REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA
ANPOLL
Revista Boitat uma publicao semestral, de
acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de
Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)
GT LITERATURA
ORAL E POPULAR
BINIO 2018/2020
COORDENADOR
Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Secretaria Estadual de Educao do Par
alexandre_ranieri@hotmail.com
VICE-COORDENADORA
Profa. Ma. Dlcia Pombo
PPGL-UFPA
delciauab@gmail.com
SECRETRIA
Profa. Ma. Dia Favacho
PPGED-UEPA
favachodia1@gmail.com
IDADE MDIA
ORALIDADE E PERFORMANCE
Boitat:
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa
e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] /
Universidade Estadual de Londrina - n. 30 (jul. /dez. 2020). –
Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2020. Semestral Requisitos do
sistema: Adobe Reader. Modo de
acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index> ISSN:
1980-4504 1.
Literatura oral e popular 2. Oralidade I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Universidade Estadual de Londrina. III.
Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica. IV.
Ttulo: Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao
Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL |
ndice
para o catlogo sistemtico:
1. |
Literatura oral e popular |
82.085 |
EXPEDIENTE
EDIO
Dr. Alexandre Ranieri
Ferreira (Estcio-Belm)
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes (UEL)
EDITORIA ASSISTENTE
Dra. Mauren Pavo
Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)
ORGANIZAO
Dra. Andra Betnia da
Silva (UNEB)
Dra. Bruna Paiva de
Lucena (UNB)
COMISSO EDITORIAL
Dra. Anna Christina
Bentes
Universidade Estadual de
Campinas
Dra. Ana Lcia Liberato
Tettamanzy
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Berenice Araceli
Granados Vsquez
Universidad Nacional
Autnoma de Mxico
Dra. Cludia Neiva de
Mattos
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da
Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da
Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes
Universidade Estadual de
Londrina
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve
(Portugal)
Dr. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa
(Canada)
Dr. Jos Guilherme dos
Santos Fernandes
Universidade Federal do
Par
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do
Par
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do
Sul
Dra. Maria do Socorro
Galvo Simes
Universidade Federal do
Par
Dra. Maria Incoronata
Colantuono
Universitat Autnoma de
Barcelona
Dr. Mrio Cezar Silva
Leite
Universidade Federal de
Mato Grosso
Dr. Ronald Ferreira da
Costa
Professor do Instituto
Federal do Paran
Dr. Slvio Renato Jorge
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Vanderci de Andrade
Aguilera
Universidade Estadual de
Londrina
Dra. Vera Lcia Medeiros
Universidade Federal do
Pampa
PARECERISTAS DESTE NMERO
Dra. Berenice Araceli
Granados Vsquez
Universidad Nacional
Autnoma de Mxico
Dra. Cludia Freitas
Pantoja
Faculdade do Vale do Iva
Dra. Cristiane de Assis
Portela
Universidade de Braslia
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da
Bahia
Dra. Francisca Pereira
dos Santos
Universidade Federal do
Cariri
Dr. Joo Evangelista do
Nascimento Neto
Universidade Estadual da
Bahia
Dra. Janana Marques
Ferreira Rocha
Universidade de Santiago de Compostela
Dra. Laura Regina dos
Santos Dela Valle
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Lnia Mrcia
Mongelli
Universidade de So Paulo
Dra. Maria Incoronata
Colantuono
Universitat Autnoma de
Barcelona
Dra. Maria Isabel Morn
Cabanas
Universidade de Santiago
de Compostela
Dra. Maria Nilda de
Carvalho Mota
Universidade do Estado de
So Paulo
Dr. Nerivaldo Alves Arajo
Universidade Estadual da
Bahia
Dra. Yara Frateschi
Vieira
Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo
PROJETO E ENSAIO VISUAL
Dr.
Alberto Ricardo Pessoa
Universidade
Federal da Paraba
REVISO
Sylvia
Calandrini
SUMRIO
APRESENTAO
Andra Betnia da
Silva , Bruna Paiva de Lucena .......................................................................6
CONVIDADOS
Antnio Aleixo e Antnio
Vieira: dilogos imaginados ou Boca e Papel: espaos de frico da palavra
potica
Edilene Matos
................................................................................................................................9
Princpios de um Sistema
Editorial
Maurlio Antonio Dias de
Souza..................................................................................................34
Vozes de mulheres no
terririo do cordel e da cantoria
Ria
Lemaire..................................................................................................................................47
DOSSI
Metade cara, metade mscara: memria
coletiva e identidade indgena na obra de Eliane Potiguara
Joel Vieira da Silva Filho, Cristian Souza de Sales
.....................................................................62
...Mesmo que nos arranquem os dentes e a
lngua: o espao do sagrado da fala na literatura de Eliane Potiguara
Renata Daflon
Leite......................................................................................................................75
Autobiografias de mulheres cordelistas: uma
contribuioo para a nova historiografia do cordel
Maria Gislene Carvalho
Fonseca...................................................................................................88
Memria, voz e autoria em Os sapatos de T,
de Cremilda e Elizabeth Nascimento
Fernanda Oliveira da Silva...........................................................................................................101
Vozes de Maracangalha: interseco de
saberes e afetos
Railda Maria da Cruz dos Santos, Edil Silva Costa
.....................................................................110
A potica da voz no territrio do
maravilhoso napolitano e baiano: transmisso oral, conselho e troca de saberes
Adriana Aparecida de Jesus Reis..................................................................................................121
Coletivo Lusa Mahin – Sarau das
pretas: o PROMIC e a performance como mobilizador identitrio e formativo
Amanda Maria Damasio Teixeira, Ana Cristina Pereira da
Silva................................................134
ENTREVISTA
Uma conversa com e sobre Salete Maria da
Silva
Salete Maria da Silva , Andrea Betnia, Bruna Lucena
...............................................................146
Apresentao
A voz como territrio de
(re)existncia, em
suas mltiplas corporificaes, existe e resiste ao passar largo dos tempos,
seja fazendo parte das trilhas dos nossos corpos nas rodas em que nos
encontrvamos em prosa (e que esperanamos por voltar a assim viver), seja
caminhando mais que veloz pelas redes invisveis, mas j to presentes, das
telas de celulares, computadores... E o que nasceu no calor do afeto ganhou os
sales, as salas, as escolas, as universidades, sendo, a um s tempo, mdia,
poesia, discurso, panfleto. J sabemos que no cabe mais falar em morte do
popular como muitos anunciaram, mas em reinveno contnua e viva de uma
tradio que se cria, recria e cria numa lemniscata infinita.
Este nmero da Revista Boitat apresenta
tudo isso, abrangendo diferentes espaos de interlocuo de pesquisas,
experincias e reflexes em torno das mltiplas manifestaes das poticas
orais, afetos e troca de saberes. Diferenas essas que se encontram e convergem
em vozes que (re)existem a despeito de preconceitos e
discriminaes escriptocntricas, eurocntricas, racistas, elitistas, machistas
e todos outros abismos.
Nesse sentido, a entrevista/conversa com e sobre
Salete Maria da Silva abre os dilogos a respeito da voz como um territrio de
(re)existncia, nos anunciando os diversos enquadramentos tericos,
metodolgicos, epistemologicos e modos de entender as poticas das vozes que o
conjunto de artigos desse dossi abrange. A prpria histria da cordelista um
captulo da grande histria da oralidade.
Outro olhar sobre isso temos com Edilene Matos,
ao nos apresentar os autores Antnio Aleixo e Antnio Vieira que, embora
separados pelo alm-mar, mostram-se vinculados a partir da poeticidade presente
em suas obras, revelando os meandros entre oralidade e escrita que, em frico,
aproximam-se e tensionam-se.b Maurlio Antonio Dias de Sousa, por sua vez, nos
mostra por dentro o sistema editorial dos folhetos, em sua teia organizacional,
destacando elementos presentes na relao entre poeta e editor, na medida em
que expe como as culturas populares criam e gerem seus prprios modelos
editoriais de modo contra-hegemnico. Outro deslocamento contra-hegemnico
feito no artigo de Ria Lemaire, em que nos trazida uma nova epistemologia que
posiciona a as vozes das mulheres no centro de um debate cujos elementos
colaboram para o fortalecimento de um novo paradigma envolvendo cordel e
gnero.
Ainda sobre as vozes das mulheres, temos o
trabalho de Joel Vieira da Silva Filho e Cristian Souza de Sales sobre a
escrita de Eliane Potiguara em sua obra Metade
cara, metade mscara, evidenciando como a memria coletiva e a memria
individual encontram-se articuladas no texto autobiogrfico que descortina o
processo diasprico dessa escritora indgena, que tambm mote do artigo de
Renata Daflon Leite, em que so trazidos cena o carter poltico e a potncia
performtica presentes nas obras de Eliane Potiguara, reforando o trnsito
entre oralidade e escrita presente na literatura indgena.
Estendendo compreenso da questo de gnero
nas poticas da oralidade, Maria Gislene Carvalho da Silva de Autobiografias de
mulheres cordelistas: uma contribuio para a nova historiografia do cordel,
nos convida a conhecer as obras das cordelistas Julie Oliveira, Izabel
Nascimento e Auritha Tabajara, esta uma indgena, expondo os fios que conduzem
as relaes de gnero no universo do cordel. A relao entre autoria de
mulheres e oralidade – tambm um lcus em que a voz
um territrio de (re)existncia – prestigiada no artigo de Fernanda
Oliveira da Silva e Maria Teresa Salgado, em que analisam Os sapatos de T,
obra em que Elisabete Nascimento registra os textos orais de sua me Cremilda,
uma griot, evidenciando a memria como fio condutor para as denncias sociais
apresentadas.
As vozes de mulheres negras
so reverenciadas tambm no texto de Railda Maria da Cruz dos Santos e
Edil Silva Costa, em que se debruam sobre as poticas orais a partir da
anlise das cantigas e das narrativas de mulheres negras que capitaneiam um
grupo de Lindro Amor, na cidade de Maracangalha, expondo seus modos de
(re)existncia em face da dinamicidade da prtica cultural em questo.
Para encerrar a conversa aberta, ou mesmo para
adentrar outros espaos de dilogo, Adriana Aparecida de Jesus Reis prope um
paralelo entre uma das narrativas de Giambattista Basile, escritor napolitano,
e um conto oral recolhido no interior da Bahia e presente em uma das obras do
escritor Marco Haurelio, evidenciando quais elementos populares podem ser
ativados na oralidade para a construo de contos maravilhosos de modo a
aproximar contextos culturais aparentemente to dspares.
Ao percorrer esses artigos, bem como as vidas,
vozes e poticas estudadas, observa-se que os territrios de (re)existncia
esto em grande medida atrelados aos viveres, fazeres e saberes das mulheres,
especialmente daquelas cujos lugares de fala so contra-hegemnicos, no se
podendo olvidar que a prpria oralidade nos estudos acadmicos significa por si
s alguma dissonncia. Os aliados nessa interlocuo somam-se s foras
ancestrais dessas vozes, que se confluem e atravessam no devir.
Andra Betnia da
Silva
Bruna Paiva de Lucena
ANTNIO ALEIXO E ANTNIO VIEIRA:
DILOGOS IAGINADOS OU BOCA DE PAPEL: ESPAOS DE FRICO DA PALAVRA POTICA
ANTNIO ALEIXO E ANTNIO
VIEIRA: IMAGINED DIALOGUES OR MOUTH AND PAPER: FRICTION SPACES OF THE POETIC
WORD
Edilene Matos[1]
http://orcid.org/0000-0003-3201-1946
\
Resumo: Este estudo pe em relevo interfaces
nas obras de dois poetas populares. De um lado, o poeta portugus Antnio
Aleixo[2] e
sua stira humanstica, com destaque para o recurso apropriado da
expressividade verbal. De outro lado, o poeta brasileiro (baiano) Antnio
Vieira[3]
e a ndole musicante de sua poesia satrica, integrando o que denominou Cordel
Remoado[4]. A
poesia de ambos os poetas, feita para provocar vibrao nas palavras, aponta
para a coreografia do gesto, no palco semovente oralidade/escritura.
Palavras-chave: Antnio Aleixo. Antnio
Vieira. Dilogos imaginados. Palavra potica
Abstract: This study highlights
the interfaces / overpassing in the works of two "popular" poets. On
the one hand, the Portuguese poet Antnio Aleixo (Algarves) and his
"humanistic" satire, with emphasis on the appropriated use of the
verbal expressiveness. On the other hand, the Brazilian poet Antnio Vieira
(Bahia) and the musical nature of his satirical poetry, integrating what he
called as "Rejuvenated Cordel".
The poetry of both poets, which was made in a way that provokes
vibration in the words, points to the choreography of the body / gesture, on
the stage / space moving by itself orality/writing.
Keywords: Antnio Aleixo. Antnio
Vieira. dialogues imagined. poetic Word.
Por uma
potica da voz
Voz.
Voz na garganta. Voz no papel. Voz no corpo. Voz no palco. Voz na rua.
Voz velha. Voz nova. Voz ruidosa. Voz silenciosa.
Enfim,
voz!
A
voz modulante, disso no se tem dvida. E se ela modulante, mvel, ela sai
e entra sem se fixar.
A
voz, mutante por natureza, parte do corpo que no se reduz a um espao, mas
alonga e prolonga esse corpo, locus de origem, referncia. Nesse movimento
sinuoso, trapaceira, a voz se desdobra em perpetuum mobile.
exatamente essa complexa operao de dobras e desdobras, de tecidos plissados,
que implica o espelhamento sonoro de nossas marcas identitrias, de evocao de
memrias. O barthesiano gro da voz se faz marca de corpo na voz. Voz que
querer dizer, vontade de existir.
Assim,
ao falar de espaos de frico da palavra potica, trago, aqui, um texto como
resultado preliminar do projeto de pesquisa Antnio Aleixo e Antnio Vieira:
dilogos imaginados ou Boca e Papel: espaos de frico da palavra potica.
E
esse espao de frico envolve as chamadas poticas orais. Estou,
evidentemente, me referindo ao verbo potico que nasce na boca, entendida
enquanto canal de emisso de voz ou vozes. lgico, pois, que a voz se produz
(se esculpe) nos rgos fonadores, que so tambm modeladores da voz. E a boca
funciona tambm como um desses modeladores: abre-se e fecha-se como canal
flexvel que . E faz passar a voz, rejeitando tudo o que quebra a voz viva.
Falar
sobre poticas orais, hoje, requer entrar num jogo polmico, e isto por conta
da diversidade de estudos que tratam do assunto. De incio, e h consenso, no
caso, entre os estudiosos, a oralidade implica tudo o que em ns se enderea ao
outro: seja um gesto mudo, um olhar (ZUMTHOR, 2010);
o gesto no transcreve nada, mas produz significativamente as mensagens do
corpo (ZUMTHOR, 2010 p. 206); o gesto denuncia o no-dito (ZUMTHOR, 2010, p.
205); a gestualidade, s vezes, confere uma funo ao silncio: gestos zeros.
Zumthor,
cujas ideias so basilares para minhas reflexes, diferencia boca e voz. A
boca, alm de ser um canal, um dos fatores que ajudam e interferem na
produo da voz. A voz est intimamente ligada ao corpo por vibraes
corporais. A voz acompanhada por movimentos corporais no-vocais e que
interferem no significado da mensagem vocal. H, portanto, uma voz sonora,
comprometida com o som, e uma voz muda, no comprometida exatamente com o som,
mas aliada ao som e que contribui para a produo da mensagem verbi-vocal. A
voz, signo escultrico, construda na garganta e entalhada no corpo.
Multiplicam-se, assim, as possibilidades de produo de sentido da mensagem
verbi-vocal, pois a voz, enquanto linguagem, feita de signos sonoros e de
signos gestuais. neste caso que se pode falar em mensagens
verbi-voco-visuais, considerando que esses signos mudos, de configurao no
sonora, portanto no audveis, so, no entanto, visuais, visualidade que se faz
necessria para que tais signos sejam captados e decodificados.
A
mensagem vocal, segundo Zumthor, envolve, pois, voz e corpo, envolve a palavra
audvel e signos visuais inaudveis, que se tornam audveis na medida em que se
aliam voz. essa aliana dos signos corporais inaudveis com a voz,
produtora de signos audveis, que torna os signos inaudveis signos tambm
audveis. O corpo mudo se torna audvel por fora da aliana de sua
gestualidade com a voz.
Quando
designamos a operao do uso da voz de vocalidade, estamos nos referindo a um
espao de produo de signos extremamente complexo, e isto porque tais signos
so, ao mesmo tempo, mudos, sonoros, audveis e inaudveis, convergindo todos
eles para uma espcie de sonoridade corporal, que o que caracteriza a
performance vocal, que no s som, mas envolve corpo e voz – corpo e
voz intimamente entrelaados de forma que o que no sonoro se sonoriza, e o que
no visual adquire uma espcie de potencialidade sonora, fazendo da
vocalidade uma espcie de cena teatral complexa, feita de signos
verbi-voco-visuais.
Zumthor
reivindicava a paternidade do termo teatralidade (thtralit). Este termo
exerceu uma espcie de fascinao para ele, e o conceito que lhe imprimiu
jamais se enfraqueceu, e, muito pelo contrrio, constituiu uma marca inscrita a
ferro e fogo de sua proposta (ZUMTHOR, 1998). Tal teatralidade evoca uma
espontaneidade que se inventa a ela prpria ao exprimir-se, como uma sensao
espacial, em que se amalgamam o som (o canto, ou simplesmente os jogos da voz),
o gesto, a mmica, a dana (ZUMTHOR, 2000). Desta forma, privilegia-se o calor
da voz, que ultrapassa e muito os limites acanhados da letra.
O
homem, produtor de mensagens vocais (cantador, trovador, ator, leitor e
intrprete de textos em voz alta) revela-se, por isso, sobretudo um ator,
exatamente porque a voz, criadora de mensagens, o obriga a se colocar por
inteiro no centro do palco.
Falar
de poticas da voz, portanto, falar desse teatro vocal, enquanto produtor e
encenador de poesia, entendida aqui enquanto encenao de signos-atores
interligados (vocais, gestuais, sonoros). Primordialmente, a potica da voz,
portanto, teatro potico ou poesia teatral, que no deve, em hiptese alguma,
reduzir-se palavra meramente vocalizada e muito menos palavra grafada.
Essa
interligao da palavra com o gesto, sabemos ns, vem do nascimento da poesia,
quando o homem se manifesta teatralmente (o poeta e a poesia no nascem nas
pginas do livro!), quando o homem descobre a voz como fora verbi-voco-visual.
por tal motivo que a poesia, mesmo quando grafada, mantm as marcas da
origem, de sua natureza propriamente original. Isto porque a poesia nasceu na
voz e da voz, intimamente ligada ao corpo, ou seja, a poesia nasceu como teatro
de signos. E justamente porque teatro de signos que, ao l-la no texto
escrito, esto l em reverberao as marcas da origem. Por conta dessas marcas,
o homem no pode deixar de ouvir, mesmo na escritura, essa voz ancestral, esses
traos ainda vivos de uma ancestralidade indelvel.
Ler
decodificar signos grafados, signos traduzidos em sinais grficos, mas ler
tambm implica a recuperao das marcas originais da palavra, porque a palavra
originalmente no letra, mas voz e corpo.
A
qualidade potica de um texto est ligada natureza teatral da voz, porque a
voz teatral desde os primrdios; ela potica porque a potica envolve a
conjugao de diferentes signos, tendo em vista a produo de uma linguagem
plurissignificativa, no apenas no plano conceitual, mas, de igual modo, no
plano sensorial, porque a plurissignificao nunca somente conceitual –
ela s se instala no momento em que o conceito se alia sensorialidade. Quando
uma linguagem sufoca a sensorialidade dos seus signos tendo em vista o
privilegiamento do conceito, ocorre sua despoetizao, ou seja, sua
desteatralizao e consequente monologizao. O monologismo a marca de uma
linguagem despida de sensorialidade, linguagem tcnica, formal, espartilhada,
sem liberdade, sem a menor condio de contribuir para a transformao do
homem, de fazer histria, porque puro registro esttico de fatos concretos. A
histria humana s se faz quando o homem assume sua poeticidade, sua
teatralidade natural. O homem um ser teatral, repito. As sociedades do
passado, que abafaram a natureza teatral do homem, morreram; e o que parece
estar ocorrendo hoje, face pseudo-segurana, e pseudo-certeza dos discursos
monovalentes, que escravizam e amordaam o pensamento, a criatividade, a ao,
a livre circulao das ideias. E o potico isto: espao livre de circulao e
dana dos saberes, que fecunda culturas, insemina civilizaes.
Potica
das culturas orais – poticas das culturas apoiadas nas linguagens
verbi-voco-visuais, sensrio-conceituais e multissignificativas. Melhor seria
falar de poticas vocais, pois que, e pensando nos ensinamentos de Zumthor, a
vocalidade como produo concreta do homem, como energia, mais palpvel, ou
visvel, que a oralidade. Alm disto, a voz confere, atravs de cada timbre, um
sinete autoral. Evoco a questo da emisso da voz como algo musicante,
entendendo com Ruth Finnegan (2008) que a msica vocal pode estar na cano ou
na fala, nos recitativos, nas declamaes. Penso, pois, em nveis de
musicalidade vocal, que na cano pode ser acentuadamente meldica.
A
anulao da oralidade impossvel, porque no possvel eliminar as marcas da
voz. E ao falar em poticas da voz, falo das linguagens sensrio-conceituais,
em que o conceito no se impe apenas no plano do logos, mas se faz espao
cambiante e prismtico de sensaes e sentidos, de experincias mltiplas
verbi-voco-sensrio-corporais.
Encontros
poticos moventes
Trago
como exemplos dessa potica sensorial os espetculos teatralizados em torno do
poeta Antnio Aleixo, hoje uma voz sem corpo, que se insinua em seus
poemas/quadras como um canto, vindo de um outro tempo, mas que ecoa, ainda
nesse sculo XXI, combativo, irnico, denunciador, provocador de incontida
euforia coletiva e, em todos os momentos, atualssimo. Trago tambm como
exemplo dessa potica sensorial a atuao performtica do poeta Antnio Vieira,
tambm hoje uma voz sem corpo.
Rondas.
Rotas. Mapas. Sagas. Peregrinaes. Travessias. Andanas. Veredas. Literatura
de movimento. Poesia nmade. Poesia movente. Poesia da voz viva. Poesia do social.
Poesia de carne e sangue.
Homero,
imitador, criador de aparncias – pelo menos para Plato era assim
–, saiu pelo mundo e deixou plantada sua Odisseia. Semente que se
multiplicou atravs do canto das sereias. As sereias, mticos seres,
testemunharam as diversas travessias do heri quase-divino, mais-que-humano. As
vozes dessas sereias, ecoadas no vai e vem das espumas, diziam de narrativas
fabulosas. Diz-se, hoje, de marcas especficas dessas narrativas: viagens reais
e viagens imaginrias.
Literatura
de frico: encruzilhada. Ponto de encontro, interseco de literatura com
outras sries artsticas. Penso, sobretudo, em msica/som, em dana/gesto,
imagem/olho.
Essa
literatura movente, potica viajeira, que vai e volta da letra voz, inscrita
no que se denomina poticas da voz, permite circularidade entre as vrias
culturas.
Este
estudo pe, pois, em relevo interfaces nas obras de dois poetas populares. De
um lado, o poeta portugus Antnio Aleixo e sua stira humanstica, com
destaque para o recurso apropriado da expressividade verbal. De outro lado, o
poeta brasileiro (baiano) Antnio Vieira e a ndole musicante de sua poesia
satrica, integrando o que denominou Cordel Remoado. A poesia de ambos os
poetas, feita para provocar vibrao nas palavras, aponta para a coreografia do
gesto, no palco semovente oralidade/escritura.
O poeta de l: Antnio Aleixo
O
dia foi 4 de setembro de 2019, uma bonita manh de vero. No comboio 180 (Alfa
Pendular), cadeira 51, parto, enfim, de Lisboa para Loul. Nunca tinha ido ao
Algarve! Minha expectativa a terra do poeta, Aleixo. Ainda naquele dia
contemplaria sua esttua[5].
Interessante entender a importncia dada a um poeta popular e isto algo
muito especial, mas que no me consola e me faz refletir sobre lacunas
imperdoveis que acontecem no Brasil, meu pas. Bem que algumas vozes
importantes j se levantaram nesse sentido, a exemplo dos alertas de Mrio de
Andrade e de Carlos Drummond.
Fiquei
hospedada no Allons-y Guesthouse, Rua de So Domingo, 13, bem perto do famoso
Caf Calcinha, reduto dos improvisos de Aleixo, reduto das memrias em torno
dele.
Em
Loul, agradveis surpresas: 1. o encontro com Helena Miguel, especialista no
que se refere ao arquivo de documentos e fotografias do Museu Municipal de Loul
– agradeo a Helena o contato, a visita ao museu, explicaes da Sala
Polivalente da Alcaidaria do Castelo, as conversas sobre o Brasil, loas a
Portugal, ao Algarve, a Loul. Simptica e acolhedora, Helena se mostrou
sensvel e inteligente. 2. O acolhimento generoso do professor/pesquisador J.J.
Marques, incluindo importantes e elucidativos dilogos sobre questes e
pesquisas das oralidades, visitas a monumentos e um agradvel almoo. 3. Uma
bem montada exposio sobre a rica trajetria de Tssan. 4. O dilogo com o
Presidente do Concelho, muito bem avaliado e respeitado pelos louletanos e, por
coincidncia, neto do poeta Antnio Aleixo. Essa minha visita o deixou comovido
ao tomar conhecimento da proposta de uma pesquisa em terras brasileiras sobre a
potica de seu av. Historiador, Vtor Aleixo me presenteou com uma alentada
edio de Encontros Imaginrios, de autoria de Hlder Mateus da Costa, premiado
escritor, dramaturgo, encenador e autor. Percebi, pois, que Vitor Aleixo
entendeu muito bem minha proposta com base nos dilogos imaginados entre Aleixo
e Vieira. O referido livro reuniu uma srie de encontros imaginrios promovida
pelo Grupo de Teatro A Barraca, a partir de fevereiro de 2011, com o objetivo
de inventar situaes e conflitos com figuras da humanidade (COSTA, 2015, p.
5). Nesses encontros se d, exatamente no Encontro Imaginrio 29, em 17 de
novembro de 2014, um dilogo insuspeitado entre Antnio Aleixo, Cndido de
Oliveira e Juiz Veiga (COSTA, 2015, p. 329-338).
No
Algarve, na primeira metade do sculo XX, Antnio Aleixo se tornou responsvel
pela irradiao de uma poderosa corrente do cancioneiro popular portugus. Tal
corrente foi apontada pelo artista plstico Tssan[6], e por Joaquim Magalhes, um dedicado
professor de liceu, figura indispensvel na divulgao do poeta Antnio Aleixo.
Espantosamente
lcido e consciente de sua inclinao potica, Antnio Aleixo deixou registrada
em versos sua concepo de arte e de artista. E como artista, tinha um olhar
caleidoscpico, girante, que lhe permitia sair dos espaos limitados de uma
vida comum:
Vejo a
arte definida
Na
forma de descrever
O bem
ou o mal que a vida
Nos
faz gozar ou sofrer
Ser
artista ser algum!
Que
bonito ser artista...
ver as
coisas mais alm
do que
alcana a nossa vista!
A arte
dom de quem cria
portanto
no artista
aquele
que s copia
as
coisas que tem vista
A arte
em ns se revela
sempre
de forma diferente;
cai no
papel ou na tela
conforme
o artista sente.
Textos
poticos autorados, ditos em alta voz por este chamado poeta oral, do sul de
Portugal, vendedor de cautelas e gravatas, guardador de rebanhos, cantor
popular nas ruas, mercados e feiras, trazem expresso filosfica original,
tantas vezes considerada ҇cida. Em quadra ou sextilha, poetava natural e
exemplarmente, com vocabulrio surpreendemente adequado s situaes em foco.
Motivos
e temas variados, mas o tom melanclico e irnico na exibio da capacidade de
improviso, viso de mundo especial, com grande inclinao para a stira.
Esta
inclinao para exibies e improvisaes j se fazia evidente desde a mais
tenra idade com performticas atuaes como cantor das janeiras[7].
Cantava as quadras das janeiras e quando o repertrio j tinha sido repetido
muitas vezes, o menino Aleixo fazia curiosas improvisaes que passaram a
chamar a ateno de todos.
Antnio
Aleixo, l pelos idos de 1939/1940, teve ajuntadas por um amigo (Jos Rosa
Madeira) algumas quadras em duas folhas de papel e que viriam a se constituir
ncleo do seu primeiro livro: Quando comeo a cantar (1 edio, Faro, 1943; 2
edio, Coimbra, 1948; 3 edio, Lisboa, 1960).
Figura
1 ‒ Dedicatria de Antnio Aleixo
Fonte: Livro Quando comeo a cantar.
Depois,
se seguiram: Intencionais – 1 edio, Faro, 1945; 2 edio, Lisboa,
1960; Auto da vida e da morte (1 acto) – 1 edio, Faro, 1948; 2
edio, Faro, 1968; Auto do curandeiro (1 acto) – 1 edio, Faro, 1949;
2 edio, Faro, 1964; Este livro que vos deixo Volume I, 18 edio, Lisboa,
2003; Este livro que vos deixo Inditos – Volume II , 13 edio,
Lisboa, 2003; Inditos – 1 edio, Loul, 1978; 2 edio, Loul, 1979.
Seguindo
seu ritual cotidiano de andarilho, Antnio Aleixo cumpriu o traado do seu
destino e ficou como um personagem-tipo, desses que marcam profundamente uma
poca, um espao social. Pessoa/personagem impressa na memria do povo
portugus, figura notvel e notria, poeta boquirroto, gritador e denunciador
dos males sociais, expert na arte da performance, Antnio Aleixo encarnou a si
mesmo em vrios papis, sobressaindo-se enquanto corpo/voz convertido em ao,
coisa viva, que alardeava, feria, rasgava, cauterizava, ecoando sempre um
universo de sugestes e sedues.
Essa
sua voz, inscrita no papel, como autor que foi de quadras e/ou sextilhas, ou
articulada, a do narrador, a do cantor dos acontecidos do povo de Algarve,
obteve enorme sucesso. Anunciava e denunciava tudo em voz alta, na busca de aperfeioar
o timbre, no gasto do frgil poder de seus pulmes, da materializao e da
pulsao da voz, do ineditismo de suas performances, em um contnuo corpo a
corpo com seu pblico.
Figura 2 ‒ Quadra e glosas de Antnio Aleixo
Fonte: Fundao Antnio Aleixo, 2019.
Se
Antnio Aleixo foi testemunha atenta e inquieta de momentos empolgantes da vida
portuguesa, acompanhando a revoluo dos costumes, afrontou tambm de dedo em
riste essa modernidade. No deve ser esquecido que Aleixo viveu e fez sua
obra em um Portugal sob o regime ditatorial salazarista ou Estado Novo
(1933-1975)[8].
No livro Ao encontro de Antnio Aleixo, Joaquim Magalhes conta que, por
ocasio do preparo para publicar Quando comeo a cantar, foi necessrio um
exerccio cuidadoso: tudo o que no pudesse ser motivo para eventual apreenso
do livro, caso pudesse vir a ser considerado alvo das vistas curtas da censura
intelectual de ento (MAGALHES, [s.d.], p. 10). Sabemos todos ns que
Magalhes[9]
referia-se PVDE.
Decididamente,
Antnio Aleixo nunca foi, como o personagem de Apollinaire, um vagabundo
urbano, quase um clochard, um pattico perdido na multido. Foi, antes, um
poeta, dotado de grande poder de comunicao. Um ldico e lcido poeta cuja voz
soava mgica para o pblico que o aplaudia e o tinha como seu legtimo
porta-voz. Pela boca desse extraordinrio artista fala a outra voz, a voz do
poeta sensvel vida de seu povo.
Sua
voz, seja como sussuro de confidncia – note-se o carter notadamente
autobiogrfico da maior parte dos poemas de A. Aleixo (FERREIRA, 1978) –
seja altissonante como a da multido na praa, me faz ouvir o tempo que passou
e que volta transformado, mesmo que seja numa folha de papel. Para a exibio
de suas quadras e/ou sextilhas, sonetos, glosas, poemas com vrias estrofes,
autos[10],
Antnio Aleixo lanava mo de recursos inusitados e imprevistos.
No
concordo com certos pronunciamentos que se referem incorreo da escrita de
Antnio Aleixo como senha para que o poeta fosse includo num grau abaixo do
que se convencionou como poeta culto. Essa distino entre literatura/poesia
popular e literatura/poesia erudita ou culta no tem mais sentido. Tida como
ingnua, rude e tosca pela histria literria, a literatura/poesia popular, na realidade,
um tipo de manifestao ficcional e imaginativa bastante prxima daquela que
se costuma chamar propriamente de literatura, no existindo diferenas de
essncia entre um e outro tipo de produo, j que possuem, de modo anlogo,
aquilo que comum a qualquer obra, seja qual for a tradio a que esteja
vinculada: sua capacidade de criar formas significativas, expressivas e
reveladoras da existncia humana. Alis, a pretensa ingenuidade que se atribui
literatura/poesia popular parece-me algo que se gostaria de encontrar na
literatura culta. Em verdade, o preconceituoso posicionamento por parte dos
eruditos com relao literatura/poesia de expresso popular reflete,
simultnea e contraditoriamente, o desejo e a rejeio de uma inocncia e uma ignorncia
invejadas, j que seriam elas o verdadeiro testemunho e garantia de certa
autenticidade e originalidade de raiz, nem sempre visveis em manifestaes
literrias de carter erudito.
Estou
de acordo, pois, com aqueles que viram inspirao muito rara nas quadras de
Aleixo em vrios momentos, e com um tom forte, expressivo, ajustado em
vocabulrio justo e cortante.
Figura 3 ‒ Manuscrito de
Antnio Aleixo
Fonte:
Fundao Antnio Aleixo, 2019. https://fundacaoantonioaleixo.com/wp-content/uploads/2016/10/5822007_orig.jpg
Nesse mundo girante, a
atualidade dos versos improvisados de Aleixo o insere na contemporaneidade
quanto expressividade do corpo e da voz como fenmenos poticos totais,
traduzindo as gritantes e to presentes misrias e desigualdades dos seres
humanos, alm de uma postura crtica com relao a si mesmo, postura esta a que
se referiu em uma de suas ltimas quadras, recordada pelo irmo de Tssan,
Armando dos Santos:
Quando
em mim penso com calma
e me
compreendo melhor
bem
merecia que a minha alma
tivesse
um corpo maior
Tudo
isso toma assento no pensamento de Paul Zumthor ao se referir relao voz e
gesto:
Um lao
funcional liga de fato voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no espao
da performance e visa a conquist-lo, satur-lo de seu movimento. A palavra
pronunciada no existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente
verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre
uma situao existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os
corpos dos participantes.
[...] o gestus d conta do fato de que uma
atitude corporal encontra seu equivalente numa inflexo de voz, e vice-versa,
continuamente (ZUMTHOR, 1993, p. 243-244, grifo meu).
Sabe-se
da vida cotidiana do homem e do poeta, como ele apareceu, local, dia e hora.
Sabe-se de sua famlia, avs, pai, me, irmos, amada, filhos e netos. Sabe-se
de sua sade frgil. Sabe-se de suas proezas heroicas e sedutoras. Conhecem-se
seus poemas e recitam-nos de cor. No h dvidas sobre estas questes.
Sei
que, em Portugal, Antnio Aleixo muito conhecido para que seja necessrio
insistir sobre ele. Mas insisto. Insisto em mergulhar num amplo espao, fluido
e disperso, de textos, entrevistas, relatos, participao em seminrios,
sesses de homenagens e outros tipos de manifestaes, onde Antnio Aleixo se
delineia como um mito, personagem transformado em sugestiva figura romanesca,
feita de evocaes e sugestes retricas e poticas, de achegas, de fragmentos
e que ganha fora como paladino de uma nova ordem. Mito, no caso, entendido,
por extenso de significado, como concepo individual ou coletiva, espcie de
crena vaga, oscilante, de gosto, de culto, de adorao leiga, espontnea ou
cultivada.
A
composio da imagem do poeta, no caso, decorreria da articulao das imagens
de uma realidade dada, com base em documentos oficiais, colhidas na memria,
mas tambm, de imagens que obedecem aos ditames de uma imaginao mais
propriamente criadora uma vez que atravessam geraes e se impem ou afirmam na
coletividade, propiciando a criao de poetas mticos, como o caso de Antnio
Aleixo.
Para
isso, foi necessrio despir-me de pr-conceitos tradicionais, esdruxulamente
laudatrios ou eufemisticamente malvolos, observando as possibilidades de
olhares (furtivos, voluptuosos, impassveis, ternos, apaixonados, invejosos,
parciais) sobre um centro mvel e continuamente deriva.
Com
o objetivo de delinear o mito de um poeta-gnio, encontro respaldo no
pensamento – ainda muito atual – de J. Tynianov quando acentua que,
em certas pocas, a biografia torna-se literatura oral apcrifa (TYNIANOV,
1971, p. 116).
Antnio
Aleixo foi, sem dvida, um personagem singular no momento em que viveu, e
tambm na dimenso mtica que lhe foi atribuda pelo povo, pelos crticos e at
por sua prpria poesia.
Ao
me referir a uma personalidade mtica, falo de um conjunto de atributos que se
evidenciam mais em determinados poetas ou artistas. Trata-se de algo que lhes
vem do interior e atinge o exterior, delineando-lhes um crculo luminoso como
se fosse uma aurola, conferindo-lhes santidade e poderes quase divinos, sem
que, por vezes, exista qualquer conexo entre tal processo de mitificao e a
qualidade da obra. Em sua biografia de Maiakovski, Roman Jakobson acentua:
Quando esse
mito entrou na vida, foi impossvel sem esforo sobre-humano traar um limite entre
a mitologia potica e o curriculum vitae do autor, e o testamento de Maiakovski
viu-se inteiramente justificado: na vida autntica do poeta, significativo
apenas aquilo que foi defendido com a palavra (JAKOBSON, 1993, p. 134).
A
especial venerao que se tributa imagem de Antnio Aleixo, porm, implica o
assentamento e desdobramento de um sem nmero de traos, reais ou fictcios,
biogrficos ou textuais, retrabalhados tambm pelo imaginrio. As imagens revigoram a memria, estimulam-na.
O poeta Antnio Aleixo, enquanto personagem,
construiu-se na crtica e na boca do povo, e sua vida converteu-se, repetindo
Barthes, num plural de encantos.
Tentativas (algumas at felizes) de mitific-lo ainda em vida se acentuaram com
a morte. A partir da, foi um fluir ininterrupto de imaginrios diversificados
e at fabulosos. Os contornos do personagem e do mito permanecem, porm, at
hoje, imprecisos. Todos apostam, entretanto, em algumas constantes: a crtica
mordaz, as limitaes financeiras, a sade debilitada, o talento para atrair
multides, o gnio criador de retumbantes e inflamadas imagens. Historiadores e
bigrafos costumam apresent-lo como um poeta que teve grande repercusso,
nacionalmente, entre os crticos e o prprio povo.
Fonte: Exposio Tssan,
em Loul, 2019. Fonte: Exposio Tssan,
em Loul, 2019. Figura 5 ‒ Aleixo e Tssan
Figura 4 ‒ Desenho de Antnio Aleixo por Tssan
Deste
modo, a semeadura do mito se deu, e o mito floresceu e frutificou. No se sabe
a ponta do novelo nem o embarao das linhas, mas pouco importa. No caso,
verdade e fico, emoo e razo se fundem, se misturam. Cada um quer
acrescentar um dado novo, e nesse jogo de dados, de variaes e interpretaes,
os espaos do mito vo sendo preenchidos – porm nunca se preenchem
– e a personagem se esculpe nos sons da voz, nos grafos da escritura, nas
leituras e releituras crticas, no teatro, nas ruas, escolas, agremiaes, nas
figuraes plsticas, nos espaos culturais, espalhados por todo Portugal e
chegando ao Brasil.
Sementes
plantadas, aqui e ali, em Portugal, onde so publicados, ditos (e atualizados)
poemas como se fossem de sua autoria. Nesse sentido, trago, aqui, a reflexo de
J.J. Marques, ao mencionar a seco Erticas, Burlescas e Satricas, de Inditos:
Refiro-me em primeiro lugar ao
seguinte aspecto: depois de mencionar as quadras (no sentido de quadras
glosadas) picantes, mas recheadas de humor e malcia integradas na seco
Erticas, Burlescas e Satricas, que obtivera por intermdio de velhos
amigos do poeta, que as ditaram de memria, Ferreira confessa: o nosso
trabalho neste campo consistiu em dar s verses orais destas quadras a forma
escrita que nos pareceu mais prxima duma composio de A. Aleixo.
curioso (para os mais rigorosos
ser talvez arrepiante) ver a boa conscincia com que Ezequiel Ferreira admite
ter retocado aqueles versos, de modo a aproxim-los do que Aleixo teria
escrito. Como que ele sabia determinar qual a forma mais prxima duma composio
de A. Aleixo coisa que no diz... Assim como no diz que alteraes fez
(MARQUES, 2013, p. 43, grifos meus).
Alm
disso, h uma grande quantidade de versos memorizados de prpria autoria do
poeta algarvio ou versos criados em que lhe so feitas referncias, como o de
Natanael Piano, citado por Ana Paula Guimares (2000, p. 136) em Ns de
Vozes – acerca da tradio popular portuguesa:
No quero ser um Aleixo
Nem ser Torga nem Miguel
E uma mensagem vos deixo
S quero ser Natanael.
Surgem
tambm pardias, pois vale sempre lembrar que a imagem e a obra de Antnio
Aleixo encontram ainda hoje repercusso e ressonncia junto ao povo, da bom
pensar em Mikhail Bakhtin, ao apontar o coro popular rindo na praa pblica
(BAKHTIN, 1987, p. 11). Esse referido coro era alimentado por parodistas, que
se utilizavam de modelos de obras conhecidas e aceitas pelo pblico para,
invertendo-lhes o sentido, produzir novas verses. Os autores parodiados
atestavam, assim, sua popularidade. Desse modo, isso se d com Antnio Aleixo.
A repercusso desse poeta realmente espantosa, sobretudo em Portugal. Em cada
canto, em cada esquina, possvel conversar sobre Antnio Aleixo!
Figura 7 ‒ Esttua do Poeta na Quinta do
Lago (Loul) Fonte:
Acervo pessoal da autora.
Fonte: Escultura Antnio Aleixo
em Madeira, de Mrio Albano, Galeria da Galeria da Exposio, Jos Manuel
Figueiredo, Baixa da Banheira, Vila de Moita, 2019.
Hoje,
Antnio Aleixo, que verbetado na Nova Enciclopdia Larousse, cuja obra se
encontra espalhada por vrias bibliotecas em Portugal e fora de Portugal, a
exemplo da Biblioteca Nacional do Brasil[11],
da Library of Congress[12],
da Bibliothque Nationale de France[13],
nome de rua, de agremiaes culturais, de escolas, com destaque para a
Fundao[14]
Antnio Aleixo, sediada na Av. Jos da Costa Mealha, 14 – 1 andar,
Loul.
Figura 9 ‒ Placa da Rua Antnio Aleixo
Figura 8 ‒ Placa da
Fundao Antnio Aleixo
Fonte:
Acervo pessoal da autora. Fonte:
Acervo pessoal da autora.
Em texto esclarecedor, o pesquisador e professor portugus J. J. Dias
Marques registra a preciosidade da no to numerosa coleo de manuscritos de
Aleixo conservada na Fundao Manuel Vigas Guerreiro, em Querena, concelho de
Loul (2013, p. 48). Registra, ainda, duas outras instituies que conservam
manuscritos do poeta: a Biblioteca da Universidade do Algarve, em Faro e a Fundao
Antnio Aleixo, em Quarteira/Loul (e j aqui referida).
Aleixo foi prestigiado na rea musical por grandes nomes da cano, com
realce para Zeca Afonso[15]
e sua famosa Balada Aleixo, no LP Cantares de Jos Afonso, 1967.
Quem canta por conta
sua Canta sempre com razo Mais vale ser pardal
na rua Que rouxinol na priso |
Adeus que me vou
embora Adeus que me quero ir Deita c estes teus
olhos que me quero despedir |
Com os cegos me
confundo Amor desde que te vi Nada mais vejo no
mundo Quando no te vejo a
ti |
Adeus que me vou
embora Adeus que me quero ir Deita c esses teus
olhos Que me quero despedir |
Figura 10
‒ Cartaz do espetculo
Fonte:
Acervo pessoal da autora.
Aleixo, que escreveu autos, figura tambm em espetculos teatrais, a
exemplo do espetculo Diz-me, Antnio[16], um
tributo ao poeta algarvio Antnio Aleixo, no Teatro das Figuras, em Faro.
Integrado no programa 365 Algarve, uma coproduo da ArQuente Associao
Cultural, com o apoio da Direo Regional de Cultura do Algarve e parceria da
Eating Algarve Tours. Trata-se, segundo a divulgao do espetculo, de uma nova
criao da Rede Azul – Rede de Teatros do Algarve, revisitando a obra de
Antnio Aleixo – na passagem dos 120 anos do seu nascimento – como
um cruzamento artstico entre dana, msica e spoken word.
A esmola no cura a chaga;
Mas quem a d no percebe
Ou ela avilta, que ela esmaga
O infeliz que a recebe.
A ningum faltava o po,
Se este dever se cumprisse:
– Ganharmos em relao
Com o que se produzisse
Figura 12 ‒ Esttua de Antnio Aleixo em Loul Figura 11 ‒ Lpide de Antnio Aleixo, Cemitrio de Loul
Fonte: Acervo pessoal da autora, 2019. |
Fonte: Acervo pessoal da autora, 2019. |
O poeta
de c: Antnio Vieira
Antnio Vieira
Nasceu em Santo Amaro
Tem sobrenome do pai
O nome, a me deu, claro
No ano de 49
Introduziu-se no orbe
Onde faz o seu trabalho.
Viajou pelo Brasil
Investigou um bocado
Escreve em seus cordis
Imagens que lhe marcaram
Resgates e personagens
Annimos e consagrados[17].
Antnio Vieira, com
poemas narrativos, capazes de suscitar a curiosidade do ouvinte/leitor,
confiava na fora de sua imaginao ao rearticular histrias inscritas na
tradio, dando-lhes novas cores e fisionomias. Sabia Vieira que sua palavra
tinha poder, que poderia repercutir no imaginrio social, provocando at certa
euforia coletiva, e influenciando os sonhos e at mesmo os destinos, pois que
se insinua e penetra nos ouvidos, transmitindo encantamentos pela letra e pela
voz.
Sabia, de igual modo,
que sua atividade de poeta, nascida no contato direto com o pblico, abriu
caminho para seu sucesso como herdeiro dos trovadores medievais.
Leitores eu vou contar
E este meu papel
De poeta, cordelista
Cantador e menestrel
Como tudo comeou
De que forma aqui chegou
O folheto de cordel (s.d., p. 26)
A potica popular
narrada em folhetos de cordel j em si transgride os cdigos da escritura, que
um desenho da voz. E, ao romper as linhas que limitam a escrita ao tamanho do
papel, essa potica se impe, transita por espaos moventes e, sinuosa, se molda
aos diversos contextos, como o escolhido por Vieira como Cordel Remoado. Essa
proposta de Antnio Vieira traz o dilogo da tradio rural com o urbano, do
antigo com o contemporneo, incluindo a participao do narrador/cantador in
presentia ou midiatizado em shows gravados. Mais uma vez busco apoio em
Zumthor, ao tratar das atuaes dos jograis quando
predominava a palavra gesticulada dos
poetas, a msica, a dana, esse jogo cnico e verbal que linguagem do corpo e
colocao em obra das sensualidades carnais (ZUMTHOR, 1993, p. 45).
Na
proposta potica de Antnio Vieira, o corpo participa da ao de dizer, desde a
variada tonalidade da voz ou a estruturao rtmica at a gesticulao
corporal, que se manifesta nos movimentos das mos, nos meneios da cabea, na
curvatura do tronco, na dana do corpo de um lado para outro, para frente, para
trs, num vai e vem prprio da atuao performtica.
Antnio Vieira comps
seu personagem movido evidentemente pelo desejo de se distinguir da multido
das praas pblicas: usava um chapu tipo panam e portava um violo como se
fosse extenso de seu prprio corpo, marcas de um artista
Figura 13
‒ Antnio Vieira
Fonte:
Acervo pessoal da autora.
Antnio
Vieira, que comeou realmente a escrever e a atuar j no sculo XXI, nesse
terceiro milnio, tinha perfeita noo de sua funo de poeta/pesquisador.
Nesse sentido, no foi um improvisador – confessava que utilizava a
estrutura e o prprio nome de Cordel – e chegou a fazer uma classificao
de sua obra, naturalmente ancorado nas classificaes feitas por estudiosos da
literatura popular. Deixou uma obra marcada por um elevado teor de
intencionalidade, preocupao com os debates acirrados de um novo momento,
conformando uma polifonia de narrativas de grande interesse. Trago, aqui, por
exemplo, uma de suas propostas, qual seja a da coleo afro-Brasil, com um
conjunto de folhetos abordando a temtica da africanidade e sua repercusso na
formao do povo brasileiro.
No
rol de sua produo potica, figuram duas coletneas – Histrias que o
povo conta, volumes I e II – e um CD gravado – Antnio
Vieira: o cordel remoado – com 12 msicas narradas e/ou cantadas.
Homem
sensvel e atento diversidade de seu pblico, Antnio Vieira sabia seduzir
plateias, como ocorria nos shows que eram cuidadosamente preparados. Por conta
disso, foi convidado pela TVE (TV Educativa/IRDEB/Bahia) para gravar um
especial, o que foi concretizado em 2005.
As atuaes
performticas de Antnio Vieira provocaram repercusso na Escola de Artes
Cnicas da Universidade Federal da Bahia. O professor Dr. Armindo Bio, de
saudosa memria, escreveu um prefcio para a coletnea Histrias que o povo
conta, de Antnio Vieira:
H alguns anos, lecionando para jovens estudantes
de teatro, da Universidade Federal da Bahia, e tratando com as possibilidades
picas (narrativas) e dramticas (de ao) do cordel, convidei para fazer uma
aula para meus alunos o poeta, compositor e cantor Antnio Vieira, que me foi
apresentado por Antonio Marques, estudante da turma. A publicao do livro
deste artista hoje aqui (2003, por ocasio de uma feira nacional do livro, na
Bahia) um importante momento do histrico acima relatado. Ler um folheto de
Antnio Vieira, em sua presena, numa festa de 13 de maio em Santo Amaro, sua
terra, t-lo fazendo uma nova aula – desta vez aberta – para meus
novos alunos da UFBA, h algumas semanas e mais recentemente, t-lo num projeto
da Fundao Cultural para um pblico maciamente jovem (o Julho em Salvador),
so outros momentos daquele histrico pessoal, que se completam com as
consideraes que se seguem (BIO, 2003, p. 12-13).
Em
2004, Antnio Vieira teve a oportunidade de fazer uma viagem a Portugal, desejoso
de conhecer a terra de Antnio Aleixo, poeta por quem nutria uma profunda
admirao. L, fez alguns shows e se encantou com a Universidade de Coimbra.
Em rota de viagem,
Antnio Vieira deixou gosto de quero-mais no seu antolgico encontro virtual com
Antnio Aleixo. Encontro dos dois Antnios. Antnio Vieira viajou da Bahia para
Portugal e o fez no duplo sentido: real e imaginrio. Em suas andanas por
terra de alm-mar, redesenhou um encontro potico insuspeitado.
Na Bahia, sabia muito
bem Antnio Vieira que o centro da cidade de Salvador no era somente reduto de
sobrades onde se misturam os cheiros de dend, incenso, cravo e canela. Era
tambm reduto de tipos humanos, populares ou no, que passavam das ruas para a
memria, a exemplo de Gregrio de Mattos, poeta seiscentista que nasceu no
casaro de n 8 da Praa Anchieta (bem em frente ao Cruzeiro de So Francisco,
cruz de mrmore erguida em 1807, sob a batuta de Frei Jos de So Sebastio),
expoente maior da nossa poesia barroca e que circulou de viola em punho pelos
becos e ladeiras, satirizando desafetos pessoais e polticos, ele que era
doutor in utroque jure pela Universidade de Coimbra.
A viagem que Antnio
Vieira fez a Portugal possibilitou-lhe reflexo a respeito de si prprio, de
seu pas, de seu povo, abrindo espao para a construo de um discurso sobre o
outro. O poeta da terra de samba-de-roda e usinas de acar viu sua viagem como
um aprendizado, como experincia vivencial e textual. O ritmo do sujeito que
tudo olha, tudo contempla e tudo fixa. O desejo de conhecer os lugares por onde
versejou Antnio Aleixo fez com que, para Antnio Vieira, essa viagem se
tornasse mais ntima e imaginria que real. Ao olhar o outro, estabeleceu de
imediato um dilogo entre a sua cultura e aquela do outro. Importava, para ele,
ler o outro, buscar identidades e diferenas, tentando reviver, atravs do
corpo textual, tudo aquilo que viu ou contemplou.
O olhar de Vieira
– aqui, evoco Bachelard – passa de algo passivo para algo ativo, de
movimento, no sendo o olho seu smbolo, mas a mo, que tem movimento e
criadora, ao agir sobre o objeto observado (BACHELARD, 1991). Tenso no olhar.
Olhar que se transforma em atividade criadora, transferindo para a mo do
escritor a fixao dos instantes. Instantes viajeiros, agora fixados,
dinamizados pela imaginao. Nos campos do imaginrio, a memria se rearruma,
se rearticula, se reorganiza, redimensionando, desse modo, o que foi olhado,
tocado, cheirado, ouvido, saboreado. Imaginao que opera, portanto, transformaes
de dados efetivos que se movem em espaos fluidos e tempos imemoriais.
A viagem de Vieira a
Portugal, lugar de espao e tempo para experimentaes, fez vicejar uma nova
proposta de escritura: no documento, no testemunho, no memria. Mas um
bocadinho de cada, compondo um tecido de mltiplos fios e de intrincados
tranados que se expem nos vrios deslocamentos, no trnsito, na errncia por
opostos espaos, na dimenso cambiante de toda mudana.
Veja-se que suas
crnicas/relatos/narrativas de viagem lanaram sementes para seus folhetos, nos
quais, por exemplo, Portugal foi muito alm de referncias histricas,
arquitetnicas, e passou a significar um espao de liberdade por onde os
personagens circulavam num vai e vem incessante. Nesse espao, a includo o
cotidiano do trabalhador, do vagabundo, do moleque, h o desfrutar dos
prazeres, sugerindo possibilidade de felicidade. Escapam, assim, os personagens
de Vieira da dimenso da razo e passam a expressar-se em outro plano, plano
to enevoado, pleno de matizes e cambiantes, plano aberto, sem frmulas fixas,
rgidas ou definitivas. Nesse plano, tudo pode ser mudado, tudo est em
constante ir e vir como as inslitas espumas flutuantes.
Viajar preciso. No
confidenciar desse viajor, h a diviso entre a viagem real e a viagem da
imaginao. Uma interfere na outra, possibilitando reflexes para a compreenso
da opo esttica e ideolgica do escritor. Nessas viagens, Vieira pensou e
refletiu a poesia e as vrias dimenses da oralidade e da musicalidade.
Essa viagem para
Portugal motivou o folheto O Encontro de
Antnio Vieira com Antnio Aleixo. No h aventura impossvel para a
imaginao do poeta, que viaja solto, sem rdeas, nas asas do vento. Voam os
poetas de cordel, obcecados pelos voos.
Espao e tempo se
movimentam e as narrativas ressurgem com novas fisionomias no recncavo da
Bahia. So traos de uma narrativa oral, movente, surpreendentemente
camalenica, que ressurgem nos intrigantes textos de literatura de cordel.
Composto de septilhas setessilbicas, e editado com o apoio da Fundao
Cultural do Estado da Bahia em 2005, o folheto, j no seu incio, indica
reverncia ao poeta portugus:
Grande
mestre Antnio Aleixo
Eu
estando em Portugal
Para
cantar os meus versos
Em sua
terra natal
No
lhe pedi permisso
Para
tal interveno
Perdoe-me,
no fiz por mal!
Apenas
no conhecia
Sua
verve meritria
Que o
povo portugus
Guarda
viva na memria
E fala
com muito zelo
Do
poeta cauteleiro
Que
deixou o nome na histria.
Nesse folheto, o poeta
viaja atravs da imaginao sem travas e sem limites. Aporta o poeta no mundo
portugus e estabelece relaes com o mudo de c:
Mas
como eu considero
O
mundo um s: l e c
Tomei
a iniciativa
De com
voc versejar
Baseado
na essncia
Que a
sua sapincia
Me
inspirou a cantar.
Fascinado pela vivncia
entre rios – Suba-sergi-mirim, Araguaia, Paraguau, Tocantinpolis,
Arata, Itapecuru –, o poeta Antnio Vieira, de Santo Amaro/Bahia, era
atento observador do difcil cotidiano de seu povo, de um povo sofrido e carente.
No ser difcil, portanto, entender a fabulosa viagem que o poeta empreende em
busca de um outro espao. Assim, vai a Coimbra e contempla o Mondego.
Contemplao igualmente se dar com a ida a Braga quando avista o Douro.
Essa narrativa em versos
metrificados , sem dvida, baseada em modelos que so recriados com base na
circulao de elementos textuais viajantes, nmades, que se combinam aqui e
ali, fazendo surgir histrias sempre prontas a se refazer na infinitude das
leituras possveis. Num complexo processo da boca ao ouvido e do ouvido boca,
ocorre o afastamento gradativo da matriz original. E a modificao da matriz
original de uma histria assentada na tradio tem, a meu ver, um aspecto
transgressor, que seduz pela novidade, oriunda da imaginao, essa forma de
audcia humana.
A voz do poeta popular
inquieta, se adentra em variados mundos, transmite verdades e sonhos, funda
reinos fabulosos ou no. Essa voz em mutao se reelabora constantemente,
tecendo e retecendo os retalhos da tradio em formas novas e fisionomias
particulares.
Escrito por um poeta de
acentuado esprito crtico, o folheto hbrido – septilhas e peleja em
quadras – com a verso do encontro fictcio entre o Antnio portugus e o
Antnio brasileiro da Bahia, uma viagem pela imaginao. Com sua palavra
cheia e cantante, Antnio Vieira se insere, agora, no rol dos criadores de
viagens fantsticas.
A narrativa de viagem
real de Antnio Vieira expe a experimentao ao vivo das mais variadas
manifestaes artsticas de nossos antepassados portugueses: poesia, msica,
drama. Na volta, sob a ao da memria e da imaginao, selecionou os fatos
experenciados e os metamorfoseou em viagens fictcias.
Antnio
Vieira ter sua vida escrita[18],
certamente, por bigrafos, e ela trar a legenda da heroicizao. Desde a terra
de origem (Bahia) – uma terra mtica – at as pessoas que o cercam
– parentes, amigos, admiradores –, dizem eles que Vieira foi um
homem mpar, mltiplo e vrio. E eu, que cheguei a conhec-lo, concordo que
seus vrios perfis se superpem: o Antnio Vieira de Santo Amaro da
Purificao, cantada terra do Recncavo baiano; o Antnio Vieira na cidade de
Salvador, seduzido pelas luzes da ribalta; o Antnio Vieira da famlia (com
Coracy e filhos); o Antnio Vieira agitador, arauto da liberdade; o Antnio
Vieira, poeta que figura no panteo de grandes poetas da literatura de cordel;
o Antnio Vieira dos palcos, mestre violeiro e exmio cantador; o orador
destacado de seminrios e entrevistas; o inesgotvel combatente, apoiador ardoroso
de um pensamento afro-descendente; o Antnio Vieira, modelo de elegncia e
audcia; o Antnio Vieira dos jovens, o arrebatado paladino da liberdade, o
utpico, o sonhador; o Antnio Vieira das geraes mais velhas, modelo de homem
justo, educado, orador brilhante, poeta de estirpe; o Antnio Vieira do povo, o
simples, o defensor dos oprimidos, o proclamador das igualdades sociais.
Figura 14 ‒ Antnio Vieira em atuao
Fonte: Acervo
pessoal da autora.
Antnio Vieira deixa uma grande contribuio ao conceituar uma nova maneira
de pensar o cordel, denominado por ele de cordel remoado, e que
consiste na apresentao do cantador recitando/cantando fragmentos de histrias
tradicionais em processo de uso da bricolagem com novas histrias de sua lavra,
satirizando os acontecimentos, denunciando mazelas. Com fora e forte carisma,
o poeta exibia gestos, tons de voz adequados a cada narrativa cantada. O poeta
Vieira fez, em verdade, uma releitura do cordel, fazendo o texto circular e,
desse modo, costurar habilmente as linhas da tradio e da contemporaneidade
sem deixar entre elas lacunas e pontos visveis.
Ardoroso defensor do prestgio que deveria ser dado poesia popular, A.
Vieira buscou estabelecer um dilogo com os poetas sem subservincia, sem tirar
seu chapu como reverncia.
A cantora e intrprete Maria Bethnia, tambm nascida em Santo Amaro da
Purificao/Bahia, gravou, ao som de um instigante fundo musical com percusso
e levssimo dedilhar de violo, um irreverente poema de seu conterrneo[19]:
A nossa poesia uma s
Eu no vejo razo pra separar
Todo o conhecimento que est c
Foi trazido dentro de um s moc
E ao chegar aqui abriram o n
E foi como ela sasse do ovo
A poesia recebeu sangue novo
Elementos deveras salutares
Os nomes dos poetas populares
Deveriam estar na boca do povo
No contexto de uma sala de aula
No estarem esses nomes me d pena
A escola devia ensinar
Pro aluno no me achar um bobo
Sem saber que os nomes que eu louvo
So vates de muita qualidade
O aluno devia bater palmas
Saber de cada um o nome todo
Se sentir satisfeito e orgulhoso
E falar deles para os de menor idade
Os nomes dos poetas populares.
Antnio Vieira foi acometido por um cncer pulmonar. Durante 10 anos, lutou
contra essa doena e, segundo me relatou sua viva, ele dizia sempre Eu estou
doente, no sou doente. Essa doena se espalhou para a medula ssea e o poeta
veio a falecer no dia 10 de maio de 2010, deixando mulher e trs filhos.
FOLHETOS[20]
DE ANTNIO VIEIRA:
1.
A medicina altrusta
de Doutor Jos Silveira, xilo: Naizuo, 2001.
2.
Santo Antnio de
Pdua, a Prola Maior da Ordem Franciscana, edio especialmente produzida para
o Evento Antnio Tempo, Amor, Tradio – ANO V – 2001 (MOSTRA DE
ARTE – de 1 a 13 de junho, Centro de Memria dos Correios, desenho s/i,
acrstico, 24 p., junho de 2001.
3.
Mouraria, tradio
Mouro Cigana, desenho s/autoria, acrstico. 16 p. outubro de 2001.
4.
A poesia esculachada
dEle, o Tal Cuca de Santo Amaro, xilo com a figura do poeta popular Cuca de
Santo Amaro, de autoria do xilgrafo Natividade, acrstico, junho de 2002.
5.
Pop do Macull de
Santo Amaro, 2 edio, desenho, agosto de 2002.
6.
O encontro de Besouro
com o valento Doze Homens, 4 edio, acrstico, desenho s/identificao,
setembro de 2002.
7.
Usar Chapu –
uma arte milenar, 12 pginas, desenho s/autoria – acrstico, outubro de
2002
8.
Se a ferrovia
traz progresso e porque o trem parou?, 16 pginas, acrstico. Fundao Luis
Ademir de Cultura, So Flix/Bahia, 2002.
9.
Akar-Je – o
mesmo que comer fogo, xilo: Natividade, 8 pginas, acrstico, janeiro de 2003.
10.
O sacerdcio
humanista de Monsenhor Gaspar Sadoc, 8 pginas, acrstico, maro 2003, foto do
Padre.
11.
Manuel Faustino dos
Santos Lira, o mrtir santo-amarense da Conjurao Baiana, desenho s/ident, 12
p., acrstico, abril de 2003.
12.
Felia – uma
prostituta que ensinou uma gerao inteira, 8 pginas, Xilo Luiz Natividade,
com acrstico, abril de 2003.
13.
Dona Can[21],
referencial de Me e de Sabedoria, 12 pginas, acrstico. Capa, foto de D.
Can, setembro de 2003.
14.
Aprende a
escrever na areia, desenho sem identificao, 8 pginas, acrstico, com
informao aos leitores, no verso da capa, que a histria foi inspirada na
obra de Malba Tahan. Na capa: D cordel de presente[22], dezembro 2003.
15.
Palmares, a
fora da raa negra, xilo s/i, 20 pginas, acrstico fora do padro.
16.
Pginas,
acrstico, fevereiro de 2004.
17.
Louvao do
poeta Fundao Cultural do Estado da Bahia, abril de 2004.
18.
Igrejas da
Bahia, um estado de esprito, desenho s/identificao, (Espao Cultural Incio
da Catingueira), 28 pginas, acrstico, dezembro de 2004.
19.
O encontro de
Antnio Vieira com Antnio Aleixo, junho de 2005, com 26 pginas e um
acrstico. Na capa, desenho dos dois poetas: por Natividade (A. Vieira) e
Tossn (A. Aleixo). Contm um texto de Joaquim Magalhes, datado de fevereiro
de 1975 – Actualidade Viva de um poeta Morto.
20.
Assis Valente,
o santamarense que queria ver Tio Sam tocar pandeiro, 8 pginas, acrstico,
s/d.
21.
Fonte: Foto da autora. Fonte: Foto da autora.
Figura 16
– Espao Cultural Incio da Catingueira, criado por Antnio Vieira e
sediado em sua prpria casa |
Os dois Antnios: Aleixo e Vieira
Antnio Aleixo e Antnio
Vieira viveram em espaos e tempos distintos. Enquanto o Antnio Aleixo viveu
um momento em que no se assistia, se vivia, poca em que uma corrente
magntica ligava todas aquelas almas, tornando-as solidrias na comunho
emotiva (TORGA, 1960, p. 68), Antnio Vieira viveu e transitou em outros espaos
e outra poca, exatamente entre as quatro ltimas dcadas do sculo XX e a
primeira dcada do sculo XXI (1962-2010).
Antnio Aleixo ficou
dividido entre alguns espaos: o de sua origem em Vila Real (centro
piscatrio), o de Loul (agrrio artesanal) e onde se deu seu real assentamento
a partir da infncia, vida instvel e por pouco tempo em Frana, passagem
importante por Coimbra. Nos anos 1930-1940, o poeta conviveu em muitos
encontros com reconhecidos algarvios, que se pronunciavam quanto ao inconformismo
da poltica, eram anticlericais e com assentados princpios ticos.
O conjunto da obra de
Antnio Aleixo mostra um grau elevado de insatisfao com o mundo. A melancolia
e a stira compuseram a maior parte de sua obra e isto um consenso entre os
pesquisadores.
Antnio Vieira tambm
ficou dividido entre alguns espaos: o de sua origem como filho mais velho do
dono de um pequeno armazm na cidade de Santo Amaro da Purificao (quando
criana, escrevia versinhos no papel de embrulho das mercadorias), depois a
circulao por vrios estados do Brasil, a servio de uma instituio federal
(INCRA), at se firmar em Salvador, capital da Bahia. Mas, quis atravessar o
Atlntico para sentir os ares da terra por onde transitou o poeta portugus
Antnio Aleixo.
O conjunto da no
extensa obra de Antnio Vieira mostra uma conscincia de seu fazer artstico
como uma forma de conscientizar seu povo e fazer isto tambm de maneira
divertida, em busca por reiventar alegrias. A stira de sua poesia convergia
para uma stira jocosa, em que o riso se unia reflexo, pois no visava o
cmico. Assim, de maneira camalenica, apontava sua ironia tranada de
sutilezas para tratar da realidade social da poca.
Por sua presena,
impressa de forma indelvel na memria dos poetas, dos cantadores, dos
estudiosos da cultura popular, dos intelectuais e do prprio povo portugus,
como figura de proa, agitador, referncia, Antnio Aleixo, artista de destacada
produo, um expert na arte da performance, transformou-se em
lder e numa espcie de modelo.
Antnio Vieira ainda
muito pouco estudado e, portanto, no tem uma fortuna crtica, mnima que seja,
sobretudo no Brasil, um pas que mantm, no to aparentemente mas com um
delicado desdm, uma separao entre os poetas eruditos e populares. Muito
me chama a ateno, em Portugal, uma aura mtica em torno do Aleixo, o que acho
instigante e bastante pertinente.
Ah! Seduo (se-ducere: afastamento,
desvio do caminho, encanto, atrao, fascnio), jogo e desafio, lance de dados,
ritual sem vencedor nem vencido, presena do trompe loeil,
espao onde se assentam as marcas da iluso. Mas o momento da seduo no s
ilusrio, tem um qu de mgico, de encanto. A seduo, rito articulado no
imaginrio, encena uma espcie de fantasia do real.
A prpria reverncia de
parte do poeta Antnio Vieira diante da obra de Aleixo foi o eixo central para
este estudo. Seduzido pela obra potica de Aleixo, Vieira (2005, p. 5-6) buscou
identificar-se, de certa maneira, com o poeta portugus.
Por termos
muito em comum
Desde as
razes da terra
Porquanto
seu sangue bom
As minhas
veias preserva
No ano 49
Eu cheguei
aqui no orbe
Voc foi
pra vida eterna.
As nossas
vidas coincidem
Nascemos no
mesmo ms
Voc no dia
dezoito
Dezenove
foi minha vez
Voc veio
c, primeiro
E o ms de
fevereiro
Nos recebeu
bem corts.
E a partir de agora
Eu passo a versejar
Baseado em sua obra
As cantigas de atirar
Vou repetir uma linha
Com a qual eu fao a minha
Quadra que vai
se casar.
E, assim, em pleno
perodo de uma pandemia, covid-19, meu deslocamento para pesquisas, aqui no
Brasil, se deu movida pelo imaginrio. Em companhia desses dois poetas, busco
perambular pelas ruas de Loul ou da Bahia, insistindo na captao dos
sentidos, do olfato ou da audio de momentos no vividos. Por intermdio
desses poetas, recomponho mapas e, imaginariamente, percorro ruas, becos,
mercados e feiras populares para, em seguida, desenh-los na minha escrita.
Assim, esses poetas procederam, observadores infatigveis da vida
scio-poltica de sua polis.
Escrito por um poeta de
acentuado esprito crtico, o folheto hbrido[23]
– septilhas e peleja em quadras – com a verso do encontro fictcio
entre o Antnio portugus e o Antnio brasileiro, uma viagem pela imaginao.
Com sua palavra cheia e cantante, Antnio Vieira se insere, agora, no rol dos
criadores de viagens fantsticas.
A narrativa de viagem
real de Antnio Vieira expe a experimentao ao vivo das mais variadas
manifestaes artsticas de nossos antepassados portugueses: poesia, msica,
drama. Na volta, sob a ao da memria e da imaginao, selecionou os fatos
experenciados e os metamorfoseou em viagens fictcias.
Figura 17 ‒ Capa de folheto
Fonte: Acervo da autora.
guisa de concluso ou pensando em concluir
Se, por um lado, utopia
pode parecer um discurso ilusrio, por outro, se apresenta como um possvel
entendimento do real, capaz de transformar o ilusrio numa funo construtiva
do discurso potico. Desse modo, as decepes, os fracassos, as enganaes convergem
para a criao de novos mundos. Seriam esses novos mundos um refgio e um
testemunho da inadequao realidade vivida? Da o chamamento para a utopia
nesse mundo j considerado distpico e agora mais acentuada fica essa
distopia por conta de um novo normal ou mundo ps-pandmico.
As reflexes em torno
das obras desses dois poetas apontam uma
temtica abrangente que traz reflexes sobre cultura, memria, tradio e
inveno, traos que convivem conosco neste nosso mundo de hoje, marcado pela
instabilidade e pela imprevisibilidade, pela movncia e pelo dilogo.
Neste incio de milnio, em que a humanidade em crise (econmica,
poltica, ideolgica, religiosa, tica, afetiva) aferra-se a incertos valores e
duvidosas certezas, na busca do paraso perdido do passado, ou de instaurar o
paraso possvel do futuro, creio que talvez valha a pena enveredar pela
memria e pela resistncia, sob o foco da cultura.
Nas entrelinhas desse texto, ecos e sons coreografam a dana saborosa
do(s) saber(es), que, como Barthes vislumbrou, no tm qualquer tipo de fim,
concluso, alvo ou porto.
Este texto toca, aqui, pois, em assuntos candentes para se pensar a
relao da globalizao e a diversidade cultural e faz um convite: olhar para o
mundo e a vida, no como espaos de certeza, de preciso, de hierarquias
traadas, mas antes de tudo como espaos moventes, prismticos, onde o que
interessa a iluminao, ao contrrio de luzes ofuscantes que impedem o
olhar. O ouvinte no vai se guiar por certezas absolutas, mas por curiosas
indagaes que se mostram no espao de reflexes sobre temas importantes.
Tendo por base dois poetas populares inseridos no par memria/movncia,
este texto organizou-se, intencionalmente, no (des)compasso de sequncias. Ao
fim e ao cabo, pretendi com essa (des)organizao erguer uma espcie de babel cultural, na qual textos desses
poetas tenham voz, em que nos seja permitido ouvir as falas em sua
multiplicidade, e enxergar cintilncias de significados.
Cultura expresso, expresso que revela sentidos potenciais e
infinitamente multiplicados. Assim, a possibilidade de as culturas se
aproximarem, se tocarem, dialogarem e at mesmo se completarem, mantendo suas
individualidades como signos que produzem interpretantes com modos semelhantes
de expresso, ainda que por meios diferentes, ou suportes, para falar
contemporaneamente.
As culturas no so excludentes, e, muito pelo contrrio, desembocam num
ponto de confluncia. E nesse ponto, com base nas estratgias sensveis
(SODR, 2016), o lugar singularssimo dos afetos atravessa e ilumina meu ncleo de
investigao que envolve a ideia de voz como espao
de fronteiras entre culturas, como um tecido de tramas entre memria, histria,
encenao (corpo), trao, olho e letra – diferentes vozes que permeiam o
que chamamos de potica das culturas orais – e que, inscritas no
presente, formam teias de contato com aquelas vozes marcadas na histria.
Falo de
textos que, resguardados pela impresso tipogrfica, trazem marcas acentuadas
da voz, textos hibridizados entre silncio, voz, gesto, imagem, mas percebidos
tambm como performance do corpo, onde se d a plenivalncia da voz viva, dos
fenmenos que remetem vocalizao, visualizao e gestualidade. O que se
pretendeu aqui foi priorizar a voz potica enquanto corpo e imagem. Na escuta
de uma voz, na mirada de uma imagem, o leitor/receptor reencontra uma
sensibilidade anestesiada, adormecida. O leitor/receptor, agora despertado,
passa a ser uma espcie de coautor. E o despertar, enfim, de novos olhares, bem
como o rompimento de um modelo esttico e convencional de nossas percepes,
constituem-se em pontos fulcrais de reflexo sobre o potico como um locus de resistncia e transgresso.
A poesia no foi feita para ser lida to somente em silncio. Exige ser
pronunciada, proferida em voz alta, j que a palavra original voz, som. E a
voz a semente inaugural de toda comunicao.
Apesar de escrita na maioria das verses e destinada, pois, a ser lida, a
poesia traz em sua origem, e at mesmo no corpo de sua escritura, a vibrao da
voz. O que a caracteriza, antes de tudo, seu acento oral (mais acentuado,
gritante, mais sutil), seus aspectos performticos (em maior ou menor grau), ou
at mesmo uma voz sem corpo (na ausncia do poeta ou diseur), apenas eco
ou som de um fantasma, que invade nossos ouvidos.
Essas narrativas em
versos metrificados so, sem dvida, baseadas em modelos que so recriados com
base na circulao de elementos textuais viajantes, nmades, que se combinam
aqui e ali, fazendo surgir histrias sempre prontas a se refazer na infinitude
das leituras possveis. Num complexo processo da boca ao ouvido e do ouvido boca,
ocorre o afastamento gradativo da matriz original. E a modificao da matriz
original de um texto assentado na tradio tem, a meu ver, um aspecto
transgressor, que seduz pela novidade, oriunda da imaginao, essa forma de
audcia humana, como acentuou Bachelard.
A voz do poeta popular
inquieta, se adentra em variados mundos, transmite verdades e sonhos. Essa voz
em mutao se reelabora constantemente, tecendo e retecendo os retalhos da
tradio em formas novas e fisionomias particulares.
Ambos os poetas, aqui
redesenhados, expem o real, transfiguram-no imaginariamente, com o intuito de
inscrever, no espao da pgina em branco ou no palco da oralidade, o traado
cambiante de suas mltiplas viagens pelas veredas da poesia.
Enfim,
h Antnio Aleixo e h Antnio Vieira que deixam marcas em suas obras,
cicatrizes que apontam para a complexidade de suas foras interiores,
convergentes todas para um ncleo de fogo e ar, onde crepitam as chamas da
paixo e da liberdade. Liberdade na Paixo. Paixo pela Liberdade. Paixo e
Liberdade – palavras de ordem desses dois poetas.
Referncias
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BACHELARD,
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3-4.
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Oral/Tradicional/Popular. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1992, p.
43.
MARQUES, J.
J. Dias. Os manuscritos da Poesia Lirica de Antnio Aleixo: subsdios para
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ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. Trad. Jerusa
Pires Ferreira e Amlio Pinheiro. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. In: SOLTERER, Helen. Performer Le
pass – rencontre avec Paul Zumthor, Paul. In: Paul Zumthor ou linvention permanente. Genve: Librairie Droz
S.A., 1998, p. 117-159.
ZUMTHOR, Paul. Essai
de potique mdievale. ditions du Seuil, 2000.
ZUMTHOR,
Paul. Introduo Poesia Oral. Traduo Jerusa Pires Ferreira e Maria
Lcia Pochat. Belo Horizonte/So Paulo: Editora da UFMG/Humanitas, 2010.
[Recebido:
22 set 2020]
PRINCPIOS DE UM SISTEMA
EDITORIAL
PRINCIPES
D'UN SYSTME DITORIAL
Maurlio Antonio Dias de Sousa[24]
Resumo: Este trabalho objetiva
mostrar a dinmica da publicao do folheto[25], entre os anos vinte e
setenta, tendo como objetivos: a) refletir sobre as relaes humanas de
produo que ocorriam no entorno da casa editorial entre o poeta-editor e os
demais sujeitos envolvidos nesse processo de produo, e b) observar os aspectos
referentes aos Elementos Instauradores
e Ordenao Funcional. Neste
contexto a discusso terica que apresentamos tomou por base os estudos e
pesquisas desenvolvidos por Sousa (2009, 2016) os quais nos conduziu
percepo da complexidade das relaes de produo no interior do universo da
chamada Literatura de Cordel.
Palavras-chave: Produo. Poeta. Editor.
Casa Editorial.
Rsum: Nous mettons en relief
dans ce travail la dynamique de la publication du cordel, entre les annes
Vingt et Soiaxante-dix, ayant pour objectifs: a) de reflechir sur les raports
humains que avaient lieu dans les maison dՎditions entre le pote-editeur et
dautres personnes participant dans les processus de production du cordel; et
b) dobeserver des aspects concernant les lments Instaurateurs et Ordre
Fonctionnel. Dans ce contexte, la discussion thorique prsente tait base
sur les tudes et recherches dveloppes par Sousa (2009, 2016) lesquelles nous
ont conduit comprendre la complexit des rapports de production de ce quon
apele Literatura de Cordel.
Mots-cls: Production. Pote.
diteur. Maison dՎdition.
Introduo
A dinmica do processo de produo potica,
que surgiu com os poetas-editores, difere de todos os tipos tradicionais de
enunciao da poesia popular nordestina, manifestando-se de maneira envolvente,
ampla, complexa, estruturante e sistmica, sem precedentes: neste sentido,
revolucionria. Trata-se de uma prtica editorial que, longe de ser uma mera
imitao do formato hegemnico, concretiza um modelo prprio que vai realizar a
inscrio e permanncia, no mercado de folhetos, de um modo de publicao e
circulao nunca visto antes. Para que esse sistema pudesse vir luz e se estruturar como
tal, fez-se necessria a conjugao de diversos fatores que aqui apresentamos
em dois grandes grupos: os Elementos
Instauradores e a Ordem Funcional.
Elementos Instauradores
Priorizamos
aqum o esforo em descrever o poeta na funo de editor, apresentando o seu
trabalho como desenvolvimento funcional de sua condio: proprietrio de uma
casa editorial de folhetos. bem certo que o estabelecimento da condio de
poeta-editor sempre representou um marco na carreira do poeta popular. Se
comparada com o nmero dos que no galgavam privilegiada posio, tem-se a um
caso de ascenso profissional, tanto da expresso da capacidade aquisitiva como
do potencial representativo por parte do poeta-editor no interior desse
universo cultural. Se para alguns poetas a carreira de empreendedor editorial
fora, de fato, um caminho de sucesso, essa experincia nem sempre significou
garantia de xito profissional, pois para outros que se enveredaram por esse
caminho a experincia foi de malogro. H ento um interdito no trnsito entre a
posio de poeta e a de poeta-editor e isso no sugere uma pacfica acomodao,
ao contrrio aponta para uma adequao exigente.
O
desenvolvimento das atividades editorias consagradas ao folheto caracteriza-se,
desde sua origem, pela exigncia de um capital mnimo, que normalmente advinha
da venda de folhetos nas feiras das cidades extensivas, para que o novo
empreendedor viesse adquirir o maquinrio bsico e dar incio s diversas
atividades relacionadas publicao. Alm da posse do referido capital
inicial, havia que se considerar um outro fator que compunha a gnese do
nascimento do editor: o aprendizado da tcnica tipogrfica editorial. O poeta,
ento editor, era um nefito no manuseio dos instrumentos grficos e na
aplicao da tecnologia de editorao o que exigia inicialmente um mnimo
conhecimento sobre os procedimentos de impresso. preciso que se observe as
dificuldades e os esforos iniciais do poeta-editor que, oriundo da oralidade,
com seu modo prprio de propagao[26], se punha, agora, diante
da realidade da criao potica mediada pelo suporte impresso: eis um desafio e
uma necessidade de adequao diante de uma nova ordem de expresso potica[27].
Porm esses elementos preliminares no do
conta, por si s, de explicar a posio do poeta-editor no mundo da publicao
e circulao do folheto. A
legitimidade da funo do editor caracterizava a demanda, no perodo histrico,
de sua estabilidade, para alm das publicaes. Essa demanda certamente
permitiu ao editor decidir regras, orientar o alinhamento das publicaes e quais
os recursos que melhor a elas se adaptavam. As condies culturais prprias do
tempo, a vida do campo, as feiras das cidades, as rotas da oralidade potica,
tantas narrativas que entrecruzaram poeticamente e tantos autores que se
conheceram no fundaram um modo de difuso potica apenas pela necessidade da
participao num mercado editorial, nem tampouco s pela comunicao potica do
que representaram: constituram, deveras, um conjunto prprio de aes especfico
a um determinado momento cultural e histrico no qual se desenvolveu o processo
de publicao que ganhou viabilidade mediante os Fatores Estruturais, o Regime
Estruturante e as Prticas
Constituintes.
Havia
um ordenamento nos acontecimentos e no exerccio das diversas atividades dos
poetas-editores-impressores as quais j dispunham, naquela conjuntura, de
condies histricas favorveis que, aliadas aos fatores constituintes e aos
procedimentos estruturantes, compuseram os momentos fundadores da editorao de
folheto. Tal ordenamento era desencadeado mediante formas diretas ou indiretas
que legitimaram a hierarquia dos proprietrios das casas editoriais, dando-lhes
(s vezes mais, s vezes menos) visibilidade no campo da editorao. A
possibilidade de se estabelecer como editor estava diretamente relacionada
potencialidade resultante da combinao dos fatores estruturais que interferiam
no desempenho produtivo na carreira desses poetas na nova atribuio de
editores-impressores. Os Fatores Processuais, Fatores Substantivos e Fatores
Logsticos estabeleceram uma srie de eixos de interferncias na publicao
do folheto, uma espcie de influncia cisalhante sobre a produo, semelhantes
na direo, mas distintos na intensidade; podendo eles influenciar na posio
do editor no interior desse sistema produtivo e na dinmica do mercado
editorial.
Figura 01 – Quadro dos Fatores Estruturais
Fonte:
Sousa (2016).
Alm
da compreenso da interferncia desses fatores estruturais, que serviram como
uma espcie de padres de funcionamento para o desempenho da atividade do
editor, preciso tambm que se entenda o modo como eles atuavam no lado,
digamos, interno das atividades produtivas que compunham o Regime Estruturante.
A prensa e os tipos de ferro tornaram-se, de
modo especial no incio do sculo XX, os meios imprescindveis pelos quais
poderiam ser impressas as narrativas poticas que se encontravam vivas e
dispersas no imaginrio dos poetas populares nordestinos. A certeza da fixao
dos versos em seu suporte impresso atraiu sobremaneira os poetas populares que
desejavam ver os seus poemas circulando atravs de um novo modo de expresso:
tangvel, comercializvel, impresso, circulante e manent. preciso, pois, que essa faculdade seja entendida na
perspectiva em que prticas e legitimidades conservavam uma fora estruturante.
A possibilidade do xito na carreira do editor, alm
dos fatores estruturais, estava relacionada, a um regime estruturante que nasce
no de uma veleidade, mas de uma exigncia real, do exterior, do profissional e
que se constituram em trs conjuntos: Procedimento
Produtivo, Procedimento Competentivo
e Procedimento Identificador.
Para
se obter uma melhor clareza das aes do poeta-editor, presentes no primeiro
procedimento, importante a compreenso de que o surgimento das tipografias
inegavelmente ampliou as formas de publicao, mas que, por outro lado, passou
a exigir do poeta-editor, alm da posse de recursos necessrios para a
aquisio dos recursos grficos e do domnio das prticas editoriais ao
funcionamento, a capacidade de se articular bem nesse mercado, objetivando
projetar cada vez mais o seu produto comercial, tornando-o presente em toda a
malha de distribuio do folhetos nas agncias espalhadas por todo o
norte-nordeste.
No segundo procedimento, observamos o movimento do poeta-editor no
esforo de estabelecer-se no mercado editorial, esforo que ao exigir dele
competncia tambm delineava o seu perfil, podendo atribuir-lhe uma posio de
destaque. Enquanto
as vendas dos folhetos se realizavam nos sales, nas feiras e nas diversas
agncias espalhadas pelo Brasil, havia um esforo por parte dos proprietrios
das casas editoriais no sentido de um melhor posicionamento e de uma
competncia para permanecer em destaque nesse mercado editorial. Foram tomadas
de posies que gradativamente hierarquizaram a disposio dos editores nesse
espao artstico e comercial.
importante notar que, nesse perodo em que o
sistema editorial do folheto vai se estabelecendo, o espao de possibilidades
no era amplamente aberto a uma multiplicidade participativa dos indivduos, tal
como o fora no perodo pr-editorial, em que havia possibilidades mais ou menos
iguais e em que o acesso era, de certo modo, praticamente livre, no sentido de
que, por exemplo, entre os cantadores e os poetas de bancada o ingresso e a
permanncia profissional no se caracterizava por uma demandas de competncia
estruturante to objetivas e pontuais como essas que acabaram por surgir entre
os poetas-editores.
Aps a instituio do referido sistema,
o exerccio profissional do poeta, enquanto editor, se reveste de uma
exigibilidade no cogitada no mundo da oralidade, mas que agora se impe como
decisiva entre os sujeitos dessa nova ordem produtiva, isto , passa a ocorrer
entre os poetas-editores uma busca pela redefinio dos limites de competncia
e de qualidade de produo. Competncia que se desloca da esfera
esttica-literria para a esfera das estruturas e dos procedimentos prticos
pelos quais o poeta viria a se tornar (ou no) um empreendedor capaz de atender
s demandas de um mercado editorial em ascenso. Na condio de sujeito
editorial, o poeta, conforme o prprio perfil de atuao, conquista seu lugar
na proporo da sua competncia que se manifesta no interior desse universo em
que a complexidade do dinamismo editorial vai se configurando como um sistema capaz,
produtivo e atraente.
Nesse espao, manifestam-se mais
claramente as relaes entre os editores que se hierarquizam segundo uma
distribuio gradual no ranking editorial. Trata-se de um quadro de
colocaes que no deve ser entendido como resultado de um nico coeficiente,
ao contrrio isso o efeito de um conjunto de fatores que possibilitou
visualizar a disposio relacional entre os editores. Assim eles so
representados por suas posies segundo o volume total de suas participaes
nesse mercado editorial, o que, por sua vez, decorre diretamente das foras dos
fatores estruturais e do modo como o
editor reage s demandas o que pode ser avaliado a partir da eficcia dos
procedimentos estruturantes. Embora no se trate aqui de critrios to
rigorosos, eles permitem a percepo mais pertinente para que se possa entender
o lugar ocupado por determinado editor entre os seus pares na hierarquia que os
ordena.
um mercado atravessado por tenses objetivas
que configuram as posies dos protagonistas editoriais, servindo assim como
indicador das habilidades nas relaes de influncias e de produo. Essa
configurao revela o prestgio da casa editorial que se reflete na dinmica
particular das relaes de produo e venda. Nesse territrio, define-se o
sentido das estratgias contidas no processo produtivo, ou seja, nele so dadas
as condies que tornam lgicas as aes que visam defender e melhorar a
produo do editor. Isso equivale a dizer que antes mesmo que o folheto se
torne objeto de circulao literria e/ou comercial um universo de relaes,
tenses, articulaes e tomadas de posies entre os editores caracterizam o
processo produtivo e o definem com suas marcas prprias e, justamente, em
decorrncia disso, o folheto surge como um suporte indicador da eficincia editorial.
Pelas caractersticas estruturais desse sistema, pode-se afirmar que o grau de maestria
entre os editores foi algo percebido em determinados momentos de tenso nesse espao
e que pode ser entendido como componente de sua gnese.
Esboa-se assim um novo rosto do poeta popular
que ao tornar-se editor vai lidar com a realidade da qualificao de um produto
material. Logo, est na base dessa dinmica de publicao a tenso original das
relaes de destreza pela qual o poeta-editor passa a perceber uma demanda que extrapola
a qualidade literria: a competncia produtiva. Nova realidade que nasce com o
surgimento do suporte impresso, elemento causal desse novo rosto do poeta
– o rosto do editor competente, rosto que se espelha no produto de seu
produto: o folheto. a dinmica do prprio sistema editorial – edio → impresso → distribuio → comercializao – que levou o editor a interpretar as
significaes prticas da produo como uma atividade competente que precisa
ser dotada de uma competncia para alm do aspecto esttico; conduzindo, desse
modo, o editor a captar a perspectiva de exigncia na medida em que s ele pode
capt-la; na especificidade do exerccio do seu prprio trabalho: na sua funo
de editor.
No decorrer da dcada de 1920, a editorao do folheto
comea a construir as suas bases mais consistentes. Nesse perodo, traos
internos e externos delineiam a face desse sistema. So transformaes
estruturais que dizem respeito no s ao formato editorial do folheto (fatores
internos) como ao seu modo de produo e comercializao (fatores externos).
V-se, por a, a existncia de condies materiais e culturais favorveis
impulsionadoras da carreira profissional do editor no sentido de que ela viesse
atingir gradativamente um grau de profissionalizao at ento nunca visto, uma
vez que, antes desse perodo, o prprio autor se encarregava, por exemplo, das
responsabilidades individuais de viabilizar a impresso e a venda dos seus
prprios folhetos, realidade que se modifica gradativamente com o
estabelecimento das casas editoriais e da rede de agentes distribuidores. Pode-se
afirmar, portanto, que o folheto, no final da referida dcada, j reunia as
condies estruturais e o grau suficiente de profissionalizao para dar
sustentao a um universo literrio configurado por um sistema de produo
autnomo embasado em editores, autores, ilustradores, estrutura de publicao,
rede de difuso e mercado prprios.
O terceiro procedimento
j nos permite entender a hierarquia na qual se distribui os diversos sujeitos
implicados nesse espao potico popular. Dois modos de legitimao se definiam:
o da oralidade, das funes de cantador e o do impresso, das funes do poeta
de bancada, do poeta-editor, etc. O reconhecimento do cantador, como exerccio
profissional, inicia-se na aceitao popular e legitima-se, entre seus pares
consagrados, no emparceiramento ditico em momentos de cantoria. No se trata
mais de uma simples parceria para mais um momento de apresentao, de
espetculo e de legitimao do sujeito; nele se exercita a observao
criteriosa, se analisa performances, perfis so avaliados, se faz distines,
se definem qualidades, se apontam nveis, se explicitam categorias, edifica-se
um cnon, constitui-se, assim, um procedimento
identificador. Tal procedimento uma tradio entre os cantadores e cada
um reconhece os seus processos de canonizao na arte, perante seus
companheiros e/ou mestres e tambm legitimadores. O uso que os poetas fazem dos
nomes dos mestres/autoridades que os precederam e que so consideradas por eles
elementos representativos da poesia popular um reconhecimento que tambm
busca de legitimidade e construo de prestgio.
Diferentemente do aspecto performtico do
processo de legitimao na oralidade, para o poeta de bancada, tudo se inicia a
partir da publicao do primeiro folheto, segue-se depois na avaliao mediante
a sua recepo no mercado, seguindo pelos indicadores de novas tiragens e
reedies ttulos e, por fim, na opinio dos seus pares e do pblico consumidor
que, em ltima instncia, consagra o autor e consolida as obras clssicas.
Primeiro, o poeta escreve e publica os seus folhetos. E essa nova posio se
fortalecer se vier coroada de reedies. Para o poeta de bancada, a escrita do
folheto correspondia aproximadamente ao seu rito de passagem, pela publicao
que o poeta inicia o seu processo de canonizao no universo da poesia escrita.
Evidentemente que no se pode pensar na existncia de uma classificao rgida nesse
processo se o nosso paradigma for estranho ao prprio processo, todavia se
percebe com clareza e objetividade as posies hierarquicamente ocupadas.
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Esse procedimento nos
mostra os sujeitos compondo duas esferas, de posio e de disposio, em uma
dinmica de ao e correlao contnuas e mutveis. A esfera da posio se caracteriza por ser designativa, ao nomear as
funes dos sujeitos, tais como a do cantador, do poeta de bancada, do
poeta-editor, do ilustrador, etc.; intersubjetiva, no modo das relaes por
ser entre os sujeitos da mesma esfera: Autor ↕ Editor ↕ Ilustrador; adjetival, ao delinear aspectos qualitativos,
poeta-maior, poeta-menor, editor-maior, editor-menor, etc. e, em decorrncia
disso vertical, pois estabelece uma hierarquia.
Figura 02 – Esfera da Posio
Fonte:
Arquivo pessoal (2020).
Na esfera da disposio, as relaes se caracterizam por serem
extra subjetivas entre sujeitos de esferas distintas: Autor 1 ↔ Autor 2, Editor 1 ↔ Editor 2, Ilustrador 1 ↔ Ilustrador 2; mensurativa, por levar em considerao a
quantidade das produes, a exemplo do nmero de tiragens, as reedies, as
aquisies de ttulos, etc.; horizontal, pois o aspecto produtivo no se
vincula necessariamente ao aspecto adjetival.
Figura 03 – Esfera da Disposio
Fonte:
Arquivo pessoal (2020).
A esfera da posio possibilita a clareza da diferenciao das
funes que se tornam afetadas no pela simples distino de si mesmas, mas em
decorrncia do atributo adjetival que posiciona o sujeito no interior da sua
esfera o que vai influenciar nas relaes, posto que quanto mais favorvel for
a sua posio melhor ser a relao de competncia diante dos seus pares. O
destaque do sujeito no interior da esfera de posio, isto , o reconhecimento
de uma condio qualitativamente mais positiva no s define o seu destaque
entre os pares como lhe favorece profissionalmente, possibilitando-lhe mais
visibilidade. Em consequncia disso, ocorrem, nessa esfera, embates entre os
pares que esto ligados a diversos conflitos, tais como, conflitos de
competncia, conflitos de legitimidade do exerccio da funo, etc., o que
prprio das relaes de ajuste de posio nessa esfera. As posies geram os
seus prprios pretextos que legitimam os conflitos de competncia na dinmica
das posies.
Por outro lado, a esfera da disposio porta tenses em
estado de exigncias objetivas, de conflitos de competncia decorrentes da
condio do sujeito na esfera da posio.
Tendo a competncia como fim ltimo a distino. Entre os editores, por
exemplo, sinal de distino, entre outros fatores, a aquisio de novas
mquinas de impresso, o aumento das tiragens, o aperfeioamento da qualidade
editorial das publicaes, ou ainda, o aumento do nmero de funcionrios. Esses
ganhos representam para o editor, alm da prosperidade material, destaque e
legitimidade entre seus pares.
Nesse
sentido, as tiragens, o potencial grfico, o nmero de bons ttulos e o fluxo
de autores em evidncia, circulando na casa editorial, expressam o potencial
econmico, o raio de ao e de interferncia do
editor entre os demais sujeitos vinculados ao mecanismo de publicao e
circulao do folheto. Portanto se estabelece a uma postura fundamental de
mercado que a de influncia e, consequentemente, de produtividade que se
expressa no prestgio da casa editorial e que se reflete numa postura orientada
a dinamizar o seu locus produtivo, o
que remete necessidade de requisitos que propiciem ao editor melhores
condies de competncia no mercado.
,
portanto, na esfera da disposio que
se engendram tenses de ordem quantitativa, voltados produo, a exemplo de
conflitos de legalidade de autoria, conflitos de direito de publicao,
formatos editoriais, formalidades e legalidades contratuais, etc., conforme
atestam os tipos de Declarao, a exemplo da Declarao Imediata, Declarao
Mediata-Representada, Declarao
Mediata-Intermediada e Declarao
Mediata-Adquirida.[28] Nessa esfera se
estabelece uma dinmica de relaes na qual o poeta-editor desempenha um papel
decisivo.
Figura
04 – Grfico da funo poeta-editor
Fonte: Sousa (2009).
Trata-se
aqui, portanto, de uma circunstncia de definio nesse espao cultural, um
momento em que se busca a categorizao do modo como o sujeito participa, entre
seus pares, de um processo de identificao. um procedimento categorial como
forma de classificao e representao do sujeito que passa a exercer uma
liderana legitimada.
Todavia
no se pode perder de vista que a classe dos poetas-editores de folhetos se
constituiu numa categoria social e culturalmente distinta dos demais
empreendedores do ramo grfico, antes de tudo por ser essencialmente formada
por produtores culturais, isto , por produzirem cultura literria. O
poeta-editor produz a cultura na medida em que torna publica uma esttica
literria e, ao mesmo tempo, edifica a legitimidade de sua funo que no se reduz ao trabalho de publicao,
mas que tambm no pode ser compreendida sem ele. A atividade do poeta-editor
uma fundamentalmente uma dinmica relacional entre ele e o autor, seguida de um
complexo de relaes tambm com os demais sujeitos partcipes do processo
produtivo no qual o poeta-editor intermedia, orienta, regula, comunica, enfim,
gesta a relao de produo do folheto que se engendra nas relaes humanas de
produo entre os diversos sujeitos envolvidos nesse processo. Esse mecanismo
de produo e circulao o que compe a fora do Regime Estruturante.
Nas Prticas
Constituintes, deparamo-nos com aes do poeta-editor que contriburam para
reforar a sua prpria funo. A legitimidade da funo do editor caracterizava
a demanda, no perodo histrico de sua estabilidade, para alm das publicaes
dos folhetos. Essa demanda certamente permitiu ao editor decidir regras, o
alinhamento das suas publicaes e os recursos que melhor a elas se adaptariam.
As condies culturais prprias do tempo, a vida do campo, as feiras das
cidades, as rotas da oralidade potica, tantas narrativas que entrecruzaram
poeticamente e tantos autores que se conheceram e se ignoraram em uma dinmica
global que no dominavam – cujo todo no perceberam e cuja amplitude lhes
escapava; todos esses sujeitos e articulaes no fundaram apenas um modo de
difuso potica, produziram, sim, uma ruptura no exerccio tradicional,
estabelecendo um marco entre o tradicional e o novo no universo da produo
potica popular, compondo, desse modo, o conjunto das intermediaes do
poeta-editor, isto , as Prticas Constituintes.
A
Ordenao Funcional
preciso ento que se
entenda agora que o Sistema de Publicao
do Folheto apresenta uma dupla-face. Numa delas esto os Elementos Instauradores que so os Fatores Estruturais, o Regime Estruturante e as Prticas Constituintes, acima
apresentados, e, na outra face a Ordenao
Funcional composta da Comunicao
Aplicada, da Mediao Produtiva e
da Solidariedade Vinculante.
A
casa editorial especializada na publicao e/ou comercializao do folheto,
deve ser, antes de tudo, concebida como uma ambitude da circulao do potico,
do cultural e do trabalho de publicao que articulava no seu interior os
mecanismos de reproduo material e simblica do folheto; envolvendo, assim,
aspectos editoriais, comerciais, literrios, culturais. Nesse sentido, era uma
realidade caracterizada por uma realidade complementar portadora de
expectativas apoiadas em duas esferas que se complementam: a) o lugar da produo
e b) lugar da cultura popular. O primeiro o lugar das propriedades que
constituem o cenrio das relaes de produo e o segundo, o lugar da cultura
popular, o lugar do pblico consumidor do folheto, bojo inspiracional donde as
tradies culturais entrelaadas de vozes e de textos emanam para o lugar do
poeta e dele para o lugar da produo; integraes horizontais entre o lugar da
produo e o lugar da cultura; abrindo-se, desse modo, dutos culturalmente
comunicantes entre o interior da casa editorial e esse mundo do povo; linhas de
circulao entre o mundo da casa e o mundo l fora; conjugaes entre a
tipografia que imprime versos, dando conta de estetizar o mundo do homem, e o
mundo do povo das feiras, dos mercados populares e das praas, exatamente o
lugar onde o literrio popular tem, ao mesmo tempo, seu ponto de partida e de
chegada de modo mais efervescente, real e humano.
Figura 05 – L.P: Lugar de Produo
C.A:
Comunicao Aplicada
L.C: Lugar da Cultura Popular
Fonte: Arquivo pessoal (2020).
O espao
editorial deve ser entendido como um componente indispensvel dinmica
produtiva do folheto; uma esfera de dilogos, acordos e interaes; um solo
situado segundo uma topografia mvel entre a casa editorial e o mundo da
cultura popular, real, vivido l fora; um tecido onde se encontram dois caminhos
complementares e voltados a um mesmo fim que diz respeito ao interesse comum
das partes envolvidas; um territrio de publicao onde se oportuniza de uma
maneira ou outra, a chance de se projetar autores e obras populares; o lugar da
possibilidade de produo comercial que no se permite ocupar inteiramente por
uma mentalidade mercantilista; um campo onde se partilha um sentimento de
pertencimento comum; a condio essencial de consenso que facultar a
experincia de um tipo particular de relao humana num contexto de produo: a
Interao Consensual.
a Interao Consensual uma capacidade
prtica que os sujeitos poticos e/ou produtivos tm de se relacionarem inter e
entre grupos, visando racionalmente objetivos que podem ser interpretados a
partir dos procedimentos por eles mesmos adotados. Entendendo-se que o papel
exercido por essa racionalidade se torna eficaz na medida em que no se
identifica com uma unilateralidade produtiva, voltada apenas aos meios de
obteno de fins imediatos, mas, ao contrrio, tambm tem como finalidade
integrar os sujeitos produtivos entre si e com o prprio trabalho o que
significa tambm um maior dispndio de esforos no sentido de uma busca
cooperativa de consensos. Ento as relaes de interao atuam como um
princpio ativo, condutor e renovador do mecanismo de participao e
comunicao, uma vez que a dinmica das demandas produtivas sempre revela o
carter provisrio dos referidos mecanismos. nessa dinmica que se d o
processo circular entre o lugar da cultura popular e o lugar da produo como
evento de reproduo simblica perpassada pela Comunicao Aplicada.
As
relaes de interao se apoiam na poderosa mediao da Comunicao Aplicada que se inscreve de maneira sutil em todas as
prticas e processos da produo, tornando-se assim responsvel pela construo
de decises segundo as demandas circunstanciais; pelo dilogo capaz de
coordenar entendimentos racionais e produtivos entre as partes envolvidas nesse
processo. Torna-se, ento, a Comunicao
Aplicada um veculo para a partilha dos conhecimentos estticos e
editoriais e para a troca de argumentos que, livre das amarras e dos
constrangimentos de uma relao humana de produo demasiada vertical, permite
um enriquecimento de pontos de vista e um alargamento de perspectivas que
delineia o espao da publicao como um campo de possibilidades dialgicas
produtivas, posto que se torna um espao frtil para a construo da opinio e
da vontade dos sujeitos envolvidos no processo produtivo, onde eles sejam
capazes de assumir suas posies diante do que considera razovel inserido na
realidade de um contexto de discusso dialgica e de produo de sentido de
modo partilhado.
Desempenhando, assim, a Comunicao Aplicada um papel importante na busca de entendimento
nas relaes intersubjetivas ao conquistar, por entre a multiplicidade e por
entre determinadas imprecises da linguagem cotidiana, o consenso prtico
necessrio, e isto sem deixar de lidar com a realidade do dissenso, comum
natureza das relaes de interao num contexto de produo onde os envolvidos
so sujeitos participantes e livres, o que no elide a obteno de consensos,
ao contrrio, os que agem comunicativamente nesse espao o fazem com esse fim.
O mundo das
relaes humanas de produo do folheto no se alimentava apenas das relaes
de Interao Consensual, decorrentes
dos consensos alcanados sob os pressupostos da Comunicao Aplicada, mas tambm da conciliao entre as demandas
internas da casa editorial e as do mercado consumidor, as quais influenciavam
decisivamente no modo como o poeta-editor iria atuar. E, uma vez que essas
demandas exigiam um ajuste para um melhor funcionamento interno da casa, a
funo de mediao surgia, ento, como ponto de equilbrio entre essas
variveis. No caracterizava a mediao na interao a rigidez e as formas
premeditadas, ao contrrio disso, operava na flexibilizao e na real
possibilidade de mudana no exerccio da mediao, sem diminuir-lhe a eficcia;
modificando-se no s no plano da ao entre o poeta-editor e cada autor em
particular, como tambm entre ele e os demais sujeitos partcipes, da resulta
a Mediao Produtiva.
O sujeito condutor das relaes de mediao, no
caso o poeta-editor, denominado mediador, posto que ele o protagonista do
dilogo entre as partes – editor ↔ autor / editor ↔
ilustrador / editor ↔ distribuidor – mediante a resoluo de
demandas voltadas ordem da publicao, isto , direitos de publicao e
regras do mercado, buscando encontrar uma soluo para as questes de modo que
satisfaa os interesses de ambas as partes. Sua influncia resulta de sua
autoridade que garantida pelos prprios envolvidos, e da confiana que lhe
atribuda e da habilidade que ele tem para intervir nesse tipo especfico de
negociao.
Esse tipo de
mediao se inscreve na histria da editorao do folheto cordel, a partir das
primeiras geraes de poetas-editores[29], contribuindo para que esse sistema de publicao se tornasse cada vez
mais criativo e autnomo[30]. E surge como resultado do trabalho constante de negociao entre os
sujeitos diretamente envolvidos no processo de publicao, embasado na
autonomia dos participantes, visando, sobretudo atender s necessidades produtivas que
exigem sempre serem repensadas em suas possveis solues o que per se
supe um pensar na ao de mediao cujos ingredientes se estende a todo o
desenrolar progressivo do agir mediador.
Opera, assim, numa
dinmica do pensar e do agir mediativo que quer ser um elo entre os aspectos
literrios, editoriais e de mercado os quais podem variar no seu grau de
viabilidade, mas que precisam ser conciliados tendo em vista o seu fim ltimo.
a Mediao Produtiva um meio de
construo de possveis solues, um instrumento privilegiado para a cocriao
de significados, entre interlocutores, viabilizada concretamente pela Comunicao Aplicada, visando atingir
solues produtivas no sistema de publicao e, justamente por isso, deve ser
sempre um meio de resoluo de conflitos e demandas no qual o mediador
necessariamente deve ser um sujeito que desfrute de uma certa ascendncia sobre
os demais, sendo isso substancialmente decorrente da posio que ocupa diante
das partes.
pela mediao que deve
passar a eficincia comunicativa capaz de reunir satisfatoriamente pouco a
pouco as aspiraes das partes envolvidas; passagem que, observando atentamente
as multiplicidades de demandas, precisa criar condies capazes de conjugar
elementos oriundos de uma ordem interior de produo s necessidades reais de
um mercado; articulao que, ao mesmo tempo, precisa corresponder a uma ordem
exterior que se impe e a uma ordem interior que deve gerar meios para uma
participao interativa.
No
desempenho da Mediao Produtiva, a Interao Consensual um princpio condutor porque espcie de energia
para o processo e, assim sendo, o em dois sentidos: confluncia
e irradiao.
Figura 06 – Grfico da Interao na Mediao
Fonte:
Arquivo pessoal (2020).
No primeiro sentido, a Interao
Consensual confluncia na Mediao
Produtiva por ser sinal de unidade para as partes envolvidas, uma vez que, por
ela so perpassadas, no segundo sentido ela irradiao para as mesmas partes
dos diversos campos produtivos em decorrncia da sua perspectiva aplicvel que
age como concretizao e aperfeioamento das demandas portadas por ambas as partes
em questo. A Interao Consensual converge para o interior da Mediao Produtiva o acordo e impulsiona
para fora a deciso tomada em forma de produo e expanso consensual e
pragmtica.
O trabalho do mediador
no se reduz resoluo de conflitos, frequentemente ele age, pautado em sua
experincia, de forma preventiva sugerindo procedimentos que evitem ocasion-los,
sendo assim, para determinadas circunstncias, ele se empenha mais na regulao
de relaes que na soluo de conflitos. E por ser um processo aberto se nutre
constantemente do aperfeioamento apoiado na tica da Comunicao Aplicada, na autonomia e na responsabilidade dos
participantes, bem como na autoridade do poeta-editor a qual foi reconhecida
pelos mediados num contexto de relaes de Interao
Consensual cuja legitimidade foi constituda em situaes inerente ao espao
de produo.
Nesse espao, os indivduos tm seu cotidiano
imerso numa realidade de relaes humanas de produo, as quais se desenvolvem por
meio do dilogo direto e presencial e, justamente, por isso a casa editorial se
torna um ambiente apto para o desenvolvimento de uma forma de comunicao que
busca o entendimento voltado a um objetivo pragmtico. Isso contribui para que
as relaes humanas sejam marcadas pelo espontanesmo e favorea a presena de
uma solidariedade vinculada, vivenciada nesses espao pelos vrios
profissionais e artistas que, segundo as suas prprias funes, estabeleciam
uma determinada natureza de contato com o poeta-editor[31] e que s pode ser
entendida a partir de uma intersubjetividade, na qual os sujeitos mediados pela
Comunicao Aplicada se entendem
sobre os procedimentos produtivos que compe esse universo de publicao.
Consideraes finais
O sistema de publicao do folheto se erigiu
como uma fora de resistncia, diante do sistema literrio hegemnico que se autonomeou
de culto e fez-se distinto do popular. Assim sendo, o primeiro estabeleceu-se
como um territrio de afirmao, de participao de direitos e de expanso de
uma esttica literria. E isto s foi possvel por ter viabilizado, em seu
interior, relaes que vincularam reais movimentos de autossustentao,[32] ao ter constitudo seu
prprio pblico consumidor, suas linhas e formatos editoriais, sua forma de
comercializao do folheto, bem como a malha de representantes comerciais.
Enfim, gerou um ordenamento especfico de funcionamento que, alm de demarcar a
sua autonomia, propiciou o nascimento do editor popular e legitimou a
influncia do poeta-editor no processo de publicao.
A causa
dessa legitimidade se entende a partir do esforo por se penetrar nesse espao
de sentido relacional que antes de convergncia que de produo. Tentamos
aqui descobrir ou desvelar a dinmica dessa razo convergente que no se deixa
definir, captar, apreender, seno nas relaes recprocas entre os sujeitos
produtivos, o que s se torna possvel ao percebermos que o modo de relaes de
interao e os caminhos da mediao esto ligadas pelo contexto produtivo, pela
referncia a um mesmo mbito de sentido condensado em bem-sucedida experincia
comunicativa e que a contnua relao entre esses aspectos engendram um sujeito
de ao autorizada que pressupe um espao e tempo necessrios sua formao. Portanto,
todo o conjunto de aes e intermediaes do poeta-editor devem ser entendidas
como uma postura de resistncia que explica a autonomia do sistema editorial,
posto que inaugura uma nova ordem de produo, capaz de gerar, desenvolver e
arquivar seus saberes tcnicos no transcurso da sua prpria histria.
Referncias
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prelo: trajetrias e impresses. In: MENDES, Simone; (Org.). Cordel
nas Gerais: oralidade, mdia e produo de sentido. Fortaleza: Grfica
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SOUSA,
Maurlio Antonio Dias de. A emergncia
de um sistema dualista: trnsitos e autonomias. Estudos de Literatura
Brasileira Contempornea. Braslia, n. 35, jan./jun. p. 31-39. 2010b.
SOUSA,
Maurlio Antonio Dias de. Fundaes e
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2012.
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Maurlio Antonio Dias de. Tipografias de
Cordel: o nascimento do editor. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2016.
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Maurlio Antonio Dias de. A histria de
uma Estrella: a estrela do cordel em Campina Grande. 2 ed. Salvador:
Fastdesign, 2018.
[Recebido: 7
ago 2020]
VOZES DE MULHERES NO
TERRITRIO DO CORDEL E DA CANTORIA
WOMENS VOICES IN THE
TERRITORY OF CORDEL AND CANTORIA
Ria Lemaire[33]
Resumo: Os
debates ps-moderno e decolonial sobre as relaes entre as civilizaes da
oralidade e o mundo da escrita esto trazendo, embora tardiamente, uma
epistemologia radicalmente crtica para o campo dos estudos da tradio
nordestina da cantoria e do cordel. O novo paradigma — tanto histrico
quanto contemporneo — permite colocar a questo do papel e lugar das
mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos. Ao focar um subgnero
dessa poesia originalmente improvisada, o repente misto, em que uma cantadora
desafia um cantador, e, nesse subgnero, a presena e funo da violncia
masculina e feminina, esse artigo prope uma reflexo crtica sobre temas
centrais dos debates atuais sobre cordel, gnero, mulher e violncia.
Palavras-chave: Cordel. Cantoria. Gnero. Territrio.
Violncia masculina. Violncia feminina.
Abstract: Post-modern
critics of scriptocentrism and nowadays decolonial criticism are bringing
– slowly and progressively -
the new paradigm of the orality-literacy-debate to the field of repente, the Northeastern tradition of improvised
poetry, in its oral (cantoria) as well as in its impressed (cordel) form. The new paradigma –
historical as well as contemporary –
enables us to discuss the question of womens role and place in these
traditionally masculine territories,
featuring a sub-genre of
this poetry, - repente misto – in which a female singer challenges
a male singer. By focalizing the presence and function of male and female
violence in this sub-genre, this article proposes a critical reflexion on
central themes in actual debates on gender, women and violence.
Keywords: cordel. Cantoria. Gender.
Territory. Gender-based violence.
Dois ramos de uma rvore s
A publicao de O Livro Delas: catlogo de mulheres autoras no cordel e na cantoria
nordestina (SANTOS, 2021) constitui no s um marco milirio nos estudos de
cordel, mas tambm a abertura, dentro da rea, de uma nova linha de pesquisa
inovadora, fundamentada na desconstruo dos pressupostos vigentes do discurso
acadmico dominante sobre o cordel e da sua historiografia nacional. Alm
disso, ela permitir a integrao, no campo dos estudos de gnero e literatura,
de uma rea at agora negligenciada: a de gnero e estudos orais.
Comecemos por uma constatao: cantoria e
cordel so considerados pela maioria dos estudiosos dois campos distintos no
mundo sociocultural nordestino. A separao terica dos dois campos – o
da cantoria como produto de uma oralidade ancestral e o do cordel como
originrio do mundo da escrita – correspondia aos interesses polticos da
cultura dominante daquela elite branca e de origem portuguesa que, nos anos
sessenta e setenta do sculo passado, na poca da Ditadura Militar,
reabilitou o cordel – to desprezado e marginalizado at l! –
como expresso literria da alma nacional brasileira.
A reabilitao poltico-literria, elaborada e
propagada, sob a gide do Conselho Federal da Cultura, por intelectuais e
acadmicos organizados em torno da Casa de Rui Barbosa, ia servir como suporte
ideolgico da poltica cultural nacionalista da Ditadura. O que o poeta
Rouxinol do Rinar chamou um dia de dois ramos da mesma rvore entrou no
processo politico-literrio da nacionalizao do cordel sob a forma de duas
rvores plantadas em territrios culturais diferentes. Consagrou-se o nome
ibrico de cordel para o fenmeno
editorial nordestino que os prprios poetas chamavam de folheto/jornal do povo e esse folheto ia ser,
da em diante, estudado e divulgado como literatura
popular brasileira.
O mito das origens brancas e
portuguesas
Ao se separar cantoria e cordel, tornou-se
possvel historiografar o folheto
como descendente do cordel
escrito/impresso de origem portuguesa. Integrado nessa genealogia alheia de
textos escritos/impressos ibricos, o folheto tornou-se nacional e expresso
da alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira. Tornou-se Literatura, quer dizer: fico e esttica,
podendo a partir da ser estudado com os pressupostos, mtodos, critrios e
juzes de valor convencionais dos estudos de Letras (Autor e Obra, cnone,
antologia etc.). E tornou-se popular no
sentido humanista, erudito do termo, dentro da dicotomia elite culta versus povo
inculto. Essa dicotomia instalou-se no discurso erudito do mundo ocidental
nos comeos dos tempos modernos, como expresso e legitimao ideolgica da
crescente desigualdade econmica, social e poltica, sobrepondo-se ao sentido
original – geo-socio-cultural – do conceito de povo.
Porm, o sentido original sobreviveu at hoje.
Patativa do Assar, por exemplo, o definia como: a nossa terra, a nossa vida,
a nossa gente, quer dizer: um territrio,
no sentido original do termo, caraterizado pela presena de uma terra (no
sentido portugus de Portugal do termo), quer dizer: uma regio
geograficamente delimitada, uma vida, cultura e memria/tradio comuns a todos
os indivduos que j nela nasceram no passado, nela vivem no presente e vo
nascer no futuro. Uma nao no
sentido original do termo (terra onde nasce), cujo passado continua
vivo/vivido no presente e que lhes d, a esses povos, a conscincia
inextirpvel de pertena, empatia e coeso social.
O conceito de alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira, por sua vez,
forneceu a base para a reinveno do mito da morte iminente do folheto, mito
importado e imitado do Romantismo alemo (Naturpoesie
versus Kulturpoesie) do sculo
XIX. Chegou juntamente com o conceito de tradio, ao qual esses eruditos alemes do
sculo XIX tinham dado uma nova significao, a saber: tradio morta, arcaica,
obsoleta e parada no passado; o contrrio do seu sentido original e do seu
funcionamento real na comunidade nordestina.
Ao mesmo tempo, o pressuposto
da origem escrita portuguesa do folheto permitiu que a cantoria, a saber, a
comunicao direta, oral, com o auditrio nas cantorias, feiras e festas
populares no seio da prpria comunidade, fosse considerada (teoricamente!)
local, regional, quer dizer: inferior e relegada ao sempre desprezado campo dos
estudos de folclore. O impacto desse discurso, que alia eurocentrismo e
scriptocentrismo a nacionalismo, tem sido avassalador; ele contamina, at hoje,
como uma trama inconsciente, tanto a terminologia, os pressupostos e os
posicionamentos tericos dos estudos de cordel — dos convencionais at os
mais crticos —, quanto a viso que os prprios poetas cantadores e
cordelistas tm da sua arte, profisso e misso.
Divide
et impera
A estratgia discursiva da inverso e distoro
em que se baseia o discurso erudito sobre o cordel tem-se averiguado como
perversa e eficaz. Ela aplicada desde sempre pelo patriarcado – na sua
verso ocidental – no decorrer da sua luta milenar pela imposio do seu
poder, da sua viso do mundo como superior e da sua Histria como nica e
verdadeira. Consiste em dividir o grupo scio-profissional dos poetas, cuja
unidade j era sempre vulnervel por causa da rivalidade masculina. Essa
rivalidade foi, originalmente, a fonte de inspirao principal do repente
masculino, com os seus vencidos e o vencedor, reconhecido e aplaudido pelo
pblico no momento da performance. Essa diviso dicotmica, guerreira
no sentido original, ldico-srio (HUIZINGA, 2007) da palavra, vai ser
ressignificada tambm pelos eruditos para constituir a base de duas categorias
literrias, desiguais e hierarquizadas, – os bons poetas e os menos
bons –, com o objetivo de destacar mais e enaltecer o grupo superior,
tendo em vista o futuro cnone do cordel.
Dessa maneira, a rivalidade masculina
continuamente atiada ia dessolidarizar, uns dos outros, os membros do mesmo
grupo profissional, abrindo-se uma brecha para impor – de fora, de longe
e de cima – uma autoridade de avaliao superior e capaz de sobrepor,
avaliao interna pela prpria comunidade, o seu juzo de valor erudito e
superior. A curto termo, isso permitiu aos detentores da nova teoria controlar
o campo do cordel, ao privilegiar certos gneros (mais literrios) em detrimento
de outros gneros (folheto de atualidade, folheto poltico, folheto de
cincia...) e marginalizar ou excluir aqueles dissidentes, que no
correspondiam ao modelo, alheio, literrio e erudito, imposto de fora. A longo
termo, essa estratgia causou a distoro parcial do conhecimento e da viso
que tinham os prprios poetas sobre sua arte, misso, identidade e histria.
Um exemplo bem revelador dessa estratgia so
as cartas encontradas no Acervo Raymond Cantel da Universidade de Poitiers que
revelam o surgimento, nos anos setenta do sculo passado, entre os eruditos da
Casa, do questionamento da autenticidade daqueles poetas de cordel que no
eram analfabetos. Os debatedores perguntam-se e perguntam ao ilustre professor
francs, com muita seriedade, se um no-analfabeto pode ser considerado poeta
de cordel e ser includo, por exemplo, nas antologias de cordel, bases do
futuro cnone. Segundo a doutrina oficial por eles elaborada, alfabetizado no
podia, uma vez que os poetas de cordel eram incultos e analfabetos![34]
No difcil imaginar-se o que ia acontecer
quando os pressupostos/preconceitos misginos e androcntricos da alta
burguesia da poca da Ditadura Militar se associaram ao seu eurocentrismo, scriptocentrismo e nacionalismo j
comentados. No se encontra nos catlogos, antologias e cnone da Casa Rui Barbosa – dos mais velhos at aos mais
recentes – nenhuma mulher poeta. Dentro do conjunto coeso de pressupostos
falsos do seu mito das origens foi necessrio e inevitvel no s anunciar a morte
iminente do folheto, para poder silenciar a voz viva e dinmica do povo
nordestino, como tambm ignorar, e de antemo, a voz das suas mulheres.
Teorizada, na tradio alheia de Homo
sapiens humanista, a cultura do folheto s podia ser exclusivamente masculina.
Vozes rebeldes: agora so outros 500 anos!
a partir do ano 2000 que comeam a surgir
vozes rebeldes, tais como as da Sociedade dos Poetas Mauditos no Cariri
cearense (GRANGEIRO, 2020). Mauditos no sentido irnico do termo: eles
fazem propositadamente versos mal ditos, segundo os critrios convencionais,
e seus integrantes no so analfabetos nem semi-analfabetos.
A provocao dos jovens poetas, homens e
mulheres, fundamenta-se na conscincia de que os prprios conceitos de Literatura, de alma pura e tradio morta servem
para negar toda e qualquer capacidade de evoluo e inovao do cordel. Essa
negao, por sua vez, servia para desvalorizar e obliterar o papel e misso
cultural e histrica do folheto como expresso da atualidade, realidade e
verdade da vida nordestina. Ela servia para silenciar, de antemo, as eventuais
vozes crticas da contemporaneidade. Essas vozes vieram denunciar a mentira, a
m-f e a euforia das elites nacionais que, naquele momento, comemoravam os 500
anos da Descoberta do Brasil, apresentada como primeiro captulo da Histria
nacional. Esse mito das origens da
elite branca do pas – o da chegada, em terras de ningum, da
civilizao crist, trazida e oferecida pelos portugueses com muitos
sacrifcios e herosmo aos povos indgenas originrios –, foi
desmascarado pelos poetas mauditos. Foi, na verdade, uma invaso ilegtima por
uma casta branca de conquistadores-predadores, com padres-pregadores aliados;
foi o comeo da era colonial e a implantao do regime usurpador do
colonialismo no Brasil.
Essa nova conscincia impe, como os poetas
Mauditos iam mostrar em 2000 com a publicao inicial de 12 folhetos em torno
do tema Agora so outros 500 anos, uma ruptura radical com a Histria
oficial, ensinada e imposta por meio do ensino formal nacional como nica e
verdadeira. Estamos no limiar do pensamento decolonial que hoje em dia, vinte
anos mais tarde, comea a se generalizar no mundo latino-americano. Os
mauditos questionam e desconstroem a legitimao tradicional que justificava
a colonizao como uma misso civilizatria, crist e sagrada; ideologia que
legitimou durante 500 anos os piores crimes e que as elites do pas continuam
repetindo, re-divulgando e propagando no limiar do sculo XXI.
Trs poetisas cofundadoras da Sociedade dos
Poetas Mauditos conscientizaram-se, ao mesmo tempo, como feministas, detentoras
de uma viso do mundo diferente da dos homens. Hoje, elas so professoras
universitrias que tm uma reputao nacional e internacional no campo dos
estudos de mulher e de gnero, duas delas tambm no campo do cordel. So elas a
poetisa e historiadora Ediane Nobre (na Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE), que defendeu, em 2014, uma tese de doutoramento sobre a beata Maria de
Arajo; a poetisa Salete Maria da Silva (professora da Universidade Federal da
Bahia – UFBA), que atualmente considerada uma das grandes vozes
poticas do cordel da sua gerao; e a poetisa Fanka Santos – de batismo
Francisca Pereira dos Santos –, que como professora da Universidade
Federal do Cariri (UFCA) dedica parte dos seus estudos acadmicos ao resgate
das vozes de mulheres-poetas cantadoras e cordelistas deliberadamente
silenciadas nos estudos acadmicos e na historiografia do folheto de cordel.
Ao aplicar o mtodo e a prtica de pesquisa que
foram a estratgia principal dos eruditos acadmicos dos anos de sessenta para
a imposio da sua viso do cordel – os catlogos e as antologias
–, Fanka Santos defendeu, em 2009, uma tese de doutoramento que estabeleceu
as bases epistemolgicas e tericas de um futuro catlogo das mulheres de
cordel. Uma bolsa de ps-doutorado lhe permitiu, em seguida, compor o catlogo O
Livro Delas, que rene os folhetos de 264 mulheres cordelistas juntamente
com os materiais que ela conseguiu reunir sobre 62 cantadoras, todas publicadas
em um s catlogo. Dois ramos de uma rvore s! Duas outras teses de
doutoramento, defendidas pelas organizadoras deste nmero de Boitat, vieram
reforar as bases tericas do catlogo. Bruna Paiva de Lucena trouxe a
maudita poetisa Salete Maria da Silva ao palco acadmico com uma tese de
doutoramento, defendida na Universidade de Braslia (LUCENA, 2018). Andra
Betnia da Silva, por sua vez, defendeu em 2014, na Universidade Federal da
Bahia, uma tese sobre a transio e evoluo da cantoria de p-de-parede
tradicional para os festivais modernos; a tese inclui como protagonistas
mulheres-cantadoras-repentistas.
Figura 1 – Xilogravura de Marcelo Soares
Fonte: Acervo da autora.
Essas e outras pesquisas confirmam o fato de
que, como nas desgarradas e no fado de Portugal e da Galiza, a cantoria tem
trs variantes, a saber: repente de dois homens, repente de homem com mulher e
repente de duas mulheres, cada subgnero com a mesma forma e linguagem potica,
mas com temticas diferentes.
No mesmo perodo (2000-2020), observa-se no
campo do folheto e da cantoria uma verdadeira exploso de novas vozes de
mulheres poetisas e uma visibilidade cada vez maior da sua atuao como agentes
culturais autoconscientes e fortes[35].
Assim, fortalecem-se a conscincia e a convico que O Livro Delas – como catlogo das mulheres cordelistas e
cantadoras atuantes maioritariamente ainda no sculo XX –, j trazia e
que as poetisas mauditas ilustraram: a de que as mulheres no s se destacam
por sua presena cada vez mais numerosa e autoconsciente, como tambm por
trazerem vozes diferentes que cantam outra abordagem e viso das coisas do
mundo.
Dessa forma, urgente repensar o cordel e a
cantoria para alm do discurso oficial nacionalista, euro, scripto e
androcntrico brasileiro e propor novas epistemes
para sua releitura crtica, considerando-se os seguintes aspectos:
- No se
trata de uma tradio quase morta,
obsoleta e parada, mas sim de uma tradio viva, dinmica, no sentido
original do termo tradio, derivado do latim tranditionem, quer
dizer: ato de transmitir. Na oralidade, esse ato implica um processo complexo,
no s de uma simples transmisso/entrega, como tambm de repetio, reinveno
e ressignificao na continuidade do tempo histrico e de geraes de poetas e
poetisas transmissoras.
- No se
trata de cordel escrito versus
cantoria oral, mas de uma fase da histria mundial das tecnologias da
informao e da comunicao, a saber: o captulo que conta a verso nordestina
da transio para a escrita/impressa de uma tradio potica oral
pr-existente.
- No se
trata de um cordel de origem
simplesmente portuguesa; o cordel nordestino – e antes de mais nada –
um produto complexo, regional da transio e evoluo (quase) universal da
oralidade para a escrita e a imprensa (ABREU, 1999).
- No
existe uma Histria nica e s de homens; houve sempre duas histrias numa
dualidade complementar e plural (variando de uma regio para a outra) de duas
linhagens culturais diferentes. Existiu, desde sempre, um patrimnio (conjunto de
bens legado por um pai em linha patrilinear aos filhos) ao lado de um matrimnio matrilinear que se
inter-relacionam e interagem. Aquele hegemnico e imponente e que fala muito
alto, este marginalizado e silenciado, mas nem por isso menos presente no
corao da comunidade tradicional. A redescoberta do matrimnio das mulheres no campo da cantoria-cordel, considerado
exclusivamente masculino, exige uma abordagem nova, intercultural e
interdisciplinar que permitir dar o salto epistemolgico e terico
indispensvel para podermos historiografar a presena e a atuao da voz das
mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos[36].
- Esse cordel no o produto mtico de um
Estado-Nao, mas expresso originalmente local e regional da realidade e
verdade da vida nordestina; ele no para-literatura
ficcional, mas cultura/arte,
expresso potica e testemunho da vida dessa terra, gente e cultura
especficas. Ele , para resumir, literatura
no sentido original do termo (em latim, littera
= letra escrita), que registra no s obras ficcionais, como tambm –
e sobretudo – toda a riqueza da experincia e conhecimento da vida vivida
pelas diversas comunidades nordestinas com a suas culturas locais e
sub-regionais. A da cultura do Cariri, por exemplo, que no a do Piau, nem a
da Paraba, nem a da Serra do Teixeira (terra de tantas geraes de grandes
poetas)... (RAMALHO; LEMAIRE, 2011).
De
dualidade a dualismo
Dualidade plural
Globalmente – no digo universal nem
exclusivamente! –, tanto os antroplogos quanto os especialistas –
linguistas, etnlogos e folcloristas – das culturas indo-europeias
distinguem nas comunidades humanas uma diviso dual bsica, a saber, um mundo
dos homens e um mundo das mulheres, quer dizer, uma dualidade dentro da qual inmeras variantes, trocas, tenses e
desigualdades eram possveis; uma dualidade plural em constante interao e
evoluo.
Figura 2 – Repente misto do famoso
xilgrafo nordestino Dila
Fonte: Acervo da autora.
O economista-etnlogo alemo Karl Bcher
fundamentou-se nessa dualidade, ao formular a teoria da existncia de duas
tradies poticas no mundo indo-europeu, a masculina e a feminina, como
produtos da diviso dos trabalhos econmico e social entre os sexos, postulando
que para cada tipo de trabalho havia canes de trabalho e de lazer com ritmos
e contedos diferentes (BCHER, 1896). Bcher mostra que o mundo potico das
mulheres que detm as tradies mais ricas e diversificadas, em relao ao dos
homens, e que so elas as detentoras, guardis, produtoras e reprodutoras
primordiais da memria viva das culturas tradicionais indo-europeias.
Quase cem anos mais tarde, o etnlogo hngaro
Imre Katona publica o artigo intitulado Reminiscencies
of Primitive Divisions of Labor between Sexes and Age Groups in the Peasant
Folklore of Modern Times
(KATONA, 1979), em que elabora a distino dual de Bcher ao relacionar esses gender-specific
ritmos e contedos distino bsica da teoria literria novecentista entre os
dois grandes gneros literrios: o pico e o lrico. A partir das diversas
formas de dualidade plural[37],
Katona v o mundo dos homens como o do canto pico e de outras formas de canto
narrativo aparentado, tais como o panegrico, a genealogia e os gneros que
enaltecem e glorificam o poder, o herosmo e a superioridade masculinas. Eles
formariam o verso da medalha Ҏpica, havendo tambm, a seu reverso Ҏpico com
gneros, tais como a stira, a troa, a zombaria, o escrnio, o maldizer e a
pardia.
O mundo das mulheres o mundo dos gneros
lrico e lrico-narrativo. O gnero lrico funcional: a poesia cantada marca
o ritmo do trabalho cotidiano e da dana. Geralmente so cantigas dialogadas,
improvisadas, baseadas na memorizao e improvisao de novos versos. esse
desafio que torna mais alegres e ligeiros os trabalhos muitas vezes montonos,
pelo prazer ldico do jogo potico. H uma unidade de Som e Letra, com
predominncia do Som, cujo ritmo marca o ritmo especfico do trabalho ou da
dana.
O estudo de Imre Katona confirma as concluses
de Bcher e, ao dedicar-se ao tema da diviso do trabalho cultural entre os
sexos, ele mostra que essa diviso do trabalho no era rgida, e menos ainda
excludente! Havia trocas, apropriaes e intercmbios contnuos entre os dois
mundos. Katona chegou concluso de que uma mdia de uns 10% das produes
culturais era produto desses intercmbios. Confirmadas, nos ltimos cinquenta
anos, por estudos dedicados a outros perodos histricos e reas geogrficas,
as pesquisas de Bcher e Katona abrem novas perspectivas para o estudo das
vozes das mulheres na cantoria e no cordel. Na viso de Imra Katona, Fanka
Santos reuniu em O Livro Delas
aqueles 10%, mais ou menos, de vozes femininas que se aventuraram no territrio
potico da voz masculina, como hoje em dia, muitos poetas cantadores invadem o
territrio feminino da cantiga lrica e de amor, o que teria sido considerado
tradicionalmente um ato meio efeminado.
De intercmbio excluso
Figura 3 – Xilogravura de J. Miguel
Fonte:
Acervo da autora.
Quando, hoje, falamos de sexo/gnero,
automaticamente concebemos uma estrutura bipolar, dicotmica e hierarquizante,
no dual, mas dualista. Esse pressuposto da dicotomia est na base da
viso humanista do mundo ocidental e instala-se no limiar do que chamamos de Tempos
Modernos, adquirindo a sua expresso filosfica no conceito de dualismo
com o filsofo francs Pierre Bayle (1647-1706). A sua primeira ocorrncia data
de 1679, com a definio/significado de: sistema, doutrina baseada na
existncia, sob a forma de hierarquia, de dois princpios contrrios que se
excluem mutuamente (masculino versus feminino, heterossexual versus
homossexual, branco contra negro, cultura contra natureza, primitivismo contra
Progresso, cultura oral versus cultura escrita, entre muitos outros).
Essa base dualista do pensamento ocidental
moderno contribuiu muito para a legitimao ideolgica do silenciamento das mulheres,
do feminicdio de mais de cem mil mulheres nas fogueiras da Inquisio, da
escravido e do genocdio de milhes de negros e indgenas, da perseguio dos
homossexuais, do racismo, da destruio sistemtica da natureza. O discurso
oficial e erudito sobre cantoria e cordel, ele tambm, um produto tpico
desse dualismo.
As culturas no ocidentais e as da
pr-modernidade ocidental, por sua vez, fundamentam-se, ainda, no princpio da dualidade com um leque plural, infinito,
de formas poticas, de complementaridades, variedades, desigualdades,
conflitos, trocas, emprstimos e interrelaes. Os textos poticos
intercambiados so imitaes geralmente ldicas de gneros poticos do outro
sexo. As imitaes tornam-se ao mesmo tempo reinvenes e ressignificaes, ao
levarem para o palco, dentro dos quadros do gnero tradicionalmente unissexo, a
voz e a viso das coisas do outro sexo. Elas so geralmente muito apreciadas e
aplaudidas pela comunidade!
importante estar consciente do fato de que,
nas tradies orais, esse procedimento no considerado plgio como no mundo
moderno! Ele constitui uma prtica discursiva, uma estratgia ldico-sria,
altamente apreciada, de transmisso, enriquecimento e divulgao da memria e
da tradio e, em um sentido comunitrio e social, serve tambm como vlvula de
escape de tenses entre os sexos, quer dizer: como estratgia de reforo da
coeso social. A concepo do texto escrito como propriedade individual de um
Autor masculino (FOUCAULT, 1998) s se instalar no mundo ocidental – e a
partir do mundo da escrita e da imprensa –, nos incios dos Tempos
Modernos, juntamente com a noo de plgio. No mundo da oralidade, em
que a memorizao (por repetio e reinveno) constitui a conditio sine qua
non da prpria existncia da tradio oral e a estratgia por excelncia da
transmisso, integrao e salvaguarda do saber, no existe plgio no
sentido moderno do termo. Quando uma performance intercambiada tem
muito sucesso, ela fica no outro mundo e integra-se a ele: o heri do romance
heroico-narrativo, por exemplo, pode metamorfosear-se em herona, o romance
lrico-narrativo transformar-se em pico, ou em vida de santo ou santa,
proposta por um poeta religioso, ou ainda em pardia e zombaria de
comportamentos tpicos do outro sexo.
Um musiclogo alemo do sculo XIX definiu o
fenmeno como Wandermelodien, msicas
que wandern – vagabundeiam,
andam de terra em terra – e mudam com os lugares que elas visitam, com os
tempos – e templos! – pelos quais passam, com as condies histricas
que evoluem, sempre as mesmas e reconhecveis como tal e ao mesmo tempo sempre
diferentes. Pensamos nos jograis da Idade Mdia que os conclios da Igreja
catlica condenavam por cantarem com vozes efeminadas, canes de mulheres
(tais como cantigas de amigo, de romaria, cantigas de trabalho, cantigas
bailadas) ou, mais tarde, nos cantadores de romance ibricos do sculo XX que
cantavam em pblico romances lrico-narrativos que eles apresentavam como
canes aprendidas com a av, a tia ou a me.
Nessa direo, podemos descobrir qual foi o
papel dos eruditos humanistas dos sculos XV e XVI, responsveis por criar a
base da historiografia e das cincias da literatura e das artes. Os textos das
mulheres medievais, transcritos, plagiados por essa elite que acaba de inventar
a noo de plgio, ressignificados
por eles, entraro na sua cultura escrita e impressa, em cancioneiros, leigos
e/ou religiosos, em livros de poesia atribudos a poetas masculinos, trovadores
ou reis – tais como D. Dinis, Afonso X, o Sbio – ou bispos,
membros da nobreza e da alta burguesia. Quando se inicia a historiografia das
literaturas nacionais, em finais do sculo XIX, essas atribuies renascentistas sero consideradas provas de autoria
masculina na galeria dos Autores geniais, individuais, que vo preencher os
volumes das Histrias nacionais das Literaturas dos Estados-Naes; essa
histria falsificada que obliterou os matrimnios das mulheres e se ensina at
hoje no ensino formal secundrio e universitrio.
As outras vozes de artistas-poetas-contadores a
cantadores tradicionais, porta-vozes da comunidade, ficaram como tradies
orais das comunidades locais e regionais, mas na clandestinidade em face do
medo permanente de perseguio. Desprezadas e odiadas pelos detentores do poder
poltico-religioso (BURKE, 2010), elas sobreviveram, cada vez mais
fragmentadas, no seio das comunidades. A sua reabilitao terica e
idealista pelas elites, na poca do Romantismo, como alma pura da Nao, no
por fim s persecues factuais que continuaro ainda bem adiante no sculo
XX. Em 1848, inventa-se o nome de folk-lore (sabedoria do povo),
inicialmente no sentido positivo e o dos seus estudiosos, os folkloristas.
Uma vez os Estados-Naes todos bem instalados,
depois de 1870, esse sentido positivo torna-se importuno e incmodo. A
necessidade de criar um imaginrio nacional, unificador das centenas de
pequenas naes da Velha Europa, leva as elites das novas comunidades
imaginadas (ANDERSON, 2008) a fundarem as faculdades de Letras (Histria,
Lngua e Histria da Literatura nacionais), onde se ensinaro unicamente os
textos ressignificados da tradio escrita humanista e se propagar, geralmente
e com raras excees, um profundo desprezo em relao tradio oral e aos
seus estudiosos e pesquisadores.
Revisitar um territrio
tradicionalmente masculino
Chica Barrosa onde canta
faz
o mundo estremecer.
Faz
o sol se abalar;
todo planeta descer.
Quem
vier cantar comigo,
correr
grande perigo,
at
de morte sofrer.
Chica
Barroso
Vozes de mulheres que se
desterritorializaram
Temos a sorte excepcional de j possuirmos um
primeiro esboo da genealogia das vozes das mulheres repentistas e poetisas
– redigida por um grande poeta repentista, cordelista e
professor-pesquisador da tradio potica nordestina, Jos Alves Sobrinho, de
Campina Grande, na Paraba. Coautor, com o professor tila de Almeida, do
Dicionario bio-bibliografico de repentistas e poetas de bancada, publicado
em1977, Sobrinho publicar mais tarde, depois da morte do professor
tila, outro livro, intitulado Cantadores, Repentistas e Poetas Populares (SOBRINHO,
2003). Nele, o poeta conta em verso, na melhor tradio do gnero
potico da genealogia cantada ou declamada, a genealogia de seis geraes de
poetas masculinos para, em seguida, apresentar a das mulheres poetisas e
cantadoras de repente do Nordeste. A apresentao pelo poeta – juntos mas
separados –, sob a forma dual, mostra que existiam, na experincia do
poeta, vivida de dentro da sua comunidade, dois mundos poticos, o dos homens
e o das mulheres, inter-relacionados, interconectados e interativos.
Nos versos clssicos do repente – a
sextilha e a dcima –, o poeta-pesquisador apresenta seis geraes de
grandes repentistas, poetas e poetisas de reputao confirmada. As duas
genealogias contam juntas 948 versos, dos quais 816 versos sobre poetas e 132
sobre poetisas, quer dizer: uns 12% dos versos globalmente so reservados para
a voz das mulheres. Essa porcentagem confirma a mdia global de 10% de
intercmbios que o etnlogo Imre Katona indica no seu estudo, tanto para o
territrio masculino quanto para o feminino.
A genealogia feminina comea pela estrofe que
comemora a primeira gerao, a das mais antigas poetisas, algumas j lendrias:
Falo em Rita Medeiros
Lendria por tradio
Naninha Gorda dos Brejos
Zefinha do Chaboco
E a grande Chica Barrosa
Camila do Martinzo (SOBRINHO, 2003, p. 90)
Os versos sublinham o talento dessas mulheres e
o seu domnio perfeito das regras da arte do repente, como se v na ltima
estrofe:
Temos Chiquinha Ribeiro
Baiana de boa estima
Alade Ferreirinha
Seu repente obra-prima
Seu verso tem ritmo e mtrica
exigente na rima (SOBRINHO, p. 91)
E at, s vezes, evocam a superioridade de
mulheres repentistas temidas, como foi a famosa Chica Barroso, e como era
tambm Vov Pangula:
Maria Ribeira Santos
Chamada vov Pangula
De Valena do Piau
Faz no verso o que calcula
L naquela regio
Com ela no h quem bula (SOBRINHO, 2003, p.
91)
Podemos, a partir da, abandonar o discurso
dicotmico desse dualismo da modernidade cujo crculo hermenutico fechado leva
a ignorar ou, no melhor dos casos, a explicar a presena inegvel de
cantadoras/cordelistas como excepcional e as prprias poetisas como mulheres
masculin(izad)as, como as qualificaram alguns observadores eruditos.
Poderemos escutar as vozes de Chica, Pangula, Mocinha, Bastinha, Josenir,
Salete, entre tantas outras, como contribuies de uma linhagem secular de
mulheres fortes, autoconscientes e conscientes de serem agentes, cocriadoras e
reinventoras da realidade e cultura nordestinas. So vozes de heronas,
mulheres feministas que, cada uma na sua poca e no seu contexto social e
poltico – e apesar das reaes s vezes violentssimas e agressivas de
homens – se posicionaram como detentoras/guardis e reinventoras de um matrimnio local, regional, at dentro
dos quadros de um gnero/territrio tradicionalmente masculino cuja arte
potica profissional essas mulheres tambm sabiam brilhantemente ilustrar.
Violncia, stira, indecoro e
obscenidade de vozes femininas no cordel
Pisa
medonha eu lhe dou
de cabelo se arrancar,
de
fofar couro de lombo
do
pescoo ao calcanhar;
se no se tratar
com tempo,
talvez no possa escapar!
Minha
pisa venenosa
que
no se pode curar.
Cada
tacada que dou,
vejo
o pedao voar.
Chica
Barrosa
A musicloga cearense e professora da
Universidade Estadual do Cear Elba Braga Ramalho publicou, no ano 2000, um
estudo intitulado Cantoria Nordestina:
msica e palavra. No captulo intitulado A parceria: do antagonista ao
parceiro (RAMALHO, 2000, p. 124-130), resultado de muitos anos de pesquisa de
campo em terras cearenses, a autora descreve o processo sociocultural
interessantssimo de uma mutao, a que talvez tenha mais impactado no sculo
XX o territrio da cantoria, a saber: a transio progressiva do cantador antagonista tradicional ao cantador parceiro, numa sociedade cada vez mais
modernizada e urbanizada.
A situao quase arquetpica do cantador
antagonista ilustra-se talvez mais eficazmente pela evocao do poeta nmade de
outrora, que chegava numa comunidade onde era ainda desconhecido. Ao entrar
nela, ele adentrava tambm, querendo ou no, no territrio, caa reservada,
dos poetas residentes locais. De antemo, ele ser considerado concorrente,
rival, adversrio, opositor, como eram tambm, alis, os homens que vinham de
fora para namorar uma mulher da comunidade. Essas situaes, provocadoras para
os homens residentes, podiam acabar muito mal e com muita violncia fsica. A
comunidade, ansiosa por conhecer as novidades, notcias e histrias de fora que
o novo poeta trazia, tentava resolver as ameaas e tenses provocadas pela
chegada do estrangeiro, organizando um evento ldico-srio ritualizado e
controlado por ela (HUIZINGA, 2007). Essa cantoria obrigava os seus prprios
poetas a transformar e sublimar o seu dio do rival e violncia fsica em
violncia verbal e potica, permitindo ao recm-chegado ostentar as suas
competncias para legitimar a sua visita.
Essa foi a realidade e a funo eminentemente
social do repente/improviso tradicional nordestino desde os seus comeos. Ela
evoluiu e mudou radicalmente no sculo XX, como mostram os estudos de Elba
Braga Ramalho e a tese de doutoramento defendida por Andra Betnia da Silva,
intitulada Entre ps-de-parede e
festivais: rota(s) das poticas orais na cantoria de improviso (SILVA, 2014). Os poetas individuais
e rivais transformaram-se em dupla de companheiros/parceiros. A violncia,
fonte de inspirao inicial do gnero, perdeu o seu lugar central, sendo o
pblico dos festivais o proponente do tema a ser trabalhado pela dupla. A
violncia foi substituda pela vontade e motivao de serem juntos a melhor
dupla no palco, como concorrentes e vencedores de outras duplas. Esse fenmeno
no ocorreu, por exemplo, no repente africano, halo, que continua, mutatis
mutandis, como exerccio e jogo ldico-srio, no seio de comunidades, onde
o halo funciona at hoje como vlvula de escape para tenses e conflitos
sociais dentro da comunidade e como instrumento de que ela dispe para
educar, ritualizando-a, a violncia masculina e salvaguardar a coeso social.
Pensar a violncia feminina
Podemos agora olhar com lentes diferentes para
um fenmeno que observei muitas vezes e que, no incio, at me chocava, a
saber, o da violncia, obscenidade e indecoro dos versos de certas mulheres
repentistas e poetisas. Essa violncia verbal deixava-me ao mesmo tempo com
mal-estar perante as reaes excessivamente negativas (puta, macho,
pior que homem!, feia, grosseira, para s citar as menos
agressivas!) de colegas pesquisadores, indignados e revoltados, apesar dos
aplausos, adeso e entusiasmo do pblico, sobretudo quando essa mulher era
declarada vencedora.
Imaginar o contexto tradicional do repente
permite compreender melhor a situao da mulher-repentista, um
estrangeiro-mulher que entra no territrio masculino do repente e que at tem
o direito de adentrar nesse espao, de participar do jogo, mas ter de
respeitar as regras desse jogo. Quer dizer, cumprir duas condies: o respeito
aos cdigos do antagonismo bsico do jogo potico e a demonstrao de um exmio
conhecimento da sua arte potica. Ela tem que se mostrar superior ao
adversrio, para o pblico o declarar vencido.
Esse jogo apimentado de maneira muito
especial ao oferecer um palco a todas as possveis frustraes, tenses,
conflitos e preconceitos gerados pelo convvio dos dois sexos no mundo
relativamente fechado da comunidade tradicional. No fundo, trata-se de um
jogo-ritual que permite evacuar, soltar e curar o que se denomina na psicanlise
Verdrngung, refoulement, represso de pulses (sexuais, de violncia,
de dio) estocadas no inconsciente. Tantas vezes senti uma vibrao, uma
excitao, ouvi um frmito, antes mesmo de uma mulher entrar no crculo ou
subir ao palco para cantar! A, o desafio era grande e especial; era preciso
escolher o tom (sarcstico, jocoso, irnico, provocador) e o subgnero potico
dentro da gama de possibilidades ofertadas, tais como maldizer, escrnio,
obscenidade, zombaria. O essencial era fazer melhor, ser mais forte, cantar o
verso mais bonito e perfeito na rima e no ritmo. Esse era o grande desafio das
cantadoras que saam do crculo formado pelo pblico conhecedor-avaliador para
um desafio/provocao grande: aventurar-se at ao centro do territrio
masculino.
Nesse sentido, h outra intepretao possvel
para o fato averiguado de que muitos poetas se recusam, geralmente com uma
atitude de imenso desprezo e arrogncia, a cantar com uma mulher. Certa vez,
Jos Alves Sobrinho me disse que minha interpretao dessa atitude – como
se tratando de um preconceito sexista – era muito superficial, o que
outros grandes poetas depois me confirmaram. Na verdade, nesse territrio
masculino do repente, ser o vencido do duelo potico j , em si, uma desonra.
Ser o vencido de um vencedor estrangeiro, seja ele masculino ou feminino,
desonra e vergonha! Para o poeta masculino, o risco era muito grande, uma vez
que o pblico gostava desse subgnero potico e admirava, de antemo, a coragem
da mulher e o seu domnio da ars potica do repente. Na verdade, como
Sobrinho e outros poetas explicavam, essa atitude de superioridade e desprezo
ocultava o medo medonho que tinham muitos poetas de ter que sair vencido do
duelo potico com mulher.
Houve poetisas que procuravam outras estratgias,
no violentas, para a sua voz ser escutada. Algumas delas j anunciam a
transio do repente tradicional, violento e antagonista, ao repente dos
parceiros-companheiros que se instala progressivamente na segunda parte do
sculo XX. Jos Alves Sobrinho, por exemplo, evoca, com muito carinho,
A Terezinha Tietre
De So Jos dos Cordeiros.
S cantava elogiando
O verso dos companheiros.
Deixou de cantar, porm
Causou saudade aos parceiros
(SOBRINHO, 2003, p. 98)
Mais uma vez, por trs do elogio do poeta,
desenha-se a estrutura bsica – pica – do mundo masculino que a
mulher provocadora tinha que respeitar e as regras do jogo potico pico
masculino, quer dizer: zombar ou elogiar.
Consideraes finais
O exemplo da funo social da arte
ldico-potica do repente (e sua forma impressa no folheto de cordel) e da
violncia da linguagem potica de homens e mulheres repentistas nesse
territrio tradicionalmente masculino permitiu ilustrar a necessidade e a
urgncia da reviso das episteme do discurso convencional sobre cantoria e
cordel. Para quem quiser interpretar e historiografar textos ou gneros
literrios originrios das tradies orais, fundamental, antes de mais nada,
conhecer a fundo o contexto scio-histrico e cultural das obras e dos seus
autores. De um momento, de um contexto (regional, social, histrico...), de um
pblico para o outro, a significao dos gestos, das palavras, das imagens pode
ser diferente, tornar-se ambgua, ter duplo sentido ou sentido figurado e levar
o pesquisador, convencido da superioridade e e universalidade da sua
metodologia e terminologia, a interpretaes erradas.
Porm, o que importa mais ainda tentar
questionar o nosso olhar sobre eles. Esse questionamento baseia-se na
conscincia de que a ordem do discurso (Foucault, 1996) – ocidental,
colonial e patriarcal – formata tanto o nosso pensamento e linguagem
quanto o nosso olhar sobre o mundo e a nossa realidade. Queiramos ou no
queiramos, sejamos homens ou mulheres, essa ordem fundamentalmente
colonizadora, mutiladora e hierarquizante. Como disse recentemente um grande
pensador do movimento internacional Men Engage Against Violence[38]
num debate sobre violncia masculina e educao: We are all trapped in the
framing of the same narrative. Estamos todos encarcerados na estrutura da
mesma narrativa.
Esse olhar colonizador parte de um observador
que se considera centro e protagonista; convencido de que os seus conceitos,
critrios, categorias e juzes de valor sejam objetivos, cientficos e lhe
fornecem instrumentos vlidos para definir, classificar, intepretar e avaliar
tudo e todos os outros. Trata-se de uma armadilha desastrosa, formatada por
sculos de pressupostos que so, na verdade preconceitos e pretenses
injustificadas. Inmeros so os exemplos de narrativas e teorias errneas
construdas em cima do pressuposto de que o Sujeito-pesquisador possui o olhar
objetivo e cientfico sobre o seu Objeto de pesquisa, como so inesgotveis
as fontes das piadas de pesquisador nas quais os poetas da oralidade denunciaram
e continuam denunciando, no mundo inteiro, essa pretenso absurda da
superioridade da cincia ocidental.
Para cumprir o anncio e promessa que fizeram,
no Cariri, no ano 2000, os Poetas dos cordis mauditos e inventar esses novos
outros 500 anos da histria da humanidade, teremos que contar/narrar
direitinho, antes de mais nada, a histria dos seus antepassados-poetas, alm
de inventar vocabulrios no dicotmicos para esse futuro. Criar esse futuro
implica o restabelecer daquela viso do mundo das civilizaes da oralidade que
no se ilude com a crena de um Progresso infinito, hoje em dia cada vez mais
inverossmil, violento e mortfero.
Esses cantadores e cantadoras que ritualizavam
e colocavam aberta e corajosamente no palco da comunidade nordestina a
violncia masculina como praga social a ser debatida, re-educada, curada e
vencida para o bem-estar de todos, no s legaram para as futuras geraes
uma linguagem potica e estratgias eficazes de comunicao social, poltica e
educativa, mas deixaram tambm uma amostra de um mundo diferente e dual, mais
humano, mais respeitoso das leis da Vida que o sistema colonial e seus aliados
eruditos que compuseram e impuseram a Histria oficial do Brasil tentaram, em
vo, obliterar.
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[Recebido: 03 mai 2021]
DOSSI
METADE CARA, METADE MSCARA: MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE INDGENA NA
OBRA DE ELIANE POTIGUARA
METADE
CARA, METADE MSCARA: COLLECTIVE MEMORY AND INDIGENOUS IDENTITY IN THE WORK OF ELIANE
POTIGUARA
Joel Vieira da Silva Filho[39]
https://orcid.org/0000-0001-9895-99
Cristian Souza de Sales[40]
https://orcid.org/0000-0002-9377-67
Resumo: Este texto investe numa
discusso acerca das relaes existentes entre memria coletiva e identidade
indgena em Metade Cara, Metade Mscara (2004) da escritora
indgena contempornea Eliane Potiguara. Metade Cara,
Metade Mscara uma obra de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando lendas, fico, testemunhos,
depoimentos e poemas. Atravs da narrativa de deslocamento e processo diasprico
da escritora, destacamos como as memrias individual, coletiva e as identidades
se incorporam e se encenam poeticamente. O trabalho evidencia como os poemas
operam em favor da preservao da memria coletiva e da identidade dos povos
indgenas. Na potica da escritora, as memrias e identidades performadas do
sustentao a outros saberes sobre os povos indgenas, os quais se diferenciam
das verses disseminadas pelas epistemologias eurocentradas. Por fim, o texto
realiza um estudo terico-crtico que dialoga com os seguintes autores:
Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku (2018) como aporte terico principal.
Palavras-chave: Literatura indgena. Poesia indgena. Eliane Potiguara.
Memria. Identidade.
Abstract: This text invests in a discussion about the
existing relations between collective memory and indigenous identity in Metade Cara, Metade Mscara (2004), by contemporary indigenous writer Eliane
Potiguara. Metade Cara, Metade Mscara is an autobiographical work, of a hybrid genre,
interspersing legends, fiction, testimonies, depositions and poems. Through the
displacement narrative and diasporic process of the writer, we highlight how
individual/collective memories and identities are incorporated and acted out
poetically. The work shows how the poems operate in favor of preserving the
collective memory and identity of indigenous people. In the writer's poetics,
the performed memories and identities support others knowledges about indigenous
people, which differ from the versions disseminated by Eurocentric
epistemologies. Finally, the text conducts a theoretical-critical study that
dialogues with the following authors: Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku
(2018), among others.
Keywords:
Indigenous literature. Indigenous poetry. Eliane Potiguara. Memory. Identity.
Da oralidade escrita
A
literatura indgena contempornea um lugar utpico (de sobrevivncia), uma
variante do pico tecido pela oralidade; um lugar de confluncia de vozes
silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonizao
(GRANA, 2013, p. 15).
Podemos dizer que a literatura escrita indgena tem se consolidado como
um movimento esttico-literrio e poltico no Brasil. Mas, anteriormente escrita,
a literatura indgena era compartilhada atravs da oralidade ou da tradio
oral. Assim, as narrativas, histrias e saberes que antes eram transmitidos de
gerao em gerao apenas por meio da oralidade, agora tambm circulam atravs
da escrita. Portanto, uma caracterstica significativa da literatura escrita
indgena sua estreita e profunda relao com a tradio oral.
A oralidade indgena entendida como conjunto de costumes, crenas e
rituais das diversas comunidades indgenas partilhados atravs da voz. Por meio
do conhecimento oral, ou seja, de uma srie de cnticos, toantes, literaturas
(de diferentes etnias), os indgenas transmitiam de gerao em gerao esses
conhecimentos.
Daniel Munduruku, escritor indgena, autor de diversos livros e defensor
da causa indgena, por sua vez, diz que a escrita uma conquista recente para
a maioria dos 305 povos indgenas que habitam nosso pas desde tempos
imemoriais (MUNDURUKU, 2018, p. 81).
Nesse contexto, Graa Grana, escritora indgena brasileira, defende o
espao da literatura indgena como um lugar de autoafirmao cultural, de forma
que mesmo sendo produzida em meio a muito silenciamento e exilamento, em
paralelo a colonizao, buscou preservar memrias, tradies, formas de vida e
cosmologias (GRANA, 2013).
Na memria dos mais velhos, considerados mais sbios, o
tempo passado e presente se encontram para atualizar os repertrios.
De tal maneira, a palavra falada era e ainda
transmitida nas comunidades, colaborando para que a tradio indgena se
mantenha forte. O elemento oral partilhado em comunidade fortifica a memria e
o conhecimento ancestral herdado, de forma que os ancios colaboram
frequentemente para a produo dos textos. As vozes dos ancios e dos
ancestrais refletem na escrita, conferem ao texto um carter memorial e
identitrio.
Nesse sentido, Paul Zumthor diz que por meio da
voz, ns nos situamos no mundo; sendo assim, a voz indgena situa as tradies
de modo a no perder toda uma vasta produo oral que est em constante
movimento na memria dos mais velhos e que est sendo passado para os mais
jovens[41]. Segundo Zumthor, h trs
tipos de oralidade, associadas a aspectos culturais diferenciados:
a) primria, sem relao alguma com a
escritura, relaciona-se a sociedades grafas; b) segunda, quando a escritura
prevalece sobre os aspectos orais, condicionando, a partir de uma cultura
erudita, as formas de expresso; c) mista, quando o oral se manifesta de forma
parcial e com retraso em relao ao escrito.. (ZUMTHOR, 1989, p.20)
De tal forma, sendo a oralidade um ato
espontneo, natural; com a ausncia de uma literatura grfica, de ordem
alfabtica, o registro oral dos indgenas nasceu intimamente na fala, como
elemento de preservao da tradio. Assim, a oratura indgena funciona/ou como todo conjunto de conhecimento daquilo que
est/esteve preservado na memria dos povos indgenas.
Com o desenvolvimento da literatura indgena
escrita, no se pode dizer que a oralidade foi desprezada e esquecida. O conhecimento oral a mola propulsora para a produo literria
indgena. Assim, a literatura escrita no existiria sem a
literatura oral, visto que ambas se correlacionam, pois, a escrita no chega
para ser predominante, ela chega como auxiliar e veculo para a expresso de
toda uma tradio que se estabelece por meio da oralidade (DORRICO, 2018, p.
113).
Da oralidade ao alcance da escrita, em relao
identidade e memria, enfatizamos que as literaturas de autoria indgena so
resultado da ancestralidade, e reforam o pertencimento tnico e a valorizao
da luta poltico-social-literria indgena. Diversos so os escritores
indgenas que fortalecem o conhecimento ancestral por intermdio dos textos.
Autores como Eliane Potiguara, Graa Grana, Mrcia Kambeba, Daniel Munduruku,
Ailton Krenak, Auritha Tabajara, Olvio Jekup e tantos outros, celebram ainda
mais a literatura dos povos indgenas brasileiros.
De tal forma, neste texto, nos interessa a
produo literria da escritora indgena Eliane Potiguara. Por meio da obra Metade Cara, Metade Mscara (2019), de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando
lendas, fico, testemunhos, depoimentos e poesias, evidenciaremos como os poemas contribuem para o
fortalecimento da memria coletiva e da identidade dos povos indgenas.
Percebemos que
a potica de Eliane Potiguara carregada de elementos da resistncia que
mulher indgena, bem como se abastece da fora memorial, ancestral e
identitria. As narrativas transitam por espaos vividos pela escritora, desde
o processo diasprico de sua famlia at o seu nascimento em uma terra
distante. A isso, importante salientar que:
O projeto literrio da escritora, alicerado
na tradio e na sabedoria ancestral, rompe com o silenciamento secular dos
povos originrios e se apresenta como alternativa para a construo de uma
narrativa plural e no estigmatizante da ptria brasileira, a partir de uma
cosmoviso indgena feminina (COSTA, 2020, p. 17).
As
provocaes presentes em Metade cara,
Metade mscara denunciam as perversidades da colonizao e buscam romper
com os estigmas impostos aos povos indgenas. Em relao voz de Eliane Potiguara, outras
vozes tambm so reverberadas, uma coletividade emanada, assim, a potica da
escritora, presente nos diversos gneros da obra, revigora a luta indgena e
anseia pelo direito de liberdade, respeito e igualdade.
Eliane Potiguara: uma
voz indgena feminina
Que
fao com minha cara de ndia?
E meus
cabelos
E
minhas rugas
E
minha histria
E meus
segredos (POTIGUARA, 2019, p. 32).
Descendente dos Potiguara do Rio Grande do
Norte, Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, uma
mulher indgena, me, escritora e militante, nascida no Rio de Janeiro, em
1950. Uma das escritoras pioneiras da literatura indgena brasileira, tornou-se
uma das principais vozes na luta pela preservao e garantia dos direitos dos
povos indgenas, e tambm na busca pelo respeito e valorizao das mulheres.
Eliane Potiguara, assim como diversos indgenas
brasileiros, tambm foi vtima dos resqucios da colonizao. Durante a
infncia, devido s perseguies, enfrentou contnuas adversidades, pois sua
famlia foi obrigada a migrar para Pernambuco. Foi no estado do Pernambuco que
nasceu a me de Eliane Potiguara, a pequena Elza, filha de Maria de Lourdes,
fraquinha e enferma (POTIGUARA, 2019, p. 24),
me com apenas 12 anos, vtima de um estupro do colonizador. Assim, as mulheres
da famlia de Potiguara saram de sua terra natal, de sua aldeia, para
sobreviverem.
Aps a migrao para as terras pernambucanas, a
famlia decidiu partir para o Rio de Janeiro. A violncia ocorrida nas terras
Potiguara e em diversos espaos indgenas do nordeste brasileiro forou
diversas famlias, como a de Eliane, a migrarem para outros espaos, em grande
parte, para as periferias das grandes cidades sulistas. O processo de estadia
na capital carioca foi complicado e as mulheres da famlia Potiguara passaram
por vrias adversidades. A pequena Elza cresceu e quando jovem, engravidou e
deu luz a mulher que hoje chamamos Eliane Potiguara, esta que foi criada por
sua av Maria de Lourdes, enquanto sua me Elza trabalhava.
Eliane foi criada em um quarto trancado e com
sua av aprendeu coisas diversas, maravilhosas, e foi assim que Potiguara
comeou a escrever, absorta nas histrias da prpria av e no sentimento que
tudo isso envolvia. As histrias reais de sua av a levaram para um mundo
mgico e literrio (POTIGUARA, 2019, p. 26-27). Potiguara no passou por
adversidades apenas durante sua infncia, pode-se dizer que, durante toda a sua
vida, ela travou uma luta constante pela sobrevivncia.
Formou-se em Letras pela UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), fundou o GRUMIN (Grupo Mulher-Educao Indgena) e
foi tambm indicada para o Projeto internacional Mil Mulheres do Prmio Nobel
da Paz. Ao mesmo tempo em que lutava pelos
direitos dos povos indgenas, buscou conectar-se com sua ancestralidade.
No poema Identidade
Indgena, por exemplo, escrito em 1975 em memria dos seus avs, que marca
essa conexo com seu povo, Eliane Potiguara traa um percurso autobiogrfico e
menciona todo o processo de luta e resistncia dos seus parentes. Segundo
Grana (2013, p. 78), tal poema [...] inaugurou o movimento literrio indgena
contemporneo no Brasil [...]. Assim, no incio do poema, a voz autobiogrfica
evoca uma memria coletiva e introduz o primeiro verso com o pronome possessivo
(nosso), rememorando os ancestrais. Ao longo do extenso poema, a voz lrica, de
tom feminino, declama que nunca esteve e nem est (ou estar) sozinha, pois
carrega em si as marcas e os ensinamentos identitrios e memoriais dos
ancestrais, como exposto na primeira estrofe:
Nosso ancestral dizia:
temos vida longa!
Mas caio da vida e da
morte
E range o armamento contra ns.
Mas enquanto eu tiver o corao acesso
No morre a indgena em mim e
Nem to pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direo ao sol.
Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da famlia espoliada
Desacreditada, humilhada
Sem forma, sem brilho, sem fama (POTIGUARA,
2019, p. 113).
O eu-potico retoma a luta dos povos
indgenas brasileiros, reforando que, embora o armamento, o poder colonial
exista, o compromisso assumido com os ancestrais jamais morre. A voz lrica
denunciar no decorrer dos versos, todo o processo de invisibilizao dos
indgenas. No entanto, em contraposio ao ato de diminuir os sujeitos
indgenas, haver sempre o ato de resistir. Assim, depreende-se que a luta da
voz do poema tambm a de Eliane Potiguara.
A conjuno adversativa (mas)
presente nos versos dois e quatro, elucida uma voz que, embora saiba dos
sofrimentos que enfrentar, no deixar de cumprir o seu compromisso. Tal
compromisso mencionado pela voz do poema coincide com a voz da escritora
Potiguara, de caminhar sob a orientao dos mortos, dos ancestrais, em direo
ao sol, ou seja, libertao, embora carregue tambm em si espoliaes,
descrena e humilhaes.
De tal forma, a luta de Eliane
Potiguara constitui ato eminentemente poltico, assim como a sua escrita (COSTA, 2020, p. 151) e este ato poltico
reverberado nas produes de Potiguara, dentre as quais, citamos: A Terra a Me do ndio (1989); Akajutibir: terra do ndio potiguara
(1994); Metade Cara, Metade Mscara
(2004); O coco que guardava a noite
(2012); O Pssaro Encantado (2014); A Cura da Terra (2015).
De tal maneira, como diz Costa (2020, p. 113),
os escritos de Eliane Potiguara adquirem um tom reivindicatrio. Os poemas se
tornam lugar de materializao das vozes ancestrais. Assim, a resistncia de
Eliane Potiguara est na sua histria de vida, bem como na sua produo
literria, de modo que, cada vez mais, povos indgenas e no-indgenas buscam
conhecer a luta e a literatura dessa mulher Potiguara.
Metade Cara, Metade
Mscara: uma obra de gnero
hbrido
A obra
Metade Cara, Metade Mscara foi publicada pela primeira vez no ano de 2004
pela Global Editora. composta por sete captulos e consta com vrios gneros
de cunho literrio e tambm social, assim, possui uma hibridez marcante. Nesse
contexto, a autora apresenta, como mencionado por Marcello Pereira Borgh na
orelha do livro: lendas, fico, realidade, testemunhos, depoimentos, e versos
autorias.
Este ltimo gnero essencial para a composio
do volume, pois, desse modo que ser narrada a histria de Cunhata e
Jurupiranga e o processo diasprico de tais personagens, estes que formam um
casal que representa simbolicamente as famlias indgenas brasileiras [e]
passam por diversas (des)aventuras, em cenrio e tempo mticos, desde o incio
do processo da colonizao europeia em solo brasileiro
(DE MELO; COSTA, 2018, p. 364-365 [insero nossa]).
Segundo Milena Costa Pinto, Metade Cara, Metade Mscara possui uma transversalidade temtica
proveniente da hibridez textual que agrega memria,
autohistria, biografia e autobiografia, de crtica, testemunho e denncia
(PINTO, 2017, p. 79). Esta hibridez apontada pela pesquisadora e tambm por
diversos estudiosos da obra de Potiguara caracteriza esta obra e faz dela um
texto de vozes coletivas emanadas em cada gnero presente no livro.
Neste texto, nos interessa, particularmente,
alguns poemas presentes em Metade Cara,
Metade Mscara, por apresentarem elementos marcantes da literatura indgena
em relao com a memria coletiva e a identidade. oportuno destacar tambm a
crtica social realizada na obra de Potiguara nos diferentes gneros. De acordo
com Pinto, quando costurados, os gneros presentes no livro, sero refletidos
atravs da hibridez, e daro uma impreciso s definies de cada gnero. Por
conseguinte, o carter hbrido no se faz presente apenas no corpo do texto, h
marcas de hibridez e de ambiguidade tambm no ttulo do livro, pois, uma metade
constituda por uma cara, e, a outra, por uma mscara.
Em sua anlise, Pinto (2017) menciona que tal
ambiguidade sugere, a priori, a verso
silenciada do indgena, ou seja – a cara, e em seguida, a proposta
inventada pelo colonizador, pelo poder dominante – a mscara. Trata-se de
uma indgena que carrega em si um rosto dividido, porm, no texto, a cara ter
total destaque, pois dela que provm os escritos.
A edio mais recente foi publicada em 2019 pela Grumin
Edies. No primeiro captulo, intitulado de Invaso s terras indgenas e a migrao, Eliane Potiguara aborda a
separao entre as personagens Jurupiranga e Cunhata e trata sobre a migrao
indgena. Para tanto, a autora busca como pano de fundo a sua famlia e o
processo de sada do Rio Grande do Norte, passando por Pernambuco at chegar ao
Rio de Janeiro.
Potiguara debate tambm questes relativas a violncia
contra a mulher indgena, o racismo e a intolerncia. H alguns poemas que
revelam uma escrita de dor, com marcas de resistncia, como podemos observar no
poema Migrao Indgena:
No teu universo de
gestos
Teus olhos so mensagens
sem palavras
Tua boca ainda
incandescente
Me queima o rosto na
partida
E tuas mos...
Ah! No sei mais
continuar esses cnticos
Porque a mim tudo foi
roubado.
Se ainda consigo
escrever alguns deles
S fruto mesmo da
mgoa que me toma a alma
Da saudade que me mata
Da tristeza que invade
todo o meu universo interno
Apesar do sorriso na
face... (POTIGUARA, 2019, p. 36).
Neste poema, a voz lrica com caractersticas
femininas denuncia o roubo de tudo aquilo que possua. Ao mesmo tempo, a voz
potica menciona um outro, e fala sobre os gestos, os olhos, a boca, o rosto e
as mos desse outro que ela sente em si, apesar da necessidade de partir, de
migrar.
A dor mencionada aparece como dor sentimental,
dor da perda, da separao, da saudade. Dor esta que impede que o cntico
continue, que as palavras venham. Eliane Potiguara fala que o processo
colonizatrio trouxe problemas graves aos indgenas, assim, no poema,
enfatizada a dor dos sentimentos, embora saibamos que, com a colonizao tambm
vieram enfermidade, a fome, o empobrecimento compulsrio da populao
indgena (POTIGUARA, 2019, p. 43). A dor sentida pela voz do poema foi/
sentida por diversos povos que viram seus familiares mortos nas mos do
colonizador. O genocdio indgena foi severo, povos morreram por no aceitarem
a submisso.
Em relao com a dor sentida, h tambm o
sentimento de mgoa, entremeada com a saudade, ento, estaria a voz do poema
perdendo seu amado? O processo colonizatrio separou diversas famlias, casais,
filhos, que sentiram a dor da partida, a exemplo da famlia de Eliane
Potiguara. No entanto, v-se que a dor sentida precisa ser escondida (escondida
para sobreviver?). O sorriso na face mascara insistentemente a tristeza que
invade o corao da voz narrativa.
No segundo captulo, Angstia e desespero pela perda das terras e pela ameaa cultura e s
tradies, a autora debate sobre as relaes entre a migrao e o racismo
enfrentados pelos indgenas, fala tambm sobre os problemas pelo qual passam as
mulheres indgenas na luta pelos seus direitos, alm de informar-nos sobre a
importncia do GRUMIM para a valorizao desta luta. No terceiro captulo, Ainda a insatisfao e a conscincia da
mulher indgena, a autora apresenta poemas que versam sobre a luta e a
resistncia feminina.
No quarto captulo intitulado de Influncia dos ancestrais na busca pela
preservao da identidade, abordada a importncia da famlia, dos avs e
dos antepassados indgenas. Nesse captulo, a personagem Cunhata viaja por
diversos espaos e nesse ato de viajar ouve vozes intercaladas e, no meio
delas, escuta a voz ancestral (POTIGUARA, 2019, p. 87).
No captulo cinco, que tem por ttulo Exaltao terra, cultura e
ancestralidade, Eliane Potiguara narra os deslocamentos de Cunhata e
Jurupiranga pela terra, pela cultura e pela ancestralidade, ao passo que
apresenta ainda mais o seu processo de vida enquanto escritora indgena.
O captulo seis bastante curto, nele, so
abordadas as questes acerca da Combatividade
e Resistncia dos povos indgenas, bem como os percalos enfrentados por
Jurupiranga. Anterior a isto, no havia menes sobre o paradeiro de
Jurupiranga, pois o foco estava em narrar os dissabores de Cunhata. Neste
captulo, nos informado as aventuras e percalos pelos quais Jurupiranga
passou, bem como o sonho da liberdade, da justia, da paz. J o captulo sete, Vitria dos povos, apresenta o final da
narrativa, a unio entre Cunhata e Jurupiranga e o reencontro com a identidade
que fora rasurada com a invaso do homem branco.
Metade Cara, Metade
Mscara
uma obra marcante; nela, Eliane Potiguara narra, poetiza, conta, relata,
denuncia, liberta e anuncia o reencontro dos que foram separados. Os valores
literrio e social se hibridizam e resultam na grande potencialidade que Eliane
Potiguara tem de escrever para se autoafirmar e tambm afirmar os seus parentes
indgenas, que lutam constantemente pela valorizao e respeito e pelo
reencontro.
Memria coletiva e identidades indgenas
A literatura indgena de Eliane Potiguara
funciona como uma ao de reforo da identidade indgena. Em seus escritos,
propostos em diferentes gneros, a escritora, no produz algo apartada da
identidade herdada dos ancestrais. A proposta literria de Eliane Potiguara no
indigenista, literatura escrita por antroplogos, pesquisadores, escritores
no indgenas; tampouco indianista, aquela do romantismo brasileiro que props
uma representao do ndio pautada no discurso colonial. A literatura escrita
por Eliane Potiguara chamada literatura indgena, pois parte de um lugar
identitrio prprio; a prpria indgena que a escreve, que narra.
Assim, em seus escritos, Potiguara desvincula a
imagem do indgena da viso nacionalista e do senso comum, apresenta a
identidade indgena em suas narrativas, bem como a memria indgena, levando em
considerao seus relatos memoriais e suas vivncias em comunidade e/ou fora
dela.
Problematizando o conceito de identidade, em A identidade cultural na ps-modernidade,
Stuart Hall buscou distinguir trs concepes de sujeitos identitrios. Para
ele, h o sujeito do Iluminismo, que centrado e dotado de razo; o sujeito
sociolgico, aquele que necessita dos outros, pois no independente; e o
sujeito ps-moderno, o indivduo que no possui uma identidade com fixidez.
Assim, debatendo acerca da crise da identidade, o pensador nos prope pensar
no no termo identidade, mas, sim, em identificao, como algo que est
em andamento. Nesta concepo, entende-se que no h apenas uma identidade ou
um processo de identificao, mas, identidades mltiplas e processos diversos
de identificaes. Com isso, esse intelectual nos leva a observar que
[...] a identidade realmente algo formado, ao logo
do tempo, atravs de processos inconscientes, e no algo inato, existente na
conscincia no momento do nascimento. Existe sempre algo imaginrio ou
fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, est sempre em
processo, sempre sendo formada (HALL, 2006, p. 38).
Nessa perspectiva, a identidade est sempre em
processo de formao, um fazer-se inacabado. A incompletude acontece pelo
fato de os sujeitos precisarem estar cada vez mais em processos formativos e de
complementao. Quando pensamos em identidade indgena estamos pensando em
processos de formao, pois, esta identidade busca apresentar quem esse indgena,
quais as suas razes, qual a sua ancestralidade.
Para Grana (2013), a noo de identidade na
literatura indgena est associada a ideia de deslocamento, a pesquisadora
indgena bebe dos estudos de Stuart Hall, que compreende o deslocamento como o
processo de dispora. Esse ato de deslocar-se evocar a concepo de diferena
e isso dar a esta literatura um carter identitrio, ou seja, por ser
diferente, por possuir identidade prpria, ser refletido no texto literrio a
conscincia do cidado e da cidad indgena (GRANA, 2013).
No decorrer do tempo, diversos povos indgenas
foram obrigados a silenciarem suas identidades pelo fato de serem diferentes,
de estarem em dispora. H como exemplo a famlia de Eliane Potiguara que
precisou migrar para o Rio de Janeiro e precisou se adaptar a uma identidade
cosmopolita.
Em O poder
da identidade, Manuel Castells afirma que a identidade uma construo
social, marcada por relaes de poder, assim, o autor aponta trs tipos de
identidade: a identidade legitimadora, a de resistncia e a identidade de
projeto. Aqui, nos interessa a identidade de resistncia, pois nela a
identidade dos povos indgenas refletida, inclusive a da escritora Eliane
Potiguara.
Assim, Castells prope que a identidade de
resistncia foi:
[...] Criada por atores
que se encontram em posies/condies desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela
lgica da dominao, construindo, assim, trincheiras de resistncia e
sobrevivncia com base em princpios diferentes dos que permeiam as
instituies da sociedade [...] (CASTELLS, 2018, p. 56).
Esta concepo indenitria
de resistncia mantm relaes com a identidade vivida pelos povos indgenas
brasileiros. Ela processual como prope Hall (2006) e est em condies de estigmatizao
pela lgica da dominao, como citado acima. No entanto, h atos de resistncia
e sobrevivncia para manter essa identidade viva, pois ela d origem a formas
de resistncia coletiva diante de uma opresso (CASTELLS, 2018, p. 57).
Dessa forma, a literatura produzida por indgenas brasileiros apresenta na sua constituio as suas prprias caractersticas, tanto na forma quanto no contedo (FIGUEIREDO, 2018, p. 130), um contedo prprio, embasado na identidade e na memria e que avana de gerao para gerao. Nessa perspectiva, pensamos a memria como um ato coletivo, no qual, o sujeito estabelece relaes com os que esto ou estiveram consigo.
Pode-se pensar a escrita de Potiguara tambm como uma ao memorial individual, porm h nos textos da autora muito mais do coletivo, da sua famlia, dos seus avs. Em A memria coletiva, o socilogo Maurice Halbwachs aponta que [...] nossas lembranas permanecem coletivas, e elas nos so lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais s ns estivemos envolvidos, e com objetos que s ns vimos (HALBWACHS, 1990, p. 26).
Sendo a memria o elemento que agrega as nossas lembranas e os acontecimentos vividos e que mostra que no estamos ss, fica evidente que a nossa individualidade atravessada pela coletividade daqueles que esto ao nosso redor, em nosso cerco de relaes familiares e afetivas.
Dessa forma, Daniel Munduruku prope pensar a memria indgena da seguinte forma:
A memria , pois, ao mesmo tempo passado e
presente que se encontram para atualizar os repertrios e encontrar novos
sentidos que se perpetuaro em novos rituais que abrigaro elementos novos num
circular movimento repetido exausto ao longo de sua histria (MUNDURUKU,
2018, p. 81).
Para
Munduruku (2018), a memria resultado do passado – ou seja, da
ancestralidade – em sintonia com os saberes atuais, apreendidos no dia a
dia dos povos de modo que os movimentos anteriores da histria so repetidos em
novos movimentos, atualizando esse conhecimento memorial e preservando-o ao
mesmo tempo. Nesse contexto, para os povos indgenas, a memria, em sua gnese
, principalmente, realizada de maneira coletiva.
A memria coletiva, ento, entendida como os elementos herdados dos ancestrais e partilhados pelos ancios, pelos pais, seja de forma oral, grfica ou corporal, sendo marca essencial para a construo da potica de Eliane Potiguara. A coletividade reverberada em cada verso, em cada palavra, como vemos em Identidade Indgena, que uma juno da forma potica com a autobiografia, no apenas da escritora, mas, dos seus avs.
No entanto, vale mencionar o quanto o conhecimento ancestral, dos mais velhos essencial para a construo do texto literrio indgena, pois o saber, a memria dos avs, um conjunto de memrias coletivas, visto que esses j atravessaram diversos campos da vida e acumularam memrias que os edificaram. O saber dos ancios e a memria que eles possuem articulam-se de modo a garantir a perpetuao da ancestralidade, e o escritor e a escritora indgena quando escrevem, trazem em si as marcas dos ancios e ancis, colocando no texto aquilo pelo qual os mais velhos j passaram e contaram, dando a essas narrativas um carter esttico.
A
potica contempornea de Eliane Potiguara rompe com a ideia de mtrica e prope
um poema com estrofes irregulares e com versos soltos, ora extensos, ora
curtos. A memria indgena cantada atravs do poema e a irregularidade na
organizao no inibe este elemento de aparecer. Para tal, a voz lrica exclama:
Mas no sou eu s
No somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da histria.
Seremos milhes unidos
como cardume
E no precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lgrimas
Por quem no nos tem respeito.
A migrao nos bate porta
As contradies nos envolvem
As carncias nos encaram
Como se batessem na nossa cara a toda hora.
Mas a conscincia se levanta a cada murro
E nos tornamos secos como o agreste
Mas no perdemos o amor (POTIGUARA, 2019, p. 113).
A voz do poema reclama os ultrajes j sofridos pelos indgenas, faz um retorno a memria dos parentes que sofreram e reafirma que, embora perseguidos, no aceitaro mais a perseguio, a migrao e as contradies. Inicia a estrofe pensando no futuro, pois no nem est ou estar sozinha, grita: Seremos milhes unidos como cardume. Assim, a voz do eu lrico indgena, at ento individual, comea a apontar uma coletividade e exclamam a ancestralidade coletiva e em seguida o desejo de justia. Justia pelo massacre, pelas lgrimas derramadas, pelos que faltaram com respeito contra esses povos.
A memria coletiva tambm acionada nos
versos a migrao nos bate porta
e as contradies nos envolvem. Tais versos apontam para o processo
diasprico vivido por diversas famlias indgenas, que, embebidos na
contradio do amanh, no sabiam se sobreviveriam ao processo. Percebemos que
a voz lrica est muito insatisfeita e carrega em si marcas e dores, quando
diz: Como se batessem na nossa cara toda hora. No entanto, o ltimo verso da
estrofe uma marca potente de valorizao da identidade indgena, pois se afirma
mas no perdemos o amor, e assim vemos o quo foi importante o amor herdado
dos ancestrais. Adiante, a voz indgena
exclama.
Eu viverei 200, 500 ou
700 anos
E contarei minhas dores pra ti
Oh! Identidade
E entre uma contada e outra
Morderei tua cabea
Como quem procura a fonte da tua fora
Da tua juventude
O poder da tua gente
O poder do tempo que j passou
Mas que vamos recuperar [...] (POTIGUARA, 2019,
p. 114).
Aqui, a voz lrica dirige a palavra identidade. As dores vividas sero contadas com o intuito de observar no passado sofrido o elemento resistncia indgena. Assim, aponta-se a preservao da identidade indgena, e tambm com grande insistncia o ato de recuperar esta identidade tirada de forma brutal e negligente. A identidade vista como fonte de fora, sendo responsvel pelo retorno indgena. Caso contrrio, a colonizao teria deslegitimado todos os sujeitos indgenas, visto que grande parte foi introduzida em novas identidades, ocidentais, crists, brancas, etc. No entanto, essa luta pela recuperao identitria constante, de forma que, mais adiante, a voz indgena proclama:
Seremos ns, doces, puros, amantes, gente
e normal!
E te direi identidade: Eu te amo!
E nos recusaremos a morrer,
A sofrer a cada gesto, a cada dor fsica,
moral e espiritual.
Ns somos o primeiro mundo! (POTIGUARA, 2019, p. 114).
A identidade indgena vista no poema como
poder, para ento, viver, amar e recusar-se a morrer. O verso E te direi
identidade: Eu te amo! comprova a relao identitria como mecanismo de
fundamental importncia para a construo do sujeito indgena. A memria, no
poema, aparece, no apenas, mas com maior insistncia, nos elementos de
sofrimento, a voz do poema lembra de cada gesto sofrido, de cada dor fsica,
moral e espiritual, mas que se recusa a morrer e busca exclamar: Ns somos o
primeiro mundo!, ou seja, somos os primeiros que habitavam essas terras,
vivamos da partilha e do trabalho, portanto, queremos reencontrar aquilo que
foi/ nosso.
Identidade Indgena descende do que fora herdado por Eliane Potiguara dos seus avs e funciona como elemento portador da notcia do reencontro, como reitera Munduruku (2018). No decorrer dos versos, a(s) voz(es) menciona(m) a luta em meio ao processo colonizatrio, os sofrimentos, mas tambm a coragem, a ousadia e a esperana dos povos indgenas. Esperana que provoca luta e resistncia:
A queremos viver pra lutar
E encontro fora em ti, amada identidade!
Encontro sangue novo pra suportar esse
fardo
Nojento, arrogante, cruel... (POTIGUARA, 2019,
p. 115).
A partir do verso A queremos viver para lutar notamos que o eu (ns) indgena prope pensar que a luta indgena constante, pensamos esse eu como uma voz coletiva, e o uso do verbo querer na primeira pessoa do plural evoca essas vozes. So vozes que no ficam estagnadas, ao contrrio, encontram na identidade foras, para ento lutarem pelos de ontem, os de hoje e os de amanh. E, se recusa a carregar esse fardo da colonizao, que Nojento, arrogante, cruel. A ltima estrofe canta a liberdade e o resgate da memria. A liberdade aparece como uma categoria que existe a partir da ao de lutar. Os indgenas lutam contra as imposies do colonizador e concretizam aos poucos essa liberdade to almejada:
Ns, povos indgenas
Queremos brilhar no cenrio da histria
Resgatar nossa memria
E ver os frutos de nosso pas, sendo dividido
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e desplazados
Como ns (POTIGUARA, 2019, p. 115).
O poema encerra-se clamando por liberdade. Ser livre essencial para manter viva cada vez mais a memria e a ancestralidade indgena. O ato de ser livre s acontece pelo fato de o indgena no aceitar ao de docilizar o seu corpo, esse corpo que possui uma identidade prpria e que no precisa ser moldado em outra identidade. O eu-potico indgena quer viver da identidade e da memria indgena, do resgate, quer brilhar no cenrio da histria, quer resgatar a memria. Embora desplazados, ou seja, deslocados, os indgenas no querem diviso entre os seus, mas, sim, viver na tessitura do acolhimento, da unidade. A identidade e a memria mencionadas no decorrer do poema descende de geraes e a voz coletiva quer preservar esses elementos, que so essenciais para a renovao e preservao da ancestralidade.
O poema Eu no tenho minha aldeia, por sua vez, tambm apresenta elementos memoriais e identitrios, a voz lrica proclama atravs de carter autobiogrfico o fato de no ter uma aldeia[42]. A cada estrofe do poema podemos perceber a voz do eu lrico de carter feminino proclamando que, embora no tenha nascido na sua aldeia, a herana espiritual e ancestral dos antepassados ela possui, est sempre a acompanhando. E, acima de tudo a voz potica clama por tolerncia, respeito, amor e solidariedade, valores estes que os povos indgenas possuem e reforam a identidade de sujeitos que vivem na coletividade, herana dos ancestrais, como podemos ver na estrofe a seguir:
Eu no tenho minha aldeia
Minha aldeia minha casa espiritual
Deixada pelos meus pais e avs
A maior herana indgena.
Essa casa espiritual
onde vivo desde tenra idade
Ela me ensinou os verdadeiros valores
Da espiritualidade
Do amor
Da solidariedade
E do verdadeiro significado
Da tolerncia (POTIGUARA, 2019, p. 151).
Este poema possui um carter autobiogrfico.
Tendo nascido no Rio de Janeiro e sendo criada por sua av, uma matriarca
indgena Potiguara, a voz de Eliane se iguala voz do poema, quando diz: Eu
no tenho minha aldeia, mas, em seguida, menciona que a sua aldeia a casa
espiritual; assim, entendemos que esta casa a av Maria de Lourdes, a herana
indgena com quem ela tanto esteve, desde a tenra idade e com quem aprendeu os
verdadeiros valores Da espiritualidade/ Do amor/ Da solidariedade/ [...] Da tolerncia.
Assim, neste poema, a voz indgena retorna a um
campo memorial, pois, se tratando de uma narrativa com traos autobiogrficos,
retorna ao sofrimento da famlia de Potiguara que, quando ameaada, precisou
sair do Rio Grande do Norte para sobreviver, mas tambm aos campos de diversas
outras famlias indgenas brasileiras que passaram pela mesma situao.
A voz, at ento silenciada, refora na poesia
indgena de Eliane Potiguara que a memria dos ancestrais no se perde, ela se
mantm viva em cada narrativa e reforada em cada verso. O valor herdado dos
antepassados reacende a chama da luta e da busca por respeito, que faz com que
Potiguara enquanto indgena desaldeada possa se autoafirmar mulher indgena, sobrevivente da migrao forada e
militante da causa indgena, esteja onde estiver. assim que a voz potica
conclui o poema:
Ah! J tenho minha aldeia
Minha aldeia meu Corao ardente
a casa dos meus antepassados
E do topo dela eu vejo o mundo
Com o olhar mais solidrio que nunca
Onde eu possa jorrar
Milhares de luzes
Que brotaro mentes
Despossudas de racismo e preconceito
(POTIGUARA, 2019, p. 152).
O eu-potico evidencia que possui uma
ancestralidade viva atravs da memria herdada pelos ancestrais. Por isso, na
tessitura narrativa, enaltece a identidade que comeara a ser formada e afirma
que: Minha aldeia meu Corao ardente / a casa dos meus antepassados.
Assim, reconhece que no est s, mas enxerga tambm que no est imune ao
preconceito, ao racismo. No entanto, sonha com uma sociedade sem intolerncia
em que poder cantar a voz ancestral, livre de julgamentos e condenaes dos
homens brancos.
Algumas consideraes: outras toantes
As textualidades indgenas escritas carregam em
si as marcas da oralidade. As narrativas indgenas fazem parte de uma ao
hbrida, na qual, oralidade e escrita se entrelaam. Metade cara, Metade mscara, por exemplo, traz muito dessa hibridez
tanto nos diferentes gneros, quanto nas memrias orais que Eliane Potiguara
herdou de sua av Maria de Lourdes.
A produo literria de Eliane Potiguara resgata
memrias e sensaes, carrega a marca da migrao, do sofrimento enfrentado por
sua famlia, meios dos quais retira tambm a fora para escrever em memria de
seus avs, dos seus ancestrais, dos ancios. Trata-se de uma escrita
identitria, memorial e ancestral, que desvincula a imagem do indgena das
propostas coloniais, do homem branco e proclama a beleza do povo indgena. Os
poemas presentes em Metade cara, Metade
mscara evocam memrias coletivas que foram herdadas por Eliane de sua av,
que por sua vez herdou dos seus antepassados, assim, so memrias de processos
acumulativos.
Com isso, seja na prosa ou no verso, ler Eliane
Potiguara mergulhar pelos espaos dos Potiguara do Rio Grande do Norte,
passar tambm pelos aprendizados enquanto ela estava trancada no quarto com sua
av no Rio de Janeiro, perceber a luta identitria pela autoafirmao
indgena, pensar tambm na luta pelos direitos humanos, das mulheres indgenas,
problematizar o racismo e o preconceito e o genocdio dos parentes.
Assim, a
escrita de Eliane Potiguara, e, aqui mais precisamente, a poesia dessa mulher
indgena, metaforicamente, rio a ser mergulhado. Ao mergulharmos nos rios do
Nordeste e do Sudeste atravs de suas memrias, podemos evidenciar que a poesia
de Eliane Potiguara proclama a luta do seu povo e o valor identitrio de ser
indgena, o que um dia esteve na memria (e ainda est) agora chega tessitura
narrativa escrita e nos leva a banhos necessrios de ancestralidade.
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ZUMTHOR,
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Ctedra, 1989
[Recebido: 16 ago 2020
– Aceito: 02 jul 2021]
... MESMO QUE NOS ARRANQUEM OS DENTES E
A LNGUA.: A POTNCIA PER-FORMATIVA DA LITERATURA DE ELIANE POTIGUARA[43]
... EVEN IF THEY
PULL OUR TEETH AND TONGUE.: THE PER-FORMATIVE POTENCY OF THE LITERATURE OF
ELIANE POTIGUARA
Renata Daflon
Leite[44]
https://orcid.org/0000-0002-2498-779X
Resumo:
Discute-se o tema da
ancestralidade nas narrativas da autora Eliane Potiguara, relacionando-o
defesa de uma poltica da existncia, destacando, assim, o aspecto ritualizado
dessa literatura que se desenvolve na tnue fronteira entre a oralidade e a
escrita. Parte-se da escrita de Eliane Potiguara para apontar a conquista de um
espao que vem se firmando enquanto prtica permanentemente articulada em redes
de saberes indgenas como o Grumin – Grupo Mulher-Educao Indgena,
surgido na dcada de 80, constituindo polticas de resistncia objetivas.
Ressalta-se o quanto o carter social e tico da literatura indgena pode nos
estimular a fazer aproximaes com o Campo de Estudos da Performance, por meio
da investigao de Diana Taylor sobre Memria Cultural nas Amricas. Destaca-se
o aspecto de inovao deste gnero literrio que nasce articulado com o
movimento indgena, tendo a singularidade de afirmar-se enquanto criao que
redimensiona os aspectos polticos da prosa, da poesia, de cartilhas educativas,
do desenho e da literatura de testemunho, nos quais a ancestralidade fundamenta
a ao poltica.
Palavras-chave: Literatura indgena. Ancestralidade.
Performances polticas.
Abstract:
It discusses the theme of ancestry
in the narratives of the author Eliane Potiguara, relating with the defense of
a politics of existence thus highlighting the ritualized aspect of this
literature that develops in the tenuous border between orality and writing. It
starts from the writing of Eliane Potiguara to point out the conquest of a
space that has been established as a practice permanently articulated in
networks of indigenous knowledge such as GRUMIN, the Group of Indigenous
Women-Education that emerged in the 80's, constituting as an objective
political resistance. It is noteworthy how much the social and ethical
character of the indigenous literature can stimulate us to make approximations
with the Field of Performance Studies, through the investigation of Diana
Taylor on Cultural Memory in the Americas. The innovation aspect of this
literary genre is articulated with the indigenous movement, with the
singularity of being affirmed as a creation that reshapes the political aspects
of prose, poetry, educational booklets, drawing and testimonial literature,
where the ancestry grounds the political action.
Keywords: Indigenous
Literature. Ancestry. Political Performances.
Foram muitas vidas
violadas, culturas, tradies, religies, espiritualidade e lnguas. A verdade
est chegando tona, mesmo que nos arranquem os dentes! O importante
prosseguir. comer caranguejo com farinha, peixe seco com beiju e mandioca.
olhar o mar e o cu. E reverenciar os mortos, os ancestrais. sonhar os sonhos
deles e v-los. conviver com as manias de caboco, mesmo que sufocados pela
confuso urbana ou as ameaas agrestes, porque na realidade so as relaes
mais sagradas de nosso povo, porque so relaes com a terra e com o criador,
nosso Deus Tup. Bonito vestir os trajes do Tor e honrar-se como se vestisse
os trajes dos reis e senti-los como a expresso mxima das relaes entre o
homem, a terra e Deus. sentir o sagrado e o universo. O importante crer e
confiar mesmo que na noite anterior violaram nossa casa ou nosso corpo
(POTIGUARA, 2004, p. 79-80).
A literatura como expanso
de um grito estrangulado
A literatura indgena apresenta-se como
um espao poltico-cultural em contnuo movimento, deixando-nos entrever uma
relao tensional-criativa tanto entre escrita e oralidade, quanto entre
poltica e ancestralidade, ao evidenciar em sua transmisso um processo em que
as performances de resistncia poltica esto imbricadas nas performances
rituais tradicionais. Um livro escrito por um autor indgena uma obra que
apresenta a singularidade de ser delineada na tnue fronteira entre o oral e o
escrito, fruto de uma individualidade autoral concebida na partilha e difuso
de uma cosmoviso especfica, reafirmada pelo movimento indgena de
fortalecimento identitrio, preservao e renovao cultural. Lanamos aqui um
olhar para o livro Metade Cara, Metade
Mscara da escritora indgena Eliane Potiguara, por evidenciar uma estreita
relao entre ancestralidade e poltica, a comear pelo ttulo em referncia ao
sinal em cor de jenipapo que a autora traz no rosto. Nascida com uma mancha
roxa no olho direito, identificada pelos Kaiaps como marca de ancestralidade,
a autora nos conta que teve sua espiritualidade reacendida pelo cacique Joo
Batista Faustino, que lhe dizia que o pssaro Pitiguary cantava sempre que ela
se aproximava. O canto mtico desta ave, conhecida por anunciar a chegada de
quem tem uma misso na Terra, envolve, assim, as palavras da escritora numa
espacialidade fecundada pelas mltiplas vozes coletivas da tradio
redescoberta. Na apresentao da obra, feita por Daniel Munduruku, podemos ler
que o movimento indgena nasce de um primeiro exerccio de expresso da
prpria dor, de um momento de liberdade, ainda que ilusrio; um timo de
futuro. Ele nos lembra que agora hora de ler as palavras que foram ditas ao
papel, j que dos primeiros lderes muito se viu e ouviu, mas pouco se leu (MUNDURUKU, 2004, p. 15-16).
interessante destacarmos tambm a introduo feita por Graa Grana, na qual o
livro visto como exemplo de uma literatura que expande o seu grito, dos mais
excludos, e tece a esperana de poder refletir os problemas dos povos
indgenas e seus descendentes (GRANA, 2004, p. 17).
Defendemos aqui que a performatividade
dessa escrita est em resgatar o espao sagrado da fala ancestral, reiterando
prticas espiritualizadas, antes restritas a oralidade e defendendo o direito
de exerc-las, por meio de um posicionamento poltico em que a subjetividade do
autor est profundamente implicada, conforme podemos ler na epgrafe:
No dia em que eu
conseguir abrir as pginas de minhalma e contar essas linhas de meu
inconsciente coletivo – com alegrias ou dores, com prazeres ou
desprazeres, com amores ou dios, no cu ou na terra – a sim, vou soltar
a minha voz num grito estrangulado, sufocado h cinco sculos. Quinhentos anos,
de pretenso reconhecimento de nossa cidadania, no pagam o sangue derramado
pelas bisavs, avs, mes e filhas indgenas deste pas. Este dia certamente
chegar, mesmo que eu esteja em outros planos (POTIGUARA, 2004, s/p).
A narrativa de Eliane traz tona
memrias que foram apagadas pelo colonialismo e neocolonialismo, insistindo em
nos fazer ver aquilo que ela denomina como sendo o incio da solido das
mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 24). A autora Potiguara nos lembra os relatrios
do sculo XVIII feitos por Padre Fernandes, em que 2 milhes de ndios Guaranis
foram assassinados em 130 anos, exemplificando com o assassinato de Sep
Tiaraju e mais de 10 mil Guaranis na batalha de 7 de fevereiro de 1756, prximo
a Bag, sudoeste do Rio Grande do Sul:
Sua esposa Marina
(Juara)[45],
levaria s costas a menina recm-nascida que Sep jamais veria. Era o incio da
solido das mulheres, motivada pela violncia, racismo e todas as formas de
intolerncia, referentes inclusive espiritualidade e cultura indgenas
(POTIGUARA, 2004, p. 23).
Este
episdio de extermnio dos Guaranis revela um imaginrio poltico racializado,
que legitima a dominao dos civilizados europeus sobre os povos selvagens,
proclamando, na subjugao do corpo e na coisificao do sujeito indgena, um
princpio de organizao calcado no terror. Mbembe (2018, p. 35) comenta que
as colnias so o local por excelncia em que os controles e as garantias de
ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violncia do estado
de exceo supostamente opera a servio da civilizao. O exerccio de
um poder margem da lei nas colnias provm da negao racial de qualquer
vnculo entre conquistador e nativo. Os selvagens careceriam de humanidade e
quando os europeus os massacravam no tinham conscincia de cometerem um crime.
Na colnia, o direito soberano de matar no est sujeito a cdigos legais e
compe uma ocupao sociopoltica, cultural e econmica, baseada na
classificao das pessoas de acordo com diferentes categorias, donde emergem
zonas e enclaves que do margem uma territorialidade restrita. Na
contemporaneidade, o exerccio do direito de matar no se restringe s guerras
territoriais de conquista-anexao da modernidade, espraiando-se em um mosaico
de direitos de governar sobrepostos que visam a sujeio e a coero do
colonizado (MBEMBE, 2018).
Quijano (2015, p.122-126) estabelece que
a colonialidade do poder eurocentrado surge na constituio histrica da
Amrica, culminando no processo de globalizao contempornea, calcada num novo
padro de poder mundial que tem na raa o elemento fundacional de relaes de
dominao exigidas pela conquista e, mais tarde pelas formas histricas de
controle do trabalho, dos recursos e de produtos no mercado mundial capitalista.
O projeto civilizatrio etnocntrico relocalizou as singulares identidades
nativas dentro de um padro cognitivo associado ao passado e ao primitivo.
Vemos em Quijano (2015, p. 127) que o eurocentrismo reduziu as heterogeneidades
culturais astecas, maias, chimus, aimars, incas, chibchas, etc.,
circunscrevendo-as todas sob uma nica identidade: ndios. O mesmo vai
acontecer com os escravos achantes, iorubs, zulus, congos, bacongos, etc, que
a racionalidade colonialista homogeneizaria sob uma nica nomenclatura: negros.
A construo do Estado-nao nas colnias europeias foi trabalhada contra a
maioria da populao composta por negros, ndios e mestios. A colonialidade
do poder ainda exerce seu domnio, na maior parte da Amrica Latina, contra a democracia,
a cidadania, a nao e o Estado-nao moderno (QUIJANO, 2005, p. 135-136).
Eliane comenta que a invaso das terras
indgenas, conveniente para polticas locais, causou desmatamento, assoreamento
dos rios, poluio ambiental e diminuio da biodiversidade local, alm de
trazer fome e empobrecimento compulsrio da populao indgena, levando muitas
famlias migrao, ao trabalho semiescravo e a pssimas condies de moradias
(favelas e casas de palafitas na periferia dos centros urbanos), trazendo
distrbios mentais, alcoolismo e suicdio. Sua anlise crtica prope que a
colonizao e a neocolonizao tambm refletem grupos de interesses religiosos,
que tentam impor um paternalismo eclesistico como forma de racismo,
desrespeitando as tradies culturais indgenas (POTIGUARA, 2004, p. 44).
A
autora Potiguara afirma a cosmoviso das mulheres como um instrumento de
libertao do povo indgena que leva ao despertar do ser sutil, intuitivo e
selvagem no sentido de uma essncia espiritual primeva. Sob esse prisma, o ato
de criao um ato de amor e resgate do selvagem sagrado que j estava
dentro de ns e no sabamos. A criao artstica em todas as suas vertentes,
dentre as quais a literria, emerge como um vulco, uma (r)evoluo do
esprito, um xtase: E esse nico ato de criao o suficiente para alimentar
um oceano, assim como o leite doce e materno de uma jovem me o suficiente
para trazer de volta um ser nascido prematuramente (POTIGUARA, 2004, p. 58).
Estamos diante de uma
escrita-como-veculo, um soltar a voz num grito estrangulado, narrativa que
serve como impulso ao de outras mulheres indgenas. Estes versos cor de
jenipapo saltam da pele do papel, mostrando-nos a saga de uma mulher indgena discriminada,
violentada e vtima de opresso social, mas que guarda consigo a tradio
passada pelas mulheres de sua famlia, conduzindo-a ao que ela chama de
retorno ao inconsciente coletivo (POTIGUARA, 2004, p. 27), quando entra para
o movimento indgena e reacende sua ancestralidade. A palavra escrita,
apreendida dentro de uma lgica de expanso de sentidos, foi por mim trabalhada
em ndios Online: posts que no querem
calar, ressaltando o carter no linear da significao potica endereada
divindade. A densidade da autoria feminina indgena lida, portanto, numa
apreenso deleuziana, na qual o corpo do poema se distende qual plat
ininterrupto.[46]
Dentro desta concepo inspirada em Deleuze e Guattari (1980), a escritura tem
uma corporeidade vibrtil, distendendo-se em agenciamentos que transcodificam e
transduzem as cosmovises indgenas, compondo foras centrfugas errantes por
onde a voz de Eliane reverbera. Os gradientes de intensidade do poema ganham a
colorao de uma escrita cor de jenipapo que se espraia pela superfcie
textual, fazendo ecoar vozes e paragens que se inscrevem, como marcas na pele.
A palavra rememora este grito estrangulado que habita, por exemplo, o poema Nossa Casa Ancestral:
At que um dia
Os nossos filhos mortos, nascidos, e renascidos
Possam relembrar do olhar, docemente,
Da luz envolvente
E da tinta de jenipapo
Cravada pelo Grande Esprito em nossa cara
(POTIGUARA, 2004, s/p).
O
ato de ler percorre, assim, as potncias poticas de uma escrita-veculo,
impulsionado no por uma significncia unvoca, mas sim pela multiplicidade de
sentidos relembrados no poema. Estamos diante de uma escrita que ausculta o
terreno da palavra renascida, abrindo-se para uma cartografia poltica da voz
feminina indgena.
Podemos enxergar uma escrita-denncia no
relato do episdio de assassinato do bisav da autora, consumado por ao da
famlia inglesa colonizadora X:
Conta-se que ndio X,
pai das meninas Maria de Lourdes, Maria Isabel, Maria das Neves e Maria
Soledad, por combater a invaso s terras tradicionais do Nordeste, foi
assassinado cruelmente, segundo palavras de uns velhos que encontrei um dia.
Amarraram-lhe pedras aos ps, introduziram-lhe um saco cabea e o
arremessaram ao fundo das guas do litoral paraibano (POTIGUARA, 2004, p. 24).
Crueldade que provoca a migrao da
famlia para Pernambuco em 1928, quando nasce sua me Elza, filha de Maria de
Lourdes, sua av violentada sexualmente aos 12 anos pelo colonizador. Pouco
tempo depois, a famlia migra para o Rio de Janeiro, permanece por um tempo nas
ruas, at que Maria de Lourdes, Ғndia, mulher, analfabeta, paraibana,
nordestina e j separada do homem que lhe fez mais dois filhos (POTIGUARA,
2004, p. 24-25) consegue trabalho, estabelecendo-se numa zona degradante da
cidade. Elza passa a tomar conta de seus dois irmos, e oito anos depois a
jovem se casa e tem dois filhos, mas seu marido atropelado e ela repete o
destino solitrio de sua me. Quando Eliane j tinha 6 anos de idade, sua av,
que ela descreve como mulher indgena, analfabeta, paraibana, nordestina e
agora quase mo-de-obra escrava nas feiras cariocas (POTIGUARA, 2004, p. 25),
inicia seu processo de criao para ajudar sua me que trabalhava como
faxineira numa firma, sendo educada e mantida a sete chaves num quarto semiescuro
para preservar sua identidade moral, fsica e psicolgica, j que viviam numa
rea socialmente comprometida. A av curandeira tratou de seus tumores alojados
um no olho e outro no mamilo com uma mistura de minhoca amassada, teia de
aranha e visgo de jaca. Quando conseguiam, comiam caranguejo e caldo de
farinha. A menina cresceu ouvindo as histrias indgenas contadas por sua av e
tias que, mesmo separadas de suas terras originais e violentadas cultural e
fisicamente, souberam preservar seus laos com a cosmologia ancestral.
A encarcerada domiciliar cresce, torna-se
professora primria, entrando em contato com a Filosofia da Educao de Paulo
Freire e, incentivada por sua av e pelo cantor de origem indgena Charrua,
Taiguara, com o qual se une em 1978, faz seu retorno ao inconsciente
coletivo, visitando naes indgenas e perseguindo a histria de sua famlia.
Ela entra para o movimento indgena e, por arquitetar polticas de resistncia
denunciando o trgico impacto do arrendamento de terras indgenas, sofre abuso
sexual, difamao e ameaas de morte, sendo levada a Polcia Federal e liberada
aps uma ao de solidariedade do Pen
Club da Inglaterra e da organizao internacional Escritores na Priso,
ao indicada por Genaro Bautista, ndio mexicano coordenador da AIPIN (Agncia de Imprensa Indgena).
Eliane, ao narrar a sua histria, tira-a
da penumbra e do processo de apagamento da memria, lembrando-nos, no entanto,
que este apenas mais um dos casos de vtimas de violncia e racismo que permanecem
invisibilizados, assim como a situao de mulheres indgenas que sofrem abuso
sexual e se tornam vtimas de trfico de mulheres. Entramos em contato com os
testemunhos que Eliane escutou ao longo de sua luta pela garantia dos direitos
indgenas, como, por exemplo, o da velha louca que foi violentada sexualmente
na infncia nos anos 1940 por um colonizador que depois fugiu, deixando-a a
espera de seu homem-peixe: Eu estava em casa sozinha, cozinhando; entrou um
homem-peixe em minha casa e me tomou o esprito e partiu (POTIGUARA, 2004, p.
44-45).
Outros arquivos, outros
repertrios: o roteiro do descobrimento e a questo do apagamento
O Campo de Estudos da Performance pode
nos ajudar a entrever as disputas presentes na construo da memria cultural
por intermdio da literatura indgena, trazendo elementos para enfocar os
aspectos criativos e polticos de inscrio e conquista da palavra indgena no
mundo. Taylor (2013) nos diz que as performances funcionam como atos de
transferncia vitais, transmitindo o conhecimento, a memria e um sentido de
identidade social, por meio do que Schechner (2003, p. 27) denomina
comportamento restaurado ou comportamento duplamente exercido. Este artigo
trabalha a performance como uma lente metodolgica que alarga e distende as
possibilidades de leitura crticas do livro de Eliane Potiguara, entendendo sua
escrita como fruto da performatizao diria na esfera pblica de sua
resistncia poltica e de suas identidades tnicas e de gnero, funcionando
como um eco dos acontecimentos performativos, uma escrita-ao. Sua voz emerge
como fruto das muitas memrias incorporadas transmitidas autora no colo de
sua av indgena enquanto faziam juntas bolinhas de farinha e caldo de
caranguejo com a mo, bem como de todo o sofrimento e discriminao que
testemunhou ao longo da vida. Trata-se de uma escrita fruto de suas prticas
incorporadas extremamente fecunda e potente, apontando para um despertar de
conscincias.
A literatura indgena vai na contramo de
uma escrita de mo nica, de um saber que ns,
acadmicos, produzimos sobre eles, os
ndios; trata-se de um espao de criao e circulao de conhecimentos que
rompe o paradigma eurocntrico e logocntrico das universidades,
apresentando-se como via de acesso a um outro modelo, afinal, as prticas
culturais indgenas, profundamente marcadas pela transmisso do conhecimento
incorporado, aparecero tambm na palavra escrita. Escrita-ao?
Escrita-memria? Que espao essa literatura que expande o grito dos excludos
reivindica ao contar sua prpria histria e que prticas colonialistas ela
denuncia? Que territrios ela desestabiliza?
Diana Taylor, em seu livro O arquivo e o repertrio: performance e
memria cultural nas Amricas, debate as noes de arquivo e repertrio
como formas de transmisso de conhecimento, lembrando-nos, no entanto, que a
memria arquivstica composta por textos e documentos no imune a mudanas,
podendo ser ressignificada ao longo do tempo. O repertrio, por sua vez, encena
a memria incorporada a partir do ritual, da performance e da oralidade, atos
geralmente vistos como conhecimento efmero, no reproduzvel, mas
imprescindvel sublinhar que as diferenas entre as duas formas apontam muito
mais para um campo tensional do que um conjunto binrio antagnico.
Ao delinearmos a performance enquanto
lente metodolgica e enfocarmos a literatura indgena enquanto escrita-ao,
entendemos, enfim, que ela prope um movimento entre o livro e o campo,
colocando em xeque a separao entre arquivo e repertrio, ao abarcar o
repertrio de conhecimentos incorporados na forma textual do arquivo, no como
objeto de anlise, mas por meio do fluxo performativo das palavras ditas ao
papel, o livro sendo visto como campo performativo.
O texto literrio indgena funda um
espao de fala que traz para o papel as memrias que antes estavam apagadas,
apresentando uma dinmica em que a emergncia da palavra escrita leva a uma
valorizao da palavra oral, em que as performances de resistncia, manuteno
da tradio e luta pela garantia dos direitos indgenas, sustentam e
impulsionam a propagao do arquivo textual e vice-versa.
A partir do campo de estudos da
performance, esta textualidade pode ser lida para alm da palavra, enquanto
atitude cultural, fruto de prticas culturais incorporadas verbais e no
verbais. Taylor (2013) prope trabalhar com roteiros ao invs de textos,
enquanto paradigmas de construo de sentidos que carregam um arcabouo
porttil de repeties cumulativas que moldam e ativam dramas sociais. O
roteiro coloca os espectadores dentro de sua moldura, enredando-nos em sua
tica e poltica (TAYLOR, 2013, p. 67). Os poemas de Eliane transmitem
conhecimento e memria ao propor a encenao de roteiros no-hegemnicos
dotados de corporeidade, afinal, impossvel pensar sobre a memria cultural
e a identidade como desincorporadas (TAYLOR, 2013, p. 134). O poema dedicado
s vivas indgenas, No dia que mataram Maral Tup-Y (ou no dia que
mataram nossos avs ou quando eles desapareceram), fala de uma tristeza
cor de prata, de um amor doido, um amor das matas proclamado na solido de
uma mulher que prossegue sua luta:
CONSCIENTE
Que jamais se cala...
Mesmo se lhe arranquem
os dentes
Ou se lhe cortem a
garganta gritante! (POTIGUARA, 2004, p. 73).
No captulo Angstia e desespero pela
perda das terras e a ameaa cultura, s tradies, ns nos deparamos com
a rememorao das palavras de Maral Tup-Y quando ele esteve no Sul do Brasil
em 18 de abril de 1977: Eu no fico quieto no! Eu reclamo... Eu falo... Eu
denuncio!.... Potiguara (2004) pontua que esta liderana foi assassinada em 25
de novembro de 1983, fato que remete ao assassinato do bisav da autora,
levando-nos a encarar frente a frente a foto da bisav de Eliane, Maria de
Lourdes, que aparece na dedicatria da obra, como uma mulher consciente e que
jamais se calou, apesar de carregar uma tristeza cor de prata. A palavra
incorporada desta escritora indgena composta de mltiplas camadas de
sentido, fruto de experincias que vivenciou quando em 1995 viajou pelo
interior da ndia com o Programa de Combate ao Racismo, descobrindo prticas de
violncia s mulheres, que tinham como punio serem queimadas vivas pelos
homens em suas prprias cozinhas, bem como de sua luta em defesa dos direitos
reprodutivos da mulher indgena, de sua convivncia com velhos pajs e caciques
de diversos povos indgenas, dos ensinamentos ancestrais passados por sua av
ou ainda de seu trabalho na Subcomisso de Direitos Humanos da ONU em Genebra
ou dos inmeros fruns nacionais e internacionais sobre direitos indgenas que
participa.
A autora Potiguara nos convida a refletir
sobre a estreita relao entre poltica e ancestralidade quando diz que a
libertao do povo indgena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade
e pela cosmoviso das mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 46), esclarecendo-nos que
se trata de uma mulher selvagem, no no sentido primitivo da palavra, mas uma
mulher sutil, uma mulher primeira, que no est condicionada a transmitir o
esprito de competio e dominao da sociedade contempornea. Eliane prossegue
e afirma que o poder dela outro: Seu poder o conhecimento passado atravs
dos sculos e que est reprimido pela histria (POTIGUARA, 2004, p. 46). A
criao artstica espiritualizada promove uma ao poltica de fortalecimento
tnico-identitrio e a conquista de um espao de expresso, impulsionando o
autor indgena a perpassar os sculos como um porta-voz do conhecimento
ancestral.
Podemos considerar que o ato de escritura
e propagao da palavra ritualizada no mundo seria capaz de promover um furo no
territrio competitivo de alto rendimento-eficcia-produtividade, consistindo,
assim, num ato essencialmente poltico. Eliane Potiguara prope a transformao
do sofrimento e do esfacelamento, por meio da purificao do esprito no ato
criador, neste sentido ela vai alm e afirma uma poltica da existncia:
Tudo isso simplesmente
poltica, a poltica da existncia. CRIEMOS, ento... porque a criao um ato
divino que tende a mudar conscincias, formar opinies, suavizar o
individualismo que ronda as mentes (POTIGUARA, 2004, p. 58).
Trata-se
de uma literatura que faz emergir o espao sagrado da fala, mas no podemos
esquecer que so as mulheres as guardis da palavra ancestral, como Potiguara
(2004, p. 59) nos lembra: E a palavra delas sagrada como a terra que d o
alimento ao prximo, alimento da CURA em todos os sentidos. Em seu poema Ato de Amor Entre os Povos, temos dois
personagens, Jurupiranga e Cunhata, que perpassam o tempo e o espao para
falar da sobrevivncia colonizao e neocolonizao. a saga de Cunhata
que, aps vivenciar o desterro pelo assassinato de Jurupiranga, lembra-se de
sua identidade caminhante gerada no fogo eterno do tero de seus avs, como
enunciado nos versos da autora indgena:
Porque minha identidade
pra renascer
A qualquer instante
Basta um fio de luz
(POTIGUARA, 2004, p. 64).
Ao percorrermos a narrativa de Eliane,
damo-nos conta da fecunda dcada de 80, quando ela se articula politicamente
com outras lideranas com o intuito de resgatar e preservar a identidade
indgena. O Grumin (Grupo Mulher-Educao Indgena), hoje Grumin/Rede de Comunicao Indgena
surge como um espao de livre expresso, circulao de saberes e de organizao
pela garantia dos direitos indgenas, concebido em 1978 e criado juridicamente
em assembleia em 1987. No fim da dcada de 80, Eliane editou com o Grumin uma
cartilha de apoio alfabetizao dos indgenas da etnia Potiguara, na qual
podamos ler: ҃ preciso sorrir, preciso criar quando estamos na luta pela
sobrevivncia e preservao cultural, mesmo que nos arranquem os dentes ou a
lngua (POTIGUARA, 2004, p. 99). O material, com financiamento da UNESCO e
apoio da UERJ, procurava discutir a realidade cultural de seu povo, incluindo a
questo da discriminao a que este estava sujeito. O grupo teve o papel
pioneiro de levantar a bandeira da invisibilidade da mulher indgena, bem como
dos indgenas ressurgidos, discutindo temas como sade e direitos reprodutivos,
questes vistas como pertencentes a feministas no-indgenas. Eliane Potiguara
atuou incansavelmente, sobretudo entre 1988 e 1996, buscando promover o acesso
informao e o exerccio de empoderamento, por meio de muitas estratgias
descritas pela autora, tais como:
Cursos de Capacitao,
Consultas Nacionais, os Seminrios sobre Famlia e Cidadania, sobre Direitos
Reprodutivos, as feiras de artesanatos, os projetos de desenvolvimento
comunitrio, as cartilhas, jornais, panfletos, livros de conscientizao contra
o alcoolismo, contra a violncia, contra a desinformao, contra o
analfabetismo, contra a ignorncia de no se querer preservar e resgatar a
identidade indgena (POTIGUARA, 2004, p. 50).
Neste sentido, as atitudes culturais
per-formadas ao longo da vida de uma liderana indgena no espao pblico
aparecem restauradas e ressignificadas em sua escrita, sendo redimensionadas
pela utilizao da poesia. Podemos dizer que o estigma de atraso cultural
associado s culturas indgenas difundido no cotidiano, seja na comemorao
romantizada do Dia do ndio nas escolas – onde as crianas da sociedade
envolvente se cobrem de penas e cocares, desenhando canoas e arcos e flechas
para satisfao dos pais e professores que multiplicam ad infinitum as mesmas poses, gestos, cenrios e indumentrias em
murais imutveis; seja pelo uso indiscriminado do termo genrico ndio,
que encobre o apagamento das nuances e multiplicidades culturais indgenas;
seja na naturalizao de assassinatos, torturas, abuso sexual e violao de
direitos humanos cada vez mais invisibilizados pela mdia majoritria.
Desta forma, o neocolonialismo
sustentado pela incansvel encenao e reencenao do roteiro hegemnico da
conquista que propaga antagonismos, dualidades, vencedores e vencidos, numa
distribuio de cartas marcadas e papis estereotipados que mesmo j tendo uma
concluso previamente determinada ainda encanta plateias no mundo inteiro,
sustentando e fomentando a dominao. A cada novo espao praticado pelos
indgenas, no apenas na literatura, mas tambm na msica, na poesia, no
cinema, nos blogs, jornais, rdios e webrdios
indgenas, o movimento de reafirmao identitria e tnica d mais um passo,
caminhando na contramo do famoso roteiro da conquista ou roteiro do
descobrimento, borrando indumentrias, papis e cenrios previamente desenhados
para propor novos arquivos e repertrios praticados pelos agentes culturais
indgenas.
Taylor (2013, p. 94) pontua que o roteiro
do descobrimento no tem original: Ele sempre uma citao, uma cpia da
ltima cpia. A carta de Colombo coroa espanhola, relatando sua primeira
viagem ao Caribe em 1493, bem como o resumo do dirio de Colombo escrito por
Bartolom de las Casas em 1552, desapareceram do arquivo, fundando uma
documentao baseada na reproduo de cpias que performatizam eternamente o
show inaugural estrelado pelo descobridor, diante de um pblico ilegtimo de
espectadores no autorizados descritos na carta como Ғndios e um pblico
legtimo de europeus que testemunham o movimento de fincar a bandeira no solo
conquistado. O ato de transferncia inclui o rei e a rainha como destinatrios
e beneficirios do ato de transferncia de posse, os espectadores no
autorizados como objetos transferveis e Deus como espectador mximo da
cerimnia (TAYLOR, 2013).
Em todos os lugares que os exploradores
desembarcavam, repetiam-se variaes desse roteiro, autenticando a perspectiva
do descobridor, como podemos ver na permanente encenao da conquista do
Mxico:
O roteiro da conquista
tem sido encenado repetidas vezes – desde a entrada de Corts em
Tenochtitln at o encontro entre Pizarro e Ataualpa, ou a declarao de posse
do Novo Mxico por Oate. Cada repetio acrescenta algo ao seu poder afetivo e
explicativo at o resultado parecer uma concluso previamente determinada. Cada
novo conquistador pode esperar que os nativos caiam a seus ps simplesmente
devido fora do roteiro reativado (TAYLOR, 2013, p. 64).
Podemos,
no entanto, escolher seguir os roteiros da conquista como prticas reiteradas
disseminadas em escolas e na mdia majoritria ou criticar os roteiros,
apontando suas brechas, falhas e memrias submersas. Esta segunda opo
aparece, por exemplo, quando Eliane sublinha a particularidade do incio da
solido das mulheres, apontando no roteiro histrias que foram silenciadas
pela prtica de reativao de um roteiro padro, trazendo para o foco vozes que
foram caladas, como a da criana-velha-louca que passou a vida esperando seu
homem-peixe colonizador, ou a de muitas Marinas, Juaras e Marias de Lourdes
obrigadas a migrar com suas crianas s costas para vivenciar o racismo
cotidiano. Que sistemas significantes e econmicos, porm, mantm essas vozes
silenciadas? Taylor prope que, ao identificarmos o roteiro, reflitamos sobre a
eficcia de sua re-encenao:
Como um sistema
paradigmtico de visibilidade o roteiro tambm assegura a invisibilidade. Ainda
h mais razo para nos perguntarmos, ento, por que esse roteiro continua a ser
reencenado e por que ele ainda exerce tanto poder. (TAYLOR, 2013, p.92)
Podemos
depreender de Taylor (2013, p. 100-101) que o roteiro situa o descobridor como
aquele que v e que nunca se sente obrigado a se descrever ou a se situar; j
os amerndios, apesar de presentes fisicamente, so reconhecidos apenas para
serem desaparecidos nesse ato. A objetificao do corpo primitivo reafirma a
supremacia cultural do sujeito que v, legitimando toda uma indstria de
especialistas em lnguas ou etnografia que, assim como Colombo, se sentem
capazes de interpretar as performances do nativo. Diante da reprodutibilidade
de corpos no falantes institudos pelos roteiros hegemnicos, a voz de Eliane
nos apresenta um roteiro no-hegemnico que difere da unilateralidade da
conquista dos dominantes sobre os dominados para situar-se no como aquela que
v, mas como aquela que per-forma a prpria memria a partir das experincias
vivenciadas. O assassinato do ndio X pela famlia colonizadora inglesa X
reencena o assassinato de Sep Tiaraju em 1756; da mesma forma, as solides de
Maria de Lourdes e Marina (Juara) rememoram o assassinato de Maral Tup-Y e a
dor das vivas indgenas que jamais se calam, mesmo se lhe arranquem os
dentes. A cartilha de alfabetizao, editada pelo Grumin no fim da dcada de
80, modifica os roteiros hegemnicos de apagamento, subvertendo letramentos
verticalizados exteriores realidade cultural Potiguara, para propor a
discusso da discriminao e a conscientizao poltica. Eliane testemunha,
sujeito e participante do ato de transferncia vital da memria cultural
passada em sua literatura. Ela no apenas uma observadora impassvel, pois,
ao descrever o mundo o modifica no ato divino da criao, propondo nas
simbologias das personagens Cunhata e Jurupiranga novas espacialidades para as
identidades indgenas ressurgidas.
Re-inventando a
Ancestralidade, apesar das Performances de Poder
Em oposio s constantes performances de
poder, encontram-se as memrias incorporadas que compem a identidade indgena,
sendo continuamente performadas a cada ao ritual e cotidiana, trazendo em si
a continuidade da histria ancestral. Os roteiros da conquista representam
muitas vezes as performances de dominao e opresso, baseadas e sustentadas
pelo antagonismo e pela dominao do Eu sobre o Outro. As performances rituais
so movidas por uma necessidade inelutvel de contnua reafirmao identitria
atravs da honra memria dos ancestrais de um povo. A autoafirmao tnica
no se faz em oposio ao Outro, mas sim pelo encontro com uma cosmoviso que,
por estar acima de qualquer binarismo, sabe apenas seguir seu percurso e manter
sua fora motriz e vital, como podemos ler nesses versos do poema Identidade Indgena:
Nosso ancestral dizia:
Temos vida longa!
Mas caio da vida e da
morte
E range o armamento
contra ns.
Mas enquanto eu tiver o
corao aceso
No morre a indgena em
mim
E nem tampouco o compromisso
que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha
gente passo a passo
E firme, em direo ao
sol.
Sou uma agulha que ferve
no meio do palheiro
Carrego o peso da
famlia espoliada
Desacreditada,
humilhada.
Sem forma, sem brilho,
sem fama. [...] Mas a conscincia se levanta a cada murro
E nos tornamos secos
como o agreste
Mas no perdemos o amor.
Porque temos o corao
pulsando
Jorrando sangue pelos
quatro cantos do universo.
Eu viverei 200, 500 ou
700 anos
E contarei minhas dores
pra ti
Oh! Identidade (POTIGUARA, 2004, p. 102-103).
A identidade , ento, o que mantm o
pulsar do corao e a conscincia indgena, no sendo, de forma alguma, fruto
de um roteiro reencenado para dominar o Outro. Apesar do peso da famlia
espoliada, a reconstruo identitria traz em si a fora motriz que permite
caminhar em direo ao sol e honrar o compromisso assumido perante os
mortos. a ancestralidade que mantm a identidade indgena e esta que
reativa perpetuamente a memria ancestral. Quando em 1990 Eliane vai ao 49
Congresso dos ndios Norte-Americanos entregar um dossi sobre a situao
indgena brasileira, ela descreve ter experimentado, em meio aos 1.500
indgenas presentes com seus trajes mesclados a milhares de penas de guia, em
horas e horas de danas, o que ela chama de as msicas e os tambores dos
sculos, gerando uma outra sensao espao-temporal: Senti o espao
compartimentar-se, transformando-se em fagulhas do tempo, pequenas gotas areas
coloridas que me enfeitiaram e me colocaram em contato com os ancestrais
(POTIGUARA, 2004, p. 111). Segundo a autora Potiguara, nesta ocasio foi
enviada, pela primeira vez, uma moo s Naes Unidas sobre o extermnio dos
Povos Indgenas do Brasil. Por meio desse exemplo, podemos entrever que a ao
poltica no apenas a moo enviada ONU e o dossi de denncias, mas tambm
os sons imemoriais dos tambores dos sculos, afinal, a afirmao de uma
poltica da existncia o que permite a afirmao identitria.
Em Metade
Cara, Metade Mscara, entramos em contato com uma escrita que
reitera, na poesia, no testemunho e em narrativas, os diversos movimentos de
uma ao poltica que caminha junto a uma esttica da existncia,
constituindo-se tanto de denncias, organizao de grupos de discusso, conscientizao,
luta pela garantia de direitos polticos e representatividade junto a
mecanismos internacionais, quanto de exaltao cultural e ancestral.
A literatura indgena surge enquanto um
espao praticado, em que a agncia cultural de seus autores reafirma a
processualidade deste territrio essencialmente no-normativo, mas sim
afirmativo de uma permanente poltica da existncia, onde a escrita indgena,
enquanto fruto e reflexo da transfigurao da dor em criao, sustenta e mantm
tanto a preservao da oralidade, quanto a renovao da palavra ancestral
inscrita no papel ou no ambiente digital das novas tecnologias. A dinmica de
um corpo orgnico e vivo da cultura indgena continuamente presente nessas
criaes literrias, dilui as fronteiras entre escrito e oral, poltica e
ancestralidade, arquivo e repertrio, preservao e renovao, dissolvendo os
binarismos que sustentam um projeto societrio logocntrico.
A potncia potica da voz de Eliane
compe no uma etnografia descritiva do sujeito indgena urbano, mas sim a
corporificao de sua imagem diante de nossos olhos, a partir de relatos que
apontam para a condio dos indgenas desplazados, denunciando sua
invisibilizao social. Sua escrita cor de jenipapo no nos deixa tapar os
olhos para a misria e o abandono de um indiozinho que escorria pelo bueiro
diante da autora, metade de seu corpo superior debruava-se sobre o meio-fio
da rua e a outra parte jazia cansada, escorrendo pelo esgoto urbano
(POTIGUARA, 2004, p. 93). O relato nos traz um menino de dez anos derretido
feito um relgio de Salvador Dal, com o corpo magro e imundo escorrendo pelo
bueiro, olhinhos de tigre, roupas de mendigo, catando centavinhos. A voz de
Eliane nos permite ouvir a voz do indiozinho que, indagado pela autora, responde
que os meninos de rua lhe roubaram o dinheiro que conseguiu pedindo. Seu tero
de me rosnou, afinal, ele no se considerava um menino de rua e ela estava
diante de uma nova classe social criada pela pobreza: a de pedinte indgena.
Escrita-denncia e cosmopoltica
literria que nos transporta para o plano da fala ancestral cravada na nervura
da folha de jenipapo, que lhe traa os contornos. Escrita que se faz terra,
signo que transcende a palavra, distendendo-a at alcanar a rtmica do Tor
Potiguara e erguer-se em sonho revelado atravs de textos, oraes, poesias e
articulaes polticas dentro do Grumin. Estamos diante de uma escrita
cosmovisiva que nos abre outras dimenses de conscincia moral, tica, poltica
e espiritual. Eliane nos lembra que a palavra da mulher indgena, condicionada
pelo racismo e pelo medo, sobrevive porque sagrada como a terra, alimento da
cura em todos os sentidos. A personagem Cunhata, aps o sofrimento da perda de
suas terras, de sua famlia e de sua conscincia de mulher indgena, no
conseguindo saber o paradeiro de seu homem, v sua dor refletida em pginas de
desterro, que revolvem a identidade perdida na inrcia da prpria existncia
ou em versos que falam da agonia dos Pataxs ou do sentimento Pankararu de ser marginal
das cidades, das famlias e das palhoas. Ao retratar as gotas rubras do sangue
louco e desvairado de um guerreiro desprendido durante o perodo da
colonizao, no poema Tocantins de Sangue, a linguagem potica transpe
o corpo indgena colonial para o contemporneo, conclamando em tom de denncia:
Banha o suor do mundo
Com tua luta
Junta lquidos, faz
crescer
Nossa gente pobre
Nossa vida amarga
Ns _
Decadentes!
Indgenas, no...
Indigentes.
(POTIGUARA, 2004, p.
60).
Esta fora cosmopoltica aponta para uma
palavra fmea que cura porque reacende o inconsciente coletivo ancestral,
beijando as cicatrizes do mundo. Sua letra se levanta para percorrer com seu
corpo palpvel, toda uma trajetria de preconceito no poema Neste sculo de
dor, resistindo espoliada na condio de mulher em febre pra
subexestir, Pra que matem nossos filhos / E os joguem nas valas (POTIGUARA,
2004, p. 61). Em meio a tanta dor, a materialidade de sua voz de mulher
indgena conclama Unio das Naes Indgenas e a uma busca da identidade
adormecida, dizendo no poema Desiluso:
NO morte da famlia / NO perda da terra / NO ao fim da identidade
(POTIGUARA, 2004, p. 64). A memria incorporada de Cunhata, enfim, se rasga,
entoando cnticos de um amor louco e desvairado no poema Velho ndio, ao
mirar a imensido dos sculos por meio dos olhos do amante. Estas palavras
ditadas ao papel nos contam que certa vez o Grande Esprito disse a Cunhata:
Vai ave-menina e mulher! Cria asas e enxergue; um dia, quem sabe, seremos
livres! (POTIGUARA, 2004, p. 67). Eliane-Cunhata cria asas e luta em 1988
dentro da Assembleia Constituinte por entre bocas, dentes, sorrisos, entre o
cheiro do vermelho do urucum que besuntava os cabelos dos Kaiap, liderados por
Megaron, as palhas ressecadas dos indgenas do Nordeste, os olhares de lince
dos Terena e Tukano, os olhares saltitantes dos Guarani e o rosto pintado de
jenipapo de Ailton Krenak. Personagens histricas e mticas perpassam as
pginas da autora, compondo a trama poltica da existncia, entre suas memrias
da Constituinte dedicadas ndia guerreira Dona Marta Guarani e sua lembrana
de tia Severina, anci guerreira Potiguara, a quem a escritora dedica o poema O
Segredo das Mulheres, publicado em 1984 na cartilha de apoio
alfabetizao indgena editada pelo Grumin.
A textualidade aqui se faz textura,
demarcando um territrio, fincando posio: O indgena precisa sair das
paredes, dos museus, das salas de exposio! (POTIGUARA, 2004, p. 94). A voz
de Eliane ecoa a autodeterminao dos povos, lembrando-nos da luta poltica
travada pelo movimento indgena internacional para a criao do Frum
Permanente para Povos Indgenas da ONU. Metade Cara, Metade Mscara faz
uma referncia histrica importante a associaes que deram um pontap inicial
na ruptura com organizaes de cunho paternalista, como a Coiab (Coordenao
indgena da Amaznia Brasileira), inicialmente coordenada por Manoel Moura
Tukano, e a Unind (Unio das Naes Indgenas), criada por Marcos Terena, Mrio
Juruna, lvaro Tukano, Lino Miranha, entre outros. Eliane nos lembra que
territrio cosmologia e no apenas um pedao ou vastido de terras,
integrando a cidadania dos povos ressurgidos, como os Pitiguary, no Cear, os
Catkin, no Alagoas, ou ainda os Porubor de Rondnia, bem como os
ndios-descendentes, em sua luta individual por sua territorialidade indgena.
A escrita Potiguara de Eliane, filha de
um povo comedor de camaro, volteia e dana envolvente no poema Cunhata,
surgindo plena de odores, gostos e sensaes tteis. O leitor se banha nas
guas do Orinoco, espreitando o massacre de Potosi e o canto do pitu, as
letras se movimentam na cadncia de um xaxado, ao sabor do churrasco, do
chimarro, de uma saia de chita e um chocalho bonito que integra a Zamacueca
dos Andes e o Tor do Serto. A escrita se faz audvel, sonora e Eliane nos
reparte carne-de-sol, baio temperado, aa geladinho e uma rede quentinha,
onde o leitor se deita, transportando-se para as libertas Ilhas Galpagos ou
para o Amazonas, ao som das zabumbas e das zampoas. Cada conta de letra de Metade
Cara, Metade Mscara vai tecendo um colar de miangas repleto de
simbologias e matizes por onde a palavra passeia fio a fio, entre coloraes e
estilos literrios. A poesia entremeada pela prosa na qual as personagens
Cunhata e Jurupiranga perpassam debates em torno dos direitos reprodutivos da
mulher e da luta dos indgenas ressurgidos, dialogando com trechos de uma
cartilha de alfabetizao indgena, que prope ensinar no um letramento
enrijecido, mas a corporeidade da letra em seu adensar-se no mundo, onde a
leitura e a escrita aparecem como matrias de expresso cosmopoltica.
Consideraes finais
Entrevemos na literatura de Eliane Potiguara o espao sagrado da fala
inscrito por xams, curandeiras, visionrias, guerreiras e inmeras mulheres
indgenas violadas e subjugadas pela ao colonizadora. O fazer literrio
materializa um grito estrangulado, perpetuando a memria ancestral da
identidade indgena reconfigurada no fluxo performativo das vozes ditas ao
papel, dando corpo a falas submersas. As memrias incorporadas na textualidade
de Eliane se opem s performances de poder, testemunhando uma poltica da
existncia na qual a dor se transfigura em criao e potncia potica.
A escritura feminina indgena surge como cura frente ao esfacelamento,
promovendo a reconstruo identitria ao reencenar o mito de Cunhata e
Jurupiranga, personagens lendrios impulsionados pela fora motriz de uma
identidade caminhante. O mito se encarna na escrita-testemunho dos relatos
sobre a av da autora, Maria de Lourdes, violentada sexualmente pelo
colonizador e obrigada a migrar com a famlia para o Rio de Janeiro. Adentrando
a escritura desta autora Potiguara, percorremos mltiplas camadas de sentido,
em que a histria de sua av, reencena o incio da solido das mulheres, cuja
origem remete ao extermnio dos Guaranis ainda no sculo XVIII, quando Marina,
esposa do lder Sep Tiaraju migra sozinha com sua filha nos braos aps o assassinato
do esposo.
A incansvel trajetria da autora na garantia dos direitos indgenas
redimensiona e ressignifica sua escrita, dando-lhe a dimenso de fala
per-formativa que trilha um caminho oposto reencenao dos roteiros
hegemnicos, apontando em meio normatividade estabelecida, possveis brechas
por onde ecoam mltiplas vozes indgenas capazes de propor outros roteiros e
percursos. Estamos diante de uma literatura incarnada, na qual a memria
cultural tem a potncia potica de uma poltica da existncia, que cultiva a
palavra da mulher indgena como elemento de cura espiritual.
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[Recebido: 04 ago 2020
– Aceito: 9 mar 2021]
AUTOBIOGRAFIAS DE MULHERES CORDELISTAS; UMA
CONTRIBUIO PARA A NOVA HISTORIOGRAFIA DO CORDEL
WOMEN CORDELISTS
AUTOBIOGRAPHY : A CONTRIBUITION TO THE NEW CORDELS HISTORY
Maria
Gislene Carvalho Fonseca[47]
http://orcid.org/0000-0003-3201-1946
Resumo: Este artigo
trata das narrativas autobiogrficas de trs poetas cordelistas: Julie
Oliveira, Izabel Nascimento e Auritha Tabajara. Discutimos aqui sobre como, ao
narrar a si mesmas, elas reescrevem a histria do cordel. Para isso, utilizamos
como referncia a Teoria do Ponto de Vista de Hill Collins (2019, 2019a) e
embasamo-nos metodolgica e epistemologicamente nas perspectivas do feminismo
decolonial apontadas em Curiel (2020), Lugones (2019) e Anzalda (2019). Para
discutir a dimenso do gnero no cordel, apoiamo-nos nos trabalhos de Santos
(2020) e Lemaire (2017, 2018, 2020). Com isso, observamos que preciso nos
voltarmos para as biomitografias e pontos de vista das mulheres cordelistas
para sermos capazes de refletir sobre o universo do cordel.
Palavras-chave:
Cordel. Mulheres. Autobiografias.
Abstract: This article deals
with the autobiographical narratives of three poets: Julie Oliveira, Izabel
Nascimento and Auritha Tabajara. We discuss here how, in narrating themselves,
they rewrite the history of the cordel. For that, we used Hill Collins'
Theory of Point of View (2019, 2019a) as a reference and based methodologically
and epistemologically on the perspectives of decolonial feminism pointed out in
Curiel (2020), Lugones (2019) and Anzalda (2019). To discuss the gender
dimension in the cordel, we rely on the work of Santos (2020) and
Lemaire (2017, 2018, 2020). With that, we observed that It is necessary to turn
to the biomitographs and points of view of the women cordelists in order to be
able to reflect on the universe of the cordel.
Keywords:
Cordel. Women. Autobiographies.
Introduo
Historicamente, as
narrativas produzidas por mulheres vm sendo apagadas da historiografia oficial
– produzida por homens acadmicos, brancos, a partir de conhecimentos
eurocentrados. No caso do cordel, isso no to diferente. As narrativas
tambm priorizam os pontos de vista masculinos, de homens que muitas vezes
esto buscando aceitao do universo acadmico, e que invisibilizam as
produes de mulheres. Sem falar nas formas como as mulheres so tratadas enquanto
suas personagens: estereotipadas como doces e belas, ou como descontroladas e
feias.
A forma possvel de
reverter essa situao a partir do reconhecimento, valorizao e visibilidade
das produes de mulheres. As cordelistas so parte importante e fundamental
para a histria do cordel, para o entendimento de suas perspectivas de tradio
e suas produes reescrevem aquilo que costumamos aprender sobre este universo.
Ao olharmos para as autobiografias das mulheres poetas, estamos olhando para
sua prpria vida, mas tambm para suas aes que afetam e que constituem aquilo
que o cordel contemporneo.
Neste artigo,
observamos como isso se d em cordis autobiogrfico das poetas Julie Oliveira,
Izabel Nascimento e Auritha Tabajara. O objetivo no fazer uma comparao
entre as histrias, mas identificar como cada uma, ao seu modo, ao contar sobre
suas vidas e trajetrias artsticas, tambm registram o tempo e contam a
histria do cordel.
Para essa reflexo,
temos como base terica os estudos sobre a mulher no cordel de Santos (2020) e
Lemaire (2017, 2018, 2020) articulados com a Teoria do Ponto de Vista de Hill
Collins (2019). Nossa anlise est ancorada em uma metodologia feminista
decolonial, descrita por Curiel (2020), e no Pensamento de Fronteiras, proposto
por Anzalda (2019), que nos permitem reconhecer as vozes das poetas como forma
de conhecimento fundamental para o entendimento aqui proposto, buscando nos
versos aqueles elementos que desestabilizam as estruturas narrativas
patriarcais.
A teoria do Ponto de Vista
e as contribuies do pensamento feminista negro de Hill Collins para pensar
o trabalho das mulheres cordelistas
O pensamento feminista
negro tratado por Hill Collins quase um chamamento para todas aquelas cuja
produo de conhecimentos est fora dos centros de reconhecimento. desse
pensamento que emerge a discusso sobre o ponto de vista, conforme nos
apresenta ngela Figueredo. O pensamento feminista negro um conjunto de
experincias e ideias compartilhadas por mulheres negras que envolve
interpretaes tericas da realidade a partir de um ponto de vista (FIGUEREDO,
2017, p. 3) Trata-se de uma convocao para que todas contemos as nossas
prprias histrias a partir de nossas experincias – muitas vezes
subalternizadas por um sistema que hierarquiza saberes e modos de transmisso.
Para Patrcia Hill
Collins, a luta das mulheres afro-americanas para terem suas vozes ouvidas
desenvolveu um ponto de vista autodefinido e coletivo sobre a feminilidade
negra (HILL COLLINS, 2017, p. 3) e isso ajudou a responder sua representao
nos discursos dominantes. Trata-se de uma ao que nos ajuda a pensar sobre as
estratgias de visibilidade de outros grupos, externos queles que se propem
universais, como o caso das mulheres poetas cordelistas do Nordeste
brasileiro.
Para refletirmos sobre
a produo dos cordis autobiogrficos de Izabel, Julie e Auritha como
narrativas que tecem tambm a historiografia do cordel, partimos das discusses
de Hill Collins (2019) sobre a teoria do ponto de vista. A autora
afro-americana traa essa reflexo para falar sobre a importncia do ponto de
vista das mulheres negras ao contarem suas prprias histrias. Tomamos de
emprstimo tal reflexo para falarmos sobre uma manifestao cultural que
marginalizada a partir do olhar do cnone letrado e academicista.
A histria oficial do
cordel, defendida pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel e por
centros de estudo, como a Fundao Casa de Rui Barbosa, vem sendo contada a
partir de uma perspectiva masculinizada, que trata a poesia de cordel como um
ambiente conservador e localizado no espao destinado ao popular no mbito da
literatura. Enquanto no encontrarmos espaos para que as mulheres poetas
contem suas histrias, os seus pontos vistas, no poderemos desestabilizar
essa narrativa normatizadora.
As mulheres
cordelistas so silenciadas em diversos momentos: quando no podem usar seus
nomes como autoras de seus versos; quando no podem participar de disputas e
pelejas; quando os homens afirmam que so poucas e raras as mulheres
cordelistas; quando eles negam o sexismo no ambiente da poesia; quando reservam
uma mesa apenas, como uma espcie de cota que no pode se extrapolada, para a
participao de mulheres nos eventos. a partir desses silenciamentos que
aqueles que dominam a narrativa historiogrfica conseguem se impor. E contra
isso que nos posicionamos.
Assim, a partir de
Deste modo, elas
transformam silenciamentos em linguagem materializada, o que contribui para
evidenciar as relaes de opresso contra as quais as mulheres poetas de cordel
lutam. Suas falas reivindicando espaos mais respeitosos para seus trabalhos,
como durante o movimento #cordelsemmachismo de 2020, geraram reaes de
represlias que exigem estratgias cuidadosas de ao. Nestes termos, essas
narrativas, que emergem de movimentaes e inquietaes, desafiam as opresses
e criam outras histrias possveis.
Segundo Hill Collins
(2019a), a autodefinio, que decorre das narrativas de si, rejeita os
pressupostos de que aqueles em posies poder teriam autoridade e legitimidade
para interpretaes de uma realidade universalizante. Essa discusso aponta
para uma urgncia fundamental ao discutirmos questes de gnero no que dizem
respeito interseccionalidade de raa, de sexualidade e de classe social.
Quando falamos sobre as mulheres poetas de cordel, consideramos sua diversidade
interna. So mulheres negras, indgenas, gordas, lsbicas, bissexuais que so
frequentemente silenciadas em seus espaos de circulao e que tm no cordel um
modo de expresso. Mas, nesse ambiente, elas encontram outros desafios e
necessidades de mobilizaes. Deste modo, imprescindvel que suas
experincias narradas a partir de suas prprias vozes – aqui consideradas
a partir de cordis autobiogrficos – sejam definidoras de outras
histrias possveis sobre o universo do cordel.
Pensar pela dimenso
do feminismo negro e a teoria do ponto de vista no significa que estamos
igualando as experincias distintas de opresses pelas quais passam as
mulheres. Pelo contrrio. A partir desse pensamento, fundamentamos as
especificidades das agendas e demandas que as mulheres, individualmente ou em
grupo, convocam. Rejeitamos um ideal universalista da mulher a partir do que
Lugones (2019) considera como um problema da modernidade europeia: o binarismo
de gnero. Em vez disso, entendemos o que prope Hill Collins (2017):
Inserindo o
adjetivo negro desafia a brancura presumida do feminismo e interrompe o falso
universal desse termo para mulheres brancas e negras. [...] O termo feminista
negra destaca as contradies subjacentes brancura presumida do feminismo e
serve para lembrar s mulheres brancas que elas no so nem as nicas nem a
norma feministas (HILL COLLINS, 2017, p. 13-14).
A partir destas
discusses, podemos entender o poder da autodefinio para a construo de
outras narrativas historiogrficas possveis, que nos levam a transformar a
escrita da histria do cordel. Que passa a ser um espao que, em sua
diversidade, evidencia e se define tambm pelos trabalhos desenvolvidos pelas
mulheres. Neste sentido, narrar a si articula relaes de poder que so
retomadas e assumidas pelas mulheres que contam suas prprias histrias.
Feminismo decolonial
Como uma investigao
que visa contribuir para uma reescrita da histria do cordel, partimos de um
posicionamento epistemolgico feminista e decolonial (ORTIZ OCAA, 2019).
Segundo Curiel (2020, p. 121), as metodologias decoloniais nos oferecem um
pensamento crtico para entendermos a especificidade histrica e poltica de
nossas sociedades, [...] questionam narrativas da historiografia oficial e
mostram como se configuram hierarquias sociais. Entretanto, esta autora aponta
que, em uma perspectiva feminista decolonial, a partir de Lugones (2019), as
colonialidades no so definidas apenas por operadores raciais, mas tambm por
dimenses de gnero e de sexualidade.
Ainda nessa
perspectiva, Glria Anzalda prope um pensamento a partir de uma conscincia
mestia, como algum que rompe as fronteiras e vive o trnsito que entende a
mestia como um produto da transferncia de valores culturais e espirituais de
um grupo para outro (ANZALDA, 2019, p. 324). Este entendimento nos permite
pensar o saber a partir de posies que no podem (ou no deveriam ser)
hierrquicas. Sendo construdo de formas conjuntas, em parcerias, o saber se
faz nas fronteiras entre o eu e o outro/a outra.
La mestiza tem de se
mover constantemente para fora das formaes cristalizadas – do hbito;
para fora do pensamento convergente, do raciocnio analtico que tende a usar a
racionalidade em direo a um objetivo nico (um modo ocidental). Para um
pensamento divergente, caracterizado por um movimento que se afasta de padres
e objetivos estabelecidos, rumo a uma perspectiva mais ampla, que inclui, em
vez de excluir (ANZALDA, 2019, p. 325).
Anzalda (2019) prope
que pensar como mestia no se trata de uma mera juno de pedaos, tampouco
uma juno de foras opostas. Para a autora, a conscincia mestia rompe com
aspectos unitrios e universalizantes e tem o trabalho de desmontar as
dualidades sujeito-objeto, mostrando de que maneira essa dualidade pode ser
transcendida.
Quando pensamos na historiografia
do cordel tradicionalmente compartilhada por instituies oficiais, como a
Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que colocam poetas homens como
protagonistas na produo de folhetos sob o argumento de que haveria poucas
mulheres fazendo poesia, nos vemos diante da necessidade de alguns
rompimentos. H um silenciamento das vozes das mulheres e das narrativas que
destacam sua participao – inclusive daquelas decorrentes de quando se
fazia necessrio que mulheres assinassem seus folhetos com pseudnimos
masculinos, como o caso de Maria das Neves, que assinava com o nome de seu
marido, Altino Alagoano.
Deste modo, pensando a
partir de uma conscincia mestia (ANZALDA, 2019), inquietamo-nos com essa
invisibilidade imposta s mulheres. Imposio que parte de homens, que tambm
so excludos de uma literatura cannica, que almejam um micropoder, cuja
existncia se faz no exerccio de apagamento dos conflitos e disputas de
sentidos presentes e em trnsito nas fronteiras das definies do cordel.
Nossos escritos devem,
ento, ser modos de articular nossas prprias inquietaes e servirem para
evidenciar desestabilizaes de narrativas tidas como dadas. Deste modo, ao
entender que a luta mestia , acima de tudo, uma luta feminista, Anzalda (2019,
p. 330) considera que apesar de sabermos de onde vem o dio masculino e a
consequente violncia contra as mulheres, ns no desculpamos, no toleramos e
no iremos mais tolerar. Segundo a autora, preciso coragem para romper com a
sujeio que imposta s mulheres em estratgias narrativas de ternura, como
um sinal de vulnerabilidade. Uma forma possvel de rompimento quando passamos
a contar as nossas prprias histrias, como vemos as mulheres poetas fazerem.
Atravs de
nossa literatura, arte, corridos e contos populares, temos de compartilhar
nossa histria com elas/eles, para que quando organizarem comits de ajuda aos
navajos ou aos agricultores chicanos ou a los nicaraguenses, no rejeitem
algumas pessoas por causa de seus medos e ignorncias raciais. Elas/eles
entendero que no esto nos ajudando, mas seguindo nossa liderana (ANDALZA,
2019, p. 332).
Precisamos retomar a
possibilidade de narrarmos a ns mesmas, desestabilizando aquelas histrias que
foram contadas como forma de compensar seus prprios defeitos (LUGONES, 2019,
p. 332), como formas de exercer poderes de uns grupos sobre outros. Nestes
termos, Lugones (2019, p. 361) aborda uma colonizao da memria e prope que
o termo colonialidade nomeia
No apenas uma
forma de classificar pessoas atravs de uma colonialidade do poder e dos
gneros, mas tambm para pensar sobre o processo ativo de reduo das pessoas,
a desumanizao que as qualificam para a classificao, o processo de
subjetivao, a tentativa de transformar o colonizado em menos que humano.
Anzalda (2000, p.
230) tambm discute os desafios de se fazer ouvir sendo mulher, mestia, queer.
Para a autora, eles combatem e atacam as mulheres de cor, porque
desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortveis imagens estereotipadas
que os brancos tm de ns. A escrita das mulheres, ento, aparece como uma
afronta e uma forma de resistncia.
Ns anulamos,
ns apagamos suas impresses de homem branco. Quando voc vier bater em nossas
portas e carimbar nossas faces com ESTPIDA, HISTRICA, PUTA PASSIVA,
PERVERTIDA, quando voc chegar com seus ferretes e marcar PROPRIEDADE PRIVADA
em nossas ndegas, ns vomitaremos de volta na sua boca a culpa, a auto-recusa
e o dio racial que voc nos fez engolir fora. No seremos mais suporte para
seus medos projetados (ANZALDA, 2000, p. 231, destaques da autora).
isso o que fazem as
mulheres poetas quando se organizam para contarem suas prprias histrias. Seja
nos folhetos e em suas narrativas autobiogrficas, seja ao mobilizarem-se por
transformaes socioculturais, mercadolgicas e polticas. As poetas enfrentam
as imposies histricas das narrativas que frequentemente apagam suas
contribuies e devolvem ao universo do cordel as suas histrias, o seu ponto
de vista.
A mulher na poesia de cordel
Quando olhamos para a
histria da poesia de cordel, somos levados a longas antologias baseadas em
folhetos de autoria masculina. Isso no diferente, por exemplo, quando
acompanhamos eventos, feiras e festivais. Os espaos ocupados pelas mulheres
poetas ainda so restritos (CARVALHO; OLIVEIRA, 2018) e muito disso se deve a
um poder institudo para que essa histria seja contada: ela vem sendo
conduzida por homens.
Essa situao no
exclusiva do universo do cordel, mas reflete uma situao que atravessa as
sociedades capitalistas (FEDERICI, 2019) e a sua historiografia. Resulta,
ainda, de toda uma estrutura de formao e valorizao do conhecimento
(LEMAIRE, 2017; 2018). esse saber eurocentrado, masculinizado, branco, heterossexual,
que criticado ao apoiarmo-nos em uma perspectiva decolonial para o
desenvolvimento desta reflexo.
Lemaire (2020) nos
explicita, em uma aprofundada discusso, que parte do Cancioneiro das Donas de
Carolina Michaelis, diversas estratgias de poder a partir do uso da linguagem
e do saber para um movimento excludente que faz parte da historiografia do
cordel. Segundo Santos (2020), h registros de publicaes de mulheres desde os
anos 1930. A pesquisadora faz referncia a Maria das Neves Pimentel, que
assinava como Altino Alagoano (nome de seu marido) e gravadora Maria Athayde,
filha do conhecido editor Joo Marins de Athayde nos anos 1940. Ainda assim,
elas no constam nas antologias e catlogos sobre o cordel que comeam a ser
publicados nos anos 1960.
Um estudo da Fundao
Casa de Rui Barbosa, organizado em 5 volumes e publicado nos anos 1970,
configura-se em uma importante e densa pesquisa sobre a poesia de cordel. uma
obra utilizada como bibliografia em universidades para o estudo da poesia de
cordel e, assim, tem um grande alcance ainda nos dias de hoje. Esses textos,
produzidos com a colaborao de Cavalcanti Proena, Orgenes Lessa, Antnio
Houaiss e Manuel Diegues Junior, tiveram o apoio do Ministrio da Educao e
Cultura e, portanto, tratam do que se tornou a historiografia oficial do
cordel. essa a histria que repetidamente contada quando se fala da poesia
de cordel – a de folhetos impressos, separados de suas formas orais, de
origem portuguesa etc. nessa histria que no encontramos as vozes das
mulheres – ou as encontramos como raras e desinteressadas[48]
pela poesia.
Ainda sobre a histria
contada pela FCRB, Lemaire (2020, p. 184) aponta que
Para indicar os
autores dos folhetos, privilegia-se o nome de trovador, uma palavra medieval.
Trata-se de uma estratgia discursiva que permite, pela aproximao com a
literatura da Idade Mdia europeia e com o tipo de poeta que era o trovador
medieval – homem e membro da nobreza –, impor a ideia de uma poesia
ao mesmo tempo antiga e de autoria exclusivamente masculina, com origens
alheias, nobres e escritas, silenciando e ocultando a atualidade, a
especificidade regional do folheto, a sua base oral, cantada, a presena de
mulheres cantadoras.
Por meio de poderes
acadmicos e letrados estabelecidos, o cordel inferiorizado a partir de um
referencial cannico. Torna-se uma poesia marginalizada. E, dentro da esfera
desta margem, os homens se utilizam de um micropoder criador de normas, regras
e ordens que excluem e minimizam as mulheres que tambm so poetas. Segundo
Mello (2020, p. 8), a mulher que faz cordel tem pouca visibilidade em virtude
de preconceitos duplos: o de pertencimento a uma cultura das bordas e pelo
pertencimento a uma cultura marcada pelo androcentrismo. So aceitas, apenas,
aquelas que esto dispostas a submeterem-se a essas normas e s narrativas
construdas por esses detentores de um poder que emana da posse de editoras, da
direo de academias, de visibilidade internacional e da retroalimentao de
egos pelos pares.
Movida pela
inquietao diante da invisibilidade das inmeras mulheres poetas que no
apareciam nas antologias, silenciadas em espaos pblicos, a professora Fanka
Santos cataloga em O Livro Delas ttulos de mulheres cordelistas at os
anos 2010. Santos (2020) prova com sua pesquisa que as produes das autoras
no sou poucas ou raras, e sugere que um grande problema, que teve como
consequncia esse apagamento das mulheres poetas, que a historiografia da
literatura que conta a trajetria do cordel feita a partir de uma perspectiva
scriptocntica, que utiliza como mtodo de investigao da oralidade
as mesmas formas utilizadas para a pesquisa de fenmenos escritos. Por isso, a
pesquisadora aponta uma urgncia de transformao no apenas nos objetos de
estudo, mas tambm dos paradigmas que direcionam esses trabalhos.
Nesse cenrio, as
mulheres poetas tm se organizado politicamente para reagirem a um apagamento
histrico de suas contribuies para a poesia de cordel. Elas se renem em
grupos e associaes, mas tambm informalmente, pensando produtos, eventos e
aes polticas de mobilizao. Essas estratgias tm encontrado nas redes
sociais on-line um espao para sua existncia, divulgao e convocao
de novas adeses causa de um cordel menos excludente.
E por
caminhos das discusses de gnero no cordel que eu vejo uma possibilidade de
fratura mais evidente: essa que os poetas tradicionalistas e os que se pregam
progressistas tentam apagar. Porque a produo das mulheres que vem
questionando e oferecendo condies de continuidade, no pelas vias de suporte
ou de formato, mas pela dimenso poltica de resistncia que o cordel oferece
(FONSECA, 2019, p. 209),
E uma reivindicao
fundamental dos grupos de mulheres poetas de que suas vozes sejam ouvidas e respeitadas.
Para isso, fundamental que elas contem suas prprias histrias e, assim,
contem tambm uma nova histria do cordel. Como aponta Adichie (2019), os
riscos imanentes de uma histria nica so de que os indivduos repercutam seus
desconhecimentos como verdades nicas.
Em um universo
simblico de produo de conhecimento pautado em uma referncia masculinizada,
importante referirmo-nos a um registro de memrias que desloca o eixo
narrativo para as memrias de mulheres, de mulheres negras, de mulheres
perifricas, que contam suas prprias histrias pelas vias do cordel,
testemunhando suas vidas, seus embates, suas resistncias sociais, culturais e
polticas. Eis o que buscamos, quando olhamos para as narrativas
autobiogrficas de Auritha Tabajara, Julie Oliveira e Izabel Nascimento.
Autobiografias em cordel
Em um mundo de
conhecimentos pautados pelos saberes produzidos e difundidos em relaes de
poder, Adichie (2019) indica a urgncia de acessarmos uma ampla diversidade de
histrias. A partir dos estudos de Hill Collins (2019) sobre a produo de
conhecimento de mulheres negras sobre elas mesmas, pensamos aqui na importncia
de as mulheres poetas contarem tambm as suas prprias histrias e, assim,
contriburem para a nova historiografia do cordel, proposta por Santos (2020).
bell hooks (2019)
reflete sobre a importncia de narrar a si mesma a partir da escrita de uma
autobiografia. Para a autora, um dos principais aspectos transformativos do
movimento feminista tem sido o de convocar as mulheres a contarem suas prprias
histrias. Como uma estratgia de resistncia, erguer a voz era uma forma de
rebelio consciente contra a autoridade dominante (HOOKS, 2019, p. 20).
A partir de reflexes
pedaggicas, hooks (2019) considera que as histrias pessoais so formas de as
pessoas se conectarem e se identificarem, mas as experincias pessoais seriam
desconsideradas nos sistemas educacionais e de formao do conhecimento.
Haveria uma busca pela universalidade do saber, sendo que o universal sempre
externo, masculino, branco, elitista. E, nesse cenrio, as vozes das mulheres
incomodam, assustam e, por isso, so silenciadas.
A narrao de si, para
hooks (2019, p. 226), uma forma de construo de identidades e de
fortalecimento das memrias individuais cotidianas:
Para muitas
pessoas exploradas e oprimidas, a luta para criar uma identidade e nomear a
prpria realidade um ato de resistncia, pois o processo de dominao –
seja a colonizao imperialista, o racismo ou a opresso machista – tem
nos esvaziado de nossa identidade, desvalorizando nossa linguagem, nossa
cultura, nossa aparncia. Repito, isso s uma fase no processo de revoluo.
Para hooks (2019, p.
227), isso permitiria que mulheres e homens utilizassem suas prprias
experincias como formas de teorizao e de politizao dos saberes,
tornando-se um processo de historicizao e permitindo reconhecermo-nos como
parte da histria, como fazem as mulheres cordelistas.
No livro
autobiogrfico em cordel Corao na aldeia, ps no mundo, escrito por Auritha
Tabajara (2018), mulher indgena nascida no Cear, encontramos na orelha deste
que ela considera a poesia de cordel como autoexpresso e resistncia. Por
meio dela busco descontruir esteretipos atribudos s mulheres indgenas, uma
vez que no perco a minha ancestralidade morando na cidade e usando
tecnologia.
Os textos de Julie
Oliveira, professora, poeta e editora cearense, foram publicados em sua rede
social Instagram[49],
que ela utiliza como espao de divulgao de seus trabalhos. A poeta uma das
organizadoras do movimento Cordel sem Machismo e coordena o coletivo Cordel de
Mulher.
Izabel Nascimento
sergipana, professora e poeta de cordel. Atualmente preside a Academia
Sergipana de Literatura de Cordel e est frente do movimento Cordel sem
Machismo. Seus dois folhetos de cunho autobiogrfico tratados nesse texto so
Cordel de Me e Filha (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2019) e Relato de voz e
verso (NASCIMENTO, 2018).
H quatro eixos que
identificamos nas narrativas das trs poetas como articuladores para essa outra
histria do cordel. So temas que no aparecem tratados nas discusses
conceituais e nas abordagens definidoras do cordel, pautadas nas experincias
folcloristas, acadmicas, tampouco naquelas produzidas por poetas homens. So eles:
a ancestralidade, as lutas pessoais cotidianas, os machismos e os dilogos
individuais com o universo do cordel.
Destacando o primeiro
eixo, observamos que as autoras trazem uma importante referncia
ancestralidade matrimonial. As trs poetas no inauguram suas aes poticas
individualmente em suas vidas, mas emergem de dilogos com outras mulheres.
Elas se apresentam como herdeiras dos bens culturais transmitidos pelas
mulheres mais velhas, ou seja, de bens matrimoniais, como descreve Lemaire (2018):
um conjunto de bens materiais e culturais pertencentes s linhagens femininas.
No livro de Auritha,
ela aborda essa ancestralidade a partir da imagem da av, com quem aprendeu a
contar histrias:
Contava para a
vov,
Que dizia: v
sem medo,
O tempo que vai
chegar
Desvendar o
segredo.
Escute, prenda,
pratique,
Vai precisar
logo cedo (TABAJARA, 2018, p. 12).
Alm de ter herdado o
aprendizado sobre contao de histrias em rimas, Tabajara (2018) tambm tinha
na av um referencial de fora, de luta e de sabedoria.
Izabel Nascimento
filha de pai e me poetas e tambm aborda esse aprendizado em sua narrativa
autobiogrfica. Em ambos os textos de Nascimento (2018; 2019), ela destaca o
que aprendeu sobre a poesia com sua me.
Os meus pais
so os poetas
Que Deus me deu
de presente
Mame, grande
cordelista
Papai, cordel e
repente
Fruto desse
amor gigante
Versejo desde o
instante
Que me entendo
como gente (NASCIMENTO, 2018, p. 7).
Desta herana, ela
evidencia tambm sua gratido no cordel em que assina junto de Ana Santana
Nascimento:
Assim como o
fruto nasce
Quando a raiz
traz vida
Feliz o fruto
que honra
A jornada
percorrida
Eu honro quem
me gerou
Se serei, se
fui, se sou:
Obrigada, Me
querida! (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2019, p. 16)
E ainda:
Ana Santana,
mame,
Forte,
inteligente e bela
H tempos que o
vu da arte
Flamula,
buscando nela
Histria, cho,
garantia
Assim, bebi
poesia
Do leite
materno dela (NASCIMENTO, 2018, p. 7).
Julie Oliveira filha
de pai poeta, com quem aprendeu as tcnicas e estruturas de sua poesia. Mas em
seus relatos apontados aqui, ela tambm traz outros aprendizados adquiridos com
sua me e uma declarao de respeito por sua me e por sua av.
Sou filha de
Assuno
Mulher doce,
paciente;
Neta de Alice,
tambm,
E honro cada
semente
Porque carrego
comigo
A fora de
minha gente (OLIVEIRA, 2020, on-line).
Da ancestralidade,
heranas de mulheres, seja nos aprendizados sobre poesia de cordel, sobre
contao de histrias ou mesmo sobre outros aspectos da vida, seguimos para as abordagens
que as poetas fazem do universo do cordel. Elas contam sobre como entraram
nesse universo, sobre aprendizados.
Auritha conta que
comeou a escrever poesia ainda na escola e uniu a isso s contaes de
histrias que acompanhava da av:
Aprendeu a ler
na rima
Tudo queria
rimar:
As brincadeiras
e histrias
Que ouvia a
vov contar.
Com tambor e
marac,
De msica foi
gostar (TABAJARA, 2018, p. 10).
Julie apresenta seus
aprendizados em um dos poemas e atribui sua entrada no universo do cordel
tambm a uma relao hereditria, mas, no caso, refere-se a seu pai, o poeta
Rouxinol do Rinar.
A poesia eu herdei
De um amigo de f,
Companheiro de jornada
A quem aplaudo de p:
Sou filha do cordelista
Rouxinol do Rinar (OLIVEIRA, 2020, on-line).
A entrada de Izabel Nascimento na poesia de
cordel se deu ainda criana, aprendendo sobre poesia com seus pais. Ao
descrever sua entrada nesse universo, Izabel destaca tambm os desafios que
encontraria em seu percurso.
Assim, entrei nesse mundo
Pautada nos bons valores
Meus irmos e eu tivemos
Na arte, dois bons doutores
A estrada iniciava
Eu sequer imaginava
Que nem tudo aqui so flores (NASCIMENTO,
2018, p. 9).
Os desafios de sua vida, at reconhecer-se como
cordelista, aparecem nos versos de Auritha Tabajara ao mencionar seu trnsito
do espao de sua aldeia at estabelecer-se em grandes cidades como Fortaleza e
So Paulo. Nesses espaos, ela ainda muito jovem identifica que nem todo mundo
tinha boas intenes.
Agora, l na cidade
Era mocinha inocente
Sorria pra todo mundo
Que passasse sua
frente
Mas a maldade do povo
Se fazia ali presente
(TABAJARA, 2018, p. 16).
Izabel Nascimento conta sobre as dificuldades de
sade que enfrentou e sobre como a poesia de cordel foi sua aliada para a
superao.
Meus problemas de sade
Deixavam por perto a morte
Que desde cedo tentava
Pr o meu nome no corte
Com diretriz resumida
Busquei dar sentido vida
O cordel foi minha sorte (NASCIMENTO,
2018, p. 10).
A poeta Julie Oliveira trata, ainda, dos
desafios que encontra pelo caminho, sendo um deles, os trabalhos em parceria e
coletividade, que ela entende como fundamentais para que as cordelistas se
fortaleam em seus trabalhos.
Seguir sozinha fcil
cmodo, eu sei fazer
Mas, decidi caminhar
Em conjunto, pra vencer
Com cordel e aliadas
No vamos ficar caladas
Chegue junto, venha ver! (OLIVEIRA,
2020a, on-line).
O machismo uma situao recorrente, como j
apontado nas discusses tericas deste trabalho. Ele aparece na narrativa das
mulheres poetas tanto quando elas falam sobre suas inseres no universo do
cordel quanto ao mencionar outras experincias da vida – visto que o
machismo como um comportamento no exclusivo de um grupo unificado, mas se
expande por toda a sociedade.
Nascimento (2018) denuncia situaes me machismo
no universo do cordel a partir de suas experincias:
Ser mulher na poesia
Exigiu muito de mim
A mo do machismo pesa
O seu disfarce ruim
Carrega na estridncia
O joio da incompetncia
Ainda hoje assim. (NASCIMENTO, 2018, p.
12).
Julie Oliveira destaca essa situao a partir de
sua ao de resistncia e de luta.
Ser Youtuber,
popstar
sonho de
muita gente
O meu ver a
mulher
Ter tratamento
decente
Por isso, eu
estou no front
E no fujo
desse afronte,
A minha fora
pungente.
[...]
Eles nos querem
chorando
Chateadas,
desunidas
verdade que
algumas
Ainda esto
iludidas
Porm vo se
esclarecer
E nunca mais
vamos ter
Nossas vozes
preteridas! (OLIVEIRA, 2020a, on-line)
Na narrativa de
Auritha Tabajara, o machismo se manifesta em suas experincias cotidianas alm
do cordel. Acontece, por exemplo, quando ela chega cidade e um homem a
assedia com olhares.
Um cabra meio de longe
Desde cedo a observava
Veio se achegando aos poucos,
Fez que uma fruta comprava
E, como um lobo faminto,
Para a mocinha olhava (TABAJARA, 2018, p.
17).
E quando o pai de sua filha a processa por
abandono do lar e pede, judicialmente, o pagamento de penso alimentcia.
Rejeitado, o companheiro
Recusou-se a aceitar
Foi bancar o pai-heri
No conselho tutelar.
Esperou ela sair
E j foi denunciar (TABAJARA, 2018, p.
28).
Dialogando com o conceito de biomitografia de
Audre Lorde, ou seja, uma narrativa mais preocupada com o estado de esprito de
quem narra do que com a preciso de detalhes, a autobiografia para hooks (2019,
p. 319) um relato de uma histria muito pessoal que convoca no exatamente
como os eventos aconteceram, mas como nos lembramos deles. isso o que as trs
poetas fazem em suas narrativas. Mais do que, precisamente, contar fatos com
uma pretenso de verdade, elas narram suas perspectivas diante de suas prprias
experincias, trazendo tona suas emoes e sentimentos, evidenciado as
afetaes de suas histrias com o universo do cordel.
Consideraes
finais
Segundo hooks (2019, p. 264), falar a marca
da liberdade, de se fazer sujeito. Para a autora, contar as nossas prprias
histrias a forma de alcanarmos o poder por compartilharmos o nosso ponto de
vista sobre a histria. E isso que Julie Oliveira, Izabel Nascimento e
Auritha Tabajara fazem quando escrevem sobre si mesmas: declaram suas liberdades
individuais ao mesmo tempo em que contam a histria do cordel.
importante considerarmos as narrativas das
mulheres para contarmos a histria do cordel. Como a professora Fanka Santos
iniciou, precisamos construir novos olhares para a historiografia oficial,
inserindo as contribuies das mulheres poetas. Deste modo, estamos
transformando a histria do cordel, mas tambm a histria da literatura. Ao
observarmos as brechas na histria, a partir de questionamentos e de fraturas
aparentes, que podemos pensar nessa reescrita.
As narrativas das mulheres cordelistas esto
inseridas em uma relao de disputa de poderes sobre a memria, sobre os modos
de conhecimento sobre o universo do cordel. Elas desestabilizam os saberes
institucionalizados destacando suas experincias pessoais, suas relaes de
matrimnio cultural e apontando as opresses machistas que configuram desafios
em suas lidas. preciso nos voltarmos para as biomitografias e pontos de vista
das mulheres cordelistas para sermos capazes de refletir sobre o universo do
cordel.
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MEMRIA, VOZ E AUTORIA EM OS SAPATOS
DE T, DE CREMILDA E ELISABETE NASCIMENTO
MEMORY, VOICE AND
AUTHORSHIP IN OS SAPATOS DE T, BY
CREMILDA AND ELISABETE NASCIMENTO
Fernanda Oliveira da Silva[50]
http://orcid.org/0000-0001-9831-2827
Maria Teresa Salgado[51]
http://orcid.org/0000-0003-2993-3632
Resumo: Ao ler Os Sapatos de T, de imediato, evidencia-se que as histrias ali
narradas so contadas por mais de uma voz. O processo que compe esse livro
interessante, pois so as contaes da me, Cremilda, escritas pela filha, a
escritora Elisabete Nascimento. Atravs das memrias e das vozes que
protagonizam a obra, somos levados a conhecer outra verso da histria
considerada como a oficial do pas. A partir dos possveis dilogos com as
teorias de Michael Pollak (1989), Laura Cavalcante Padilha (2007) e Gayatri Spivak
(2010), iniciamos este breve estudo, analisando a memria como elemento
fundamental para a composio da narrativa e para o protagonismo da mulher
negra, que assume, aqui, um papel de griot, trazendo a sua verso da
histria, denunciando a pobreza, a desigualdade, o racismo, a escravido e dando
visibilidade s vozes da Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. A
inteno dessa anlise colaborar com a visibilidade de algumas dessas vozes.
Palavras-chave: Memria. Oralidade. Vozes femininas. Subalternizao.
Abstract: When reading Os
sapatos de T, immediately, it is evident that the stories narrated are
told by more than one voice. The process that makes up this book is
interesting, as it is the account of the mother, Cremilda, written by her
daughter, the writer Elisabete Nascimento. Through the memories and voices that
lead the work, we are brought to know another version of the story considered
as the country's official. Based on the possible dialogues with the theories of
Michael Pollak (1989), Laura Cavalcante Padilha (2007) and Gayatri Spivak
(2010), we begin this brief study, analysing memory as a fundamental element for
the composition of the narrative and also for the protagonism of the black
woman, who assumes, here, a role of griot, bringing her version of history,
denouncing poverty, inequality, racism, slavery and giving visibility to the voices
of the Baixada Fluminense of the state of Rio de Janeiro. The intention of this
brief study is to contribute to the visibility of some of these voices.
Keywords: Memory. Orality. Female voices. Subordination.
O que os livros escondem,
as palavras ditas libertam
(Conceio Evaristo)
As palavras da escritora Conceio Evaristo
no se camuflam em eufemismos para denunciar um antigo problema que ainda
persiste no campo da literatura brasileira. Por longos anos, a escrita
literria consolidou-se como um espao de poder branco, excluindo as camadas
sociais negras, que possuam formas de conhecimento consideradas inferiores.
Tais camadas tambm tinham o seu acesso barrado ao nico conhecimento
considerado importante pela elite brasileira. Assim, por muito tempo, deu-se visibilidade
apenas a um lado da histria; at o momento em que algumas vozes silenciadas
comearam a romper cada vez mais os cercados impostos e passaram a ser ouvidas nos
espaos acadmicos. Importante dizer que tais vozes marginalizadas sempre se
manifestaram e transmitiram saberes, a despeito das muitas tentativas de
obstruo e silenciamento sofrido ao longo da histria. Nossa inteno, com
esse breve estudo, colaborar com a visibilidade de algumas dessas vozes.
Nossa epgrafe tambm mostra a urgncia de
mais estudos literrios sobre as escritas que foram mantidas fora do chamado
cnone, visto que suas origens pertencem a espaos historicamente marcados pelo
silenciamento forado, conhecido como uma das estratgias de opresso do
colonialismo e da escravido. A abertura para as novas enunciaes tem
acontecido aos poucos, pois a reivindicao do direito escrita s foi
escutada tardiamente.
Nesse sentido, interessa-nos lembrar a
relao que Antonio Candido faz entre os direitos humanos e a literatura, ao
considerar que so bem incompressveis, entendendo que ambos no podem ser
negados a nenhuma pessoa, uma vez que tm um papel importante de humanizao.
Ao colocar a literatura ao nvel de necessria, Candido a define como algo
fundamental para compor a existncia do ser humano. Para isso, o autor
relaciona a literatura e os direitos humanos de duas maneiras: a primeira
refere-se organizao mental que a literatura proporciona, pois, ao dar
forma aos sentimentos e viso do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos
e portanto nos humaniza (CANDIDO, 1988, p. 186); a segunda relaciona-se ao
aspecto de desmascaramento social e denncia, pelo fato de a literatura focalizar
as situaes de restrio dos direitos, ou de negao deles, como a misria, a
servido, a mutilao espiritual (CANDIDO, 1988, p. 186).
Assim, entende-se que a literatura um
direito de todas e de todos, e compreendemos a necessidade de tornar a escrita
de mulheres, sobretudo de mulheres negras, visveis. Tal ideia justifica a
escolha da obra de Elisabete Nascimento como corpus deste artigo. importante esclarecer que no se busca,
aqui, apenas
trabalhar a narrativa da escritora com o intuito de preencher alguma espcie de
cota nas pesquisas acadmicas, mas, sim, como procuramos mostrar ao longo deste
texto, para evidenciar as qualidades literrias da obra de Nascimento.
Para compreender a anlise que aqui se
prope, importante uma breve apresentao de Elisabete Nascimento. A
escritora nasceu em Barros Filhos, uma periferia do Rio de Janeiro. Aos quatro
anos, passou a morar no municpio de So Joo de Meriti, cidade onde Nascimento
permanece morando, localizada na Baixada Fluminense. A literatura herana das
contaes da me e das letras de samba-cano de seu pai. Sua formao
acadmica, desde a graduao at o doutorado, foi realizada na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Por mais de trinta anos, atuou na educao
bsica e, por quinze, no ensino superior. Atualmente, membro do grupo de
pesquisa Escritas do Corpo Feminino (UFRJ) e desenvolve projetos de leitura,
letramento e escrita criativa com estudantes de escolas pblicas. Nascimento
tem nove livros, dos quais oito so por autopublicao. So eles: Exu no Pao Imperial;
Dirio de bordo do Almirante Negro; Os Sapatos de T; Contos Pro(L)ibidos;
Ciranda de Meninos; Luiza e Babi e o Mistrio do Lago de Onira; Mscara de flandres:
em fragmentos; Abayomi: minha amiga
imaginria e Amor de Abiku. Os
versos e a prosa que compem as obras evidenciam a importncia de histrias
vividas e contadas por mulheres e homens que tiveram suas existncias negadas.
Ao ler
Os Sapatos de T, de imediato, evidencia-se que as histrias ali narradas
so contadas por mais de uma voz. O processo que compe este livro interessante,
pois so as contaes da me, Cremilda, escritas pela filha, a escritora
Elisabete Nascimento. Ambas so narradoras da histria, e esta oscilao de
vozes permite o contato com as memrias, os testemunhos e os saberes da me da
escritora. Assim, acreditamos estar diante de uma forma artesanal de
comunicao (BENJAMIN, 1975, p. 69) em que experincias so trocadas e nela as
vozes narrativas deixam suas marcas como a mo do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1975, p. 69).
A narrativa comea a ser contada pela voz da
filha, Elisabete: Essa a histria dos meus sapatinhos. E tambm dos sapatos
da minha me e da me de minha mame, a velha Deolinda (NASCIMENTO, 2015, p. 13).
Em seguida, aparecem versos de uma cano que vai perpassar toda a narrativa:
A liberdade de estar descalo
Criou calo e esporo,
Por isso os ps da gente Monjolo
No cabem nos sapatos no
(NASCIMENTO, 2015, p. 13).
Interessa-nos analisar os versos acima, pois
podemos entend-los como uma maneira de explicar uma das estratgias da
escravido. Sabe-se que, no perodo escravocrata, o uso dos sapatos era
atribudo condio de liberdade do indivduo. Homens e mulheres, escravizados
e livres, se diferenciavam socialmente pelos calados que usavam ou no. Tanto
que um escravizado at poderia vestir calas, palet, mas nunca calar
tamanco, nem [...] sandlias. De p no cho. Para deixar bem exposto o estigma
indisfarvel do estatuto de cativo (ALENCASTRO, 1997, p. 79). Logo, a pequena
cano carrega uma possvel justificativa, a deformidade dos ps, para
consolidar uma das opresses do perodo colonial.
As primeiras pginas, assim como o ttulo, j
nos mostram que o sapato o fio condutor da narrativa. Cremilda inicia suas
contaes falando sobre a sua me, Deolinda, e a dificuldade dela de usar
sapatos: Mame, sempre que vou visit-la, reclama que seus sapatos doem os
ps. E l vou eu comprar mais um par de sapatos (NASCIMENTO, 2015, p. 14). Nas
linhas seguintes, a narradora-protagonista[52]
transporta sua histria para um tempo-passado, volta-se para as recordaes de
sua infncia: Aos oito anos eu j era empregada domstica. Eu cuidava da casa
e de duas crianas. Eu s aprendi a escrever j com trinta anos...
(NASCIMENTO, 2015, p. 23).
A composio da narrativa de Os Sapatos de T, como pudemos ver no
trecho acima, costurada pelas memrias da narradora-protagonista. Alm disso, possvel notar que a
memria de Cremilda representa uma realidade que, infelizmente, no exclusiva
da sua experincia. Sabe-se que o trabalho infantil e o no acesso escola
foram, e ainda so, problemas reais das periferias e dos morros dos grandes
centros urbanos brasileiros.
Nesse sentido, pensamos nas memrias
coletivas, aquelas interditadas, e questionamos a histria que sempre foi
considerada a verdadeira. Vejamos, no fragmento a seguir como, atravs das
lembranas de Cremilda, a histria do pas contada:
Meus pais eram do tempo do dinheiro de couro
e da moeda de conchinha. Chamavam meu pai de rebelde. Chamavam minha me de
rebeldia. Ele nasceu junto com a Revolta da Vacina e minha me, com a Revolta
da Chibata. Eu nasci com a Revolta Comunista e minha filha mais velha com o Golpe
Militar, e mais revoltas. Nada por acaso na famlia dos revoltados (NASCIMENTO,
2015, p. 21).
Acima, o nascimento de cada pessoa da famlia
relacionou-se aos momentos importantes da histria do Brasil. Novamente, vemos
a memria particular tomar uma proporo ampla. Interessa-nos, nesse momento,
pensar no texto Memria, esquecimento,
silncio, de Michael Pollak. Ao referir-se ao estudo da histria oral,
reala-se a relevncia das memrias subterrneas, que, como parte integrante
das culturas minoritrias e dominadas, se opem Memria oficial, no caso a
memria nacional (POLLAK, 1989, p. 4). Essas memrias chamadas subterrneas
conseguem emergir, de forma transgressora, mesmo sendo destinadas ao silncio,
provocando, assim, interferncias na divulgao dos fatos considerados
oficiais. O silncio que foi, e ainda , imposto as vozes subalternizadas
consegue ser ouvido atravs do interesse de registrar as vivncias de pessoas
simples, como foi feito pela escritora Elisabete Nascimento em Os Sapatos de T.
As lembranas da narradora-protagonista
entrecruzam-se com eventos histricos do pas. Ao rememorar o ano de seu
nascimento, Cremilda acaba por trazer tona a denncia em relao ao grande
nmero de homens negros escravizados que, em troca de alforria, escolheram
lutar na Guerra do Paraguai. Tal fato resultou nas mortes desses homens que nem
se quer puderam sentir a sensao de liberdade: Quando nasci, em 1935, papai
j estava com 40 anos, mas morreu cinco anos depois. Ele era neto de escravo,
que foi a guerra do Paraguai, em vo, em troca de liberdade (NASCIMENTO, 2015,
p. 24).
A partir disso, pode-se compreender que as
memrias subterrneas da narradora-protagonista, ao surgir em espaos tomados pelo poder da escrita, modificam as
cenas de grandes acontecimentos e, assim, como destaca Pollak (1989),
possibilitam a construo de outras histrias formadas pelas vivncias e pelas
experincias das pessoas subaltenizadas.
Alm das memrias, outro elemento fundamental
para a composio de Os Sapatos de T
a oralidade. Ela se apresenta na obra de diversas formas, como por exemplo,
os versos musicados que penetram a narrativa, j citados e analisados
anteriormente. Alm disso, pode-se observar que a estrutura do discurso nos
mostra a presena de dilogos, ou seja, Cremilda parece estabelecer dilogos
com algum a todo instante. Pode-se observar isto na seguinte passagem: Certo
dia, todos estvamos felizes com as sobras de um leito, do porco do vizinho.
Pare de rir, Luiza, o vizinho no porco no... (NASCIMENTO, 2015, p. 14).
Para alm disso, sabe-se que, segundo Bakhtin (2003), um enunciado sempre uma
resposta a outros.
H um fragmento que, no por acaso,
remete-nos a tradio africana: ҃ preciso contao. Quer saber o que isso quer
dizer, Carlinha? Desenhe nossa rvore sagrada, um imbondeiro, e voc saber
sobre imensa famlia (NASCIMENTO, 2015, p. 23). Pode-se notar que a partilha
de conhecimento atravs das histrias, por meio de memrias da tradio,
segundo Laura Padilha, difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se,
por isso, um exerccio de sabedoria. (PADILHA, 2007, p. 35). Essas observaes
fazem-nos compreender a presena da oralidade, uma das heranas da cultura
africana, como um aspecto essencial que influencia na estrutura e na esttica
da obra.
Ao pensar sobre a estrutura e a esttica,
interessante retornarmos para a dedicatria da obra de Elisabete Nascimento que
no deixa dvidas sobre o processo criativo do livro: Fugindo aos padres de
edio, esta dedicatria no de autora para algum, mas das mos que
escrevem a voz das memrias de Cremilda, minha me, companheira minha e de meus
irmos por mais de meio sculo (NASCIMENTO, 2015, p. 9). Sendo assim, a mo de
Elisabete imprime sua marca nas histrias contadas por Cremilda. Deste modo, a
voz da narradora-protagonista e da narradora-ouvinte esto presentes nos
relatos, para que a histria seja continuamente compartilhada entre aquela que
fala e a que ouve e tambm escreve.
Com base nessa observao, interessa-nos
analisar a relao estabelecida entre quem conta, quem escuta e escreve Os Sapatos de T. Para comear esta
anlise, parecem-nos pertinentes duas narrativas de tradio oral de Angola: o
missoso e a maka. Logo, torna-se fundamental nos debruarmos sobre o livro Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade
na fico angolana do sculo XX, de Laura Padilha. Vejamos a definio:
Missosso angolano [...] dentro do quadro da tradio oral
autctone, aquela forma narrativa percebida pelo natural como sendo
totalmente ficcional, no sentido em que v nela um produto apenas do
imaginrio, algo no acontecido no real emprico, pois pertencente apenas
ordem da fantasia. Ope-se, por isso, maka, na origem, outra forma de
narrativa que relatava um acontecimento representado como vivido, ou pelo
contador, ou por algum de sua intimidade, ou por pessoas de que ouviu falar.
Assim, a maka [...] seria a ficcionalizao de uma histria tomada como
verdadeira, razo pela qual tinha um fim utilitrio evidente, sendo que sua
tendncia didtica no [era] tcnica, mas essencialmente social (PADILHA, 2007,
p. 40).
A partir das definies dadas acima,
acreditamos que o processo de criao escolhido para a composio da narrativa
constitua-se, simultaneamente, da maka e do missosso, visto que as histrias,
ao serem contadas pela narradora-protagonista, passam pelo movimento de
reinveno da narradora-ouvinte e escritora, transfigurando-se em fico. Esta
anlise torna-se cabvel a partir da fala de Elisabete Nascimento na
dedicatria, j citada, do livro. Porm, faz-se necessria a reproduo de mais
um fragmento para que compreendamos a anlise levantada: Difcil tarefa, dar
voz a tantas vozes que me inspiram o tempo todo. Peo desculpas por interferir
constantemente com as minhas prprias percepes sobre as histrias maternas
nestas narrativas (NASCIMENTO, 2015, p. 9).
O uso frequente de vocativos um detalhe
importante que atravessa todo o livro, pois, alm de caracterizar o dilogo,
ressaltando a oralidade, demonstra o interesse e a preocupao da
narradora-protagonista em manter vivos em sua memria os saberes ancestrais e
transmiti-los:
Ela pedia pra eu nunca esquecer as vozes
importantes em nossas vidas. Bem, aqui dentro destas letras tem uma voz, tem
muitas vozes esquecidas. A de mame Deolinda, a da vov Julia, a do papai
Antonio e a voz dos seus pais e avs que perderam seu nome na travessia dos
viventes de Luanda e outros de Moambique. Por isso preciso contao. Quer
saber o que isso significa, Carlinha? (NASCIMENTO, 2015, p. 23).
Interessante, no fragmento acima, a
reflexo que se pode fazer a partir dele. A narradora-protagonista –
seguindo o conselho de sua me – para no esquecer os testemunhos, as
memrias, tenta preserv-los por meio da oralidade, aproximando-se do gnero
angolano da maka, ou seja, partilhando a histria de uma coletividade por meio
do relato de sua vivncia.
Acreditamos ser inevitvel a aproximao da
imagem da narradora-protagonista, uma mulher negra de 80 anos, com o griot, a figura do mais velho na cultura
africana, ou seja, aquele que transmite o conhecimento a partir das memrias e
das histrias. Sobre o griot, Laura
Padilha explica sua importncia dentro da sociedade africana: O ancio liga o
novo ao velho, estabelecendo as pontes necessrias para que a ordem se mantenha
e os destinos se cumpram [...], tentando preservar os pilares de sustentao da
identidade, antes, durante e depois do advento colonial (PADILHA, 2007, p.
57).
H uma cena que dialoga com a cultura
africana. No por acaso, vemos a herana africana aparecer na forma em que as
histrias so contadas na obra. No dia de chuva, todos formamos uma roda em
volta da fogueira onde mame cozinhava [...] tempo bom, da casa de estuque e da
contao de histria e de adivinhao (NASCIMENTO, 2015, p. 17). De pronto, esta potica imagem faz com que lembremos tambm de
trechos da literatura angolana.
A narrao, escrita em primeira pessoa,
permite que a voz subalternizada se torne protagonista da contao de sua
prpria histria. Maria Nazareth Soares Fonseca, ao refletir sobre o romance Becos da memria, de Conceio Evaristo,
ressalta a importncia da escolha da pessoa do discurso. Para ela,
O sujeito que assume a ao de narrar o que
expressam essas vozes excludas sabe que o registro dos sofrimentos dos
miserveis expe os cortes constantes do prprio corpo, feridas difceis de
serem cicatrizadas. Para salvar do esquecimento as histrias de vida
mergulhadas na pobreza extrema e no abandono, o escritor, fazendo-se sujeito
participante, assume narrar as histrias dos lugares degradados como uma forma
de luta contra a misria, deslocando o prazer meramente contemplativo, como
diz Walter Benjamin, para uma atitude poltica que se concretiza na maneira
como a escrita procura vasculhar as vidas dos que lutam por sobreviver em
condies intensamente desfavorveis (FONSECA, 2017, p. 192).
Pensando nisso, parece-nos que a escolha de
Elisabete Nascimento, ao apresentar a voz de sua me Cremilda, para narrar e para
assinar a autoria do livro, um ato poltico e uma das prticas feministas
atuais. Para explicar a empatia que aqui ocorre, compreendemos que um dos
fatores que impulsiona a proposta de Os
sapatos de T a sororidade. Vemos, a seguir, um comentrio elucidativo
sobre esse conceito:
uma experincia subjetiva entre mulheres na
busca por relaes positivas e saudveis, na construo de alianas existencial
e poltica com outras mulheres, para contribuir com a eliminao social de
todas as formas de opresso e ao apoio mtuo para alcanar o empoderamento
vital de cada mulher. A sororidade a conscincia crtica sobre a misoginia e
o esforo tanto pessoal quanto coletivo de destruir a mentalidade e a cultura
misgina, enquanto transforma as relaes de solidariedade entre as mulheres.
Para combater a crueldade e o equvoco da inimizade, o feminismo precisa
fortalecer e promover a sororidade, eliminar a misoginia pessoal e coletiva,
no reproduzir formas de opresso entre mulheres como a discriminao, a
violncia e a explorao (LAGARDE, 2009, apud GAMBA, 2007, s/p).
Ao recolher as histrias e transform-las em
uma obra, Elisabete no apenas d voz a sua me, como tambm faz com que a
narrativa alcance outras mulheres que vivem ou passam por experincias
semelhantes. Alm do mais, acaba por reforar a ligao entre essas mulheres,
de modo a denunciar as prticas pautadas na segregao e na desigualdade que,
transformadas em fico, evidenciam a superao pela oralidade e pela escrita.
No poderamos deixar de observar que as vozes
femininas negras, tanto como narradoras quanto escritoras, mostram-nos que
essas mulheres, mesmo sendo instrudas submisso e ao silncio, falam e agem
de forma independente. Isso s corrobora que considerar a passividade e apatia
como caractersticas da mulher um grande equvoco. A filsofa francesa Simone
de Beauvoir, h tempos, esclareceu tal ideia. No entanto, infelizmente, ainda
estamos longe de compreender tal processo de essencializao da mulher.
[...] a passividade que caracterizar essencialmente
a mulher um trao que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas um
erro pretender que se trata de um dado biolgico: na verdade, um destino que
lhe imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 2016, p. 24).
A constatao de agir, falar e, assim,
(re)escrever sua prpria histria aparece quando Cremilda lembra que a
perspectiva de um futuro bom, segundo o desejo de seu pai, era um bom casamento
e bastava aprender a escrever o nome. Porm, Cremilda foi alm e realizou sonhos
que nunca imaginara: Mas at sonho que no sonhei, eu realizei: Casamento,
andar de avio pra l e pra c, saber ler e escrever livros e no apenas
assinar (NASCIMENTO, 2015, p. 18).
Outro aspecto digno de nota considerarmos a
obra como um possvel lugar de fala para as vozes que foram silenciadas por
tantos anos, desde a escravido. Pensar no conceito de lugar de fala nos remete
ao pensamento da escritora indiana Spivak, sobretudo, em seu texto Pode o subalterno falar?, que levanta questes
importantes sobre o silncio imposto aos que foram colonizados. Spivak (2010,
p. 66-67) nota, dentro do grupo de subalternos, a diferena entre homens e
mulheres:
No contexto do itinerrio obliterado do
sujeito subalterno, o caminho da diferena sexual duplamente obliterado. A
questo no a da participao feminina na insurgncia ou das regras bsicas
da diviso sexual do trabalho, pois, em ambos casos, h evidncia. mais uma
questo de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e
sujeitos da insurgncia, a construo ideolgica de gnero mantm a dominao
masculina. Se, no contexto da produo colonial, o sujeito no tem histria e
no pode falar, o sujeito subalterno feminino est ainda mais profundamente na
obscuridade.
Um dilogo possvel com Os sapatos de T o recente livro Memrias da plantao: episdios de racismo cotidiano, de
Grada Kilomba, sobretudo, na introduo intitulada como Tornando-se sujeito. Nele, a escritora fala sobre sentir uma fome
coletiva de ganhar voz, escrever e recuperar histria (KILOMBA, 2019, p. 27).
Ao longo desta breve anlise, vimos que as contaes da narradora-protagonista
contrapem as histrias verdadeiras que, por muito tempo, foram ensinadas.
Por isso, Deolinda alerta desconfiem o tempo inteiro do faz de contas e do
condo. melhor do que tapar o sol com a peneira (NASCIMENTO, 2015, p. 49).
Os sapatos de T apresentou a histria de
uma pessoa que, por ser mulher, teve seu futuro projetado pelo pai, que a
limitava ao papel de esposa, que sofreu racismo por ser negra e vivenciou
vrios abusos como empregada domstica. Logo, somos levados a refletir sobre a
mltipla excluso das mulheres negras na sociedade, afetadas pelo que Kimberl
Crenshaw (2002), ao definir o conceito de interseccionalidade, chamou de
cruzamento e sobreposio de distintas formas de subalternizao, como o
patriarcalismo, o racismo e a opresso de classe. Para isto, importante a
contribuio de Carla Akotirene, para quem
A interseccionalidade visa dar instrumentabilidade terico-metodolgica
inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado -
produtores de avenidas identitrias onde mulheres negras so repetidas vezes
atingidas pelo cruzamento e sobreposio de gnero, raa e classe, modernos
aparatos coloniais (AKOTIRENE, 2018, p. 14).
Ao final da obra, possvel compreender o
ttulo: a narradora-protagonista conta-nos que a morte de Deolinda, sua me,
chega e ela fez uma pantufa de feltro bem fofinho e coloquei nos ps de mame
que, com certeza faria uma visita aos parentes distantes de Angola
(NASCIMENTO, 2015, p. 47) e depois em sonho, mame disse que os sapatos de T
finalmente no doam seus ps (NASCIMENTO, 2015, p. 47).
E, na ltima pgina do livro, nos
apresentada uma nova verso dos versos que iniciaram essas contaes, ou cantaes, uma vez
que se expressam tambm como vozes que buscam ecoar o canto de novas histrias:
A liberdade de estar descalo
Criou a iluso,
De ser ela o motivo de tanto calo e esporo,
Nos ps de gente Monjolo
Mas deixa estar; que por obra de rebeldia
Nem eu, nem mame, nem vov e ningum mais
Acreditou ou acredita naquela estrofe viciada
(NASCIMENTO, 2015, p. 53)
Essa estrofe mostra-nos que a situao de subalternizada
no ser mais aceita, que estas vozes negras femininas que aqui narraram no se
conformaro com as verses das histrias que foram impostas. De acordo com bell
hooks[53],
a nica maneira de as mulheres negras construrem uma subjetividade radical
resistindo ao conjunto de normas e desafiando s polticas de dominao
baseadas em raa, classe e sexo (HOOKS, 2019, p. 125). Sendo assim, podemos
pensar nas contaes de Cremilda e na escrita de Elisabete como aes
transgressoras e resistentes a opresses de uma sociedade enraizadas em um
sistema colonial.
Aps esse percurso por Os sapatos de T, notou-se a importncia do processo
criativo escolhido para a construo da obra. Ao dar voz a Cremilda e escrever
a narrao a partir das memrias, Elisabete possibilita outras verses da
histria e a protagonismo dessa voz. Alm disso, essa construo acabou por
compor uma obra inspirada em moldes ancestrais. Assim, a partir dos
procedimentos criativos j mencionados, a autora rompe com um modelo
tradicional da literatura ocidental, enquanto revela a superao da mulher
negra, que no aceita mais ficar no espao da invisibilidade e do
silenciamento.
Referncias
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[Recebido:
20 jul 2020 – Aceito: 07 dez 2020]
VOZES DE MARACANGALHA:
INTERSECO DE SABERES E AFETOS
VOICES OF MARACANGALHA: INTERSECTION OF
KNOWLEDGE AND AFFECT
Railda Maria da Cruz dos Santos[54]
https://orcid.org/0000-0002-3151-689X
Edil Silva Costa[55]
https://orcid.org/0000-0002-3151-689X
Resumo: Apresenta-se
brevemente a produo potica tradicional de Maracangalha, povoado de So
Sebastio do Pass, Bahia, a partir do repertrio da manifestao cultural
Lindro Amor. As cantigas analisadas foram registradas no caderno de anotaes
Cultura popular, da professora Nvea, moradora da localidade. Partimos do
pressuposto que a dinmica dessa produo, ao longo do tempo, coloca nesse
territrio os corpos de mulheres negras que, com suas vozes, interseccionam
saberes, fazeres e afetos, de si e de seus pares, como dispositivo de
(re)existncia. Para tanto, o artigo se ampara no mtodo qualitativo de cunho
etnogrfico e nos tericos: Foucault (1996), Guattari e Rolnik (1986), Kilomba
(2019), Quijano (2005) e Zumthor (1993, 2005, 2007, 2010). Alm do repertrio
do caderno, trataremos tambm das narrativas de mulheres que integram o grupo
de cultura popular supracitado. Por fim, tecemos consideraes acerca dos
caminhos trilhados por essas mulheres para o deslizamento e permanncia da
potica da voz nos dias atuais.
Palavras-chave: Maracangalha. Lindro
Amor. Poticas orais. Cultura popular. Mulheres negras.
Keywords: Maracangalha. Lindro Amor. Oral poetics. Popular culture.
Black women.
O Lindro Amor de
Maracangalha
Eu vou pra Maracangalha,
eu vou
Eu vou de uniforme branco, eu vou
Eu vou de chapu de palha, eu vou
Eu vou convidar Anlia, eu vou...
(Caymmi, 1978)
A voz corrobora a
existncia de um coletivo, de uma ao poltica, de uma cultura. Nesse sentido,
a voz exerce no meio humano uma funo forte, mas no idntica (ZUMTHOR,
2005, p. 80), uma vez que se corporaliza, de acordo com o sujeito de
enunciao, rompendo e remodelando-se no tempo e no espao. a partir dessa
premissa que pensamos no texto da cultura popular, mais especificamente, a poesia
oral de grupos subalternizados que criam sua linguagem singular como mecanismo
de insurgir contra o sistema hegemnico. Assim, da linguagem das minorias que
emanam as reflexes deste artigo, das narrativas e dos cantos tradicionais que
fizeram e fazem parte da cultura popular da comunidade de Maracangalha.
O nome do
lugar conhecido pela cano de Dorival Caymmi. Decidido, o eu lrico iria
para l com Anlia, se ela quisesse ir, seno ele iria s. Mas, o que nem todos
que ouvem a cano sabem onde fica Maracangalha
e porque ele queria tanto ir l. Vamos atender ao aceno dele, aceitando seu
convite para nos aproximarmos desse lugar, com o ouvido atento s vozes de seus
moradores.
Maracangalha um
distrito do municpio de So Sebastio do Pass, cidade do interior da Bahia,
cerca de sessenta quilmetros de Salvador[56]. Fazendo parte da regio do Recncavo, o ncleo urbano de
So Sebastio do Pass bastante antigo: foi uma freguesia criada em 1718,
sendo distrito de So Francisco do Conde at 1926, quando foi emancipada e
promovida a cidade. A partir da dcada de 1960, desenvolve-se graas
explorao de poos de petrleo e, embora rica, tem uma das populaes mais
pobres do Estado e ndices de desenvolvimento humano muito baixos.
Com uma populao negra
predominante, em funo do processo de ocupao da rea ainda no sculo XVIII e
da necessidade de mo de obra escravizada para a lavoura de cana-de-acar, a
cultura local preserva fortes traos desse caldeamento. Compreendemos que nesse
processo de criao h um dinamismo histrico, cultural e temporal, que
possibilita novos modos de configurao e ressignificao do texto tradicional
oral na atualidade. Nosso olhar se voltar mais especificamente para as
mulheres negras e sua produo cultural nos dias de hoje. Desse modo, focaremos
nos modos de produzir de mulheres que interseccionam saberes, dizeres e afetos,
e seus corpos como territrio de (re)existncia da voz potica nessa
localidade.
Nos limites deste
artigo, destacamos a manifestao cultural denominada Lindro Amor. De acordo
com informaes locais, trata-se de uma brincadeira presente em Maracangalha
desde o perodo dos engenhos que l existiam, estendendo-se pelo processo de
industrializao da cana-de-acar pela Usina Cinco Rios e sendo recriada por
moradores da vila atualmente. Segundo Pr Nvea – como conhecida a
professora Nvea –, uma das mulheres integrantes do grupo Lindro Amor, o
cortejo saa nos dias de feira e nos dias de pagamento dos trabalhadores da
usina para arrecadar fundos, mas tambm com objetivo de simplesmente brincar ou
festejar a vida. Assim ela explica:
O Lindro Amor
um festejo, um cortejo formado por mulheres, homens e crianas, [...] que
pediam ajuda para o caruru de So Cosme, So Roque e Santa Brbara. Ento,
vinha na frente uma caixinha toda enfeitada de flores com a imagem do santo, as
mulheres danando e os homens tocando e cantando o ritmo de afox. O cortejo
saa na rua de casa em casa, pedindo oferenda ao dono da casa [...]. Um cortejo
nascido de dentro dos terreiros de candombl que aqui existiam, surge da
necessidade de angariar fundos para fazer e dar as oferendas para os orixs
[...]. Alm disso, o Lindro Amor participava do ritual da botada da usina, ou
seja, quando a usina ia comear a funcionar, moer a cana (Pr Nvea, informao
verbal, 31/07/2019).
Como percebemos no
depoimento acima, h inicialmente uma motivao financeira. O peditrio
sempre foi costume nas irmandades e nos terreiros de candombl. Nasce da
necessidade para angariar fundos, mas tambm uma forma de envolver a
comunidade nas celebraes, tornando a festa uma promoo coletiva. O peditrio
pode ser individual como, por exemplo, por parte do iniciado no candombl que
no tem recursos para bancar a feitura do santo ou a festa para o seu orix.
Nesse caso, o sujeito pede de porta em porta a ajuda necessria, em nome do
santo. Em geral, usam as indumentrias de sua condio e hierarquia, portam
balaios com imagens, pipocas ou a comida do orix e pedem dinheiro ou outro
tipo de ajuda. Esse costume, menos frequente nos dias atuais, tambm serve como
exerccio de humildade para o filho de santo, assim como para tornar pblica
sua condio de iniciado. As irmandades costumavam pedir esmolas para obter
recursos destinados ajuda humanitria para os mais necessitados, mas tambm
para as festas dos santos de sua consagrao.
Na descrio de Pr Nvea,
o balaio substitudo por uma caixinha toda enfeitada de flores com a imagem
do santo e a ajuda seria para o caruru de So Cosme, So Roque ou Santa
Brbara, santos catlicos, mas que tm estreita relao com as casas de santo
no Recncavo da Bahia. Pedir ajuda para oferecer comida (o caruru) justifica-se
porque, nesse contexto, o banquete deve servir a toda comunidade. No existe
festa sem comida, sem fartura e sem compartilhamento. Oferece-se a comida do
santo, mas esta deve ser tambm compartida com os envolvidos e assim se exerce
a devoo.
A msica e a dana, do
jeito que so apontadas por ela, nos remetem para a sada do terreiro para a
rua: as mulheres danando e os homens tocando e cantando o ritmo de afox.
Afox um ritmo do terreiro, uma evocao ou chamamento para o santo. Tocar e
danar na rua o ijex, ou seja, o ritmo de afox tambm tornar pblica a
relao do cortejo com os terreiros. Curiosa a estratgia de colocar o cortejo
na rua coincidindo com o dia do pagamento dos trabalhadores e dias de feira,
porque nessas ocasies haveria mais dinheiro circulando e, portanto, seria mais
vantajoso para alcanar o objetivo. Com o passar dos anos, o cortejo ganha
caractersticas mais de folguedo ou festejo e a funo de peditrio vai se
esvaziando. Da surge a questo: quais as funes que assume hoje? O que leva
esses sujeitos a reinventarem essa tradio e como ela se configura na
contemporaneidade? Qual o papel das mulheres nesse contexto?
Assim, procuramos
compreender o Lindro Amor, suas motivaes de criao e permanncia, enquanto
texto que produz sentidos para a comunidade de Maracangalha e para as mulheres,
demarcando seus territrios de identidades e produo de subjetividades. Flix
Guattari, em Subjetividade e histria, ao abordar sobre produo
subjetiva, traz para seu debate o termo singularizao como forma de
recusa produo subjetiva capitalstica. Para o autor, essa singularizao
seria como dispositivos, vias de escape para que grupos sociais, as minorias,
criem seus prprios modos de referenciao, suas prprias cartografias (GUATTARI;
ROLNIK, 1986, p. 49). Assim, propomos pensar a produo potica de Maracangalha
como um processo singular em que a subjetividade ocorre emprestando,
associando, aglomerando dimenses de diferentes espcies (GUATTARI; ROLNIK,
1986, p. 37). Nesse sentido, processo de singularizao relaciona-se com
processo criativo, ligaes, resistncia, troca de saberes, de afetos, mas
tambm com a produo potica.
A nossa anlise
ancora-se nos estudos culturais, a partir de uma viso interdisciplinar, aliada
a um referencial terico que dialoga com a proposta referida, alm das
narrativas apresentadas e materiais (orais/virtuais ou impressos/materiais)
recolhidos da tradio oral da comunidade. Isso porque consideramos as mulheres
integrantes do Lindro Amor enquanto arquivos vivos (COSTA, 2016) e suas
narrativas reveladoras de prticas de armazenamento, conservao e catalogao
de saberes.
Osmar Moreira Santos, na
obra Arquivos, testemunhos e pobreza no Brasil, aborda que, para alm de
seu corpo e performance, caixas de sapatos, bas, gavetas entre outros, podem
constituir-se em arquivos de pobres como lugar de resistncia (SANTOS, 2016, p.
16). Assim, os relatos, mas tambm colees de objetos, documentos e cadernos
de anotaes, podem ser vistos como arquivos[57] da cultura de tradio popular dessa comunidade. Enquanto
resistncia, os arquivos podem significar a labuta do trabalho, a criao e
recriao da cultura oral, mas tambm resistncia aos embates culturais no
interior de um coletivo.
Diante desta silepse,
pensar as poticas orais tambm analisar os sentidos, as formas de
resistncia e ressignificaes para a comunidade e para as pessoas que faziam e
fazem parte desses grupos. Portanto, a partir da apresentao e breve anlise
do Lindro Amor, propomos refletir sobre os territrios da voz, os corpos de
mulheres negras e a interseco de saberes e de afetos em sua produo
cultural.
Delineando
o territrio da voz em corpos de mulheres negras
Conhecida por sua hospitalidade,
poeticidade e musicalidade, Maracangalha tambm lembrada por narrativas orais
sobre personagens famosos neste cenrio, como a histria da sambadeira Amlia[58] e do capoeirista Besouro[59]. Algumas dessas narrativas remontam ao tempo dos engenhos,
quando grupos afrodescendentes eram escravizados e explorados pelo sistema de
poder.
Como foi dito, Maracangalha
pertence ao municpio de So Sebastio do Pass, a 51 Km do cruzamento das
rodovias BR-324 e BR-110. No acesso vila, h um monumento, uma espcie de
chamin, que representa partes da usina e identifica o nome da comunidade.
Apresenta uma paisagem natural e modificada, marcada pelos canaviais, pelas
guas do Rio Joanes e por um solo denominado massap, elementos esses
que se fundem no processo de construo de sua linguagem potica.
Portanto, ao chegar
comunidade, nos deparamos com uma encruzilhada, que pode ser descrita,
percebida e visualizada em suas formas, mas tambm em sentidos. Na horizontal,
temos uma linha frrea que nos leva para outros contextos e cenas culturais. J
no sentido vertical, trilha-se para o centro da comunidade. importante
ressaltar que nesse cruzamento, avistamos, esquerda, as runas da Usina Cinco
Rios. Seu nome gasto pela ao do tempo, representa a decadncia de uma
atividade econmica que permanece na lembrana dos mais velhos.
Nesse territrio cultural, h uma praa nomeada Dorival
Caymmi que, em seus contornos, revela traos especficos do local como o
desenho de um violo, signo que compe e faz parte da cultura popular
tradicional da localidade. Em volta da praa, casas arquitetadas na poca em
que os moinhos da usina estavam a todo vapor, a Igreja Nossa Senhora da Guia,
alm do largo do mercado, que serviu e serve de palco para as festas populares
da comunidade. Maracangalha era toda festa e oraes, como descreve Valdevino
Neves Paiva:
O largo da capela parecia uma lapinha. Barracas
de palha de pindoba ou dendezeiro, enfeitadas de bandeirolas multicores, eram o
principal ponto de atrao turstica das pessoas vindas das fazendas vizinhas,
da cidade de So Sebastio do Pass e de outras, como Candeias, So Francisco
do Conde, Santo Amaro, Salvador entre outras. [...]. Por toda parte o povo
andava, e em toda parte havia um ponto de diverso: aqui uma roda de samba;
[...] adiante uma roda de capoeira com capoeiristas famosos da Bahia, como
Mestre Bimba e outros; mais frente – cavaleiros trajados a rigor,
cavalos enfeitados [...]. Ngo bebo no faltava, perturbando as rodas de samba,
intrometendo-se entre os folies do afox organizado por Lau (Ladislau Bispo)
na fazenda Quibaca, ou entre os blocos que Jos Porfrio ou Z Pretinho
colocavam nas ruas (PAIVA, 1996, p. 67).
A saborosa descrio de
Paiva nos d a dimenso de quo colorida e fervilhante era Maracangalha em dias
de festa, envolvendo pessoas advindas de outras cidades, num conjunto que
misturava religiosidade, cavalgadas, samba e capoeira, tudo regado a muita
bebida e podendo haver confuso. nesse territrio que analisaremos as
produes poticas dos moradores de Maracangalha, reconhecendo a contribuio
dessas produes para a formao identitria baiana e brasileira. O lugar
potico, onde mulheres negras trocam saberes para que a memria da tradio
atravesse o tempo e o espao.
Embora o Lindro Amor no
seja uma manifestao cultural exclusivamente feminina, nossa pretenso aqui
apresentar um breve olhar sobre o deslizamento dos corpos das mulheres negras que
fazem parte da cultura de tradio oral de Maracangalha. Quem so essas mulheres?
O que seus corpos produzem?
Tentando traar um
perfil das narradoras maracangalhenses, observamos que elas so senhoras de 60
a 80 anos, em grande parte no escolarizadas ou semianalfabetas, praticantes do
cristianismo e de religio de matriz africana. Historicamente, as mulheres
negras da regio eram trabalhadoras dos engenhos, das casas grandes, amas de
leite, rezadeiras e sambadeiras. Atualmente, seus afazeres
vo alm dos de donas de casa. Exercem atividades representativas em sua
comunidade, como mes de santo, costureiras, professoras, lderes de grupo
cultural, entre outras ocupaes. Mulheres de classes populares que, por
intermdio de suas memrias, transportam, mas tambm conectam passado e
presente, percebendo ou no, que suas aes resultam na atualizao e
conservao da potica oral.
Para o medievalista Paul
Zumthor, o corpo ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o
referente do discurso (ZUMTHOR, 2007, p. 77). De acordo com o pensamento do
autor, o corpo o local que emana a voz. Nele, a voz se materializa, dando uma
impresso de presena, impondo-se, preenchendo espao, tanto material quanto
semntico. Enquanto territrio vocal, o corpo presena performtica. J a voz
precisa do corpo para atingir sua plenitude (ZUMTHOR, 2005). Portanto, o corpo
das mulheres negras deve ser visto como o espao territorial da voz potica
tradicional de Maracangalha, que se articula em um trnsito semntico
discursivo para sua (re)existncia.
Grada Kilomba, ao
discorrer sobre os corpos de mulheres negras, afirma que No racismo, corpos
negros so construdos como corpos imprprios, como corpos que esto fora do
lugar, por essa razo corpos que no podem pertencer (KILOMBA, 2019, p. 56). A afirmao da autora pontua, mas
tambm valida o longo processo histrico vivido pelas mulheres negras inseridas
no sistema racista, opressor e patriarcal, que invalidam seus corpos e,
automaticamente, todos seus conhecimentos. Ao nos referirmos s mulheres
negras, seus corpos no podem ser vistos como primitivos ou irracionais, como
foi conceituado na perspectiva eurocntrica para as relaes de dominao e explorao
de trabalho (QUIJANO, 2005). Entretanto, aqui, o corpo tem uma integridade, uma
racionalidade, ele produz linguagem. o corpo um territrio em que ganha vida
a performance potica. Ele carrega a memria cultural, mas tambm a voz da
tradio. Desse modo, interessa-nos investigar a atuao das mulheres de
Maracangalha enquanto corpos que resistem e enfrentam e revertem os discursos
que as desqualificam.
Entre a oralidade e a escrita, extenses da memria
Adentrar a comunidade de
Maracangalha, enquanto pesquisadoras, vasculhar, com o olhar minucioso, as
gavetas, bas e quartinhos, procura de objetos, indumentrias, bandeiras,
cadernos, livros, instrumentos musicais, CDs, DVDs etc. Compem o cenrio
investigado, altares, imagens de So Cosme e Damio, do Sagrado Corao de
Jesus e Maria, Santo Antnio, quadros que representam outras paisagens
culturais. Interessa-nos a poesia oral/escrita, o canto, as narrativas em
performances, entrelaando discursos do ontem e do agora, mas tambm todo esse
cenrio e os objetos que o compem. Esse conjunto integra a produo da cultura
local, revelando as formas de arquivamento da memria, individual e coletiva.
Todo arquivo uma
seleo e parte de uma ao, valor, significao que determinado objeto
representa para um indivduo ou seu grupo, pois desde a seleo para essa
guarda, de forma intencional ou no, o ato de arquivar os objetos, carregam em
si a memria de seu guardio. Os arquivos da cultura popular esto distantes
dos arquivos pblicos, dos grandes centros culturais, das instituies que
representam o Estado, mas tambm so formas de salvaguardar e preservar a
memria cultural, seus fazeres, suas crenas, seus costumes, da ao do tempo. Ademais,
percebemos que os sujeitos tambm selecionam seu arquivo material com formas
prprias de organicidade e metodologia, cuja diversidade se faz presente nos
arquivos pblicos, mas com cuidado e zelo, pelo valor simblico que esses
arquivos representam para os indivduos e para a comunidade. Portanto,
metodologia e organicidade perpassam por um ato subjetivo dos sujeitos.
Alm disso, os arquivos
trazem em si o vazio, o silncio, o rastro de outros tempos, experincias e
vivncias. Assim, vemos que podem servir de testemunhos de lembranas e
esquecimentos, assim como so tambm ferramentas para a preservao de
informaes culturais relacionadas ao grupo do Lindro Amor. Destacamos dentre
os objetos de fixao de memrias um dos cadernos da professora Nvea.
Para a leitura dos
signos presentes no acervo cultural do Lindro Amor, apropriamo-nos da expresso
arquivista anarquista proposta por Reinaldo Marques que, ao fazer
referncia ao perfil do pesquisador ao lidar com o arquivo literrio, deve
atuar como arquivista anarquista, lendo o arquivo a contrapelo (MARQUES, 2008,
p. 117). Segundo o autor, isso possibilita uma leitura crtica, a desconstruo
da ordem dos arquivos, formulando novas formas de leituras e interpretaes. O
sujeito do arquivo desafia o arquivista, pois o fora a olhar para o que
ocultado e acurar o ouvido para ouvir os silenciamentos.
O pesquisador/ouvinte,
em contato com as formas de arquivos, deve voltar seu olhar para a natureza
discursiva, sua ocultao ou exposio [...], mas tambm para a narrativa que
se estabelece nesses fragmentos (COSTA, 2016, p. 60). Nesse sentido, vemos que
o pesquisador deve atentar para a linguagem presentes nos objetos, os sentidos
revelados pelo arquivo. Desse modo, considerando os narradores como arquivos
vivos (COSTA, 2016), a construo de sentidos da potica oral se atualiza, se
ressignifica, apresentando a intervocalidade que, segundo Paul Zumthor
(1993), deve ser entendida como a voz que faz uma trilha no tempo e no espao,
mas que tambm carrega a tradio.
Importante notar que,
embora a transmisso dos saberes seja predominantemente oral, encontramos no
caderno de anotaes um suporte valioso que indica no s o domnio do cdigo
escrito, mas o uso adequado dessa ferramenta em funo do desejo de registro e
salvaguarda. Zumthor (2010, p. 39) prescreveu que a poesia oral hoje se exerce
em contato com o universo da escrita. Para o autor, esse contato pode
acontecer em um prazo mais ou menos longo, chamando a ateno para o impacto da
escrita sobre a poesia oral. A declarao de Zumthor apresenta relao com as
formas de arquivo da cultura popular de Maracangalha, uma vez que os arquivos
carregam a voz da tradio. Ao acessar esses arquivos virtuais/materiais, seus
narradores/ouvintes, atravs da performance, proporcionam a produo e a
transmisso da potica oral. Por outro lado, o caderno de anotaes, como o de
Pr Nvea, revela a transcrio da voz, materializando a palavra oral em
escritura, uma espcie de segunda lngua (Zumthor, 2005), afirmando o domnio
do cdigo escrito em um territrio aparentemente dominado pela oralidade.
Pode-se tambm revelar, numa perspectiva espacial, um territrio afetivo em que
pares trocam afetos e experincias.
Dentre as mulheres que
tem o domnio da escrita no grupo Lindro Amor, Pr Nvea tem as melhores
condies para registrar no caderno – que intitulou Cultura Popular
– aspectos essenciais do Lindro Amor, mas no s. Trata-se de uma
relevante produo sobre a cultura de tradio oral, uma espcie de cdice,
onde esto registradas as narrativas orais que atravessaram e atravessam o
tempo na vila. A autora configura esse arquivo em duas partes: na primeira
esto escritos cnticos, benditos e louvores em honra a Maria, So Roque e
Santo Antnio; na segunda parte, encontramos as cantigas de Bumba-meu-boi,
Folia de Reis, Samba de roda, bailados e do Lindro Amor. Nesse breve sumrio do
caderno, esto listados os interesses da autora/organizadora e os textos
caractersticos da tradio da comunidade que vo de textos religiosos a
folguedos.
Nvea afirma que o
caderno tem funo pedaggica dentro da comunidade, servindo de manual para as
professoras ensinarem a cultura de tradio oral aos alunos da escola de ensino
fundamental presente na vila, objetivando as apresentaes dos eventos
escolares e a comemorao do dia do folclore, alm de servir de guia para as
novenas dos santos catlicos e da festa da padroeira – Nossa Senhora da
Guia. Assim, o caderno Cultura popular uma produo individual, uma escrita
de si, que apresenta os saberes de uma coletividade, mas tambm, assim como a
voz, se move para atender os mltiplos letramentos[60] da comunidade.
A cantiga do Lindro Amor
que segue faz parte desse arquivo:
Eu
no sou daqui,
Sou
de Maracangalha.
Eu
no sou daqui,
Sou
da terra de Anlia.
Trago
o samba no p
E
o meu chapu de palha.
O sujeito potico dessa
cantiga demarca um lugar e sua identidade cultural. O sujeito que fala est em
outro espao que no Maracangalha, mas sente necessidade de demarcar seu
territrio de identidade, valendo-se dos signos conhecidos do lugar em outros
contextos. Desterritorializa-se e reterritorializa-se, autoafirmando-se. Para
isso, empreende um movimento de apropriao ou antropofagia cultural da cano
de Dorival Caymmi, como uma forma de dar maior visibilidade ao grupo, uma vez
que o nome da localidade conhecido nacionalmente graas aos versos desse compositor.
Ademais, chamam a ateno os signos presentes no texto de Caymmi: Anlia,
chapu de palha e samba no p. Fazendo referncia a Amlia,
segundo os moradores, a maior sambadeira de Maracangalha e por isso mesmo
citada por Caymmi, o sujeito se coloca no mesmo lugar que deu fama ao povoado.
A referncia ao chapu de palha, repetindo a mesma rima usada por Caymmi
(Anlia/palha) uma clara aluso ao acessrio do grupo de samba que, por sua
vez, imita as indumentrias dos trabalhadores dos canaviais e outras labutas.
Ao dizer eu no sou
daqui, o sujeito potico coloca-se no lugar do estranho ou forasteiro em
relao ao territrio-no-lugar ou um aqui ocupado provisoriamente. Por
outro lado, coloca-se como algum que sabe bem qual lugar o seu e o vai
descrevendo nos versos seguintes, no com caractersticas da paisagem, da
localizao ou atividade econmica, selecionando aspectos culturais. Descreve o
seu lugar como a terra da Anlia, e isso lhe basta. Assim como lhe basta
descrever a si mesmo como algum que sabe sambar e usa chapu de palha. Com
esses signos, cria-se uma imagem homognea que identifica o sujeito potico e
todos os outros sujeitos da terra de Anlia.
O primeiro e o terceiro
versos, eu no sou daqui, tambm nos remetem a uma cano de domnio pblico:
Marinheiro s, gravada por Clementina de Jesus[61]:
Eu
no sou daqui, marinheiro s
Eu
no tenho amor, marinheiro s
Eu
sou da Bahia, marinheiro s
De
So Salvador, marinheiro s.
Assim como nos versos do
Lindro Amor se diz textualmente sou de Maracangalha, aqui tambm necessrio
dizer de onde se , demarcar seu territrio: eu sou da Bahia/de So Salvador.
Nos versos do marinheiro fica subentendido que um sujeito em trnsito, um
viajante solitrio (marinheiro s); nos versos do Lindro Amor, esse trnsito
pode se justificar pelo fato de o cortejo tambm se deslocar para outras
localidades para pedir a esmola dos santos, de acordo com a explicao de Pr
Nvea mencionada anteriormente. Eis um aspecto que se constitui como forte
indicador de identidade: o sujeito gira o mundo, mas se revela a partir do seu
lugar de origem: no se diz eu sou..., mas se diz eu sou de.... Nos versos
de ambas as cantigas parece transpirar um certo orgulho ao revelar seu
territrio e tambm a necessidade de demarcar o deslocamento, explicitado nos
versos eu no sou daqui.
A cantiga Marinheiro
s ficou marcada pela interpretao nica de dona Clementina de Jesus, dona de
uma voz negra que nos remete ancestralidade e aos cnticos dos terreiros, ela
mesma pioneira em gravar pontos de macumba e dar visibilidade ao matriarcado
nas religies de matriz africana. Ao dizer eu no sou daqui, essa voz nos diz
tambm desse lugar diasprico e solitrio. Se consideramos que a Marinha do
Brasil foi um dos poucos lugares a acolher os negros libertos no perodo
ps-abolio, em funo das pssimas condies de trabalho e da forma desumana
como os trabalhadores eram tratados, haver ainda muito a se dizer dessa
cantiga[62]. No entanto, no caber aqui, pois nos desvia do repertrio
do Lindro Amor e das anotaes de Pr Nvea.
Em outra folha do
caderno, encontramos a cantiga de samba de roda que segue:
Arraste a cadeira e senta, mulher!
Tu no dana, tu no samba,
que diabo faz em p?
Arraste a cadeira e senta, mulher.
Como se v nessa quadra,
o contexto de interlocuo a roda de samba. O sujeito potico revela um
incmodo pelo fato de a mulher estar de p, sem danar. Na roda, o lugar do
corpo danante o centro. Em volta da roda esto os msicos e os cantadores,
os que no danam e se limitam a responder os refres e bater palmas. A mulher
em geral ocupa o centro, o lugar da dana, assim como o sapateado e a umbigada.
Nesse espao central, espera-se o corpo livre, comandado apenas pelo ritmo da
msica. No entanto, nessa cantiga, podemos observar que no h liberdade de
escolha. O corpo feminino que, apesar de estar de p, no ocupa o lugar da
brincadeira, convidado a sentar-se, ou seja, excludo da roda. O tom
imperativo arraste a cadeira e senta no deixa opo nem meio-termo: ou est
dentro ou est fora (ou dana ou senta). A estrutura circular da cantiga,
comeando e terminando com versos idnticos (a ordem de se sentar) deixa clara
a insistncia nessa ideia: nos versos centrais est a explicao (Tu no
dana, tudo no samba) e a indignao (que diabo faz em p?), reforando o
incmodo com a repetio que inicia e fecha a estrofe (arraste a cadeira e senta).
Essa mulher parece no
ter voz nem escolha, devendo assumir o papel j previamente determinado.
Poderia parecer uma preocupao motivada pela gentileza de dar assento a uma
dama, no fosse o tom grosseiro da pergunta que diabo faz em p? Como se essa
posio da mulher de p atrapalhasse o samba, ocupando o lugar de quem deveria
danar. Nessa situao, ela excluda da roda, invisibilizada, sendo colocada
como mera observadora. Por outro lado, a ordem de se sentar pode ser
interpretada tambm como uma provocao para que todas as mulheres participem
do samba. Os versos dizem claramente qual o lugar que a mulher deve ocupar e,
se no o fizer, comete um interdito que se traduz no incmodo e na irritao do
sujeito potico. Em ltima instncia, seu corpo ocupa o seu lugar de estar no
mundo e, se esse lugar ou seu comportamento visto como inadequado, porque
ela faz uso da liberdade de desafiar o pr-estabelecido.
desse modo que essas
cantigas se convertem como farto material etnogrfico, documentos da memria
cultural que revelam os modos de ser e fazer das comunidades narrativas. No
Lindro Amor, as vozes das mulheres da comunidade de Maracangalha so
ressignificadas e traduzidas em discursos. Entende-se discurso como formas de
expresso da linguagem que servem de ferramenta para essas mulheres se
posicionarem contra hierarquias discursivas que tentam silenciar suas vozes e
invalidar seus saberes. Desse modo, vamos ao encontro do pensamento de Foucault
(1996) sobre interdio da fala de grupos subalternizados pelo sistema de
poder. Segundo o autor, esses grupos at falam, mas existem mecanismos de poder
que os impedem de serem ouvidos. Nesse sentido, o discurso dessas mulheres
negras interditado por uma ordem discursiva que, no seu interior ou exterior,
dita o que deve ser falado e por quem.
Desse modo, essas
mulheres juntam esforos e criam parmetros para seus modos de produzir. Nos seus
corpos, esto as engrenagens discursivas da produo potica e de sua
coletividade, o lugar marginalizado pela cultura hegemnica, silenciado
historicamente pelo discurso do poder, como nos alerta Kilomba (2019), ao
argumentar que o silncio da subalterna tem suas razes no colonialismo. Nesse
sentido, ao produzir e transmitir a potica oral, essas mulheres negras tentam
romper essa barreira discursiva colonial, que nega seus conhecimentos e suas
vozes. Por outro lado, o que observamos a existncia desse lugar e o eco de
suas vozes atravessarem o tempo, mover-se em sua comunidade por intermdio de
suas memrias. Nota-se que essas narradoras tm conscincia do que fazem e o
porqu fazem, no havendo passividade em suas produes.
na linguagem e com a
linguagem que essas mulheres e seus pares buscam o devir emancipatrio e
poltico em suas vidas, tentando sair de um lugar comum. Os que a produzem de
modo inconsciente ou no, criam uma lngua prpria que os caracterizam,
construindo suas identidades. Esses so os aparatos que determinam o modo de
produzir utilizado por essas pessoas, caracterizando um estilo prprio,
possibilitando sair do padro de normalidade discursiva. Portanto, essas
mulheres se apropriam da linguagem como dispositivo ou veculo para levar a
memria do texto oral a novos interlocutores e outros contextos. E, nesse
deslizamento, elas se afirmam enquanto mulheres negras, alm de descobrirem
outras formas de ser mulher, insurgindo-se contra um sistema de poder.
A cena teatral,
performtica, de transmisso dessa potica, evidencia o protagonismo dessas
mulheres negras como os pilares fundamentais da produo, mas tambm a
interseco de seus saberes e de seus corpos, alm dos seus esforos para
valorizao e revitalizao do texto na atualidade. Assim, percebemos os modos
de produo da poesia oral como o processo de singularizao que geram ligaes
de resistncia, embates e fora criativa. Esses elementos possibilitam a
produo, a transmisso desse fazer literrio, alm de categoriz-lo como uma
produo de troca dos afetos e saberes.
Consideraes finais
As reflexes
apresentadas neste artigo nos levam a pontuar os caminhos trilhados por
mulheres para produzir a cultura popular de tradio oral. Analisamos que esses
caminhos levam seus fazeres para um campo discursivo onde esto presentes embates
internos e externos, aes polticas, relaes de fora, mas que tm como
resultado a valorizao e salvaguarda do texto oral. Alm disso, a via mostra
as engrenagens desse processo, medida que a produo acontece, a poesia oral
se move para a atualizao e ressignificao.
Por outro lado,
ressaltamos que elas, ao reinventarem o processo de produo, tambm se
reinventam enquanto mulheres. Desse territrio de fala, com seus pares, buscam emancipao
e ascenso social, vivenciam experincias que possibilitam insurgncia de
prticas que desestabilizam, mas tambm modificam discursos sociais que servem
de barreira para ascenso do grupo e de sua cultura.
Por fim, a produo da
potica oral perpassa pela criao artstica, singularizao, criatividade da
linguagem, mas tambm pela resistncia e (re)existncia da cultura popular de
tradio. Nessa perspectiva, literatura e vida caminham juntas no campo de
produo, como possibilidade, ferramenta, maquinaria de criao potica.
Ademais, nessa linguagem e no entrelaar dos corpos dessas mulheres negras
que, historicamente, seu texto produzido, transmitido e ressignificado no
tempo. Vivendo e predominando nos registros e na memria cultural de
Maracangalha.
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[Recebido: 11 out 2020 – Aceito: 13 jan 2021]
A POTICA DA VOZ NO TERRITRIO DO MARAVILHOSO
NAPOLITANO E BAIANO: TRANSMISSO ORAL, CONSELHO E TROCA DE SABERES
THE POETICS OF VOICE IN
THE NEAPOLITAN AND BAHIAN TERRITORY OF THE MARVELOUS: ORAL TRANSMISSION,
ADVICE, AND SHARED KNOWLEDGE
Adriana Aparecida de Jesus Reis[63]
https://orcid.org/0000-0002-9717-4642
Resumo: O mito de Eros/Cupido e
Psiqu foi narrado nos livros IV, V e VI do romance antigo O asno de ouro
por Lcio Apuleio. O texto da literatura latina forneceu a fonte para o
escritor napolitano Giambattista Basile (1575-1632) escrever sua obra-prima Lo
cunto de li cunti (O conto dos contos). Ele usou o mito como
inspirao para escrever o nono conto de fadas da segunda jornada, o qual
recebeu o ttulo de O cadeado. Parente em primeiro grau de O cadeado o
conto maravilhoso Anglica mais afortunada (O prncipe Tei). Essa histria
foi coletada pelo folclorista brasileiro Marco Haurlio em Igapor, na Bahia, e
registrada em seu livro Contos e fbulas do Brasil. Este artigo busca
analisar no somente o dilogo intertextual entre os contos maravilhosos
napolitano e baiano, mas principalmente os elementos populares que se ligam
transmisso dessas narrativas pela oralidade, tendo em vista que tais histrias
primeiro foram contadas oralmente por contadores e depois ouvidas por
compiladores e folcloristas que as registraram em suas coletneas maravilhosas.
Verifica-se que os escritores deram um toque particular s narrativas
coletadas, demonstrando a presena de uma oralidade, porm reconstruda por
recursos que evidenciam suas culturas locais.
Palavras-chave: Ciclo
noivo-animal. Contos maravilhosos. Oralidade. Giambattista Basile. Marco Haurlio.
Abstract: The myth Eros and Psyche was narrated by Lucio
Apuleio in the books IV, V, and VI of his novel The Golden Ass. The Latin
literary text provided the source from which Neapolitan writer Giambattista
Basile (1575-1632) drew the inspiration to write his own masterpiece, Lo
cunto de li cunti (The tale of tales). He used the myth as a basis
to build the ninth fairy tale from the second journey on, which was titled The
padlock. A close literary relative to The padlock is the wonder tale
Angelica, the most fortunate (The tegu prince). The story was collected by
Brazilian folklorist Marco Haurlio in Igapor, Bahia, and registered in his
book Tales and Fables of Brazil (2011). This paper aims to analyze not
only the intertextual dialogue between the Neapolitan and Bahian tales but
especially the popular elements that are tied to the oral transmission of such
narratives. It takes into account the fact that those stories were first told
orally by storytellers and then heard by collectors and folklorists that
registered them in their tale collections. It is noticeable how writers gave a
personal touch to the collected narratives, which demonstrates the presence of
certain orality but reconstructed by resources that highlight their local
cultures.
Keywords: Animal-groom cycle.
Wonder tales. Orality.
Giambattista Basile. Marco Haurlio.
As vozes da tradio
Segundo
o etngrafo Lus da Cmara Cascudo, em seu livro clssico Literatura oral no
Brasil, contar histrias populares, desde os primeiros registros escritos,
remonta a um ambiente protocolar em qualquer parte do mundo, segundo o qual as
histrias e as adivinhaes so narradas durante as primeiras horas da noite. A
escolha por esse hbito noturno, de acordo com o mestre potiguar, explica-se
pelo fato de ser o horrio final da tarefa diria e pela atmosfera de
tranquilidade e sossego espiritual para a evocao e ateno do auditrio.
Escolhendo o ambiente noturno, Cascudo (1984, p. 228) nos recorda dos melhores
ttulos que denunciam essa universalidade do hbito
Mil e Uma Noites, Fireside Stories de Kennedy, Veills
Bretonnes de Luzel, XIII Piacevoli Notte de Straparola, Foyer
Breton, de mile Souvestre, Veilles Des Mayens, de Couthion, Veilles
Allemandes, traduo de lHritier de lAin, de contos, crnicas e
tradies dos irmos Grimm.
De
todas essas colees europeias de narrativas populares que explicitam a
preferncia pelo hbito de contar histrias noite, nos interessa a coletnea
italiana XIII Piacevoli Notti, de Straparola, tambm designada de Le
piacevolli notti (As noites agradveis). Essa obra pode ser
considerada precursora na compilao do gnero maravilhoso na Itlia, pois o
escritor Gian Francesco Straparola reuniu, maneira de Boccaccio, em treze
noites, narrativas populares a partir de 1553 (SPERBER, 2009). Das 75 histrias
que formam esta coletnea italiana, encontramos no somente contos de fadas,
narrados ao modo maravilhoso, mas tambm contos realistas, articulao bem
percebida por Ana Lcia Merege: Publicado pela primeira vez em Veneza, no ano
de 1550, o livrou reunia contos de fadas, contos populares, como O Gato de
Botas[64], e histrias de carter
cotidiano, cujo bom-humor lhe valeria crticas por parte dos autores e
estudiosos de moral mais rgida (MEGERE, 2010, p. 43).
Essa diferena de gnero
entre contos de fadas e histrias de carter cotidiano tambm se mostra
relevante na lngua italiana, pois, para os contos de fadas ou populares,
existem as palavras fiaba ou racconti, que designa a presena do
elemento maravilhoso, e para as histrias de carter cotidiano, existem as
palavras novella (singular) ou novelle (plural), que so
narrativas curtas verossimilhantes. fato que o escritor italiano Straparola,
justamente por mesclar matria narrada do modo maravilhoso as histrias
verossimilhantes, aproxima-se de Giovanni Boccaccio, autor do Decamerone
ou Decamero, obra-prima da literatura italiana do sculo XIV,
conhecida, principalmente, pela narrao da peste negra do final da Idade Mdia
em seu conto moldura, dentre outros temas. Ainda que Straparola se aproxime de
Boccaccio, devemos ressaltar que a obra deste escritor italiano do sculo XIV
composta somente por narrativas do gnero novelle, ou seja, histrias
verossimilhantes, ao nmero de cem.
Utilizando
a estrutura de moldura, inaugurada por Boccaccio no sculo XIV na literatura
italiana, depois empregada por Giovan Francesco Straparola em Le piacevolli
notti, e escolhendo, porm, o hbito diurno para contar seus cinquenta
contos de fadas recolhidos da oralidade, encontra-se o escritor italiano
Giambattista Basile (1575-1632), autor de Lo cunto de li cunti ovvero
trattrattenemiento de peccerille ou O conto dos contos ou entretenimento
dos garotinhos em portugus, obra-prima publicada postumamente, entre 1634
e 1636, pela irm do escritor, Adriana Basile, uma famosa cantora de pera da
Itlia seiscentista (do sculo XVII).
A
obra Lo cunto de li cunti, tambm percursora do registro do gnero
maravilhoso na Itlia, foi publicada originalmente em dialeto napolitano no
sculo XVII, em razo de sua matria ter sido recolhida entre a camada popular,
formada por camponeses e marinheiros do interior da provncia de Npoles, por
Basile durante seu encargo como governador feudal da provncia. Mas foi somente
em 1925, pelas mos do crtico, filsofo e tradutor italiano Benedetto Croce,
que Lo cunto de li cunti de Basile foi traduzido para o italiano standard
(o italiano mais prximo do dialeto florentino utilizado pelos trs mestres
italianos do sculo XIV), recebendo um novo ttulo em aluso ao modelo
estrutural usado por Boccaccio no seu Decamerone: Pentamerone ossia
la fiaba delle fiabe (Pentamero ou seja a fbula das fbulas).
Apesar
da tardia traduo de Croce, inegvel que o crtico italiano tornou a obra de
Basile corrente por toda a pennsula italiana, j que havia restries
lingusticas ligadas ao dialeto de Npoles, considerado marginal na poca.
Entretanto, essa mudana de ttulo, embora estratgica, ao aproximar a obra
napolitana do ttulo da obra de Boccaccio, acabou por desmerecer, sobretudo, a
engenhosidade de Basile enquanto escritor, demonstrada desde o ttulo original
do livro, pois o ttulo Lo cunto de li cunti, ou O conto dos contos
em portugus, salienta, a nosso ver, a estrutura de encaixe, ao ressaltar o
conto maior Lo cunto que enquadra os contos menores li cunti,
o que vai ao encontro da observao do crtico italiano Michele Rak:
A
obra foi construda do seguinte modo: um conto (o quinquagsimo da
abertura/pontes narrativas/fechamento) no interior do qual so narrados outros
quarenta e nove contos. Por este motivo a obra foi intitulada conto dos contos.
Se fala de jogo dos jogos no mesmo sentido [...]. O quinquagsimo conto a
histria de Zoza que abre e fecha a obra e tem a mesma estrutura do ltimo
conto (As trs cidras, o quadragsimo nono: confira o conto 9 da quinta
jornada) (RAK, 2004, p. 15, traduo nossa[65]).
Como
bem destacou Rak (2004), o conto moldura (quinquagsimo), que assinala os
quarenta e nove contos internos obra, a histria da princesa Zoza, uma
princesa que nunca sorria e, quando sorria, em virtude de gestos bizarros de
uma velha avistada pela princesa atravs da janela do palcio. Na verdade, a
velha havia levado um tombo, o que provocou uma grande gargalhada na princesa e
ao mesmo tempo uma grande ira na velha, que, por esse motivo, jogou uma
maldio sobre a princesa, segundo a qual o prncipe com quem ela se casaria,
chamado Taddeo, estava dormindo numa tumba longe da cidade e, ao encontr-lo
adormecido, ela teria, caso quisesse se casar com ele, chorar um vaso de
lgrimas. Diante disso, Zoza parte para fora da cidade e encontra o prncipe
adormecido, e logo se pe a chorar, porm, a princesa vencida pelo cansao e
adormece e quem termina de encher a nfora a velha escrava, fato que rompe o
estado letrgico do prncipe, que, pensando que a escrava fosse sua salvadora,
se casa com ela e a leva para morar em seu palcio na cidade de Torrelunga.
Inconformada pelo ardil do qual foi vtima, Zoza tambm arquiteta um plano:
morando em frente ao palcio do prncipe, a princesa d de presente escrava
vrios objetos mgicos, dentre eles uma boneca que incute na ex-escrava o
desejo incontrolvel de ouvir contos de fadas. Assim, o prncipe convoca dez
mulheres velhas e mais linguarudas da cidade para narrar, durante cinco dias,
ou jornadas, e entre banquetes e jogos tpicos da vida cortes, dez contos de
fada (dez contos por dia), totalizando, ento, cinquenta contos maravilhosos,
sendo o quinquagsimo a prpria histria de Zoza. A princesa desmascara a
ex-escrava no ltimo conto da ltima jornada, fechando assim o quadro, o que
conduz o final feliz para a princesa e a punio para a escrava.
A
obra de Basile composta, alm da histria de Zoza, que representa a narrativa
moldura, por quarenta e nove contos enquadrados que contm contos de fadas
considerados matrizes literrias de contos clssicos encontrados nas colees
de Perrault e Grimm, de acordo com Merege (2010, p. 45): Publicada em 1634-36,
a obra contm as primeiras verses escritas de histrias como Cinderela
e A bela adormecida, num tom cmico e s vezes grosseiro que soa de
forma estranha aos leitores dos contados herdados da tradio dos Grimm.
Alm
de conter histrias famosas em todo o folclore europeu, Lo cunto de li cunti,
de Basile, conserva histrias populares do tipo ciclo noivo-animal, termo
cunhado por Bruno Bettelheim em sua obra A psicanlise dos contos de fadas,
para designar contos de fadas originrios do mito de Cupido e Psiqu
(BETTELHEIM, 2020), conto mtico que fora recolhido e registrado por Lcio
Apuleio no romance antigo O asno de ouro. Do ciclo noivo-animal, foi
registrado por Basile em O conto dos contos o nono conto de fadas
narrado na segunda jornada, intitulado Il catenaccio (ou O cadeado em
portugus), como comprova Croce (2010, p. 165, traduo nossa) na introduo do
livro em italiano: E ns compreenderemos, sobretudo, que vrios
entretenimentos pertencem ao grupo daquele, que o conto de fadas mais famoso
e mais rico de histria, o conto de Psiqu – Assim o nono da segunda
jornada, no qual se conta a histria de Luciella[66].
O
mais curioso que esse conto, que narra a histria de Luciella (Lucinha) e seu
caso amoroso com um prncipe encantado que foi alvo de uma maldio, chegou ao
imaginrio baiano, com o ttulo de Anglica mais afortunada (o prncipe
Tei), recolhido pelo escritor e folclorista brasileiro Marco Haurlio em
Igapor, na Bahia, e registrado em seu livro Contos e fbulas do Brasil,
conforme atesta o prprio coletor da obra brasileira: Um conto recolhido em
Igapor, Bahia, chamado Anglica mais afortunada, com a histria de um
prncipe encantado tei, parente em primeiro grau de O cadeado
(entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron (HAURLIO,
2018, p. 11).
Por
terem o mesmo ancestral mtico, tanto o conto maravilhoso de Giambattista
Basile, intitulado O cadeado, quanto o conto maravilhoso de Marco Haurlio,
chamado Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), so histrias populares
pertencentes ao ciclo noivo-animal, o que j nos leva a inferir que, j pela
denominao da expresso noivo-animal, que todas essas histrias tm em comum
o elemento maravilhoso da metamorfose do noivo em animal; no caso da verso
brasileira, como denota o ttulo, um prncipe Tei, com quem Anglica aceita o
sacrifcio de viver sem nenhuma resistncia, motivo do noivo-animal retomado na
verso brasileira, segundo Haurlio (2011). Dada a essa convergncia, temos
como objetivo, no presente artigo, fazer uma comparao intertextual entre os
contos maravilhosos do napolitano Giambattista Basile e do brasileiro Marco Haurlio,
examinando, principalmente, os elementos populares que remetem transmisso
oral dessas histrias populares, os quais, ao nosso entendimento, demarcam o
territrio da potica da voz nessas narrativas maravilhosas, que, alis, foram
primeiro contadas oralmente e depois ouvida por esses coletores, que as
registraram em suas coletneas.
As
vozes da tradio tambm esto presentes na coletnea brasileira Contos e
fbulas do Brasil, resultado do trabalho que o folclorista, poeta e
escritor Marco Haurlio[67], nascido na Bahia, j
vinha desenvolvendo desde 2005 com sua publicao de Contos folclricos
brasileiros, voltada ao pblico infanto-juvenil, porm a coletnea de 2011
uma reunio de histrias destinadas a leitores de todas as idades. A coletnea
Contos e fbulas do Brasil inclui, alm de contos populares recolhidos na
Bahia, contos oriundos de outros estados do Nordeste, como Pernambuco e
Alagoas, todos coletados da rica tradio oral da regio por meio de um
gravador. O dilogo de Marco Haurlio com a tradio se manifesta no somente
pelo rico acervo de contos recolhidos daquela regio, mas tambm pelo fato de o
folclorista dedicar seus Contos e fbulas do Brasil a Brulio do
Nascimento, como Haurlio (2011, p. 11) testemunha no prefcio que escreveu
para sua coletnea: E ao Professor Brulio do Nascimento, emrito catalogador
do conto e do canto popular, ofereo mais estas flores colhidas do jardim da
tradio.
Explicita
a relao entre Brulio do Nascimento e Marco Haurlio, alm da dedicatria feita
no prefcio O conto popular no sculo XXI por Haurlio (2011), o fato de
ambos os folcloristas brasileiros terem classificados seus contos populares com
base no catlogo ATU, sistema de classificao internacional ampliado em 2004,
o que nos mostra a influncia do primeiro sobre o trabalho do segundo
folclorista, pois Brulio do Nascimento foi o primeiro estudioso de folclore a
utilizar esse sistema no Brasil na verso mais atualizada em sua coletnea de
2005, Catlogo do conto popular brasileiro. Igualmente fez Marco
Haurlio em sua coletnea Contos e fbulas do Brasil, ao inserir na
parte final de seu livro a seo Classificao e notas[68] feita por Paulo
Correia.
O frescor das histrias
napolitanas no Nordeste brasileiro
De
acordo com Haurlio (2018), algumas narrativas registradas no folclore
brasileiro exalam o mesmo frescor das histrias napolitanas, unidas pela origem
comum e pela exuberncia de tipos e motivos. Verificaremos,
ento, em que medida as histrias contadas oralmente no Nordeste brasileiro,
mais precisamente o conto Anglica mais afortunada, exalam o frescor das
napolitanas recolhidas e recriadas por Basile j no sculo XVII, por exemplo O
cadeado. Nesse sentido, utilizamos a expresso recriada por Basile, dado o
estudo realizado em 2018, no qual analisamos o conto napolitano, de Basile,
como uma recriao intertextual do mito Cupido e Psiqu. Contudo, uma vez que
este conto napolitano foi ouvido e coligido na Bahia por Marco Haurlio no
sculo XXI, acreditamos que no se possa excluir a possibilidade de o escritor
napolitano ter ouvido e recolhido essa narrativa j na forma de conto de fadas,
tendo em vista as inmeras andanas tpicas desse gnero pela tradio oral.
Mas
antes de analisarmos os contos em questo, passamos sntese de seus enredos.
No conto napolitano O cadeado, narrada a histria de Luciella que vai
buscar gua numa fonte e encontra um escravo que a leva a um belssimo palcio,
onde ela tratada como rainha e dorme todas as noites com um prncipe encantado
que a aconselha a no ver o rosto dele. Aconselhada pelas irms invejosas a ver
com quem dormia, Luciella descobre que dorme com um belssimo jovem e expulsa
por ele. Depois de tanto perambular grvida por alguns meses, Luciella
acolhida por uma donzela no palcio da me do prncipe encantado, onde Luciella
tem um filho, e depois de quebrada a maldio, que afastava o prncipe
encantado de seu filho recm-nascido e de Luciella, eles fazem as pazes e se casam.
J o conto baiano Anglica mais afortunada (O prncipe Tei) conta a histria
de Anglica que, pela m sorte de seu pai caador, que havia prometido ao Tei
como recompensa do alimento que lhe deu a primeira coisa que o prncipe
avistasse no quintal, pensando na cadelinha que tinha, levada para morar num
buraco com o prncipe Tei e proibida por ele de ver seu rosto. Por sentir
saudades de sua famlia, Anglica visita suas irms mais velhas e seu pai, o
qual lhe d uma vela e um fsforo e a incita descobrir com quem dorme todas as
noites. Ao iluminar seu leito noite, Anglica avista o belssimo prncipe com
quem dorme e expulsa por ele. Depois de tanto caminhar de bucho, utilizando
a expresso do narrador, Anglica acolhida por uma velha que a ajuda por
recomendao do rei daquela cidade. Na morada da velha, Anglica e seu filho
recm-nascido recebem durante trs noites a visita do prncipe Tei que est
preso a uma maldio. Na terceira noite, a maldio se rompe e eles finalmente
ficam juntos. Em seguida, o rei e a rainha, pais do prncipe Tei, buscam seu
filho e a famlia dele, terminando, assim, o conto.
A
primeira convergncia entre os contos maravilhosos napolitano e baiano diz
respeito mulher ser a contadora de histrias, figura que se liga tradio
oral, segundo Cmara Cascudo (2004, p. 19-20), citando Paul Sebillot:
Paul Sebillot mostra que a mulher a melhor contadeira de
histrias que o homem. Guarda em maior quantidade porque lhe cumpre o agasalho
dos filhos e a tarefa de adormec-los, entretendo-os com o maravilhoso. Os
irmos Grimm fizeram sua coleo admirvel ouvindo as velhas, as tias da
tradio oral portuguesa, as bs, e mes-pretas no Brasil.
Dando
continuidade tradio de ser a melhor contadeira de histrias, a contadora
de quem o folclorista Marco Haurlio ouviu o conto maravilhoso baiano Anglica
mais afortunada uma mulher chamada Lucidalva Pereira dos Salvos na cidade de
Igapor, conforme a anotao depois do conto. Igualmente o conto maravilhoso
O cadeado, de Basile, visto que narrado por uma velha-personagem narradora
chamada Ciommetella, anunciada no fragmento da narrativa-moldura que enquadra o
conto:
Casou grande compaixo no corao de todos as desgraas passadas
pela pobre Lisa, e mais de quatro estavam com os olhos vermelhos e lgrimas nos
cantos, pois no h nada que mais desperte piedade do que ver algum sofrer
inocentemente; mas tocando Ciommetella desenrolar o carretel, assim
disse [...] (BASILE, 2018, p. 229, grifo nosso).
Na
obra de Basile, muito comum, ao nos referirmos s contadoras de histrias, a
expresso velha personagem-narradora, visto que, alm de exercer a funo de
narradora do conto que se prope a narrar, a velha personagem da
narrativa-moldura, porque ela foi convidada pelo prncipe Taddeo e sua esposa
impostora para narrar contos maravilhosos e entret-los durante o dia entre
banquetes e jogos, disso decorre o fato dos cunti de Basile serem
narrados durante o dia, escolha que contraria quela tradio apontada em
outras colees europeias, por exemplo a do italiano Straparola que procedeu
Basile na literatura italiana: Le piacevolli notti. Outro aspecto que
diferencia a obra de Basile da coletnea brasileira, escrita por Marco
Haurlio, reside no fato de que a velha contadora, no caso em nmero de dez em O
conto dos contos, ser identificada por um defeito fsico que se revela no
nome dela, no caso, a velha personagem-narrradora do conto O cadeado
Ciommetella tinhosa, anunciado na introduo da obra italiana, junto aos nomes
das noves personagens-narradoras da obra.
Uma
possvel explicao para esses eptetos presentes nos nomes das contadoras, em
que se evidencia o disforme, reside no gosto pelo grotesco prprio do Barroco,
corrente literria em voga no sculo XVII que privilegia o bizarro, na qual se
filiava o escritor napolitano. Observao semelhante nossa tm as pesquisadoras
Bonetto e Reis (2018), segundo as quais essa marca do grotesco barroco presente
nos nomes das dez velhas-personagens narradoras de Basile um procedimento
utilizado para obter o efeito pardico com o Decamerone, de Boccaccio, ao rebaixar a classe
social de abastada para pobre e transformar as dez narradoras de jovens com
bons costumes para velhas fofoqueiras com distores fsicas.
A velha
personagem-narrradora Ciommetella tinhosa, ao contrrio das outras nove
contadoras, no parece ter no epteto que a identifica uma indicao de alguma
distoro fsica, dada a primeira acepo deste adjetivo em portugus, que, segundo
o Dicionrio Michaelis online, significa teimosa. A segunda
acepo para a palavra tinhosa repugnante ou que causa nojo, significado
figurado que ao nosso ver parece estar mais ligado ao universo das distores
fsicas e ao efeito do grotesco, j que o barroco privilegia o repugnante.
Embora
tais associaes com os significados da lngua portuguesa sejam pertinentes,
para analisar o adjetivo tinhosa, que no caso desqualifica o nome
Ciommetella, temos que averiguar o sentido da mesma palavra em lngua italiana,
para isso, recorremos edio bilngue (napolitano e italiano) da obra de
Basile, traduzida pelo estudioso italiano Michele Rak, que manteve o ttulo
original da obra, Lo cunto de li cunti, assim como o tradutor
Francisco Degani, que traduziu a obra integral de Basile diretamente do
napolitano para o portugus brasileiro em 2018, preservando o ttulo original,
O conto dos contos, e dando a conhecer os contos de Basile em nosso pas,
pois, caso quisssemos ler Basile em lngua portuguesa, tnhamos que recorrer a
tradues esparsas.
Na
edio bilngue traduzida por Rak (BASILE, 2013), a velha personagem narradora
chamada de Ciommetella tignosa. No interior do adjetivo tignosa
em italiano est a palavra tigna, que Ҏ uma doena na pele que
leva queda dos cabelos [...] (traduo nossa do original la tigna una
malattia cutnea che porta alla caduta dei capelli [...] (PICONE, 2004, p.
113). Alm de nos informar um significado preciso para a palavra tigna,
o pesquisador italiano Michelangelo Picone nos oferece uma pista de anlise
para esse epteto, ao se questionar se essa doena deseja aludir capacidade
desta narradora de revelar com os seus contos a verdade das coisas. A resposta
logo nos dada por ele, que afirma ser a prpria Ciommetella com o seu
ltimo conto, que tambm o conto conclusivo da coletnea (se exclui-se aquele
principal de Zoza), a desmascarar a artimanha da escrava[69] (PICONE, 2004, p. 114).
De
fato, essa capacidade de Ciommetella ligada doena tigna
verificada na fala desta velha personagem-narradora no fragmento que enquadra o
conto O cadeado, depois que a velha narradora anterior lhe cedeu voz:
Os
conselhos da inveja sempre foram pais das desgraas, por que debaixo da mscara
do bem encerram a face da runa, e a pessoa que tem nas mos os cabelos da
fortuna deve imaginar ter a todo momento cem pessoas que estendam cordas diante
de seus ps para faz-las levar um tombo, como aconteceu a uma pobre moa que,
pelo mau conselho das irms, caiu da escada da felicidade, e foi misericrdia
do cu que no quebrasse o pescoo (BASILE, 2018, p. 229).
Nesse
fragmento, que se refere fala de Ciommetella tinhosa (tignosa), o
conto O cadeado tambm revelar a verdade dos fatos, verdade que consiste em
desmascarar a face das irms invejosas da protagonista, as quais do conselhos
irm mais jovem, provavelmente protagonista Luciella, como atitude de
benevolncia para prejudic-la ou para faz-la levar um tombo. Concordamos,
portanto, com a anlise de Picone (2004) sobre Ciommetella ser uma velha
personagem-narradora cuja doena fsica tigna, que causa a queda de
cabelos, alude atitude de revelar a verdade ou de desmascarar as personagens
invejosas, pensando nas irms de Luciella, e impostoras, pensando na escrava
que tomou o lugar da princesa Zoza.
Alm
de antecipar o fato que Luciella ser prejudicada por suas irms mais velhas, a
fala da narradora Ciommetella tambm anuncia o tema do conto maravilhoso a ser
narrado por ela, o da inveja. Recuperando este mesmo tema, como uma espcie de
arremate ao conto, Basile (2018, p. 232) o insere tambm no desfecho, mas na
forma proverbial: fruto da inveja o mal de estmago. Nesse aspecto, devemos
explicar que prprio do estilo literrio de Basile, da interveno artstica
do escritor, os contos serem encerrados por um provrbio de origem napolitana,
elemento que tambm se liga tradio oral, assim como o fato de as narradoras
serem mulheres, justamente por remeter sabedoria popular, pois, de acordo com
o Benjamin (2015), era muito comum o contador de histrias tradicional utilizar
provrbios como uma forma de conselho de utilidade prtica aos seus ouvintes.
Refora
essa ideia de conselho na forma proverbial o significado da expresso O fruto da
inveja o mal de estmago em lngua portuguesa ou figlio de lamidia
lantecore (BASILE, 2013, p. 416) em dialeto napolitano, pois, conforme a
plataforma italiana Corpo di Napoli, que explica os provrbios
napolitanos da obra de Basile, o mal-estar que prende o estmago; tem o mesmo
efeito da nusea, que permanece e nunca passa. a sensao de quem rumina
inveja e de quem pago assim com a mesma moeda[70]. A partir de tal explicao,
podemos entender que fazer mal a algum, por inveja, prejudicar a si prprio.
Esse significado comprovado pelo desfecho do conto de Basile, no qual as
irms mais velhas e invejosas so punidas. Diante disso, compreendemos que o
provrbio napolitano, elemento frasal que nos sugere por metonmia a voz do
contador de histrias no conto O cadeado, aconselha o ouvinte a no se deixar
ser conduzido pela inveja, sentimento que pode ser entendido como uma doena,
porque s provoca dor e sofrimento por quem o sente.
Alm
de remeter a uma forma de sabedoria popular e coletiva, dada a experincia
comunitria em que estava inserido o contador de histrias tradicional, o
elemento proverbial na obra napolitana pode ser associado a uma frmula de
transmisso oral, pois, segundo Cascudo (1984), uma marca da oralidade,
comumente utilizada pelos folcloristas, as repetidas formas de comear e
terminar uma histria, que podem ser semelhantes ou dessemelhantes em culturas
diferentes. Quanto s formulas finais, Cascudo (1984, p. 230) afirma: Para
findar as frmulas so vrias e raro ser o narrador que as esquea. Pode
aparecer mesmo um retoque pessoal sugestivo. o requinte da tcnica o saber
fechar bem uma estria. Fundamentando-nos no terico, compreendemos que
Basile, ao utilizar o provrbio napolitano para fechar bem seus cunti,
quer explicitar tanto seu requinte como escritor e sua cultura de origem, a
napolitana, quanto chamar a ateno do seu ouvinte, no caso do leitor,
aconselhando-o sobre sentimentos coletivos, o da inveja.
De
forma contrria, o conto brasileiro Anglica mais afortunada no apresenta
uma frmula final, como podemos notar pelo desfecho: Dessa forma, o encanto
foi quebrado. Passados uns dias, o rei e a rainha foram casa da velha buscar
o filho, a nora e o neto para viver com eles no castelo (HAURLIO, 2011, p.
66). Nessa parte final do conto baiano, percebemos, assim como na verso
napolitana, portanto, uma convergncia, a restaurao da situao de
tranquilidade e a unio dos amantes que foram antes separados pela ao dos
personagens, no caso, o pai de Anglica no conto baiano, e as irms invejosas
de Luciella no conto napolitano. No entanto, no porque a verso baiana no
apresente uma frmula final que ela no preserva traos da oralidade. Em vez
disso, acreditamos que a ausncia da frmula final no conto baiano comprova
justamente as andanas desta narrativa pelo territrio do maravilhoso, pois
medida que o conto maravilhoso napolitano foi emigrando no tempo e
geograficamente, possvel que ele tenha perdido algumas marcas da oralidade,
como a frmula final proverbial, e incorporado outras locais, da cultura
brasileira nordestina, como veremos mais adiante.
Alm
do provrbio, outro elemento lingustico ligado transmisso oral, que
comprova a importncia e a valorizao do material folclrico coligido por
Basile no sculo XVII e por Marco Haurlio no sculo XXI, a presena da
cantiga cantada na voz do prncipe encantado, na verso napolitana, e na voz do
Tei, na verso baiana, cuja letra revela a maldio sob a qual os noivos
estavam presos e impedidos de visitarem sua famlia, formada pelas
protagonistas (Anglica e Luciella) e seus filhos recm-nascidos. Nesse
sentido, a cantiga pode ser interpretada como um elemento que resgata a matria
folclrica nos dois contos maravilhosos, pois, para Cmara Cascudo citado por
Clria Botelho da Costa, esse material constitui, assim como o provrbio, o
imaginrio popular de uma sociedade. Por sua natureza folclrica, esse material
no traz explicitamente nem a marca do tempo nem o espao onde foi criada.
Trata-se de uma produo annima, que no permite a identificao do autor
(COSTA, 2013).
Ainda
que no seja possvel a identificao de seu criador, colocamos a seguir as
cantigas nas verses do conto napolitano, esquerda, e baiano, direita, para
efeito de cotejo entre suas adaptaes socioculturais:
O cadeado Oh, belo filho meu, se minha me soubesse, em bacia de ouro o lavaria, com faixas de ouro enfaixaria, e se o galo nunca cantasse, nunca de vocs me separaria (BASILE, 2018, p. 231, grifos nossos). |
Anglica mais afortunada (o prncipe
Tei) - Meu filho, se papai e mame soubera
filho de quem tu era, te lavava em bacia de prata e te enxugava em
toalha com fios de ouro. Se o galo no cantasse, jegue no urrasse,
o sino no tocava, contigo eu amanhecera o dia (HAURLIO, 2011, p. 65,
grifos nossos) |
Como podemos notar pelas
palavras em destaque, h sutis diferenas entre as cantigas napolitana, de
Basile, e baiana, de Haurlio. Mas antes de nos atermos a essas mincias,
evidente que elas denunciam o mesmo contedo na fala dos noivos de Luciella e
Anglica: a maldio que os impedia de se aproximarem de seus filhos
recm-nascidos, vinculada ao amanhecer do dia, representado em ambas as
cantigas pelo canto do galo. Trata-se de uma convergncia menos evidente
estabelecida com o prprio mito, ao qual se associam ambas as narrativas
maravilhosas, pois, assim que o dia amanhecia, Cupido desaparecia do leito de
Psiqu, retornando, somente, no ambiente noturno, assim como os noivos de
Luciella e Anglica, tanto que Bettelheim (2002) fala em vidas diurna e noturna
de Psiqu, ao se referir ao mito: a diurna tediosa, por ficar sozinha, e a
noturna prazerosa, por estar com Cupido.
O
canto do galo, presente nas duas cantigas, alm de passvel de ser lido como
uma aluso ao mito de Cupido e Psiqu, pode ser interpretado como uma
superstio popular, pois, segundo Braga (1986), o canto do galo uma crena
cujo poder afastar os demnios e fazer
sugir a aurora. Por essa razo, o canto celebrado nos hinos e oraes da
Igreja, sobretudo na tradio do povo portugus. Essa superstio popular do
canto do galo est presente nos contos napolitano e baiano, porque neles a
manifestao dos demnios ocorre no perodo noturno por meio da maldio,
elemento mgico que auxilia os prncipes encantados a visitarem suas famlias
durante noite, tanto que, assim que o galo canta ou o dia amanhece, os
prncipes encantados so afastados do seio familiar. Justamente por promover o
afastamento das figuras paternas, acreditamos que o canto do galo, em ambas as
cantigas, sofreu uma inverso de sentido: a noite, por auxlio da maldio, tem
uma acepo positiva, por aproximar os prncipes de sua famlia, e o dia,
anunciado pelo canto do galo, tem uma acepo negativa, por afastar os prncipes
de seus entes. Trata-se de um efeito paradoxal atribudo ao canto do galo, pois
nos contos de fadas a maldio comumente associada a algo que pode trazer
malefcios para suas vtimas. Essa acepo negativa para o canto do galo nos
dois contos reverberada pelo tom de lamentao das cantigas, que constituem
as falas dos prncipes.
Vrios
elementos que encontramos em ambas as cantigas, como a visita noturna, a me e
filho recm-nascido e o canto do galo, esto presentes tambm no episdio do
nascimento de Jesus e da visita dos trs reis magos. Este episdio cantado
pela cano de Reis[71], intitulada Saudao da
Lapinha, pelos seguintes versos:
8.
E os reis, mas quando eram santo, No caminho se encaminharam. Viagem de fazer
um ano, Em onze dias chegaram/. 9. Na chegada l da lapinha, Todo mundo j
dormia. Nossa Senhora com seu manto, A Jesus ela cobria/10. Na chegada l da
lapinha, O porteiro recebeu-se. Bateu asa e canta o galo, Menino Jesus nasceu[72].
A
partir desses versos, podemos aproximar as cantigas de ambos os contos e cano
da Lapinha pela seguinte disposio: o prncipes encantados nas cantigas esto
para os reis magos na cano de Reis, j que eles fazem a visita noturna;
Luciella e seu filho recm-nascido esto para Nossa senhora e o menino Jesus;
as faixas de ouro/toalhas de ouro esto pelo manto, e canto do galo a
interseco maior que une as cantigas e cano, representando o nascimento do
dia e o fim da maldio na cantiga e o nascimento do dia e do menino Jesus na
cano de Reis, da o canto do galo ser celebrado nos hinos e oraes da Igreja
catlica. Diante de tal leitura, pela simples proximidade entre esses
elementos, tanto das cantigas quanto da cano de Reis, j seria suficiente
para falar da incorporao do conto popular no s por elementos locais, j que
a tradio da Folia de Reis muito celebrada no interior de vrias regies
brasileiras, mas principalmente por elementos que aludem a outras mitologias,
no caso, mitologia crist, da qual faz parte a narrativa do nascimento de
Jesus, ainda que os contos napolitano e baiano tenham sido originrios do mito
greco-romano de Eros/Cupido e Psiqu.
Explicada
as convergncias entre os contos napolitano e baiano e os contos e os mitos
greco-romano e cristo respectivamente, passamos a examinar as mincias que
evidenciam os distanciamentos: nos versos da cantiga napolitana, percebemos
elementos mais nobres nos objetos bacia de ouro e faixas de ouro, enquanto
na cantiga baiana, os mesmos elementos foram trocados por bacia de prata e
toalhas com fios de ouro. Em razo da prata ser um elemento menos nobre que o
ouro e provavelmente a tolha ser um tecido de qualidade inferior ao da faixa,
uma possvel motivao para essa desqualificao dos materiais elencados seja o
fato de o palcio do rei, pai do prncipe Tei, ser menos nobre na verso
baiana, dada a diferena de sculos entre os contos. Tais divergncias, embora
relevantes, so sutis entre as cantigas, pois a que mais salta aos nossos olhos
a meno ao jegue e ao sino na verso baiana, este ltimo pode estar
associado ao canto do galo, dada a superstio desse canto celebrado na
tradio crist.
Ao
nosso olhar comparativo, a meno ao jegue na verso baiana uma referncia
relevante para o contexto sociocultural do conto baiano, pois o jegue um
animal muito recorrente na representao da paisagem e da vida cultural
nordestina, tanto que existe, na Bahia, mais precisamente na cidade de Uau do
estado, uma tradio chamada jecana, como evidencia Albuquerque (2014, p.
175): No dia do vaqueiro tambm ocorre a Jecana que o desfile de homens,
mulheres, adultos e crianas, montadas em jegues, e esta j est em sua 11
edio com o objetivo de destacar a importncia do animal, to comum no
Nordeste do Brasil. Ainda que o conto baiano aqui cotejado tenha sido
recolhido na cidade de Igapor, tambm do estado da Bahia, aproveitamos a
referncia cultural tradio da jecana na cidade de Uau, porque, segundo a
pesquisadora, a cidade de Uau uma referncia aos sertes da Bahia, por ser
um muncipio que ainda preserva as mais genunas expresses e manifestaes da
cultura popular, constituindo, assim, o celeiro de cantadores, poetas
populares, repentistas, sanfoneiros, aboiadores, zabumbeiros etc.
Apesar
de o jegue no conto baiano ser uma referncia que nos sugere a adaptao da
narrativa cor local, o serto baiano do Nordeste, o elemento que revela maior
expressividade da cultura nordestina no conto de Marco Haurlio j est contido
no prprio ttulo da narrativa: Anglica mais afortunada (o prncipe Tei),
visto que o lagarto tei um noivo-animal recorrente nas histrias populares
brasileiras que originaram do mito Cupido e Psiqu, conforme Doralice Fernandes
Xavier Alcoforado: Nas verses brasileiras, o noivo metamorfoseado pode vir na
aparncia de fera, lagarto, tei, veado, porco, leo, drago, sapo, boi,
camaleo, burro, urubu, cobra, lagartixa, papagaio, pombo, peixe ou mesmo
beija-flor (ALCOFORADO, 2000, p. 42).
O
argumento para a substituio do prncipe encantado da narrativa napolitana, descrito
como monstro pelas irms de Luciella, disso ele ser considerado tambm
noivo-animal, pelo prncipe Tei da narrativa baiana, pode ser tirado com
base em Alcoforado (2007) que afirma ter encontrado, em sua pesquisa de campo,
recolhendo histrias populares do mito de Apuleio no estado da Bahia, trs
contos com elementos temtico-estruturais que os integram ao tipo 2: O Peixe
Dourado (v. 1), A Histria do Tei (v. 2) e O Pssaro Assu (v. 3). O tipo
2 apresenta contos que se articulam a partir de uma carncia de pesca ou de
caa que afeta a vida do chefe de famlia, porque caar ou pescar a sua
profisso. Essa carncia, entretanto, pode ser superada caso o chefe aceite a
oferta de abundncia de alimentos proposta por um ser encantado, em troca da
primeira coisa a ser vista no retorno casa. No costume de ver sempre a
cachorrinha, o progenitor aceita a proposta. Contudo, ao chegar em casa, a
prpria filha ou o filho que o ser encantado avista. O pretendente no
propriamente um monstro, na acepo que dada ao termo, porm animal mais ou
menos familiar, um peixe ou um tei, que deseja casar-se com a moa, ou a Me
dgua que deseja casar o rapaz com a sua filha (ALCOFORADO, 2007).
Assim
como nos trs contos coletados por Alcoforado[73] (2007), no conto
baiano, recolhido por Haurlio (2011), o pai de Anglica, chefe da famlia,
tambm desempenhava o papel de caador, que, alis, no lhe rendia alimento:
Houve,
h muito tempo, um caador muito pobre que era vivo e morava com suas trs
filhas numa casinha da mata. Um dia, ele no estava tendo sorte na caada. J
era tarde e o homem no tinha conseguido nada para a ceia. Muito triste,
sentou-se numa pedra e comeou a maldizer sua sorte. Nisso chega um tei e
pergunta para o velho [...] (HAURLIO, 2011, p. 64).
A
partir deste trecho, analisamos que a escolha pelo tei como noivo-animal no
conto baiano justifica-se no somente por ser um animal associado pesca e,
portanto, um alimento que pode compensar a situao de carncia do chefe da
famlia, que exerce a funo social de caador, mas tambm por demonstrar a
capacidade do conto de se adaptar ao universo cultural do contador, no caso do
serto baiano da regio nordeste, o que explicita, sobretudo, o carter etnogrfico
do texto oral que percorre pelo territrio do maravilhoso, acomodando-se s
mais diversas localidades geogrficas.
Consideraes finais
Ao
recolher o conto maravilhoso baiano da tradio oral, Anglica mais afortunada
(o prncipe Tei), que evidencia uma relao intertextual com o conto
napolitano O cadeado, recriado por Giambattista Basile com base no mito de
Cupido e Psiqu ou talvez recolhido j na forma de conto maravilhoso no sculo
XVII pelo escritor napolitano em sua obra-prima Lo cunto de li cunti (O
conto dos contos), o poeta, escritor e folclorista baiano Marco Haurlio
dialoga com a tradio na qual se insere o escritor Basile. A tradio oral se
manifesta, na obra de ambos os escritores compiladores, por elementos comuns,
como a contadora de histria, a cantiga e a superstio popular do canto do
galo, e distintos, presena e ausncia de frmulas finais, mas ambos recursos evidenciam
o contexto sociocultural de produo de suas respectivas obras, haja vista a
referncia tanto ao jegue quanto ao lagarto Tei no conto baiano coletado por Haurlio
(2011) na cidade de Igapor, e a cultura napolitana e as deformaes fsicas
prprias do Barroco no conto napolitano recriado ou possivelmente recolhido por
Basile.
Alm
da voz do escritor napolitano na coletnea Conto e fbulas do Brasil,
ecoam outras vozes da tradio, porm de folcloristas brasileiros: Brulio do
Nascimento, para quem Haurlio (2011) dedica sua coletnea Contos e fbulas
do Brasil, e com quem compartilha o uso do ndice internacional ATU de
classificao dos contos, j adotado por Brulio do Nascimento em seu Catlogo
do conto popular brasileiro, de 2005; e Doralice Alcoforado, cujos
trabalhos pioneiros no Brasil desde a dcada de 90 revelam a presena do mito
de Cupido e Pisqu no imaginrio baiano, dado o ttulo de sua antologia Belas
e Feras baianas: um estudo do conto popular e as reflexes
terico-crticas da pesquisadora que mostram o tei como o noivo-animal
recorrente no contexto cultural do serto do Nordeste brasileiro.
No
movimento analtico, embora tenhamos identificado ressonncia dessas vozes da
tradio no conto baiano e na obra de que faz parte, no podemos deixar de
mencionar a importante reflexo que Haurlio (2011) faz no prefcio de seu
livro: o carter coletivo de qualquer coletnea de contos tradicionais em
qualquer poca, pois, sempre que uma antologia de contos tradicionais
publicada na aurora dos tempos, ela resgata consigo, por um lado, autores
annimos que elaboram e reelaboraram tais histrias e, por outro, contadores de
histrias, que desempenham o papel de retransmissores atuais, como as
contadoras, de quem Haurlio ouviu e recolheu o conto baiano e por meio de quem
Basile ouviu e narrou o conto napolitano selecionados para este artigo.
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[Recebido: 08 ago 2020 – Aceito: 24 jan 2021]
COLETIVO LUSA MAHIN - SARAU DAS PRETAS: O PROMIC E A PERFORMANCE COMO MOBILIZADOR IDENTITRIO
E FORMATIVO
COLETIVO LUSA
MAHIN - SARAU DAS PRETAS: PROMIC AND PERFORMANCE AS IDENTITY AND FORMATIVE
INSTRUMENT
Amanda
Maria Damasio Teixeira[74]
https://orcid.org/0000-0002-4064-05
Ana
Cristina Pereira da Silva [75]
https://orcid.org/0000-0003-2924-95
Resumo: Utilizando como
foco o projeto londrinense Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas, este
artigo pretende expor como o PROMIC (Programa Municipal de Incentivo Cultura)
viabiliza performances em torno da literatura, da formao e de questes
identitrias. Dito isso, utilizaremos como vis de anlise os textos de Zumthor
(2007) e Aguilar e
Palavras-chave: Sarau.
Polticas pblicas. Literatura afro-brasileira.
Abstract: Using
as a focus point the project Coletivo Lusa Mahin - Sarau das Pretas, based
in Londrina, this article aims to show how PROMIC (a municipal cultural
program) enables performances around literature, learning and identity matters.
That said, the following authors were used as analisis bias: Zumthor (2007) and
Cmara (2017) (to comprehend the role of voice and performance) and the
Even-Zohars polysystem
theory (2013), work in which he discusses literary polysystems and its
peripheries. Transcribed interviews with the two cultural producers behind the
project will be presented also. Taking into account Marianos article (2019),
in which one could presuppose an intersection between the Even Zohars
peripheral polysystems and afro-brazilian literature, was possible to conclude
that PROMIC made actions viable (in multiple places and via written text
or oral knowledge), giving more emphasis to black women and afro-brazilian
narratives that were silenced by a racial and peripheral issue, contributing,
finally, to a more balanced canon.
Keywords: Soiree.
Public Policy. Afro-brazilian literature.
Introduo
Atualmente,
os impactos das polticas pblicas de cultura so colocados em discusso, so
questionados. Em Londrina, o
trabalhar
a cultura afro-brasileira nas escolas e demais espaos educativos, abordando a
importncia da compreenso da identidade negra e os desafios que ela enfrenta
na sociedade brasileira a partir de diferentes formas (literatura, teatro,
contao de histrias, palestras, roda de conversa) e tambm marcar a cena
cultural londrinense com um espao dedicado cultura negra ( exaltao das
nossas razes africanas) e ao fortalecimento da nossa comunidade por meio de um
Sarau.
Assim,
fica claro que o Sarau um dos espaos de fortalecimento da cultura negra
local, que tem como atividade principal as performances
que nele acontecem, mas que no se restringe s a isso.
O
sarau tambm um dos espaos de discusso e de abertura para dilogo acerca da identidade afro-brasileira. Dessa
forma, busca-se entender de que forma o PROMIC auxilia na realizao desses
objetivos? De que forma a voz e a performance
contribuem ou no para o fortalecimento de uma identidade londrinense e
para o protagonismo da mulher negra?
Poltica pblica, polissistema e performance: uma questo de carter social
Um dos tericos que utilizaremos neste trabalho Itamar
Even-Zohar. Sua pesquisa em relao ao polissistema literrio, expresso
cunhada pelo autor, discute o cnone literrio e as relaes que o afetam,
dando nfase ao seu carter social. Sua proposta parte do reconhecimento de que
a heterogeneidade da cultura ampla e se forma a partir de movimentaes
centrpetas e centrfugas, em que a periferia e o centro da recepo literria
se impactam. Sobre isso, Even-Zohar (2013, p. 8) declara:
A
ideologia de uma cultura oficial como a nica aceitvel em uma dada sociedade
tem como consequncia uma massiva compulso cultural que afeta a naes
inteiras mediante um sistema educativo centralizado e que torna impossvel,
inclusive a estudiosos da cultura, observar e valorar o papel das tenses
dinmicas que operam no seio da cultura para sua efetiva manuteno. Como um
sistema natural que necessita, por exemplo, de regulamentao trmica, os
sistemas culturais necessitam tambm de um equilbrio regulador para no entrar
em colapso ou desaparecer.
Ento,
de acordo com a configurao expressa por Even-Zohar, possvel pensar em um
repertrio brasileiro (e mltiplo, claro), em que essa centralizao
(intrinsecamente relacionada ao social, ou seja, aos indivduos detentores do
poder) implicaria uma posio menos prestigiosa literatura afro-brasileira
(que se veria ento s custas de uma elite branca, por exemplo) e de outros
nichos perifricos, supondo a existncia de um sistema ou um conjunto de
elementos afro-brasileiro – hiptese defendida no artigo de Mariano
(2019, p. 10):
Dentro
da perspectiva brasileira, do sculo XIX, qualquer projeo de sistema literrio
proveniente das populaes negras - e aqui poderamos pensar em outros recortes
identitrios de minoria - seria devidamente barrada por um sistema hegemnico
de literatura, muito bem estruturado nos rgidos moldes de raa, classe, gnero
etc.
Assim,
a literatura afro-brasileira dependeria de intervenes que se relacionam
intimamente com o que Even-Zohar (2013, p. 6) expe como luta entre vrios
estratos. Estando o polissistema literrio intrnseco ao social, o racismo
tambm o afetaria, minimizando, talvez, seu alcance, visibilidade e recepo
daqueles que se identificam como afro-brasileiros. interessante notar que o
repertrio cannico definido pelas relaes travadas no polissistema,
externas a um conjunto de caractersticas literrias, como discute Even-Zohar
(2013). Embora, como explica o autor, o polissistema pode reorganizar-se sempre
a fim de um equilbrio. Nesse sentido, o financiamento de projetos como o
Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas pode auxiliar nessa movimentao?
Quais foram as pessoas beneficiadas durante a realizao do projeto? De acordo
com Poliana Santos[77],
uma das organizadoras do Sarau, este foi o trajeto:
Quando
ns fomos aprovadas no PROMIC, ns tivemos a possibilidade de realizar o nosso
trabalho na zona rural, fizemos oficinas dentro do Eli Vive, o acampamento do
MST, ns cruzamos a cidade de Londrina de Norte a Sul, de Leste a Oeste,
podendo levar o nosso trabalho, com a estrutura de material pedaggico,
material humano, que proporcionado por essas estruturas financeiras, n? Voc
poder contratar oficineiros e oficineiras, comprar material didtico, se
locomover pra isso
Imagem 1 – Performance no
sarau
Fonte: Arquivo do evento (Facebook),
2019.
Deve-se
ressaltar, ento, a utilizao da bolsa para o desenvolvimento de uma pedagogia
e seus materiais, como tambm a contratao de terceiros e o transporte at os
locais selecionados. Ele permite que essa ateno se volte a espaos
desprivilegiados, fazendo com que esses tenham acesso a servios que
dificilmente chegam at eles. Alm disso, h uma mobilizao local em torno de
necessidades culturais que poderiam
afetar as periferias e reas rurais da cidade. Houve tambm uma movimentao de
aproximao entre a Academia e espaos perifricos, quando, obtendo maior
visibilidade e estrutura por ser justamente aprovado pelo PROMIC, o Coletivo
Lusa Mahin – Sarau das Pretas juntou-se a um projeto de extenso de
Escrita Criativa da Universidade Estadual de Londrina. interessante notar que
no mesmo trecho da fala de Poliana Santos vemos formas diferentes de abordagem
em relao ao protagonismo da mulher negra – utilizando espaos
perifricos (terreiros) e privilegiados (academia), como num contexto educativo
informal e formal:
O
Sarau das Pretas, em suma, tem um propsito fundamental em trabalhar a questo
da formao, e essa formao a gente entende como trocas de saberes; dando o
protagonismo da mulher, principalmente, da mulher negra. Ento assim, ns obtivemos,
por exemplo, dentro do trabalho do Sarau das Pretas, um encontro dentro de uma
casa de ax, que o terreiro da me Omin, onde vrias mulheres mais velhas
trouxeram a sua cultura do benzimento, ento a gente fez essa troca com elas.
Elas nos explicaram as questes das benzedeiras, os chs, trazendo essa
historicidade atravs da sua oralidade, ali contando como era quando elas eram
crianas, como se deram essa identidade de se ver como mulheres negras, ento
muito pontual para ns essas vivncias. Ns nos organizamos para levar, por
exemplo, uma oficina de Escrita Criativa, com o pessoal do professor Flvio
Freire da UEL, ao pessoal do Flores do Campo. Ns nos organizamos para, com as
crianas, trazer um material ldico, mas que faa o debate do racismo. Receber
essa devolutiva, sabe, nesse processo educacional, , para ns, o mais
importante. Um espao de formao onde a gente consiga resgatar essa
historicidade pela questo da mulher negra, pelo olhar da mulher negra, e
tambm levar um pouco da academia fazendo essa troca.[78]
A
multiplicidade de eventos realizados pelo Coletivo Lusa Mahin – Sarau
das Pretas permite uma abrangncia maior em relao discusso em torno da
literatura afro-brasileira. Justaposto teoria dos Polissistemas, possvel
perceber que o projeto no se limita apenas ao livro, produto final de todo um
repertrio, como dir Even-Zohar (2013, p. 10), mas s tradies orais e
formao e criao de novos leitores e produtores culturais (escritores):
difcil eliminar imagens respeitadas ao longo do tempo, e parece natural,
portanto, que produzir e consumir textos tenha sido sempre a atividade mais
importante na literatura. Em certos perodos, no obstante, o texto era mais
marginal em relao a outras atividades no sistema literrio, tais como o
escritor ou algum acontecimento total sob a forma de atuaes diversas.
As performances, ento, realizadas em
variados espaos culturais da cidade (Usina Cultural, Cemitrio de Automveis e
Casa da Vila), alm dos outros lugares j citados, demonstram um entendimento
total de literatura por parte das organizadoras do evento, levando em conta
que Even-Zohar compreende que as noes de livro e repertrio so parciais
e no do conta para discutir um polissistema heterogneo. Dessa forma, capaz
de adentrar lugares e alterar, nem que seja por pouco tempo, a hierarquia do
espao, o direcionamento da ateno – conscientizando aqueles que
permitem o racismo estrutural e aquelas que sofrem com este.
Assim,
a partir da visibilidade garantida ao Coletivo Lusa Mahin – Sarau das
Pretas, por meio do financiamento do PROMIC, possvel inferir que o PROMIC
provoca maior oxigenao entre a canonicidade literria local, permitindo
discusses que no abrangem apenas o livro ou a leitura em voz alta, mas a
valorizao de tradies e vozes silenciadas por um sistema intrnseco ao
polissistema literrio – o sistema social.
Como
relatado por Even-Zohar (2013), existem foras centrfugas que podem carregar
ou transferir propriedades de polissistemas perifricos para o centro – e
poderamos afirmar que o sarau estudado uma dessas foras, colocando em
evidncia essa identidade e suas vivncias:
De
modo semelhante, por meio da estrutura polissistmica das literaturas
envolvidas como podemos dar conta dos vrios e intrincados processos de
interferncia. Por exemplo, ao contrrio da crena comum, a interferncia tem
lugar, frequentemente, por meio das periferias (EVEN-ZOHAR, 2013, p. 18).
interessante relatar, ento, a importncia de projetos de polticas pblicas
como o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas que, por meio da
literatura e da voz, impactam o social. Atravs de suas performances, indivduos se conscientizam sobre a posio da mulher
negra na sociedade, como tambm adquirem conhecimentos silenciados justamente
por uma questo racial. O financiamento decorrente de uma bolsa do PROMIC
provoca uma luta mais igualitria, talvez, entre os estratos, permitindo
estruturas perifricas terem mais visibilidade e melhor formao mesmo distantes
dos grandes centros.
Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas: a performance como forma de re-existncia
O
Coletivo Lusa Mahin – Sarau das pretas foi criado, conforme j dito,
pelo coletivo Lusa Mahin, em 2015. A
priori, segundo as organizadoras, o coletivo era formado por Poliana
Santos, Fiama Helosa, Thasa Carvalho, Silvia Castro e Rute. A formao atual
conta com Fiama Helosa, Poliana Santos, Ana Paula Barcellos, Mariana Valle e
Jamile Baptista, frente do coletivo.
Visando
arrecadao de recursos para a Marcha das Mulheres Negras, realizada em
Braslia em novembro do mesmo ano, o sarau cujo protagonismo a mulher,
sobretudo a mulher negra, teve continuidade aps o evento. A reflexo sobre a
importncia do protagonismo da mulher negra para o cenrio cultural e artstico
de Londrina impulsionou o grupo a buscar parcerias culturais.
A
partir disso, o sarau surge como forma de fomento s trocas literrias, sendo
visto como um evento, um momento de confraternizao, a princpio, e depois com
o PROMIC agregado tambm, ao sarau, um trabalho de formao, um aspecto
educacional, segundo Poliana Santos.
Na
produo literria contempornea, o singular se faz presente por meio do
coletivo, o que leva criao de grupos, denominados coletivos, que so constitudos pela afetividade e pela identidade
partilhada, caractersticas essenciais para a formao de redes afetivas
(LEON, 2014). Sendo assim, o Coletivo Lusa Mahin vem a ser um agente
importante dentro do sistema literrio corroborando para o estabelecimento de
redes que fortaleam e deem protagonismo cultura negra.
O modus operandi do Coletivo Lusa Mahin
– Sarau das Pretas conta com diversas atividades que visam promover a
cultura afro-brasileira, contemplando as mais diferentes manifestaes
artstico-literrias. No entanto, a voz o cerne de todas as edies do sarau,
por meio da performance que
ressignifica o texto literrio e possibilita as trocas afetivas atravs das
redes formadas por ela.
Imagem 2 – Exposies e instalaes no sarau
Fonte:
Arquivo do evento (Facebook), 2019.
Na
programao, discotecagem com DJ J Moreno, roda de capoeira com o pessoal do
Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), apresentao musical com Tio
Carvalho, Feirinha, gastronomia popular e momento de contao de histria para
as crianas. O Sarau das Pretas se insere ainda como pr-abertura do Festival
Literrio de Londrina – LONDRIX, por isso permeia a festa com momentos de
microfone aberto para as mais diversas possibilidades de manifestao
literria. Nosso encontro ser na Vila Cultural Cemitrio dos Automveis, a
partir das 18h. Esperamos vocs! A entrada gratuita. Todas as atividades
contam com o patrocnio do PROMIC, produo da P! Artstica e realizao do
Coletivo Lusa Mahin.[79]
O
PROMIC possibilitou ao Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas maior
visibilidade s performances realizadas
no evento, aumentando sua rede de alcance para as discusses sobre a cultura
afro-brasileira e para divulgao de sua respectiva literatura. A lei de
incentivo, que um dos agentes presentes no polissistema de Even-Zohar (2013),
contribuiu para que a literatura afro-brasileira se movesse dentro desse
sistema sentido ao centro dele.
claro que muito h de se fazer para que a literatura afro-brasileira chegue ao
centro do sistema literrio, pois sabemos que as dificuldades em relao ao
mercado editorial ainda so muitas. No entanto, o PROMIC como apoio para o
sarau, evento cujo cerne a performance,
surgiu como forma de movimentar essa literatura e dar condies de circulao
dos textos literrios para alm do livro impresso.
Fazer
o Sarau sempre foi uma forma de militncia porque acreditamos na importncia de
fazer esse trabalho cultural sobre a cultura negra. Ao longo do percurso, tivemos
muitos apoiadores e colaboradores, mas nunca de forma financeira. O dinheiro
investido para realizar o Sarau, muitas vezes, era colocado do nosso prprio
bolso. Muitas vezes, investimos com o nosso prprio dinheiro, depois
recupervamos o valor com as coisas que fazamos para serem vendidas no evento
(como comidas, bebidas, etc.) e, depois, guardvamos o que sobrava, quando
sobrava depois de pagar todo mundo, como uma poupana do Sarau. Esse valor
era investido novamente na prxima edio e assim amos indo. Mas essa
limitao financeira nos impedia de crescer. Ns tnhamos vontade de ampliar as
aes, mas no tnhamos perna. Ento, vimos no PROMIC essa possibilidade, que
ele fosse o meio de financiarmos nossas aes. Com esse financiamento, conseguimos
ampliar as atividades como j vnhamos planejando. Por isso, nosso projeto do
PROMIC contemplou duas faces: a primeira educacional - em que fomos em escolas
das reas urbana e rural falar com crianas, adolescentes e adultos sobre a
cultura negra, alm tambm de oficinas abertas para a comunidade; e a segunda,
cultural - momento em que realizamos edies do Sarau das Pretas para mostrar o
resultado dos trabalhos desenvolvidos nas oficinas e para fortalecer a cena
cultural negra na cidade.[80]
O ato performtico nico, dotado de corporeidade,
carregado de sensaes e emoes. Uma voz no pode ser vista separada de um
corpo, sempre que existir uma voz vai existir um corpo (ZUMTHOR, 2007). Dessa
forma, voz, corpo e espao se fundem a fim de convocar a performance para mostrar que sua presena transforma as leituras
possveis de uma obra (AGUILAR; CMARA, 2017, p. 13).
Imagem 3 – Apresentaes musicais
Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.
O corpo, os gestos, os modos de vestir, as entonaes da
voz, so aspectos que o texto escrito sugere, mas no permite vivenciar.
Atravs da performance, esses aspectos so vistos, sentidos e
apreendidos de forma mais ntima, e assim, os sujeitos se afetam mutuamente
permitindo essa experincia vivenciada.
Na performance a voz emanao do corpo, uma representao
plena, que no apenas uma forma de comunicao que transmite conhecimento,
mas que transforma o conhecimento, e sendo assim transforma de alguma forma o
ser. A voz marca tanto o
As performances que
acontecem nos Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas so dotadas de
representatividade e ancestralidade. Como exemplo, temos um encontro que
aconteceu dentro de uma casa de ax, que o terreiro da me Omin:
vrias mulheres mais velhas trouxeram a sua cultura do
benzimento, ento a gente fez essa troca com elas nos explicando as questes
das benzedeiras, os chs, trazendo essa sua historicidade atravs da sua
oralidade, ali contando como era quando elas eram crianas, como se deram essa
identidade de se ver como mulheres negras, ento muito pontual para ns essas
vivncias.[81]
Alm de ser um meio de divulgar a literatura
afro-brasileira, as performances do
sarau tambm trazem a questo da representatividade a partir da histrias
contadas por essas mulheres. E a, a mquina performtica se faz instrumento de
transformao do conhecimento e de re-existncia para o performer e para o espectador. Espectador esse que se reconhece no performer ou que conhece a cultura
afro-brasileira a partir das vivncias e dos saberes transmitidos pelas
mulheres negras atravs da performance.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o sarau uma forma de
resistncia no sentido de re-existir, de fazer re-existir. importante deixar
claro o conceito de resistncia, visto que na atualidade, vrias so as
possibilidades de sentido que se pode atribuir ao termo.
Ora, diante da ideia de que o poder, como relao de
foras, funciona sempre como produtor de afetos, que a resistncia aparece para
Foucault como um terceiro poder da fora. Se as foras se definem segundo o
poder como um afetar e um ser afetado, resistir a capacidade que a fora tem
de entrar em relaes no calculadas pelas estratgias que vigoram no campo
poltico. A capacidade que a vida tem de resistir a um poder que quer geri-la
inseparvel da possibilidade de composio e de mudana que ela pode alcanar.
Resistir , neste aspecto, o oposto de reagir. Quando
reagimos damos a resposta quilo que o poder quer de ns; mas quando resistimos
criamos possibilidades de existncia a partir de composies de foras
inditas. Resistir , neste aspecto, sinnimo de criar. Sendo assim, a
resistncia , para Foucault, uma atividade da fora que se subtrai das
estratgias efetuadas pelas relaes de foras do campo do poder. Esta
atividade permite fora entrar em relao com outras foras oriundas de um
lado de fora do poder [...]. Foras do devir, da mudana, que apontam para o
novo e engendram possibilidades de vida (MACIEL JR.,
Dessa forma, em Foucault que se busca fundamentar essa
afirmao do sarau enquanto resistncia (re-existncia), em especial o
Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas que coloca em evidncia a
mulher negra no campo social e atua nesse mesmo sentido o qual Maciel Jr. (
Imagem 4 – Integrantes do Coletivo Lusa Mahin –
Sarau das Pretas
Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.
O Coletivo Lusa Mahin –
Sarau das Pretas resistncia, porque resistir nessa perspectiva Ҏ criar,
para alm das estratgias de poder (MACIEL JR.,
Consideraes finais
O Coletivo Lusa Mahin –
Sarau das Pretas contou com o apoio do PROMIC para realizao das edies do
sarau, e esse incentivo foi de grande importncia para a viabilizao do evento
que, de acordo com seu modus operandi,
mobiliza a divulgao de textos literrios de mulheres negras e a insero
deles em diferentes espaos sociais por meio da performance.
A lei de incentivo municipal
cultura foi essencial para que a literatura afro-brasileira londrinense
rompesse as barreiras do mercado editorial, criando possibilidades de
divulgao desses textos para alm do livro impresso.
O PROMIC necessrio, porm ainda
insuficiente e tardio, nem sempre realizando a projeo para alcanar todos os
grupos que poderiam oxigenar a literatura local, distanciando-se de um cnone
que replica um repertrio j conceituado. Sofrendo alguns ajustes, o programa
poderia ser ainda mais impactante nesse sentido.
A performance, enquanto cerne de um sarau, funciona no Coletivo
Lusa Mahin – Sarau das Pretas como uma possibilidade de fortalecer a
cultura afro-brasileira, trazendo em si sua ancestralidade e representatividade
e permitindo a vivncia da cultura negra.
A questo identitria, to cara
literatura contempornea, a essncia desse sarau, que traz nomes to
importantes para homenagear a mulher negra, como Lusa Mahin, Marielle e
Y Mukumby. A performance vem
contribuir para a valorizao da identidade negra no cenrio local e o PROMIC
viabilizou essas aes do Coletivo Lusa Mahin.
Em tempos em que cada vez mais
recursos destinados cultura, arte e literatura so cortados, esse
trabalho se faz relevante para que se chame ateno para a importncia dessas
aes, sobretudo para aqueles que esto margem da sociedade.
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. Traduo de Jerusa Pires Ferreira
e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Naify, 2007.
[Recebido: 16 ago 2020
– Aceito: 03 mar 2021]
ENTREVISTA
UMA CONVERSA COM E SOBRE
SALETE MARIA DA SILVA
A CONVERSATION WITH AND
ABOUT SALETE MARIA DA SILVA
Salete Maria da Silva (Colaboradora)
Andrea Betnia (Pesquisadora)
Bruna Lucena (Pesquisadora)
Salete Maria da Silva , antes de qualquer
caracterizao, uma mulher com alma e ps de serto, que aprendeu a fazer
cordel com uma de suas avs, e, no por acaso, a vida de ns mulheres percorre
toda sua obra, seja a cordelstica – com forte teor feminista e
revolucionrio –, seja a acadmica, como professora do Bacharelado em
Estudos de Gnero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em
seus quase 30 anos dedicados criao de cordis feministas e libertrios,
publicou mais de uma centena de folhetos, muitos dos quais podem ser lidos em
seu blog Cordelirando. membra-fundadora da Sociedade dos Cordelistas Mauditos
‒ importante coletivo de poetas, cantadores e performers fundado no ano 2000, em Juazeiro do Norte/CE.
Esta entrevista uma grande conversa da qual
participam quatro pessoas: a prpria Salete Maria, Andra Betnia, Bruna Lucena
e Jos Gomes, sendo a primeira a entrevistada; as duas seguintes, as
entrevistadoras; e o ltimo, o responsvel pela transcrio literal. Adotamos a
conversa como mtodo de realizao desta entrevista por acreditarmos ser [...]
uma convocao de saberes diferentes de modo no hierrquico, em que [...] o
conhecimento est sempre no plural, conhecimento(s), como defendem Maria Luiza
Sssekind e Raphael Pellegrini
Conversamos no dia 6 de outubro de 2020, em uma
videochamada repleta de histrias de vidas, de artes de ontens e de agoras
ancestrais, sobre sua presena inquietante no cenrio cordelstico. Diante da
impossibilidade de estabelecer uma conversa linear com Salete ‒ o que
entendemos como um ponto positivo ‒ tendo em vista a exposio de um
pensamento que nos lembra um palimpsesto, os assuntos abordados foram surgindo
motivados no apenas por nossa curiosidade como entrevistadora, mas, sobretudo,
pelos motes com os quais a entrevistada nos presenteava medida que tentava
refazer sua trajetria tanto pessoal quanto potica, seguindo uma rota que se
deixava guiar por seu modo inquieto e inquietante de estar no mundo.
Ao
optarmos por empregar, no ttulo dessa entrevista, com e sobre, sem nos
decidirmos por apenas um, trata-se menos de vontade de escolha e deciso, e
mais, muito mais, de vontade de dar conta do que a intimidade de dividir
palavras, escutas atentas, conhecimentos, bem como de dar a ver essa importante
cordelista de nosso aqui e agora.
Bruna
Lucena (BL)
‒ Ns estamos aqui com Salete Maria da Silva, cordelista, ativista,
professora e outras coisas sobre as quais falaremos adiante.
Andra
Betnia (AB)
– Boa tarde, Salete. Agradecemos mais uma vez sua disponibilidade e
generosidade ao se dispor para essa conversa. Sabemos que voc est muito
ocupada com a vida nesses tempos, mas vamos l. Salete, vamos comear falando
sobre sua trajetria?
Salete Maria (SM) – No estava no
meu horizonte ir para a universidade porque na minha famlia no existia essa
tradio, como de resto todos os meus contemporneos, os meus colegas l da
comunidade onde eu vivia. S que, no Ensino Mdio, fui fisgada por uma militncia
Marxista, por meio do Partido Comunista do Brasil, do Partido dos
Trabalhadores. Naquela poca existia uma espcie de recrutamento da juventude,
pra que nos organizssemos. E eu era muito ativa, gostava de ficar recitando
coisas nos eventos da escola. Nessa ocasio, embora ainda no entendesse nada
de Marxismo, de Socialismo, de nada, eu tinha uma revolta relacionada questo
de classe. Eu nasci em So Paulo, numa favela onde hoje est funcionando o
estdio de futebol que pertence ao Corinthians e, ali, na Zona Leste, eu morava
na rua chamada Estado do Cear porque todas aquelas ruas eram ocupadas, naquela
favela, por nordestinos, cearenses em sua maioria. E meus pais foram para l,
como tantos outros no final de 1950 e na dcada de 1960, em busca do Eldorado,
porque se buscava uma vida melhor. Ambos agricultores, meu pai nascido numa
cidade chamada Vargem Alegre, no Cear, e minha me, na menor cidade do Cear,
que se chama Granjeiro, especificamente na zona rural desse muncipio, que
ainda hoje o menor do Cear. Meu pai, embora agricultor, foi para So Paulo
trabalhar na construo civil. Minha primeira irm nasceu no Cear. Depois eu
nasci em So Paulo, depois eles voltaram para o Cear. Ao todo, somos seis
filhos: um em cada lugar. Ento, meu pai, como operrio, trabalhou na
construo civil. Grande parte daqueles prdios que tem na Avenida Paulista tem
o suor do meu pai.
Ento, eu tinha uma coisa
assim de questionar as desigualdades sociais e essa turma de esquerda do Ensino Mdio que
vai me despertar. E, uma vez, minha me, quando ela era faxineira do Palcio do
Governo, foi acusada de roubar um material de limpeza, uma coisa assim. Isso me
marcou muito. E embora nesse tempo eu j fosse muito apaixonada pela
literatura, porque meu melhor professor de todos os tempos foi um homem, um
professor chamado Sebastio, professor de letras: Literatura, Lngua Portuguesa
e Literatura l na Escola Jos Lins do Rgo, em So Paulo. Era 5 srie e
depois ele foi meu professor na 7 tambm, e esse professor me emprestava
muitos livros e eu participava de concursos de poesias, s que a escola no
oferecia possibilidade de falar da Literatura de Cordel. E meus pais tinham
cordel em casa e eu levava, esse professor era muito receptivo, mas nunca
inseria no programa, n? Enfim. O fato que eu queria fazer Letras, eu me
inspirava naquele professor que dava oportunidade, que estimulava a leitura,
enfim. A a histria era assim: no era exatamente pensando eu vou pra
faculdade fazer Letras; era pensando assim: eu quero ser uma escritora, eu
quero ler mais, eu quero escrever mais. Mas no era tipo: eu vou pra
faculdade, n?
Depois, quando terminei o Ensino Mdio, eu j
fiz todo o Ensino Mdio, grande parte dele, no estado do Cear. Ento, eu j
estava militando no Partido Comunista e meu companheiro ‒ que o pai da
minha filha, n? ‒, meu companheiro da poca, ele era trotskista e atuava
numa ala do PT chamada Convergncia Socialista e ele disse: Eu vou fazer
faculdade, vou fazer Histria. A ele se inscreveu e eu fiquei na dvida. Eu
queria me inscrever em Letras, s que eu ainda tinha muita mgoa, muita revolta
pelo que aconteceu com minha me. Eu falei assim: Ah, ento acho que eu vou
fazer Direito porque eu quero atuar na rea do Direito do Trabalho. Ento, eu fiz
vestibular, n? Eu era muito autodidata e eu lia muito, e eu era a nica mulher
que atuava no Partido Comunista. Ento, assim, eu passei na faculdade de
Direito, apaixonada pelo Direto do Trabalho, mas quando chegou l eu me
encantei pelo Direito Constitucional, mas, paralelamente a isso, eu seguia
lendo e escrevendo muito, muita Literatura de Cordel sem publicar.
A, em 94, quando eu pari minha primeira e nica
filha, eu pari tambm um cordel. Ela nasceu em maro e eu pari o cordel e
publiquei. Eu tava desempregada, ento, eu escrevi, n? Houve uma morte l no
bairro e eu escrevi aquele cordel que de 94, a primeira edio: Mulher
Conscincia ‒ nem violncia, nem opresso. Ento, eu mesma paguei.
Tinha uma grfica l em Juazeiro do Norte, onde publiquei quase a maioria dos
meus cordis. Depois eu fui publicar na grfica Lira Nordestina, que uma
grfica assim... ela, hoje acho que est vinculada Universidade Regional do
Cariri, ainda est! Mas eu publicava em uma grfica de fundo de quintal, ela
nem tinha CNPJ, era de Seu Ccero, e a grfica Lderes. Depois ele regularizou,
muitos anos depois. Ento, eu publiquei esse cordel e como eu era militante, eu
discutia com as mulheres, conversava com elas e esse cordel era sempre muito
lembrado para dialogar sobre essas violncias. No eram os documentos que eu
aprendia na faculdade, no eram as regras, no eram os textos acadmicos porque
as minhas interlocutoras no eram acadmicas. Ento, esse cordel foi a minha
entrada no mundo da Literatura. Assim,
minha entrada oficial, n? J que eu era uma leitora e uma escritora, mas no
publicava.
S que bvio que eu digo que a influncia da
militncia, ela foi importante pra mim, mas [pausa] antes mesmo de eu estar na
escola, eu tinha essa paixo pela Literatura de Cordel por causa da minha av.
Eu falo muito sobre isso em outras entrevistas e eu dei uma entrevista pra Caros
Amigos uma vez e eles deram a visibilidade que a minha av merecia naquela
entrevista porque comeam falando dela e o impacto dela na minha vida. Ela era
uma performer, eu no tinha essa noo, mas a minha av era miudinha. Eu
tenho um metro e cinquenta e dois [1,52m]; minha av era muito menor do que eu
e se agigantava diante de mim assim. No s porque eu era uma criana e ela era
uma adulta, mas porque eu via assim uma poetriz, digamos assim, uma
mulher que era fascinante. Ento, ela no sabia ler, n? Durante um perodo da
vida ela enxergava, mas depois ela ficou cega e ela era apaixonada pela
Literatura de Cordel. Todo mundo na minha famlia era, mas minha v era a que
tinha mais fora, n? A que nos unia em torno dessa literatura. E a ela vivia
na zona rural l de Granjeiro, num lugar chamado Canabrava, Canabrava dos
Gregrios, e essa mulher que amava a Literatura de Cordel exerceu em mim essa
influncia.
Ento, assim, eu conto isso num cordel chamado Feminismo
em Cordel: como foi que comeou? e l eu conto um pouco dessa coisa de eu
gostar muito de todos os cordis. L tinha um ba, cheio de cordis, embora
fosse numa casa que somente uma pessoa lia, que era minha tia Senhora, que
viva at hoje. Era a nica pessoa que lia, lia muito pouco, mas era ela a
pessoa responsvel por ler o cordel, os cordis ali [rpida pausa] e meu av,
quando ele ia pra cidade, fazendo compra – feira do ms. Eu brinco, acho
que no cordel Cordelirando [rpida pausa novamente] eu conto isso e
tambm nesse outro Feminismo e Cordel, eu lembro que meu av, as vezes
que eu ia pra l, porque vocs deveriam pensar: Mas como assim, voc tava em
So Paulo e no Cear ao mesmo tempo?. A minha, a nossa vida era uma vida de
idas e vindas. Meus pais foram l por conta do xodo rural, tiveram uma filha,
voltaram pro Cear: todas as vezes que tinha uma crise econmica, que ficavam
desempregados, que as coisas apertavam porque o aluguel era caro e eles
moravam, apesar de no morarem numa casa, mas era um barraco alugado; e quando
tambm a violncia comeava a espreit-los, corriam de volta para o Cear. E l
eles tinham as casas dos parentes pra ficar, tinha roa, no faltava aonde eles
serem acolhidos. Ento, assim, havia frias em que eu estava na casa dos meus
avs e havia perodos em que eu morava na casa deles.
Ento, assim, meu av ia pra roa, pra feira e
ele levava um saco que era a bolsa que ele transportava a feira, a ele
trazia... eu costumava brincar que ele trazia os quatro efes: era o feijo, a
farinha, o fumo e foieto porque minha av nunca chamou o cordel de Cordel,
ela chamava os foieto, n? Ento, ela tinha os clssicos: A histria de
Joo Grilo, O soldado jogador, ela tinha l A histria do Valente
Joo Garcia, Z Garcia ‒ no lembro agora. Ela tinha tudo, tudo,
tudo, tudo. E meu av, ele tava se alfabetizando, ento, ele ficava na roa o
dia inteiro, quando chegava tomava banho, jantava e depois sentava um pouco l
no terreiro, conversava com as pessoas. Mas, depois ele voltava e sentava num
tamborete e acendia uma lamparina e comeava: ‒Um B com A, BA; um B com
E, BE; tudo cantado. Eu ficava impressionada, n? De ver aquele homem... Meu
av tinha uma aparncia muito bonita, ele era um homem negro, baixinho,
cambota; e ele tinha essa coisa de querer estudar, ento, ele tinha a tabuada e
tinha a carta de ABC. E ento eu ficava observando aquele homem aprendendo a
ler.
E minha av, no! Nunca aprendeu a ler, mas ela
era quem articulava o... vamos chamar de sarau, que na poca ningum usava
esses termos, n? A l tinha um alpendre, na casa dela, ento, sentavam-se as
pessoas nas cadeiras, as crianas sempre no cho junto com os cachorros; mas os
adultos tinham cadeiras [risos] e tinha a muretinha do alpendre onde vizinhos,
compadres, conhecidos chegavam, conversavam sobre vrios assuntos, mas sempre
tinha o recital. E a minha tia Senhora, ela que lia essas histrias, e minha
av ficava a corrigindo porque minha av tinha de cor; todos os folhetos minha
av tinha decorado. E quando eu aprendi a ler de verdade, minha me contava que
eu j tava lendo cordel e num sei o qu, e minha av dizia: Pois sente aqui na
cadeira que eu quero ver se voc sabe ler mesmo.
Ento, minha av era uma espcie de professora,
mesmo sem saber ler, sem decodificar palavras, letras etc. Eu lia os cordis
pra ela e ela me corrigia porque tinha a cadncia, n? Tinha toda uma coisa de
voc performatizar e eu ficava lendo ali como quem l qualquer coisa, e minha
av corrigia: No bem assim...; e claro, uma criana s vezes num sabe ler
direito e minha av ia me dizendo como era a palavra e tal. A chegada do
Lampio no Inferno foi o primeiro cordel que eu lembro de ter lido; lido eu
mesma – no ouvido, ouvi outros. A, eu dizia: Um cabra de Lampio, a
ela dizia: Por nome Pilo Deitado; e voltava pra mim: Que morreu numa
trincheira / Num certo tempo passado / Agora pelo Serto anda causando viso /
Fazendo mal-assombrado. A, ela dizia: Pare a, no bem assim. A, ela
voltava e dizia: Um cabra de Lampio / Por nome Pilo Deitado / Que morreu
numa trincheira / Num certo tempo passado[82]. Ento, ela imprimia
musicalidade, ela tinha uma coisa assim. E ela se levantava – se ela tivesse
sentada – e ela agitava os braos, aquela coisa, n?
Ento, assim, eu fui percebendo que no era s
uma escrita, era uma coisa de msica! Era uma articulao entre msica,
oralidade, escrita etc. etc. Mas nada de teoria, no tinha acesso s teorias e
at hoje no tenho muito conhecimento sobre Teoria Literria ou Oralidade ou
Cordel ou Tradio. Conheo vocs duas e tantas outras pesquisadoras que
conhecem bem, que tm domnio sobre essas questes, mas ali com ela, era uma
escola de teatro, digamos assim, n? Ento era uma coisa... E eu percebia o
seguinte: minha av tambm criava. Eu entrevistei minha av algumas vezes,
quando eu j estava adulta e minha av j estava bem velhinha. E eu entrevistei
naqueles gravadores antigos e parte dessas fitas cassetes eu cedi pra pesquisadora Fanka e depois ela
cedeu pra Ria e essas coisas desapareceram porque primeiro eram mal
condicionadas, o calor destrua, n? Enfim, mas l no Juazeiro do Norte deve
ter ainda alguma coisa.
Ento, minha av quando recitava para mim nas
entrevistas ou mesmo nas conversas comuns, eu no sabia quando era uma coisa
era dela ou era de algum autor clssico porque como a minha av no estava
preocupada em dar crditos e fazer referncias, tinha vez que ela mesclava as
coisas do imaginrio dela, da lembrana dela, do cotidiano dela, ento, quando
estava varrendo o terreiro – ela estava recitando alguma coisa ‒,
eu dizia: De quem esse Cordel, v? De quem esse folheto, v?. Essa
histria, n? A, ela dizia: Num sei, no. S sei que eu aprendi, n? Esse a
eu no sei de quem no. A em outro pedao ela dizia: Esse aqui meu. Foi
eu que inventei isso aqui. Ento, talvez por ela escutar tanto, tantos
folhetos e por ela tambm pensar sobre criar, ela no sabia mais o que era
dela, o que era dos outros e eu no sei explicar. Sei que isso a foi me
influenciando.
Ento, como diz Z Ramalho, naquela poca eu era
inocente, porm, besta; e eu achava que os cordis eram lindos e maravilhosos.
S que depois, essa coisa de racionalizar, de refletir sobre as desigualdades
sociais, me mobilizou a questionar aqueles folhetos que sempre tinham os homens
como protagonistas ou os homens como autores, n? E, ento, eu comecei a
prestar ateno no meu cotidiano. Eu sei que as histrias que minha av apreciava
e que tambm gostava, e que minha tia lia, eram sempre de pessoas de outros
pases ou ento eram narrativas assim... histrias imaginadas: O Valente Z
Garcia, A Princesa do Vai No Torna, O Pavo Misterioso. Era
muita coisa, assim, que no era da vida real, digamos assim. Ento, eu comecei
prestando ateno s coisas da vida real e na minha vida real tinha muitas
mulheres, dentre as quais eu me inclua, com vrios problemas, e tinha tambm
uma coisa de eu achar um pouco ofensivo e dialogar com as mulheres do meu
bairro, da minha famlia falando daquelas coisas, do artigo 5 da Constituio.
Eu no me sentia confortvel por estar falando sobre o nosso cotidiano a partir
dali.
Ento, em 94 eu estava no penltimo ano da
faculdade quando eu publiquei meu primeiro cordel. E nas rodas de conversas,
no s na militncia, mas com mulheres e ali no era uma conversa entre
feministas no, era entre mulheres de uma comunidade que estavam muito
impressionadas e muito, digamos assim, temerosas com a morte da vizinha
Cristina, que foi assassinada na poca. Ento, o cordel comeava assim: Os
nmeros de violncia tm crescido sem parar / Pra garantir resistncia
preciso no calar; a eu dizia: Do Cariri para o Brasil quero me manifestar.
E comea assim. Eu vou narrando uma srie de coisas e o Cordel tem uma
influncia assim marxista porque a explicao que eu dava na poca para isso
tinha a ver com a acumulao da propriedade em poucas mos, a violncia estava
relacionada tambm com a questo econmica, no era uma explicao totalmente
baseada no patriarcado. Era a influncia que eu tinha da poca, de que era uma
leitura ideolgica, ligada ao marxismo, num sei o qu. E ento eu levei esse
Cordel para a minha av, em 94, e ela morreu em 2002, parece.
Eu levei esse cordel para a minha av, eu li pra
ela e ela disse: Isso a no foieto, no. Isso a no tem nada a ver com
foieto. Ela no reconheceu [risos], a eu falei: V, tem sim! Olha aqui a
rima t bem direitinho.... Eu acho, n? Achava! [continuao do dilogo] A
rima t bem construda, eu t rimando bem aqui, . A ela disse assim: No,
mas essa histria muito feia, muito ruim, num tem uma coisa assim que prenda,
num tem... Quem a mulher dessa histria? Quem o homem? Quem a pessoa?,
n? A no tinha uma personagem especfica, que tivesse uma histria que
tivesse incio, meio e fim, porque falava de um monte de pessoas ao mesmo
tempo, de grupos sociais e tal. E a ela disse: De onde foi que voc tirou
isso?. A, eu disse: Da minha cabea, da minha cabea, mas foi porque
morreu Cristina, l na Rua So Bento, assim, assim, assado e tudo. A ela
disse assim: Mulher (mui, n? Que ela falava), mui, num se mete com isso
no. Ela sempre me dava vrios conselhos e ela achava que eu j estava velha,
que eu j deveria ter me casado. A, ela dizia: , minha filha, arranja um
dono pra tu; to feio uma mulher sem um dono. E ela dizia assim, eu fui l
pra me despedir dela, que eu ia viajar pra Fortaleza pra fazer mestrado; a ela
disse assim: Tu ainda vai estudar? Tu j leu os livros do Juazeiro, do Crato e
agora vai ler os livros de Fortaleza? Minha filha.... A comeava a falar que
era melhor eu me casar... A eu fui fazendo cordis, problematizando tambm
essa nossa matriz social, cultural; e vieram outros folhetos e, enfim, quando
chegou em 100 eu parei de contar. Mas o fato que a maioria relacionada a
essa nossa condio feminina, n? Eu digo nossa, considerando a tambm toda a
diversidade das mulheres.
E a o curioso que a velhice me chamava muita
ateno tambm. E eu escrevi o cordel O que velhice, o ttulo esse: O
que a Velhice? E a capa tem a foto de minha av; minha av com um paninho
assim no ombro, que ela sempre usava um paninho de prato assim no ombro o tempo
inteiro, exceto quando ela saa pra viajar ou pra missa. E ela est na porta da
casa dela nesse Cordel e eu vou perguntando o que a velhice, vou questionando
e trago vrios elementos porque tambm eu estava influenciada com a obra de
Simone de Beauvoir, que ela trata tambm dessa temtica da velhice, que o
lado menos conhecido de Simone de Beauvoir, n? E eu no era estudiosa de
Teoria Feminista, no era estudiosa de questes de gnero, no. Eu era uma
militante, uma comerciria na poca. Eu estudava, trabalhava, escrevia Cordel,
cuidava de minha filha e, enfim, no tinha muita abertura no Partido Comunista
pra os debates de gnero. Mas, curiosamente, tambm era atravs do Jornal,
desse editorial que vinha pra Juazeiro do Norte ‒ que a gente vendia,
tentamos recrutar outras pessoas ‒ que, vez por outra, no 8 de maro a
aparecia uma discusso sobre mulheres e vinha uma marxista l, Alexandra
Kollontai, que s depois de 300 anos que eu vim estudar e conhecer. Mas ela
problematizava as mulheres no mundo do trabalho, no mundo social, na poltica e
tal e coisa.
Ento, eu tinha muita intuio que eu fui
desprezando aos poucos, por uma viso equivocada da racionalidade; e depois eu
passei a valorizar. Agora, nos ltimos 5 anos, eu t muito f de intuio. Por
exemplo, o cordel A Mulher de Sete Vidas, que o mais longo cordel meu
em termos de quantidade de pginas e de estrofes e tal. Esse cordel foi escrito
no momento em que eu estava questionando muito as minhas convices polticas,
filosficas e meio autobiogrfico. Embora, sendo a mulher de sete vidas, e
ela tem sete vidas [risos], e ela aparece com sete experincias diferentes: uma
hora ela uma meretriz, outra hora ela uma artista. Ela tem vrias, eu no
me lembro, ela tem vrias facetas e ali o momento em que eu dialogo com o
Espiritismo, com o Catolicismo Popular, trago coisas do Budismo, alguma
inspirao na questo da espiritualidade mesmo, nas suas vrias nuances. Mas,
assim, eu depois leio e digo assim: No fui eu quem escreveu esse Cordel
porque no o meu estilo, no eram as minhas questes, entende? Ento isso,
fui escrevendo...
Outro dia uma pessoa estava me chamando ateno
para algo que eu no percebia: que eu escrevia as personagens que estavam
todas ali na revista na regio do Cariri, mesmo depois que eu sa do Cariri e
mesmo depois que eu sa do Brasil ‒ os cordis feitos fora ‒, todos
esto de alguma maneira ali, como diz Belchior, Onde jaz meu corao, n?
Porque uma fora muito grande, uma relao muito forte que eu tenho com a
Chapada do Araripe, com a regio do Cariri cearense etc. Em que pese ter havido
alguns deslocamentos, porque depois que vim pra Bahia eu escrevi o cordel Trs
um Real porque andando muito de nibus aqui em Salvador eu via homens e
mulheres entrando no busu e gritando trs um real, ento, uma
histria que envolve dois vendedores: um homem e uma mulher. E a eu digo: Ele
entra e pede desculpa por atrapalhar o silncio da viagem, ela entra e diz
isso e eles vo vendendo produtos variados com uma pegada de gnero. Geralmente
ela traz produtos mais vinculados s [entre aspas] necessidade das mulheres.
E a, a Minha Preta vem Para a Marcha eu
escrevi aqui em Salvador, mas um apelo minha me. Eu falo um pouco dessa
condio dela, de mulher negra, de trabalhadora sempre no espao privado e
quando foi trabalhar no espao pblico foi realizar no pblico o que ela fazia
no privado, n? Porque ela foi agricultora familiar ali no quintal da casa
dela. Ela nunca plantou numa roa como os meus tios que tinham uma roa fora de
casa, saam pela estrada pra ir pra roa. Minha me no: a roa de minha me
era no quintal da casa dela, dela e das irms dela. Depois ela vai para So
Paulo, trabalhou de domstica. Eu conto isso no Cordelirando, o cordel
chamado Cordelirando, que eu digo que: Sendo filha de um pedreiro e de
uma camponesa / A palavra companheiro me foi servida mesa / Aprendi desde
criana a ser eu minha fortaleza. Ento l tem algumas estrofes... Eu no me
lembro, no tenho vergonha de dizer que eu no tenho de cor nenhum cordel meu,
na ntegra. Eu no consigo, muita coisa, ai, quando algum comea a recitar,
eu puxo na memria, diferentemente da minha av, e a uma pura intuio,
considerando que ela no aprendeu a ler, talvez ela tivesse uma memria e uma
capacidade... No sei, vocs talvez tenham melhores condies de me explicar
isso. Mais capacidade de memorizar, de armazenar, de organizar, de sistematizar
aquilo. Eu no, pelo fato de ler tantas coisas e meu crebro to cansado que
[pequena pausa] eu leio, eu tenho de cor cordis de outras pessoas, como o
caso tipo A Casa que Me Morava, como o caso de Lus Campos, que
aquele meu cordel, um dos meus preferidos, que A carta a Papai No,
n? Como o caso de Patativa, como o caso do cordel de Fanka, como o caso
do cordel dos Malditos de Hlio Ferraz, quando ele diz assim: 11 de setembro
dia sem precedentes na Histria / Aconteceu a vitria de Davi contra Golias /
Impactou a ousadia dessa gente Talib / E l na grande ma o capital ps no
cho / E a trupe o Alcoro meteu o kibe em Tio Sam. Ento, assim, esse um
dos meus cordis favoritos porque me inspira a trabalhar mais a musicalidade do
meu prprio texto.
E eu vinha numa pegada histrica de falar muito
das dores das mulheres, eu falei muito das dores, das mortes... Aquele cordel Mulheres
do Cariri: morte e perseguio, Embalando meninas em tempos de violncia,
Mulher Conscincia – Nem violncia, nem opresso, Basta de
Feminicdio, No cultura do estupro. Eu sempre tive,
contextualmente falando, uma produo que era [rpida pausa] uma denncia, pra
usar uma figura jurdica, era um libelo crime acusatrio, n? E depois eu
passei a ter necessidade de fazer anncios tambm porque seno eu ficava numa
coisa de no ter sada, n? De no espalhar esperana, ento, o Mulheres
fazem, por exemplo, j destoa um pouco. No Mulheres fazem eu t
falando de protagonismo das mulheres em vrios terreiros, em vrios lugares, em
vrias coisas. Lugar de Mulher tambm, n? Lugar de Mulher no t
propriamente falando de mortes ou de violncia etc. Ento, sem perceber e sem
ser uma coisa deliberada eu comecei a focar mais tambm naquilo que as mulheres
so capazes de fazer, no s no que fazem contra elas ou com elas, e a escrevi
Minha Preta Vem Pra Marcha, que tem uma hora que eu falo:
Vem, traz o doce de mamo, traz tambm a rapadura / Com tua f segue segura.
Que mais ou menos falando um pouco sobre minha me, essa marcha da vida dela
e tudo.
E a falei de Violeta Arraes, que foi Reitora da
universidade onde eu trabalhei e aquele Cordel... Eu fiz alguns cordis em
homenagem porque eu quase nunca escrevi sobre encomenda, eu sempre escrevi o
que eu quis, tanto que eu estava no Mxico recentemente e eu fiz um cordel, Minha
livre expresso, onde eu falo que, [pequena pausa] onde eu
intertextualizo com o poema de Cludia Rejane e eu digo: Minha obra ningum
tutela. Ento, eu sempre escrevi sobre o que eu quis, mas eu aceitei, poucas
vezes eu aceitei fazer alguma coisa sob encomenda porque a causa era justa e as
pessoas que me pediram eram pessoas que significavam muito pra mim. Um deles
foi Janana Dutra, ativista brasileira, que era uma homenagem primeira
travesti a obter uma carteira da OAB no Brasil, era uma ativista cearense, faleceu
depois e esse cordel foi feito pra abertura do filme Janana Dutra[83]. Tem um
sobrenome... tem um subttulo a, Janana Dutra num sei o que l, do
cineasta carioca Vagner de Almeida, que um grande amigo. Ento, eu fiz em
homenagem a Janana. Eu convivi com ela l no Cear, a gente se encontrou em
algumas atividades, ela mora ne Fortaleza, mas ela nasceu em Canind e foi at
ento – durante muitos anos – a nica ... ela se apresentava como
travesti, n? Em que pese ela no conseguiu exercer o direito do nome social
porque na carteira de OAB o nome dela era Jaime, n? O nome de nascimento, mas
ela era reconhecida socialmente como Janana Dutra e eu fiz esse cordel a
pedido! No vou nem dizer sob encomenda porque pode soar que algum disse:
Diga isso!, mas era a pedido.
E o outro foi a pedido de Orlando, um dos meus
maiores amigos ali na regio do Cariri. Orlando era um ativista, um homem gay
formado em Letras pela URCA, amante da literatura, amante dos cordis e do
cinema. Numa conversa com ele, eu j tava aqui na Bahia, e numa dessas
madrugadas insones, eu e ele conversando sobre zilhes de coisas, ele disse:
Vou fazer um filme!. Ele j tinha feito um filme chamado Tambm sou teu
povo, Senhor, que uma Drag descia a principal rua da cidade com uma
vela na mo cantando um bendito chamado: Tambm sou teu povo, senhor, e estou
nessa estrada [colaboradora canta como no filme]. Porque nossa vida ali no
Juazeiro do Norte era muito marcada pelas, n? Mesmo os ateus, mesmo as pessoas
de esquerda, elas tinham esse sentimento de pertena, n? Suas famlias todas
tinham a sala do santo. Todas, todas. At hoje minha me honra a memria de
minha av fazendo a renovao do santo, no dia 25 de dezembro. Ento, ele
disse: Salete, eu quero um filme baseado num cordel teu, mas eu queria uma
coisa nova, a, a gente dialogando, enfim, depois de muita conversa eu no
consegui dormir e fiquei escrevendo. Quando foi 8 horas da manh, o cordel
estava pronto e o cordel O Milagre Travesthriller: A Histria da Travesti
que (com f) engravidou. Essa histria muito intertextual porque eu trago
outras personagens de outros cordis meus e tambm de outros contextos l do
Cariri e dentro da histria tem uma outra histria porque ela vai se basear na
histria das macarenas, que eram umas beatas que chupavam umas rosas lilases e
nas suas catatumbas elas bailavam e, enfim, era um cordel que era meio assim
parecido com o Teatro do absurdo. Depois que eu assisti uma pea do Teatro do
absurdo, eu fiquei muito impressionada com aquilo e aquelas imagens vinham,
ento, tudo que eu escrevo ainda que nem sempre eu me dei conta [rpida pausa],
um dilogo com as coisas que eu vejo, que eu leio, que eu aprendo. Ento, no Milagre
Travesthriller, a personagem essa travesti que era temente a Deus, que
fez um milagre e que engravida. Ou seja, um debate ps-moderno, pero no
mucho, porque ela no recorre s tecnologias de reproduo, ela
recorre f no Padre Ccero e ela engravida, mas ela dialoga nessa saga, nessa
batalha por engravidar, vai recorrer a vrias pessoas. Ento, ela vai dialogar
com a feminista e a feminista diz: Ah, mas todo mundo hoje a pauta do aborto e
voc t preocupada com essa questo. E vai dialogar com um homem gay amigo
dela. Todas as personagens ali so reais, s a Shirley Dayanna, que o nome
que eu dei pra personagem, que fictcia, mas todas as pessoas com quem ela
dialoga, inclusive o prprio Orlando.
Ento, assim, a eu vou saindo daquela mulher...
H um conjunto de mulheres que fazem parte da minha literatura, por exemplo, o
cordel Maria, Helena, que so duas mulheres [risos]: Maria vrgula
Helena; uma relao homoafetiva. uma relao lsbica entre duas mulheres
ali da regio do Cariri. claro que eu as imaginei como sendo duas vizinhas
l, que eram beatas e que trabalhavam na roa e moravam ali na cidade. Na
regio do Cariri, as pessoas tm [pequena pausa], digamos, esse privilgio de,
s vezes, morarem num bairro e serem agricultoras e irem pros seus trabalhos e
voltarem. Ento, uma coisa entre o urbano e o rural, n? E a na histria de Maria,
Helena falo desse amor entre elas, mas eu no trago nada de extraordinrio,
de tentar mexer naquele ambiente. Elas continuam frequentando a missa,
continuam fazendo as coisas delas.
J na histria da Shirley Dayanna tem uma srie
de debates envolvendo a Teoria Queer e num sei o qu l, mas nada disso
dizendo: Olha aqui uma teoria, como, por exemplo, O que ser mulher?,
que uma resposta, n? Uma resposta no! [colaboradora demonstra
contrariedade]. um dilogo com Simone de Beauvoir, n? Ento, eu digo: Sobre
a mulher j se disse / tudo que se imaginar / Duns eu j ouvi tolices /
Doutros, me pus a pensar / Mas este ser – a mulher – / Afinal o
que que ? / Quem se atreve a explicar?. E vou desenvolvendo... A capa uma
interrogao, n? A, eu depois vou desenvolvendo vrios argumentos e em algum
momento eu pergunto: E se um homem quiser / Ento mudar sua forma?. Ento,
um jeito de falar dessas teorias sofisticadas a partir dessa linguagem, apesar
de minha av no ter legitimado num primeiro momento, n? Porque ela disse que
isso no era um foieto e tal e coisa.
Mas depois que eu li pra ela A Histria de Z
Leitor, que eu vim publicar bem depois. Mas eu escrevi ainda com ela em
vida, j t na terceira edio A Histria de Z Leitor, foi a histria
que ela mais gostou das minhas histrias, porque se trata de um homem que com
mais de 60 anos vai pra a EJA n, a Educao de Jovens e Adultos, e vai se
alfabetizar, e ele quer aprender a
ler e ele tem dificuldade ou tem hora que ele quer desistir, e a ele leva um
cordel de Patativa, Vaca Estrela e Boi Fub, e depois Fagner
musicou e etc.; e ele l esse cordel pra turma, e... enfim. Ali a apoteose
n, da alfabetizao dele, e o colega dele que pedreiro vai assistir, e a
esposa dele vai, todo mundo vai e enfim. Ento minha av achou a histria
linda, porque tinha uma famlia, tinha n [risos mais contidos] uma histria de
uma pessoa com incio, meio e fim, e o fim foi feliz e etc., enfim. Ento, ela
abenoou esse cordel digamos assim, n? Mas . Meninas, eu t falando muito
coisas sem s vezes nem ter uma conexo com a outra, mas o que t me vindo
as...
(AB) – Tem conexo
demais...
(SM) – Porque os fios
da conexo vocs que tm capacidade de articular porque eu t falando assim
coisas que me vm memria. Eu tava falando dos cordis a pedido, n? Ento, a
pedido de Orlando, a pedido de Vagner Almeida, dois cineastas, e eu fiz o
cordel pra homenagear a Violeta Arraes. Eu homenageei Violeta Arraes, homenageei
vrios amigos l do Carari, uma amiga que fez uma cirurgia e ela tava fazendo
radioterapia, n? E eu chamei isso de Mais uma dose de amor porque ela
tinha que tomar mais Iodoradioterapia[84].
E recentemente eu homenageei uma pessoa que no
muito bem-vista entre as feministas baianas etc. porque s vezes ele
etiquetado de misgino e tal, mas um amigo querido que eu tenho aqui na
Bahia, se chama Luiz Mott e eu fiz um cordel sobre os 70, ou mais, anos dele.
Ele tava passando a pandemia l na Itlia e com medo de morrer e num sei o qu,
no olho do furaco, n? E eu fiz um cordel O Mott Festejar! Ento, no
foi exatamente um cordel que ele me pediu, mas ele disse assim: Salete, vamos
falar de Cordel, eu l no Mxico e ele l na Itlia, e a gente lutando pra ter
um voo de repatriao. Por que que eu t falando do Luiz Mott? Porque a pedido
dele, h uns anos, eu fiz um cordel sobre Tibira do Maranho, Santo Gay do
Brasil. Ele, como um Antroplogo, pesquisa essas coisas da Inquisio, e a
ele descobriu l no Maranho essa coisa do primeiro crime de homofobia do
Brasil, que foi praticado contra esse indgena chamado Tibira, ainda no incio
n do sculo XVI e a ele me passou a histria, a pesquisa dele e disse: Ah,
seria legal ter um cordel e tudo. E eu li a histria toda e contei isso num
cordel que foi objeto de pesquisa l no Rio de Janeiro, num grupo de Histria e
tal. Ento, assim, mas todo inspirado na pesquisa do Luiz Mott. A fonte do
cordel a pesquisa do Luiz e eu conto essa histria sobre por que o GGB
– o Grupo Gay da Bahia – fez um requerimento Santa S para
reconhecer a santidade desse santo, desse mrtir e como ele antes de morrer foi
obrigado a se converter ao Catolicismo. O Luiz Mott ironicamente diz: Ento,
j que ele se converteu ao Catolicismo e gente que foi martirizado, igual ou
menos do que ele mereceu essa santificao, vamos constranger a Santa S para
reconhecer e tal e coisa.... Isso divide as opinies porque tem muita gente
que no est interessada em ter um santo gay, muito menos na Igreja Catlica.
Mas o fato que uma disputa poltica e achei interessante contar essa
histria porque a mim me interessava muito j que a minha dissertao do
mestrado foi sobre a igualdade jurdica na ao contra pessoas LGBT. Ento, gostei
muito de saber dessa histria. A, foi um cordel que eu fiz a pedido do Luiz e
submeti a ele e quando eu submeti, ele disse uma coisa l... Ah, duas ou trs
coisas que eu tinha dito que ele queria alterar, ento eu disse: No, Luiz,
no aceito que voc mexa no cordel e muito menos que altere a minha rima porque
o meu compromisso com a histria e o cordel meu e a rima no vai ser
alterada.... Era uma coisa l, mas ele compreendeu, n? E a o cordel um
outro cordel sob encomenda.
Mas, fora isso, eu vou escrevendo quando tenho
vontade. Tem tempos que eu no escrevo nada, fico travada, tem tempos que eu
escrevo. No Mxico eu escrevi 6 cordis em 3 meses. Ento, eu estava num
desespero assim.... eu tenho uma aproximao com minha vida aqui no Brasil e
mais perto com minhas... eu pedia a minha av, eu orava muito pra que ela me
desse inspirao pra eu no pirar, que eu tava ficando maluca trancada dentro
de uma casa e com medo de nunca mais voltar, enfim. A, eu sei que eu escrevi o
cordel Por amor, cuidem das vidas. Foi em maro, n? todo sobre a
pandemia e fazendo um apelo, um cordel denncia e anncio e tudo. E eu no
sei nenhuma estrofe dele [risos], t l no Blog, n? E escrevi outros que eu
no lembro agora, mas sei que foram 6 cordis. O outro foi sobre Luiz Mott, fez
aniversrio l na Itlia e enfim.
Ento, assim, so vrias mulheres que eu vou
trazendo, mas no s mulheres, n? Tem muitas figuras vinculadas
feminilidade, ento, voc tem a as travestis, voc tem os homens gays, voc
tem a ... A personagem mais austera, digamos, que eu j tive foi Z Leitor,
mas na verdade tem uma... [rpida pausa] pegada assim geracional e de classe.
Bruna
Lucena (BL)
– Tem o do seu pai, n, Salete?
(SM) – Ah, ok!
(SM) – Verdade, Bruna,
tem... Meu pai aquele cordel eu no consigo recit-lo porque eu comeo a
chorar. Ento, no dia do lanamento dele, eu tive de me socorrer de pessoas...
(BL) – Que lindo
aquele cordel...
(SM) – ...
(BL) – Por isso que eu
lembro, eu acho ele lindo... [risos]
(SM) – . uma
homenagem pro meu pai que eu fao, logo aps ele ter passado por um cncer
agressivssimo, n? E diz assim: Meu pai por seu um pedreiro... – a
nica estrofe que eu ainda lembro porque muito emocionante pra mim: Meu pai
por ser um pedreiro / Dele muito me orgulho / Sempre foi muito guerreiro /
Homem de muito barulho / Seja curando tormento / Seja mexendo cimento...
– [colaboradora tenta relembrar a rima]: Ele desata o embrulho. Ele diz
assim: Seja curando tormento / Seja mexendo cimento / Ele desata o embrulho.
A eu vou contando a histria dele, que ele saiu em 44 [1944]... Que ele nasceu
em 44 e depois ele saiu do Nordeste brasileiro ainda jovenzinho pra trabalhar
na construo civil, a ele brinca que subiu na vida, n? Ele deixou a lavoura
para subir num andaime, ele brinca assim. Tem essa boa lembrana.
Ento, Bruna, tem o do meu pai... Eu homenageei
alguns homens que eu considero importantes na minha vida. Ento o meu tio Z
Alexandre, recentemente, que eu nomeei o cordel dele de Vai nas asas dos
Arcanjos. O curioso que, um ms antes do meu tio falecer, eu liguei para
ele e ele disse assim: Olha, eu t deixando aqui uma herana pra voc. A eu
achei estranho aquela conversa e tudo... A ele: No, eu t velho.... Porque
em maro ele perdeu um neto e ele tinha dito: , porque que Deus no me levou
e deixou meu neto, to jovem?. Ento, quando eu cheguei do Mxico, que eu
liguei pra ele, ele disse assim: Eu no tinha mais f que eu ia ver voc, no,
ser que eu ainda lhe vejo?. A gente conversando no telefone, a, eu disse
assim: tio, num fala um coisa dessa, num sei o qu.... A ele disse assim:
Eu t deixando aqui uma herana pra voc: um caderno de folhetos e a mquina
de escrever, mas ela t toda quebrada, as letras saindo fora de lugar e
tudo.... A, eu disse: , num t gostando desse papo de herana, mas em
termos de presente eu estou adorando, ento quando essa pandemia passar, eu vou
a e a gente vai ver esses cordis e vai – ele tambm no chama de
cordel, chama de folheto – a gente vai publicar e num sei o qu....
Enfim.
Ento, assim, minha herana t l, eu ainda no
pude ter contato, n? Quando passar essa pandemia eu vou atrs, mas ele sabia
que de todos os parentes a pessoa mais fissurada assim no cordel e na produo
dele e tudo, sou eu. Ele escreveu A Casa que Me Morava, que um
clssico, n? Fui visitar meu serto / Aonde morou meus pais / A saudade era
demais / Pra ver aquele torro / Atravessei o boqueiro e avistei a Canabrava /
Com tanta saudade eu tava pra ver aquela casinha / Que hoje no mais minha /
A casa que me morava [colaboradora recita o cordel do tio]. E a ele vai
desenvolvendo toda a histria de vrias passagens da vida dos meus avs nessa
casa etc., etc. Tem uma hora que ele diz: Tendo dinheiro eu comprava / A casa
que meu pai fez / Pra eu morar outra vez / Na casa que me morava. lindo
esse cordel, muito emocionante. E tem um muito engraado que ele diz: Em cada
dez brasileiros / Tem oito ou nove ladro; que ele fez a num dos perodos a
de campanha eleitoral, l comprou muitas confuses, por isso o cordel no foi
publicado assim em grande escala, mas era assim uma outra inspirao pra mim.
Era no, segue sendo, n? [pequena pausa] Fiz o do meu primo tambm... Tem
tanta coisa. O de Orlando muito emocionante porque o Orlando faleceu sem ver
o resultado do filme baseado no meu cordel. O filme existe e se chama Travesthiller.
O meu cordel Milagre Travesthiller, mas o filme Travesthiller.
Ento, so cordis em que eu trago
majoritariamente a temtica das mulheres, falando da desigualdade de gnero,
trago en passant a questo da velhice, a questo geracional, racial, mas
a classe t muito presente porque de todas as minhas conscincias a primeira
foi a conscincia de classe, n? Ento, isso foi o que me levou a me desviou de
ser algum da rea de Letras pra ser algum do Jurdico. Foi uma coisa de dizer
assim: Ah, ento eu vou fazer faculdade de Direito e eu vou me dedicar ao
Direito do Trabalho porque eu no quero que acontea com nenhuma pessoa,
nenhuma mulher, o que aconteceu com minha me e num sei o qu.
E de fato eu advoguei um tempo na rea do
Direito do Trabalho e depois eu me desencantei com essa coisa da advocacia
trabalhista. A, eu fiz cordis e nos atos processuais t l o qu que a
Sammyra botou o cordel chamado Alvar Judicial, que uma petio
que eu fao em cordel pra que o juiz autorize que um agricultor l de Cariri
saque o resduo do FGTS, que ele chegou de So Paulo e tava desempregado e era
agricultor, foi pra So Paulo trabalhou um pouco com carteira assinada e estava
desempregado e voltou. A, eu fiz essa petio sabendo que ela no seria
indeferida porque o juiz era um poeta tambm: Doutor Pedro Bezerra. No era um poeta
de cordel, mas era um poeta e muito sensvel. Do ponto de vista legal, ele no
teria como dizer que eu tinha que escrever em prosa porque o cdigo do processo
diz que tem que ser na lngua verncula, n [risos]? A petio tem que ser em
Lngua Portuguesa e tem que dizer os fatos e dizer o direito. S que no
tradio escrever em poesia e a o pessoal escreve uma coisa com incio, meio e
fim, mas qualquer outro juiz poderia indeferir dizendo que no estava de acordo
com a tradio jurdica bl, bl, bl, bl. Ento, ele acolheu, ficou muito
emocionado e abriu vistas pro promotor de justia. O promotor tentou fazer uma
gracinha despachando em uma estrofe [risos], no conseguiu rimar, mas
despachou. O que vale a inteno. E esse senhor, chamado Jesus, t l no
folheto... E ainda era na mquina de datilografia. Se vocs olharem no Cordelirando,
um scanner da pgina, do processo, vo ver que ainda era no tempo da
mquina de datilografia que eu peticionei. S que eu recentemente percebi o
seguinte: que aquilo para o que eu menos me esforcei na vida algo que tem
tido algum valor, entende?
Eu no fiz cordel pra me tornar famosa, eu no
fiz cordel pra ganhar dinheiro porque primeiramente eu pagava do meu bolso, por
isso que eu publiquei pouco na dcada de 90, que eu no tinha emprego. Eu vim
ter um emprego em 98, emprego assim que me deu condio de me sustentar porque
eu tralhava, obviamente, desde os quatorze, mas assim como comerciria, depois
como pesquisadora do SINE, depois como pesquisadora do IBGE, depois eu
trabalhei numa escolinha – mesmo sem eu ser formada ‒, eu fiz um
teste e fui professora infantil. Na poca eu fui professora da Educao
Infantil no Colgio Balo Mgico, ento no dava para eu sustentar o meu hobby,
digamos assim, ento, foi uma poca em que eu produzi muito e no publiquei
muito e... Teve coisa que eu produzi em 90 e s vi publicar no ano 2000. Ento,
por exemplo MARIA DE ARAJO e seu lugar na histria, que a beata
Beatitude, ele publicado em 2001, quando eu consegui recursos porque teve
tempo que eu publiquei pelo Cordel, ou o projeto SESCordel, e a uma
poltica; no nem uma poltica pblica porque o SESC que do Sistema S, da
Indstria e tal, comrcio. Mas o SESC tinha uma iniciativa, um projeto de
autoria de Fanka chamado SESCodel Novos Talentos, ento, eu me submeti a
esse edital chamados novos talentos l na Regio do Cariri. E eu cheguei a
publicar dois ou trs: o MEU PAI foi publicado pelo SESCodel Novos
Talentos.
Ento, s vezes, uma coisa publicada numa
dcada e ela foi produzida numa dcada anterior, mas faltava condies, no
tinha uma poltica pblica no estado do Cear, um edital, uma coisa... um
incentivo produo. Tinha incentivo leitura, mas o leitor e a leitora ia
ler o que j estava disponvel naquelas prateleiras. A, com esse projeto
criou-se uma Cordelteca e eu que no era s escritora de cordel, mas era tambm
leitora, frequentava pra ler os cordis das pessoas, participava de uns saraus,
recital etc. Os lanamentos eram lindos. Porque eu sou anterior aos Mauditos,
n? Ento, eu publico antes dos Mauditos ‒ que o grupo que eu ajudei a
fundar junto com Fanka e outras pessoas ‒, que alis vai sair um livro
agora de autoria de Cludia Rejane sobre os Mauditos. Eu quero at confessar para
vocs que deu o maior babado...
[Seguindo
a tnica dos folhetins, a continuao da entrevista ser publicada em outro
momento, de modo a manter aguada a curiosidade de nossas leitoras e leitores]
[1] Edilene Matos
ensasta, professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. Ocupa a
cadeira nmero 13 da Academia de Letras da Bahia.
[2] Antnio Aleixo foi agraciado
com o Grau de Oficial da Ordem de Benemerncia, em 27 de maio de 1944.
[3] Antnio Vieira
(Antnio Jos dos Santos Vieira), poeta, nasceu em fevereiro de 1949 e morreu
em junho de 2007.
[4] Cordel Remoado um conceito
criado por Antnio Vieira e consiste na palavra dita e/ou escrita ao modo dos
folhetos de cordel, que se faz acompanhar pelo movimento do corpo ao som de
instrumentos musicais: violo, pandeiro e percusso.
[5] Refiro-me esttua em bronze
do poeta Antnio Aleixo, sentado mesa na Esplanada do Caf Calcinha, em
Loul, de autoria de Lagoa Henriques. H, ainda em Loul, uma outra esttua de
Aleixo, na Quinta do Lago, de autoria do mesmo Lagoa Henriques e igual do
Caf Calcinha.
[6] Antnio Fernando dos Santos
– Tssan (1918-1991), grande amigo de Antnio Aleixo, foi um expressivo
artista e poeta portugus.
[7] H, no sul de Portugal, um
antigo costume de grupos de crianas que vo de porta em porta, durante as
festas natalinas, cantar as janeiras, quadras que se vo repetindo,
alterando-se apenas o nome do dono da casa, que ento homenageado em troca de
algum dinheiro ou prenda natalina.
[8] Na concepo de Antnio de
Oliveira Salazar, o popular tem uma matriz rural, com a qual se identifica,
explicao dada em seus discursos polticos. Cf. MELO, Daniel. O essencial
sobre a cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus Novus, 2010.
[9] Este sujeito capaz/de
fazer mil promessas/mas faz tudo s avessas/das promessas que faz. O primeiro
verso dessa quadra era O Salazar capaz e foi substitudo por Magalhes para
proteger o amigo poeta. Cf. DUARTE, Antnio de Sousa. Antnio Aleixo, o
poeta do povo. Lisboa:
ncora, 1999, p. 79.
[10] Acrescida obra de improviso de Aleixo, a
parte do teatro muito interessante. So trs autos: 1. O Auto do
Curandeiro, no qual expe sua viso a favor do saber mdico e faz crticas
explorao dos curandeiros. 2. O Auto da Vida e da Morte. Nesse auto,
o autor cria personagens como o da vida til e o da vida ftil e traz novamente
a viso da cincia a servio da vida. 3. Ti Joaquim. Auto inconcluso,
escrito em coautoria com Tssan, anuncia uma sociedade que no tolera formas de
subverso.
[11] 7 edio do livro Este
Livro que vos deixo, publicao de V. Martins Aleixo, 1983, localizada em
Obras Gerais IV – 348.3.33
[12] Antnio Aleixo: o
poeta do povo por Antnio de Sousa Duarte. Lisboa: ncora, 1999. PQ 9261 – A484
Z67 1999; ALEIXO, Antnio. Inditos (seleo, prefcio, notas, fixao
de textos e ttulos por Ezequiel Ferreira. Loul, 1978. NLCS 81/0610.
[13] ALEIXO, Antnio. Inditos.
Loul. V. Aleixo, 1978. FRBNF 35232149; Este livro que vos deixo (3. ed.). Lisboa, 1975 (contm um
indito do autor – O Auto de Ti Joaquim). FRBNF 35408496.
[14] E-mail: fundacao.aleixo@gmail.com.
[15] Zeca Afonso –
Jos Manuel Cerqueira Afonso (1929/1987), compositor, cantor, poeta, autor de
vrias canes, incluindo Grndola, Vila Morena (Cantigas
do Maio, 1971), que virou senha pelo Movimento que instaurou a democracia,
em Portugal no dia 25 de abril de 1975.
[16] O espetculo uma cocriao e interpretao de Armando Correia,
Carolina Cantinho e Pedro Pinto.
[17] Acrstico de Antnio Vieira e constante de
todos os seus folhetos a que tive acesso.
[18] Em 2007, foi defendida uma dissertao de
Mestrado em torno da obra de Antnio Vieira, sob o ttulo O Cordel Remoado:
os casos e prosas do poeta cordelista Antnio Vieira, de autoria de Maria
Luiza Franca Sampaio, no Curso de Ps-graduao em Cultura, Memria e
Desenvolvimento Regional do Departamento de Cincias Humanas, Campus V,
da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).
[19] Essa poesia foi declamada por Maria Bethnia
no espetculo dentro do mar tem rio. E foi gravada posteriormente no DVD
Piratas.
[20] Os folhetos eram tambm denominados por
Antnio Vieira de livretos. Esses folhetos/livretos foram adquiridos por mim
nas mos de sua viva (Coracy Vieira).
[21] Dona Can: me dos artistas Caetano Veloso e
Maria Bethnia.
[22] Essa publicao foi no ms de dezembro e o
poeta habilmente chamou a ateno para a tradio de dar presentes no Natal,
publicizando seu folheto.
[23] O Encontro de Antnio Vieira com Antnio Aleixo, folheto de autoria de Antnio Vieira, 2005.
Este folheto se encontra na Biblioteca do Congresso Americano, AFC 1970/002:
M08302.
[24] Professor Substituto da UNEB e pesquisador em Literatura de Cordel.
[25] Optamos aqui pelo termo folheto que tambm engloba romance em vez de cordel.
[26] SOUSA, 2012.
[27] SOUSA, 2010a.
[28] SOUSA, 2016.
[29] SOUSA, 2009, p.107-111.
[30] SOUSA, 2010b.
[31] SOUSA, 2018.
[32] SOUSA, 2016.
[33] Professora
emrita da Universit de Poitiers. Centre de Recherches Latino-Amricaines.
Poitiers, Frana. E-mail: rialemaire@hotmail.com
[34] Em A peleja potica
epistolar entre a poetisa Bastinha e o poeta Patativa do Assar (SANTOS, 2011,
p. 46-47), Francisca Pereira Santos publicou trechos dessa correspondncia.
[35] Existe, desde 2013, a Rede
Mnemosine, fundada pela pesquisadora/narradora/cordelista Josy Correia.
Inspirada pela tese de doutoramento de Fanka Santos e oficializada em 2015, a
rede promove aes de mapeamento, pesquisa, difuso e fruio de folhetos,
recitais e feiras produzidas por mulheres. No ano de 2017, chegou a Portugal,
onde possui um acervo de folhetos femininos, partilhados com a Universidade do
Algarve e promove eventos, programas radiofnicos e audiovisuais, transmitidos
ao vivo pela Internet. Contato: redemnemosine@gmail.com
[36] A respeito do
conceito de matrimnio, ver Lemaire (2018).
[37] Atualmente Rita
Segato que, j nos quadros do pensamento decolonial, retoma a noo de dualidade plural como base da
metodologia do trabalho antropolgico, no sobre
mas com as (mulheres das)
comunidades indgenas do Brasil (SEGATO, 2012).
[38] Men Engage um movimento
intercontinental, criado por homens e apoiado por movimentos de mulheres do
mundo inteiro, que, todos juntos, objetivam e praticam um questionamento
radical da violncia masculina e seus funcionamentos nas sociedades humanas. Um
simpsio virtual, o UBUNTU SYMPOSIUM, rene, em contnuo e durante oito
meses (de novembro de 2020 a junho de 2021), ativistas, militantes, movimentos,
pensadores, profissionais e inteletuais para divulgar e debater as condies e
experincias de uma re-educao dessa violncia masculina como conditio sine
qua non de uma humanizao e pacificao do planeta-mundo.
[39] Mestrando em Estudos
Literrios no Programa de Ps-graduao em Lingustica e Literatura da
Universidade Federal de Alagoas.
[40] Doutora em Literatura e
Cultura-UFBA e Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus
III – Juazeiro.
[41] Usamos no decorrer deste
texto as expresses: voz indgena, eu indgena e eu-potico para nos referirmos
ao eu-lrico dos poemas.
[42] O poema
conta com cinco estrofes, no entanto, aqui, traremos apenas a primeira e a
ltima estrofes.
[43] Uma verso preliminar da temtica
abordada aqui foi apresentada pela autora no IV Seminrio Fluminense de Sociologia,
realizado pelo PPGS-UFF em 2015 em comunicao intitulada ... Mesmo que nos
arranquem os dentes e a lngua: o espao sagrado da fala na literatura
indgena. O presente artigo amplia o debate, aprofundando conceitos e
propondo novas questes de investigao.
[44] Ps-doutora em Sciences de
LInformation et de la Communication pela Universit dAvignon et des Pays de
Vaucluse-UAPV. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ Imagem, Corpo e Subjetividade,
ps-doutoranda em Comunicao e Cultura pelo Programa de Ps-graduao em
Comunicao e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
PPGCOM-UFRJ.
[45] Eliane Potiguara
apelida Marina, a esposa do lder indgena guarani do sculo XVIII, Sep
Tiaraju. Ela aparece como Juara em outros textos seus.
[46] Para mais
informaes, ver LEITE, Renata Daflon. ndios Online: posts que no querem calar. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p.
46.
[47] Doutora
pela Universidade Federal de Minas Gerais e professora da Universidade Federal
de Ouro Preto.
[48] Se os autores, por uma razo ou por outra, no conseguiram citar uma s autora, uma s trovadora, que realmente o sexo fraco no se interessa pelo cancioneiro nordestino (LUYTEN, 2003, p. 146 apud Santos, 2020, p. 14) [grifo nosso].
[49] instagram.com/julie.oliveras
[50] Pesquisadora bolsista
FAPERJ. Possui graduao em Letras – Lngua Portuguesa e Literatura –
ABEU Centro Universitrio (2016), especialista em Literaturas Portuguesa e
Africanas – UFRJ (2018). Atualmente, cursa Mestrado em Letras Vernculas,
rea de Literaturas Africanas e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas
Escritas do Corpo Feminino nas Literaturas de Lngua Portuguesa ambos pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[51] Graduao em Letras
(Ingls), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982); mestrado em
Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988);
doutorado em Literaturas Africanas, pela Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro (1997) e desenvolveu pesquisa de ps-doutorado, em Literaturas
de lngua portuguesa, em Paris IV (Sorbonne), com nfase na escrita feminina
(2016). Atualmente, professora-associada de Literaturas Africanas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, universidade onde trabalha desde 2006.
Tem experincia na rea de Letras, voltando-se para Literaturas de lngua
portuguesa (Literaturas Africanas, Afro-brasileiras e Portuguesa) e atuando
principalmente nos seguintes temas: literaturas africanas e literatura
comparada. Desenvolve pesquisa em literaturas de lngua portuguesa e
interessa-se, sobretudo, por imagens ligadas ao universo do riso, da busca de
felicidade e das questes de gnero. pesquisadora associada do CRIMIC (Centre
de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibriques Contemporains).
[52] Com o intuito de facilitar a
identificao das vozes narrativas, escolhemos nomear Cremilda como narradora-protagonista, ou seja, aquela
que conta a histria, e Elisabete como narradora-ouvinte,
por escutar e escrever as falas de Cremilda.
[53] bell
hooks professora, filsofa e intelectual negra americana. Seu nome de
nascimento Gloria Jean Watkins, e seu pseudnimo, inspirado no nome de sua
bisav materna, escrito em letras minsculas com a finalidade de passar a
ateno da figura autoral para as ideias de seus textos.
[54] Possui graduao em Letras Vernculas
pela Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS (2006), Especializao em
Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Faculdade Catlica de Cincias
Econmicas da Bahia/FACCEBA. Mestranda do Programa de Ps-graduao em Crtica
Cultural (Ps Crtica/UNEB).
[55] Possui Graduao em Letras Vernculas
(Universidade Federal da Bahia/1987), Mestrado em Letras e Lingustica
(Universidade Federal da Bahia/1995) e Doutorado em Comunicao e Semitica
(Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo/2005). Professora Titular
Plena de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia, atuando como
professora permanente no Programa de Ps-graduao em Crtica Cultural (Ps
Crtica/UNEB). Integrou por diversas vezes a coordenao do GT de Literatura
Oral e Popular da ANPOLL. Tem experincia na rea de Letras, com nfase em
Literatura, pesquisando os seguintes temas: tradio oral, identidade cultural,
literatura oral e conto popular.
[56] So Sebastio
do Pass est situado na Regio Metropolitana
de Salvador e fica distante 58
quilmetros da capital, a 37 metros de altitude. Segundo
dados do IBGE de 2019, sua rea total de 538,32 km²
e populao de 44.300 habitantes. O
municpio possui quatro distritos: Nazar de Jacupe, Lamaro do Pass,
Maracangalha e Banco de Areia.
[57] Entende-se por arquivo um conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva [ou individual], pblica ou privada, pessoa ou famlia, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte (SANTOS, 2016, p. 27).
[58] Faz-se referncia a Maria
Amlia da Cruz (03/05/2011-16/02/1992), foi uma moradora
e sambadeira, natural
de Maracangalha. Era uma verdadeira e primorosa artista no s na arrancada como no sapateado perfeito,
na caprichada rodada e na umbigada final (PAIVA, 1996, p. 26, grifo do
autor). Segundo, Paiva e
moradores da vila, Maria Amlia da Cruz Anlia, musa de Caymmi.
[59] Besouro descrito como um homem temido em toda regio por sua valentia e mandingas [...]. Capoeirista de primeira linha, puxador de samba [...] (PAIVA, 1996, p. 67).
[60] O significado do letramento varia
atravs dos tempos e das culturas e dentro de uma mesma cultura. Por isso,
prticas to diferentes, em contextos to diferenciados, so vistas como
letramento, embora diferentemente valorizadas e designando a seus participantes
poderes tambm diversos (ROJO, 2009, p. 99).
[61] A composio, de
tradio oral, foi gravada por Clementina de Jesus no LP Marinheiro s. A
cantiga , por vezes, atribuda a Caetano Veloso, que foi quem produziu o LP de
Dona Clementina, lanado em 1973, assim como quem fez a adaptao da cantiga.
[62] Prova disso a Revolta da Chibata, rebelio de negros marinheiros em
1910. O que motivou o motim foi justamente o uso de chibatadas, aceito
oficialmente, por oficiais brancos para punir marinheiros negros e mulatos.
[63] Graduou-se em Licenciatura
em Letras com habilitao em portugus/italiano pela Universidade Estadual
Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP/IBILCE, Campus de So
Jos do Rio Preto-SP. Desenvolve pesquisa de Mestrado com fomento CAPES junto
ao Programa de Ps-graduao em Letras, pela Unesp/So Jos do Rio Preto-SP.
membro do grupo de pesquisa Narrativas maravilhosas, mticas ou populares: da
oralidade literatura (CNPQ), liderado pela Prof. Dr. Maria Celeste
Tommasello Ramos.
[64] Assim como o italiano Gian
Francesco Straparola no sculo XVI, o italiano Giambattista Basile tambm
recolheu uma verso de O gato de Botas no sculo XVII, com o ttulo de
Cagliuso, quarto entretenimento narrado na segunda jornada (fiaba IV, giornata
II) de Lo cunti de li cunti.
[65] Do original: Lopera costruita in questo modo: un racconto (il 50 composto da: appertura/ponti narrativi/chiusura) allinterno del quale vengono raccontati altri 49 racconti. Per questo lopera stata intitolata racconto dei racconti. Si parla di gioco dei giochi nello stesso senso [...]. Il 50 racconto la storia di Zoza che apre e chiude lopera ed ha la stessa struttura dellultimo racconto (I tre cedri, il 49 : v. 9).
[66] Do original: E noi
troveremo, anzitutto, che varii trattenemienti appartengono al grupo di quella,
chՏ la fiaba pi famosa e pi ricca di storia, la fiaba di Psiche – Cos
il nono della G.II, nella quale se racconta di Lucciella.
[67] O poeta, folclorista e escritor brasileiro Marco Haurlio publica, alm das coletneas de contos populares, como Contos folclricos brasileiros e Contos e fbulas do Brasil, vrios ttulos do acervo da literatura oral brasileira, dentre eles assuntos de cordel. Suas publicaes podem ser encontradas em: https://marcohaurelio.blogspot.com/p/bibliografia.html.
[68] Nesta seo, feita por Paulo Correia em julho de 2007, ele escreve: Todos os contos desta coletnea foram classificados de acordo com o catlogo ATU, com exceo dos que nele no figuram, classificados com a ajuda de catlogos regionais (HAURLIO, 2011, p. 198).
[69] Do original: Sar proprio
Ciommetella con il suo ultimo racconto, che anche il racconto conclusivo
della raccolta (se si esclude quello principale di Zoza), a smascherare
lingano della schiava.
[70] Do original: che prende lo stomaco;
quel senso di nausea che rimane e non se ne va mai. E' la sensazione di chi
rumina invidia e che viene ripagato cos dalla sua stessa natura.
[71] O nome Folia de Reis
designa grupos catlicos populares, que se renem no perodo de 24 de dezembro,
noite, at o dia 6 de janeiro, para oferecer seu voto de devoo ao Santos
Reis, em comemorao ao nascimento do menino Jesus (KIMO, 2006, p. 1).
[72] A letra da cano Saudao
da Lapinha est integralmente transcrita na dissertao de mestrado Msica,
ritual e devoo no terno de folia de Reis do Mestre Joaquim Pol, defendida
por Igor Jorge Kimo, da qual retiramos os versos citados.
[73] Resultado da pesquisa de
campo do conto mtico de Apuleio no imaginrio baiano, empreendida na dcada de
90, o livro Belas e feras baianas: um estudo do conto popular (2008),
publicado pela pesquisadora e folclorista brasileira Doralice Xavier Fernandes
Alcoforado que atuou como professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
[74] Mestranda em Estudos Literrios pela Universidade Estadual
de Londrina. Pesquisa a relao entre polticas pblicas municipais e estaduais
e a literatura.
[75] Mestranda
em Estudos Literrios pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisa a
performance e os saraus literrios em Londrina.
[76] SANTOS, Fiama Helosa Silva dos. Entrevista - Sarau das Pretas. Concedida a Ana Cristina Pereira da
Silva e Amanda Maria Damasio Teixeira. Londrina, 13 jul. de 2020. No prelo.
[77] SANTOS, Poliana. Entrevista
2 – Sarau das Pretas. udios transcritos de WhatsApp. Concedida a Ana
Cristina Pereira da Silva e Amanda Maria Damasio Teixeira. Londrina, 28 jul. de
2020. No prelo.
[78] SANTOS, 2020, s/p.
[79] Excerto da pgina do
Facebook do coletivo COLETIVO LUSA MAHIN – SARAU
DAS PRETAS. Disponvel em:
https://www.facebook.com/saraudaspretaslondrina. Acesso em: 10 ago. 2020.
[80] SANTOS,
Fiama, 2020, s/p.
[81] SANTOS,
Poliana, 2020, s/p.
[82] Neste trecho da entrevista,
a colaboradora Salete Maria recita o cordel A chegada do Lampio no Inferno
numa tentativa de exemplificao das correes da av sofridas por ela na sua
infncia. Essa prtica se repetir ao longo da entrevista.
[83] O filme chama-se Janana
Dutra: Uma Dama de Ferro. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=zdtNOHia1qA. Acesso em: 10 jul. 2020.
[84] A colaboradora se referia a
mesma terapia conhecida tambm como Iodoterapia ou mesmo Radioiodoterapia.