um debate entre alunos.

O mtodo para implantao dessas atividades , justamente, apresentar prticas de leituras, com tarefas que podem ser desenvolvidas de diversas maneiras, tanto em voz alta como em silncio absoluto, individual ou em grupo, na sala de aula ou na biblioteca, com a utilizao de diferentes recursos para criar um maior envolvimento do leitor com as histrias, tais como: msicas, ilustraes de livros, dramatizao com a representao do modo de agir dos personagens, material audiovisual (KUHLTHAU, 2006). Convm ressaltarmos que as atividades devem ser adequadas s diferentes faixas etrias. (CORRA, p.184, 2017)

O escopo da histria pode ser relacionado com a comunidade fandom dos personagens e com isso ser proposto a criao de vdeos, podcasts ou resenha orais, sobre o quadrinho em questo. O aluno passa de leitor a criador de contedo a partir das histrias em quadrinhos. Neste caso o docente pode avaliar se o uso de tecnologias de gravao audiovisual vivel para o espao educacional do qual ele e os alunos esto inseridos propicia o desenvolvimento dessa atividade.

possvel tambm construir os dilogos a partir de situaes elaboradas em um storyboard, por exemplo, desse modo compreender como o contexto interfere diretamente no texto, pois este decorrente daquele. Posteriormente seria possvel representar a cena criada, seja ela um anncio, comercial, ou esquete, ressaltando como o texto muda de acordo com a finalidade, regio, tempo, circunstncia e outras situaes onde seja necessria a articulao entre o que ocorre e o que falado.

Por fim, consideramos a criao de histrias em quadrinhos e seu respectivo ato de ler e apresentar a histria como um ponto relevante na prtica da oralidade, uma vez que o aluno ir criar narrativas com marcas de oralidade para construir dilogos para a trama e apresentar essa histria para receptores como alunos e professores. A leitura e recepo iro trazer ao aluno uma compreenso acerca de sua assertividade textual e oral, apontamentos que iro estimular o aprimoramento do texto produzido e apresentar o aluno no apenas como um ator que aprende, mas como um ator que possui contedo e est disposto a compartilhar com a comunidade educacional do qual o mesmo est inserido.

 

 

Consideraes

 

O artigo apresenta uma proposta de uso de histrias em quadrinhos como estratgia complementar de ensino de oralidade na educao bsica, abordando desde a sensibilizao do aluno ao contexto das histrias em quadrinhos at o estudo da oralidade a partir de quadrinhos escritos e produzidos pelos prprios alunos. Para fundamentar nossa proposta, apresentamos aqui autores que ressaltam o quanto importante o ensino de oralidade e histrias em quadrinhos na educao bsica, alm de pesquisadores que refletiram em concordncia com o autor deste artigo acerca do uso dos quadrinhos para ensinar oralidade.

Dentro do contexto do uso das histrias em quadrinhos e oralidade, importante que o docente esteja aberto a compreender os elementos constituintes das HQs, tanto no contexto da leitura quanto da criao. No solicitamos que o docente saiba desenhar ou escrever quadrinhos, mas que, a partir do conhecimento da linguagem, narrativa e construo de uma histria em quadrinhos seja capaz de gerenciar e apresentar estratgias criativas, que o utilize para ensinar oralidade e os gneros orais para criar quadrinhos.

Solicitamos ainda que o ensino da oralidade seja pensado como um ato frequente e de evoluo ao longo do perodo letivo, e no como uma aula isolada ou um tpico a ser estudado. A oralidade um processo vivo de aprendizado, do qual o discente apresenta um conhecimento anterior escola e ao ato de escrever ou desenhar. A oralidade no deve ser negligenciada em nome de uma suposta ordem disciplinar. Silncio no sinnimo de ateno ou de aula bem sucedida.

O mesmo pode ser recomendado em relao s histrias em quadrinhos. Apesar de ser primordialmente um meio de entretenimento, no devemos subestimar o seu potencial educacional, tanto na questo da leitura, escrita verbal e no verbal, bem como na sua potencialidade, enquanto uma linguagem sonora, a de apresentar potencialidades no uso da oralidade.

No cabe aqui ponderar como ou quais ferramentas o docente da educao bsica deve utilizar para realizar o seu trabalho a contento. Apesar de buscarmos refletir o uso das histrias em quadrinhos e oralidade em mltiplos contextos sociais, entendemos que o Brasil um pas que tem na educao um dos maiores indicativos discrepantes no que se refere condies igualitrias de ensino e aprendizagem.

O que objetivamos enquanto pesquisadores apresentar propostas e ideias que podem ser aproveitadas e debatidas na comunidade acadmica e desenvolvidas em sala de aula. O artigo no apresenta resultados por no ser um relato de experincia. Entendemos o artigo como uma proposta pedaggica, da qual pode ser incorporada e adaptada ao docente dentro do seu contexto e realidade de trabalho em seu espao educacional.

 

 

Referncias

 

ALCOFORADO, Doralice F. Xavier; ALBN, Maria del Rosrio Suarez. Contos populares brasileiros. Bahia; Recife: Fund. Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2001.

 

CORRA, Jean Pereira. Experincia com a literatura de Cordel como atividade de estmulo leitura no ambiente escolar. In: Boitat, Londrina, n. 23, jan-jul 2017.

 

EISNER, Will. Narrativas Grficas de Will Eisner. So Paulo: Devir, 2005.

 

HAERTER , Leandro. BARBOSA JNIOR, Hlcio Fernandes e BUSSOLETTI, Denise Marcos. A contao de histrias como elemento de resistncia em comunidades quilombolas. In: Boitat, Londrina, n. 23, jan-jul 2017.

 

MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. 2 edio. So Paulo: Makron Books, 2005.

 

PESSOA, Alberto Ricardo. As histrias em quadrinhos nas aulas de lngua portuguesa como instrumento de leitura e de produo autoral. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010.

 

RAMOS, Paulo. possvel ensinar oralidade usando histrias em quadrinhos? In: Revista Intercmbio, Volume XV. So Paulo: LAEL/PUC-SP, 2006.

 

S SILVA, Robervnia de Lima S Silva. MAI rica de Cssia, WANZELER, Zaline do Carmo dos Santos. Literatura e Cinema: As funes narrativas de PROPP em duas verses do conto A Bela Adormecida e suas implicaes para o contexto escolar. In:   Boitat, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018.

 

 

[Recebido: 01 jun 21 - Aceito: 01 jul 21]


 

Paisagem religiosa: o catolicismo popular e as companhias de reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG

 

 

Religious landscape: popular catholicism and the company of kings and the company of the Baby Jesus of Carmo Do Rio Claro, MG

 

 

Fbio Martins[38]

https://orcid.org/0000-0003-4290-4086

 

Leonel Brizolla Monastirsky[39]

https://orcid.org/0000-0003-1853-8960

 

 

Resumo: No municpio de Carmo do Rio Claro-MG evidencia-se a expresso do catolicismo popular, com destaque para um sistema cultural religioso e inmeras prticas de religiosidade vinculadas ao calendrio litrgico. A partir da observao das Companhias de Reis e do Menino Jesus buscou-se identificar as diversas prticas de religiosidade popular e a espacialidade dos smbolos e manifestaes religiosas. Ainda focou-se na identificao e interpretao da simbologia que as sustentam. Como metodologia adotou-se a pesquisa de campo - com a observao participante e a realizao de entrevistas. O conceito de paisagem religiosa foi contemplado na perspectiva da Geografia Cultural como pressuposto para se pensar as Companhias de Reis e do Menino Jesus enquanto um sistema de crena religiosa, permeada por cdigos, smbolos e signos que revelam prticas histricas, vivncias, memrias individuais e coletivas para ser preservadas.

Palavras-chave: Paisagem; Religiosidade; Manifestaes religiosas; Catolicismo popular; Geografia Cultural.

 

Abstract: In the municpality of Carmo do Rio Claro-MG, the expression of popular Catholicism is evident, with emphasis on a religious cultural system and numerous practices of religiosity linked to the liturgical calendar. From the close observation of the Company of Kings and the Company of the Baby Jesus, we sought to identify the various practices of popular religiosity and the spatiality of symbols and religious manifestations. It also focused on identifying and interpreting the symbolism that underpins them. Field research was adopted as a methodology - with participant observation and the conducting of interviews. The concept of religious landscape was considered from the perspective of Cultural Geography as a presupposition for thinking about the Company of Kings and the Company of Baby Jesus as a system of religious belief, permeated by codes, symbols and signs that reveal historical practices, experiences, as well as individual and collective memories to be preserved.

Keywords: Landscape; Religiosity; Religious Manifestations; Popular Catholicism; Cultural Geography.

 

 

Introduo

 

A presena das manifestaes de religiosidade do catolicismo popular na paisagem de Carmo do Rio Claro-MG[40], se configura desde a fundao do municpio, dos cinco grupos de Companhias de Reis, quatro ternos de Congo, um terno de Moambique, alm de grupos de homens rezadores para almas. Atualmente, apenas quatro grupos de Companhias mantm suas atividades, sendo trs Companhias no permetro urbano: Companhia do Menino Jesus e duas Companhias de Reis (Estrela da Guia e Estrela do Oriente), alm de uma Companhia de Reis no distrito rural das Trs Barras. 

Com a significativa reduo dessas manifestaes de religiosidade popular e a representatividade dessa tradio cultural no estado e no prprio municpio, como elemento integrante da paisagem tem-se sua presena durante o ciclo natalino, em locais como praas, igrejas, ruas, estradas, casas, na jornada dos folies.

A presente pesquisa tem como objetivo identificar as diversas prticas de religiosidade popular e a espacialidade que assume os smbolos e manifestaes religiosas. A escolha da temtica e do recorte espacial justificam-se pela identificao de uma multiplicidade de saberes e prticas populares envolvendo a religiosidade.  Adotou-se como aporte metodolgico a pesquisa de campo durante o perodo de 25 de dezembro de 2018 a 27 janeiro de 2019, atravs da observao participante e entrevistas semiestruturadas.

O trabalho de campo permite captar subjetividades, significados, sentidos e caractersticas socioculturais. Uma das prticas de pesquisa qualitativa mais difundida a observao participante ou participativa, em que existe mediao, ao dialgica e elaborao conjunta entre o pesquisador com os interesses da comunidade ou grupo, envolvendo tomadas de decises sobre uso de recursos, demanda ou adoo de polticas pblicas. (HEIDRICH, 2016, p. 25).

Na primeira seo faz-se uma discusso terico-conceitual da paisagem religiosa pela perspectiva da Geografia Cultural. Na segunda seo revela-se a paisagem religiosa desde a fundao do municpio mineiro mantendo viva uma srie de tradies, como as Companhias de Reis e do Menino Jesus. A terceira seo aborda na paisagem a religiosidade popular atrelada ao catolicismo.

 

 

A paisagem religiosa na geografia cultural

 

As pesquisas da geografia cultural, ps 1970, abordam [...] o simbolismo de coisas e objetos na paisagem enfatizando aspectos materiais e imateriais da cultura. (ROSENDAHL, 2012, p. 29-31). De acordo com Claval (1999, p. 14), a paisagem como objeto de interpretao, pois carrega a marca da cultura e serve-lhe de matriz, assim como, moldada e projetada pelas convices religiosas.

Contudo, a religio influencia, enfim, os ritmos de vida de todos pelos calendrios e as festas que institui. Ela cria para os sacerdotes e religiosos, gneros de vida especficos. E, a partir de 1976, em Yi-Fu Tuan destaca [...]o peso das representaes religiosas, com intuito do conhecimento acerca da lgica profunda das ideias, das ideologias ou das religies para ver como elas modelam a experincia que as pessoas tm no mundo e como influem sobre sua ao. (CLAVAL, 1999, p. 53).

A paisagem descrita por Dardel (2015, p. 32) circunscreve a insero do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestao de seu ser com os outros, base de seu ser social.

A paisagem um conjunto, uma convergncia, um momento vivido, uma ligao interna, uma impresso que une todos os elementos. [...] A paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente vlida, ainda que refratria a toda reduo puramente cientfica. Ela coloca em questo a totalidade do ser humano, suas ligaes existenciais com a terra, ou se preferimos, sua geograficidade original: a terra como lugar, base e meio de sua realizao. (DARDEL, 2015, p. 31).

A Escola de Berkeley trouxe as qualidades simblicas da paisagem, que sustentam seu significado social, como um texto [...] a ser lido e interpretado como documento social, uma imagem cultural, que pode ser revelada enquanto configurao de smbolos e signos atravs de diversos meios e superfcies [...]. (COSGROVE; JACKSON, 2011, p. 137).

Geertz (2012) prope a anlise de crenas e prticas religiosas enquanto um sistema cultural, do qual o conceito semitico de cultura se adapta.

E sabendo-se que a paisagem conforme Torres (2013) est em constante transformao e repleta de elementos simblicos, sua leitura de mundo se estabelece a partir da experincia de cada indivduo que interage com ela, [...] seja no plano da materialidade das coisas que os seres humanos constroem/desconstroem e organizam no espao, seja no plano da imaterialidade; dos sentidos e significados atribudos a cada elemento constituinte da paisagem. (p. 95).

As paisagens segundo Torres (2013) contm histrias e discursos, expressos em memrias individuais e coletivas de valores construdos ao longo do tempo, alm de confirmarem-se no subjetivo de cada indivduo, as paisagens tornam-se elos de contato a partir de experincias de coletividade.

Os discursos decorrentes da paisagem e presentes nela podem estar contidos em uma ou mais formas simblicas (arte, mito, religio, linguagem), o que garante o sentido atribudo a cada paisagem. Portanto, numa observao esttica da paisagem que considere apenas os subsdios materiais visveis, elementos do sagrado podem passar despercebidos, o que inviabiliza ou minimiza o potencial do estudo da paisagem religiosa. (idem, p. 98).

Kozel (2012) destaca a paisagem pelos mltiplos elementos (visuais, sonoros, odorferos, palatveis e tcteis), sendo estes, portadores de significados por aqueles que os vivenciam. Portanto, h inmeras maneiras de represent-la, uma vez que tambm so inmeras as percepes, valores e significaes de quem vive e capta essa paisagem. (p. 68).

Cada paisagem produto e produtora de cultura, e possuidora de formas e cores, odores, sons e movimentos, que podem ser experienciados por cada pessoa que nela se insira, ou abstrado por aquele que l pelos relatos e/ou imagens. Nesse sentido, por meio da paisagem que os elementos que integram no espao saltam aos olhos do ser humano, gritam aos seus ouvidos, e envolvem-no nas suas dimenses sensveis. (KOZEL, 2012, p. 69).

Desse modo, a reflexo posta por esses autores possibilita a compreenso da paisagem das Companhias de Reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG enquanto um sistema de crena religiosa permeada por cdigos, smbolos e signos, que se revelam atravs das vivncias, memrias individuais e coletivas.

 

 

Paisagem religiosa em Carmo do Rio Claro-MG

 

O processo histrico de formao cultural em Carmo do Rio Claro-MG, desenvolveu-se em face a uma paisagem marcada por serras, vales, ribeires, cachoeiras, alm do Rio Grande (Jetic) e do Rio Sapuca. Conforme Grilo (1996, p. 11-14), a paisagem revela-se pela linguagem potica e geogrfica:

Vemos l no alto. Depois de um breve descanso do esforo de subida, calmamente fiquemos de p e olhemos a nossa volta. Se apontarmos o nosso brao direito para o lado onde o sol est nascendo, veremos nossa frente bem aqui embaixo, ao p da serra a cidade est acordando... Um pouco a direita e seguindo para o norte, que tudo o que vemos nossa frente, h uma superfcie prateada e recortada: so as guas da represa de Furnas que chegam at perto da cidade. Depois das guas, cresce a silhueta escuro-azulada das serras; comeam bem a frente, como Serra da Tromba e vo se espichando na direo do nosso brao esquerdo (para Oeste), como Serra do Ferreira, Serra do Tabuleiro e Serra dos Pinheiros, bem longe, na direo de Alpinpolis... Ali, ao p do Tabuleiro e dos Pinheiros, h um represamento especial das guas. Hoje no d pra perceber que um rio, mas um rio represado, e um rio muito importante para ns: o Sapuca.

Enquanto isso, vamos olhar na direo do nosso brao esquerdo: aqui embaixo, bem ao lado da cidade, comea uma outra serra formada por duas sequncias: a da Rapadura e do Santana. Dirige-se sempre para o oeste inclinando um pouco a norte: parece que vai se encontrar com a dos Pinheiros l longe, j perto da Ventania.

Entre estas, e na mesma direo, fica, portanto, uma regio baixa, alongada, com pouca elevao, vrios crregos pequenos que, daqui do alto, quando os vemos, parecem fiozinhos de prata. Podemos chamar a esta rea de vale e talvez pudssemos dar-lhe o nome de Vale do Itapich, pois este seu principal ribeiro. Tambm segue na direo da Serra da Ventania e morre l, aos seus ps.

Olhando, ao contrrio, na direo de nosso brao direito (leste) vemos em primeiro lugar o prprio prolongamento da serra em que estamos, que hoje chamada de Tormenta. Logo depois dela, mais gua, mais represa. A tambm est o Rio que no vemos, o Sapuca...Para alm das guas, podemos ver um pouco embaados os prolongamentos dos morros e as regies mais planas que formam os campos. De um lado, os morros e as regies mais planas que formam os campos, os Campos Gerais, o Campo do Meio e outros...Temos de virar de costas. Vamos apontar agora o nosso brao esquerdo na direo do sol nascente e dando as costas a Serra da Tromba e a cidade. Bem a nossa frente (Sul) logo ao p da serra em que estamos, podemos ver uma ponta da represa que depois se prolonga em dois fios de gua: onde o Rio Claro, que vem mais do sul, se encontra com o Santa Quitria, que vem quase beirando a Serra da Rapadura. Hoje desaparecem juntos na represa; antes, desaguavam juntos no Rio Sapuca, formando a barra do Rio Claro. Depois se estendem outros morros, outras serras, outras pontas de represa – uma delas, bem ao longe, a do Rio Moambo ou Muzambo – outras, mais prximas so as do Correnteza, do Cavaco etc.

Nesta paisagem to rebuscada de morros, serras, rios e crregos de Carmo do Rio Claro-MG reverbera-se manifestaes de religiosidade popular vinculadas aos calendrios litrgico e cclico, pautado em celebraes - missas, novenas, procisses, comemoraes e festejos.

Identificou-se a seguinte organizao das atividades religiosas e perodos em um calendrio litrgico (Quadro 01): entre os meses de dezembro e janeiro contempla-se o ciclo de comemoraes natalinas que se encerra com a festa da epifania; entre os meses de fevereiro, maro e abril, contempla-se o perodo de quarenta dias da quaresma, alm das celebraes da semana santa; j entre os meses de junho a novembro, contemplam-se as celebraes e ou comemoraes mensais: Corpus Christi (junho), padroeira do municpio Nossa Senhora do Carmo (julho), Bom Jesus dos Aflitos do Itacy (agosto), Nossa Senhora Aparecida (outubro) e finados (novembro). (INFORMAO VERBAL[41]).

 

Quadro 01- Calendrio Litrgico

Celebraes e Manifestaes de Religiosidade em Carmo Do Rio Claro (MG)

 

ATIVIDADE

PERODO

LOCAL

DEZEMBRO

Novenas de Natal

Durante todo o ms de dezembro

Casa das famlias

Apresentao dos Grupos de Companhias de Reis e do Menino Jesus

25 de dezembro a 06 de janeiro - perodo que pode se estender em funo das demandas de promessas

Casa das famlias (devotos de Santos Reis)

Missa da Passagem de Ano

ltimo dia do ms de dezembro

Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima e Sagrada Famlia

JANEIRO

Festejo de chegada dos grupos de Companhia de Reis e do Menino Jesus

Dia 06 de janeiro

Participao dos grupos Companhias nas missas.

Chegada das Companhias de Reis: Salo de festa Igreja Matriz Sagrada Famlia e do Menino Jesus: Lar do Idoso Frederico Ozana

FEVEREIRO - MARO - ABRIL

Quaresma

 

40 dias

Vrias localidades: atividades que se iniciam na Quarta-Feira de Cinzas e se estendem at a comemorao da Pscoa

Quarta-feira de Cinzas

Aps os festejos de carnaval entre os meses de fevereiro ou maro

Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima e Sagrada Famlia: celebraes com a uno e distribuio de cinzas

Vias Sacras

40 dias durante a quaresma: quartas e sextas

Pelas ruas da cidade ou dentro da Igreja

Procisso Penitencial

Todas as sextas durante a quaresma

Ruas da cidade: 5 horas da manh

Procisso Domingo de Ramos

Durante a Semana Santa

Capela N. Sr. dos Passos at a Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima

Procisso do Depsito

Segunda-feira noite - Semana Santa

Conduo das Imagens de N. Sr. dos Passos (por homens) e de N. Sr. das Dores (por mulheres) as suas Capelas de origem

Viglia

Segunda-feira noite - Semana Santa

Capela N. Sr. dos Passos

Procisso do Encontro

Quarta-feira noite - Semana Santa

Conduo das Imagens de N. Sr. dos Passos (por homens) e de N. Sr. a. das Dores (por mulheres) at a Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima

Instituio da Eucaristia e Missa de Lava Ps

Quinta-feira noite - Semana Santa

Igreja Matriz Nossa Senhora de Ftima

Ato de Penitncia

Quinta-feira noite - Semana Santa

Subida da Serra da Tormenta

Via Sacra dos Jovens

Sexta-feira da paixo Semana Santa

Subida da Serra da Tormenta

Procisso das Velas: Jesus morto com os esquifes

Sexta-feira da paixo - Semana Santa

A imagem de Jesus morto com os esquifes sai da Igreja Matriz e faz um percurso em torno da Praa Cap. Pedro Tito Pereira com retorno Matriz

Missa de Aleluia

Sbado aps sexta-feira da Paixo de Cristo

Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo e Sagrada Famlia

Procisso da Ressurreio

Domingo de manh aps Sbado de Aleluia

Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo: Missa na Capela do Senhor dos Passos com procisso at a Matriz Senhora de Carmo

Sagrada Famlia: ruas do bairro Jardim Amrica

JUNHO

Celebraes de Corpus Christi

Comemorado no ms de junho 60 dias aps a Pscoa

Igreja Matriz Nossa Senhora de Carmo e Sagrada Famlia: confeco de tapetes artsticos para procisso nas ruas prximas s igrejas

JULHO

Comemoraes padroeira Nossa Senhora do Carmo: procisso e festejos

16 de julho

Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo:

Procisso de Nossa Senhora do Carmo pelas ruas da cidade; alm de festa de barraca armada na praa em frente Igreja

AGOSTO

Celebraes e festejos Bom Jesus dos Aflitos do Itacy

29 de julho a 06 de agosto

 

Santurio Bom Jesus dos Aflitos: Novena e missas do Bom Jesus dos Aflitos, distrito do Itacy, fluxo de 30 a 50 mil devotos

OUTUBRO

Nossa Senhora Aparecida

15 de outubro

Subida da serra da tormenta at a capelinha Nossa Senhora Aparecida; Celebraes de missas nas matrizes Nossa Senhora de Ftima e Sagrada Famlia

NOVEMBRO

Finados

O2 de novembro

Visitao aos tmulos no cemitrio municipal de Carmo do Rio Claro (MG)

Fonte: Informao Verbal, 2029. Org.: O Autor

 

Existem ainda, as prticas de religiosidade que acontecem semanalmente, como as missas nos bairros e na zona rural, o tero dos homens, grupos de oraes, catequese e visitao da capelinha Me Rainha nas casas dos devotos (Quadro 2).

 

Quadro 02- Atividades de Religiosidade que acontecem durante todo o ano

ATIVIDADE

LOCAL

Missas semanais nas Igrejas Matrizes

Igreja Matriz Nossa Senhora de Carmo e Sagrada Famlia

Missas com celebraes nos bairros

Capela Nosso Senhor dos Passos, Jacuba, Rosrio, Porto, Bananal, So Benedito e Nosso Senhor dos Aflitos

Tero dos homens

Segunda-feira Parquia Sagrada Famlia e quarta-feira Parquia Nossa Senhora do Carmo

Grupos de oraes

Segunda-feira: Parquia Sagrada Famlia; Quarta-feira: Capela do Hospital (So Vicente de Paulo) e sexta-feira: Capela So Benedito

Visitao uma vez por ms da capelinha Me Rainha Nossa Senhora de Schoenstatt

Casas de devotos

Catequese

Parquia Nossa Senhora do Carmo funciona de segunda a sexta com horrios especficos

Parquia Sagrada Famlia: Primeira etapa (eucaristia), quarta-feira s 17:30. Segunda etapa (crisma) domingo s 18:00

Missas rurais

Parquia Sagrada Famlia: quinta-feira em um bairro rural.

Parquia Nossa Senhora do Carmo: quarta-feira em um bairro rural

Missas setoriais (bairros)

Parquia Nossa Senhora do Carmo celebra na segunda-feira e no sbado missas nos bairros

Grupo de Jovens

Encontro semanal s quintas-feiras noite aps a missa

Fonte: Informao Verbal, 2029. Org.: O Autor

 

As diversas prticas de religiosidade configuram a paisagem de Carmo do Rio Claro, h cerca de um sculo e meio, por meio de elementos simblicos materiais e imateriais que carregam consigo elos de uma tradio em celebraes e festejos, experienciados de forma coletiva ou individual em face de distintas espacialidades.

As espacialidades (imagem 1) vivenciadas pelas prticas de religiosidade do catolicismo popular vinculam-se a nove locais - igrejas matrizes: Nossa Senhora do Carmo, situada no centro da cidade e a Sagrada Famlia, situada no bairro Rua Nova; Capela Nosso Senhor dos Passos, situada aos ps da Serra da Tormenta e a Capela de Nossa Senhora Aparecida no alto da Serra da Tormenta; Igreja do Rosrio e Igreja So Benedito nos bairros do Rosrio e So Benedito; Centro de Formao So Jos situado no bairro Corao Eucarstico; Capela do Hospital So Vicente de Paulo situado no bairro Santo Antnio; e o Cemitrio Municipal situado no bairro Rua Nova.

A capela Nosso Senhor dos Passos, construda em estilo colonial aos ps da Serra da Tormenta no ano de 1860, constitui-se a edificao mais antiga do municpio e abriga a imagem de Nosso Senhor dos Passos que faz parte da prestigiada Procisso do Encontro realizada durante a semana santa.

No centro da cidade fica a igreja matriz Nossa Senhora do Carmo, onde h mais de um sculo ocorre a maior parte das celebraes e ritos religiosos, como as procisses do Encontro e do Senhor Morto, que na semana santa renem milhares de fiis em caminhada pelas ruas da cidade, alm das celebraes de Corpus Christi e a festa em louvor a Nossa Senhora do Carmo.

Uma espacialidade evidenciada na quarta-feira da semana santa, quando realizam a procisso do Encontro. Enquanto a imagem sacra de Nosso Senhor dos Passos carregada por homens que partem da Capela Nosso Senhor dos Passos com destino igreja matriz Nossa Senhora do Carmo, a imagem de Nossa Senhora das Dores paralelamente carregada at aquela, por mulheres da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio.

 

A procisso de Jesus Morto com os Esquifes acontece na noite da sexta-feira da semana santa (da paixo). Popularmente conhecida como procisso das Velas, os fiis, empunhando suas velas acesas, conduzem oraes e cantos penitenciais fnebres de aluso a Jesus Morto. Aps a procisso, a imagem de Jesus Morto adentra a igreja Nossa Senhora do Carmo onde as pessoas fazem suas reverncias imagem.

 No ms de julho, comemora-se o aniversrio da padroeira do municpio com festejos de barraca em frente igreja matriz, alm da procisso, na qual os fiis proferem hinos de louvor imagem de Nossa Senhora do Carmo. 

A Igreja Nossa Senhora do Rosrio e So Benedito, at meados de 1990, realizavam prticas vinculadas religiosidade de matrizes africanas, como a Congada e o Moambique, quando existiam ternos de congo e Moambique que saam em cortejo pelas ruas da cidade ao encontro do seu rei e da sua rainha. A chegada destes grupos acontecia na praa localizada em frente Igreja do Rosrio, entre o cruzeiro e a igreja, danavam e cantavam sincronizados sonoridade dos instrumentos percussivos e das latinhas com pedrinhas e sementes amarradas nas pernas. A praa tambm era palco de outras celebraes dedicadas Nossa Senhora do Rosrio, onde se realizava a procisso pelo bairro, missas e o festejo.

Ainda na praa em frente Igreja do Rosrio at a dcada de 1990, durante o ciclo natalino, no dia 06 de janeiro, acontecia o rito de chegada (imagem 2) do grupo de Companhia de Reis Estrela da Guia para celebrar o dia dos Santos Reis. Arcos de bambu, fitas e correntes de papis coloridos enfeitavam a praa, de modo que a paisagem se transformava no palco de consagrao de mais um ciclo de jornada completado pelos folies.

Nos meses de junho ou julho a praa do Rosrio era decorada com bandeirinhas. Ali acontecia a festa junina com a apresentao de quadrilhas. Tambm era comum nesse perodo a prtica de teros dedicados aos santos catlicos, como So Joo e Santo Antnio. Em vrias casas da cidade erguiam-se mastros de bambu, com limes espetados em suas varetas. No seu topo, colocava-se a imagem de um santo, que era decorada com flores de plstico ao seu redor.

No cruzeiro localizado em frente Igreja do Rosrio e em outros, realiza-se a prtica de descarte de imagens de santos quebrados, devido tradio popular de que o descarte incorreto traz castigos. O cruzeiro tambm era o local de onde partiam na madrugada, no perodo da quaresma, um grupo de homens, os cantadores para as almas. Acompanhados de um instrumento percussivo de madeira, matraca, cantavam na frente de algumas casas para as almas de pessoas j falecidas. Existia a crena de que no se podia observar esse rito, sobre o risco de visualizar imagens das almas dos falecidos.

Na Serra da Tormenta, todos os anos, milhares de fiis realizam a subida at seu cume, onde encontra-se localizada a capela dedicada Nossa Senhora Aparecida, para os agradecimentos, oraes e depsito de objetos pelas graas alcanadas.

No ano de 2006, ocorreu a construo da Igreja Matriz Sagrada Famlia e com isso as principais atividades religiosas, ritos e celebraes, passaram a acontecer de forma paralela nas duas parquias.

O Santurio Bom Jesus dos Aflitos atrai no ms de agosto um fluxo de 30 a 50 mil pessoas, para as celebraes de missas e novenas. Parte dos fiis atravessa de balsa a represa de Furnas, para visitar o santurio e depositar objetos s graas alcanadas.

As manifestaes ligadas ao catolicismo de Carmo do Rio Claro-MG fazem-se presentes no calendrio litrgico durante todo o ano, de modo que milhares de fiis (re)vivem prticas de f dedicadas a distintos santos em diferentes espacialidades. Nesse contexto, marcado pelas manifestaes de religiosidade popular, aprofundar-se- nas Companhias de Reis e do Menino Jesus.

 

 

Uma paisagem religiosa pelo catolicismo popular: as Companhias de Reis e do Menino Jesus

1.Tendo, pois, Jesus nascido em Belm de Jud, no tempo do rei Herodes, eis que magos vieram do Oriente a Jerusalm. 2. Perguntaram eles: Onde est o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos ador-lo. 3. A essa notcia, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalm com ele. 4. Convocou os prncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e indagou deles onde havia de nascer o Cristo. 5. Disseram-lhe: Em Belm, na Judeia, porque assim foi escrito pelo profeta: 6. E tu, Belm, terra de Jud, no s de modo algum a menor entre as cidades de Jud, porque de ti sair o chefe que governar Israel, meu povo. 7. Herodes, ento, chamou secretamente os magos e perguntou-lhes sobre a poca exata em que o astro lhes tinha aparecido. 8. E, enviando-os a Belm, disse: Ide e informai-vos bem a respeito do menino. Quando o tiverdes encontrado, comunicai-me, para que eu tambm v ador-lo. 9. Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi precedendo at chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou. 10. A apario daquela estrela os encheu de profunda alegria. 11. Entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua me. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra. 12. Avisados em sonhos de no tornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro caminho. (MATHEUS II: 1-12). 

Aps um ano de espera, chegada a hora! J nasceu o menino Deus. Os instrumentos que se encontravam adormecidos em um cantinho de suas moradas reavivam-se: a sanfona volta a respirar as melodias da devoo; a caixa sente aos poucos o despertar de sua couraa animal, que ressuscita ao esticar/estralar/receber o pulsar das batidas, que emergem em comunho com o corao daqueles que insistem em reviver esta tradio; o chocalho se contorce ao guizo movimento repetitivo; o pandeiro se revolta ao trepidar de um ritmo frentico a sentir o contato das mos que o movimenta de um lado a outro, num zigue-zague sonoro; os encordoamentos aos poucos aproximam dedos e corpos em busca da afinao perfeita, que dar ritmo aos diferentes timbres de vozes queles que esto em prontido: chegada a hora!

Trs Reis preparam-se novamente para sair em jornada. Guiados pela estrela do oriente vo em busca do Menino Deus, da esperana e da f. Revelam-se atravs do objeto sagrado: a bandeira, e seguem sempre frente acompanhados por cantadores e basties que fazem aluso aos guardas de Herodes em disfarce, com a misso de matar o recm-nascido em Belm de Jud.

A paisagem sonora dos transeuntes/automveis/pssaros/ ou do silncio noturno cede espao aos anjos que cantam na glria: chegada a hora! Assim, a paisagem se transforma em face de uma melodia caracterstica, da qual o gingado da sanfona, aliado batida da caixa anuncia: chegada a hora! Ao longe, a populao avista a chegada dos Reis Santos que so escoltados pelo colorido dos adereos/roupagens dos folies. Basties sussurram em meio a performances corporais, e so observados por devotos em janelas/portas/caladas de suas moradas.

As portas abertas se fazem cdigo recepo: d licena patro/d licena patroa, chegada a hora! Em silncio, junto ao representante da morada, Trs Reis Santos adentram na busca pelo Menino Deus; msicos cantadores vo se acomodando. Encontramos o menino Deus: chegada a hora da adorao! O smbolo do arrependimento se revela na figura dos basties, que em nome dos Trs Reis Santos proferem adoraes e ofertas simblicas: ouro, incenso e mirra na forma de trovas.

Mas a troca de ofertas vai alm; e os instrumentos musicais anunciam: chegada a hora de beno s famlias! Em nome dos Trs Reis Santos, vozes germinam solo-conjunto; embaixador-poeta-criador atento aos detalhes profere versos em forma de cantos: bnos, pedidos e agradecimentos; e assim os salutares de vozes encaixam-se em seis tonalidades distintas. Na paisagem ntima da morada, devotos acompanhados de emoes distintas, expressam lgrimas em face de olhares enobrecidos: reveladores testemunhos de splicas e graas. Completadas as saudaes: chegada a hora da despedida. Um instante, pois Trs Reis Santos ainda tero que visitar os cmodos da morada, neste ntimo sobrepem-se bnos a objetos e fotografias dos entes familiares.

chegada a hora: pagamento de promessas! A retribuio de uma graa pode se configurar atravs de um banquete: caf, almoo ou janta. A paisagem neste momento se mistura entre as melodias de sons, devoo, aromas. Cardpios variados exibem a diversidade de texturas/cores/sabores/paladares. Alimentos que despertam gratido daqueles que em suas jornadas so contemplados com a fartura e laos de sociabilidade, reveladores de trocas simblicas: alimentos para corpo em contrapartida ao alimento para a alma: f/bnos ofertadas aos familiares. Trs Reis Santos agradecem e vo embora descansar para mais um dia de caminhada.

Aps cumprido mais um ciclo de jornada chegada a hora dos festejos! Encontraram o menino Deus! A sociedade carmelitana, reunida, aguarda a chegada dos viajadores. Bingos, leiles, comidas, bebidas e msica compem a paisagem; arcos de bambu adornados por correntes coloridas de papel que so rompidos, simbolizam as dificuldades superadas em cada dia desta longa jornada que abre caminho a Belm.  chegada a hora: eis que vieram ador-lo! Ali est o Menino Deus! Viva o Menino Deus! Na orla do altar, a musicalidade embriagada de emoo toma conta dos viajadores que proferem versos e prosas atravs de cantos/adoraes ao Menino Deus! Salve, Salve: Pastores e Folies! Eis que foi cumprida nossa misso; chegada a hora do retorno e at o ano... se Deus quiser!

Esta paisagem religiosa indica um mundo csmico, santificado no tempo sagrado das festas, tempo mtico, tempo litrgico, ou seja, um tempo circular, reversvel, recupervel, indefinidamente repetvel, espcie de eterno presente mtico que o homem emprega periodicamente pela linguagem dos ritos. (ELIADE, 2018, p. 64).

As Folias ou Companhias de Reis so construes cosmolgicas do catolicismo popular orientadas pelo nascimento de Cristo e pela Epifania, de modo a reproduzir a viagem dos Trs Reis Magos, guiados por uma estrela para a adorao do menino Jesus em Belm. Brando (1977) destaca que as Folias de Reis so formadas por um grupo de precatrios que saem em jornada no ciclo natalino de 25 de dezembro a 6 de janeiro, composta por msicos, instrumentistas, bandeiristas e palhaos - os folies vo de casa em casa apresentando suas cantorias, levando bnos s famlias de devotos e recolhendo esmolas. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O fenmeno religioso conforme Pereira e Torres (2016) abarca a experincia humana em extratos fsicos materiais e simblicos, e, funde o mundo dos sentidos com o mundo da imaginao. Assim, tem-se espacialidades fsicas, como templos, igrejas, santurios, sinagogas, mesquitas, terreiros e demais construes diversas; como tambm espacialidades no materiais: discursos, narrativas, mitos, sistemas teolgicos, msicas, sons etc. Tais espacialidades podem estar em movimento [...] como as peregrinaes, as romarias, as vrias jornadas espirituais ou comportamentos rituais. (p. 98).

A Companhia do Menino Jesus, presente no municpio de Carmo do Rio Claro-MG desde o ano de 1929, possui, inclusive, adaptaes em sua estrutura e rito em relao s Companhias de Reis. Os personagens presentes so: Simeo, trs reizinhos e os pastores-cantadores que carregam o oratrio com o menino Jesus (prespio andante) at a casa dos fiis.

O espao sagrado que se constitui em torno dos referenciais e simbologias divide-se segundo Gil Filho (2008) em trs espacialidades: concreta de expresses religiosas, do pensamento religioso e das representaes simblicas. Na espacialidade concreta tem-se o espao sagrado recebendo as prticas religiosas. Na espacialidade das representaes simblicas projeta-se o plano da linguagem aos referenciais religiosos e na espacialidade de pensamento religioso articula o plano sensvel ao do conhecimento religioso. 

            Estas espacialidades podem ser observadas em Carmo do Rio Claro em uma das falas da entrevista realizada em 2019 com um dos folies:

No evangelho existe uma pequena descrio, o que nos transmitido que suas viagens tiveram incio no dia primeiro de janeiro e que saram cada um de suas terras guiados por um sinal. Viajaram o dia todo e no final daquele primeiro dia eles se encontraram, se conheceram, dormiram e no segundo dia perceberam que apesar de serem de diferentes regies e sem estabelecer nenhuma comunicao anterior, tinham o mesmo objetivo e receberam os mesmos sinais. Do segundo ao quarto dia em suas caminhadas, foram conhecendo suas diferenas e o que cada um poderia oferecer para o outro. No quinto dia avistaram Jerusalm, uma cidade grandiosa, sede do poder, o que chamou a ateno dos Trs Reis. Vislumbrados acreditavam que o Rei do mundo s poderia estar por ali, esquecendo-se do humilde sinal, a estrela que os guiava at ento, e foram at a cidade de Jerusalm. A partir da encontramos no evangelho de Matheus, o relato de que chegando at a cidade, Herodes no sabia do que se tratava, mandou que os Trs Reis seguissem viagem, pois ali no existia nenhum outro rei alm dele, e pediu que sua guarda os acompanhasse. A partir do momento em que deixaram a cidade de Jerusalm para trs com a iluso da claridade, conseguiram avistar novamente o sinal da simplicidade, a luz da estrela que os guiavam em sua viagem. Completando o sexto dia, chegaram at Belm, uma cidade pobrezinha onde encontraram e adoraram o Menino Jesus. Esta caminhada do dia 01 ao dia 06 uma caminhada de aprendizado, partilha. Assim como em nossas vidas, eles tiveram seus deslizes deixando se ofuscar pela grandeza de Jerusalm, mas voltaram seu olhar novamente para a simplicidade do projeto de Deus para ns. (INFORMAO VERBAL, 2019).

Gil Filho (2008) tambm sugere quatro instncias de anlise aos estudos de fenmenos religiosos, sendo, a paisagem religiosa com sua materialidade, exterioridade e expresso do sagrado; o sistema simblico cultural com seu referencial conceitual, a lgica simblica e o contexto religioso; as escrituras e tradies sagradas com as construes epistemolgicas, seu registro e transmisso; e o sentimento religioso como a experincia pessoal do sagrado.

Nesse sentido, compreende-se que as manifestaes de religiosidade popular: Companhias de Reis e do Menino Jesus de Carmo do Rio Claro-MG, constituem elementos caractersticos de subjetividades presentes na paisagem religiosa local. As Companhias, atreladas ao calendrio litrgico (natal/epifania), expressam-se atravs de peregrinaes (espacialidades em movimentos em meio as ruas, casas, igrejas) permeadas por distintos momentos: ritos, performances, relaes de sociabilidades e trocas simblicas.

 

 

Consideraes finais

 

Desde os fins do sculo XVIII, o processo de formao e desenvolvimento histrico-cultural do municpio de Carmo do Rio Claro-MG se consolidou diante de um sistema cultural religioso alicerado em valores e preceitos do catolicismo. Inmeras prticas de religiosidade popular vinculadas ao calendrio litrgico, se consagram h mais de dois sculos e seu reflexo faz-se presente na paisagem. Para Torres (2013), a paisagem reflexo da relao direta com o ser humano, no plano material ou imaterial, pois compem-se de discursos e formas simblicas - arte, mito, religio e linguagem. Segundo Torres (2013) e Kozel (2012) o conceito de paisagem configura-se pela trade: olhar/sentir/ouvir e perpassa por diferentes aspectos sensitivos - formas, cheiros, sons, texturas, cores, sabores, movimentos -, com os quais os indivduos percebem e atribuem significados a cada elemento constituinte.

 

 

Referncias

 

BRANDO, C. R. A folia de reis de Mossmedes. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, Fundao Nacional de Arte-FUNARTE, 1977.

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CLAVAL, P. A geografia cultural. Florianpolis: UFSC, 1999.

 

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COSGROVE, D. Em direo a uma geografia radical: problemas da teoria. In: CORRA, R. L., ROSENDAHL, Z. Introduo geografia cultural. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

 

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DARDEL, E. O homem e a terra: a natureza da realidade geogrfica. So Paulo: Perspectiva, 2015.

 

ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 2018.

 

GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

 

GIL FILHO, S. F. Espao sagrado: estudos em geografia da religio. Curitiba: Ibpex, 2008.

 

GRILO, A. T. Carmo do Rio Claro: aulas de histria social caderno 1.  Carmo do Rio Claro: Departamento de Educao e Cultura, 1996.

 

HEIDRICH, . L. Mtodo e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade. In: HEIDRICH, lvaro Luiz; PIRES, Claudia Luisa Zeferino. Abordagens e prticas da pesquisa qualitativa em geografia e saberes sobre espao e cultura. Porto Alegre: Letra1, 2016.

 

KOZEL, S. Geopotica das paisagens: olhar, sentir e ouvir a natureza. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 22, n. 37, 2012.

 

PEREIRA, C. J.; TORRES, M. A. Espacialidades religiosas. In: GIL FILHO, S. F. Liberdade e religio: o espao sagrado no sculo XXI. Curitiba: CRV, 2016.

 

ROSENDAHL, Z. Histria, teoria e mtodo em geografia da religio. Espao e cultura, Rio de Janeiro, n. 31, p. 24-39, 2012.

 

TORRES, M. A. As paisagens da memria e a identidade religiosa. Raega - O Espao Geogrfico em Anlise, Curitiba, v. 27, p. 94-110, 2013.

 

 

[Entregue: 15 jul 21 – Aceito: 15 ago 21]


 

Poesia in concert: a palavra de volta rua[42]

 

Poesia in concert: the word back on the street

 

 

 

Kaedmon Sellberg[43]

https://orcid.org/0000-0002-4185-2598

 

 

Resumo: O Poesia in Concert um evento londrinense que data da dcada de 1990 e ocorre at hoje. So apresentaes com msica e poesia feito, inicialmente, pelo agrupamento de poetas e artistas Mrio Bortolotto (dramaturgo), Rodrigo Garcia Lopes (poeta), Maurcio Arruda Mendona (poeta) e Slvio Demtrio (msico). Em 2009 o evento retorna, com o mesmo nome, inserido no festival literrio de Londrina, Londrix, com a frente de Christine Vianna, professora e musicista da banda Benditos Energmenos. Entre 1990 e 2009, h, naturalmente, uma transformao do contexto social, histrico, poltico, no mbito nacional e londrinense, que motiva estratgias diferentes de insero do Poesia in Concert no espao pblico. O artigo se prope a estudar, comparativamente e brevemente, os dois momentos do Poesia in Concert e suas relaes com o espao pblico de Londrina. Em termos curtos, observa-se uma atualizao do sentido do evento para a cidade e para seus agentes, embora ainda se mantenha como espao de oposio ao status quo. A pesquisa foi feita a partir do levantamento de referncias culturais, de entrevistas e aporte terico.

Palavras-Chave: Poesia; Msica; Performance; Londrina; Poesia in Concert

 

Abstract (Times New Roman, 12, bold): Poesia in Concert is an artistic event in Londrina, PR – Brazil, dating from the 1990s that still takes place to this day. It revolves around presentations with music and poetry performed, initially, by the group of poets and artists Mrio Bortolotto (playwright), Rodrigo Garcia Lopes (poet), Maurcio Arruda Mendona (poet) and Slvio Demtrio (musician). After a break in the mid-90s, the event returns in 2009, with the same name, inserted in the literary festival of Londrina, Londrix, being Christine Vianna, vocalist of the band Benditos Energmenos, the main poet/singer. Between 1990 and 2009, there is, of course, a transformation within the social, historical, political context, at national and regional level, which motivates different strategies of insertion in the public space. The article aims to study, comparatively and briefly, the two moments of Poesia in Concert and its relations with the public space of Londrina. In short terms, Poesia in Concert and its meaning have been updated for current literary and artistic needs, educating the public to artistic expression less common in the mainstream market. The research was based on the survey of cultural references, interviews and theoretical contribution.

Keywords: Poetry; Music; Performance; Londrina; Poesia in Concert;

 

 

Introduo

 

O Poesia in Concert, iniciado em 1993, foi um agrupamento de poetas, dramaturgos e msicos de Londrina: Mario Bortolotto (1962, ator, diretor, dramaturgo, escritor), Rodrigo Garcia Lopes (1965, poeta, msico, tradutor), Mauricio Arruda Mendona (1964, dramaturgo, poeta, msico, tradutor) e Slvio Demtrio (1970, jornalista, professor universitrio, msico) que, embora no estivesse ligado s produes artsticas, tinha um programa na Rdio Uel da poca. O agrupamento lia poemas de diferentes origens (autorais, tradues, nacionais) acompanhados de msica, frequentemente, blues, MPB e rock. O primeiro momento do Poesia termina em 1994, seguido de um hiato at a incorporao oficial do evento, retomado pela atriz, poeta, cantora, professora Christine Vianna, no Londrix (festival literrio de Londrina) em 2009. Durante esse perodo, concertos isolados aconteceram com a mesma proposta: poema e msica. A dificuldade metodolgica de traar uma linha temporal, contextual e coesa, a de discutir se essas expresses independentes compartilhavam do mesmo significado social. Esteticamente, v-se a coeso.

O que este artigo prope :

a)     apresentar o Poesia in Concert nos dois momentos citados, atravs de entrevistas coletadas, vdeos assistidos, apresentaes analisadas;

b)    comparar as duas expresses, localizar diferenas e padres, que situem a importncia social do evento na histria de Londrina;

Para a realizao do artigo, alm de levantamentos de referncias bibliogrficas sobre Londrina e sobre o Poesia in Concert da dcada de 80 e 90, foram entrevistados Mrio Bortolotto, Rodrigo Garcia Lopes, Slvio Demtrio e Cristiane Vianna, em 2018. Maurcio no pde ser entrevistado devido a um problema de sade, infelizmente. Ao longo do artigo, citaes das entrevistas sero colocadas entre aspas. Todas as entrevistas estaro disponveis em link nas referncias. Os vdeos usados para anlise podem ser encontrados no canal Cemitrio de Automveis, disponvel no Youtube. Link nas referncias.

A partir daqui, apresento o Poesia in Concert que explora a dimenso sonora da palavra com a funo de levantar bandeira poltica e cultural: fazer a palavra voltar para a rua, como dir Rodrigo Garcia Lopes. O autor observava que a palavra permaneceu na torre de marfim do poeta (como diz o ditado) por muito tempo. Entretanto, h diferentes formas de interpretar a torre de marfim em 1990: a ditatura militar, que dcadas antes foi a principal fonte de censura literria; o prprio circuito literrio, que era um ciclo privilegiado de escolarizados at a segunda metade do sculo XX; ou, ainda, o espao que ocupava a literatura nas universidades em relao ao espao pblico. Por pblico, entende-se o bar, a rua, a esquina da praa.

H diversas torres de marfim que enclausuraram a palavra literria no Brasil at 1990. O ponto comum entre todas as torres a palavra literria em distanciamento social em relao rua. Ou seja, a palavra literria no participava da esttica do papo furado, da conversa de meio-fio, da conversa desengonada do bar. No participava da inevitabilidade do som. A pgina era educada demais para se impor dessa forma. A palavra na rua evoca a circunstncia biolgica, corporal, presencial – o som da cidade, a msica tocada, a performance. Nesse sentido, o argumento do Poesia in Concert que na palavra do distanciamento social h um silncio comum ao livro. Para bem ou para mal, a mobilidade do objeto impresso fragmenta o significado do texto conforme lido em diferentes contextos, a partir de diferentes leitores. Por isso a brincadeira do distanciamento social da palavra que o Poesia, desde 1993, quis fazer retornar rua. Quando a palavra solta na performance sonora, o contexto da aglomerao, os significados se aproximam porque se aproximam as pessoas.

Quem eram os atores e as influncias do Poesia in Concert, portanto? Como se pode antecipar, inserir a poesia literria no espao pblico do campo da margem, da juventude, da sensao e do corpo, que encontra ncora na literatura beatnik e simbolista, representada por Arthur Rimbaud. Essa foi, de fato, a bagagem que Mario Bortolotto e Rodrigo Garcia Lopes trouxeram ao Poesia. Rodrigo estava nos Estados Unidos entre 1990 e 1992, no Arizona, cursando o mestrado Humanidades Interdisciplinares, que resultar no compndio de entrevistas, em forma do livro Vozes & vises: panorama da arte e da cultura norte americanas hoje, publicado no Brasil pela Editora Iluminuras em 1996. Entre os entrevistados esto William Burroughs, John Cage, Allen Ginsberg, Thom Gunn, Wanda Coleman, Amiri Baraka, nomes associados arte de vanguarda, ao beatnik, ao blues, cultura afrodescendente americana. Outros nomes citados por Rodrigo Garcia Lopes, porm no entrevistados para o livro, so David Lynch e Francis Ford Coppola.

Amigo de traduo do Rodrigo, Maurcio Mendona de Arruda, hoje dramaturgo premiado internacionalmente, traduziu com ele Sylvia Plath, Poemas (1990) e Iluminuras (1994), obra do Arthur Rimbaud. Vale a pena mencionar tambm a antologia Trilha Forrada de Folhas – Nenpuku Sato, um Mestre de Haikai no Brasil (1999), do poeta japons Nenpuku Sato, o introdutor do haikai no Brasil. Paulo Leminski bebeu dessa fonte.

J Mario Bortolotto traz consigo o teatro, o Chiclete com Banana, que a partir de 1987 ser chamado Cemitrio de Automveis. Na dcada de 1990, o grupo j era premiado e reconhecido em So Paulo e So Jos dos Campos. Nessa mesma poca sentia-se a necessidade de advogar pela cena local, conforme complementa Mario Bortolotto, pois a efervescncia oitocentista que tinha levantado o teatro decaiu a partir dos anos 90. O mesmo ocorria com a literatura londrinense. Os nomes artsticos de Londrina iam muito bem entre grupos artsticos. O que faltava era realmente, tornar a arte da rua, torn-la uma experincia do pblico.

Cito trs trechos para os amarrar em seguida:

Ao pensar sobre os sons de uma cidade, muitos ambientes sonoros emergem aos nossos ouvidos. Certamente, os sons da cidade, diretamente ligados a sua morfologia e sua arquitetura, nunca foram ou sero os mesmos, seja em Tquio, Londres ou Londrina, pois, como o observa o gegrafo Frderic Roulier (1999), os tipos de economia, os comportamentos sociais, a tecnologia e a densidade populacional induzem variaes que fazem com que cada cidade possua uma identidade sonora ou paisagens sonoras caractersticas. (CARNEIROS DOS SANTOS, 2011, p. 83, negritos meus)

 

As vanguardas histricas e a ps-vanguarda da segunda metade sculo XX deixaram uma grande lio sobre dissoluo de fronteiras entre literatura e outras artes, em que a performance se tornou uma importante referncia para a crtica. (FERNANDES, 2017, p. 104, negritos meus)

 

Ora, nestes fenmenos festivos, por um lado aplica-se o ajuntamento (endoidecimento) e, por outro, a pluralidade de cada um. O imaginrio est na ordem do dia e com ele a multiplicidade de sentidos que cada pessoa d sua existncia. (MAFFESOLI, 2002, p. 84, negritos meus)

De cima abaixo, observa-se uma relao entre arquitetura urbana, fsica, concreta, tambm abordada como uma estrutura abstrata, no sentido de um comportamento artstico, ideolgico. De acordo com Frank (1979, p. 13), h um espao de fazer arte e literatura que ocorre em funo do seu espao arquitetnico, social e vice-versa. Ambos estabelecem uma identidade – e, para este artigo, usarei o termo afinidade – entre memria (passado) e criao (presente). A simbiose se processa em fenmeno literrio. A afinidade entre arquitetura e literatura ser o ponto-comum para o espao do Poesia in Concert em 1993. Qual era o espao londrinense?

Londrina experienciava um refluxo da efervescncia cultural da dcada de 80: o teatro era reconhecido. A msica sofria os voos de um MPB que discutiu com o recm finado ufanismo ditatorial. A literatura tinha contato com: Paulo Leminski, o inutenslio curitibano e com a influncia das tradues e entrevistas de beatniks, simbolistas, vanguardistas e poemas minimalistas (haikai). Era uma linguagem que flertava com a dramaturgia londrinense de Bortolotto. Inclusive, essa linguagem fazia mais a cara dos bares do que dos teatros tradicionais. O PROTEU (Projeto Experimental de Teatro Universitrio, criado em 1978) era o teatro diferento, levou o papel principal da boemia londrinense, alternativo em relao a valores mercadolgicos e engajado na consolidao do FILO (Festival Internacional de Londrina). O PROTEU influencia os nomes importantes da histria da arte em Londrina e tambm o teatro da vanguarda de So Paulo. Por exemplo, Cemitrio de Automveis ser o nome da importante Vila Cultural em Londrina, inaugurada em 2007 por Christine Vianna via PROMIC (Programa Municipal de Incentivo Cultura).

Ou seja, o Teatro em Londrina dos anos 80 e dos anos 90 no tinha do que se envergonhar. Em um festival de teatro em So Jos dos Campos, o grupo teatral Cemitrio de Automveis e a Cia. Dramtica Bombom pra Que se Pirulito tem Pauzinho Pra se Chupar, tambm de Londrina, ganharam 10 dos 12 ou 13 prmios (Mario no se recorda). Sobrou pro resto do Brasil trs prmios, conta Mrio em uma entrevista de 1990 na TV Tropical de Londrina, disponvel nas referncias do artigo. J o pblico londrinense era um pouco recalcado na dcada final. Lotar um teatro de 200 pessoas era muito difcil.

Partindo dessa conjectura que, em matria de literatura e de msica no era muito diferente, nota-se uma presena cultural de peso em contraste com um pblico escasso. O espao artstico de Londrina se organizava, socialmente e esteticamente, em torno de uma certa bomia e da performance. um terreno frtil para saudar a nostalgia de Rodrigo que um pouco antes estava nos Estados Unidos traduzindo seus poemas em bares com acompanhamentos de msicos no Arizona. Eu voltei de l querendo fazer coisas em Londrina, o poeta conta. J se observa um deslocamento esttico dos beatniks norte-americanos e suas poesias bomias para dentro da arquitetura londrinense. Caso se mergulhe um pouco mais na experincia esttica beatnik, observa-se uma poesia que andava com o jazz estadunidense dos anos 50 e 60.

Rodrigo traz sua experincia estadunidense ao Brasil, cuja predominncia esttica era o movimento neorrealista da dcada de 30, ecoada pelo engajamento necessrio (sempre) de artistas locais, brasileiros. H uma pequena barreira, embora no insupervel, entre uma tradio literria que gostaria de subjugar a pura arte pela arte vanguardista (como de Mrio, Rodrigo e Maurcio) e ainda educar o pblico arte. Aqui, Rodrigo faz sua tarefa social e artstica: des-criptografar a urea escolstica de um poema, torn-lo do bar, da rua, da boca, em oposio sacralidade dada palavra por uma modernidade conservadora. sua flexibilizao da cultura da escrita.

Finalmente, j em termos geogrficos, a poesia da Rua pode ser compreendida como uma poesia da Humait. Em 1990, na longa extenso entre as ruas Prefeito Ferreira Lima e Humait, havia repblicas de jovens de maioria universitria. Tambm se encontram bares que convidavam experincia bomia. Alm dessas ruas, na Av. Bandeirantes, havia o Bar Valentino, palco principal das apresentaes do Poesia in Concert. Curiosamente, hoje o Bar Valentino se encontra na Prefeito Faria Lima. Mais abaixo se encontram as imagens.

Portanto, h um duplo jogo semntico em poesia da Rua. Na semntica da rua conotativa, um imaginrio de protesto aos espaos aristocrticos, elitizados, um espao pensado pela sua mobilidade social. Na semntica da rua denotativa, embora no seja uma regra, a rua era localizada geograficamente entre a Prefeito Faria Lima-Humata-Av. Bandeirantes, onde se encontrava a maioria dos atores sociais do evento Poesia in Concert.

Nessa relao conotativa-denotativa, encontra-se a tal presena arquitetnica-esttica da rua. Composto de sujeitos artsticos e universitrios, a poesia voltou rua na Prefeitura Ferreira Lima com a Humait e foi at ao Bar Valentino, na poca presente na av. Bandeirantes, nmero 61. Como contam Slvio Demtrio e Mario Bortolotto, os espetculos no bar estavam lotados. Era de um relativo sucesso, de loucura, de encher a casa do Bar Valentino, de deixar gente do lado de fora, de levar essas apresentaes para fora de Londrina, at Curitiba. No sentido de ressignificar uma realidade social, o Poesia in Concert de 1993 foi bem-sucedido.

 

 

Fora do Valeco

 

O Valeco ou O Bar Valentino era sofisticado, escreveu Mario Bortolotto. Era o bar que a rapaziada do Grupo Proteu adotou e l sempre estava cheio de atores, msicos, artistas plsticos, etc. E s tocava jazz de trilha sonora, alm da melhor macarronada da cidade.

 O Bar Valentino, hoje na rua Prefeito Faria Lima, 486, antigamente na avenida Bandeirantes, 61, era um espao para pessoas artsticas, talvez tanto quanto a Vila Cultural Cemitrio de Automveis seja hoje. Toda a rea entre a rua Humait e a Ferreira Lima era contemplada pela juventude, aglutinada com antigas repblicas da rua Humait. De manh, pra vir pra UEL, eles vinham de carona. Ficavam pedindo carona, conta Slvio Demtrio. Eram lugares menos gourmetizados, com tradio bomia, acessvel.

 

Extenso Prefeito Faria Lima e Humata

 

 

Fonte: Google Maps de Londrina, 2022

 

            No crculo vermelho esquerda do leitor, prximo Rodovia Celso Garcia, encontra-se a UEL (Universidade Estadual de Londrina). No crculo vermelho central, na rua Prefeito Faria Lima e ao lado da Universidade Positivo, encontra-se hoje o Bar Valentino. No balo direita, a rua Humait, que termina na Avenida Higienpolis, uma das avenidas principais de Londrina. No crculo vermelho direita, o antigo espao do Valentino. Entre o espao intelectual de Londrina (UEL) e um dos espaos centrais do ponto de vista comercial (Av. Maring, Av. Higienpolis, Av. Bandeirantes), havia extenso colonizada por repblicas e espaos marginais (bares, adegadas) cruzando essas extremidades, observada na linha preta. J o lago Igap, um dos pontos importantes de lazer da cidade, cruza essa via de cima a baixo. No difcil imaginar como esse trfego geogrfico influenciava na operao social desse perodo, desses artistas, dessa juventude.

Como at 2005 o Bar Valentino era localizado na avenida Bandeirantes, o fluxo de caronas e de pessoas exigia subir a Humait em direo Higienpolis e, em seguida, descer uma das ruas perpendiculares at a rotatria da Bandeirantes. Mrio e Slvio contam sobre uma agitao naquele espao. Mrio conta ainda uma experincia pessoal:  

Eu gostava muito de l, embora o meu poder aquisitivo no me permitisse desfrutar do whisky do lugar, mas eu tinha alguns amigos garons que conseguiam traficar algumas doses pra mim. Eu ficava sentado no muro l fora e os copos de whisky se materializavam nas minhas mos. [...] Era foda!

 

Extenso Prefeito Faria Lima e Humait

Grifo rosa: Humait ao Bar Valentino (ponto vermelho)

Fonte: Google Maps de Londrina, 2022

 

Nesse espao, jovens nascidos entre 1960 e 1970 viviam o rescaldo da abertura do pas aps o fim da ditadura. Por conta da explorao comercial e da reabertura, essa juventude convivia com a mdia estadunidense no Brasil. Havia, claro, nomes brasileiros ganhando peso – a influncia da literatura beatnik j aparecia em Paulo Leminski, por exemplo. Slvio Demtrio menciona alguns brasileiros como artsticos autnticos avessos ao mercado de reprodutibilidade. Havia, tambm, influncias de cinema, msica e at quadrinhos.

 

 

Fonte: Matria na Folha de Londrina, 1 Set 1993, arquivada e emprestada por Silvio Demetro

Reportagem Os Insatisfeitos

Matria reporta juventude londrinense em 1993

 


Em uma matria publicada na Folha de Londrina em 1 de setembro de 1993, a manchete Os Insatisfeitos descreve a situao de autoflagelo de uma garota de 21 anos, uma tentativa de suicdio, suavizada pela prpria entrevistada: Acho que estava s tentando chamar a ateno, no queria realmente morrer. Seguido de testemunhos de denominados insatisfeitos, a matria chega at Slvio Ricardo Demtrio, 24 anos, estudante de jornalismo, solitrio divertido, cuja insatisfao fora descrita como sinnimo de uma inquietao interna, uma insatisfao com o social como se o questionasse. Quem novo e est esperando alguma coisa insatisfeito. S os que no esperam nada que esto satisfeitos. I Cant Get No Satisfaction, msica dos Rolling Stones foi citada para descrever sua sensao, de quem via em Paulo Coelho e Duran Duran acomodao cultural.

Logo abaixo, o cartunista Angeli continua o assunto da insatisfao, expressando noes da vida bomia paulistana entre 1980 e 1990. H uma tirinha com dois personagens seus dessa poca: os velhos hippies, Wood & Stock, referncia ao festival Woodstock da dcada de 60. Esses e outros personagens expressariam traos da sua personalidade:

Eu sou recluso, quase no saio de estdio. Sou uma pessoa deslocada, me sinto contemplador e no um cara participativo; no compactuo com o mundo e isso atia o meu senso crtico. As pessoas positivas demais no tem [sic] graa. Eu acho que todo alegre no fundo um paranoico, algum que perdeu o senso crtico.

 

A matria (meio sensacionalista, meio tendenciosa) vista, aqui, como registro de temas e de pensamentos dos jovens de 1993, que criavam seu prprio discurso social, esttico, ideolgico, sobre seus comportamentos. A insatisfao linha vertebral, um descontentamento com o sistema social e poltico. Em sntese, um status quo que no valia a pena ser vivido. Slvio Demtrio cita vrias influncias para os insatisfeitos: Sam Shepard citado como influncia do pblico e dos artistas do Poesia in Concert, j que suas peas de teatro relatavam personagens sintomticos de um sonho americano falho, de uma fratura no ideal da famlia americana. No surpreende que Mario Bortolotto, em 2017 e 2016, tenha dirigido as peas Oeste Verdadeiro (True West, de 1980) e Criana Enterrada (Buried Child, de 1977), no Teatro e Bar Cemitrio de Automveis em So Paulo[44]. J nos filmes, assim como viu-se a inteno do Rodrigo Garcia Lopes em ter um cara-a-cara com Francis Ford Coppola, Silvio cita O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, de 1983), do mesmo diretor, cujo personagem central um jovem lder de gangue de uma famlia desajustada. E o filme Condenados pelo Vcio (Barfly, de 1987) inspirado no alter ego de Charles Bukowski, Henry Chinaski, um alcolico em Los Angeles, do diretor Barbet Schroeder.

Uma msica de Barfly, para citar uma influncia prtica, foi usada como acompanhamento musical durante um dos eventos do Poesia in Concert. Essas e outras referncias menores marinavam, como caldos, a experincia juvenil. Por exemplo, como conta Slvio, houve umas decises sem noo e tpicas de uma juventude em busca de criar uma afinidade com a insatisfao. Decises como: vou embora daqui porque t cansado; puts, cara, isso no se faz. Mas era assim que as coisas funcionavam.. A aventura pessoal, o dizer sim vida que, como veremos mais tarde, j estava registrada em Rimbaud, Nietzsche, beatniks, compartilhada pelos personagens dos filmes.

Eram as influncias brasileiras no Poesia in Concert mais hbridas que as influncias estadunidenses, pois nossos brasileiros eram nmades. O Poesia no tinha uma inteno regionalista; isso seria um ufanismo do perodo anterior ao qual o Poesia queria marcar oposio, a ditadura militar nacionalista. Slvio conta, a princpio, uma formao musical do Hermano Reis, Grupo DAlma e outros nomes do universo violonstico brasileiro. Mais tarde, o convvio com Mario traria uma msica ligada ao universo da gerao beat: jaz bepop, blues, trilha sonora do filme Paris, Texas (1984). De Londrina, at Bernardo Pellegrini e o Bando do Co Sem Dono, embora no participasse diretamente do evento, dialogava com ele. Um poema musicalizado pelo Rodrigo, trabalhado junto com o Slvio, com slides de blues, foi gravado pelo Bernardo nos anos 90. As letras da msica, assim como o estilo do Bando, mais uma vez, colocam em evidncia a caracterstica bomia do som e das experincias de vida.

 

 

Dentro do Valeco

 

Segundo um documento publicado pelo site da Prefeitura de Londrina, na primeira pgina:

No comeo da dcada de 80, segundo Joo Henrique Bernardi, o Valentino era o local para onde iam as pessoas que acompanhavam o movimento teatral da cidade quando uma pea nova estreava, sendo cenrio da rivalidade entre os maiores grupos de teatro de Londrina. O bar ainda passou pelas mos de outro dono, Marcos Marangoni, at chegar aos donos atuais, Valdomiro e Rosangela Chamm, que esto frente da administrao do Valentino desde 1991. Em 25 anos de histria, o bar foi segunda casa dos bomios da cidade de todas as raas, crenas e opes sexuais, foi palco de peas de teatro, shows musicais de todos os estilos, atividades do FILO, exposies de artistas plsticos, lanamentos de livros e CDs, mostras de vdeo. Foi inspirao para msicas, poemas, livro, curta-metragens, histrias em quadrinhos. Recebeu visitantes ilustres, como Paulo Leminsky [sic], Glauco, Angeli, Cssia Eller e diversos msicos e atores que se apresentaram na cidade. O Valentino no apenas palco, mas Personagem da histria cultural de Londrina. (LONDRINA.PR.GOV.BR, p. 01)

Fonte: Matria na Folha de Londrina, 7 Abr 1993, arquivada e emprestada por Silvio Demetro

 

Poesia in Concert

Reportagem de evento no bar Valentino


            Londrina contava com um teatro que efervesceu a cidade, uma literatura em torno da marginalidade beatnik (mesmo que a literatura tenha ficado abandonada, como as notcias de 1993 mostram), MPB, rock e jazz, um espao bomio para artistas. No Bar Valentino, o Poesia in Concert cola estes fragmentos artsticos em um caldo coeso. Veja, por exemplo, um dos concertos que se chamava Palavra cantada palavra voando. A performance trazia, por exemplo, Mario Bortolotto com textos do Bukowski, em seguida tradues de Rimbaud, e, mais tarde, inclusive Maurcio com sua influncia japonesa, o haikai. Uma verdadeira Jam Poetry, como conta Silvio, pois envolve geleia, gosma, de misturas e sons de costura. At coisas improvisadas. Billy Holliday foi cantada, alm de outras experincias de solido do gueto americano. Essa geleia, que de um ponto de vista historiogrfico at pertence a um ncleo relativamente estvel de influncias, encontra uma contradio do ponto de vista crtico literrio.

 

A reportagem acima cita referncias marginais (Leminski, Sylvia Plath, gerao beat: Burroughs, Kerouac) em relao ao cnone tradicional. Mais curioso que, em certos momentos da crtica literria, essas referncias degeneraram a cultura e a poesia cannica americana. Pargrafos depois – assim como na outra notcia da Folha – introduz-se uma comparao com nomes aceitos pelo cnone, como os trovadores do sculo medieval e os gregos. A reportagem e os convidados pareiam comunidades culturais e estilsticas, aparentemente, vistas como antteses. A Folha escreve salmo e rap e Allen Ginsberg, por exemplo, ser recitado como se fosse um salmo.

O nivelamento entre dois estados distintos de crtica (a gerao marginal e os trovadores, os rapsodos) selado pelo Poesia in Concert enquanto uma reconquista de um lugar para a poesia na cidade. Assim fica registrado o impacto do Poesia em mdia pblica: a flexibilizao da trova para margem, a conciliao da progressista gerao beat com a tradio do rapsodo. Na dcada de 90 londrinense, essa afinidade potica condizia com um pblico que intelectualizava o marginal e marginalizava a canonicidade, como discurso crtico s bases morais da ditadora, dos discursos cvicos, ufanistas.

Essa afinidade potica, entretanto, j era comum no circuito crtico. Em uma entrevista com Burroughs, Rodrigo questiona o autor sobre seu processo de autor marginal institucionalizao literria. Burroughs responde: De certa forma isso verdade. Eu sou os Estados Unidos da Amrica! (LOPES, 1996, p. 13), o mesmo Burroughs que, segundo Rodrigo Garcia Lopes, foi um dos escritores do sculo 20 que mais levou adiante o desregramento gradual e racional de todos os sentidos proposto por Rimbaud[45] Outra afinidade entre o movimento crtico e o movimento artstico do Poesia in Concert est Anna Balakian, no livro O Simbolismo, publicado inicialmente em 1967, e publicado no Brasil pela editora Perspectiva em 1985. A literatura de Rimbaud ocorre pelo afastamento do literrio, com suas aventuras pessoais: Rimbaud foi, na verdade, o nico que escolheu a chamada fuga da literatura (BALAKIAN, 1985, p, 49). Rimbaud voa para a realidade, em oposio ao heri simbolista de Villiers, Axl, que se isola na inao e no sonho da torre de mrmore literria.  O tipo de viagem pessoal que encontra nos beatniks uma soluo agradvel – tornar a viagem (a perambulao na rua, o deslocamento social) um processo literrio, bem ao jeito da anlise de Frank (1979, p. 13). A arquitetura da cidade, nesse sentido, passa a ser um espao para o literrio do sculo XX. A experincia de viagem transforma-se em viagem literria.

Rapidamente, aponto a institucionalizao de Burroughs como um processo literrio da crtica americana que, ps dcada de 60, no conseguiria mais fingir que os Estados Unidos pertencia apenas aos subrbios (LOPES, 1996, p. 15). Isso seria ser cmodo com o neoconservadorismo que viria nos anos Ronald Reagan duas dcadas depois. Em direo a anlise de uma performance do Poesia in Concert, cito uma entrevista feita com Michael Maffesoli (2012, p. 166), no qual o autor explica:

por isso que o pensamento crtico no me parece mais ser um pensamento contemporneo. difcil de dizer, eu sei. Quando pensamos como intelectuais, pensamento crtico a grande tradio moderna do sculo XIX. O que quer dizer crtica? Em grego, krimeia, a balana do juiz. Pesam-se as coisas e retm-se o que precisa reter, jogando-se fora o que no presta. Marx dizia que o intelectual o crebro, o proletrio o vento, querendo dizer com isso que o proletrio agia, mas era necessrio o crebro que lhe desse luz. Atualmente, parece-me prevalecer uma posio afirmativa da existncia. O pensamento crtico o pensamento do no; o pensamento afirmativo, alis, nietzschiano, o pensamento do sim. Dizer sim vida. Ao passo que no pensamento crtico observam-se bem as formas de perfeio, as formas de submisso, as formas de explorao, etc., mas apesar de tudo existe o desejo de viver essa vida. O drama que existe uma discrepncia, um fosso enorme entre o pensamento intelectual e o vivido social em geral, e em particular no que tange s novas geraes. Para mim, todo o meu trabalho, tal como disse no meu livro A razo sensvel (um livro de epistemologia) tem sido o de mostrar que preciso desenvolver a existncia de um pensamento, que no seja um pensamento do exterior e crtico, mas que seja um pensamento do interior, que acompanha a vida.

No livro Elogio Razo Sensvel (1998), Maffesoli discute uma forma de pensamento orgnico, ou pensamento do ventre[46], no qual o corpo ps-moderno, em ruptura com o pensamento crtico, escolstico, vive um pr-moderno, uma organicidade arcaica (ou, chamadas assim apenas em relao ao pensamento moderno) a fim de dar fora a esse ventre. De acordo com Maffesoli (1998, p. 64-65), a organicidade remete para o vivente e para as foras que o animam. O que vive tende a se reunir, a conjugar os elementos dspares. quando o conjunto todo se sustenta que h vida. A observao ressoa no apenas com a organizao de elementos dspares da crtica literria no Poesia in Concert, como tambm com uma atitude especfica da juventude da poca: uma intelectualizao (ento, afinal, um pensamento crtico) das experincias do ventre, do corpo, da sensao. Dar o ventre palavra – corporific-la em pblico.

De volta ao Bar Valentino, o deslocamento social para aquele ambiente de Burroughs buscava flexibilizar uma crtica e um processo literrio que no poderia ser vivida na inao e no sonho de Axl. Nietzscheanamente falando, o dizer sim ao desregramento da vida, j prenunciado na aventura pessoal de Rimbaud, precisava imergir na rua. Logo, pensar o Bar Valentino enquanto espao do ventre no ignorar o pensamento crtico. Ao contrrio, pensar os fenmenos do Poesia in Concert como articuladores crticos, intelectuais, no apenas da experincia ditatorial, mas tambm como um espao de crticos sobre a crtica literria tradicional.

Gostaria, portanto, de analisar uma performance do Poesia in Concert da dcada de 90 disponvel no link a seguir, o qual sugiro acessar antes de avanar o texto: <https://www.youtube.com/watch?v=Ar2W0QdCl48>.

Em seguida, deixo um link, apenas para comparao, da mesma performance sendo ensaiada: <https://www.youtube.com/watch?v=H0qhVvquy3Q&t>   

Sobre o equipamento do palco, nada muito sofisticado em termos de equipamento, Mario e Rodrigo dizem. Microfones e um violo. A balada em questo entre country e blues, tcnicas de slides do violo e um som descontrado. Nada grave, nada melanclico, um pouco texano, um pouco relaxado. Um pouco daquela msica de bar mesmo.

Rodrigo est prestes a ler uma traduo de Lawrence Ferlinghetti (precursor dos beatniks), Sometime During Eternity.... Destaco aqui uma frase de Leminski que Rodrigo confidenciou a mim Cantar apenas a maneira mais bonita de dizer. Assim como os slides do violo, haver uma escorregada – entre dizer e cantar – durante a performance e, propositalmente, obscurecida sobre seu ponto exato de transio. Ou seja, Rodrigo propositalmente quer obscurecer a tcnica de sua voz, se canto ou se est dizendo. Escreverei um asterisco (*) a fim de transcrever os momentos de impreciso. Entre parnteses est a interveno de Rodrigo no poema, ou seja, partes que no correspondem a uma traduo, correspondem a marca de oralidade performtica.

Rodrigo segura um papel na mo. Comea:

Era uma vez

Durante a eternidade

Uns carinhas entram em cena

e um deles

Que pinta meio tarde no pedao

um tipo de um carpinteiro, meio bicho grilo

Vindo de algum lugar careta, tipo... Galileia

E o cara comea a delirar e dizer que ele o O cara – o O cara

E que t em ligao direta com a figura que fez o cu e a terra

E que o sujeito que aprontou essa com a gente o papai dele

E tem mais: o carinha diz que tudo isso est escrito nos rolos de pergaminho

que os brders dele mocozaram em algum canto do mar morto

*H muito tempo atrs...

E que vo ficar assim perdidos durante milhares e milhares e milhares de anos

*1947, pra ser exato

E mesmo assim, ningum t nem a pra o que ele diz

A dizem assim pra ele, n (pro Jesus, obviamente, que a figura toda): *bixo, voc quente

E penduram o cara numa cruz pra ele esfriar a cabea

E desse dia em diante todo mundo entra numas e comea a fazer modelitos dessa cruz, que o cara t pregado, e ficam cantando embaixo dela pedindo pra ele ([comea a gaguejar]) descer dali [caoa a orao rabnica, fazendo sons guturais, incompreensveis] e entrar pro grupo e tirar um som tambm, j que ele o fera, o cara quente, o... (tal, n, o cara) que tem que mandar a ver (mesmo, n, porque se no for Jesus, hoje em dia, eu no sei quem ), se no, nada v

s que dali o cara no desce nem a pau

Fica ali pendurado, fica ali frio, ali na dele, dando um time (meu time! [abre os braos imitando a crucificao]

E, tambm, segundo informam as ltimas notcias das agncias internacionais, vindo de fontes nada fidedignas, como sempre

realmente – morto

Na performance, h palavras marginais, misturas entre ingls e portugus, uma caracterstica da urbanidade brasileira – que tambm resgata um estilo vanguardista de Oswald de 22. O nomadismo de informao, citado por Slvio, alm de referncias artsticas, traz referncias lingusticas aportuguesadas. Observa-se, tambm, inseres subjetivas de Rodrigo entre um verso e outro do poema de Ferlinghetti, quando, por exemplo, caoa o termo time ao simular a gravidade do Cristo na Cruz: Meu, time! (imita a crucificao). Entre uma palavra e outra h o blues: a ateno desfoca, acidentalmente/escorregadiamente, daquela semntica literria, ficcional, para a atmosfera bomia do bar, da rua: as conversas paralelas, o trnsito dos carros, o rudo dos garfos e pratos, o relacionar-se com a espuma da cerveja e beb-la enquanto algum assopra a fumaa do cigarro e o country-blues os imerge no bar. Quase no se sente que se trata de uma conversa sobre a bblia – ento volta-se narrativa, ao eu-lrico que, localizado naquele espao com qual se relacionam, marca sua presena como membro do espao.

A linguagem performtica antropomorfiza a boemia e o violo como quem diz: Arthur Rimbaud era como ns. Ns existimos com os gregos antigos. O blues foi inventado em uma lira deitada de trovador que fumou algum pio; se perdeu em herona encontrada no bar da av. Bandeirantes, nmero 61, banheiro do sculo XX. E a santificao de Cristo um assunto para os slides dos negros – porque, como a rua e como o blues, a cruz somos todos ns. Jesus, afinal, era da margem e foi aoitado. Era grunge. Era da parte de baixo do continente americano. Era de Londrina. Era do Valeco.

o limiar crtico por onde nasce o Poesia in Concert: viver o arcasmo do ventre com a experincia dionisaca sonora, grega, da maneira de um trovador. Nesta performance, h o fenmeno crtico-literrio que, at hoje, faz parte da herana cultural de Londrina: ser crtica, ser literria, e ainda assim sentir a pulga atrs da orelha quando se trata do cnone.

Conforme explica Rodrigo, no havia nada acadmico. Nada formal. Nada intencional. Era uma maneira natural como viam a cultura: sincrnica, ver todos os poetas como absolutamente contemporneos e, por isso, no haveria necessidade de deslocar Shakespeare de um poeta contemporneo brasileiro. a viso sincrnica que herda de Ezra Pound, sobretudo a viso da poesia produzida at hoje como um manancial, como uma fonte rica, himalaia, como um topo que pode ser escalado por vrios lugares. Nesta perspectiva de um manancial, Rodrigo acaba recuperando a oralidade – traduz, por exemplo, o poema O Navegante (The Seafarer), poema anglo-sax (antes da lngua inglesa) com mais de 900 anos de idade. curioso, portanto, a perspectiva do Rodrigo de observar o Poesia in Concert como uma produo nada acadmica. Pois, embora no tenha nascido pela Academia, os discursos e deslocamentos se tornaram pontualmente crticos de um sistema de vida ufanista, tradicionalista, dos bons costumes, dos bons valores.

O poema de volta rua deve perder o carter escolstico para vocalizar a fora do ventre – o deslize entre falar e cantar, como critrio esttico, seria o que localizaria o poema na vanguarda ou no clssico, talvez, entre a universidade e o mercado massivo. Enfim, importante que o poema esteja nos bares para embebedar seu ventre. importante que se torne pblico para evitar, nos momentos de distanciamento social, ser monopolizado pelo processo acadmico.

 

 

Legado e concluso

 

Trata-se de uma lei social bem conhecida: todas as coisas tendem a debilitar-se. Perde-se memria da efervescncia fundadora. O choque amoroso torna-se tdio conjugal, a energia revolucionria metamorfoseia-se em partido poltico institucional, o dinamismo juvenil dos comeos inverte-se em repetitividade montona. At mesmo a intuio criativa de um pensamento inovador tende a tornar-se sistema esttico com os seus dogmas e o seus ces de guarda zelando, ciosamente, pela rigidez doutrinal (MAFFESOLI, 2002, p. 22)

Os criadores do Poesia in Concert saem de Londrina no final da dcada de 90. Depois dos anos 2000, Rodrigo, Mrio e Maurcio permaneceram artistas com estticas performativas. Mrio participa de dois grupos, Trovadores do Miocrdio e o Jazz Poetry. O Trovadores trabalha com um DJ que providencia camas sonoras para as leituras. Costuma trabalhar com temas. Em setembro do ano da concluso deste trabalho (2018), pretendiam comemorar o aniversrio de Nick Cave. J no Jazz Poetry, os escritores escolhem o jazz que acompanha textos autorais. Rodrigo desabafa sobre as apresentaes contemporneas do Poesia em Londrina: a nica coisa que parece repetitiva e sem criatividade que sempre o blues, conta.

Hoje, o Valentino, na Rua Prefeito Faria Lima, passou a ser visto como um lugar menos da margem, mais elitizado – de fato, em Londrina de 2018, os espaos das coisas marginais, viscerais e espontneas so outros. Outras so, tambm, as estticas do marginal. A Vila Cultura Cemitrio de Automveis o espao principal, onde, inclusive, acontecem a maioria dos encontros de Poesia in Concert.

Christine Vianna, porta-voz do Benditos Energmenos (banda de poema e msica blues, inicialmente fazia leituras de poemas brasileiros, inclusive fora do Brasil, at, ultimamente, investir em trabalhos autorais) era pblico do Poesia in Concert em 1990. Aproximou-se da msica atravs do Poesia. Em 2009, reinsere o Poesia na pauta londrinense celebrando o aniversrio da cidade de 75 anos, que acontece em 10 de dezembro. Apresenta o show no Museu de Arte, em julho e, em novembro, na Vila Cultural. A partir de 2010, o incorpora ao Londrix, que planeja as apresentaes do Poesia principalmente na Vila Cultural (j aconteceu, tambm, na Concha Acstica, em Londrina, em 2012).

O festival literrio de londrina, Londrix, discute a palavra atravs de vrios ngulos: confraternizao com escritores, oficinas, palestras, leituras, lanamentos de livros. Christine resolveu retomar o Poesia in Concert neste contexto de tate-lo, de perceb-lo, de expandir a experincia com a palavra. A diferena que, anexado ao Londrix, o espao tambm de um pensamento conscientemente crtico (uma vez que o festival organizado, principalmente, por nomes da Universidade Estadual de Londrina). Nesse festival, de experincia crtica e de experincia do ventre da palavra, a vida de bar mais limitada.

Entenda: na dcada de 90, o Poesia in Concert era um evento do bar. Um lugar de comrcio, aberto cotidianamente, no qual o pblico vai e vem com liberdade. Com a insero do evento em um festival e um espao cultural especfico, no qual a experincia direta da boemia no bar restrita, a palavra-voz do Poesia sofre outra experincia sociolgica. No corre o risco, como era o caso do Poesia em 90, de um cliente despreparado entrar no bar e por acaso sentir o hlito alcolico de Rimbaud. H boemia e h bebidas na Vila Cultural, mesmo assim. O que ocorre que quase 40 anos depois da ditadura, as necessidades crticas da literatura so outras.

Com a insero do Poesia in Concert em um festival literrio, o equipamento e as possibilidades aumentam com o investimento monetrio. Christine relatou o nmero de bandas locais, por exemplo, que se empenham em trazer novas materialidades sonoras palavra. Bonus Trash, com punk rock e performances energticas, quase esquizofrnicas, como se a ansiedade manaca ganhasse pernas. Outras bandas locais, como Radicais Livres que em parceria com o Benditos, sonorizaram poemas de Herman Schmitz, curitibano naturalizado londrinense. Dentro de um festival literrio, so vrias as conversas literrias, vrias as referncias e, conforme avanam os anos e as percepes – e os poetas – natural que se notem novas performances montadas. Inclusive novos objetivos.

Se antes o Poesia in Concert queria questionar o conceito de literrio, hoje quer assegurar uma educao poltica sobre o conceito. Christine, como professora e musicista, usou o projeto para levar poemas londrinenses s escolas. Alunos vinham pedir os poemas apresentados, ela conta a experincia. Voc canta, professora? No canto, eu falo. – agora o trajeto contrrio. O foco se torna questionar o conceito de msica e som pela fora literria. Nesse percurso, a educao retira o aluno apenas da experincia do ventre para inseri-lo experincia cognitiva (um objetivo que, na presente dcada, parece mais adequado).

Antes o discurso fazia oposio ufanismo ditatorial e priso da palavra acadmica; hoje, as necessidades de oposio so outras. Christine reitera: as redes de literatura de massa no trabalham o diferencial; e o diferencial desconstri uma estrutura de realidade fixa. Cabe vanguarda, que est frente na questo cultural, mostrar coisas que so produzidas margem da rede de massa.

Nesse sentido, no preciso mais recitar Burroughs, Kerouac, Leminski; todos esses nomes vo muito bem e obrigado. O atual levantar bandeira levantar o nome de um autor independente para o conhecimento pblico. Esse o novo propsito do Poesia in Concert: fundamentar um espao de arte independente, e disseminar a mesma arte independente entre os espaos londrinenses, um circuito de divulgao e fundamentao da arte local.

Observe uma diferena de resposta de palco: em uma apresentao relatada por Christine com o Benditos em Curitiba, havia 800 pessoas, espao lotado. Era uma homenagem a Paulo Leminski. Um bbado, talvez drogado, subiu no palco e abaixou a cala. Segundo a autora, ele ficou assim, meio de quatro. Aquilo foi constrangedor, desconcentrou, tirou a ateno do show para o moo – e o que fazer, ento? O show no podia parar, conta Christine. Se a poesia no enlaa o pblico, ele se perde; voc tem que prender ateno com o fluxo. Eu abaixei no mesmo nvel que ele, ela diz. E fiz o poema pra ele. Ele ficou calmo; estava agitado... e acredito que tenha sido envolvido pela poesia – eu olhei pra ele, e as pessoas aplaudiram muito.

diferena dos msicos, poetas e tradutores universitrios, recm-formados, que atuaram no primeiro Poesia in Concert para um pblico de bar, o contexto escolar de Christine contextualiza a literatura inicialmente com formar e educar, menos preocupada com o desregrar dos sentidos. questionvel se a resposta de palco do primeiro Poesia ao bbado teria sido acalm-lo.

Assim, menos preocupada com o discurso de uma palavra no bar, h um discurso mais apegado palavra enquanto um direito humano de Antonio Candido. Inclusive, literatura pensada como ativismo poltico e manuteno de espao para os direitos humanos. Nesse sentido, no Poesia in Concert atual h uma ideologia da raiz, que parte, por exemplo, dos poemas e do blues americanos, ressaltados nas figuras Amiri (1996, p. 44-47) e Wanda (1996, p. 113-116), entrevistadas por Rodrigo Garcia Lopes. Embora nos dois Poesias haja diferentes relaes sociolgicas com Londrina, o evento permanece como um espao para discursar um processo crtico da literatura contrrio cifra monetria da literatura de massa.

O sentido do Poesia in Concert (palavra que retorna rua) um sentido que se ressignificou conforme as necessidades sociolgicas da palavra e da rua mudaram. Antes, levar a palavra para rua e para o bar. Agora, lev-la s escolas. Quando vestida de elite, dar-lhe roupas da rua; quando se tornar marginalizada demais, reivindicar uma palavra que resguarda direitos humanos. Se a palavra for monetizada pelos recursos de massa, educar ao diferencial, educar palavra enquanto um outro. Ora, assim como Burroughs foi institucionalizado pela crtica norte-americana, a qumica efervescente do Poesia marginal se transformou em uma matria-prima. Agora, o que fazer com um Burroughs que j vendido at em lojas de rodovirias? Responder com aqueles que raramente conseguem uma prateleira.

A literatura, a palavra, participam dos processos de lucro. indubitvel. A Forbes publica anualmente uma lista com 10 escritores de fico norte-americana milionrios. A palavra comercializada em forma de Facebook, Whats App e Tweets globalmente compartilhados. E, com o raciocnio relativista ps-moderno, haver discusses interminveis sobre o que existe ou no de literatura nisso. A palavra gira um capital considervel. O que o crtico literrio e o empresrio tm em comum querer entender quais palavras so mais capitalistas do que vanguardistas. Entre os dois momentos do Poesia, Rodrigo Garcia e o Benditos Energmenos quiserem abordar a palavra pelo sentido contrrio mare.

Embora os sentidos e as projees do Poesia in Concert tenham sido atualizados, observa-se um espao londrinense para se opor ao sentido mainstreem da palavra. Talvez seja essa a maior herana de colocar a palavra na rua. Conhecer aquele que, no centro da cidade ou na periferia, o outro.

 

 

Referncias

 

BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. Traduo Jos Bonifcio. So Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

BULIK, Linda. Entrevista com Michel Maffesoli. In: SANTOS, Volnei Edson dos. (Org.). O trgico e seus rastros. Londrina: EDUEL, 2012

CARNEIRO DOS SANTOS, Ftima. Vozes da cidade: por uma escuta que inventa. In: EWALD, Felipe Grne... [et al.]. Cartografias da voz: poesia oral e sonora: tradio e vanguarda So Paulo: Letra e Voz; Curitiba: Fundao Araucria, 2011.

 

FERNANDES, Frederico. O caso Londrix: subjetividade, territorializao e poltica na poesia de Maurcio Arruda Mendona. Estudos de literatura brasileira contempornea, n. 52, p. 102-121, set./dez. 2017.

 

FRANK, Ellen Eve. Literary Architecture: Essays Toward a Tradition: Walter Pater, Gerard Manley Hopkins, Marcel Proust, Henry James. Berkeley University of California Press, 1979.

 

MAFFESOLI, Michel. Entre o bem e o mal: compndio de subverso ps-moderna. Traduo de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

 

___________. Elogio razo sensvel. Traduo de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrpolis: Vozes, 1998.

 

LOPES, Rodrigo Garcia. Vozes & vises: panorama da arte e da cultura norte americanas hoje. So Paulo: Editora Iluminuras, 1996.

 

ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo. Traduo de Jerusa Pires Ferreira e Snia Queiroz. So Paulo: Ateli editorial, 1995.

 

___________. Performance, recepo, leitura. Traduo de Suely Fenerich. So Paulo: EDUC, 2000.

 

Referncias digitais

 

Bar e Restaurante Valentino. Disponvel em: <http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_cultura/patrimonio_historico/bar-restaurante-valentino.pdf> Acesso em: 18 Aug 2017

 

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Valentino Londrina Poesia in Concert. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=H0qhVvquy3Q&t> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 01. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=tIy0OEMNABY> Acesso em: 4 Jul 2018

 

Poesia in Concert 02. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=84CEnYt6oug> Acesso em: 4 Jul 2018

 

Poesia in Concert 03. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=pZ8dq0HVwFQ> Acesso em: 4 Jul 2018

 

Poesia in Concert 04. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=VhzqaZVJGDE> Acesso em: 6 Jul 2018

Poesia in Concert 05. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=iwjNapgt1Uc&t> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 06. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ar2W0QdCl48&t> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 07. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=mWQVuw3AoRA> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Resumo debate cultura em Londrina. Disponvel em <https://www.youtube.com/watch?v=hfLs-pmZWm0> Acesso em: 22 Jun 2018

 

Pasta com entrevistas realizadas.

Disponvel em: <https://1drv.ms/u/s!AknHzGD3Drz3gdYOg8ti2RsNAdRBqA?e=eltDAg> Acesso em: 4 de Maio de 2021

 

 

 

[Recebido: 04 mai 2021 – Aceito: 04 jun 2021]

 

 


 

 

Vozes poticas e (re)existncias quilombolas do Grupo Razes do Samba de Tocos de Antnio Cardoso - BA

 

Poetic voices and quilombola (re)existences of the Razes do Samba de Tocos Group by Antnio Cardoso – BA

 

Renailda Ferreira Cazumb[47]

https://orcid.org/0000-0002-3396-1962

 

Eliziane Santos e Santos[48]

https://orcid.org/0000-0001-9685-0066

 

 

Resumo: A vida e as histrias dos mestres e mestras, sambadores e sambadeiras do grupo Razes do Samba de Tocos de Antonio Cardoso - BA resguardam um precioso manancial potico e narrativo corporificado em sambas e histrias tradicionais do grupo. Nesse sentido, este artigo pretende visibilizar a interao e a recolha das vozes do repertrio cultural oral e os referenciais ancestrais afro-brasileiros a partir do levantamento e registro do seu repertrio oral. Fruto das aes da pesquisa Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo Razes do Samba de Tocos de Antonio Cardoso – BA, este estudo concentra-se em acessar as narrativas de cunho oral e autobiogrficas dos mestres do samba rural. O aporte terico-metodolgico se fundamenta na teoria de Benjamin (1994), nas concepes de Costa (2015) acerca dos narradores tradicionais, em Ferraroti (1988), sobre o mtodo autobiogrfico, e nas concepes de Hampat B (1977) a respeito da tradio oral em comunidades africanas. O manancial narrativo insere os sambadores/sambadeiras do Razes do Samba de Tocos dentre os guardies das vozes ancestrais que reencenam as (re)existncias negras no interior da Bahia.

 Palavras-Chave: Razes do Samba de Tocos; Vozes poticas tradicionais; (Re)existncias.

 

Abstract: The life and stories of mestres and mestras, sambadores and sambadeiras of the group Razes do Samba de Tocos by Antonio Cardoso - BA traditional knowledge constitute precious poetic and narrative source embodied in sambas and traditional stories by the group. In this sense, this article intends to make visible the interaction and collection of the voices of the oral cultural repertoire and the Afro-Brazilian ancestral references from the survey and registration of their oral repertoire. It is the result of the research actions of the project Cacimba de histrias: vidas e saberes dos contadores de histrias tradicionais de cidades do interior da Bahia, (UEFS/ UFSB/UNILAB), study focuses on accessing the oral and autobiographical narratives of the masters of rural samba. The theoretical and methodological contribution is based on Benjamin's theory (1994), on Costa's (2015) conceptions about traditional narrators, Ferraroti's (1988) theory about the autonomy of the autobiographical method, and Hampat B's (1977) conceptions about oral tradition in African communities. The narrative source inserts the sambadores/sambadeiras of the Razes do Samba de Tocos among the keepers of ancestral voices that re-enact black (re)existences in the interior of Bahia.

Keywords: Razes do Samba de Tocos; Traditional poetic voice; (Re)existences.

 

 

Introduo

 

Neste artigo socializamos parte dos resultados da pesquisa Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo Razes do Samba de Tocos de Antonio Cardoso - BA (FAPESB/2019-2020), na qual realizamos o levantamento do repertrio cultural de cunho oral advindo dos mestres e mestras sambadeiras integrantes do Grupo Razes do Samba de Tocos, da comunidade quilombola situada no municpio de Antnio Cardoso, estado da Bahia. Interessadas em investigar a preservao e a visibilizao dos saberes populares provindos dos narradores tradicionais do Recncavo Baiano, interagimos com o grupo por reconhecermos o processo de silenciamento e marginalizao desse conhecimento no mbito da educao formal, assim como o possvel apagamento desse acervo cultural na sociedade moderna.

Neste sentido, focalizamos as vozes poticas das sambadeiras e sambadores, por meio do intercmbio de saberes entre a comunidade tradicional, que o campo emprico da nossa pesquisa, e os espaos acadmicos envolvidos. Neste percurso, interagimos com o Mestre Saturnino Dias Neri, de cognome Mestre Satu, e com as sambadeiras Antnia Neri e Valdemira Sena de Almeida, Dona Mira, integrantes do grupo de samba tradicional na comunidade quilombola de Tocos, atravs da Entrevista Narrativa. Tais aes resultaram no levantamento e registro das histrias contadas – verses originais de contos populares e de sambas rurais – de forma individual e coletiva pelos sambadores, situados no estudo como narradores tradicionais e que revelaram um manancial potico tradicional a ser reconhecido como repertrio das reexistncias negras no contexto das comunidades quilombolas do interior da Bahia.

O mestre e as sambadeiras, atores da pesquisa em questo, foram situados a partir da concepo de narradores tradicionais, adotada durante o processo de investigao. Para tanto, essa movimentao fundamentou-se na teoria de Walter Benjamim a respeito de quais traos caracterizam um narrador tradicional. Segundo o filsofo alemo:

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para alguns casos, como o provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria experincia, mas em grande parte experincia alheia. O narrador assimila sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom poder contar sua vida; sua dignidade cont-la inteira. O narrador o homem que poderia deixar a luz tnue de sua narrao consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIM, 1994, p. 221).

Alm da definio da figura do narrador tradicional, que popularmente conhece e possui o acervo dos saberes, buscou-se, de antemo, compreender qual a funcionalidade desse indivduo para a sociedade. Segundo Edil Costa (2015, p.06): O papel dos narradores tradicionais o de interpretao e recriao da memria ancestral que herdaram e, a seu modo, preservam. Sendo assim, chegamos at Mestre Satu, Dona Antnia e Dona Mira, um trio de ancies que representam a sua comunidade e resguardam saberes coletivos. Ouvimos e aprendemos com o mestre e as sambadeiras sobre a importncia da preservao desse manancial cultural, pois que tais saberes, segundo esses sujeitos, esto se tornando raros na contemporaneidade.

 

 

A perspectiva metodolgica autobiogrfica

 

O Grupo Razes do Samba de Tocos liderado pelo Mestre Satu e se constitui como grupo h cerca de 16 anos, a partir dos encontros entre vizinhos, amigos e familiares que se reuniam de forma frequente a fim de celebrar as datas religiosas como as novenas, a festa de Reisado (o Rei, segundo denominam) e as festas para os caboclos – manifestaes estas sempre regadas com rezas, cantigas e sambas que variam em suas mltiplas modalidades, como o samba coco, o cantado e o pisado. O grupo formado principalmente por camponeses e camponesas que vivem na regio da antiga fazenda de Tocos, municpio de Antnio Cardoso, no interior da Bahia, a 30 km de Feira de Santana, o qual tem como principal atividade econmica a produo agrcola, especialmente do fumo, milho e feijo (SESC, 2014). Para alm do lder, integram esse coletivo Roque da Viola, Afonso das Virgens, Antnio Luiz, Manoel Conceio, Dona Antnia, Dona Edilma e Dona Maria de Lourdes.

Mestre Satu, Dona Antnia e Dona Mira participam desta pesquisa por integrarem especialmente uma comunidade afro-brasileira, na qual est concentrada a cultura negra ancestral de forma muito potente atravs, sobretudo, da memria e da oralidade. Esse aspecto torna-se relevante ao considerarmos a concepo do etnlogo e filsofo malins Amadou Hampat B sobre a relao da oralidade com a formao das sociedades africanas, a saber:

Quando falamos de tradio em relao histria africana, referimo-nos tradio oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histria e o esprito dos povos africanos ter validade a menos que se apie nessa herana de conhecimentos de toda espcie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discpulo, ao longo dos sculos. Essa herana ainda no se perdeu e reside na memria da ltima gerao de grandes depositrios, de quem se pode dizer so a memria viva da frica (HAMPATE B, 1977, p. 1).

A contribuio de um dos maiores pensadores africanos do sculo XX para que a oralidade fosse reconhecida como uma fonte significativa e especialmente legtima de circulao de conhecimento histrico foi a fundamentao indispensvel para o desenvolvimento desta pesquisa. Pensar na histria e na cultura pertencentes aos diversos povos africanos falar de oralidade e memria e, portanto, no haveria via mais simblica para nosso estudo do que a de adentrar em uma comunidade quilombola afro-brasileira atravs das manifestaes de cunho oral em toda a sua multiplicidade, a fim de acessar e fazer o levantamento dos seus saberes presentes nas memrias do grupo.

Ao se referir ao saber tradicional dos narradores enquanto um acervo resultante de toda a trajetria de vida desses indivduos, o autor supracitado Walter Benjamim (1944) nos apresenta um importante recurso para a gerao de dados de pesquisa: os relatos autobiogrficos.

A fim de alcanar estes materiais, adotamos a perspectiva metodolgica autobiogrfica e nos embasamos nas concepes do socilogo Franco Ferraroti em relao autonomia do mtodo (auto)biogrfico, com base na etnografia, e considerando as prticas e saberes de alguns dos integrantes do grupo Razes do Samba de Tocos. Segundo aquele que foi descrito como pai da sociologia italiana moderna: (...) o nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delrios, obras, comportamentos. E a histria deste sistema est contida por inteiro na histria da nossa vida individual (FERRAROTTI, 1988, p. 26). Dessa forma, tencionamos partir da investigao das histrias individuais do Mestre Satu, da Dona Antnia e da Dona Mira a fim de, para alm dos relatos de suas vivncias, abranger narrativas que dialoguem com a memria de Tocos enquanto uma coletividade. Para isso, foi utilizado um dispositivo de produo e anlise de dados de pesquisas, qual seja, a Entrevista Narrativa:

 

Idealizada por Fritz Schtze como um dispositivo para compreender os contextos em que as biografias foram construdas, os fatores que produzem mudanas e motivam s aes dos portadores da biografia, essa entrevista produz textos narrativos sobre as experincias das pessoas, expressando maneiras como os seres humanos vivem o mundo por meio de histrias pessoais, sociais e coletivas. Ela tem como objetivo incentivar a produo de uma narrativa pelo depoente (MOURA; NACARATO, 2017, p. 17).

Este dispositivo tende, na verdade, a promover uma ruptura com o padro de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas e oferta uma maior flexibilidade para que o entrevistado tenha a fluidez necessria para transitar por diversos temas de seu interesse, sem que uma sequncia de perguntas limite suas narrativas. Ademais, propicia no apenas o levantamento de histrias pessoais como tambm a anlise do contexto no qual o indivduo est inserido, considerando os atravessamentos de idade, gnero, raa, etnia, classe social e momento histrico.

Dessa forma, a nossa entrevista narrativa ocorreu de forma coletiva e on-line no dia 26 de maio de 2021, atravs da plataforma digital Google Meet, assim configurando as adaptaes que j estavam previstas desde o incio da pesquisa devido s restries consequentes da pandemia de COVID-19. De antemo, foi elaborado um material com algumas questes disparadoras apenas para nos guiar durante a entrevista, mas o contedo real foi conduzido pelos mestres e pelas mestras que, com pouco tempo de gravao, j se sentiam vontade para fazer da memria o seu principal orientador. Em sequncia ao trabalho de interao com os mestres da comunidade de Tocos, o movimento foi registrar todo o material coletado, que variou desde os relatos autobiogrficos at verses de contos populares e letras de samba.

No processo de entrevista aos mestres h muitos detalhes da performance oral e narrativa que, infelizmente, apenas a escrita no capaz de captar. Os corpos desses contadores tradicionais narram significativamente, bem como o olhar, os gestos, o riso e outros elementos contribuem para uma compreenso mais ampla do que est sendo narrado e cantado. Portanto, dentro de todas as limitaes dos textos escritos, buscamos transpor para as letras algumas dessas manifestaes, deciso que tornou o processo de transcrio um dos mais rduos de toda a pesquisa. Traremos, no corpo da anlise, trechos das narrativas com o mestre e sambadeiras, a fim de potencializar o texto escrito com a riqueza do manancial potico-narrativo do grupo.

 

 

As vozes poticas do Razes do Samba de Tocos: ancestralidade e reexistncia

 

Nossa inteno no a de dar voz ao grupo de sambadores e narradores tradicionais, pois cremos que nosso percurso se concentra em dialogar e aprender com o grupo, ponderando que a voz j pertence aos narradores e so sua fonte de vida e reexistncias. A Entrevista Narrativa coletiva concedida a ns pelo Mestre Satu, pela Dona Antnia e pela Dona Mira foi organizada de forma a promover a socializao de narrativas, aps pedirmos licena para adentrar ao espao da ancestralidade do grupo. Nas conversas, os sambadores nos revelaram, no primeiro momento, a sua identidade enquanto indivduos; em sequncia, como sujeitos imersos em um determinado grupo e, por fim, enquanto mestres da tradio popular do Recncavo Baiano. A ttulo de exemplo desse movimento tem-se o relato do Mestre Satu acerca da origem do seu nome, portanto, do comeo da sua histria de vida: 

Saturnino Dias Neri, meu apelido Satu, Mestre Satu e meu nome Saturnino Dias Neri. Meu pai me contou um negcio do nascimento era que os pai pra registrar os fi tinha que v um livro, um almanaque de pensamento que era pra escolher o nome dos meninos quando nascia, ai escolhia, fulano nasceu nim tal ms ai botava o nome, quer dizer que era um pensamento que as pessoa tinha, iai botaram meu nome Satu, Saturnino e botaram o apelido Satu e , acho que bem pouco que tem aqui no municpio porque  o povo no, hoje tudo pensando como eles quer fazer, antes dos meninos nascer j t com nome marcado n: vou botar fulano de tal, isso e aquilo outro. Papai e mame se reuniram e botaram Saturnino (Mestre Saturnino Neri).

Nascido e criado no municpio de Antnio Cardoso, o Mestre Satu filho de Jovina Neri de Souza e Isdio Dias de Souza, e possui oito irmos, dentre os quais sete so mulheres e um homem. A memria muito viva um dos traos que nos saltaram aos olhos durante a interao com o Mestre Satu, no auge dos seus 79 anos: cantador, contador e rezador, ele nos narrou histrias completas da sua infncia e juventude, perodo este marcado especialmente pelo trabalho manual nas roas:

Era tudo devagar, mas dava pra passar, dava pra divertir, a gente ia trabalhava mais os pais, mais as mes, a vaidade era passear mais os amigo. j era tudo marcado e a ida era marcada, ali a gente no podia sair pra ir pra canto nenhum, era tudo dominado, escravizado. Quando terminava o servio iam pra roa, ia pisar milho, catar baxeiro, sentar pra amarrar fumo, era um bocado de coisa. Iai quando terminava de tarde : vo pra roa fazer a rocinha de vocs, ai a gente vinha fazer a rocinha da gente, prantava um feijozinho, prantava um pezinho de fumo, no tinha munturo naquele tempo, a gente ia pros matos, pros morros pra pegar folha de Gravat pra fazer os munturo, a gente no podia sair numa estrada se no fosse acompanhado que naquele tempo a polcia pegava, os inspeto pegava (sinal de lavar as mos) e ajeitava l, ai ia levar pros pais chegava l entregava pros pais. Mai, mai! eu no tenho tristeza por isso no, gostei muito, eu prantava meu fumo, prantava meu feijo, no vendia, mas dava pra gente cumer, quando eu peguei a me entender, a eu peguei, plantei minha roa, prantando minha farinha e levando pra Anguera pra vender pra eu comprar roupa pra vestir, chapu sapato... (Mestre Saturnino Neri).

A memria da infncia e juventude do Mestre Satu demonstra como a explorao pode ser relativizada no meio das comunidades afro-brasileiras. Apesar de reconhecer a grande sobrecarga de trabalho presente no seu cotidiano e no dos seus pares, ao empregar termos como escravizados e dominados, o mestre afirma que no sente remorsos ou tristeza ao se recordar do passado, e que dava para se divertir. Dessa forma, podemos refletir que, apesar de em nenhum momento o Mestre ter abordado de forma literal as questes raciais, esse discurso se revelou atravs da sua fala e do relato de como os seus corpos foram estruturalmente controlados e destinados, quase que integralmente, ao labor e subsistncia – enquanto o lazer, as brincadeiras e o aspecto ldico, que deveria predominar durante sua infncia, foram elementos distantes da realidade desse sujeito e das outras crianas do seu entorno.

Na vida do Mestre Satu essa problemtica no se restringe aos primeiros anos de sua vida, mas segue ao longo de sua trajetria, visto que ele afirma, nos desdobramentos finais da entrevista, no dominar a linguagem escrita devido s suas jornadas de trabalho. Essa temtica surgiu enquanto falvamos da literatura de cordel, muito bem representada na comunidade por Antnio Ribeiro da Conceio, nacionalmente reconhecido como Mestre Bule-Bule. Outras possveis literaturas poderiam ter feito parte das suas vidas e da memria do grupo, conforme Dona Mira nos revela: Vou dizer, eu no sei l, no sei l, guardo tudo na minha cabea. Essa declarao ensejou o mestre a contar tambm a sua experincia e a forma com que a necessidade de trabalhar para sustentar seus doze filhos o impediu de dedicar o seu tempo aos estudos, escrita e aos livros:

Meu tempo no dava pra eu l esse negcio de cordel, meu cordel era rancar toco pra criar meus fio, aqui em Cruz das Almas pra c, eu rancava toco ai em So Gonalo, Santa Matibiri, Conceio de Feira, esses pau tudo, a gente saa daqui com uma mochila nas costas pra ir trabalhar, rancar toco, cortar lenha pra poder criar os filhos, mas graas a Deus meus fi ta criado e eu tambm no perdi a minha disposio, a minha vontade, sou feliz, hoje eu sou o que eu no esperava, meus filho no me d dor de cabea, todo mundo tem seu trabalhozinho pra trabalhar, todo mundo tem seu larzinho pra colocar, tem seu motorzinho, ento eu tenho alegria (Mestre Saturnino Neri).

Ainda nesse contexto possvel trazer para a discusso os relatos das vivncias da Antnia Lima Neri, sambadeira e companheira do Mestre Satu h mais de cinco dcadas, alm de me de doze filhos que, segundo ela, foram criados com muito esforo e trabalho: (...) tudo nesses bracinhos capinando terra, prantando mandioca, batata, fumo, pisando milho pra fazer cuscuz, mucunz pra criar, criei. Graas a Deus eu t reagindo ainda, pareceu um sambinha a nois samba n, graas a Deus, t arrependida no. Em relao aos estudos, Dona Antnia afirma que tambm no domina as letras, entretanto, lista uma srie de outros saberes que ela possui: (...) sei fazer um caruru, um vatapazinho de So Cosme, sambar, trabalhar de enxada, fazer beiju no forno, isso a eu sei ne, e passear.

Ademais, tambm conseguimos fazer o levantamento das narrativas da Valdemira Sena de Almeida, filha de Valeriana Sena e Firmino Gonalves, viva de Adolfo Paulino dos Santos e que se apresenta pelo apelido Dona Mira. As falas dessa sambadeira nos trouxeram resultados bastante enriquecedores, pois, ao fazer relatos de sua infncia, ela estabeleceu um panorama do modo com o qual tanto ela como seus pares foram introduzidas no samba e nas tradies populares da comunidade quilombola de Tocos:

A gente ia pro samba, minha me botava a gente pra ir pra uma reza, a gente ia mais ela, chegava l o pessoal botava uma esteira no cho, as mes falava "vocs tem que ficar aqui comigo, at terminar a reza" a gente ficava l, quando terminava a reza ia cantar o rei, ia cantar o rei a gente ficava l de junto do Rei tambm cantando, parmeando e tudo, a as amiga falava o samba no d pra gente que o povo t sambando caboclo, bora cantar roda, a gente saia pra cantar roda (Dona Mira Almeida).

O municpio de Antnio Cardoso possui antigas tradies populares e de referncia africana que so indispensveis para a preservao da cultura sertaneja no estado da Bahia, sendo estas, muitas vezes, pautas da nossa entrevista narrativa. De acordo com Edil Costa (2016, p. 54): Sendo a Bahia um forte reduto de afrodescendentes, sabemos que a contribuio de povo africanos na nossa formao cultural inegvel. Assim, o mestre e as sambadeiras autoras da nossa pesquisa expuseram relatos das celebraes e fazeres culturais, como as rodas de Samba Rural, a festa do Reisado, as cantigas que nascem e circulam nesses meios festivos, assim como as comidas tpicas que fazem parte do saber ancestral das mulheres da comunidade e os contos populares que tambm compem o acervo da cultura oral e de cunho afrodescente.

A respeito de sua insero no universo do samba, o Mestre Satu confirma que, na comunidade de Tocos, isso ocorre de forma muito natural (assim como narrado acima pela Dona Mira), j que a maior parte das crianas se inicia na prtica acompanhando os pais e, dali em diante, elas no deixam mais a roda. Ademais, o Mestre ainda traz em sua colocao uma crtica s novas geraes que, segundo ele, no se interessam mais por aprender as tradies como em seu tempo de juventude:

A dana a gente mesmo aprende, s bastava o vento tocar, marminino! O samba tambm, hoje que ningum quer nada mais, (...) no aguentava v um camarada tocar. Eu fazia samba aqui (...) eu fazia samba esse mundo todo. Em Feira de Santana meu mestre foi Gonalo Barbosa, cumpanheiro, os dois cumpanheiros de encontro era Francisco e Joo Quente, e a a gente ia fazendo festa nesse Brasil todo, daqui a gente cantava, eu e Joo cantava, Francisco tocava violo e eu tocava o pandeiro e Joo tocava o pandeiro, naquele tempo no tinha marcao. O primeiro sanfoneiro que tinha aqui era Simplcio e tinha o Roque Gasparino que era violeiro tambm, tocava viola e esse Mudesto e o Simplcio era quem fazia as festas da gente e era direto! A gente no passava um sbadu dendi casa no, pouca hora ele chamava, ou muntado ou andando. Era reza direto e samba, era samba at 8 hora at 9 hora do dia (Mestre Saturnino Neri).

A festa de Reisado tratava-se do movimento mobilizador da comunidade e partia de um grupo formado, geralmente, pelos familiares, amigos e vizinhos que se organizavam com o objetivo de visitar, de surpresa, a casa um dos outros e festejar com msica, dana e bebidas – ao denominada por eles de roubar reis. Essa tradio integra o repertrio das Festas Natalinas e realizada em um perodo que se estende do dia 24 de dezembro at o dia 6 de janeiro. Dona Mira relata como era a experincia da festa de Reis:

mintira que o Rei era l em sua casa, a gente marcava que era longe pra voc no ir, (...) quando era de noite a gente fazia, pegava as coisas botava no saco: era bolacha, acar, caf, bibida, xarope. [...]. Num tinha um dia, todo santo dia a gente cantava rei na casa do povo, hoje quetou por causa dessa impidemia, tudo caro, e a gente sambava sabe como era que a gente sambava? Era sanfona e rapa cul e o prato de fronte que a gente fazia rei. Os homi com uma foice fazendo ten ten ten terenren tocanu (som dos instrumentos) com a foice, cul, enxada, tudo que viesse a gente pegava tudo, prato de pranta (...) a que era um samba gostoso, a gente sambava at de manh (Dona Mira).

Para alm do relato acima, tanto o Mestre como as sambadeiras entoaram versos e cantaram as cantigas que comumente faziam parte dessa festividade, no momento da chegada e da sada do Reis, respectivamente, os quais alegravam a festividade:

Dona da Casa vim lhe ver, vim lhe ver, vim lhe ver

Uma garrafa de cachaa/ Pra me dar pra eu beber

 

Oh Dona da casa me d licena

Que eu vou sambar na varanda

Com um chapu na cabea/ E meu faco numa banda

 

Oh gente vamos embora

Que aqui no fica ningum

S fica o dono da casa

Encostado com seu bem

 

So Cosme e So Damio

Sua casa cheira 

Cheira cravo e cheira rosa

Cheira a flor de laranjeira

Diante desse cenrio, considerando a potncia das manifestaes corpreas e musicais nas comunidades quilombolas em um mbito geral, e especificamente na comunidade investigada, torna-se vivel estabelecer as possveis relaes entre o samba rural e a arte de contar histrias. Segundo Vivian Rocha:

A msica uma linguagem artstica universal porque, ainda que expressa em diferentes idiomas, tem a capacidade de produzir sensaes nos ouvintes: de enlevo, de medo, de suspense, de alegria, de tristeza (...). uma forma de comunicao que se utiliza de sons. Os elementos constituintes da linguagem musical: o ritmo, a melodia, o timbre e a harmonia so utilizados para comunicar ideias, sentimentos e sensaes aos ouvintes (ROCHA, 2010, p. 209).

Dessa forma, a pesquisa em questo buscou demonstrar qual o papel das letras dos sambas e da corporeidade na difuso e perpetuao das histrias, das vivncias e das tradies do grupo Razes do Samba de Tocos. Neste caminho, interessou-nos a pesquisa de Paul Zumthor (2010) sobre a predominncia da vocalidade das narrativas tradicionais; o autor enfatiza que foi por meio de lendas, mitos, histrias, contos e reminiscncias que determinados povos se situaram e se estabeleceram no/com o mundo. A partir dessa abordagem, possvel ento acessar o patrimnio cultural e os saberes da tradio afro-brasileira, especialmente das suas cantigas, sendo algumas delas registradas a seguir:

O sapato que eu usei/ No lixo eu j joguei/ No importo que tu use/ Daquele que eu j usei/ Meu anel de trinca trinca/ Bateu na pedra trincou/ Quem achar no jogue fora/ Quebre- se dizia amor

Oh Deolina, oh Deolina, oh Deolina/ Qual a moa que no pode namorar? (2x) / Mulher bonita voc vai se casar (2x) / J me casei deixei pra namorar (2x) / Oh Deolina, oh Deolina, oh Deolina

A partir das letras dessas cantigas supracitadas, foi possvel compreender a relevncia dessas manifestaes musicais para a circulao e resguardo da cultura/tradio de cunho oral da comunidade de Tocos. muito comum em alguns espetculos de contao de histrias, ou at mesmo em determinados contos, haver a presena da msica em meio s narrativas. No caso desse grupo tnico em questo, os sambas no apenas se fundem contao, como so a prpria contao. A ttulo de exemplo, tem-se a primeira cantiga, que, segundo Dona Mira, nasceu como uma forma de afronta ou resposta s jovens que roubavam os parceiros umas das outras, e at mesmo o quarto samba, que apresenta uma verdade abertamente disseminada durante a entrevista em relao ao matrimnio.

Na casa do Mestre Satu, cenrio no qual os mestres se encontravam no perodo em que a entrevista narrativa se desenvolveu, e apesar das limitaes da imagem devido ao formato adotado durante a ida a campo (on-line, via Google Meet) foi possvel notar a presena de imagens de diversos santos do Catolicismo, simbologia essa que foi confirmada pelo Mestre Satu e pela Dona Antnia que se declararam catlicos praticantes. Nesse nterim, tornou-se bastante relevante ponderar as crenas dos sujeitos entrevistados e perceber que o sincretismo religioso presente na comunidade de Tocos.

Dona Mira no se autodeclarou praticante de nenhuma religio especfica, no entanto, ao longo de suas falas foi possvel constatar que a f da sambadeira incorpora, em concomitncia, elementos pertencentes tanto s prticas catlicas como aos rituais advindos das religies afro-brasileiras. A ttulo de exemplo, h o relato da anci sobre uma promessa feita aos santos gmeos So Cosme e So Damio: Cosme e Damio um menino que cura todas as feridas, se ele prometer, ele d. Eu fui me operar, me operei me peguei, oh eu no sabia se eu tinha vida, me operei pedi a Bom Jesus da Lapa e a Santa Brbara que era pra eu chegar nos ps dele, de joelho, pra cumprir minha promessa.

Alm da forte f nos santos catlicos, Dona Mira tambm demonstrou ser iniciada na Umbanda ao relatar receber Caboclo no s nas rodas de samba, mas tambm em atividades cotidianas e no trabalho na roa. Ademais, a sambadeira tambm narrou, com detalhes, um ritual de purificao do qual fez parte. No entanto, nessa ocasio, as letras do Samba de Caboclo no foram expostas, pois tanto Mestre Satu como Dona Antnia julgaram melhor no entoar os cantos. Sobre isso, Adil Costa (2016, p. 57) chama a ateno de que (...) at hoje, assumir a publicamente sua pertena ao candombl tabu para os iniciados. Assim, ficamos atentas aos sentidos estabelecidos pelo grupo, mas sem impor a nossa viso. A fuso de elementos pertencentes a variadas crenas em um indivduo dialoga tambm com a concepo de Edil Costa acerca da multiplicidade presente nas culturas que emergem a partir da influncia de outras: [...] pois quando se trata de culturas mestias, como o caso da cultura afrodescendente, inevitavelmente se est abordando produes culturais fronteirias (Ibidem, p. 51).

No decorrer desta pesquisa, nos interessvamos muito a coleta, o registro e a catalogao dos possveis contos populares que nos fossem narrados; no entanto, os mestres se estenderam na contao das histrias autobiogrficas. O Mestre Satu afirma que seu pai no lhe contava histrias, pois a gente era mais andeiro, tinha reza a gente saa pra rezar, chegava l ensinava as meninas cantar roda e tal, os meninos oiando e a gente rezando, terminava de rezar fazia uma roda de samba ia tomar uma birinight e pronto. J Dona Mira enfatiza que no conhece muitas histrias, mas que o seu falecido marido detinha um repertrio vasto que, inclusive, foi transmitido a um dos seus filhos.

Entretanto, para alm dos sambas que so histrias musicalizadas, coletamos quatro contos que, segundo a classificao do folclorista brasileiro Lus da Cmara Cascudo (1898-1986), enquadra-se como causos. Segundo a classificao do Sistema Aarne-Thompson, que divide os contos em trs grandes grupos (a saber: contos de animais, contos de fadas propriamente ditos e faccias e anedotas, sendo todos esses subdivididos em demais categorias), as narrativas coletadas durante a entrevista com os narradores populares da comunidade de Tocos so classificadas como contos com opositor sobrenatural, que est englobado no segundo grupo supracitado. A seguir h o registro da transcrio original:

Eu fui numa festa na Pedra Branca e vim de l pra c de noite, eu Francisco e Joo Quente, cheguei l em Margarida, l na casa de Arlindo, ali encostado a Joo de Luca. Tinha um p de caju denda baixada e a gente vinha de l de Lourdes, trs pra quatro horas da manh que a gente no amanheceu o dia, e vem dois pssaro branco de l pra c, a Francisco disse Ҏ a cavala, a ela gritou: cavala, cavala, cavala. Oh nossa senhora, minha gente, pelo amor de Jesus que eu no t contando mentira. A gente disparou, ela no ar desapareceu, e eu cheguei em casa bati na porta, bati na porta, vea j tava dormindo, deu trabalho de abrir a porta e Francisco mais Joo eu no sei aonde foi parar (Mestre Saturnino Nery).

 

Ele some, o lobisomem uma pessoa. Minha me j viu e eu j vi tambm, quando eu tava parida desse menino a oh, de Paulo. A eu tava com a panela no fogo, e eu fui que a casa era pequenininha, s tinha uma, assim, uma parede e o fogo era assim de junto. A Adolfo saiu eu fui botar um Andu no fogo e fui oiar essa panela. Quando eu fui oiar a panela eu vi um negcio e fez vup, quando fez vup eu fechei a porta, quando eu fechei a porta o lobisomem saiu de debaixo do fogo, dirrubou a panela do andu, aonde eu achei mais comida pra comer? Quando ele chegou e perguntou o que foi ele viu l no cho a panela no cho, quebrou e ficou sem comer, foi dormir com fome e quando no outro dia de manh cedo que ele levanta vai ver o pelo do lobisomem l no arame (Dona Mira).

 

Minha me tambm contava que o lobisomem dirrubou ele com um tacho de beiju na cabea com o menino no brao. Ele veio da casa de farinha com um chal vermei, que antigamente tinha esses chal, pegava o chale e jogava em cima do menino, pegava o tacho e botava na cabea e saa e ia embora umas dez hora da noite sozinha, a lua bonita que lobisomem gosta de lua bonita. Ela saiu e Oh cumadi, eu vou pra casa que fulano de tal ta me esperando e eu t com os meninos em casa, a ela pegou o tacho botou na cabea, o beiju, pegou o menino jogou no ombro e foi se embora. Quando chegou adiante o lobisoni mutuo ela e ela pegou o tacho do beiju e jogou na cabea do lobisomi e o lobisomi querendo lascar ela e quederrei quederrei quederrei, gente! a saiu um homem: Oh fulana de tal ta ali gritando vai ver o que ta acontecendo. Quando falou vou pegar o faco e a faca de cortar fumo, oxe! ele se mandou. Quando ela chegou, que ela j sabia que era um lobisomi, quando ela chegou na casa do candidato oa o dente com o chale, com um pedao da coisa do chale no dente. Ai a mulher disse assim Oh cumadi Valria o que a senhora vem fazer uma hora dessa aqui? No, eu vim ver um negcio que me pegou ontem di noite, fulano de tal t ai? T, t deithado. Chama ele a pra eu ver, pra conversar com ele. A quando ele levantou ela oiou, ela oiou e viu o dente do cara com um pedao de chale na boca. Dest camarada, eu vou te pegar no caminho ainda de novo, tu me dirrubo, mai tu j ta marcado, vai me pagar. Quando foi quatro dia ele morreu (Dona Mira).

 

 

Consideraes finais

 

A interao com os mestres e mestras, sambadores e sambadeiras pertencentes comunidade de Tocos permitiu percebermos que a vocalidade e a memria so os principais propiciadores de circulao das tradies populares. Na localidade quilombola de Tocos permanece o reconhecimento de que a tradio dos sambas, festas e celebraes tradicionais esteja passando por um processo de escassez, caso estas sejam comparadas com outras pocas em que eram mais cultivadas, sobretudo, entre os mais jovens.

De tal modo, ressaltamos a importncia do levantamento e do registro feitos atravs da pesquisa de recolha das cantigas e dos contos, assim como das histrias de vida de trs ancies atravs da Entrevista Narrativa. O legado potico e cultural do grupo indica uma contribuio importante para as geraes mais jovens, que podem aprender com os sambas, com os cantos e com as histrias tradicionais reencenadas no presente. 

 

 

Referncias

 

HAMPATE B, Amadou. As caractersticas da cultura tradicional africana, suas mltiplas facetas, a oralidade, mitologia, religiosidade e formas de expresso. In: Introduo Cultura Africana. Lisboa: Edies 70, 1977, p. 167-212.

 

BENJAMIM, Walter. O narrador: consideraes sobre a ora de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

 

COSTA, Adil Silva. Tradies orais e afrodescendncia. In: Sete estudos de literatura e cultura popular. Salvador: EDUNEB, 2016, p. 49-78.  

 

DE MOURA, Jnata Ferreira de; NACARATO, Adair Mendes. A entrevista narrativa: dispositivo de produo e anlise de dados sobre trajetrias de professoras. Cadernos de Pesquisa, So Lus, v. 24, n. 1, p. 15-30, jan./abr. 2017.             

 

FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do mtodo biogrfico. In: NVOA, Antnio; FINGER, Matthias (Orgs.) O mtodo (auto)biogrfico e a formao. Lisboa: Ministrio da Sade. Depart. de Recursos Humanos da Sade/Centro de Formao e Aperfeioamento Profissional, 1988, p. 17-34.

 

ROCHA, Vivian Munhoz. Aprender pela arte a arte de narrar: educao esttica e artstica na formao de contadores de histrias. 2010. 343f. Tese (doutorado em Artes) – Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. 

 

SESC Santana Catarina - Razes do Samba de Tocos (BA) circula SC no Sonora Brasil. Disponvel em: https://www.sesc-sc.com.br/blog/cultura/raizes-do-samba-dehttps://www.sesc-sc.com.br/blog/cultura/raizes-do-samba-de-tocos--ba--circula-sc-no-sonora-brasiltocos--ba--circula-sc-no-sonora-brasil. Acesso em: 02 mai.  2021.

 

ZUMTHOR, Paul. Introduo poesia oral. Traduo Jerusa Pires Ferreira, Maria Ines de Almeida, Maria Lucia Diniz Pochat. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

 

 

[Recebido:16 ago 21 - Aceito: 16 set 21]

 



[1]  Doutor em Estudos Literrios pela Universidade Federal de Londrina. Porfessor da Secretaria Estadual e tutor EAD na Universidade Federal do Par.

[2] Alguns trechos deste captulos foram retirados da minha tese de doutorado Caleidoscpio amaznico: a oralidade em som imagem e movimento defendida em 2016 na Universidade Estadual de Londrina.

[3] Doutoranda em Estudos Literrios pelo Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Par (PPGL-UFPA), vinculada linha de pesquisa Literatura, memria e identidade. E-mail: adjaramos@gmail.com

[4] Doutora em Letras (Letras Vernculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora permanente do Programa de Ps-Graduao em Letras, Belm, PA. Coordenadora do Programa de Estudos Geo-BioCulturais da Amaznia –Campus Flutuante, da Universidade Federal do Par (UFPA). E-mail: galvao@ufpa.br

[5] Doutora em Letras – rea de concentrao em Estudos Literrios (UFPA). Professora da Universidade Rural da Amaznia (UFRA) e vice-coordenadora do projeto de pesquisa e extenso Poticas Orais e Pensamento Decolonial (LANMO/UNAM) E-mail: rafaellacontente@gmail.com

[6] Doutor em Letras – rea de concentrao em Estudos Literrios (UFPA). Professor Adjunto I de Literaturas de
Lngua Portuguesa (UFMA). Professor permanente do Programa de Ps-Graduao em Letras de Bacabal
(PPGLB). Lder do Grupo de Pesquisa em Literatura, Negritude e Diversidade (GEPELIND). Vice-lder do Grupo de Pesquisa em Literatura, enunciao e cultura (LECULT). E-mail: rubenoliveira50@hotmail.com/
rubenil.oliveira@ufma.br

 

[7] The plastic surgery craze: latin american women are sculping their bodies as never before - along California lines. Is this cultural imperialism? (GOLDENBERG, 2008, p. 52, traduo nossa).

[8] Neste estudo entendo a traduo no como um trabalho entre lnguas distintas ou iguais, mas como um ato interpretativo, que produz transformao, baseado em um jogo de diferenas, isto , como os narradores do IFNOPAP compreendem a figura da Matintaperera. Para tanto, pautamo-nos no pensamento do espanhol Jorge Larrosa em sua obra La Experiencia de la Lectura: estudios sobre literatura y formacin (1996).

[9] Neste artigo empregamos a palavra velha, pois acreditamos, assim como Zimerman (2007), que o termo no carrega nada de pejorativo. Pelo contrrio: pejorativo substituir o nome velha por eufemismo, como se a velha fosse uma irregularidade ao ser escondida. Na realidade, o que precisa ser mudado no a maneira de se cham-la, mas sim o jeito de trat-la.

[10] Nos estudos sobre a Matintaperera existes distintas grafias para a personagem estudada, tais como, Matinta perera, Matinta pereira e Matintaperera. Para este trabalho adotamos a escrita da palavra Matintaperera de Silva Junior (2014), pois acreditamos que seus objetivos de pesquisa se aproximam dos nossos.

[11] A senilidade refere-se, de acordo com Mucida (2018), s patologias do envelhecimento.

[12] Doutorado em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil(2006). Professor Associado II da Universidade Federal do Par , Brasil

[13] Em outros trabalhos, j se anotou os problemas envolvidos no traslado do termo Mrchen, algumas vezes traduzidos para o portugus  por conto de fadas, outras, por conto maravilhoso. Optou-se por esta ltima variante, em razo da etimologia do termo. (TRUSEN, 2012)

[14] Trad nossa de Im Mrchen zeigt der Held, der sprechenden Tieren, Winden oder Gestirnen begegnet, weder Verwunderung noch Angst. Dies nicht, weil ihm das sprechende Tier oder Gestirn von Haus aus vertraut wre; es gehrt durchaus nicht zu der ihm gewohnten Umwelt, nichts deutet an, dass er von der Existenz solcher sprechenden Tiere auch nur gehrt hat. Aber er verwundert sich nicht, und frchtet sich nicht: das Gefhl fr das Absonderliche fehlt ihm. Ihm scheint alles zur selben Dimension zu gehren.

[15] Trad nossa de El rechazo de lo sobrenatural se tradujo tambin en la condena de su uso literario y esttico. Las perspectivas ilustradas de la segunda mitad del siglo XVIII enarbolaron los conceptos de verosimilitud y mmesis como armas fundamentales para la presencia de lo sobrenatural y lo maravilloso de los textos literarios.

[16] Conforme nota explicativa, o projeto procurou manter tanto quanto possvel os ndices de oralidade, utilizando-se, quando necessrio, dos colchetes para indicar expresses ou palavras que suscitaram dvida por parte do transcritor.

[17] Trad nossa de : Haba respirado la atmosfera creada por Henri Christophe, monarca de increble empeos, mucho ms sorprendente que todos los reyes inventados por los surrealistas, muy afectos a tiranas imaginarias, aunque no padecidas.  A cada paso hallaba lo real maravilloso [grifo do autor]. Pero pensaba, adems. que esa presencia y vigencia de lo real maravilloso no era privilegio nico de Haiti, sino patrimonio de la Amrica entera (...)

 

[18] Trad. nossa de Cest le contraire de lidentit, comme lautre est le contraire du mme. On pourrait en faire un principe : toute chose tant identique soi (principe didentit) est aussi diffrente de toutes les autres (principe daltrit).

[19] No original, La carcajada es un sntesis (provisional) entre el alma y el cuerpo, el yo y el otro.(PAZ, 1969, p. 15)

[20] Trad. nossa de Leerlo es participar en el secreto. En qu consiste ese secreto? Este libro nos ensea nuestra otra cara, la oculta e inferior. Lo que digo debe entenderse literalmente: hablo de la realidad que est debajo de la cintura y que la ropa cubre. Me refiero a nuestra cara animal, sexual: al culo y los rganos genitales.

[21] Trad. nossa de El drama de toda cultura (....) es el intento de reducir lo irreductible, la alteridad, hacia la tranquilidad ideolgica de lo Mismo, de la Identidad. La alteridad parece ser lo insoportable. El orden que toda cultura de alguna manera sacraliza, es el intento de reducir la alteridad hacia las formas de lo Mismo.

[22] Trad nossa de Cuando el limite persiste y un mbito otro se pone en escena sin atender a las verosimilitudes de las certezas de lo real, y sin penetrar estas certezas y cuestionarlas, cuando el lmite persiste deslindando el  mbito otro del mbito de lo real, estamos en presencia de lo maravilloso. Podra decir-se que en lo fantstico lo otro es una irrupcin y, en lo maravilloso, un espectculo.

[23] Doutorando em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).  Mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraba (2011). Professor efetivo do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia da Paraba (IFPB).  Contato: prweberalves@gmail.com

[24] Doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraba (2005) e Ps-doutorado na rea de Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2007). Atualmente, professora Associada da Universidade Federal de Campina Grande (UAEF/PPGCF/PPGLE/UFCG).. Contato: naelzanobrega@gmail.com

[25] Utilizaremos esse neologismo para se referir trama de Romeu e Julieta, considerando as mais diversas obras medievais que remontam ao mesmo enredo.

[26] A preocupao em contar a verso do autor, certamente justifica a pouca modificao no enredo por estes autores.

[27] Foi preservada a escrita original dos cordis.

[28] Doutor em Estudos lingusticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Universidade Federal do Par.

[29] Doutora em Cincias Humanas pela Universit d'Aix-Marseille I – Frana. Professora Titular da Universidade Federal do Par. Bolsista Produtividade CNPq-PQ2. 

[30] Doutoranda em Letras – Lingustica do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Par.

[31] Graduanda da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Par

[32] As narrativas de enterro aqui analisadas tm sido estudadas no contexto das aes propostas por dois projetos de pesquisa desenvolvidos no mbito da Universidade Federal do Par. Um deles denomina-se Vozes da Amaznia, coordenado pela Profa. Dra. Regina Clia Fernandes Cruz. Nesse projeto, integram-se os planos de trabalho desenvolvidos por Thaynara Thays Ferreira Paixo, em nvel de Iniciao Cientfica (PIBIC) e a pesquisa de doutorado de Benedita do Socorro Pinto Borges, que tm coletado, transcrito e analisado as narrativas de enterro em localidades do Baixo-Tocantins. O outro projeto denomina-se Estrutura retrica de crnicas brasileiras e sua aplicao no ensino, coordenado pelo Prof. Dr. Emanuel da Silva Fontel. A produtiva interlocuo entre os pesquisadores tem permitido um debate em torno de como as narrativas de enterro incorporam as questes do cotidiano, tema central nas pesquisa que envolvem o gnero crnica. Alguns trabalhos acadmicos, fundamentados, semelhana do presente artigo, na interface sociolingustica e Estudos do Texto e do Discurso, j foram desenvolvidos com base na aproximao entre esses dois gneros discursivos investigados nos projetos supramencionados.

[33] No ignoramos que o vocbulo quilombola nesse contexto gera ambiguidades, no entanto, por economia lingustica, manteremos o termo, em vez de narrativa de enterro de tesouro em comunidade quilombola, que mais literalmente expressaria a funo desse gnero discursivo.

[34] Em uma das aes do  projeto de pesquisa Estrutura retrica de crnicas brasileiras e sua aplicao no ensino (em andamento), busca-se estabelecer um dilogo entre as narrativas de enterro e as crnicas, considerando um ponto de contingncia entre esses dois gneros, que promoo do debate da vida cotidiana.

[35] Entidade que guarda semelhana com o saci-perer.

[36]  Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil (2011), Professor Titular da Universidade Federal da Paraba , Brasil.

[37] Professor de Ensino Fundamental II e Mdio – Artes. Licenciatura em Artes Visuais - Centro Universitrio talo Brasileiro

 

[38] Doutorando no Programa de Ps-graduao em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Mestre em Gesto do Territrio pelo PPGEO-UEPG, Especialista em Histria, Arte e Cultura pelo PPGH-UEPG, Graduado (Bacharel e Licenciatura) em Artes Plsticas pela UFU, Integrante dos grupos de pesquisa CNPQ: Geografia e Histria: memria social e patrimnio cultural UEPG, Grupo de Prticas de Pesquisas Qualitativas em Geografia UEPG e do Ncleo de Pesquisa em Pintura e Ensino UFU, Atua como professor de Artes pela Secretaria de Estado da Educao do Paran, Artista Visual, suas pesquisas abarcam os seguintes temas: Arte - Educao, Paisagem, Bens Culturais, Antropologia Visual e Folias de Reis.

[39] Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007), Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997), Especialista em Geografia Humana pela Unicentro (1991), licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1984) e Bacharel em Administrao de Empresas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1984). Professor Associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa: Programa de Ps-graduao em Geografia e Departamento de Geocincias. reas de atuao: Geografia Social e Cultural, Geografia Histrica (memria social, patrimnio cultural, histria da cidade, planejamento urbano e turismo). Lder do Grupo de Pesquisa (CNPq/UEPG): Geografia e Histria: Patrimnio Cultural e Memria Social. Presidente da Associao de Preservao do Patrimnio Cultural e Natural (APPAC). Membro do Conselho Municipal do Patrimnio Cultural de Ponta Grossa (COMPAC) – UEPG.

 

[40] O municpio de Carmo do Rio Claro situa-se na mesorregio Sul/Sudoeste do estado de Minas Gerais, a 363 quilmetros da capital Belo Horizonte e possui populao estimada pelo IBGE (2018) entorno de 21.180 habitantes.

[41] Entrevista concedida ao autor em 23/01/2019 com os membros das equipes pastorais do Conselho pastoral paroquial Sagrada Famlia e do Conselho pastoral paroquial Nossa Senhora do Carmo.

[42]  Artigo escrito inicialmente como relatrio de iniciao cientfica entre 2017-2018, com bolsa CNPq.

[43]  Aluno de doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) desde 2021. E-mail para contato: kaedmon.sellberg@hotmail.com.

[44] Notcia disponvel em: https://guia.folha.uol.com.br/teatro/2017/04/mario-bortolotto-dirige-texto-do-dramaturgo-americano-sam-shepard.shtml, publicada em 7 de Abril de 2017.

[45] Disponvel em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,poeta-narra-encontro-com-william-burroughs,1125360> publicado

[46] [...] percebemos que o importante hoje o ventre, isto , o emocional, as emoes, e no o racional. por esta razo que a palavra histrico" – no numa acepo pejorativa – mostra a importncia do tero, isto , do ventre. Em grego, hysterus o ventre.  Disponvel em: < https://www.fronteiras.com/entrevistas/michel-maffesoli-nao-e-mais-o-futuro-que-importa-e-sim-o-presente> publicado em

[47] Doutorado em Memria pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil(2016). Professora Adjunta A - Dedicao Exclusiva da Universidade Estadual de Feira de Santana.

[48] Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras com Lngua Portuguesa, ofertado pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Poticas Orais na UEFS, com participao no Projeto de Pesquisa Cacimba de Histrias:vidas e saberes dos contadores de histrias tradicionais de cidades do interior da Bahia. Compe a atual gesto do Diretrio Acadmico de Letras Jos Jernimo de Moraes como diretora de viagens e eventos.