REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitat uma publicao semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)

 

GT LITERATURA ORAL E POPULAR

 BINIO 2018/2020

 COORDENADOR

Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

Secretaria Estadual de Educao do Par

alexandre_ranieri@hotmail.com

 

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Dlcia Pombo

PPGL-UFPA

delciauab@gmail.com

 

SECRETRIA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com

 

 

 

 

 

 


IDADE MDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE

 

 

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

Bibliotecrio: Marcos Moraes – CRB: 9/1701

 

 

Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 30 (jul. /dez. 2020). – Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2020.

 

Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

ISSN: 1980-4504

 

1. Literatura oral e popular 2. Oralidade I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Universidade Estadual de Londrina. III. Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica. IV. Ttulo: Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL

 

CDU 82

 

ndice para o catlogo sistemtico:

1.

Literatura oral e popular

82.085



 

EXPEDIENTE

 

EDIO

Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (Estcio-Belm)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)

 

 

EDITORIA ASSISTENTE

Dra. Mauren Pavo Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)

 

 

ORGANIZAO

Dra. Andra Betnia da Silva (UNEB)

Dra. Bruna Paiva de Lucena (UNB)

 

 

COMISSO EDITORIAL

Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas

 

Dra. Ana Lcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Berenice Araceli Granados Vsquez

Universidad Nacional Autnoma de Mxico

 

Dra. Cludia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia

 

Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados

 

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina

 

Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)

 

Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)

 

Dr. Jos Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Par 

 

Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Par

 

Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul

 

Dra. Maria do Socorro Galvo Simes

Universidade Federal do Par

 

Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autnoma de Barcelona

 

Dr. Mrio Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso

 

Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paran

 

Dr. Slvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina

 

Dra. Vera Lcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa

 

 

PARECERISTAS DESTE NMERO

Dra. Berenice Araceli Granados Vsquez

Universidad Nacional Autnoma de Mxico

 

Dra. Cludia Freitas Pantoja

Faculdade do Vale do Iva

 

Dra. Cristiane de Assis Portela

Universidade de Braslia

 

Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia

 

Dra. Francisca Pereira dos Santos

Universidade Federal do Cariri

 

Dr. Joo Evangelista do Nascimento Neto

Universidade Estadual da Bahia

 

Dra. Janana Marques Ferreira Rocha
Universidade de Santiago de Compostela

 

Dra. Laura Regina dos Santos Dela Valle

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Lnia Mrcia Mongelli

Universidade de So Paulo 

 

Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autnoma de Barcelona

 

Dra. Maria Isabel Morn Cabanas

Universidade de Santiago de Compostela

 

Dra. Maria Nilda de Carvalho Mota

Universidade do Estado de So Paulo

 

Dr. Nerivaldo Alves Arajo

Universidade Estadual da Bahia

 

Dra. Yara Frateschi Vieira

Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

 

 

PROJETO E ENSAIO VISUAL

Dr. Alberto Ricardo Pessoa

Universidade Federal da Paraba

 

REVISO

Sylvia Calandrini

 

 



 

SUMRIO

 

 

APRESENTAO

 

      

 Andra Betnia da Silva , Bruna Paiva de Lucena .......................................................................6

 

 

 

CONVIDADOS

 

 

Antnio Aleixo e Antnio Vieira: dilogos imaginados ou Boca e Papel: espaos de frico da palavra potica

Edilene Matos ................................................................................................................................9

 

 

Princpios de um Sistema Editorial

Maurlio Antonio Dias de Souza..................................................................................................34

 

 

Vozes de mulheres no terririo do cordel e da cantoria

Ria Lemaire..................................................................................................................................47

 

 

 

DOSSI

 

 

Metade cara, metade mscara: memria coletiva e identidade indgena na obra de Eliane Potiguara

Joel Vieira da Silva Filho, Cristian Souza de Sales .....................................................................62

 

 

...Mesmo que nos arranquem os dentes e a lngua: o espao do sagrado da fala na literatura de Eliane Potiguara

Renata Daflon Leite......................................................................................................................75

 

 

Autobiografias de mulheres cordelistas: uma contribuioo para a nova historiografia do cordel

Maria Gislene Carvalho Fonseca...................................................................................................88

 

 

Memria, voz e autoria em Os sapatos de T, de Cremilda e Elizabeth Nascimento

Fernanda Oliveira da Silva...........................................................................................................101

 

 

Vozes de Maracangalha: interseco de saberes e afetos

Railda Maria da Cruz dos Santos, Edil Silva Costa .....................................................................110

 

 

 

A potica da voz no territrio do maravilhoso napolitano e baiano: transmisso oral, conselho e troca de saberes

Adriana Aparecida de Jesus Reis..................................................................................................121

 

 

Coletivo Lusa Mahin – Sarau das pretas: o PROMIC e a performance como mobilizador identitrio e formativo

Amanda Maria Damasio Teixeira, Ana Cristina Pereira da Silva................................................134

 

 

ENTREVISTA

 

 

Uma conversa com e sobre Salete Maria da Silva
Salete Maria da Silva , Andrea Betnia, Bruna Lucena ...............................................................146


 

Apresentao

 

 

A voz como territrio de (re)existncia, em suas mltiplas corporificaes, existe e resiste ao passar largo dos tempos, seja fazendo parte das trilhas dos nossos corpos nas rodas em que nos encontrvamos em prosa (e que esperanamos por voltar a assim viver), seja caminhando mais que veloz pelas redes invisveis, mas j to presentes, das telas de celulares, computadores... E o que nasceu no calor do afeto ganhou os sales, as salas, as escolas, as universidades, sendo, a um s tempo, mdia, poesia, discurso, panfleto. J sabemos que no cabe mais falar em morte do popular como muitos anunciaram, mas em reinveno contnua e viva de uma tradio que se cria, recria e cria numa lemniscata infinita.

Este nmero da Revista Boitat apresenta tudo isso, abrangendo diferentes espaos de interlocuo de pesquisas, experincias e reflexes em torno das mltiplas manifestaes das poticas orais, afetos e troca de saberes. Diferenas essas que se encontram e convergem em vozes que (re)existem a despeito de preconceitos e discriminaes escriptocntricas, eurocntricas, racistas, elitistas, machistas e todos outros abismos.

Nesse sentido, a entrevista/conversa com e sobre Salete Maria da Silva abre os dilogos a respeito da voz como um territrio de (re)existncia, nos anunciando os diversos enquadramentos tericos, metodolgicos, epistemologicos e modos de entender as poticas das vozes que o conjunto de artigos desse dossi abrange. A prpria histria da cordelista um captulo da grande histria da oralidade.

Outro olhar sobre isso temos com Edilene Matos, ao nos apresentar os autores Antnio Aleixo e Antnio Vieira que, embora separados pelo alm-mar, mostram-se vinculados a partir da poeticidade presente em suas obras, revelando os meandros entre oralidade e escrita que, em frico, aproximam-se e tensionam-se.b Maurlio Antonio Dias de Sousa, por sua vez, nos mostra por dentro o sistema editorial dos folhetos, em sua teia organizacional, destacando elementos presentes na relao entre poeta e editor, na medida em que expe como as culturas populares criam e gerem seus prprios modelos editoriais de modo contra-hegemnico. Outro deslocamento contra-hegemnico feito no artigo de Ria Lemaire, em que nos trazida uma nova epistemologia que posiciona a as vozes das mulheres no centro de um debate cujos elementos colaboram para o fortalecimento de um novo paradigma envolvendo cordel e gnero.

Ainda sobre as vozes das mulheres, temos o trabalho de Joel Vieira da Silva Filho e Cristian Souza de Sales sobre a escrita de Eliane Potiguara em sua obra Metade cara, metade mscara, evidenciando como a memria coletiva e a memria individual encontram-se articuladas no texto autobiogrfico que descortina o processo diasprico dessa escritora indgena, que tambm mote do artigo de Renata Daflon Leite, em que so trazidos cena o carter poltico e a potncia performtica presentes nas obras de Eliane Potiguara, reforando o trnsito entre oralidade e escrita presente na literatura indgena.

Estendendo compreenso da questo de gnero nas poticas da oralidade, Maria Gislene Carvalho da Silva de Autobiografias de mulheres cordelistas: uma contribuio para a nova historiografia do cordel, nos convida a conhecer as obras das cordelistas Julie Oliveira, Izabel Nascimento e Auritha Tabajara, esta uma indgena, expondo os fios que conduzem as relaes de gnero no universo do cordel. A relao entre autoria de mulheres e oralidade – tambm um lcus em que a voz um territrio de (re)existncia – prestigiada no artigo de Fernanda Oliveira da Silva e Maria Teresa Salgado, em que analisam Os sapatos de T, obra em que Elisabete Nascimento registra os textos orais de sua me Cremilda, uma griot, evidenciando a memria como fio condutor para as denncias sociais apresentadas.

As vozes de mulheres negras so reverenciadas tambm no texto de Railda Maria da Cruz dos Santos e Edil Silva Costa, em que se debruam sobre as poticas orais a partir da anlise das cantigas e das narrativas de mulheres negras que capitaneiam um grupo de Lindro Amor, na cidade de Maracangalha, expondo seus modos de (re)existncia em face da dinamicidade da prtica cultural em questo.

Para encerrar a conversa aberta, ou mesmo para adentrar outros espaos de dilogo, Adriana Aparecida de Jesus Reis prope um paralelo entre uma das narrativas de Giambattista Basile, escritor napolitano, e um conto oral recolhido no interior da Bahia e presente em uma das obras do escritor Marco Haurelio, evidenciando quais elementos populares podem ser ativados na oralidade para a construo de contos maravilhosos de modo a aproximar contextos culturais aparentemente to dspares.

Ao percorrer esses artigos, bem como as vidas, vozes e poticas estudadas, observa-se que os territrios de (re)existncia esto em grande medida atrelados aos viveres, fazeres e saberes das mulheres, especialmente daquelas cujos lugares de fala so contra-hegemnicos, no se podendo olvidar que a prpria oralidade nos estudos acadmicos significa por si s alguma dissonncia. Os aliados nessa interlocuo somam-se s foras ancestrais dessas vozes, que se confluem e atravessam no devir.

 

Andra Betnia da Silva

Bruna Paiva de Lucena


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONVIDADOS

ANTNIO ALEIXO E ANTNIO VIEIRA: DILOGOS IAGINADOS OU BOCA DE PAPEL: ESPAOS DE FRICO DA PALAVRA POTICA

 

 

ANTNIO ALEIXO E ANTNIO VIEIRA: IMAGINED DIALOGUES OR MOUTH AND PAPER: FRICTION SPACES OF THE POETIC WORD

 

 

Edilene Matos[1]

http://orcid.org/0000-0003-3201-1946

 

 

\

Resumo: Este estudo pe em relevo interfaces nas obras de dois poetas populares. De um lado, o poeta portugus Antnio Aleixo[2] e sua stira humanstica, com destaque para o recurso apropriado da expressividade verbal. De outro lado, o poeta brasileiro (baiano) Antnio Vieira[3] e a ndole musicante de sua poesia satrica, integrando o que denominou Cordel Remoado[4]. A poesia de ambos os poetas, feita para provocar vibrao nas palavras, aponta para a coreografia do gesto, no palco semovente oralidade/escritura.

Palavras-chave: Antnio Aleixo. Antnio Vieira. Dilogos imaginados. Palavra potica

 

Abstract: This study highlights the interfaces / overpassing in the works of two "popular" poets. On the one hand, the Portuguese poet Antnio Aleixo (Algarves) and his "humanistic" satire, with emphasis on the appropriated use of the verbal expressiveness. On the other hand, the Brazilian poet Antnio Vieira (Bahia) and the musical nature of his satirical poetry, integrating what he called as "Rejuvenated Cordel".  The poetry of both poets, which was made in a way that provokes vibration in the words, points to the choreography of the body / gesture, on the stage / space moving by itself orality/writing.

Keywords: Antnio Aleixo. Antnio Vieira. dialogues imagined. poetic Word.

 

Por uma potica da voz

 

Voz. Voz na garganta. Voz no papel. Voz no corpo. Voz no palco. Voz na rua. Voz velha. Voz nova. Voz ruidosa. Voz silenciosa.

Enfim, voz!

A voz modulante, disso no se tem dvida. E se ela modulante, mvel, ela sai e entra sem se fixar.

A voz, mutante por natureza, parte do corpo que no se reduz a um espao, mas alonga e prolonga esse corpo, locus de origem, referncia. Nesse movimento sinuoso, trapaceira, a voz se desdobra em perpetuum mobile.

exatamente essa complexa operao de dobras e desdobras, de tecidos plissados, que implica o espelhamento sonoro de nossas marcas identitrias, de evocao de memrias. O barthesiano gro da voz se faz marca de corpo na voz. Voz que querer dizer, vontade de existir.

Assim, ao falar de espaos de frico da palavra potica, trago, aqui, um texto como resultado preliminar do projeto de pesquisa Antnio Aleixo e Antnio Vieira: dilogos imaginados ou Boca e Papel: espaos de frico da palavra potica.

E esse espao de frico envolve as chamadas poticas orais. Estou, evidentemente, me referindo ao verbo potico que nasce na boca, entendida enquanto canal de emisso de voz ou vozes. lgico, pois, que a voz se produz (se esculpe) nos rgos fonadores, que so tambm modeladores da voz. E a boca funciona tambm como um desses modeladores: abre-se e fecha-se como canal flexvel que . E faz passar a voz, rejeitando tudo o que quebra a voz viva.

Falar sobre poticas orais, hoje, requer entrar num jogo polmico, e isto por conta da diversidade de estudos que tratam do assunto. De incio, e h consenso, no caso, entre os estudiosos, a oralidade implica tudo o que em ns se enderea ao outro: seja um gesto mudo, um olhar (ZUMTHOR, 2010); o gesto no transcreve nada, mas produz significativamente as mensagens do corpo (ZUMTHOR, 2010 p. 206); o gesto denuncia o no-dito (ZUMTHOR, 2010, p. 205); a gestualidade, s vezes, confere uma funo ao silncio: gestos zeros.

Zumthor, cujas ideias so basilares para minhas reflexes, diferencia boca e voz. A boca, alm de ser um canal, um dos fatores que ajudam e interferem na produo da voz. A voz est intimamente ligada ao corpo por vibraes corporais. A voz acompanhada por movimentos corporais no-vocais e que interferem no significado da mensagem vocal. H, portanto, uma voz sonora, comprometida com o som, e uma voz muda, no comprometida exatamente com o som, mas aliada ao som e que contribui para a produo da mensagem verbi-vocal. A voz, signo escultrico, construda na garganta e entalhada no corpo. Multiplicam-se, assim, as possibilidades de produo de sentido da mensagem verbi-vocal, pois a voz, enquanto linguagem, feita de signos sonoros e de signos gestuais. neste caso que se pode falar em mensagens verbi-voco-visuais, considerando que esses signos mudos, de configurao no sonora, portanto no audveis, so, no entanto, visuais, visualidade que se faz necessria para que tais signos sejam captados e decodificados.

A mensagem vocal, segundo Zumthor, envolve, pois, voz e corpo, envolve a palavra audvel e signos visuais inaudveis, que se tornam audveis na medida em que se aliam voz. essa aliana dos signos corporais inaudveis com a voz, produtora de signos audveis, que torna os signos inaudveis signos tambm audveis. O corpo mudo se torna audvel por fora da aliana de sua gestualidade com a voz.

Quando designamos a operao do uso da voz de vocalidade, estamos nos referindo a um espao de produo de signos extremamente complexo, e isto porque tais signos so, ao mesmo tempo, mudos, sonoros, audveis e inaudveis, convergindo todos eles para uma espcie de sonoridade corporal, que o que caracteriza a performance vocal, que no s som, mas envolve corpo e voz – corpo e voz intimamente entrelaados de forma que o que no sonoro se sonoriza, e o que no visual adquire uma espcie de potencialidade sonora, fazendo da vocalidade uma espcie de cena teatral complexa, feita de signos verbi-voco-visuais.

Zumthor reivindicava a paternidade do termo teatralidade (thtralit). Este termo exerceu uma espcie de fascinao para ele, e o conceito que lhe imprimiu jamais se enfraqueceu, e, muito pelo contrrio, constituiu uma marca inscrita a ferro e fogo de sua proposta (ZUMTHOR, 1998). Tal teatralidade evoca uma espontaneidade que se inventa a ela prpria ao exprimir-se, como uma sensao espacial, em que se amalgamam o som (o canto, ou simplesmente os jogos da voz), o gesto, a mmica, a dana (ZUMTHOR, 2000). Desta forma, privilegia-se o calor da voz, que ultrapassa e muito os limites acanhados da letra.

O homem, produtor de mensagens vocais (cantador, trovador, ator, leitor e intrprete de textos em voz alta) revela-se, por isso, sobretudo um ator, exatamente porque a voz, criadora de mensagens, o obriga a se colocar por inteiro no centro do palco.

Falar de poticas da voz, portanto, falar desse teatro vocal, enquanto produtor e encenador de poesia, entendida aqui enquanto encenao de signos-atores interligados (vocais, gestuais, sonoros). Primordialmente, a potica da voz, portanto, teatro potico ou poesia teatral, que no deve, em hiptese alguma, reduzir-se palavra meramente vocalizada e muito menos palavra grafada.

Essa interligao da palavra com o gesto, sabemos ns, vem do nascimento da poesia, quando o homem se manifesta teatralmente (o poeta e a poesia no nascem nas pginas do livro!), quando o homem descobre a voz como fora verbi-voco-visual. por tal motivo que a poesia, mesmo quando grafada, mantm as marcas da origem, de sua natureza propriamente original. Isto porque a poesia nasceu na voz e da voz, intimamente ligada ao corpo, ou seja, a poesia nasceu como teatro de signos. E justamente porque teatro de signos que, ao l-la no texto escrito, esto l em reverberao as marcas da origem. Por conta dessas marcas, o homem no pode deixar de ouvir, mesmo na escritura, essa voz ancestral, esses traos ainda vivos de uma ancestralidade indelvel.

Ler decodificar signos grafados, signos traduzidos em sinais grficos, mas ler tambm implica a recuperao das marcas originais da palavra, porque a palavra originalmente no letra, mas voz e corpo.

A qualidade potica de um texto est ligada natureza teatral da voz, porque a voz teatral desde os primrdios; ela potica porque a potica envolve a conjugao de diferentes signos, tendo em vista a produo de uma linguagem plurissignificativa, no apenas no plano conceitual, mas, de igual modo, no plano sensorial, porque a plurissignificao nunca somente conceitual – ela s se instala no momento em que o conceito se alia sensorialidade. Quando uma linguagem sufoca a sensorialidade dos seus signos tendo em vista o privilegiamento do conceito, ocorre sua despoetizao, ou seja, sua desteatralizao e consequente monologizao. O monologismo a marca de uma linguagem despida de sensorialidade, linguagem tcnica, formal, espartilhada, sem liberdade, sem a menor condio de contribuir para a transformao do homem, de fazer histria, porque puro registro esttico de fatos concretos. A histria humana s se faz quando o homem assume sua poeticidade, sua teatralidade natural. O homem um ser teatral, repito. As sociedades do passado, que abafaram a natureza teatral do homem, morreram; e o que parece estar ocorrendo hoje, face pseudo-segurana, e pseudo-certeza dos discursos monovalentes, que escravizam e amordaam o pensamento, a criatividade, a ao, a livre circulao das ideias. E o potico isto: espao livre de circulao e dana dos saberes, que fecunda culturas, insemina civilizaes.

Potica das culturas orais – poticas das culturas apoiadas nas linguagens verbi-voco-visuais, sensrio-conceituais e multissignificativas. Melhor seria falar de poticas vocais, pois que, e pensando nos ensinamentos de Zumthor, a vocalidade como produo concreta do homem, como energia, mais palpvel, ou visvel, que a oralidade. Alm disto, a voz confere, atravs de cada timbre, um sinete autoral. Evoco a questo da emisso da voz como algo musicante, entendendo com Ruth Finnegan (2008) que a msica vocal pode estar na cano ou na fala, nos recitativos, nas declamaes. Penso, pois, em nveis de musicalidade vocal, que na cano pode ser acentuadamente meldica.

A anulao da oralidade impossvel, porque no possvel eliminar as marcas da voz. E ao falar em poticas da voz, falo das linguagens sensrio-conceituais, em que o conceito no se impe apenas no plano do logos, mas se faz espao cambiante e prismtico de sensaes e sentidos, de experincias mltiplas verbi-voco-sensrio-corporais.

 

 

Encontros poticos moventes

 

Trago como exemplos dessa potica sensorial os espetculos teatralizados em torno do poeta Antnio Aleixo, hoje uma voz sem corpo, que se insinua em seus poemas/quadras como um canto, vindo de um outro tempo, mas que ecoa, ainda nesse sculo XXI, combativo, irnico, denunciador, provocador de incontida euforia coletiva e, em todos os momentos, atualssimo. Trago tambm como exemplo dessa potica sensorial a atuao performtica do poeta Antnio Vieira, tambm hoje uma voz sem corpo.

Rondas. Rotas. Mapas. Sagas. Peregrinaes. Travessias. Andanas. Veredas. Literatura de movimento. Poesia nmade. Poesia movente. Poesia da voz viva. Poesia do social. Poesia de carne e sangue.

Homero, imitador, criador de aparncias – pelo menos para Plato era assim –, saiu pelo mundo e deixou plantada sua Odisseia. Semente que se multiplicou atravs do canto das sereias. As sereias, mticos seres, testemunharam as diversas travessias do heri quase-divino, mais-que-humano. As vozes dessas sereias, ecoadas no vai e vem das espumas, diziam de narrativas fabulosas. Diz-se, hoje, de marcas especficas dessas narrativas: viagens reais e viagens imaginrias.

Literatura de frico: encruzilhada. Ponto de encontro, interseco de literatura com outras sries artsticas. Penso, sobretudo, em msica/som, em dana/gesto, imagem/olho.

Essa literatura movente, potica viajeira, que vai e volta da letra voz, inscrita no que se denomina poticas da voz, permite circularidade entre as vrias culturas.

Este estudo pe, pois, em relevo interfaces nas obras de dois poetas populares. De um lado, o poeta portugus Antnio Aleixo e sua stira humanstica, com destaque para o recurso apropriado da expressividade verbal. De outro lado, o poeta brasileiro (baiano) Antnio Vieira e a ndole musicante de sua poesia satrica, integrando o que denominou Cordel Remoado. A poesia de ambos os poetas, feita para provocar vibrao nas palavras, aponta para a coreografia do gesto, no palco semovente oralidade/escritura.

 

 

O poeta de l: Antnio Aleixo

O dia foi 4 de setembro de 2019, uma bonita manh de vero. No comboio 180 (Alfa Pendular), cadeira 51, parto, enfim, de Lisboa para Loul. Nunca tinha ido ao Algarve! Minha expectativa a terra do poeta, Aleixo. Ainda naquele dia contemplaria sua esttua[5]. Interessante entender a importncia dada a um poeta popular e isto algo muito especial, mas que no me consola e me faz refletir sobre lacunas imperdoveis que acontecem no Brasil, meu pas. Bem que algumas vozes importantes j se levantaram nesse sentido, a exemplo dos alertas de Mrio de Andrade e de Carlos Drummond.

Fiquei hospedada no Allons-y Guesthouse, Rua de So Domingo, 13, bem perto do famoso Caf Calcinha, reduto dos improvisos de Aleixo, reduto das memrias em torno dele.

Em Loul, agradveis surpresas: 1. o encontro com Helena Miguel, especialista no que se refere ao arquivo de documentos e fotografias do Museu Municipal de Loul – agradeo a Helena o contato, a visita ao museu, explicaes da Sala Polivalente da Alcaidaria do Castelo, as conversas sobre o Brasil, loas a Portugal, ao Algarve, a Loul. Simptica e acolhedora, Helena se mostrou sensvel e inteligente. 2. O acolhimento generoso do professor/pesquisador J.J. Marques, incluindo importantes e elucidativos dilogos sobre questes e pesquisas das oralidades, visitas a monumentos e um agradvel almoo. 3. Uma bem montada exposio sobre a rica trajetria de Tssan. 4. O dilogo com o Presidente do Concelho, muito bem avaliado e respeitado pelos louletanos e, por coincidncia, neto do poeta Antnio Aleixo. Essa minha visita o deixou comovido ao tomar conhecimento da proposta de uma pesquisa em terras brasileiras sobre a potica de seu av. Historiador, Vtor Aleixo me presenteou com uma alentada edio de Encontros Imaginrios, de autoria de Hlder Mateus da Costa, premiado escritor, dramaturgo, encenador e autor. Percebi, pois, que Vitor Aleixo entendeu muito bem minha proposta com base nos dilogos imaginados entre Aleixo e Vieira. O referido livro reuniu uma srie de encontros imaginrios promovida pelo Grupo de Teatro A Barraca, a partir de fevereiro de 2011, com o objetivo de inventar situaes e conflitos com figuras da humanidade (COSTA, 2015, p. 5). Nesses encontros se d, exatamente no Encontro Imaginrio 29, em 17 de novembro de 2014, um dilogo insuspeitado entre Antnio Aleixo, Cndido de Oliveira e Juiz Veiga (COSTA, 2015, p. 329-338).

No Algarve, na primeira metade do sculo XX, Antnio Aleixo se tornou responsvel pela irradiao de uma poderosa corrente do cancioneiro popular portugus. Tal corrente foi apontada pelo artista plstico Tssan[6], e por Joaquim Magalhes, um dedicado professor de liceu, figura indispensvel na divulgao do poeta Antnio Aleixo.

Espantosamente lcido e consciente de sua inclinao potica, Antnio Aleixo deixou registrada em versos sua concepo de arte e de artista. E como artista, tinha um olhar caleidoscpico, girante, que lhe permitia sair dos espaos limitados de uma vida comum:

 

Vejo a arte definida

Na forma de descrever

O bem ou o mal que a vida

 

Nos faz gozar ou sofrer

Ser artista ser algum!

Que bonito ser artista...

ver as coisas mais alm

do que alcana a nossa vista!

 

A arte dom de quem cria

portanto no artista

aquele que s copia

as coisas que tem vista

 

A arte em ns se revela

sempre de forma diferente;

cai no papel ou na tela

conforme o artista sente.

 

Textos poticos autorados, ditos em alta voz por este chamado poeta oral, do sul de Portugal, vendedor de cautelas e gravatas, guardador de rebanhos, cantor popular nas ruas, mercados e feiras, trazem expresso filosfica original, tantas vezes considerada ҇cida. Em quadra ou sextilha, poetava natural e exemplarmente, com vocabulrio surpreendemente adequado s situaes em foco.

Motivos e temas variados, mas o tom melanclico e irnico na exibio da capacidade de improviso, viso de mundo especial, com grande inclinao para a stira.

Esta inclinao para exibies e improvisaes j se fazia evidente desde a mais tenra idade com performticas atuaes como cantor das janeiras[7]. Cantava as quadras das janeiras e quando o repertrio j tinha sido repetido muitas vezes, o menino Aleixo fazia curiosas improvisaes que passaram a chamar a ateno de todos.

Antnio Aleixo, l pelos idos de 1939/1940, teve ajuntadas por um amigo (Jos Rosa Madeira) algumas quadras em duas folhas de papel e que viriam a se constituir ncleo do seu primeiro livro: Quando comeo a cantar (1 edio, Faro, 1943; 2 edio, Coimbra, 1948; 3 edio, Lisboa, 1960).

 

Figura 1 ‒ Dedicatria de Antnio Aleixo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


                                                 

                                                  Fonte: Livro Quando comeo a cantar.

 

Depois, se seguiram: Intencionais – 1 edio, Faro, 1945; 2 edio, Lisboa, 1960; Auto da vida e da morte (1 acto) – 1 edio, Faro, 1948; 2 edio, Faro, 1968; Auto do curandeiro (1 acto) – 1 edio, Faro, 1949; 2 edio, Faro, 1964; Este livro que vos deixo Volume I, 18 edio, Lisboa, 2003; Este livro que vos deixo Inditos – Volume II , 13 edio, Lisboa, 2003; Inditos – 1 edio, Loul, 1978; 2 edio, Loul, 1979.

Seguindo seu ritual cotidiano de andarilho, Antnio Aleixo cumpriu o traado do seu destino e ficou como um personagem-tipo, desses que marcam profundamente uma poca, um espao social. Pessoa/personagem impressa na memria do povo portugus, figura notvel e notria, poeta boquirroto, gritador e denunciador dos males sociais, expert na arte da performance, Antnio Aleixo encarnou a si mesmo em vrios papis, sobressaindo-se enquanto corpo/voz convertido em ao, coisa viva, que alardeava, feria, rasgava, cauterizava, ecoando sempre um universo de sugestes e sedues.

Essa sua voz, inscrita no papel, como autor que foi de quadras e/ou sextilhas, ou articulada, a do narrador, a do cantor dos acontecidos do povo de Algarve, obteve enorme sucesso. Anunciava e denunciava tudo em voz alta, na busca de aperfeioar o timbre, no gasto do frgil poder de seus pulmes, da materializao e da pulsao da voz, do ineditismo de suas performances, em um contnuo corpo a corpo com seu pblico.

 

 

Figura 2 ‒ Quadra e glosas de Antnio Aleixo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

       Fonte: Fundao Antnio Aleixo, 2019.

Se Antnio Aleixo foi testemunha atenta e inquieta de momentos empolgantes da vida portuguesa, acompanhando a revoluo dos costumes, afrontou tambm de dedo em riste essa modernidade. No deve ser esquecido que Aleixo viveu e fez sua obra em um Portugal sob o regime ditatorial salazarista ou Estado Novo (1933-1975)[8]. No livro Ao encontro de Antnio Aleixo, Joaquim Magalhes conta que, por ocasio do preparo para publicar Quando comeo a cantar, foi necessrio um exerccio cuidadoso: tudo o que no pudesse ser motivo para eventual apreenso do livro, caso pudesse vir a ser considerado alvo das vistas curtas da censura intelectual de ento (MAGALHES, [s.d.], p. 10). Sabemos todos ns que Magalhes[9] referia-se PVDE.

Decididamente, Antnio Aleixo nunca foi, como o personagem de Apollinaire, um vagabundo urbano, quase um clochard, um pattico perdido na multido. Foi, antes, um poeta, dotado de grande poder de comunicao. Um ldico e lcido poeta cuja voz soava mgica para o pblico que o aplaudia e o tinha como seu legtimo porta-voz. Pela boca desse extraordinrio artista fala a outra voz, a voz do poeta sensvel vida de seu povo.

Sua voz, seja como sussuro de confidncia – note-se o carter notadamente autobiogrfico da maior parte dos poemas de A. Aleixo (FERREIRA, 1978) – seja altissonante como a da multido na praa, me faz ouvir o tempo que passou e que volta transformado, mesmo que seja numa folha de papel. Para a exibio de suas quadras e/ou sextilhas, sonetos, glosas, poemas com vrias estrofes, autos[10], Antnio Aleixo lanava mo de recursos inusitados e imprevistos.

No concordo com certos pronunciamentos que se referem incorreo da escrita de Antnio Aleixo como senha para que o poeta fosse includo num grau abaixo do que se convencionou como poeta culto. Essa distino entre literatura/poesia popular e literatura/poesia erudita ou culta no tem mais sentido. Tida como ingnua, rude e tosca pela histria literria, a literatura/poesia popular, na realidade, um tipo de manifestao ficcional e imaginativa bastante prxima daquela que se costuma chamar propriamente de literatura, no existindo diferenas de essncia entre um e outro tipo de produo, j que possuem, de modo anlogo, aquilo que comum a qualquer obra, seja qual for a tradio a que esteja vinculada: sua capacidade de criar formas significativas, expressivas e reveladoras da existncia humana. Alis, a pretensa ingenuidade que se atribui literatura/poesia popular parece-me algo que se gostaria de encontrar na literatura culta. Em verdade, o preconceituoso posicionamento por parte dos eruditos com relao literatura/poesia de expresso popular reflete, simultnea e contraditoriamente, o desejo e a rejeio de uma inocncia e uma ignorncia invejadas, j que seriam elas o verdadeiro testemunho e garantia de certa autenticidade e originalidade de raiz, nem sempre visveis em manifestaes literrias de carter erudito.

Estou de acordo, pois, com aqueles que viram inspirao muito rara nas quadras de Aleixo em vrios momentos, e com um tom forte, expressivo, ajustado em vocabulrio justo e cortante.

                                        Figura 3 ‒ Manuscrito de Antnio Aleixo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


                                                     Fonte: Fundao Antnio Aleixo, 2019. https://fundacaoantonioaleixo.com/wp-content/uploads/2016/10/5822007_orig.jpg

Nesse mundo girante, a atualidade dos versos improvisados de Aleixo o insere na contemporaneidade quanto expressividade do corpo e da voz como fenmenos poticos totais, traduzindo as gritantes e to presentes misrias e desigualdades dos seres humanos, alm de uma postura crtica com relao a si mesmo, postura esta a que se referiu em uma de suas ltimas quadras, recordada pelo irmo de Tssan, Armando dos Santos:

Quando em mim penso com calma

e me compreendo melhor

bem merecia que a minha alma

tivesse um corpo maior

 

Tudo isso toma assento no pensamento de Paul Zumthor ao se referir relao voz e gesto:

 

Um lao funcional liga de fato voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no espao da performance e visa a conquist-lo, satur-lo de seu movimento. A palavra pronunciada no existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situao existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes.

[...] o gestus d conta do fato de que uma atitude corporal encontra seu equivalente numa inflexo de voz, e vice-versa, continuamente (ZUMTHOR, 1993, p. 243-244, grifo meu).

 

Sabe-se da vida cotidiana do homem e do poeta, como ele apareceu, local, dia e hora. Sabe-se de sua famlia, avs, pai, me, irmos, amada, filhos e netos. Sabe-se de sua sade frgil. Sabe-se de suas proezas heroicas e sedutoras. Conhecem-se seus poemas e recitam-nos de cor. No h dvidas sobre estas questes.

Sei que, em Portugal, Antnio Aleixo muito conhecido para que seja necessrio insistir sobre ele. Mas insisto. Insisto em mergulhar num amplo espao, fluido e disperso, de textos, entrevistas, relatos, participao em seminrios, sesses de homenagens e outros tipos de manifestaes, onde Antnio Aleixo se delineia como um mito, personagem transformado em sugestiva figura romanesca, feita de evocaes e sugestes retricas e poticas, de achegas, de fragmentos e que ganha fora como paladino de uma nova ordem. Mito, no caso, entendido, por extenso de significado, como concepo individual ou coletiva, espcie de crena vaga, oscilante, de gosto, de culto, de adorao leiga, espontnea ou cultivada.

A composio da imagem do poeta, no caso, decorreria da articulao das imagens de uma realidade dada, com base em documentos oficiais, colhidas na memria, mas tambm, de imagens que obedecem aos ditames de uma imaginao mais propriamente criadora uma vez que atravessam geraes e se impem ou afirmam na coletividade, propiciando a criao de poetas mticos, como o caso de Antnio Aleixo.

Para isso, foi necessrio despir-me de pr-conceitos tradicionais, esdruxulamente laudatrios ou eufemisticamente malvolos, observando as possibilidades de olhares (furtivos, voluptuosos, impassveis, ternos, apaixonados, invejosos, parciais) sobre um centro mvel e continuamente deriva.

Com o objetivo de delinear o mito de um poeta-gnio, encontro respaldo no pensamento – ainda muito atual – de J. Tynianov quando acentua que, em certas pocas, a biografia torna-se literatura oral apcrifa (TYNIANOV, 1971, p. 116).

Antnio Aleixo foi, sem dvida, um personagem singular no momento em que viveu, e tambm na dimenso mtica que lhe foi atribuda pelo povo, pelos crticos e at por sua prpria poesia.

Ao me referir a uma personalidade mtica, falo de um conjunto de atributos que se evidenciam mais em determinados poetas ou artistas. Trata-se de algo que lhes vem do interior e atinge o exterior, delineando-lhes um crculo luminoso como se fosse uma aurola, conferindo-lhes santidade e poderes quase divinos, sem que, por vezes, exista qualquer conexo entre tal processo de mitificao e a qualidade da obra. Em sua biografia de Maiakovski, Roman Jakobson acentua:

 

Quando esse mito entrou na vida, foi impossvel sem esforo sobre-humano traar um limite entre a mitologia potica e o curriculum vitae do autor, e o testamento de Maiakovski viu-se inteiramente justificado: na vida autntica do poeta, significativo apenas aquilo que foi defendido com a palavra (JAKOBSON, 1993, p. 134).

 

A especial venerao que se tributa imagem de Antnio Aleixo, porm, implica o assentamento e desdobramento de um sem nmero de traos, reais ou fictcios, biogrficos ou textuais, retrabalhados tambm pelo imaginrio. As imagens revigoram a memria, estimulam-na.

O poeta Antnio Aleixo, enquanto personagem, construiu-se na crtica e na boca do povo, e sua vida converteu-se, repetindo Barthes, num plural de encantos. Tentativas (algumas at felizes) de mitific-lo ainda em vida se acentuaram com a morte. A partir da, foi um fluir ininterrupto de imaginrios diversificados e at fabulosos. Os contornos do personagem e do mito permanecem, porm, at hoje, imprecisos. Todos apostam, entretanto, em algumas constantes: a crtica mordaz, as limitaes financeiras, a sade debilitada, o talento para atrair multides, o gnio criador de retumbantes e inflamadas imagens. Historiadores e bigrafos costumam apresent-lo como um poeta que teve grande repercusso, nacionalmente, entre os crticos e o prprio povo.

Fonte: Exposio Tssan, em Loul, 2019.

 

Fonte: Exposio Tssan, em Loul, 2019.


Figura 5 ‒ Aleixo e Tssan


             Figura 4 ‒ Desenho de Antnio Aleixo por Tssan

       

 

Deste modo, a semeadura do mito se deu, e o mito floresceu e frutificou. No se sabe a ponta do novelo nem o embarao das linhas, mas pouco importa. No caso, verdade e fico, emoo e razo se fundem, se misturam. Cada um quer acrescentar um dado novo, e nesse jogo de dados, de variaes e interpretaes, os espaos do mito vo sendo preenchidos – porm nunca se preenchem – e a personagem se esculpe nos sons da voz, nos grafos da escritura, nas leituras e releituras crticas, no teatro, nas ruas, escolas, agremiaes, nas figuraes plsticas, nos espaos culturais, espalhados por todo Portugal e chegando ao Brasil.

Sementes plantadas, aqui e ali, em Portugal, onde so publicados, ditos (e atualizados) poemas como se fossem de sua autoria. Nesse sentido, trago, aqui, a reflexo de J.J. Marques, ao mencionar a seco Erticas, Burlescas e Satricas, de Inditos:

Refiro-me em primeiro lugar ao seguinte aspecto: depois de mencionar as quadras (no sentido de quadras glosadas) picantes, mas recheadas de humor e malcia integradas na seco Erticas, Burlescas e Satricas, que obtivera por intermdio de velhos amigos do poeta, que as ditaram de memria, Ferreira confessa: o nosso trabalho neste campo consistiu em dar s verses orais destas quadras a forma escrita que nos pareceu mais prxima duma composio de A. Aleixo.

curioso (para os mais rigorosos ser talvez arrepiante) ver a boa conscincia com que Ezequiel Ferreira admite ter retocado aqueles versos, de modo a aproxim-los do que Aleixo teria escrito. Como que ele sabia determinar qual a forma mais prxima duma composio de A. Aleixo coisa que no diz... Assim como no diz que alteraes fez (MARQUES, 2013, p. 43, grifos meus).

 

Alm disso, h uma grande quantidade de versos memorizados de prpria autoria do poeta algarvio ou versos criados em que lhe so feitas referncias, como o de Natanael Piano, citado por Ana Paula Guimares (2000, p. 136) em Ns de Vozes – acerca da tradio popular portuguesa:

No quero ser um Aleixo

Nem ser Torga nem Miguel

E uma mensagem vos deixo

S quero ser Natanael.

Surgem tambm pardias, pois vale sempre lembrar que a imagem e a obra de Antnio Aleixo encontram ainda hoje repercusso e ressonncia junto ao povo, da bom pensar em Mikhail Bakhtin, ao apontar o coro popular rindo na praa pblica (BAKHTIN, 1987, p. 11). Esse referido coro era alimentado por parodistas, que se utilizavam de modelos de obras conhecidas e aceitas pelo pblico para, invertendo-lhes o sentido, produzir novas verses. Os autores parodiados atestavam, assim, sua popularidade. Desse modo, isso se d com Antnio Aleixo. A repercusso desse poeta realmente espantosa, sobretudo em Portugal. Em cada canto, em cada esquina, possvel conversar sobre Antnio Aleixo!

 

 Figura 7Esttua do Poeta na Quinta do

                              Lago (Loul)

 


  Fonte: Acervo pessoal da autora.


 

Figura 6 Escultura Antnio Aleixo em Madeira, de Mrio Albano

 Fonte: Escultura Antnio Aleixo em Madeira, de Mrio Albano, Galeria da Galeria da Exposio, Jos Manuel Figueiredo, Baixa da Banheira, Vila de Moita, 2019.

 

 

 

 

 

 


Hoje, Antnio Aleixo, que verbetado na Nova Enciclopdia Larousse, cuja obra se encontra espalhada por vrias bibliotecas em Portugal e fora de Portugal, a exemplo da Biblioteca Nacional do Brasil[11], da Library of Congress[12], da Bibliothque Nationale de France[13], nome de rua, de agremiaes culturais, de escolas, com destaque para a Fundao[14] Antnio Aleixo, sediada na Av. Jos da Costa Mealha, 14 – 1 andar, Loul.

Figura 9 ‒ Placa da Rua Antnio Aleixo

 


   Figura 8 ‒ Placa da Fundao Antnio Aleixo

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Em texto esclarecedor, o pesquisador e professor portugus J. J. Dias Marques registra a preciosidade da no to numerosa coleo de manuscritos de Aleixo conservada na Fundao Manuel Vigas Guerreiro, em Querena, concelho de Loul (2013, p. 48). Registra, ainda, duas outras instituies que conservam manuscritos do poeta: a Biblioteca da Universidade do Algarve, em Faro e a Fundao Antnio Aleixo, em Quarteira/Loul (e j aqui referida).

Aleixo foi prestigiado na rea musical por grandes nomes da cano, com realce para Zeca Afonso[15] e sua famosa Balada Aleixo, no LP Cantares de Jos Afonso, 1967.

 

Quem canta por conta sua

Canta sempre com razo

Mais vale ser pardal na rua

Que rouxinol na priso

Adeus que me vou embora

Adeus que me quero ir

Deita c estes teus olhos

que me quero despedir

 

Com os cegos me confundo

Amor desde que te vi

Nada mais vejo no mundo

Quando no te vejo a ti

 

Adeus que me vou embora

Adeus que me quero ir

Deita c esses teus olhos

Que me quero despedir

 

 


                                                              Figura 10 ‒ Cartaz do espetculo

                                                   Fonte: Acervo pessoal da autora.

Aleixo, que escreveu autos, figura tambm em espetculos teatrais, a exemplo do espetculo Diz-me, Antnio[16], um tributo ao poeta algarvio Antnio Aleixo, no Teatro das Figuras, em Faro. Integrado no programa 365 Algarve, uma coproduo da ArQuente Associao Cultural, com o apoio da Direo Regional de Cultura do Algarve e parceria da Eating Algarve Tours. Trata-se, segundo a divulgao do espetculo, de uma nova criao da Rede Azul – Rede de Teatros do Algarve, revisitando a obra de Antnio Aleixo – na passagem dos 120 anos do seu nascimento – como um cruzamento artstico entre dana, msica e spoken word.

A esmola no cura a chaga;

Mas quem a d no percebe

Ou ela avilta, que ela esmaga

O infeliz que a recebe.

 

A ningum faltava o po,

Se este dever se cumprisse:

– Ganharmos em relao

Com o que se produzisse

 

         Figura 12 ‒ Esttua de Antnio Aleixo em Loul

 Figura 11 ‒ Lpide de Antnio Aleixo, Cemitrio de Loul

 

 

 

 



Fonte: Acervo pessoal da autora, 2019.

 


             

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2019.

 

 


O poeta de c: Antnio Vieira

 

Antnio Vieira

Nasceu em Santo Amaro

Tem sobrenome do pai

O nome, a me deu, claro

No ano de 49

Introduziu-se no orbe

Onde faz o seu trabalho.

 

Viajou pelo Brasil

Investigou um bocado

Escreve em seus cordis

Imagens que lhe marcaram

Resgates e personagens

Annimos e consagrados[17].

Antnio Vieira, com poemas narrativos, capazes de suscitar a curiosidade do ouvinte/leitor, confiava na fora de sua imaginao ao rearticular histrias inscritas na tradio, dando-lhes novas cores e fisionomias. Sabia Vieira que sua palavra tinha poder, que poderia repercutir no imaginrio social, provocando at certa euforia coletiva, e influenciando os sonhos e at mesmo os destinos, pois que se insinua e penetra nos ouvidos, transmitindo encantamentos pela letra e pela voz.

Sabia, de igual modo, que sua atividade de poeta, nascida no contato direto com o pblico, abriu caminho para seu sucesso como herdeiro dos trovadores medievais.

Leitores eu vou contar

E este meu papel

De poeta, cordelista

Cantador e menestrel

Como tudo comeou

De que forma aqui chegou

O folheto de cordel (s.d., p. 26)

A potica popular narrada em folhetos de cordel j em si transgride os cdigos da escritura, que um desenho da voz. E, ao romper as linhas que limitam a escrita ao tamanho do papel, essa potica se impe, transita por espaos moventes e, sinuosa, se molda aos diversos contextos, como o escolhido por Vieira como Cordel Remoado. Essa proposta de Antnio Vieira traz o dilogo da tradio rural com o urbano, do antigo com o contemporneo, incluindo a participao do narrador/cantador in presentia ou midiatizado em shows gravados. Mais uma vez busco apoio em Zumthor, ao tratar das atuaes dos jograis quando predominava a palavra gesticulada dos poetas, a msica, a dana, esse jogo cnico e verbal que linguagem do corpo e colocao em obra das sensualidades carnais (ZUMTHOR, 1993, p. 45).

Na proposta potica de Antnio Vieira, o corpo participa da ao de dizer, desde a variada tonalidade da voz ou a estruturao rtmica at a gesticulao corporal, que se manifesta nos movimentos das mos, nos meneios da cabea, na curvatura do tronco, na dana do corpo de um lado para outro, para frente, para trs, num vai e vem prprio da atuao performtica.

Antnio Vieira comps seu personagem movido evidentemente pelo desejo de se distinguir da multido das praas pblicas: usava um chapu tipo panam e portava um violo como se fosse extenso de seu prprio corpo, marcas de um artista


                                                      Figura 13 ‒ Antnio Vieira

                                          Fonte: Acervo pessoal da autora.

Antnio Vieira, que comeou realmente a escrever e a atuar j no sculo XXI, nesse terceiro milnio, tinha perfeita noo de sua funo de poeta/pesquisador. Nesse sentido, no foi um improvisador – confessava que utilizava a estrutura e o prprio nome de Cordel – e chegou a fazer uma classificao de sua obra, naturalmente ancorado nas classificaes feitas por estudiosos da literatura popular. Deixou uma obra marcada por um elevado teor de intencionalidade, preocupao com os debates acirrados de um novo momento, conformando uma polifonia de narrativas de grande interesse. Trago, aqui, por exemplo, uma de suas propostas, qual seja a da coleo afro-Brasil, com um conjunto de folhetos abordando a temtica da africanidade e sua repercusso na formao do povo brasileiro.

No rol de sua produo potica, figuram duas coletneas – Histrias que o povo conta, volumes I e II – e um CD gravado – Antnio Vieira: o cordel remoado – com 12 msicas narradas e/ou cantadas.

Homem sensvel e atento diversidade de seu pblico, Antnio Vieira sabia seduzir plateias, como ocorria nos shows que eram cuidadosamente preparados. Por conta disso, foi convidado pela TVE (TV Educativa/IRDEB/Bahia) para gravar um especial, o que foi concretizado em 2005.

As atuaes performticas de Antnio Vieira provocaram repercusso na Escola de Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia. O professor Dr. Armindo Bio, de saudosa memria, escreveu um prefcio para a coletnea Histrias que o povo conta, de Antnio Vieira:

H alguns anos, lecionando para jovens estudantes de teatro, da Universidade Federal da Bahia, e tratando com as possibilidades picas (narrativas) e dramticas (de ao) do cordel, convidei para fazer uma aula para meus alunos o poeta, compositor e cantor Antnio Vieira, que me foi apresentado por Antonio Marques, estudante da turma. A publicao do livro deste artista hoje aqui (2003, por ocasio de uma feira nacional do livro, na Bahia) um importante momento do histrico acima relatado. Ler um folheto de Antnio Vieira, em sua presena, numa festa de 13 de maio em Santo Amaro, sua terra, t-lo fazendo uma nova aula – desta vez aberta – para meus novos alunos da UFBA, h algumas semanas e mais recentemente, t-lo num projeto da Fundao Cultural para um pblico maciamente jovem (o Julho em Salvador), so outros momentos daquele histrico pessoal, que se completam com as consideraes que se seguem (BIO, 2003, p. 12-13).

Em 2004, Antnio Vieira teve a oportunidade de fazer uma viagem a Portugal, desejoso de conhecer a terra de Antnio Aleixo, poeta por quem nutria uma profunda admirao. L, fez alguns shows e se encantou com a Universidade de Coimbra.

Em rota de viagem, Antnio Vieira deixou gosto de quero-mais no seu antolgico encontro virtual com Antnio Aleixo. Encontro dos dois Antnios. Antnio Vieira viajou da Bahia para Portugal e o fez no duplo sentido: real e imaginrio. Em suas andanas por terra de alm-mar, redesenhou um encontro potico insuspeitado.

Na Bahia, sabia muito bem Antnio Vieira que o centro da cidade de Salvador no era somente reduto de sobrades onde se misturam os cheiros de dend, incenso, cravo e canela. Era tambm reduto de tipos humanos, populares ou no, que passavam das ruas para a memria, a exemplo de Gregrio de Mattos, poeta seiscentista que nasceu no casaro de n 8 da Praa Anchieta (bem em frente ao Cruzeiro de So Francisco, cruz de mrmore erguida em 1807, sob a batuta de Frei Jos de So Sebastio), expoente maior da nossa poesia barroca e que circulou de viola em punho pelos becos e ladeiras, satirizando desafetos pessoais e polticos, ele que era doutor in utroque jure pela Universidade de Coimbra.

A viagem que Antnio Vieira fez a Portugal possibilitou-lhe reflexo a respeito de si prprio, de seu pas, de seu povo, abrindo espao para a construo de um discurso sobre o outro. O poeta da terra de samba-de-roda e usinas de acar viu sua viagem como um aprendizado, como experincia vivencial e textual. O ritmo do sujeito que tudo olha, tudo contempla e tudo fixa. O desejo de conhecer os lugares por onde versejou Antnio Aleixo fez com que, para Antnio Vieira, essa viagem se tornasse mais ntima e imaginria que real. Ao olhar o outro, estabeleceu de imediato um dilogo entre a sua cultura e aquela do outro. Importava, para ele, ler o outro, buscar identidades e diferenas, tentando reviver, atravs do corpo textual, tudo aquilo que viu ou contemplou.

O olhar de Vieira – aqui, evoco Bachelard – passa de algo passivo para algo ativo, de movimento, no sendo o olho seu smbolo, mas a mo, que tem movimento e criadora, ao agir sobre o objeto observado (BACHELARD, 1991). Tenso no olhar. Olhar que se transforma em atividade criadora, transferindo para a mo do escritor a fixao dos instantes. Instantes viajeiros, agora fixados, dinamizados pela imaginao. Nos campos do imaginrio, a memria se rearruma, se rearticula, se reorganiza, redimensionando, desse modo, o que foi olhado, tocado, cheirado, ouvido, saboreado. Imaginao que opera, portanto, transformaes de dados efetivos que se movem em espaos fluidos e tempos imemoriais.

A viagem de Vieira a Portugal, lugar de espao e tempo para experimentaes, fez vicejar uma nova proposta de escritura: no documento, no testemunho, no memria. Mas um bocadinho de cada, compondo um tecido de mltiplos fios e de intrincados tranados que se expem nos vrios deslocamentos, no trnsito, na errncia por opostos espaos, na dimenso cambiante de toda mudana.

Veja-se que suas crnicas/relatos/narrativas de viagem lanaram sementes para seus folhetos, nos quais, por exemplo, Portugal foi muito alm de referncias histricas, arquitetnicas, e passou a significar um espao de liberdade por onde os personagens circulavam num vai e vem incessante. Nesse espao, a includo o cotidiano do trabalhador, do vagabundo, do moleque, h o desfrutar dos prazeres, sugerindo possibilidade de felicidade. Escapam, assim, os personagens de Vieira da dimenso da razo e passam a expressar-se em outro plano, plano to enevoado, pleno de matizes e cambiantes, plano aberto, sem frmulas fixas, rgidas ou definitivas. Nesse plano, tudo pode ser mudado, tudo est em constante ir e vir como as inslitas espumas flutuantes.

Viajar preciso. No confidenciar desse viajor, h a diviso entre a viagem real e a viagem da imaginao. Uma interfere na outra, possibilitando reflexes para a compreenso da opo esttica e ideolgica do escritor. Nessas viagens, Vieira pensou e refletiu a poesia e as vrias dimenses da oralidade e da musicalidade.

Essa viagem para Portugal motivou o folheto O Encontro de Antnio Vieira com Antnio Aleixo. No h aventura impossvel para a imaginao do poeta, que viaja solto, sem rdeas, nas asas do vento. Voam os poetas de cordel, obcecados pelos voos.

Espao e tempo se movimentam e as narrativas ressurgem com novas fisionomias no recncavo da Bahia. So traos de uma narrativa oral, movente, surpreendentemente camalenica, que ressurgem nos intrigantes textos de literatura de cordel. Composto de septilhas setessilbicas, e editado com o apoio da Fundao Cultural do Estado da Bahia em 2005, o folheto, j no seu incio, indica reverncia ao poeta portugus:

Grande mestre Antnio Aleixo

Eu estando em Portugal

Para cantar os meus versos

Em sua terra natal

No lhe pedi permisso

Para tal interveno

Perdoe-me, no fiz por mal!

Apenas no conhecia

Sua verve meritria

Que o povo portugus

Guarda viva na memria

E fala com muito zelo

Do poeta cauteleiro

Que deixou o nome na histria.

Nesse folheto, o poeta viaja atravs da imaginao sem travas e sem limites. Aporta o poeta no mundo portugus e estabelece relaes com o mudo de c:

Mas como eu considero

O mundo um s: l e c

Tomei a iniciativa

De com voc versejar

Baseado na essncia

Que a sua sapincia

Me inspirou a cantar.

Fascinado pela vivncia entre rios – Suba-sergi-mirim, Araguaia, Paraguau, Tocantinpolis, Arata, Itapecuru –, o poeta Antnio Vieira, de Santo Amaro/Bahia, era atento observador do difcil cotidiano de seu povo, de um povo sofrido e carente. No ser difcil, portanto, entender a fabulosa viagem que o poeta empreende em busca de um outro espao. Assim, vai a Coimbra e contempla o Mondego. Contemplao igualmente se dar com a ida a Braga quando avista o Douro.

Essa narrativa em versos metrificados , sem dvida, baseada em modelos que so recriados com base na circulao de elementos textuais viajantes, nmades, que se combinam aqui e ali, fazendo surgir histrias sempre prontas a se refazer na infinitude das leituras possveis. Num complexo processo da boca ao ouvido e do ouvido boca, ocorre o afastamento gradativo da matriz original. E a modificao da matriz original de uma histria assentada na tradio tem, a meu ver, um aspecto transgressor, que seduz pela novidade, oriunda da imaginao, essa forma de audcia humana.

A voz do poeta popular inquieta, se adentra em variados mundos, transmite verdades e sonhos, funda reinos fabulosos ou no. Essa voz em mutao se reelabora constantemente, tecendo e retecendo os retalhos da tradio em formas novas e fisionomias particulares.

Escrito por um poeta de acentuado esprito crtico, o folheto hbrido – septilhas e peleja em quadras – com a verso do encontro fictcio entre o Antnio portugus e o Antnio brasileiro da Bahia, uma viagem pela imaginao. Com sua palavra cheia e cantante, Antnio Vieira se insere, agora, no rol dos criadores de viagens fantsticas.

A narrativa de viagem real de Antnio Vieira expe a experimentao ao vivo das mais variadas manifestaes artsticas de nossos antepassados portugueses: poesia, msica, drama. Na volta, sob a ao da memria e da imaginao, selecionou os fatos experenciados e os metamorfoseou em viagens fictcias.

Antnio Vieira ter sua vida escrita[18], certamente, por bigrafos, e ela trar a legenda da heroicizao. Desde a terra de origem (Bahia) – uma terra mtica – at as pessoas que o cercam – parentes, amigos, admiradores –, dizem eles que Vieira foi um homem mpar, mltiplo e vrio. E eu, que cheguei a conhec-lo, concordo que seus vrios perfis se superpem: o Antnio Vieira de Santo Amaro da Purificao, cantada terra do Recncavo baiano; o Antnio Vieira na cidade de Salvador, seduzido pelas luzes da ribalta; o Antnio Vieira da famlia (com Coracy e filhos); o Antnio Vieira agitador, arauto da liberdade; o Antnio Vieira, poeta que figura no panteo de grandes poetas da literatura de cordel; o Antnio Vieira dos palcos, mestre violeiro e exmio cantador; o orador destacado de seminrios e entrevistas; o inesgotvel combatente, apoiador ardoroso de um pensamento afro-descendente; o Antnio Vieira, modelo de elegncia e audcia; o Antnio Vieira dos jovens, o arrebatado paladino da liberdade, o utpico, o sonhador; o Antnio Vieira das geraes mais velhas, modelo de homem justo, educado, orador brilhante, poeta de estirpe; o Antnio Vieira do povo, o simples, o defensor dos oprimidos, o proclamador das igualdades sociais.


                    Figura 14 ‒ Antnio Vieira em atuao

      Fonte: Acervo pessoal da autora.

 

Antnio Vieira deixa uma grande contribuio ao conceituar uma nova maneira de pensar o cordel, denominado por ele de cordel remoado, e que consiste na apresentao do cantador recitando/cantando fragmentos de histrias tradicionais em processo de uso da bricolagem com novas histrias de sua lavra, satirizando os acontecimentos, denunciando mazelas. Com fora e forte carisma, o poeta exibia gestos, tons de voz adequados a cada narrativa cantada. O poeta Vieira fez, em verdade, uma releitura do cordel, fazendo o texto circular e, desse modo, costurar habilmente as linhas da tradio e da contemporaneidade sem deixar entre elas lacunas e pontos visveis.

Ardoroso defensor do prestgio que deveria ser dado poesia popular, A. Vieira buscou estabelecer um dilogo com os poetas sem subservincia, sem tirar seu chapu como reverncia.

A cantora e intrprete Maria Bethnia, tambm nascida em Santo Amaro da Purificao/Bahia, gravou, ao som de um instigante fundo musical com percusso e levssimo dedilhar de violo, um irreverente poema de seu conterrneo[19]:

 

A nossa poesia uma s

Eu no vejo razo pra separar

Todo o conhecimento que est c

Foi trazido dentro de um s moc

 

E ao chegar aqui abriram o n

E foi como ela sasse do ovo

A poesia recebeu sangue novo

Elementos deveras salutares

 

Os nomes dos poetas populares

Deveriam estar na boca do povo

No contexto de uma sala de aula

No estarem esses nomes me d pena

 

A escola devia ensinar

Pro aluno no me achar um bobo

Sem saber que os nomes que eu louvo

So vates de muita qualidade

O aluno devia bater palmas

 

Saber de cada um o nome todo

Se sentir satisfeito e orgulhoso

E falar deles para os de menor idade

Os nomes dos poetas populares.

 

Antnio Vieira foi acometido por um cncer pulmonar. Durante 10 anos, lutou contra essa doena e, segundo me relatou sua viva, ele dizia sempre Eu estou doente, no sou doente. Essa doena se espalhou para a medula ssea e o poeta veio a falecer no dia 10 de maio de 2010, deixando mulher e trs filhos.

 

FOLHETOS[20] DE ANTNIO VIEIRA:

1.             A medicina altrusta de Doutor Jos Silveira, xilo: Naizuo, 2001.

2.             Santo Antnio de Pdua, a Prola Maior da Ordem Franciscana, edio especialmente produzida para o Evento Antnio Tempo, Amor, Tradio – ANO V – 2001 (MOSTRA DE ARTE – de 1 a 13 de junho, Centro de Memria dos Correios, desenho s/i, acrstico, 24 p.,  junho de 2001.

3.             Mouraria, tradio Mouro Cigana, desenho s/autoria, acrstico. 16 p. outubro de 2001.

4.             A poesia esculachada dEle, o Tal Cuca de Santo Amaro, xilo com a figura do poeta popular Cuca de Santo Amaro, de autoria do xilgrafo Natividade, acrstico, junho de 2002.

5.             Pop do Macull de Santo Amaro, 2 edio, desenho, agosto de 2002.

6.             O encontro de Besouro com o valento Doze Homens, 4 edio, acrstico, desenho s/identificao, setembro de 2002.

7.             Usar Chapu – uma arte milenar, 12 pginas, desenho s/autoria – acrstico, outubro de 2002

8.             Se a ferrovia traz progresso e porque o trem parou?, 16 pginas, acrstico. Fundao Luis Ademir de Cultura, So Flix/Bahia, 2002.

9.             Akar-Je – o mesmo que comer fogo, xilo: Natividade, 8 pginas, acrstico, janeiro de 2003.

10.          O sacerdcio humanista de Monsenhor Gaspar Sadoc, 8 pginas, acrstico, maro 2003, foto do Padre.

11.          Manuel Faustino dos Santos Lira, o mrtir santo-amarense da Conjurao Baiana, desenho s/ident, 12 p., acrstico, abril de 2003.

12.          Felia – uma prostituta que ensinou uma gerao inteira, 8 pginas, Xilo Luiz Natividade, com acrstico, abril de 2003.

13.          Dona Can[21], referencial de Me e de Sabedoria, 12 pginas, acrstico. Capa, foto de D. Can, setembro de 2003.

14.          Aprende a escrever na areia, desenho sem identificao, 8 pginas, acrstico, com informao aos leitores, no verso da capa, que a histria foi inspirada na obra de Malba Tahan. Na capa: D cordel de presente[22], dezembro 2003.

15.          Palmares, a fora da raa negra, xilo s/i, 20 pginas, acrstico fora do padro.

16.          Pginas, acrstico, fevereiro de 2004.

17.          Louvao do poeta Fundao Cultural do Estado da Bahia, abril de 2004.

18.          Igrejas da Bahia, um estado de esprito, desenho s/identificao, (Espao Cultural Incio da Catingueira), 28 pginas, acrstico, dezembro de 2004.

19.          O encontro de Antnio Vieira com Antnio Aleixo, junho de 2005, com 26 pginas e um acrstico. Na capa, desenho dos dois poetas: por Natividade (A. Vieira) e Tossn (A. Aleixo). Contm um texto de Joaquim Magalhes, datado de fevereiro de 1975 – Actualidade Viva de um poeta Morto.

20.          Assis Valente, o santamarense que queria ver Tio Sam tocar pandeiro, 8 pginas, acrstico, s/d.

21.         

Fonte: Foto da autora.

Fonte: Foto da autora.

A Peleja da cincia com a sabedoria popular, xilo de Gabriel Arcanjo e Luiz Natividade, contra-capa, Hino Nacional de CDA (uma quadra), 65 p. Acrstico. 3 edio, junho de 2013.

Figura 16 – Espao Cultural Incio da Catingueira, criado por Antnio Vieira e sediado em sua prpria casa


Figura 15 ‒ Capas de folhetos de Antnio Vieira

 

 

Os dois Antnios: Aleixo e Vieira

Antnio Aleixo e Antnio Vieira viveram em espaos e tempos distintos. Enquanto o Antnio Aleixo viveu um momento em que no se assistia, se vivia, poca em que uma corrente magntica ligava todas aquelas almas, tornando-as solidrias na comunho emotiva (TORGA, 1960, p. 68), Antnio Vieira viveu e transitou em outros espaos e outra poca, exatamente entre as quatro ltimas dcadas do sculo XX e a primeira dcada do sculo XXI (1962-2010).

Antnio Aleixo ficou dividido entre alguns espaos: o de sua origem em Vila Real (centro piscatrio), o de Loul (agrrio artesanal) e onde se deu seu real assentamento a partir da infncia, vida instvel e por pouco tempo em Frana, passagem importante por Coimbra. Nos anos 1930-1940, o poeta conviveu em muitos encontros com reconhecidos algarvios, que se pronunciavam quanto ao inconformismo da poltica, eram anticlericais e com assentados princpios ticos.

O conjunto da obra de Antnio Aleixo mostra um grau elevado de insatisfao com o mundo. A melancolia e a stira compuseram a maior parte de sua obra e isto um consenso entre os pesquisadores.

Antnio Vieira tambm ficou dividido entre alguns espaos: o de sua origem como filho mais velho do dono de um pequeno armazm na cidade de Santo Amaro da Purificao (quando criana, escrevia versinhos no papel de embrulho das mercadorias), depois a circulao por vrios estados do Brasil, a servio de uma instituio federal (INCRA), at se firmar em Salvador, capital da Bahia. Mas, quis atravessar o Atlntico para sentir os ares da terra por onde transitou o poeta portugus Antnio Aleixo.

O conjunto da no extensa obra de Antnio Vieira mostra uma conscincia de seu fazer artstico como uma forma de conscientizar seu povo e fazer isto tambm de maneira divertida, em busca por reiventar alegrias. A stira de sua poesia convergia para uma stira jocosa, em que o riso se unia reflexo, pois no visava o cmico. Assim, de maneira camalenica, apontava sua ironia tranada de sutilezas para tratar da realidade social da poca.

Por sua presena, impressa de forma indelvel na memria dos poetas, dos cantadores, dos estudiosos da cultura popular, dos intelectuais e do prprio povo portugus, como figura de proa, agitador, referncia, Antnio Aleixo, artista de destacada produo, um expert na arte da performance, transformou-se em lder e numa espcie de modelo.

Antnio Vieira ainda muito pouco estudado e, portanto, no tem uma fortuna crtica, mnima que seja, sobretudo no Brasil, um pas que mantm, no to aparentemente mas com um delicado desdm, uma separao entre os poetas eruditos e populares. Muito me chama a ateno, em Portugal, uma aura mtica em torno do Aleixo, o que acho instigante e bastante pertinente.

Ah! Seduo (se-ducere: afastamento, desvio do caminho, encanto, atrao, fascnio), jogo e desafio, lance de dados, ritual sem vencedor nem vencido, presena do trompe loeil, espao onde se assentam as marcas da iluso. Mas o momento da seduo no s ilusrio, tem um qu de mgico, de encanto. A seduo, rito articulado no imaginrio, encena uma espcie de fantasia do real.

A prpria reverncia de parte do poeta Antnio Vieira diante da obra de Aleixo foi o eixo central para este estudo. Seduzido pela obra potica de Aleixo, Vieira (2005, p. 5-6) buscou identificar-se, de certa maneira, com o poeta portugus.

 

Por termos muito em comum

Desde as razes da terra

Porquanto seu sangue bom

As minhas veias preserva

No ano 49

Eu cheguei aqui no orbe

Voc foi pra vida eterna.

 

As nossas vidas coincidem

Nascemos no mesmo ms

Voc no dia dezoito

Dezenove foi minha vez

Voc veio c, primeiro

E o ms de fevereiro

Nos recebeu bem corts.

 

E a partir de agora

Eu passo a versejar

Baseado em sua obra

As cantigas de atirar

Vou repetir uma linha

Com a qual eu fao a minha

Quadra que vai se casar.

E, assim, em pleno perodo de uma pandemia, covid-19, meu deslocamento para pesquisas, aqui no Brasil, se deu movida pelo imaginrio. Em companhia desses dois poetas, busco perambular pelas ruas de Loul ou da Bahia, insistindo na captao dos sentidos, do olfato ou da audio de momentos no vividos. Por intermdio desses poetas, recomponho mapas e, imaginariamente, percorro ruas, becos, mercados e feiras populares para, em seguida, desenh-los na minha escrita. Assim, esses poetas procederam, observadores infatigveis da vida scio-poltica de sua polis.

Escrito por um poeta de acentuado esprito crtico, o folheto hbrido[23] – septilhas e peleja em quadras – com a verso do encontro fictcio entre o Antnio portugus e o Antnio brasileiro, uma viagem pela imaginao. Com sua palavra cheia e cantante, Antnio Vieira se insere, agora, no rol dos criadores de viagens fantsticas.

A narrativa de viagem real de Antnio Vieira expe a experimentao ao vivo das mais variadas manifestaes artsticas de nossos antepassados portugueses: poesia, msica, drama. Na volta, sob a ao da memria e da imaginao, selecionou os fatos experenciados e os metamorfoseou em viagens fictcias.

 

Figura 17 ‒ Capa de folheto


Fonte: Acervo da autora.

 

 

guisa de concluso ou pensando em concluir

Se, por um lado, utopia pode parecer um discurso ilusrio, por outro, se apresenta como um possvel entendimento do real, capaz de transformar o ilusrio numa funo construtiva do discurso potico. Desse modo, as decepes, os fracassos, as enganaes convergem para a criao de novos mundos. Seriam esses novos mundos um refgio e um testemunho da inadequao realidade vivida? Da o chamamento para a utopia nesse mundo j considerado distpico e agora mais acentuada fica essa distopia por conta de um novo normal ou mundo ps-pandmico.

As reflexes em torno das obras desses dois poetas apontam uma temtica abrangente que traz reflexes sobre cultura, memria, tradio e inveno, traos que convivem conosco neste nosso mundo de hoje, marcado pela instabilidade e pela imprevisibilidade, pela movncia e pelo dilogo.

Neste incio de milnio, em que a humanidade em crise (econmica, poltica, ideolgica, religiosa, tica, afetiva) aferra-se a incertos valores e duvidosas certezas, na busca do paraso perdido do passado, ou de instaurar o paraso possvel do futuro, creio que talvez valha a pena enveredar pela memria e pela resistncia, sob o foco da cultura.

Nas entrelinhas desse texto, ecos e sons coreografam a dana saborosa do(s) saber(es), que, como Barthes vislumbrou, no tm qualquer tipo de fim, concluso, alvo ou porto.

Este texto toca, aqui, pois, em assuntos candentes para se pensar a relao da globalizao e a diversidade cultural e faz um convite: olhar para o mundo e a vida, no como espaos de certeza, de preciso, de hierarquias traadas, mas antes de tudo como espaos moventes, prismticos, onde o que interessa a iluminao, ao contrrio de luzes ofuscantes que impedem o olhar. O ouvinte no vai se guiar por certezas absolutas, mas por curiosas indagaes que se mostram no espao de reflexes sobre temas importantes.

Tendo por base dois poetas populares inseridos no par memria/movncia, este texto organizou-se, intencionalmente, no (des)compasso de sequncias. Ao fim e ao cabo, pretendi com essa (des)organizao erguer uma espcie de babel cultural, na qual textos desses poetas tenham voz, em que nos seja permitido ouvir as falas em sua multiplicidade, e enxergar cintilncias de significados.

Cultura expresso, expresso que revela sentidos potenciais e infinitamente multiplicados. Assim, a possibilidade de as culturas se aproximarem, se tocarem, dialogarem e at mesmo se completarem, mantendo suas individualidades como signos que produzem interpretantes com modos semelhantes de expresso, ainda que por meios diferentes, ou suportes, para falar contemporaneamente.

As culturas no so excludentes, e, muito pelo contrrio, desembocam num ponto de confluncia. E nesse ponto, com base nas estratgias sensveis (SODR, 2016), o lugar singularssimo dos afetos atravessa e ilumina meu ncleo de investigao que envolve a ideia de voz como espao de fronteiras entre culturas, como um tecido de tramas entre memria, histria, encenao (corpo), trao, olho e letra – diferentes vozes que permeiam o que chamamos de potica das culturas orais – e que, inscritas no presente, formam teias de contato com aquelas vozes marcadas na histria.

Falo de textos que, resguardados pela impresso tipogrfica, trazem marcas acentuadas da voz, textos hibridizados entre silncio, voz, gesto, imagem, mas percebidos tambm como performance do corpo, onde se d a plenivalncia da voz viva, dos fenmenos que remetem vocalizao, visualizao e gestualidade. O que se pretendeu aqui foi priorizar a voz potica enquanto corpo e imagem. Na escuta de uma voz, na mirada de uma imagem, o leitor/receptor reencontra uma sensibilidade anestesiada, adormecida. O leitor/receptor, agora despertado, passa a ser uma espcie de coautor. E o despertar, enfim, de novos olhares, bem como o rompimento de um modelo esttico e convencional de nossas percepes, constituem-se em pontos fulcrais de reflexo sobre o potico como um locus de resistncia e transgresso.

A poesia no foi feita para ser lida to somente em silncio. Exige ser pronunciada, proferida em voz alta, j que a palavra original voz, som. E a voz a semente inaugural de toda comunicao.

Apesar de escrita na maioria das verses e destinada, pois, a ser lida, a poesia traz em sua origem, e at mesmo no corpo de sua escritura, a vibrao da voz. O que a caracteriza, antes de tudo, seu acento oral (mais acentuado, gritante, mais sutil), seus aspectos performticos (em maior ou menor grau), ou at mesmo uma voz sem corpo (na ausncia do poeta ou diseur), apenas eco ou som de um fantasma, que invade nossos ouvidos.

Essas narrativas em versos metrificados so, sem dvida, baseadas em modelos que so recriados com base na circulao de elementos textuais viajantes, nmades, que se combinam aqui e ali, fazendo surgir histrias sempre prontas a se refazer na infinitude das leituras possveis. Num complexo processo da boca ao ouvido e do ouvido boca, ocorre o afastamento gradativo da matriz original. E a modificao da matriz original de um texto assentado na tradio tem, a meu ver, um aspecto transgressor, que seduz pela novidade, oriunda da imaginao, essa forma de audcia humana, como acentuou Bachelard.

A voz do poeta popular inquieta, se adentra em variados mundos, transmite verdades e sonhos. Essa voz em mutao se reelabora constantemente, tecendo e retecendo os retalhos da tradio em formas novas e fisionomias particulares.

Ambos os poetas, aqui redesenhados, expem o real, transfiguram-no imaginariamente, com o intuito de inscrever, no espao da pgina em branco ou no palco da oralidade, o traado cambiante de suas mltiplas viagens pelas veredas da poesia.

Enfim, h Antnio Aleixo e h Antnio Vieira que deixam marcas em suas obras, cicatrizes que apontam para a complexidade de suas foras interiores, convergentes todas para um ncleo de fogo e ar, onde crepitam as chamas da paixo e da liberdade. Liberdade na Paixo. Paixo pela Liberdade. Paixo e Liberdade – palavras de ordem desses dois poetas.

 

Referncias

 

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BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. 3. ed. Trad. Jos Amrico Mota Pessanha. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1991.

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COSTA, Hlder Mateus da. Encontros Imaginrios. Lisboa: A Barraca, 2015.

DUARTE, Antonio de Sousa. Antnio Aleixo – o poeta do povo. Lisboa: ncora, 1999.

FERREIRA, Ezequiel. Prefcio. In: Inditos. Loul: Edio de Vitalino M. Aleixo, 1978, p. 15-51.

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MAGALHES, Joaquim. Ao encontro de Antnio Aleixo. Lisboa: Secretaria de Estado da Juventude e Desportos, s.d.

MAGALHES, Joaquim. Antonio Aleixo – testemunho em forma de apontamento breve sobre a vida e a obra do poeta. In: Literatura Popular Portuguesa – Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1992, p. 43.

MARQUES, J. J. Dias. Os manuscritos da Poesia Lirica de Antnio Aleixo: subsdios para a sua edio crtica. In: Antnio Aleixo – uma homenagem. Loul: Edio da Cmara Municipal de Loul, 2013, p. 39-76.

MATOS, Edilene. Literatura de cordel: uma literatura de fronteira. Revista da Bahia, n. 42. Salvador: Fundao Cultural do Estado da Bahia, 2006.

MATOS, Edilene. A voz e suas poticas. In: Revista Repertrio. Salvador: PPGAC/UFBA, n 30, 2018.2.

MELO, Daniel. O essencial sobre a cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus Novus, 2010.

SODR, Muniz. As Estratgias Sensveis – afeto, mdia e poltica. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.

TORGA, Miguel. Dirio VIII. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1960.

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ZUMTHOR, Paul. Essai de potique mdievale. ditions du Seuil, 2000.

ZUMTHOR, Paul. Introduo Poesia Oral. Traduo Jerusa Pires Ferreira e Maria Lcia Pochat. Belo Horizonte/So Paulo: Editora da UFMG/Humanitas, 2010.

 

[Recebido: 22 set 2020]

PRINCPIOS DE UM SISTEMA EDITORIAL

 

PRINCIPES D'UN SYSTME DITORIAL

 

Maurlio Antonio Dias de Sousa[24]

 

Resumo: Este trabalho objetiva mostrar a dinmica da publicao do folheto[25], entre os anos vinte e setenta, tendo como objetivos: a) refletir sobre as relaes humanas de produo que ocorriam no entorno da casa editorial entre o poeta-editor e os demais sujeitos envolvidos nesse processo de produo, e b) observar os aspectos referentes aos Elementos Instauradores e Ordenao Funcional. Neste contexto a discusso terica que apresentamos tomou por base os estudos e pesquisas desenvolvidos por Sousa (2009, 2016) os quais nos conduziu percepo da complexidade das relaes de produo no interior do universo da chamada Literatura de Cordel.

Palavras-chave: Produo. Poeta. Editor. Casa Editorial.

 

 

Rsum: Nous mettons en relief dans ce travail la dynamique de la publication du cordel, entre les annes Vingt et Soiaxante-dix, ayant pour objectifs: a) de reflechir sur les raports humains que avaient lieu dans les maison dՎditions entre le pote-editeur et dautres personnes participant dans les processus de production du cordel; et b) dobeserver des aspects concernant les lments Instaurateurs et Ordre Fonctionnel. Dans ce contexte, la discussion thorique prsente tait base sur les tudes et recherches dveloppes par Sousa (2009, 2016) lesquelles nous ont conduit comprendre la complexit des rapports de production de ce quon apele Literatura de Cordel.

Mots-cls: Production. Pote. diteur. Maison dՎdition.

 

 

Introduo

 

A dinmica do processo de produo potica, que surgiu com os poetas-editores, difere de todos os tipos tradicionais de enunciao da poesia popular nordestina, manifestando-se de maneira envolvente, ampla, complexa, estruturante e sistmica, sem precedentes: neste sentido, revolucionria. Trata-se de uma prtica editorial que, longe de ser uma mera imitao do formato hegemnico, concretiza um modelo prprio que vai realizar a inscrio e permanncia, no mercado de folhetos, de um modo de publicao e circulao nunca visto antes. Para que esse sistema pudesse vir luz e se estruturar como tal, fez-se necessria a conjugao de diversos fatores que aqui apresentamos em dois grandes grupos: os Elementos Instauradores e a Ordem Funcional.

 

 

Elementos Instauradores

 

Priorizamos aqum o esforo em descrever o poeta na funo de editor, apresentando o seu trabalho como desenvolvimento funcional de sua condio: proprietrio de uma casa editorial de folhetos. bem certo que o estabelecimento da condio de poeta-editor sempre representou um marco na carreira do poeta popular. Se comparada com o nmero dos que no galgavam privilegiada posio, tem-se a um caso de ascenso profissional, tanto da expresso da capacidade aquisitiva como do potencial representativo por parte do poeta-editor no interior desse universo cultural. Se para alguns poetas a carreira de empreendedor editorial fora, de fato, um caminho de sucesso, essa experincia nem sempre significou garantia de xito profissional, pois para outros que se enveredaram por esse caminho a experincia foi de malogro. H ento um interdito no trnsito entre a posio de poeta e a de poeta-editor e isso no sugere uma pacfica acomodao, ao contrrio aponta para uma adequao exigente.

O desenvolvimento das atividades editorias consagradas ao folheto caracteriza-se, desde sua origem, pela exigncia de um capital mnimo, que normalmente advinha da venda de folhetos nas feiras das cidades extensivas, para que o novo empreendedor viesse adquirir o maquinrio bsico e dar incio s diversas atividades relacionadas publicao. Alm da posse do referido capital inicial, havia que se considerar um outro fator que compunha a gnese do nascimento do editor: o aprendizado da tcnica tipogrfica editorial. O poeta, ento editor, era um nefito no manuseio dos instrumentos grficos e na aplicao da tecnologia de editorao o que exigia inicialmente um mnimo conhecimento sobre os procedimentos de impresso. preciso que se observe as dificuldades e os esforos iniciais do poeta-editor que, oriundo da oralidade, com seu modo prprio de propagao[26], se punha, agora, diante da realidade da criao potica mediada pelo suporte impresso: eis um desafio e uma necessidade de adequao diante de uma nova ordem de expresso potica[27].

Porm esses elementos preliminares no do conta, por si s, de explicar a posio do poeta-editor no mundo da publicao e circulao do folheto. A legitimidade da funo do editor caracterizava a demanda, no perodo histrico, de sua estabilidade, para alm das publicaes. Essa demanda certamente permitiu ao editor decidir regras, orientar o alinhamento das publicaes e quais os recursos que melhor a elas se adaptavam. As condies culturais prprias do tempo, a vida do campo, as feiras das cidades, as rotas da oralidade potica, tantas narrativas que entrecruzaram poeticamente e tantos autores que se conheceram no fundaram um modo de difuso potica apenas pela necessidade da participao num mercado editorial, nem tampouco s pela comunicao potica do que representaram: constituram, deveras, um conjunto prprio de aes especfico a um determinado momento cultural e histrico no qual se desenvolveu o processo de publicao que ganhou viabilidade mediante os Fatores Estruturais, o Regime Estruturante e as Prticas Constituintes.

Havia um ordenamento nos acontecimentos e no exerccio das diversas atividades dos poetas-editores-impressores as quais j dispunham, naquela conjuntura, de condies histricas favorveis que, aliadas aos fatores constituintes e aos procedimentos estruturantes, compuseram os momentos fundadores da editorao de folheto. Tal ordenamento era desencadeado mediante formas diretas ou indiretas que legitimaram a hierarquia dos proprietrios das casas editoriais, dando-lhes (s vezes mais, s vezes menos) visibilidade no campo da editorao. A possibilidade de se estabelecer como editor estava diretamente relacionada potencialidade resultante da combinao dos fatores estruturais que interferiam no desempenho produtivo na carreira desses poetas na nova atribuio de editores-impressores. Os Fatores Processuais, Fatores Substantivos e Fatores Logsticos estabeleceram uma srie de eixos de interferncias na publicao do folheto, uma espcie de influncia cisalhante sobre a produo, semelhantes na direo, mas distintos na intensidade; podendo eles influenciar na posio do editor no interior desse sistema produtivo e na dinmica do mercado editorial.

 

                               Figura 01 – Quadro dos Fatores Estruturais

  

                        Fonte: Sousa (2016).

 

Alm da compreenso da interferncia desses fatores estruturais, que serviram como uma espcie de padres de funcionamento para o desempenho da atividade do editor, preciso tambm que se entenda o modo como eles atuavam no lado, digamos, interno das atividades produtivas que compunham o Regime Estruturante.

A prensa e os tipos de ferro tornaram-se, de modo especial no incio do sculo XX, os meios imprescindveis pelos quais poderiam ser impressas as narrativas poticas que se encontravam vivas e dispersas no imaginrio dos poetas populares nordestinos. A certeza da fixao dos versos em seu suporte impresso atraiu sobremaneira os poetas populares que desejavam ver os seus poemas circulando atravs de um novo modo de expresso: tangvel, comercializvel, impresso, circulante e manent. preciso, pois, que essa faculdade seja entendida na perspectiva em que prticas e legitimidades conservavam uma fora estruturante. A possibilidade do xito na carreira do editor, alm dos fatores estruturais, estava relacionada, a um regime estruturante que nasce no de uma veleidade, mas de uma exigncia real, do exterior, do profissional e que se constituram em trs conjuntos: Procedimento Produtivo, Procedimento Competentivo e Procedimento Identificador.

Para se obter uma melhor clareza das aes do poeta-editor, presentes no primeiro procedimento, importante a compreenso de que o surgimento das tipografias inegavelmente ampliou as formas de publicao, mas que, por outro lado, passou a exigir do poeta-editor, alm da posse de recursos necessrios para a aquisio dos recursos grficos e do domnio das prticas editoriais ao funcionamento, a capacidade de se articular bem nesse mercado, objetivando projetar cada vez mais o seu produto comercial, tornando-o presente em toda a malha de distribuio do folhetos nas agncias espalhadas por todo o norte-nordeste.

No segundo procedimento, observamos o movimento do poeta-editor no esforo de estabelecer-se no mercado editorial, esforo que ao exigir dele competncia tambm delineava o seu perfil, podendo atribuir-lhe uma posio de destaque. Enquanto as vendas dos folhetos se realizavam nos sales, nas feiras e nas diversas agncias espalhadas pelo Brasil, havia um esforo por parte dos proprietrios das casas editoriais no sentido de um melhor posicionamento e de uma competncia para permanecer em destaque nesse mercado editorial. Foram tomadas de posies que gradativamente hierarquizaram a disposio dos editores nesse espao artstico e comercial.

importante notar que, nesse perodo em que o sistema editorial do folheto vai se estabelecendo, o espao de possibilidades no era amplamente aberto a uma multiplicidade participativa dos indivduos, tal como o fora no perodo pr-editorial, em que havia possibilidades mais ou menos iguais e em que o acesso era, de certo modo, praticamente livre, no sentido de que, por exemplo, entre os cantadores e os poetas de bancada o ingresso e a permanncia profissional no se caracterizava por uma demandas de competncia estruturante to objetivas e pontuais como essas que acabaram por surgir entre os poetas-editores.

Aps a instituio do referido sistema, o exerccio profissional do poeta, enquanto editor, se reveste de uma exigibilidade no cogitada no mundo da oralidade, mas que agora se impe como decisiva entre os sujeitos dessa nova ordem produtiva, isto , passa a ocorrer entre os poetas-editores uma busca pela redefinio dos limites de competncia e de qualidade de produo. Competncia que se desloca da esfera esttica-literria para a esfera das estruturas e dos procedimentos prticos pelos quais o poeta viria a se tornar (ou no) um empreendedor capaz de atender s demandas de um mercado editorial em ascenso. Na condio de sujeito editorial, o poeta, conforme o prprio perfil de atuao, conquista seu lugar na proporo da sua competncia que se manifesta no interior desse universo em que a complexidade do dinamismo editorial vai se configurando como um sistema capaz, produtivo e atraente.

Nesse espao, manifestam-se mais claramente as relaes entre os editores que se hierarquizam segundo uma distribuio gradual no ranking editorial. Trata-se de um quadro de colocaes que no deve ser entendido como resultado de um nico coeficiente, ao contrrio isso o efeito de um conjunto de fatores que possibilitou visualizar a disposio relacional entre os editores. Assim eles so representados por suas posies segundo o volume total de suas participaes nesse mercado editorial, o que, por sua vez, decorre diretamente das foras dos fatores estruturais e do modo como o editor reage s demandas o que pode ser avaliado a partir da eficcia dos procedimentos estruturantes. Embora no se trate aqui de critrios to rigorosos, eles permitem a percepo mais pertinente para que se possa entender o lugar ocupado por determinado editor entre os seus pares na hierarquia que os ordena.

um mercado atravessado por tenses objetivas que configuram as posies dos protagonistas editoriais, servindo assim como indicador das habilidades nas relaes de influncias e de produo. Essa configurao revela o prestgio da casa editorial que se reflete na dinmica particular das relaes de produo e venda. Nesse territrio, define-se o sentido das estratgias contidas no processo produtivo, ou seja, nele so dadas as condies que tornam lgicas as aes que visam defender e melhorar a produo do editor. Isso equivale a dizer que antes mesmo que o folheto se torne objeto de circulao literria e/ou comercial um universo de relaes, tenses, articulaes e tomadas de posies entre os editores caracterizam o processo produtivo e o definem com suas marcas prprias e, justamente, em decorrncia disso, o folheto surge como um suporte indicador da eficincia editorial. Pelas caractersticas estruturais desse sistema, pode-se afirmar que o grau de maestria entre os editores foi algo percebido em determinados momentos de tenso nesse espao e que pode ser entendido como componente de sua gnese.

Esboa-se assim um novo rosto do poeta popular que ao tornar-se editor vai lidar com a realidade da qualificao de um produto material. Logo, est na base dessa dinmica de publicao a tenso original das relaes de destreza pela qual o poeta-editor passa a perceber uma demanda que extrapola a qualidade literria: a competncia produtiva. Nova realidade que nasce com o surgimento do suporte impresso, elemento causal desse novo rosto do poeta – o rosto do editor competente, rosto que se espelha no produto de seu produto: o folheto. a dinmica do prprio sistema editorial – edio impresso distribuio comercializao – que levou o editor a interpretar as significaes prticas da produo como uma atividade competente que precisa ser dotada de uma competncia para alm do aspecto esttico; conduzindo, desse modo, o editor a captar a perspectiva de exigncia na medida em que s ele pode capt-la; na especificidade do exerccio do seu prprio trabalho: na sua funo de editor.

No decorrer da dcada de 1920, a editorao do folheto comea a construir as suas bases mais consistentes. Nesse perodo, traos internos e externos delineiam a face desse sistema. So transformaes estruturais que dizem respeito no s ao formato editorial do folheto (fatores internos) como ao seu modo de produo e comercializao (fatores externos). V-se, por a, a existncia de condies materiais e culturais favorveis impulsionadoras da carreira profissional do editor no sentido de que ela viesse atingir gradativamente um grau de profissionalizao at ento nunca visto, uma vez que, antes desse perodo, o prprio autor se encarregava, por exemplo, das responsabilidades individuais de viabilizar a impresso e a venda dos seus prprios folhetos, realidade que se modifica gradativamente com o estabelecimento das casas editoriais e da rede de agentes distribuidores. Pode-se afirmar, portanto, que o folheto, no final da referida dcada, j reunia as condies estruturais e o grau suficiente de profissionalizao para dar sustentao a um universo literrio configurado por um sistema de produo autnomo embasado em editores, autores, ilustradores, estrutura de publicao, rede de difuso e mercado prprios.

O terceiro procedimento j nos permite entender a hierarquia na qual se distribui os diversos sujeitos implicados nesse espao potico popular. Dois modos de legitimao se definiam: o da oralidade, das funes de cantador e o do impresso, das funes do poeta de bancada, do poeta-editor, etc. O reconhecimento do cantador, como exerccio profissional, inicia-se na aceitao popular e legitima-se, entre seus pares consagrados, no emparceiramento ditico em momentos de cantoria. No se trata mais de uma simples parceria para mais um momento de apresentao, de espetculo e de legitimao do sujeito; nele se exercita a observao criteriosa, se analisa performances, perfis so avaliados, se faz distines, se definem qualidades, se apontam nveis, se explicitam categorias, edifica-se um cnon, constitui-se, assim, um procedimento identificador. Tal procedimento uma tradio entre os cantadores e cada um reconhece os seus processos de canonizao na arte, perante seus companheiros e/ou mestres e tambm legitimadores. O uso que os poetas fazem dos nomes dos mestres/autoridades que os precederam e que so consideradas por eles elementos representativos da poesia popular um reconhecimento que tambm busca de legitimidade e construo de prestgio.

Diferentemente do aspecto performtico do processo de legitimao na oralidade, para o poeta de bancada, tudo se inicia a partir da publicao do primeiro folheto, segue-se depois na avaliao mediante a sua recepo no mercado, seguindo pelos indicadores de novas tiragens e reedies ttulos e, por fim, na opinio dos seus pares e do pblico consumidor que, em ltima instncia, consagra o autor e consolida as obras clssicas. Primeiro, o poeta escreve e publica os seus folhetos. E essa nova posio se fortalecer se vier coroada de reedies. Para o poeta de bancada, a escrita do folheto correspondia aproximadamente ao seu rito de passagem, pela publicao que o poeta inicia o seu processo de canonizao no universo da poesia escrita. Evidentemente que no se pode pensar na existncia de uma classificao rgida nesse processo se o nosso paradigma for estranho ao prprio processo, todavia se percebe com clareza e objetividade as posies hierarquicamente ocupadas.

 

 

 

 

 

 

Esse procedimento nos mostra os sujeitos compondo duas esferas, de posio e de disposio, em uma dinmica de ao e correlao contnuas e mutveis. A esfera da posio se caracteriza por ser designativa, ao nomear as funes dos sujeitos, tais como a do cantador, do poeta de bancada, do poeta-editor, do ilustrador, etc.; intersubjetiva, no modo das relaes por ser entre os sujeitos da mesma esfera: Autor Editor Ilustrador; adjetival, ao delinear aspectos qualitativos, poeta-maior, poeta-menor, editor-maior, editor-menor, etc. e, em decorrncia disso vertical, pois estabelece uma hierarquia.

 

                                                       Figura 02 – Esfera da Posio

                            

                                                      Fonte: Arquivo pessoal (2020).

 

 

Na esfera da disposio, as relaes se caracterizam por serem extra subjetivas entre sujeitos de esferas distintas: Autor 1 Autor 2, Editor 1 Editor 2, Ilustrador 1 Ilustrador 2; mensurativa, por levar em considerao a quantidade das produes, a exemplo do nmero de tiragens, as reedies, as aquisies de ttulos, etc.; horizontal, pois o aspecto produtivo no se vincula necessariamente ao aspecto adjetival.

                                                                 

                                         Figura 03 – Esfera da Disposio

                             

                                           Fonte: Arquivo pessoal (2020).

 

A esfera da posio possibilita a clareza da diferenciao das funes que se tornam afetadas no pela simples distino de si mesmas, mas em decorrncia do atributo adjetival que posiciona o sujeito no interior da sua esfera o que vai influenciar nas relaes, posto que quanto mais favorvel for a sua posio melhor ser a relao de competncia diante dos seus pares. O destaque do sujeito no interior da esfera de posio, isto , o reconhecimento de uma condio qualitativamente mais positiva no s define o seu destaque entre os pares como lhe favorece profissionalmente, possibilitando-lhe mais visibilidade. Em consequncia disso, ocorrem, nessa esfera, embates entre os pares que esto ligados a diversos conflitos, tais como, conflitos de competncia, conflitos de legitimidade do exerccio da funo, etc., o que prprio das relaes de ajuste de posio nessa esfera. As posies geram os seus prprios pretextos que legitimam os conflitos de competncia na dinmica das posies.

Por outro lado, a esfera da disposio porta tenses em estado de exigncias objetivas, de conflitos de competncia decorrentes da condio do sujeito na esfera da posio. Tendo a competncia como fim ltimo a distino. Entre os editores, por exemplo, sinal de distino, entre outros fatores, a aquisio de novas mquinas de impresso, o aumento das tiragens, o aperfeioamento da qualidade editorial das publicaes, ou ainda, o aumento do nmero de funcionrios. Esses ganhos representam para o editor, alm da prosperidade material, destaque e legitimidade entre seus pares.

Nesse sentido, as tiragens, o potencial grfico, o nmero de bons ttulos e o fluxo de autores em evidncia, circulando na casa editorial, expressam o potencial econmico, o raio de ao e de interferncia do editor entre os demais sujeitos vinculados ao mecanismo de publicao e circulao do folheto. Portanto se estabelece a uma postura fundamental de mercado que a de influncia e, consequentemente, de produtividade que se expressa no prestgio da casa editorial e que se reflete numa postura orientada a dinamizar o seu locus produtivo, o que remete necessidade de requisitos que propiciem ao editor melhores condies de competncia no mercado.

, portanto, na esfera da disposio que se engendram tenses de ordem quantitativa, voltados produo, a exemplo de conflitos de legalidade de autoria, conflitos de direito de publicao, formatos editoriais, formalidades e legalidades contratuais, etc., conforme atestam os tipos de Declarao, a exemplo da Declarao Imediata, Declarao Mediata-Representada, Declarao Mediata-Intermediada e Declarao Mediata-Adquirida.[28] Nessa esfera se estabelece uma dinmica de relaes na qual o poeta-editor desempenha um papel decisivo.

                                               Figura 04 – Grfico da funo poeta-editor

                                    

                           Fonte: Sousa (2009).

 

Trata-se aqui, portanto, de uma circunstncia de definio nesse espao cultural, um momento em que se busca a categorizao do modo como o sujeito participa, entre seus pares, de um processo de identificao. um procedimento categorial como forma de classificao e representao do sujeito que passa a exercer uma liderana legitimada.

Todavia no se pode perder de vista que a classe dos poetas-editores de folhetos se constituiu numa categoria social e culturalmente distinta dos demais empreendedores do ramo grfico, antes de tudo por ser essencialmente formada por produtores culturais, isto , por produzirem cultura literria. O poeta-editor produz a cultura na medida em que torna publica uma esttica literria e, ao mesmo tempo, edifica a legitimidade de sua funo que no se reduz ao trabalho de publicao, mas que tambm no pode ser compreendida sem ele. A atividade do poeta-editor uma fundamentalmente uma dinmica relacional entre ele e o autor, seguida de um complexo de relaes tambm com os demais sujeitos partcipes do processo produtivo no qual o poeta-editor intermedia, orienta, regula, comunica, enfim, gesta a relao de produo do folheto que se engendra nas relaes humanas de produo entre os diversos sujeitos envolvidos nesse processo. Esse mecanismo de produo e circulao o que compe a fora do Regime Estruturante.

Nas Prticas Constituintes, deparamo-nos com aes do poeta-editor que contriburam para reforar a sua prpria funo. A legitimidade da funo do editor caracterizava a demanda, no perodo histrico de sua estabilidade, para alm das publicaes dos folhetos. Essa demanda certamente permitiu ao editor decidir regras, o alinhamento das suas publicaes e os recursos que melhor a elas se adaptariam. As condies culturais prprias do tempo, a vida do campo, as feiras das cidades, as rotas da oralidade potica, tantas narrativas que entrecruzaram poeticamente e tantos autores que se conheceram e se ignoraram em uma dinmica global que no dominavam – cujo todo no perceberam e cuja amplitude lhes escapava; todos esses sujeitos e articulaes no fundaram apenas um modo de difuso potica, produziram, sim, uma ruptura no exerccio tradicional, estabelecendo um marco entre o tradicional e o novo no universo da produo potica popular, compondo, desse modo, o conjunto das intermediaes do poeta-editor, isto , as Prticas Constituintes.

 

 

A Ordenao Funcional

 

preciso ento que se entenda agora que o Sistema de Publicao do Folheto apresenta uma dupla-face. Numa delas esto os Elementos Instauradores que so os Fatores Estruturais, o Regime Estruturante e as Prticas Constituintes, acima apresentados, e, na outra face a Ordenao Funcional composta da Comunicao Aplicada, da Mediao Produtiva e da Solidariedade Vinculante.

A casa editorial especializada na publicao e/ou comercializao do folheto, deve ser, antes de tudo, concebida como uma ambitude da circulao do potico, do cultural e do trabalho de publicao que articulava no seu interior os mecanismos de reproduo material e simblica do folheto; envolvendo, assim, aspectos editoriais, comerciais, literrios, culturais. Nesse sentido, era uma realidade caracterizada por uma realidade complementar portadora de expectativas apoiadas em duas esferas que se complementam: a) o lugar da produo e b) lugar da cultura popular. O primeiro o lugar das propriedades que constituem o cenrio das relaes de produo e o segundo, o lugar da cultura popular, o lugar do pblico consumidor do folheto, bojo inspiracional donde as tradies culturais entrelaadas de vozes e de textos emanam para o lugar do poeta e dele para o lugar da produo; integraes horizontais entre o lugar da produo e o lugar da cultura; abrindo-se, desse modo, dutos culturalmente comunicantes entre o interior da casa editorial e esse mundo do povo; linhas de circulao entre o mundo da casa e o mundo l fora; conjugaes entre a tipografia que imprime versos, dando conta de estetizar o mundo do homem, e o mundo do povo das feiras, dos mercados populares e das praas, exatamente o lugar onde o literrio popular tem, ao mesmo tempo, seu ponto de partida e de chegada de modo mais efervescente, real e humano.

                                     Figura 05 – L.P: Lugar de Produo

                                                       C.A: Comunicao Aplicada

                                                       L.C: Lugar da Cultura Popular

 

                                  

                   Fonte: Arquivo pessoal (2020).

O espao editorial deve ser entendido como um componente indispensvel dinmica produtiva do folheto; uma esfera de dilogos, acordos e interaes; um solo situado segundo uma topografia mvel entre a casa editorial e o mundo da cultura popular, real, vivido l fora; um tecido onde se encontram dois caminhos complementares e voltados a um mesmo fim que diz respeito ao interesse comum das partes envolvidas; um territrio de publicao onde se oportuniza de uma maneira ou outra, a chance de se projetar autores e obras populares; o lugar da possibilidade de produo comercial que no se permite ocupar inteiramente por uma mentalidade mercantilista; um campo onde se partilha um sentimento de pertencimento comum; a condio essencial de consenso que facultar a experincia de um tipo particular de relao humana num contexto de produo: a Interao Consensual.

a Interao Consensual uma capacidade prtica que os sujeitos poticos e/ou produtivos tm de se relacionarem inter e entre grupos, visando racionalmente objetivos que podem ser interpretados a partir dos procedimentos por eles mesmos adotados. Entendendo-se que o papel exercido por essa racionalidade se torna eficaz na medida em que no se identifica com uma unilateralidade produtiva, voltada apenas aos meios de obteno de fins imediatos, mas, ao contrrio, tambm tem como finalidade integrar os sujeitos produtivos entre si e com o prprio trabalho o que significa tambm um maior dispndio de esforos no sentido de uma busca cooperativa de consensos. Ento as relaes de interao atuam como um princpio ativo, condutor e renovador do mecanismo de participao e comunicao, uma vez que a dinmica das demandas produtivas sempre revela o carter provisrio dos referidos mecanismos. nessa dinmica que se d o processo circular entre o lugar da cultura popular e o lugar da produo como evento de reproduo simblica perpassada pela Comunicao Aplicada.

As relaes de interao se apoiam na poderosa mediao da Comunicao Aplicada que se inscreve de maneira sutil em todas as prticas e processos da produo, tornando-se assim responsvel pela construo de decises segundo as demandas circunstanciais; pelo dilogo capaz de coordenar entendimentos racionais e produtivos entre as partes envolvidas nesse processo. Torna-se, ento, a Comunicao Aplicada um veculo para a partilha dos conhecimentos estticos e editoriais e para a troca de argumentos que, livre das amarras e dos constrangimentos de uma relao humana de produo demasiada vertical, permite um enriquecimento de pontos de vista e um alargamento de perspectivas que delineia o espao da publicao como um campo de possibilidades dialgicas produtivas, posto que se torna um espao frtil para a construo da opinio e da vontade dos sujeitos envolvidos no processo produtivo, onde eles sejam capazes de assumir suas posies diante do que considera razovel inserido na realidade de um contexto de discusso dialgica e de produo de sentido de modo partilhado.

Desempenhando, assim, a Comunicao Aplicada um papel importante na busca de entendimento nas relaes intersubjetivas ao conquistar, por entre a multiplicidade e por entre determinadas imprecises da linguagem cotidiana, o consenso prtico necessrio, e isto sem deixar de lidar com a realidade do dissenso, comum natureza das relaes de interao num contexto de produo onde os envolvidos so sujeitos participantes e livres, o que no elide a obteno de consensos, ao contrrio, os que agem comunicativamente nesse espao o fazem com esse fim.

O mundo das relaes humanas de produo do folheto no se alimentava apenas das relaes de Interao Consensual, decorrentes dos consensos alcanados sob os pressupostos da Comunicao Aplicada, mas tambm da conciliao entre as demandas internas da casa editorial e as do mercado consumidor, as quais influenciavam decisivamente no modo como o poeta-editor iria atuar. E, uma vez que essas demandas exigiam um ajuste para um melhor funcionamento interno da casa, a funo de mediao surgia, ento, como ponto de equilbrio entre essas variveis. No caracterizava a mediao na interao a rigidez e as formas premeditadas, ao contrrio disso, operava na flexibilizao e na real possibilidade de mudana no exerccio da mediao, sem diminuir-lhe a eficcia; modificando-se no s no plano da ao entre o poeta-editor e cada autor em particular, como tambm entre ele e os demais sujeitos partcipes, da resulta a Mediao Produtiva.

O sujeito condutor das relaes de mediao, no caso o poeta-editor, denominado mediador, posto que ele o protagonista do dilogo entre as partes – editor ↔ autor / editor ↔ ilustrador / editor ↔ distribuidor – mediante a resoluo de demandas voltadas ordem da publicao, isto , direitos de publicao e regras do mercado, buscando encontrar uma soluo para as questes de modo que satisfaa os interesses de ambas as partes. Sua influncia resulta de sua autoridade que garantida pelos prprios envolvidos, e da confiana que lhe atribuda e da habilidade que ele tem para intervir nesse tipo especfico de negociao.

Esse tipo de mediao se inscreve na histria da editorao do folheto cordel, a partir das primeiras geraes de poetas-editores[29], contribuindo para que esse sistema de publicao se tornasse cada vez mais criativo e autnomo[30]. E surge como resultado do trabalho constante de negociao entre os sujeitos diretamente envolvidos no processo de publicao, embasado na autonomia dos participantes, visando, sobretudo atender s necessidades produtivas que exigem sempre serem repensadas em suas possveis solues o que per se supe um pensar na ao de mediao cujos ingredientes se estende a todo o desenrolar progressivo do agir mediador.

Opera, assim, numa dinmica do pensar e do agir mediativo que quer ser um elo entre os aspectos literrios, editoriais e de mercado os quais podem variar no seu grau de viabilidade, mas que precisam ser conciliados tendo em vista o seu fim ltimo. a Mediao Produtiva um meio de construo de possveis solues, um instrumento privilegiado para a cocriao de significados, entre interlocutores, viabilizada concretamente pela Comunicao Aplicada, visando atingir solues produtivas no sistema de publicao e, justamente por isso, deve ser sempre um meio de resoluo de conflitos e demandas no qual o mediador necessariamente deve ser um sujeito que desfrute de uma certa ascendncia sobre os demais, sendo isso substancialmente decorrente da posio que ocupa diante das partes.

pela mediao que deve passar a eficincia comunicativa capaz de reunir satisfatoriamente pouco a pouco as aspiraes das partes envolvidas; passagem que, observando atentamente as multiplicidades de demandas, precisa criar condies capazes de conjugar elementos oriundos de uma ordem interior de produo s necessidades reais de um mercado; articulao que, ao mesmo tempo, precisa corresponder a uma ordem exterior que se impe e a uma ordem interior que deve gerar meios para uma participao interativa.

No desempenho da Mediao Produtiva, a Interao Consensual um princpio condutor porque espcie de energia para o processo e, assim sendo, o em dois sentidos: confluncia e irradiao.

 

Figura 06 – Grfico da Interao na Mediao

                                      

                          Fonte: Arquivo pessoal (2020).

 

No primeiro sentido, a Interao Consensual confluncia na Mediao Produtiva por ser sinal de unidade para as partes envolvidas, uma vez que, por ela so perpassadas, no segundo sentido ela irradiao para as mesmas partes dos diversos campos produtivos em decorrncia da sua perspectiva aplicvel que age como concretizao e aperfeioamento das demandas portadas por ambas as partes em questo. A Interao Consensual converge para o interior da Mediao Produtiva o acordo e impulsiona para fora a deciso tomada em forma de produo e expanso consensual e pragmtica.

O trabalho do mediador no se reduz resoluo de conflitos, frequentemente ele age, pautado em sua experincia, de forma preventiva sugerindo procedimentos que evitem ocasion-los, sendo assim, para determinadas circunstncias, ele se empenha mais na regulao de relaes que na soluo de conflitos. E por ser um processo aberto se nutre constantemente do aperfeioamento apoiado na tica da Comunicao Aplicada, na autonomia e na responsabilidade dos participantes, bem como na autoridade do poeta-editor a qual foi reconhecida pelos mediados num contexto de relaes de Interao Consensual cuja legitimidade foi constituda em situaes inerente ao espao de produo.

Nesse espao, os indivduos tm seu cotidiano imerso numa realidade de relaes humanas de produo, as quais se desenvolvem por meio do dilogo direto e presencial e, justamente, por isso a casa editorial se torna um ambiente apto para o desenvolvimento de uma forma de comunicao que busca o entendimento voltado a um objetivo pragmtico. Isso contribui para que as relaes humanas sejam marcadas pelo espontanesmo e favorea a presena de uma solidariedade vinculada, vivenciada nesses espao pelos vrios profissionais e artistas que, segundo as suas prprias funes, estabeleciam uma determinada natureza de contato com o poeta-editor[31] e que s pode ser entendida a partir de uma intersubjetividade, na qual os sujeitos mediados pela Comunicao Aplicada se entendem sobre os procedimentos produtivos que compe esse universo de publicao.

 

 

Consideraes finais

 

O sistema de publicao do folheto se erigiu como uma fora de resistncia, diante do sistema literrio hegemnico que se autonomeou de culto e fez-se distinto do popular. Assim sendo, o primeiro estabeleceu-se como um territrio de afirmao, de participao de direitos e de expanso de uma esttica literria. E isto s foi possvel por ter viabilizado, em seu interior, relaes que vincularam reais movimentos de autossustentao,[32] ao ter constitudo seu prprio pblico consumidor, suas linhas e formatos editoriais, sua forma de comercializao do folheto, bem como a malha de representantes comerciais. Enfim, gerou um ordenamento especfico de funcionamento que, alm de demarcar a sua autonomia, propiciou o nascimento do editor popular e legitimou a influncia do poeta-editor no processo de publicao.

A causa dessa legitimidade se entende a partir do esforo por se penetrar nesse espao de sentido relacional que antes de convergncia que de produo. Tentamos aqui descobrir ou desvelar a dinmica dessa razo convergente que no se deixa definir, captar, apreender, seno nas relaes recprocas entre os sujeitos produtivos, o que s se torna possvel ao percebermos que o modo de relaes de interao e os caminhos da mediao esto ligadas pelo contexto produtivo, pela referncia a um mesmo mbito de sentido condensado em bem-sucedida experincia comunicativa e que a contnua relao entre esses aspectos engendram um sujeito de ao autorizada que pressupe um espao e tempo necessrios sua formao. Portanto, todo o conjunto de aes e intermediaes do poeta-editor devem ser entendidas como uma postura de resistncia que explica a autonomia do sistema editorial, posto que inaugura uma nova ordem de produo, capaz de gerar, desenvolver e arquivar seus saberes tcnicos no transcurso da sua prpria histria.

 

Referncias

 

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. A Estrella da Poesia: impresses de uma trajetria. 2009. 292f. Dissertao (Mestrado em Letras). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. O cordel no prelo: trajetrias e impresses. In: MENDES, Simone; (Org.). Cordel nas Gerais: oralidade, mdia e produo de sentido. Fortaleza: Grfica Expresso, 2010a, p. 161-179.

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. A emergncia de um sistema dualista: trnsitos e autonomias. Estudos de Literatura Brasileira Contempornea. Braslia, n. 35, jan./jun. p. 31-39. 2010b.

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. Fundaes e itinerncias da poesia nordestina. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 2012.

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. Tipografias de Cordel: o nascimento do editor. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2016.

SOUSA, Maurlio Antonio Dias de. A histria de uma Estrella: a estrela do cordel em Campina Grande. 2 ed. Salvador: Fastdesign, 2018.

 

 

[Recebido: 7 ago 2020]


 

VOZES DE MULHERES NO TERRITRIO DO CORDEL E DA CANTORIA

 

 

WOMENS VOICES IN THE TERRITORY OF CORDEL AND CANTORIA

 

 

Ria Lemaire[33]

 

 

Resumo: Os debates ps-moderno e decolonial sobre as relaes entre as civilizaes da oralidade e o mundo da escrita esto trazendo, embora tardiamente, uma epistemologia radicalmente crtica para o campo dos estudos da tradio nordestina da cantoria e do cordel. O novo paradigma — tanto histrico quanto contemporneo — permite colocar a questo do papel e lugar das mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos. Ao focar um subgnero dessa poesia originalmente improvisada, o repente misto, em que uma cantadora desafia um cantador, e, nesse subgnero, a presena e funo da violncia masculina e feminina, esse artigo prope uma reflexo crtica sobre temas centrais dos debates atuais sobre cordel, gnero, mulher e violncia.

Palavras-chave: Cordel. Cantoria. Gnero. Territrio. Violncia masculina. Violncia feminina.

 

Abstract: Post-modern critics of scriptocentrism and nowadays decolonial criticism are bringing – slowly and progressively -  the new paradigm of the orality-literacy-debate to the field of  repente,  the Northeastern tradition of improvised poetry, in its oral (cantoria) as well as in its  impressed (cordel)  form. The new paradigma – historical as well as contemporary –  enables us to discuss the question of womens role and place in these traditionally masculine territories,  featuring  a sub-genre of this poetry, - repente misto – in which a female singer challenges a male singer. By focalizing the presence and function of male and female violence in this sub-genre, this article proposes a critical reflexion on central themes in actual debates on gender, women and violence.

Keywords: cordel. Cantoria. Gender. Territory. Gender-based violence.

 

 

Dois ramos de uma rvore s

 

A publicao de O Livro Delas: catlogo de mulheres autoras no cordel e na cantoria nordestina (SANTOS, 2021) constitui no s um marco milirio nos estudos de cordel, mas tambm a abertura, dentro da rea, de uma nova linha de pesquisa inovadora, fundamentada na desconstruo dos pressupostos vigentes do discurso acadmico dominante sobre o cordel e da sua historiografia nacional. Alm disso, ela permitir a integrao, no campo dos estudos de gnero e literatura, de uma rea at agora negligenciada: a de gnero e estudos orais.

Comecemos por uma constatao: cantoria e cordel so considerados pela maioria dos estudiosos dois campos distintos no mundo sociocultural nordestino. A separao terica dos dois campos – o da cantoria como produto de uma oralidade ancestral e o do cordel como originrio do mundo da escrita – correspondia aos interesses polticos da cultura dominante daquela elite branca e de origem portuguesa que, nos anos sessenta e setenta do sculo passado, na poca da Ditadura Militar, reabilitou o cordel – to desprezado e marginalizado at l! – como expresso literria da alma nacional brasileira.

A reabilitao poltico-literria, elaborada e propagada, sob a gide do Conselho Federal da Cultura, por intelectuais e acadmicos organizados em torno da Casa de Rui Barbosa, ia servir como suporte ideolgico da poltica cultural nacionalista da Ditadura. O que o poeta Rouxinol do Rinar chamou um dia de dois ramos da mesma rvore entrou no processo politico-literrio da nacionalizao do cordel sob a forma de duas rvores plantadas em territrios culturais diferentes. Consagrou-se o nome ibrico de cordel para o fenmeno editorial nordestino que os prprios poetas chamavam de folheto/jornal do povo e esse folheto ia ser, da em diante, estudado e divulgado como literatura popular brasileira.

 

 

O mito das origens brancas e portuguesas

 

Ao se separar cantoria e cordel, tornou-se possvel historiografar o folheto como descendente do cordel escrito/impresso de origem portuguesa. Integrado nessa genealogia alheia de textos escritos/impressos ibricos, o folheto tornou-se nacional e expresso da alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira. Tornou-se Literatura, quer dizer: fico e esttica, podendo a partir da ser estudado com os pressupostos, mtodos, critrios e juzes de valor convencionais dos estudos de Letras (Autor e Obra, cnone, antologia etc.). E tornou-se popular no sentido humanista, erudito do termo, dentro da dicotomia elite culta versus povo inculto. Essa dicotomia instalou-se no discurso erudito do mundo ocidental nos comeos dos tempos modernos, como expresso e legitimao ideolgica da crescente desigualdade econmica, social e poltica, sobrepondo-se ao sentido original – geo-socio-cultural – do conceito de povo.

Porm, o sentido original sobreviveu at hoje. Patativa do Assar, por exemplo, o definia como: a nossa terra, a nossa vida, a nossa gente, quer dizer: um territrio, no sentido original do termo, caraterizado pela presena de uma terra (no sentido portugus de Portugal do termo), quer dizer: uma regio geograficamente delimitada, uma vida, cultura e memria/tradio comuns a todos os indivduos que j nela nasceram no passado, nela vivem no presente e vo nascer no futuro. Uma nao no sentido original do termo (terra onde nasce), cujo passado continua vivo/vivido no presente e que lhes d, a esses povos, a conscincia inextirpvel de pertena, empatia e coeso social.

O conceito de alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira, por sua vez, forneceu a base para a reinveno do mito da morte iminente do folheto, mito importado e imitado do Romantismo alemo (Naturpoesie versus Kulturpoesie) do sculo XIX. Chegou juntamente com o conceito de tradio, ao qual esses eruditos alemes do sculo XIX tinham dado uma nova significao, a saber: tradio morta, arcaica, obsoleta e parada no passado; o contrrio do seu sentido original e do seu funcionamento real na comunidade nordestina.

Ao mesmo tempo, o pressuposto da origem escrita portuguesa do folheto permitiu que a cantoria, a saber, a comunicao direta, oral, com o auditrio nas cantorias, feiras e festas populares no seio da prpria comunidade, fosse considerada (teoricamente!) local, regional, quer dizer: inferior e relegada ao sempre desprezado campo dos estudos de folclore. O impacto desse discurso, que alia eurocentrismo e scriptocentrismo a nacionalismo, tem sido avassalador; ele contamina, at hoje, como uma trama inconsciente, tanto a terminologia, os pressupostos e os posicionamentos tericos dos estudos de cordel — dos convencionais at os mais crticos —, quanto a viso que os prprios poetas cantadores e cordelistas tm da sua arte, profisso e misso.

 

 

 

 

Divide et impera

 

A estratgia discursiva da inverso e distoro em que se baseia o discurso erudito sobre o cordel tem-se averiguado como perversa e eficaz. Ela aplicada desde sempre pelo patriarcado – na sua verso ocidental – no decorrer da sua luta milenar pela imposio do seu poder, da sua viso do mundo como superior e da sua Histria como nica e verdadeira. Consiste em dividir o grupo scio-profissional dos poetas, cuja unidade j era sempre vulnervel por causa da rivalidade masculina. Essa rivalidade foi, originalmente, a fonte de inspirao principal do repente masculino, com os seus vencidos e o vencedor, reconhecido e aplaudido pelo pblico no momento da performance. Essa diviso dicotmica, guerreira no sentido original, ldico-srio (HUIZINGA, 2007) da palavra, vai ser ressignificada tambm pelos eruditos para constituir a base de duas categorias literrias, desiguais e hierarquizadas, – os bons poetas e os menos bons –, com o objetivo de destacar mais e enaltecer o grupo superior, tendo em vista o futuro cnone do cordel.

Dessa maneira, a rivalidade masculina continuamente atiada ia dessolidarizar, uns dos outros, os membros do mesmo grupo profissional, abrindo-se uma brecha para impor – de fora, de longe e de cima – uma autoridade de avaliao superior e capaz de sobrepor, avaliao interna pela prpria comunidade, o seu juzo de valor erudito e superior. A curto termo, isso permitiu aos detentores da nova teoria controlar o campo do cordel, ao privilegiar certos gneros (mais literrios) em detrimento de outros gneros (folheto de atualidade, folheto poltico, folheto de cincia...) e marginalizar ou excluir aqueles dissidentes, que no correspondiam ao modelo, alheio, literrio e erudito, imposto de fora. A longo termo, essa estratgia causou a distoro parcial do conhecimento e da viso que tinham os prprios poetas sobre sua arte, misso, identidade e histria.

Um exemplo bem revelador dessa estratgia so as cartas encontradas no Acervo Raymond Cantel da Universidade de Poitiers que revelam o surgimento, nos anos setenta do sculo passado, entre os eruditos da Casa, do questionamento da autenticidade daqueles poetas de cordel que no eram analfabetos. Os debatedores perguntam-se e perguntam ao ilustre professor francs, com muita seriedade, se um no-analfabeto pode ser considerado poeta de cordel e ser includo, por exemplo, nas antologias de cordel, bases do futuro cnone. Segundo a doutrina oficial por eles elaborada, alfabetizado no podia, uma vez que os poetas de cordel eram incultos e analfabetos![34]

No difcil imaginar-se o que ia acontecer quando os pressupostos/preconceitos misginos e androcntricos da alta burguesia da poca da Ditadura Militar se associaram ao seu eurocentrismo, scriptocentrismo e nacionalismo j comentados. No se encontra nos catlogos, antologias e cnone da Casa Rui Barbosa – dos mais velhos at aos mais recentes – nenhuma mulher poeta. Dentro do conjunto coeso de pressupostos falsos do seu mito das origens foi necessrio e inevitvel no s anunciar a morte iminente do folheto, para poder silenciar a voz viva e dinmica do povo nordestino, como tambm ignorar, e de antemo, a voz das suas mulheres. Teorizada, na tradio alheia de Homo sapiens humanista, a cultura do folheto s podia ser exclusivamente masculina.

 

 

Vozes rebeldes: agora so outros 500 anos!

 

a partir do ano 2000 que comeam a surgir vozes rebeldes, tais como as da Sociedade dos Poetas Mauditos no Cariri cearense (GRANGEIRO, 2020). Mauditos no sentido irnico do termo: eles fazem propositadamente versos mal ditos, segundo os critrios convencionais, e seus integrantes no so analfabetos nem semi-analfabetos.

A provocao dos jovens poetas, homens e mulheres, fundamenta-se na conscincia de que os prprios conceitos de Literatura, de alma pura e tradio morta servem para negar toda e qualquer capacidade de evoluo e inovao do cordel. Essa negao, por sua vez, servia para desvalorizar e obliterar o papel e misso cultural e histrica do folheto como expresso da atualidade, realidade e verdade da vida nordestina. Ela servia para silenciar, de antemo, as eventuais vozes crticas da contemporaneidade. Essas vozes vieram denunciar a mentira, a m-f e a euforia das elites nacionais que, naquele momento, comemoravam os 500 anos da Descoberta do Brasil, apresentada como primeiro captulo da Histria nacional. Esse mito das origens da elite branca do pas – o da chegada, em terras de ningum, da civilizao crist, trazida e oferecida pelos portugueses com muitos sacrifcios e herosmo aos povos indgenas originrios –, foi desmascarado pelos poetas mauditos. Foi, na verdade, uma invaso ilegtima por uma casta branca de conquistadores-predadores, com padres-pregadores aliados; foi o comeo da era colonial e a implantao do regime usurpador do colonialismo no Brasil.

Essa nova conscincia impe, como os poetas Mauditos iam mostrar em 2000 com a publicao inicial de 12 folhetos em torno do tema Agora so outros 500 anos, uma ruptura radical com a Histria oficial, ensinada e imposta por meio do ensino formal nacional como nica e verdadeira. Estamos no limiar do pensamento decolonial que hoje em dia, vinte anos mais tarde, comea a se generalizar no mundo latino-americano. Os mauditos questionam e desconstroem a legitimao tradicional que justificava a colonizao como uma misso civilizatria, crist e sagrada; ideologia que legitimou durante 500 anos os piores crimes e que as elites do pas continuam repetindo, re-divulgando e propagando no limiar do sculo XXI.

Trs poetisas cofundadoras da Sociedade dos Poetas Mauditos conscientizaram-se, ao mesmo tempo, como feministas, detentoras de uma viso do mundo diferente da dos homens. Hoje, elas so professoras universitrias que tm uma reputao nacional e internacional no campo dos estudos de mulher e de gnero, duas delas tambm no campo do cordel. So elas a poetisa e historiadora Ediane Nobre (na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE), que defendeu, em 2014, uma tese de doutoramento sobre a beata Maria de Arajo; a poetisa Salete Maria da Silva (professora da Universidade Federal da Bahia – UFBA), que atualmente considerada uma das grandes vozes poticas do cordel da sua gerao; e a poetisa Fanka Santos – de batismo Francisca Pereira dos Santos –, que como professora da Universidade Federal do Cariri (UFCA) dedica parte dos seus estudos acadmicos ao resgate das vozes de mulheres-poetas cantadoras e cordelistas deliberadamente silenciadas nos estudos acadmicos e na historiografia do folheto de cordel.

Ao aplicar o mtodo e a prtica de pesquisa que foram a estratgia principal dos eruditos acadmicos dos anos de sessenta para a imposio da sua viso do cordel – os catlogos e as antologias –, Fanka Santos defendeu, em 2009, uma tese de doutoramento que estabeleceu as bases epistemolgicas e tericas de um futuro catlogo das mulheres de cordel. Uma bolsa de ps-doutorado lhe permitiu, em seguida, compor o catlogo O Livro Delas, que rene os folhetos de 264 mulheres cordelistas juntamente com os materiais que ela conseguiu reunir sobre 62 cantadoras, todas publicadas em um s catlogo. Dois ramos de uma rvore s! Duas outras teses de doutoramento, defendidas pelas organizadoras deste nmero de Boitat, vieram reforar as bases tericas do catlogo. Bruna Paiva de Lucena trouxe a maudita poetisa Salete Maria da Silva ao palco acadmico com uma tese de doutoramento, defendida na Universidade de Braslia (LUCENA, 2018). Andra Betnia da Silva, por sua vez, defendeu em 2014, na Universidade Federal da Bahia, uma tese sobre a transio e evoluo da cantoria de p-de-parede tradicional para os festivais modernos; a tese inclui como protagonistas mulheres-cantadoras-repentistas.

Figura 1 – Xilogravura de Marcelo Soares

Fonte: Acervo da autora.

Essas e outras pesquisas confirmam o fato de que, como nas desgarradas e no fado de Portugal e da Galiza, a cantoria tem trs variantes, a saber: repente de dois homens, repente de homem com mulher e repente de duas mulheres, cada subgnero com a mesma forma e linguagem potica, mas com temticas diferentes.

No mesmo perodo (2000-2020), observa-se no campo do folheto e da cantoria uma verdadeira exploso de novas vozes de mulheres poetisas e uma visibilidade cada vez maior da sua atuao como agentes culturais autoconscientes e fortes[35]. Assim, fortalecem-se a conscincia e a convico que O Livro Delas – como catlogo das mulheres cordelistas e cantadoras atuantes maioritariamente ainda no sculo XX –, j trazia e que as poetisas mauditas ilustraram: a de que as mulheres no s se destacam por sua presena cada vez mais numerosa e autoconsciente, como tambm por trazerem vozes diferentes que cantam outra abordagem e viso das coisas do mundo.

Dessa forma, urgente repensar o cordel e a cantoria para alm do discurso oficial nacionalista, euro, scripto e androcntrico brasileiro e propor novas epistemes para sua releitura crtica, considerando-se os seguintes aspectos:

 

- No se trata de uma tradio quase morta, obsoleta e parada, mas sim de uma tradio viva, dinmica, no sentido original do termo tradio, derivado do latim tranditionem, quer dizer: ato de transmitir. Na oralidade, esse ato implica um processo complexo, no s de uma simples transmisso/entrega, como tambm de repetio, reinveno e ressignificao na continuidade do tempo histrico e de geraes de poetas e poetisas transmissoras.

- No se trata de cordel escrito versus cantoria oral, mas de uma fase da histria mundial das tecnologias da informao e da comunicao, a saber: o captulo que conta a verso nordestina da transio para a escrita/impressa de uma tradio potica oral pr-existente.

- No se trata de um cordel de origem simplesmente portuguesa; o cordel nordestino – e antes de mais nada – um produto complexo, regional da transio e evoluo (quase) universal da oralidade para a escrita e a imprensa (ABREU, 1999).

- No existe uma Histria nica e s de homens; houve sempre duas histrias numa dualidade complementar e plural (variando de uma regio para a outra) de duas linhagens culturais diferentes. Existiu, desde sempre, um patrimnio (conjunto de bens legado por um pai em linha patrilinear aos filhos) ao lado de um matrimnio matrilinear que se inter-relacionam e interagem. Aquele hegemnico e imponente e que fala muito alto, este marginalizado e silenciado, mas nem por isso menos presente no corao da comunidade tradicional. A redescoberta do matrimnio das mulheres no campo da cantoria-cordel, considerado exclusivamente masculino, exige uma abordagem nova, intercultural e interdisciplinar que permitir dar o salto epistemolgico e terico indispensvel para podermos historiografar a presena e a atuao da voz das mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos[36].

- Esse cordel no o produto mtico de um Estado-Nao, mas expresso originalmente local e regional da realidade e verdade da vida nordestina; ele no para-literatura ficcional, mas cultura/arte, expresso potica e testemunho da vida dessa terra, gente e cultura especficas. Ele , para resumir, literatura no sentido original do termo (em latim, littera = letra escrita), que registra no s obras ficcionais, como tambm – e sobretudo – toda a riqueza da experincia e conhecimento da vida vivida pelas diversas comunidades nordestinas com a suas culturas locais e sub-regionais. A da cultura do Cariri, por exemplo, que no a do Piau, nem a da Paraba, nem a da Serra do Teixeira (terra de tantas geraes de grandes poetas)... (RAMALHO; LEMAIRE, 2011).

 

 

De dualidade a dualismo

 

 

Dualidade plural

 

Globalmente – no digo universal nem exclusivamente! –, tanto os antroplogos quanto os especialistas – linguistas, etnlogos e folcloristas – das culturas indo-europeias distinguem nas comunidades humanas uma diviso dual bsica, a saber, um mundo dos homens e um mundo das mulheres, quer dizer, uma dualidade dentro da qual inmeras variantes, trocas, tenses e desigualdades eram possveis; uma dualidade plural em constante interao e evoluo.

Figura 2 – Repente misto do famoso xilgrafo nordestino Dila

 

Fonte: Acervo da autora.

O economista-etnlogo alemo Karl Bcher fundamentou-se nessa dualidade, ao formular a teoria da existncia de duas tradies poticas no mundo indo-europeu, a masculina e a feminina, como produtos da diviso dos trabalhos econmico e social entre os sexos, postulando que para cada tipo de trabalho havia canes de trabalho e de lazer com ritmos e contedos diferentes (BCHER, 1896). Bcher mostra que o mundo potico das mulheres que detm as tradies mais ricas e diversificadas, em relao ao dos homens, e que so elas as detentoras, guardis, produtoras e reprodutoras primordiais da memria viva das culturas tradicionais indo-europeias.

Quase cem anos mais tarde, o etnlogo hngaro Imre Katona publica o artigo intitulado Reminiscencies of Primitive Divisions of Labor between Sexes and Age Groups in the Peasant Folklore of Modern Times (KATONA, 1979), em que elabora a distino dual de Bcher ao relacionar esses gender-specific ritmos e contedos distino bsica da teoria literria novecentista entre os dois grandes gneros literrios: o pico e o lrico. A partir das diversas formas de dualidade plural[37], Katona v o mundo dos homens como o do canto pico e de outras formas de canto narrativo aparentado, tais como o panegrico, a genealogia e os gneros que enaltecem e glorificam o poder, o herosmo e a superioridade masculinas. Eles formariam o verso da medalha Ҏpica, havendo tambm, a seu reverso Ҏpico com gneros, tais como a stira, a troa, a zombaria, o escrnio, o maldizer e a pardia.

O mundo das mulheres o mundo dos gneros lrico e lrico-narrativo. O gnero lrico funcional: a poesia cantada marca o ritmo do trabalho cotidiano e da dana. Geralmente so cantigas dialogadas, improvisadas, baseadas na memorizao e improvisao de novos versos. esse desafio que torna mais alegres e ligeiros os trabalhos muitas vezes montonos, pelo prazer ldico do jogo potico. H uma unidade de Som e Letra, com predominncia do Som, cujo ritmo marca o ritmo especfico do trabalho ou da dana.

O estudo de Imre Katona confirma as concluses de Bcher e, ao dedicar-se ao tema da diviso do trabalho cultural entre os sexos, ele mostra que essa diviso do trabalho no era rgida, e menos ainda excludente! Havia trocas, apropriaes e intercmbios contnuos entre os dois mundos. Katona chegou concluso de que uma mdia de uns 10% das produes culturais era produto desses intercmbios. Confirmadas, nos ltimos cinquenta anos, por estudos dedicados a outros perodos histricos e reas geogrficas, as pesquisas de Bcher e Katona abrem novas perspectivas para o estudo das vozes das mulheres na cantoria e no cordel. Na viso de Imra Katona, Fanka Santos reuniu em O Livro Delas aqueles 10%, mais ou menos, de vozes femininas que se aventuraram no territrio potico da voz masculina, como hoje em dia, muitos poetas cantadores invadem o territrio feminino da cantiga lrica e de amor, o que teria sido considerado tradicionalmente um ato meio efeminado.

 

De intercmbio excluso

 

Figura 3 – Xilogravura de J. Miguel

Fonte: Acervo da autora.

Quando, hoje, falamos de sexo/gnero, automaticamente concebemos uma estrutura bipolar, dicotmica e hierarquizante, no dual, mas dualista. Esse pressuposto da dicotomia est na base da viso humanista do mundo ocidental e instala-se no limiar do que chamamos de Tempos Modernos, adquirindo a sua expresso filosfica no conceito de dualismo com o filsofo francs Pierre Bayle (1647-1706). A sua primeira ocorrncia data de 1679, com a definio/significado de: sistema, doutrina baseada na existncia, sob a forma de hierarquia, de dois princpios contrrios que se excluem mutuamente (masculino versus feminino, heterossexual versus homossexual, branco contra negro, cultura contra natureza, primitivismo contra Progresso, cultura oral versus cultura escrita, entre muitos outros).

Essa base dualista do pensamento ocidental moderno contribuiu muito para a legitimao ideolgica do silenciamento das mulheres, do feminicdio de mais de cem mil mulheres nas fogueiras da Inquisio, da escravido e do genocdio de milhes de negros e indgenas, da perseguio dos homossexuais, do racismo, da destruio sistemtica da natureza. O discurso oficial e erudito sobre cantoria e cordel, ele tambm, um produto tpico desse dualismo.

As culturas no ocidentais e as da pr-modernidade ocidental, por sua vez, fundamentam-se, ainda, no princpio da dualidade com um leque plural, infinito, de formas poticas, de complementaridades, variedades, desigualdades, conflitos, trocas, emprstimos e interrelaes. Os textos poticos intercambiados so imitaes geralmente ldicas de gneros poticos do outro sexo. As imitaes tornam-se ao mesmo tempo reinvenes e ressignificaes, ao levarem para o palco, dentro dos quadros do gnero tradicionalmente unissexo, a voz e a viso das coisas do outro sexo. Elas so geralmente muito apreciadas e aplaudidas pela comunidade!

importante estar consciente do fato de que, nas tradies orais, esse procedimento no considerado plgio como no mundo moderno! Ele constitui uma prtica discursiva, uma estratgia ldico-sria, altamente apreciada, de transmisso, enriquecimento e divulgao da memria e da tradio e, em um sentido comunitrio e social, serve tambm como vlvula de escape de tenses entre os sexos, quer dizer: como estratgia de reforo da coeso social. A concepo do texto escrito como propriedade individual de um Autor masculino (FOUCAULT, 1998) s se instalar no mundo ocidental – e a partir do mundo da escrita e da imprensa –, nos incios dos Tempos Modernos, juntamente com a noo de plgio. No mundo da oralidade, em que a memorizao (por repetio e reinveno) constitui a conditio sine qua non da prpria existncia da tradio oral e a estratgia por excelncia da transmisso, integrao e salvaguarda do saber, no existe plgio no sentido moderno do termo. Quando uma performance intercambiada tem muito sucesso, ela fica no outro mundo e integra-se a ele: o heri do romance heroico-narrativo, por exemplo, pode metamorfosear-se em herona, o romance lrico-narrativo transformar-se em pico, ou em vida de santo ou santa, proposta por um poeta religioso, ou ainda em pardia e zombaria de comportamentos tpicos do outro sexo.

Um musiclogo alemo do sculo XIX definiu o fenmeno como Wandermelodien, msicas que wandern – vagabundeiam, andam de terra em terra – e mudam com os lugares que elas visitam, com os tempos – e templos! – pelos quais passam, com as condies histricas que evoluem, sempre as mesmas e reconhecveis como tal e ao mesmo tempo sempre diferentes. Pensamos nos jograis da Idade Mdia que os conclios da Igreja catlica condenavam por cantarem com vozes efeminadas, canes de mulheres (tais como cantigas de amigo, de romaria, cantigas de trabalho, cantigas bailadas) ou, mais tarde, nos cantadores de romance ibricos do sculo XX que cantavam em pblico romances lrico-narrativos que eles apresentavam como canes aprendidas com a av, a tia ou a me.

Nessa direo, podemos descobrir qual foi o papel dos eruditos humanistas dos sculos XV e XVI, responsveis por criar a base da historiografia e das cincias da literatura e das artes. Os textos das mulheres medievais, transcritos, plagiados por essa elite que acaba de inventar a noo de plgio, ressignificados por eles, entraro na sua cultura escrita e impressa, em cancioneiros, leigos e/ou religiosos, em livros de poesia atribudos a poetas masculinos, trovadores ou reis – tais como D. Dinis, Afonso X, o Sbio – ou bispos, membros da nobreza e da alta burguesia. Quando se inicia a historiografia das literaturas nacionais, em finais do sculo XIX, essas atribuies renascentistas sero consideradas provas de autoria masculina na galeria dos Autores geniais, individuais, que vo preencher os volumes das Histrias nacionais das Literaturas dos Estados-Naes; essa histria falsificada que obliterou os matrimnios das mulheres e se ensina at hoje no ensino formal secundrio e universitrio.

As outras vozes de artistas-poetas-contadores a cantadores tradicionais, porta-vozes da comunidade, ficaram como tradies orais das comunidades locais e regionais, mas na clandestinidade em face do medo permanente de perseguio. Desprezadas e odiadas pelos detentores do poder poltico-religioso (BURKE, 2010), elas sobreviveram, cada vez mais fragmentadas, no seio das comunidades. A sua reabilitao terica e idealista pelas elites, na poca do Romantismo, como alma pura da Nao, no por fim s persecues factuais que continuaro ainda bem adiante no sculo XX. Em 1848, inventa-se o nome de folk-lore (sabedoria do povo), inicialmente no sentido positivo e o dos seus estudiosos, os folkloristas.

Uma vez os Estados-Naes todos bem instalados, depois de 1870, esse sentido positivo torna-se importuno e incmodo. A necessidade de criar um imaginrio nacional, unificador das centenas de pequenas naes da Velha Europa, leva as elites das novas comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008) a fundarem as faculdades de Letras (Histria, Lngua e Histria da Literatura nacionais), onde se ensinaro unicamente os textos ressignificados da tradio escrita humanista e se propagar, geralmente e com raras excees, um profundo desprezo em relao tradio oral e aos seus estudiosos e pesquisadores.

 

 

Revisitar um territrio tradicionalmente masculino

 

                                                                                  Chica Barrosa onde canta

                                                                                  faz o mundo estremecer.

                                                                                  Faz o sol se abalar;

                                                                                  todo planeta descer.

                                                                                  Quem vier cantar comigo,

                                                                                  correr grande perigo,

                                                                                  at de morte sofrer.

 

                                                                                                         Chica Barroso

 

 

Vozes de mulheres que se desterritorializaram

 

Temos a sorte excepcional de j possuirmos um primeiro esboo da genealogia das vozes das mulheres repentistas e poetisas – redigida por um grande poeta repentista, cordelista e professor-pesquisador da tradio potica nordestina, Jos Alves Sobrinho, de Campina Grande, na Paraba. Coautor, com o professor tila de Almeida, do Dicionario bio-bibliografico de repentistas e poetas de bancada, publicado em1977, Sobrinho publicar mais tarde, depois da morte do professor tila, outro livro, intitulado Cantadores, Repentistas e Poetas Populares (SOBRINHO, 2003). Nele, o poeta conta em verso, na melhor tradio do gnero potico da genealogia cantada ou declamada, a genealogia de seis geraes de poetas masculinos para, em seguida, apresentar a das mulheres poetisas e cantadoras de repente do Nordeste. A apresentao pelo poeta – juntos mas separados –, sob a forma dual, mostra que existiam, na experincia do poeta, vivida de dentro da sua comunidade, dois mundos poticos, o dos homens e o das mulheres, inter-relacionados, interconectados e interativos.

Nos versos clssicos do repente – a sextilha e a dcima –, o poeta-pesquisador apresenta seis geraes de grandes repentistas, poetas e poetisas de reputao confirmada. As duas genealogias contam juntas 948 versos, dos quais 816 versos sobre poetas e 132 sobre poetisas, quer dizer: uns 12% dos versos globalmente so reservados para a voz das mulheres. Essa porcentagem confirma a mdia global de 10% de intercmbios que o etnlogo Imre Katona indica no seu estudo, tanto para o territrio masculino quanto para o feminino.

A genealogia feminina comea pela estrofe que comemora a primeira gerao, a das mais antigas poetisas, algumas j lendrias:

Falo em Rita Medeiros

Lendria por tradio

Naninha Gorda dos Brejos

Zefinha do Chaboco

E a grande Chica Barrosa

Camila do Martinzo (SOBRINHO, 2003, p. 90)

Os versos sublinham o talento dessas mulheres e o seu domnio perfeito das regras da arte do repente, como se v na ltima estrofe:

Temos Chiquinha Ribeiro

Baiana de boa estima

Alade Ferreirinha

Seu repente obra-prima

Seu verso tem ritmo e mtrica

exigente na rima (SOBRINHO, p. 91)

E at, s vezes, evocam a superioridade de mulheres repentistas temidas, como foi a famosa Chica Barroso, e como era tambm Vov Pangula:

Maria Ribeira Santos

Chamada vov Pangula

De Valena do Piau

Faz no verso o que calcula

L naquela regio

Com ela no h quem bula (SOBRINHO, 2003, p. 91)

Podemos, a partir da, abandonar o discurso dicotmico desse dualismo da modernidade cujo crculo hermenutico fechado leva a ignorar ou, no melhor dos casos, a explicar a presena inegvel de cantadoras/cordelistas como excepcional e as prprias poetisas como mulheres masculin(izad)as, como as qualificaram alguns observadores eruditos. Poderemos escutar as vozes de Chica, Pangula, Mocinha, Bastinha, Josenir, Salete, entre tantas outras, como contribuies de uma linhagem secular de mulheres fortes, autoconscientes e conscientes de serem agentes, cocriadoras e reinventoras da realidade e cultura nordestinas. So vozes de heronas, mulheres feministas que, cada uma na sua poca e no seu contexto social e poltico – e apesar das reaes s vezes violentssimas e agressivas de homens – se posicionaram como detentoras/guardis e reinventoras de um matrimnio local, regional, at dentro dos quadros de um gnero/territrio tradicionalmente masculino cuja arte potica profissional essas mulheres tambm sabiam brilhantemente ilustrar.

 

 

Violncia, stira, indecoro e obscenidade de vozes femininas no cordel

 

                                                                                             Pisa medonha eu lhe dou

                                                                                              de cabelo se arrancar,

                                                                                             de fofar couro de lombo

                                                                                             do pescoo ao calcanhar;

                                                                                              se no se tratar com tempo,

                                                                                              talvez no possa escapar!

                                                                                              Minha pisa venenosa

                                                                                             que no se pode curar.

                                                                                             Cada tacada que dou,

                                                                                             vejo o pedao voar.

 

                                                                                                                     Chica Barrosa

 

A musicloga cearense e professora da Universidade Estadual do Cear Elba Braga Ramalho publicou, no ano 2000, um estudo intitulado Cantoria Nordestina: msica e palavra. No captulo intitulado A parceria: do antagonista ao parceiro (RAMALHO, 2000, p. 124-130), resultado de muitos anos de pesquisa de campo em terras cearenses, a autora descreve o processo sociocultural interessantssimo de uma mutao, a que talvez tenha mais impactado no sculo XX o territrio da cantoria, a saber: a transio progressiva do cantador antagonista tradicional ao cantador parceiro, numa sociedade cada vez mais modernizada e urbanizada.

A situao quase arquetpica do cantador antagonista ilustra-se talvez mais eficazmente pela evocao do poeta nmade de outrora, que chegava numa comunidade onde era ainda desconhecido. Ao entrar nela, ele adentrava tambm, querendo ou no, no territrio, caa reservada, dos poetas residentes locais. De antemo, ele ser considerado concorrente, rival, adversrio, opositor, como eram tambm, alis, os homens que vinham de fora para namorar uma mulher da comunidade. Essas situaes, provocadoras para os homens residentes, podiam acabar muito mal e com muita violncia fsica. A comunidade, ansiosa por conhecer as novidades, notcias e histrias de fora que o novo poeta trazia, tentava resolver as ameaas e tenses provocadas pela chegada do estrangeiro, organizando um evento ldico-srio ritualizado e controlado por ela (HUIZINGA, 2007). Essa cantoria obrigava os seus prprios poetas a transformar e sublimar o seu dio do rival e violncia fsica em violncia verbal e potica, permitindo ao recm-chegado ostentar as suas competncias para legitimar a sua visita.

Essa foi a realidade e a funo eminentemente social do repente/improviso tradicional nordestino desde os seus comeos. Ela evoluiu e mudou radicalmente no sculo XX, como mostram os estudos de Elba Braga Ramalho e a tese de doutoramento defendida por Andra Betnia da Silva, intitulada Entre ps-de-parede e festivais: rota(s) das poticas orais na cantoria de improviso (SILVA, 2014). Os poetas individuais e rivais transformaram-se em dupla de companheiros/parceiros. A violncia, fonte de inspirao inicial do gnero, perdeu o seu lugar central, sendo o pblico dos festivais o proponente do tema a ser trabalhado pela dupla. A violncia foi substituda pela vontade e motivao de serem juntos a melhor dupla no palco, como concorrentes e vencedores de outras duplas. Esse fenmeno no ocorreu, por exemplo, no repente africano, halo, que continua, mutatis mutandis, como exerccio e jogo ldico-srio, no seio de comunidades, onde o halo funciona at hoje como vlvula de escape para tenses e conflitos sociais dentro da comunidade e como instrumento de que ela dispe para educar, ritualizando-a, a violncia masculina e salvaguardar a coeso social.

 

 

Pensar a violncia feminina

 

Podemos agora olhar com lentes diferentes para um fenmeno que observei muitas vezes e que, no incio, at me chocava, a saber, o da violncia, obscenidade e indecoro dos versos de certas mulheres repentistas e poetisas. Essa violncia verbal deixava-me ao mesmo tempo com mal-estar perante as reaes excessivamente negativas (puta, macho, pior que homem!, feia, grosseira, para s citar as menos agressivas!) de colegas pesquisadores, indignados e revoltados, apesar dos aplausos, adeso e entusiasmo do pblico, sobretudo quando essa mulher era declarada vencedora.

Imaginar o contexto tradicional do repente permite compreender melhor a situao da mulher-repentista, um estrangeiro-mulher que entra no territrio masculino do repente e que at tem o direito de adentrar nesse espao, de participar do jogo, mas ter de respeitar as regras desse jogo. Quer dizer, cumprir duas condies: o respeito aos cdigos do antagonismo bsico do jogo potico e a demonstrao de um exmio conhecimento da sua arte potica. Ela tem que se mostrar superior ao adversrio, para o pblico o declarar vencido.

Esse jogo apimentado de maneira muito especial ao oferecer um palco a todas as possveis frustraes, tenses, conflitos e preconceitos gerados pelo convvio dos dois sexos no mundo relativamente fechado da comunidade tradicional. No fundo, trata-se de um jogo-ritual que permite evacuar, soltar e curar o que se denomina na psicanlise Verdrngung, refoulement, represso de pulses (sexuais, de violncia, de dio) estocadas no inconsciente. Tantas vezes senti uma vibrao, uma excitao, ouvi um frmito, antes mesmo de uma mulher entrar no crculo ou subir ao palco para cantar! A, o desafio era grande e especial; era preciso escolher o tom (sarcstico, jocoso, irnico, provocador) e o subgnero potico dentro da gama de possibilidades ofertadas, tais como maldizer, escrnio, obscenidade, zombaria. O essencial era fazer melhor, ser mais forte, cantar o verso mais bonito e perfeito na rima e no ritmo. Esse era o grande desafio das cantadoras que saam do crculo formado pelo pblico conhecedor-avaliador para um desafio/provocao grande: aventurar-se at ao centro do territrio masculino.

Nesse sentido, h outra intepretao possvel para o fato averiguado de que muitos poetas se recusam, geralmente com uma atitude de imenso desprezo e arrogncia, a cantar com uma mulher. Certa vez, Jos Alves Sobrinho me disse que minha interpretao dessa atitude – como se tratando de um preconceito sexista – era muito superficial, o que outros grandes poetas depois me confirmaram. Na verdade, nesse territrio masculino do repente, ser o vencido do duelo potico j , em si, uma desonra. Ser o vencido de um vencedor estrangeiro, seja ele masculino ou feminino, desonra e vergonha! Para o poeta masculino, o risco era muito grande, uma vez que o pblico gostava desse subgnero potico e admirava, de antemo, a coragem da mulher e o seu domnio da ars potica do repente. Na verdade, como Sobrinho e outros poetas explicavam, essa atitude de superioridade e desprezo ocultava o medo medonho que tinham muitos poetas de ter que sair vencido do duelo potico com mulher.

Houve poetisas que procuravam outras estratgias, no violentas, para a sua voz ser escutada. Algumas delas j anunciam a transio do repente tradicional, violento e antagonista, ao repente dos parceiros-companheiros que se instala progressivamente na segunda parte do sculo XX. Jos Alves Sobrinho, por exemplo, evoca, com muito carinho,

 

A Terezinha Tietre

De So Jos dos Cordeiros.

S cantava elogiando

O verso dos companheiros.

Deixou de cantar, porm

Causou saudade aos parceiros (SOBRINHO, 2003, p. 98)

 

Mais uma vez, por trs do elogio do poeta, desenha-se a estrutura bsica – pica – do mundo masculino que a mulher provocadora tinha que respeitar e as regras do jogo potico pico masculino, quer dizer: zombar ou elogiar.

 

 

 

Consideraes finais

 

O exemplo da funo social da arte ldico-potica do repente (e sua forma impressa no folheto de cordel) e da violncia da linguagem potica de homens e mulheres repentistas nesse territrio tradicionalmente masculino permitiu ilustrar a necessidade e a urgncia da reviso das episteme do discurso convencional sobre cantoria e cordel. Para quem quiser interpretar e historiografar textos ou gneros literrios originrios das tradies orais, fundamental, antes de mais nada, conhecer a fundo o contexto scio-histrico e cultural das obras e dos seus autores. De um momento, de um contexto (regional, social, histrico...), de um pblico para o outro, a significao dos gestos, das palavras, das imagens pode ser diferente, tornar-se ambgua, ter duplo sentido ou sentido figurado e levar o pesquisador, convencido da superioridade e e universalidade da sua metodologia e terminologia, a interpretaes erradas.

Porm, o que importa mais ainda tentar questionar o nosso olhar sobre eles. Esse questionamento baseia-se na conscincia de que a ordem do discurso (Foucault, 1996) – ocidental, colonial e patriarcal – formata tanto o nosso pensamento e linguagem quanto o nosso olhar sobre o mundo e a nossa realidade. Queiramos ou no queiramos, sejamos homens ou mulheres, essa ordem fundamentalmente colonizadora, mutiladora e hierarquizante. Como disse recentemente um grande pensador do movimento internacional Men Engage Against Violence[38] num debate sobre violncia masculina e educao: We are all trapped in the framing of the same narrative. Estamos todos encarcerados na estrutura da mesma narrativa.

Esse olhar colonizador parte de um observador que se considera centro e protagonista; convencido de que os seus conceitos, critrios, categorias e juzes de valor sejam objetivos, cientficos e lhe fornecem instrumentos vlidos para definir, classificar, intepretar e avaliar tudo e todos os outros. Trata-se de uma armadilha desastrosa, formatada por sculos de pressupostos que so, na verdade preconceitos e pretenses injustificadas. Inmeros so os exemplos de narrativas e teorias errneas construdas em cima do pressuposto de que o Sujeito-pesquisador possui o olhar objetivo e cientfico sobre o seu Objeto de pesquisa, como so inesgotveis as fontes das piadas de pesquisador nas quais os poetas da oralidade denunciaram e continuam denunciando, no mundo inteiro, essa pretenso absurda da superioridade da cincia ocidental.

Para cumprir o anncio e promessa que fizeram, no Cariri, no ano 2000, os Poetas dos cordis mauditos e inventar esses novos outros 500 anos da histria da humanidade, teremos que contar/narrar direitinho, antes de mais nada, a histria dos seus antepassados-poetas, alm de inventar vocabulrios no dicotmicos para esse futuro. Criar esse futuro implica o restabelecer daquela viso do mundo das civilizaes da oralidade que no se ilude com a crena de um Progresso infinito, hoje em dia cada vez mais inverossmil, violento e mortfero.

Esses cantadores e cantadoras que ritualizavam e colocavam aberta e corajosamente no palco da comunidade nordestina a violncia masculina como praga social a ser debatida, re-educada, curada e vencida para o bem-estar de todos, no s legaram para as futuras geraes uma linguagem potica e estratgias eficazes de comunicao social, poltica e educativa, mas deixaram tambm uma amostra de um mundo diferente e dual, mais humano, mais respeitoso das leis da Vida que o sistema colonial e seus aliados eruditos que compuseram e impuseram a Histria oficial do Brasil tentaram, em vo, obliterar.

 

 

Referncias

 

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BCHER, Karl. Arbeit und Rhythmus, Leipzig, 1896.

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FOUCAULT, Michel. What is an author?. In Aesthetics, Method and Epistemology, Faubion, James ed., 205-222. New York: The New Press.,1996.

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GRANGEIRO, Cludia Rejanne Pinheiro (org.). Benditos Mauditos: tradio e transgresso na Literatura de Cordel. Curitiba: Editora CRV, 2020.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento da cultura. Trad. Joo Paulo Monteiro. So Paulo: Perspectiva, 2007.

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LEMAIRE, Ria. Patrimnio e Matrimnio I: proposta para uma nova historiografia da cultura ocidental. Educar em Revista n. 70, julho-ago 2018: 17-33.

LUCENA, Bruna Paiva de. Poticas a cu aberto: o cordel e a crtica literria. Brasilia: Edies Carolina, 2018.

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RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes; LEMAIRE, Ria. A feira e O trovador encantado. Universidade de Corunha (Esp.); EDUEPB (Campina Grande): Biblioteca Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, 2011.

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SANTOS, Francisca Pereira dos. A peleja potica da poetisa Bastinha com o poeta Patativa do Assar. Fortaleza: Ed. IRIS, 2011.

SEGATO, Rita. Gnero e colonialidade em busca de chaves de leitura e de um vocabulrio estratgico descolonial, CES, e-cadernos, 18. Coimbra, 2012.

SILVA, Andra Betnia da. Entre ps-de-parede e festivais: rota(s) das poticas orais na cantoria de improviso. UFBA, 2014.

SOBRINHO, Jos Alves. Cantadores, Repentistas e Poetas Populares. Campina Grande. Bagagem. 2003.

 

[Recebido: 03 mai 2021]

 

 

DOSSI


METADE CARA, METADE MSCARA: MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE INDGENA NA OBRA DE ELIANE POTIGUARA

 

 

METADE CARA, METADE MSCARA: COLLECTIVE MEMORY AND INDIGENOUS IDENTITY IN THE WORK OF ELIANE POTIGUARA

 

Joel Vieira da Silva Filho[39]

https://orcid.org/0000-0001-9895-99

 

Cristian Souza de Sales[40]

https://orcid.org/0000-0002-9377-67

 

Resumo: Este texto investe numa discusso acerca das relaes existentes entre memria coletiva e identidade indgena em Metade Cara, Metade Mscara (2004) da escritora indgena contempornea Eliane Potiguara. Metade Cara, Metade Mscara uma obra de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando lendas, fico, testemunhos, depoimentos e poemas. Atravs da narrativa de deslocamento e processo diasprico da escritora, destacamos como as memrias individual, coletiva e as identidades se incorporam e se encenam poeticamente. O trabalho evidencia como os poemas operam em favor da preservao da memria coletiva e da identidade dos povos indgenas. Na potica da escritora, as memrias e identidades performadas do sustentao a outros saberes sobre os povos indgenas, os quais se diferenciam das verses disseminadas pelas epistemologias eurocentradas. Por fim, o texto realiza um estudo terico-crtico que dialoga com os seguintes autores: Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku (2018) como aporte terico principal.

Palavras-chave: Literatura indgena. Poesia indgena. Eliane Potiguara. Memria. Identidade.

 

Abstract: This text invests in a discussion about the existing relations between collective memory and indigenous identity in Metade Cara, Metade Mscara (2004), by contemporary indigenous writer Eliane Potiguara. Metade Cara, Metade Mscara is an autobiographical work, of a hybrid genre, interspersing legends, fiction, testimonies, depositions and poems. Through the displacement narrative and diasporic process of the writer, we highlight how individual/collective memories and identities are incorporated and acted out poetically. The work shows how the poems operate in favor of preserving the collective memory and identity of indigenous people. In the writer's poetics, the performed memories and identities support others knowledges about indigenous people, which differ from the versions disseminated by Eurocentric epistemologies. Finally, the text conducts a theoretical-critical study that dialogues with the following authors: Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku (2018), among others.

Keywords: Indigenous literature. Indigenous poetry. Eliane Potiguara. Memory. Identity.

 

 

 

 

Da oralidade escrita

A literatura indgena contempornea um lugar utpico (de sobrevivncia), uma variante do pico tecido pela oralidade; um lugar de confluncia de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonizao (GRANA, 2013, p. 15).

 

Podemos dizer que a literatura escrita indgena tem se consolidado como um movimento esttico-literrio e poltico no Brasil. Mas, anteriormente escrita, a literatura indgena era compartilhada atravs da oralidade ou da tradio oral. Assim, as narrativas, histrias e saberes que antes eram transmitidos de gerao em gerao apenas por meio da oralidade, agora tambm circulam atravs da escrita. Portanto, uma caracterstica significativa da literatura escrita indgena sua estreita e profunda relao com a tradio oral.

A oralidade indgena entendida como conjunto de costumes, crenas e rituais das diversas comunidades indgenas partilhados atravs da voz. Por meio do conhecimento oral, ou seja, de uma srie de cnticos, toantes, literaturas (de diferentes etnias), os indgenas transmitiam de gerao em gerao esses conhecimentos.

Daniel Munduruku, escritor indgena, autor de diversos livros e defensor da causa indgena, por sua vez, diz que a escrita uma conquista recente para a maioria dos 305 povos indgenas que habitam nosso pas desde tempos imemoriais (MUNDURUKU, 2018, p. 81).

Nesse contexto, Graa Grana, escritora indgena brasileira, defende o espao da literatura indgena como um lugar de autoafirmao cultural, de forma que mesmo sendo produzida em meio a muito silenciamento e exilamento, em paralelo a colonizao, buscou preservar memrias, tradies, formas de vida e cosmologias (GRANA, 2013). Na memria dos mais velhos, considerados mais sbios, o tempo passado e presente se encontram para atualizar os repertrios.

De tal maneira, a palavra falada era e ainda transmitida nas comunidades, colaborando para que a tradio indgena se mantenha forte. O elemento oral partilhado em comunidade fortifica a memria e o conhecimento ancestral herdado, de forma que os ancios colaboram frequentemente para a produo dos textos. As vozes dos ancios e dos ancestrais refletem na escrita, conferem ao texto um carter memorial e identitrio.

Nesse sentido, Paul Zumthor diz que por meio da voz, ns nos situamos no mundo; sendo assim, a voz indgena situa as tradies de modo a no perder toda uma vasta produo oral que est em constante movimento na memria dos mais velhos e que est sendo passado para os mais jovens[41]. Segundo Zumthor, h trs tipos de oralidade, associadas a aspectos culturais diferenciados:

a) primria, sem relao alguma com a escritura, relaciona-se a sociedades grafas; b) segunda, quando a escritura prevalece sobre os aspectos orais, condicionando, a partir de uma cultura erudita, as formas de expresso; c) mista, quando o oral se manifesta de forma parcial e com retraso em relao ao escrito.. (ZUMTHOR, 1989, p.20)

De tal forma, sendo a oralidade um ato espontneo, natural; com a ausncia de uma literatura grfica, de ordem alfabtica, o registro oral dos indgenas nasceu intimamente na fala, como elemento de preservao da tradio. Assim, a oratura indgena funciona/ou como todo conjunto de conhecimento daquilo que est/esteve preservado na memria dos povos indgenas.

Com o desenvolvimento da literatura indgena escrita, no se pode dizer que a oralidade foi desprezada e esquecida. O conhecimento oral a mola propulsora para a produo literria indgena. Assim, a literatura escrita no existiria sem a literatura oral, visto que ambas se correlacionam, pois, a escrita no chega para ser predominante, ela chega como auxiliar e veculo para a expresso de toda uma tradio que se estabelece por meio da oralidade (DORRICO, 2018, p. 113).

Da oralidade ao alcance da escrita, em relao identidade e memria, enfatizamos que as literaturas de autoria indgena so resultado da ancestralidade, e reforam o pertencimento tnico e a valorizao da luta poltico-social-literria indgena. Diversos so os escritores indgenas que fortalecem o conhecimento ancestral por intermdio dos textos. Autores como Eliane Potiguara, Graa Grana, Mrcia Kambeba, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Auritha Tabajara, Olvio Jekup e tantos outros, celebram ainda mais a literatura dos povos indgenas brasileiros.

De tal forma, neste texto, nos interessa a produo literria da escritora indgena Eliane Potiguara. Por meio da obra Metade Cara, Metade Mscara (2019), de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando lendas, fico, testemunhos, depoimentos e poesias, evidenciaremos como os poemas contribuem para o fortalecimento da memria coletiva e da identidade dos povos indgenas.

Percebemos que a potica de Eliane Potiguara carregada de elementos da resistncia que mulher indgena, bem como se abastece da fora memorial, ancestral e identitria. As narrativas transitam por espaos vividos pela escritora, desde o processo diasprico de sua famlia at o seu nascimento em uma terra distante. A isso, importante salientar que:

O projeto literrio da escritora, alicerado na tradio e na sabedoria ancestral, rompe com o silenciamento secular dos povos originrios e se apresenta como alternativa para a construo de uma narrativa plural e no estigmatizante da ptria brasileira, a partir de uma cosmoviso indgena feminina (COSTA, 2020, p. 17).

            As provocaes presentes em Metade cara, Metade mscara denunciam as perversidades da colonizao e buscam romper com os estigmas impostos aos povos indgenas. Em relao voz de Eliane Potiguara, outras vozes tambm so reverberadas, uma coletividade emanada, assim, a potica da escritora, presente nos diversos gneros da obra, revigora a luta indgena e anseia pelo direito de liberdade, respeito e igualdade.

 

 

Eliane Potiguara: uma voz indgena feminina

Que fao com minha cara de ndia?

E meus cabelos

E minhas rugas

E minha histria

E meus segredos (POTIGUARA, 2019, p. 32).

 

Descendente dos Potiguara do Rio Grande do Norte, Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, uma mulher indgena, me, escritora e militante, nascida no Rio de Janeiro, em 1950. Uma das escritoras pioneiras da literatura indgena brasileira, tornou-se uma das principais vozes na luta pela preservao e garantia dos direitos dos povos indgenas, e tambm na busca pelo respeito e valorizao das mulheres.

Eliane Potiguara, assim como diversos indgenas brasileiros, tambm foi vtima dos resqucios da colonizao. Durante a infncia, devido s perseguies, enfrentou contnuas adversidades, pois sua famlia foi obrigada a migrar para Pernambuco. Foi no estado do Pernambuco que nasceu a me de Eliane Potiguara, a pequena Elza, filha de Maria de Lourdes, fraquinha e enferma (POTIGUARA, 2019, p. 24), me com apenas 12 anos, vtima de um estupro do colonizador. Assim, as mulheres da famlia de Potiguara saram de sua terra natal, de sua aldeia, para sobreviverem.

Aps a migrao para as terras pernambucanas, a famlia decidiu partir para o Rio de Janeiro. A violncia ocorrida nas terras Potiguara e em diversos espaos indgenas do nordeste brasileiro forou diversas famlias, como a de Eliane, a migrarem para outros espaos, em grande parte, para as periferias das grandes cidades sulistas. O processo de estadia na capital carioca foi complicado e as mulheres da famlia Potiguara passaram por vrias adversidades. A pequena Elza cresceu e quando jovem, engravidou e deu luz a mulher que hoje chamamos Eliane Potiguara, esta que foi criada por sua av Maria de Lourdes, enquanto sua me Elza trabalhava.

Eliane foi criada em um quarto trancado e com sua av aprendeu coisas diversas, maravilhosas, e foi assim que Potiguara comeou a escrever, absorta nas histrias da prpria av e no sentimento que tudo isso envolvia. As histrias reais de sua av a levaram para um mundo mgico e literrio (POTIGUARA, 2019, p. 26-27). Potiguara no passou por adversidades apenas durante sua infncia, pode-se dizer que, durante toda a sua vida, ela travou uma luta constante pela sobrevivncia.

Formou-se em Letras pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), fundou o GRUMIN (Grupo Mulher-Educao Indgena) e foi tambm indicada para o Projeto internacional Mil Mulheres do Prmio Nobel da Paz. Ao mesmo tempo em que lutava pelos direitos dos povos indgenas, buscou conectar-se com sua ancestralidade.

No poema Identidade Indgena, por exemplo, escrito em 1975 em memria dos seus avs, que marca essa conexo com seu povo, Eliane Potiguara traa um percurso autobiogrfico e menciona todo o processo de luta e resistncia dos seus parentes. Segundo Grana (2013, p. 78), tal poema [...] inaugurou o movimento literrio indgena contemporneo no Brasil [...]. Assim, no incio do poema, a voz autobiogrfica evoca uma memria coletiva e introduz o primeiro verso com o pronome possessivo (nosso), rememorando os ancestrais. Ao longo do extenso poema, a voz lrica, de tom feminino, declama que nunca esteve e nem est (ou estar) sozinha, pois carrega em si as marcas e os ensinamentos identitrios e memoriais dos ancestrais, como exposto na primeira estrofe:

Nosso ancestral dizia: temos vida longa!

Mas caio da vida e da morte
E range o armamento contra ns.
Mas enquanto eu tiver o corao acesso
No morre a indgena em mim e
Nem to pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direo ao sol.
Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da famlia espoliada
Desacreditada, humilhada
Sem forma, sem brilho, sem fama (POTIGUARA, 2019, p. 113).

O eu-potico retoma a luta dos povos indgenas brasileiros, reforando que, embora o armamento, o poder colonial exista, o compromisso assumido com os ancestrais jamais morre. A voz lrica denunciar no decorrer dos versos, todo o processo de invisibilizao dos indgenas. No entanto, em contraposio ao ato de diminuir os sujeitos indgenas, haver sempre o ato de resistir. Assim, depreende-se que a luta da voz do poema tambm a de Eliane Potiguara.

A conjuno adversativa (mas) presente nos versos dois e quatro, elucida uma voz que, embora saiba dos sofrimentos que enfrentar, no deixar de cumprir o seu compromisso. Tal compromisso mencionado pela voz do poema coincide com a voz da escritora Potiguara, de caminhar sob a orientao dos mortos, dos ancestrais, em direo ao sol, ou seja, libertao, embora carregue tambm em si espoliaes, descrena e humilhaes.

De tal forma, a luta de Eliane Potiguara constitui ato eminentemente poltico, assim como a sua escrita (COSTA, 2020, p. 151) e este ato poltico reverberado nas produes de Potiguara, dentre as quais, citamos: A Terra a Me do ndio (1989); Akajutibir: terra do ndio potiguara (1994); Metade Cara, Metade Mscara (2004); O coco que guardava a noite (2012); O Pssaro Encantado (2014); A Cura da Terra (2015).

De tal maneira, como diz Costa (2020, p. 113), os escritos de Eliane Potiguara adquirem um tom reivindicatrio. Os poemas se tornam lugar de materializao das vozes ancestrais. Assim, a resistncia de Eliane Potiguara est na sua histria de vida, bem como na sua produo literria, de modo que, cada vez mais, povos indgenas e no-indgenas buscam conhecer a luta e a literatura dessa mulher Potiguara.

 

 

Metade Cara, Metade Mscara: uma obra de gnero hbrido

 

A obra Metade Cara, Metade Mscara foi publicada pela primeira vez no ano de 2004 pela Global Editora. composta por sete captulos e consta com vrios gneros de cunho literrio e tambm social, assim, possui uma hibridez marcante. Nesse contexto, a autora apresenta, como mencionado por Marcello Pereira Borgh na orelha do livro: lendas, fico, realidade, testemunhos, depoimentos, e versos autorias.

Este ltimo gnero essencial para a composio do volume, pois, desse modo que ser narrada a histria de Cunhata e Jurupiranga e o processo diasprico de tais personagens, estes que formam um casal que representa simbolicamente as famlias indgenas brasileiras [e] passam por diversas (des)aventuras, em cenrio e tempo mticos, desde o incio do processo da colonizao europeia em solo brasileiro (DE MELO; COSTA, 2018, p. 364-365 [insero nossa]).

Segundo Milena Costa Pinto, Metade Cara, Metade Mscara possui uma transversalidade temtica proveniente da hibridez textual que agrega memria, autohistria, biografia e autobiografia, de crtica, testemunho e denncia (PINTO, 2017, p. 79). Esta hibridez apontada pela pesquisadora e tambm por diversos estudiosos da obra de Potiguara caracteriza esta obra e faz dela um texto de vozes coletivas emanadas em cada gnero presente no livro.

Neste texto, nos interessa, particularmente, alguns poemas presentes em Metade Cara, Metade Mscara, por apresentarem elementos marcantes da literatura indgena em relao com a memria coletiva e a identidade. oportuno destacar tambm a crtica social realizada na obra de Potiguara nos diferentes gneros. De acordo com Pinto, quando costurados, os gneros presentes no livro, sero refletidos atravs da hibridez, e daro uma impreciso s definies de cada gnero. Por conseguinte, o carter hbrido no se faz presente apenas no corpo do texto, h marcas de hibridez e de ambiguidade tambm no ttulo do livro, pois, uma metade constituda por uma cara, e, a outra, por uma mscara.

Em sua anlise, Pinto (2017) menciona que tal ambiguidade sugere, a priori, a verso silenciada do indgena, ou seja – a cara, e em seguida, a proposta inventada pelo colonizador, pelo poder dominante – a mscara. Trata-se de uma indgena que carrega em si um rosto dividido, porm, no texto, a cara ter total destaque, pois dela que provm os escritos.

A edio mais recente foi publicada em 2019 pela Grumin Edies. No primeiro captulo, intitulado de Invaso s terras indgenas e a migrao, Eliane Potiguara aborda a separao entre as personagens Jurupiranga e Cunhata e trata sobre a migrao indgena. Para tanto, a autora busca como pano de fundo a sua famlia e o processo de sada do Rio Grande do Norte, passando por Pernambuco at chegar ao Rio de Janeiro.

Potiguara debate tambm questes relativas a violncia contra a mulher indgena, o racismo e a intolerncia. H alguns poemas que revelam uma escrita de dor, com marcas de resistncia, como podemos observar no poema Migrao Indgena:

No teu universo de gestos

Teus olhos so mensagens sem palavras

Tua boca ainda incandescente

Me queima o rosto na partida

E tuas mos...

Ah! No sei mais continuar esses cnticos

Porque a mim tudo foi roubado.

Se ainda consigo escrever alguns deles

S fruto mesmo da mgoa que me toma a alma

Da saudade que me mata

Da tristeza que invade todo o meu universo interno

Apesar do sorriso na face... (POTIGUARA, 2019, p. 36).

Neste poema, a voz lrica com caractersticas femininas denuncia o roubo de tudo aquilo que possua. Ao mesmo tempo, a voz potica menciona um outro, e fala sobre os gestos, os olhos, a boca, o rosto e as mos desse outro que ela sente em si, apesar da necessidade de partir, de migrar.

A dor mencionada aparece como dor sentimental, dor da perda, da separao, da saudade. Dor esta que impede que o cntico continue, que as palavras venham. Eliane Potiguara fala que o processo colonizatrio trouxe problemas graves aos indgenas, assim, no poema, enfatizada a dor dos sentimentos, embora saibamos que, com a colonizao tambm vieram enfermidade, a fome, o empobrecimento compulsrio da populao indgena (POTIGUARA, 2019, p. 43). A dor sentida pela voz do poema foi/ sentida por diversos povos que viram seus familiares mortos nas mos do colonizador. O genocdio indgena foi severo, povos morreram por no aceitarem a submisso.

Em relao com a dor sentida, h tambm o sentimento de mgoa, entremeada com a saudade, ento, estaria a voz do poema perdendo seu amado? O processo colonizatrio separou diversas famlias, casais, filhos, que sentiram a dor da partida, a exemplo da famlia de Eliane Potiguara. No entanto, v-se que a dor sentida precisa ser escondida (escondida para sobreviver?). O sorriso na face mascara insistentemente a tristeza que invade o corao da voz narrativa.

No segundo captulo, Angstia e desespero pela perda das terras e pela ameaa cultura e s tradies, a autora debate sobre as relaes entre a migrao e o racismo enfrentados pelos indgenas, fala tambm sobre os problemas pelo qual passam as mulheres indgenas na luta pelos seus direitos, alm de informar-nos sobre a importncia do GRUMIM para a valorizao desta luta. No terceiro captulo, Ainda a insatisfao e a conscincia da mulher indgena, a autora apresenta poemas que versam sobre a luta e a resistncia feminina.

No quarto captulo intitulado de Influncia dos ancestrais na busca pela preservao da identidade, abordada a importncia da famlia, dos avs e dos antepassados indgenas. Nesse captulo, a personagem Cunhata viaja por diversos espaos e nesse ato de viajar ouve vozes intercaladas e, no meio delas, escuta a voz ancestral (POTIGUARA, 2019, p. 87).

No captulo cinco, que tem por ttulo Exaltao terra, cultura e ancestralidade, Eliane Potiguara narra os deslocamentos de Cunhata e Jurupiranga pela terra, pela cultura e pela ancestralidade, ao passo que apresenta ainda mais o seu processo de vida enquanto escritora indgena.

O captulo seis bastante curto, nele, so abordadas as questes acerca da Combatividade e Resistncia dos povos indgenas, bem como os percalos enfrentados por Jurupiranga. Anterior a isto, no havia menes sobre o paradeiro de Jurupiranga, pois o foco estava em narrar os dissabores de Cunhata. Neste captulo, nos informado as aventuras e percalos pelos quais Jurupiranga passou, bem como o sonho da liberdade, da justia, da paz. J o captulo sete, Vitria dos povos, apresenta o final da narrativa, a unio entre Cunhata e Jurupiranga e o reencontro com a identidade que fora rasurada com a invaso do homem branco.

Metade Cara, Metade Mscara uma obra marcante; nela, Eliane Potiguara narra, poetiza, conta, relata, denuncia, liberta e anuncia o reencontro dos que foram separados. Os valores literrio e social se hibridizam e resultam na grande potencialidade que Eliane Potiguara tem de escrever para se autoafirmar e tambm afirmar os seus parentes indgenas, que lutam constantemente pela valorizao e respeito e pelo reencontro.

 

 

Memria coletiva e identidades indgenas

 

A literatura indgena de Eliane Potiguara funciona como uma ao de reforo da identidade indgena. Em seus escritos, propostos em diferentes gneros, a escritora, no produz algo apartada da identidade herdada dos ancestrais. A proposta literria de Eliane Potiguara no indigenista, literatura escrita por antroplogos, pesquisadores, escritores no indgenas; tampouco indianista, aquela do romantismo brasileiro que props uma representao do ndio pautada no discurso colonial. A literatura escrita por Eliane Potiguara chamada literatura indgena, pois parte de um lugar identitrio prprio; a prpria indgena que a escreve, que narra.

Assim, em seus escritos, Potiguara desvincula a imagem do indgena da viso nacionalista e do senso comum, apresenta a identidade indgena em suas narrativas, bem como a memria indgena, levando em considerao seus relatos memoriais e suas vivncias em comunidade e/ou fora dela.

Problematizando o conceito de identidade, em A identidade cultural na ps-modernidade, Stuart Hall buscou distinguir trs concepes de sujeitos identitrios. Para ele, h o sujeito do Iluminismo, que centrado e dotado de razo; o sujeito sociolgico, aquele que necessita dos outros, pois no independente; e o sujeito ps-moderno, o indivduo que no possui uma identidade com fixidez. Assim, debatendo acerca da crise da identidade, o pensador nos prope pensar no no termo identidade, mas, sim, em identificao, como algo que est em andamento. Nesta concepo, entende-se que no h apenas uma identidade ou um processo de identificao, mas, identidades mltiplas e processos diversos de identificaes. Com isso, esse intelectual nos leva a observar que

[...] a identidade realmente algo formado, ao logo do tempo, atravs de processos inconscientes, e no algo inato, existente na conscincia no momento do nascimento. Existe sempre algo imaginrio ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, est sempre em processo, sempre sendo formada (HALL, 2006, p. 38).

Nessa perspectiva, a identidade est sempre em processo de formao, um fazer-se inacabado. A incompletude acontece pelo fato de os sujeitos precisarem estar cada vez mais em processos formativos e de complementao. Quando pensamos em identidade indgena estamos pensando em processos de formao, pois, esta identidade busca apresentar quem esse indgena, quais as suas razes, qual a sua ancestralidade.

Para Grana (2013), a noo de identidade na literatura indgena est associada a ideia de deslocamento, a pesquisadora indgena bebe dos estudos de Stuart Hall, que compreende o deslocamento como o processo de dispora. Esse ato de deslocar-se evocar a concepo de diferena e isso dar a esta literatura um carter identitrio, ou seja, por ser diferente, por possuir identidade prpria, ser refletido no texto literrio a conscincia do cidado e da cidad indgena (GRANA, 2013).

No decorrer do tempo, diversos povos indgenas foram obrigados a silenciarem suas identidades pelo fato de serem diferentes, de estarem em dispora. H como exemplo a famlia de Eliane Potiguara que precisou migrar para o Rio de Janeiro e precisou se adaptar a uma identidade cosmopolita.

Em O poder da identidade, Manuel Castells afirma que a identidade uma construo social, marcada por relaes de poder, assim, o autor aponta trs tipos de identidade: a identidade legitimadora, a de resistncia e a identidade de projeto. Aqui, nos interessa a identidade de resistncia, pois nela a identidade dos povos indgenas refletida, inclusive a da escritora Eliane Potiguara.

Assim, Castells prope que a identidade de resistncia foi:

[...] Criada por atores que se encontram em posies/condies desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lgica da dominao, construindo, assim, trincheiras de resistncia e sobrevivncia com base em princpios diferentes dos que permeiam as instituies da sociedade [...] (CASTELLS, 2018, p. 56).

 

            Esta concepo indenitria de resistncia mantm relaes com a identidade vivida pelos povos indgenas brasileiros. Ela processual como prope Hall (2006) e est em condies de estigmatizao pela lgica da dominao, como citado acima. No entanto, h atos de resistncia e sobrevivncia para manter essa identidade viva, pois ela d origem a formas de resistncia coletiva diante de uma opresso (CASTELLS, 2018, p. 57).

Dessa forma, a literatura produzida por indgenas brasileiros apresenta na sua constituio as suas prprias caractersticas, tanto na forma quanto no contedo (FIGUEIREDO, 2018, p. 130), um contedo prprio, embasado na identidade e na memria e que avana de gerao para gerao. Nessa perspectiva, pensamos a memria como um ato coletivo, no qual, o sujeito estabelece relaes com os que esto ou estiveram consigo.

Pode-se pensar a escrita de Potiguara tambm como uma ao memorial individual, porm h nos textos da autora muito mais do coletivo, da sua famlia, dos seus avs. Em A memria coletiva, o socilogo Maurice Halbwachs aponta que [...] nossas lembranas permanecem coletivas, e elas nos so lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais s ns estivemos envolvidos, e com objetos que s ns vimos (HALBWACHS, 1990, p. 26).

Sendo a memria o elemento que agrega as nossas lembranas e os acontecimentos vividos e que mostra que no estamos ss, fica evidente que a nossa individualidade atravessada pela coletividade daqueles que esto ao nosso redor, em nosso cerco de relaes familiares e afetivas.

Dessa forma, Daniel Munduruku prope pensar a memria indgena da seguinte forma:

A memria , pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertrios e encontrar novos sentidos que se perpetuaro em novos rituais que abrigaro elementos novos num circular movimento repetido exausto ao longo de sua histria (MUNDURUKU, 2018, p. 81).

Para Munduruku (2018), a memria resultado do passado – ou seja, da ancestralidade – em sintonia com os saberes atuais, apreendidos no dia a dia dos povos de modo que os movimentos anteriores da histria so repetidos em novos movimentos, atualizando esse conhecimento memorial e preservando-o ao mesmo tempo. Nesse contexto, para os povos indgenas, a memria, em sua gnese , principalmente, realizada de maneira coletiva.

A memria coletiva, ento, entendida como os elementos herdados dos ancestrais e partilhados pelos ancios, pelos pais, seja de forma oral, grfica ou corporal, sendo marca essencial para a construo da potica de Eliane Potiguara. A coletividade reverberada em cada verso, em cada palavra, como vemos em Identidade Indgena, que uma juno da forma potica com a autobiografia, no apenas da escritora, mas, dos seus avs.

No entanto, vale mencionar o quanto o conhecimento ancestral, dos mais velhos essencial para a construo do texto literrio indgena, pois o saber, a memria dos avs, um conjunto de memrias coletivas, visto que esses j atravessaram diversos campos da vida e acumularam memrias que os edificaram. O saber dos ancios e a memria que eles possuem articulam-se de modo a garantir a perpetuao da ancestralidade, e o escritor e a escritora indgena quando escrevem, trazem em si as marcas dos ancios e ancis, colocando no texto aquilo pelo qual os mais velhos j passaram e contaram, dando a essas narrativas um carter esttico.

A potica contempornea de Eliane Potiguara rompe com a ideia de mtrica e prope um poema com estrofes irregulares e com versos soltos, ora extensos, ora curtos. A memria indgena cantada atravs do poema e a irregularidade na organizao no inibe este elemento de aparecer. Para tal, a voz lrica exclama:

Mas no sou eu s
No somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da histria.

Seremos milhes unidos como cardume
E no precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lgrimas
Por quem no nos tem respeito.
A migrao nos bate porta
As contradies nos envolvem
As carncias nos encaram
Como se batessem na nossa cara a toda hora.
Mas a conscincia se levanta a cada murro
E nos tornamos secos como o agreste
Mas no perdemos o amor (POTIGUARA, 2019, p. 113).

A voz do poema reclama os ultrajes j sofridos pelos indgenas, faz um retorno a memria dos parentes que sofreram e reafirma que, embora perseguidos, no aceitaro mais a perseguio, a migrao e as contradies. Inicia a estrofe pensando no futuro, pois no nem est ou estar sozinha, grita: Seremos milhes unidos como cardume. Assim, a voz do eu lrico indgena, at ento individual, comea a apontar uma coletividade e exclamam a ancestralidade coletiva e em seguida o desejo de justia. Justia pelo massacre, pelas lgrimas derramadas, pelos que faltaram com respeito contra esses povos.

A memria coletiva tambm acionada nos versos  a migrao nos bate porta e as contradies nos envolvem. Tais versos apontam para o processo diasprico vivido por diversas famlias indgenas, que, embebidos na contradio do amanh, no sabiam se sobreviveriam ao processo. Percebemos que a voz lrica est muito insatisfeita e carrega em si marcas e dores, quando diz: Como se batessem na nossa cara toda hora. No entanto, o ltimo verso da estrofe uma marca potente de valorizao da identidade indgena, pois se afirma mas no perdemos o amor, e assim vemos o quo foi importante o amor herdado dos ancestrais. Adiante, a voz indgena exclama.

Eu viverei 200, 500 ou 700 anos
E contarei minhas dores pra ti
Oh! Identidade
E entre uma contada e outra
Morderei tua cabea
Como quem procura a fonte da tua fora
Da tua juventude
O poder da tua gente
O poder do tempo que j passou
Mas que vamos recuperar [...] (POTIGUARA, 2019, p. 114).

Aqui, a voz lrica dirige a palavra identidade. As dores vividas sero contadas com o intuito de observar no passado sofrido o elemento resistncia indgena. Assim, aponta-se a preservao da identidade indgena, e tambm com grande insistncia o ato de recuperar esta identidade tirada de forma brutal e negligente. A identidade vista como fonte de fora, sendo responsvel pelo retorno indgena. Caso contrrio, a colonizao teria deslegitimado todos os sujeitos indgenas, visto que grande parte foi introduzida em novas identidades, ocidentais, crists, brancas, etc. No entanto, essa luta pela recuperao identitria constante, de forma que, mais adiante, a voz indgena proclama:

Seremos ns, doces, puros, amantes, gente e normal!

E te direi identidade: Eu te amo!

E nos recusaremos a morrer,

A sofrer a cada gesto, a cada dor fsica, moral e espiritual.

Ns somos o primeiro mundo! (POTIGUARA, 2019, p. 114).

A identidade indgena vista no poema como poder, para ento, viver, amar e recusar-se a morrer. O verso E te direi identidade: Eu te amo! comprova a relao identitria como mecanismo de fundamental importncia para a construo do sujeito indgena. A memria, no poema, aparece, no apenas, mas com maior insistncia, nos elementos de sofrimento, a voz do poema lembra de cada gesto sofrido, de cada dor fsica, moral e espiritual, mas que se recusa a morrer e busca exclamar: Ns somos o primeiro mundo!, ou seja, somos os primeiros que habitavam essas terras, vivamos da partilha e do trabalho, portanto, queremos reencontrar aquilo que foi/ nosso.

Identidade Indgena descende do que fora herdado por Eliane Potiguara dos seus avs e funciona como elemento portador da notcia do reencontro, como reitera Munduruku (2018). No decorrer dos versos, a(s) voz(es) menciona(m) a luta em meio ao processo colonizatrio, os sofrimentos, mas tambm a coragem, a ousadia e a esperana dos povos indgenas. Esperana que provoca luta e resistncia:

A queremos viver pra lutar
E encontro fora em ti, amada identidade!

Encontro sangue novo pra suportar esse fardo
Nojento, arrogante, cruel... (POTIGUARA, 2019, p. 115).

A partir do verso A queremos viver para lutar notamos que o eu (ns) indgena prope pensar que a luta indgena constante, pensamos esse eu como uma voz coletiva, e o uso do verbo querer na primeira pessoa do plural evoca essas vozes. So vozes que no ficam estagnadas, ao contrrio, encontram na identidade foras, para ento lutarem pelos de ontem, os de hoje e os de amanh. E, se recusa a carregar esse fardo da colonizao, que Nojento, arrogante, cruel. A ltima estrofe canta a liberdade e o resgate da memria. A liberdade aparece como uma categoria que existe a partir da ao de lutar. Os indgenas lutam contra as imposies do colonizador e concretizam aos poucos essa liberdade to almejada:

Ns, povos indgenas
Queremos brilhar no cenrio da histria
Resgatar nossa memria
E ver os frutos de nosso pas, sendo dividido
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e desplazados
Como ns (POTIGUARA, 2019, p. 115).

O poema encerra-se clamando por liberdade. Ser livre essencial para manter viva cada vez mais a memria e a ancestralidade indgena. O ato de ser livre s acontece pelo fato de o indgena no aceitar ao de docilizar o seu corpo, esse corpo que possui uma identidade prpria e que no precisa ser moldado em outra identidade. O eu-potico indgena quer viver da identidade e da memria indgena, do resgate, quer brilhar no cenrio da histria, quer resgatar a memria. Embora desplazados, ou seja, deslocados, os indgenas no querem diviso entre os seus, mas, sim, viver na tessitura do acolhimento, da unidade. A identidade e a memria mencionadas no decorrer do poema descende de geraes e a voz coletiva quer preservar esses elementos, que so essenciais para a renovao e preservao da ancestralidade.

O poema Eu no tenho minha aldeia, por sua vez, tambm apresenta elementos memoriais e identitrios, a voz lrica proclama atravs de carter autobiogrfico o fato de no ter uma aldeia[42]. A cada estrofe do poema podemos perceber a voz do eu lrico de carter feminino proclamando que, embora no tenha nascido na sua aldeia, a herana espiritual e ancestral dos antepassados ela possui, est sempre a acompanhando. E, acima de tudo a voz potica clama por tolerncia, respeito, amor e solidariedade, valores estes que os povos indgenas possuem e reforam a identidade de sujeitos que vivem na coletividade, herana dos ancestrais, como podemos ver na estrofe a seguir:

Eu no tenho minha aldeia

Minha aldeia minha casa espiritual

Deixada pelos meus pais e avs

A maior herana indgena.

Essa casa espiritual

onde vivo desde tenra idade

Ela me ensinou os verdadeiros valores

Da espiritualidade

Do amor

Da solidariedade

E do verdadeiro significado

Da tolerncia (POTIGUARA, 2019, p. 151).

Este poema possui um carter autobiogrfico. Tendo nascido no Rio de Janeiro e sendo criada por sua av, uma matriarca indgena Potiguara, a voz de Eliane se iguala voz do poema, quando diz: Eu no tenho minha aldeia, mas, em seguida, menciona que a sua aldeia a casa espiritual; assim, entendemos que esta casa a av Maria de Lourdes, a herana indgena com quem ela tanto esteve, desde a tenra idade e com quem aprendeu os verdadeiros valores Da espiritualidade/ Do amor/ Da solidariedade/ [...] Da tolerncia.

Assim, neste poema, a voz indgena retorna a um campo memorial, pois, se tratando de uma narrativa com traos autobiogrficos, retorna ao sofrimento da famlia de Potiguara que, quando ameaada, precisou sair do Rio Grande do Norte para sobreviver, mas tambm aos campos de diversas outras famlias indgenas brasileiras que passaram pela mesma situao.

A voz, at ento silenciada, refora na poesia indgena de Eliane Potiguara que a memria dos ancestrais no se perde, ela se mantm viva em cada narrativa e reforada em cada verso. O valor herdado dos antepassados reacende a chama da luta e da busca por respeito, que faz com que Potiguara enquanto indgena desaldeada possa se autoafirmar mulher indgena, sobrevivente da migrao forada e militante da causa indgena, esteja onde estiver. assim que a voz potica conclui o poema:

Ah! J tenho minha aldeia

Minha aldeia meu Corao ardente

a casa dos meus antepassados

E do topo dela eu vejo o mundo

Com o olhar mais solidrio que nunca

Onde eu possa jorrar

Milhares de luzes

Que brotaro mentes

Despossudas de racismo e preconceito (POTIGUARA, 2019, p. 152).

O eu-potico evidencia que possui uma ancestralidade viva atravs da memria herdada pelos ancestrais. Por isso, na tessitura narrativa, enaltece a identidade que comeara a ser formada e afirma que: Minha aldeia meu Corao ardente / a casa dos meus antepassados. Assim, reconhece que no est s, mas enxerga tambm que no est imune ao preconceito, ao racismo. No entanto, sonha com uma sociedade sem intolerncia em que poder cantar a voz ancestral, livre de julgamentos e condenaes dos homens brancos.

 

 

Algumas consideraes: outras toantes

 

As textualidades indgenas escritas carregam em si as marcas da oralidade. As narrativas indgenas fazem parte de uma ao hbrida, na qual, oralidade e escrita se entrelaam. Metade cara, Metade mscara, por exemplo, traz muito dessa hibridez tanto nos diferentes gneros, quanto nas memrias orais que Eliane Potiguara herdou de sua av Maria de Lourdes.

A produo literria de Eliane Potiguara resgata memrias e sensaes, carrega a marca da migrao, do sofrimento enfrentado por sua famlia, meios dos quais retira tambm a fora para escrever em memria de seus avs, dos seus ancestrais, dos ancios. Trata-se de uma escrita identitria, memorial e ancestral, que desvincula a imagem do indgena das propostas coloniais, do homem branco e proclama a beleza do povo indgena. Os poemas presentes em Metade cara, Metade mscara evocam memrias coletivas que foram herdadas por Eliane de sua av, que por sua vez herdou dos seus antepassados, assim, so memrias de processos acumulativos.

Com isso, seja na prosa ou no verso, ler Eliane Potiguara mergulhar pelos espaos dos Potiguara do Rio Grande do Norte, passar tambm pelos aprendizados enquanto ela estava trancada no quarto com sua av no Rio de Janeiro, perceber a luta identitria pela autoafirmao indgena, pensar tambm na luta pelos direitos humanos, das mulheres indgenas, problematizar o racismo e o preconceito e o genocdio dos parentes.

Assim, a escrita de Eliane Potiguara, e, aqui mais precisamente, a poesia dessa mulher indgena, metaforicamente, rio a ser mergulhado. Ao mergulharmos nos rios do Nordeste e do Sudeste atravs de suas memrias, podemos evidenciar que a poesia de Eliane Potiguara proclama a luta do seu povo e o valor identitrio de ser indgena, o que um dia esteve na memria (e ainda est) agora chega tessitura narrativa escrita e nos leva a banhos necessrios de ancestralidade.

 

 

Referncias

 

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informao. Traduo: Klauss Brandini Gerhardt. So Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

COSTA, Heliene Rosa da. Identidades e ancestralidades das mulheres indgenas na potica de Eliane Potiguara. 2020. 265f. Doutorado (Estudos Literrios) Universidade Federal de Uberlndia, Minas Gerais, 2020.

DE MELO, Carlos Augusto; COSTA, Heliene Rosa da. Identidades Femininas em Movimento na Potica de Eliane Potiguara. In: Revista Letrnica. Porto Alegre/RS, v. 1, n. 3, p. 361-374, jul./set. 2018.

 

DORRICO, Julie. A leitura da literatura indgena: para uma cartografia contempornea. Revista Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade Igarap, Porto Velho, vol. 5, n. 2, 2018, pp. 107-137.

FIGUEIREDO, Eurdice. Eliane Potiguara e Daniel Munduruku: por uma cosmoviso amerndia. Estudos de literatura brasileira contempornea. Niteri, n. 53, p. 291-304, jan./abr. 2018.

GRANA, Graa. Contrapontos da literatura indgena contempornea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edies, 2013.

HALBWACHS, Maurice. A memria Coletiva. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., 1990.

HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MUNDURUKU, Daniel. Escrita indgena: registro, oralidade e literatura: o reencontro da memria. In: Julie Dorrico, Leno Francisco Danner, Heloisa Helena Siqueira Correia e Fernando Danner (Orgs.). Literatura Indgena Brasileira Contempornea: Criao, Crtica e Recepo. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018, p. 81-83.

PINTO, Milena Costa. Literaturas de autoria indgena: Metade cara, Metade mscara. 2017. 132f. Dissertao (Mestrado em Estudo de Linguagens). Departamento de Cincias Humanas, Universidade do Estado da Bahia – Campus I, Salvador, 2017.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade mscara. Rio de Janeiro. 3. ed. GRUMIM, 2019.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo, leitura. Traduo de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

ZUMTHOR, Paul. La letra y la voz. Madrid: Ctedra, 1989

 

[Recebido: 16 ago 2020 – Aceito: 02 jul 2021]

 

 

... MESMO QUE NOS ARRANQUEM OS DENTES E A LNGUA.: A POTNCIA PER-FORMATIVA DA LITERATURA DE ELIANE POTIGUARA[43]

 

 

... EVEN IF THEY PULL OUR TEETH AND TONGUE.: THE PER-FORMATIVE POTENCY OF THE LITERATURE OF ELIANE POTIGUARA

 

 

Renata Daflon Leite[44]

https://orcid.org/0000-0002-2498-779X

 

 

Resumo: Discute-se o tema da ancestralidade nas narrativas da autora Eliane Potiguara, relacionando-o defesa de uma poltica da existncia, destacando, assim, o aspecto ritualizado dessa literatura que se desenvolve na tnue fronteira entre a oralidade e a escrita. Parte-se da escrita de Eliane Potiguara para apontar a conquista de um espao que vem se firmando enquanto prtica permanentemente articulada em redes de saberes indgenas como o Grumin – Grupo Mulher-Educao Indgena, surgido na dcada de 80, constituindo polticas de resistncia objetivas. Ressalta-se o quanto o carter social e tico da literatura indgena pode nos estimular a fazer aproximaes com o Campo de Estudos da Performance, por meio da investigao de Diana Taylor sobre Memria Cultural nas Amricas. Destaca-se o aspecto de inovao deste gnero literrio que nasce articulado com o movimento indgena, tendo a singularidade de afirmar-se enquanto criao que redimensiona os aspectos polticos da prosa, da poesia, de cartilhas educativas, do desenho e da literatura de testemunho, nos quais a ancestralidade fundamenta a ao poltica.

Palavras-chave: Literatura indgena. Ancestralidade. Performances polticas.

 

Abstract: It discusses the theme of ancestry in the narratives of the author Eliane Potiguara, relating with the defense of a politics of existence thus highlighting the ritualized aspect of this literature that develops in the tenuous border between orality and writing. It starts from the writing of Eliane Potiguara to point out the conquest of a space that has been established as a practice permanently articulated in networks of indigenous knowledge such as GRUMIN, the Group of Indigenous Women-Education that emerged in the 80's, constituting as an objective political resistance. It is noteworthy how much the social and ethical character of the indigenous literature can stimulate us to make approximations with the Field of Performance Studies, through the investigation of Diana Taylor on Cultural Memory in the Americas. The innovation aspect of this literary genre is articulated with the indigenous movement, with the singularity of being affirmed as a creation that reshapes the political aspects of prose, poetry, educational booklets, drawing and testimonial literature, where the ancestry grounds the political action.

Keywords: Indigenous Literature. Ancestry. Political Performances.

 

 

Foram muitas vidas violadas, culturas, tradies, religies, espiritualidade e lnguas. A verdade est chegando tona, mesmo que nos arranquem os dentes! O importante prosseguir. comer caranguejo com farinha, peixe seco com beiju e mandioca. olhar o mar e o cu. E reverenciar os mortos, os ancestrais. sonhar os sonhos deles e v-los. conviver com as manias de caboco, mesmo que sufocados pela confuso urbana ou as ameaas agrestes, porque na realidade so as relaes mais sagradas de nosso povo, porque so relaes com a terra e com o criador, nosso Deus Tup. Bonito vestir os trajes do Tor e honrar-se como se vestisse os trajes dos reis e senti-los como a expresso mxima das relaes entre o homem, a terra e Deus. sentir o sagrado e o universo. O importante crer e confiar mesmo que na noite anterior violaram nossa casa ou nosso corpo (POTIGUARA, 2004, p. 79-80).

 

A literatura como expanso de um grito estrangulado

 

A literatura indgena apresenta-se como um espao poltico-cultural em contnuo movimento, deixando-nos entrever uma relao tensional-criativa tanto entre escrita e oralidade, quanto entre poltica e ancestralidade, ao evidenciar em sua transmisso um processo em que as performances de resistncia poltica esto imbricadas nas performances rituais tradicionais. Um livro escrito por um autor indgena uma obra que apresenta a singularidade de ser delineada na tnue fronteira entre o oral e o escrito, fruto de uma individualidade autoral concebida na partilha e difuso de uma cosmoviso especfica, reafirmada pelo movimento indgena de fortalecimento identitrio, preservao e renovao cultural. Lanamos aqui um olhar para o livro Metade Cara, Metade Mscara da escritora indgena Eliane Potiguara, por evidenciar uma estreita relao entre ancestralidade e poltica, a comear pelo ttulo em referncia ao sinal em cor de jenipapo que a autora traz no rosto. Nascida com uma mancha roxa no olho direito, identificada pelos Kaiaps como marca de ancestralidade, a autora nos conta que teve sua espiritualidade reacendida pelo cacique Joo Batista Faustino, que lhe dizia que o pssaro Pitiguary cantava sempre que ela se aproximava. O canto mtico desta ave, conhecida por anunciar a chegada de quem tem uma misso na Terra, envolve, assim, as palavras da escritora numa espacialidade fecundada pelas mltiplas vozes coletivas da tradio redescoberta. Na apresentao da obra, feita por Daniel Munduruku, podemos ler que o movimento indgena nasce de um primeiro exerccio de expresso da prpria dor, de um momento de liberdade, ainda que ilusrio; um timo de futuro. Ele nos lembra que agora hora de ler as palavras que foram ditas ao papel, j que dos primeiros lderes muito se viu e ouviu, mas pouco se leu (MUNDURUKU, 2004, p. 15-16). interessante destacarmos tambm a introduo feita por Graa Grana, na qual o livro visto como exemplo de uma literatura que expande o seu grito, dos mais excludos, e tece a esperana de poder refletir os problemas dos povos indgenas e seus descendentes (GRANA, 2004, p. 17).

Defendemos aqui que a performatividade dessa escrita est em resgatar o espao sagrado da fala ancestral, reiterando prticas espiritualizadas, antes restritas a oralidade e defendendo o direito de exerc-las, por meio de um posicionamento poltico em que a subjetividade do autor est profundamente implicada, conforme podemos ler na epgrafe:

No dia em que eu conseguir abrir as pginas de minhalma e contar essas linhas de meu inconsciente coletivo – com alegrias ou dores, com prazeres ou desprazeres, com amores ou dios, no cu ou na terra – a sim, vou soltar a minha voz num grito estrangulado, sufocado h cinco sculos. Quinhentos anos, de pretenso reconhecimento de nossa cidadania, no pagam o sangue derramado pelas bisavs, avs, mes e filhas indgenas deste pas. Este dia certamente chegar, mesmo que eu esteja em outros planos (POTIGUARA, 2004, s/p).

A narrativa de Eliane traz tona memrias que foram apagadas pelo colonialismo e neocolonialismo, insistindo em nos fazer ver aquilo que ela denomina como sendo o incio da solido das mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 24). A autora Potiguara nos lembra os relatrios do sculo XVIII feitos por Padre Fernandes, em que 2 milhes de ndios Guaranis foram assassinados em 130 anos, exemplificando com o assassinato de Sep Tiaraju e mais de 10 mil Guaranis na batalha de 7 de fevereiro de 1756, prximo a Bag, sudoeste do Rio Grande do Sul:

Sua esposa Marina (Juara)[45], levaria s costas a menina recm-nascida que Sep jamais veria. Era o incio da solido das mulheres, motivada pela violncia, racismo e todas as formas de intolerncia, referentes inclusive espiritualidade e cultura indgenas (POTIGUARA, 2004, p. 23).

            Este episdio de extermnio dos Guaranis revela um imaginrio poltico racializado, que legitima a dominao dos civilizados europeus sobre os povos selvagens, proclamando, na subjugao do corpo e na coisificao do sujeito indgena, um princpio de organizao calcado no terror. Mbembe (2018, p. 35) comenta que as colnias so o local por excelncia em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violncia do estado de exceo supostamente opera a servio da civilizao. O exerccio de um poder margem da lei nas colnias provm da negao racial de qualquer vnculo entre conquistador e nativo. Os selvagens careceriam de humanidade e quando os europeus os massacravam no tinham conscincia de cometerem um crime. Na colnia, o direito soberano de matar no est sujeito a cdigos legais e compe uma ocupao sociopoltica, cultural e econmica, baseada na classificao das pessoas de acordo com diferentes categorias, donde emergem zonas e enclaves que do margem uma territorialidade restrita. Na contemporaneidade, o exerccio do direito de matar no se restringe s guerras territoriais de conquista-anexao da modernidade, espraiando-se em um mosaico de direitos de governar sobrepostos que visam a sujeio e a coero do colonizado (MBEMBE, 2018).

Quijano (2015, p.122-126) estabelece que a colonialidade do poder eurocentrado surge na constituio histrica da Amrica, culminando no processo de globalizao contempornea, calcada num novo padro de poder mundial que tem na raa o elemento fundacional de relaes de dominao exigidas pela conquista e, mais tarde pelas formas histricas de controle do trabalho, dos recursos e de produtos no mercado mundial capitalista. O projeto civilizatrio etnocntrico relocalizou as singulares identidades nativas dentro de um padro cognitivo associado ao passado e ao primitivo. Vemos em Quijano (2015, p. 127) que o eurocentrismo reduziu as heterogeneidades culturais astecas, maias, chimus, aimars, incas, chibchas, etc., circunscrevendo-as todas sob uma nica identidade: ndios. O mesmo vai acontecer com os escravos achantes, iorubs, zulus, congos, bacongos, etc, que a racionalidade colonialista homogeneizaria sob uma nica nomenclatura: negros. A construo do Estado-nao nas colnias europeias foi trabalhada contra a maioria da populao composta por negros, ndios e mestios. A colonialidade do poder ainda exerce seu domnio, na maior parte da Amrica Latina, contra a democracia, a cidadania, a nao e o Estado-nao moderno (QUIJANO, 2005, p. 135-136).

Eliane comenta que a invaso das terras indgenas, conveniente para polticas locais, causou desmatamento, assoreamento dos rios, poluio ambiental e diminuio da biodiversidade local, alm de trazer fome e empobrecimento compulsrio da populao indgena, levando muitas famlias migrao, ao trabalho semiescravo e a pssimas condies de moradias (favelas e casas de palafitas na periferia dos centros urbanos), trazendo distrbios mentais, alcoolismo e suicdio. Sua anlise crtica prope que a colonizao e a neocolonizao tambm refletem grupos de interesses religiosos, que tentam impor um paternalismo eclesistico como forma de racismo, desrespeitando as tradies culturais indgenas (POTIGUARA, 2004, p. 44).

            A autora Potiguara afirma a cosmoviso das mulheres como um instrumento de libertao do povo indgena que leva ao despertar do ser sutil, intuitivo e selvagem no sentido de uma essncia espiritual primeva. Sob esse prisma, o ato de criao um ato de amor e resgate do selvagem sagrado que j estava dentro de ns e no sabamos. A criao artstica em todas as suas vertentes, dentre as quais a literria, emerge como um vulco, uma (r)evoluo do esprito, um xtase: E esse nico ato de criao o suficiente para alimentar um oceano, assim como o leite doce e materno de uma jovem me o suficiente para trazer de volta um ser nascido prematuramente (POTIGUARA, 2004, p. 58).

Estamos diante de uma escrita-como-veculo, um soltar a voz num grito estrangulado, narrativa que serve como impulso ao de outras mulheres indgenas. Estes versos cor de jenipapo saltam da pele do papel, mostrando-nos a saga de uma mulher indgena discriminada, violentada e vtima de opresso social, mas que guarda consigo a tradio passada pelas mulheres de sua famlia, conduzindo-a ao que ela chama de retorno ao inconsciente coletivo (POTIGUARA, 2004, p. 27), quando entra para o movimento indgena e reacende sua ancestralidade. A palavra escrita, apreendida dentro de uma lgica de expanso de sentidos, foi por mim trabalhada em ndios Online: posts que no querem calar, ressaltando o carter no linear da significao potica endereada divindade. A densidade da autoria feminina indgena lida, portanto, numa apreenso deleuziana, na qual o corpo do poema se distende qual plat ininterrupto.[46] Dentro desta concepo inspirada em Deleuze e Guattari (1980), a escritura tem uma corporeidade vibrtil, distendendo-se em agenciamentos que transcodificam e transduzem as cosmovises indgenas, compondo foras centrfugas errantes por onde a voz de Eliane reverbera. Os gradientes de intensidade do poema ganham a colorao de uma escrita cor de jenipapo que se espraia pela superfcie textual, fazendo ecoar vozes e paragens que se inscrevem, como marcas na pele. A palavra rememora este grito estrangulado que habita, por exemplo, o poema Nossa Casa Ancestral:

At que um dia

Os nossos filhos mortos, nascidos, e renascidos

Possam relembrar do olhar, docemente,

Da luz envolvente

E da tinta de jenipapo

Cravada pelo Grande Esprito em nossa cara (POTIGUARA, 2004, s/p).

            O ato de ler percorre, assim, as potncias poticas de uma escrita-veculo, impulsionado no por uma significncia unvoca, mas sim pela multiplicidade de sentidos relembrados no poema. Estamos diante de uma escrita que ausculta o terreno da palavra renascida, abrindo-se para uma cartografia poltica da voz feminina indgena.

Podemos enxergar uma escrita-denncia no relato do episdio de assassinato do bisav da autora, consumado por ao da famlia inglesa colonizadora X:

Conta-se que ndio X, pai das meninas Maria de Lourdes, Maria Isabel, Maria das Neves e Maria Soledad, por combater a invaso s terras tradicionais do Nordeste, foi assassinado cruelmente, segundo palavras de uns velhos que encontrei um dia. Amarraram-lhe pedras aos ps, introduziram-lhe um saco cabea e o arremessaram ao fundo das guas do litoral paraibano (POTIGUARA, 2004, p. 24).

Crueldade que provoca a migrao da famlia para Pernambuco em 1928, quando nasce sua me Elza, filha de Maria de Lourdes, sua av violentada sexualmente aos 12 anos pelo colonizador. Pouco tempo depois, a famlia migra para o Rio de Janeiro, permanece por um tempo nas ruas, at que Maria de Lourdes, Ғndia, mulher, analfabeta, paraibana, nordestina e j separada do homem que lhe fez mais dois filhos (POTIGUARA, 2004, p. 24-25) consegue trabalho, estabelecendo-se numa zona degradante da cidade. Elza passa a tomar conta de seus dois irmos, e oito anos depois a jovem se casa e tem dois filhos, mas seu marido atropelado e ela repete o destino solitrio de sua me. Quando Eliane j tinha 6 anos de idade, sua av, que ela descreve como mulher indgena, analfabeta, paraibana, nordestina e agora quase mo-de-obra escrava nas feiras cariocas (POTIGUARA, 2004, p. 25), inicia seu processo de criao para ajudar sua me que trabalhava como faxineira numa firma, sendo educada e mantida a sete chaves num quarto semiescuro para preservar sua identidade moral, fsica e psicolgica, j que viviam numa rea socialmente comprometida. A av curandeira tratou de seus tumores alojados um no olho e outro no mamilo com uma mistura de minhoca amassada, teia de aranha e visgo de jaca. Quando conseguiam, comiam caranguejo e caldo de farinha. A menina cresceu ouvindo as histrias indgenas contadas por sua av e tias que, mesmo separadas de suas terras originais e violentadas cultural e fisicamente, souberam preservar seus laos com a cosmologia ancestral.

A encarcerada domiciliar cresce, torna-se professora primria, entrando em contato com a Filosofia da Educao de Paulo Freire e, incentivada por sua av e pelo cantor de origem indgena Charrua, Taiguara, com o qual se une em 1978, faz seu retorno ao inconsciente coletivo, visitando naes indgenas e perseguindo a histria de sua famlia. Ela entra para o movimento indgena e, por arquitetar polticas de resistncia denunciando o trgico impacto do arrendamento de terras indgenas, sofre abuso sexual, difamao e ameaas de morte, sendo levada a Polcia Federal e liberada aps uma ao de solidariedade do Pen Club da Inglaterra e da organizao internacional Escritores na Priso, ao indicada por Genaro Bautista, ndio mexicano coordenador da AIPIN (Agncia de Imprensa Indgena).

Eliane, ao narrar a sua histria, tira-a da penumbra e do processo de apagamento da memria, lembrando-nos, no entanto, que este apenas mais um dos casos de vtimas de violncia e racismo que permanecem invisibilizados, assim como a situao de mulheres indgenas que sofrem abuso sexual e se tornam vtimas de trfico de mulheres. Entramos em contato com os testemunhos que Eliane escutou ao longo de sua luta pela garantia dos direitos indgenas, como, por exemplo, o da velha louca que foi violentada sexualmente na infncia nos anos 1940 por um colonizador que depois fugiu, deixando-a a espera de seu homem-peixe: Eu estava em casa sozinha, cozinhando; entrou um homem-peixe em minha casa e me tomou o esprito e partiu (POTIGUARA, 2004, p. 44-45).

 

 

Outros arquivos, outros repertrios: o roteiro do descobrimento e a questo do apagamento

 

O Campo de Estudos da Performance pode nos ajudar a entrever as disputas presentes na construo da memria cultural por intermdio da literatura indgena, trazendo elementos para enfocar os aspectos criativos e polticos de inscrio e conquista da palavra indgena no mundo. Taylor (2013) nos diz que as performances funcionam como atos de transferncia vitais, transmitindo o conhecimento, a memria e um sentido de identidade social, por meio do que Schechner (2003, p. 27) denomina comportamento restaurado ou comportamento duplamente exercido. Este artigo trabalha a performance como uma lente metodolgica que alarga e distende as possibilidades de leitura crticas do livro de Eliane Potiguara, entendendo sua escrita como fruto da performatizao diria na esfera pblica de sua resistncia poltica e de suas identidades tnicas e de gnero, funcionando como um eco dos acontecimentos performativos, uma escrita-ao. Sua voz emerge como fruto das muitas memrias incorporadas transmitidas autora no colo de sua av indgena enquanto faziam juntas bolinhas de farinha e caldo de caranguejo com a mo, bem como de todo o sofrimento e discriminao que testemunhou ao longo da vida. Trata-se de uma escrita fruto de suas prticas incorporadas extremamente fecunda e potente, apontando para um despertar de conscincias.

A literatura indgena vai na contramo de uma escrita de mo nica, de um saber que ns, acadmicos, produzimos sobre eles, os ndios; trata-se de um espao de criao e circulao de conhecimentos que rompe o paradigma eurocntrico e logocntrico das universidades, apresentando-se como via de acesso a um outro modelo, afinal, as prticas culturais indgenas, profundamente marcadas pela transmisso do conhecimento incorporado, aparecero tambm na palavra escrita. Escrita-ao? Escrita-memria? Que espao essa literatura que expande o grito dos excludos reivindica ao contar sua prpria histria e que prticas colonialistas ela denuncia? Que territrios ela desestabiliza?

Diana Taylor, em seu livro O arquivo e o repertrio: performance e memria cultural nas Amricas, debate as noes de arquivo e repertrio como formas de transmisso de conhecimento, lembrando-nos, no entanto, que a memria arquivstica composta por textos e documentos no imune a mudanas, podendo ser ressignificada ao longo do tempo. O repertrio, por sua vez, encena a memria incorporada a partir do ritual, da performance e da oralidade, atos geralmente vistos como conhecimento efmero, no reproduzvel, mas imprescindvel sublinhar que as diferenas entre as duas formas apontam muito mais para um campo tensional do que um conjunto binrio antagnico.

Ao delinearmos a performance enquanto lente metodolgica e enfocarmos a literatura indgena enquanto escrita-ao, entendemos, enfim, que ela prope um movimento entre o livro e o campo, colocando em xeque a separao entre arquivo e repertrio, ao abarcar o repertrio de conhecimentos incorporados na forma textual do arquivo, no como objeto de anlise, mas por meio do fluxo performativo das palavras ditas ao papel, o livro sendo visto como campo performativo.

O texto literrio indgena funda um espao de fala que traz para o papel as memrias que antes estavam apagadas, apresentando uma dinmica em que a emergncia da palavra escrita leva a uma valorizao da palavra oral, em que as performances de resistncia, manuteno da tradio e luta pela garantia dos direitos indgenas, sustentam e impulsionam a propagao do arquivo textual e vice-versa.

A partir do campo de estudos da performance, esta textualidade pode ser lida para alm da palavra, enquanto atitude cultural, fruto de prticas culturais incorporadas verbais e no verbais. Taylor (2013) prope trabalhar com roteiros ao invs de textos, enquanto paradigmas de construo de sentidos que carregam um arcabouo porttil de repeties cumulativas que moldam e ativam dramas sociais. O roteiro coloca os espectadores dentro de sua moldura, enredando-nos em sua tica e poltica (TAYLOR, 2013, p. 67). Os poemas de Eliane transmitem conhecimento e memria ao propor a encenao de roteiros no-hegemnicos dotados de corporeidade, afinal, impossvel pensar sobre a memria cultural e a identidade como desincorporadas (TAYLOR, 2013, p. 134). O poema dedicado s vivas indgenas, No dia que mataram Maral Tup-Y (ou no dia que mataram nossos avs ou quando eles desapareceram), fala de uma tristeza cor de prata, de um amor doido, um amor das matas proclamado na solido de uma mulher que prossegue sua luta:

CONSCIENTE

Que jamais se cala...

Mesmo se lhe arranquem os dentes

Ou se lhe cortem a garganta gritante! (POTIGUARA, 2004, p. 73).

No captulo Angstia e desespero pela perda das terras e a ameaa cultura, s tradies, ns nos deparamos com a rememorao das palavras de Maral Tup-Y quando ele esteve no Sul do Brasil em 18 de abril de 1977: Eu no fico quieto no! Eu reclamo... Eu falo... Eu denuncio!.... Potiguara (2004) pontua que esta liderana foi assassinada em 25 de novembro de 1983, fato que remete ao assassinato do bisav da autora, levando-nos a encarar frente a frente a foto da bisav de Eliane, Maria de Lourdes, que aparece na dedicatria da obra, como uma mulher consciente e que jamais se calou, apesar de carregar uma tristeza cor de prata. A palavra incorporada desta escritora indgena composta de mltiplas camadas de sentido, fruto de experincias que vivenciou quando em 1995 viajou pelo interior da ndia com o Programa de Combate ao Racismo, descobrindo prticas de violncia s mulheres, que tinham como punio serem queimadas vivas pelos homens em suas prprias cozinhas, bem como de sua luta em defesa dos direitos reprodutivos da mulher indgena, de sua convivncia com velhos pajs e caciques de diversos povos indgenas, dos ensinamentos ancestrais passados por sua av ou ainda de seu trabalho na Subcomisso de Direitos Humanos da ONU em Genebra ou dos inmeros fruns nacionais e internacionais sobre direitos indgenas que participa.

A autora Potiguara nos convida a refletir sobre a estreita relao entre poltica e ancestralidade quando diz que a libertao do povo indgena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmoviso das mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 46), esclarecendo-nos que se trata de uma mulher selvagem, no no sentido primitivo da palavra, mas uma mulher sutil, uma mulher primeira, que no est condicionada a transmitir o esprito de competio e dominao da sociedade contempornea. Eliane prossegue e afirma que o poder dela outro: Seu poder o conhecimento passado atravs dos sculos e que est reprimido pela histria (POTIGUARA, 2004, p. 46). A criao artstica espiritualizada promove uma ao poltica de fortalecimento tnico-identitrio e a conquista de um espao de expresso, impulsionando o autor indgena a perpassar os sculos como um porta-voz do conhecimento ancestral.

Podemos considerar que o ato de escritura e propagao da palavra ritualizada no mundo seria capaz de promover um furo no territrio competitivo de alto rendimento-eficcia-produtividade, consistindo, assim, num ato essencialmente poltico. Eliane Potiguara prope a transformao do sofrimento e do esfacelamento, por meio da purificao do esprito no ato criador, neste sentido ela vai alm e afirma uma poltica da existncia:

Tudo isso simplesmente poltica, a poltica da existncia. CRIEMOS, ento... porque a criao um ato divino que tende a mudar conscincias, formar opinies, suavizar o individualismo que ronda as mentes (POTIGUARA, 2004, p. 58).

            Trata-se de uma literatura que faz emergir o espao sagrado da fala, mas no podemos esquecer que so as mulheres as guardis da palavra ancestral, como Potiguara (2004, p. 59) nos lembra: E a palavra delas sagrada como a terra que d o alimento ao prximo, alimento da CURA em todos os sentidos. Em seu poema Ato de Amor Entre os Povos, temos dois personagens, Jurupiranga e Cunhata, que perpassam o tempo e o espao para falar da sobrevivncia colonizao e neocolonizao. a saga de Cunhata que, aps vivenciar o desterro pelo assassinato de Jurupiranga, lembra-se de sua identidade caminhante gerada no fogo eterno do tero de seus avs, como enunciado nos versos da autora indgena:

Porque minha identidade pra renascer

A qualquer instante

Basta um fio de luz (POTIGUARA, 2004, p. 64).

Ao percorrermos a narrativa de Eliane, damo-nos conta da fecunda dcada de 80, quando ela se articula politicamente com outras lideranas com o intuito de resgatar e preservar a identidade indgena. O Grumin (Grupo Mulher-Educao Indgena), hoje Grumin/Rede de Comunicao Indgena surge como um espao de livre expresso, circulao de saberes e de organizao pela garantia dos direitos indgenas, concebido em 1978 e criado juridicamente em assembleia em 1987. No fim da dcada de 80, Eliane editou com o Grumin uma cartilha de apoio alfabetizao dos indgenas da etnia Potiguara, na qual podamos ler: ҃ preciso sorrir, preciso criar quando estamos na luta pela sobrevivncia e preservao cultural, mesmo que nos arranquem os dentes ou a lngua (POTIGUARA, 2004, p. 99). O material, com financiamento da UNESCO e apoio da UERJ, procurava discutir a realidade cultural de seu povo, incluindo a questo da discriminao a que este estava sujeito. O grupo teve o papel pioneiro de levantar a bandeira da invisibilidade da mulher indgena, bem como dos indgenas ressurgidos, discutindo temas como sade e direitos reprodutivos, questes vistas como pertencentes a feministas no-indgenas. Eliane Potiguara atuou incansavelmente, sobretudo entre 1988 e 1996, buscando promover o acesso informao e o exerccio de empoderamento, por meio de muitas estratgias descritas pela autora, tais como:

Cursos de Capacitao, Consultas Nacionais, os Seminrios sobre Famlia e Cidadania, sobre Direitos Reprodutivos, as feiras de artesanatos, os projetos de desenvolvimento comunitrio, as cartilhas, jornais, panfletos, livros de conscientizao contra o alcoolismo, contra a violncia, contra a desinformao, contra o analfabetismo, contra a ignorncia de no se querer preservar e resgatar a identidade indgena (POTIGUARA, 2004, p. 50).

Neste sentido, as atitudes culturais per-formadas ao longo da vida de uma liderana indgena no espao pblico aparecem restauradas e ressignificadas em sua escrita, sendo redimensionadas pela utilizao da poesia. Podemos dizer que o estigma de atraso cultural associado s culturas indgenas difundido no cotidiano, seja na comemorao romantizada do Dia do ndio nas escolas – onde as crianas da sociedade envolvente se cobrem de penas e cocares, desenhando canoas e arcos e flechas para satisfao dos pais e professores que multiplicam ad infinitum as mesmas poses, gestos, cenrios e indumentrias em murais imutveis; seja pelo uso indiscriminado do termo genrico ndio, que encobre o apagamento das nuances e multiplicidades culturais indgenas; seja na naturalizao de assassinatos, torturas, abuso sexual e violao de direitos humanos cada vez mais invisibilizados pela mdia majoritria.

Desta forma, o neocolonialismo sustentado pela incansvel encenao e reencenao do roteiro hegemnico da conquista que propaga antagonismos, dualidades, vencedores e vencidos, numa distribuio de cartas marcadas e papis estereotipados que mesmo j tendo uma concluso previamente determinada ainda encanta plateias no mundo inteiro, sustentando e fomentando a dominao. A cada novo espao praticado pelos indgenas, no apenas na literatura, mas tambm na msica, na poesia, no cinema, nos blogs, jornais, rdios e webrdios indgenas, o movimento de reafirmao identitria e tnica d mais um passo, caminhando na contramo do famoso roteiro da conquista ou roteiro do descobrimento, borrando indumentrias, papis e cenrios previamente desenhados para propor novos arquivos e repertrios praticados pelos agentes culturais indgenas.

Taylor (2013, p. 94) pontua que o roteiro do descobrimento no tem original: Ele sempre uma citao, uma cpia da ltima cpia. A carta de Colombo coroa espanhola, relatando sua primeira viagem ao Caribe em 1493, bem como o resumo do dirio de Colombo escrito por Bartolom de las Casas em 1552, desapareceram do arquivo, fundando uma documentao baseada na reproduo de cpias que performatizam eternamente o show inaugural estrelado pelo descobridor, diante de um pblico ilegtimo de espectadores no autorizados descritos na carta como Ғndios e um pblico legtimo de europeus que testemunham o movimento de fincar a bandeira no solo conquistado. O ato de transferncia inclui o rei e a rainha como destinatrios e beneficirios do ato de transferncia de posse, os espectadores no autorizados como objetos transferveis e Deus como espectador mximo da cerimnia (TAYLOR, 2013).

Em todos os lugares que os exploradores desembarcavam, repetiam-se variaes desse roteiro, autenticando a perspectiva do descobridor, como podemos ver na permanente encenao da conquista do Mxico:

O roteiro da conquista tem sido encenado repetidas vezes – desde a entrada de Corts em Tenochtitln at o encontro entre Pizarro e Ataualpa, ou a declarao de posse do Novo Mxico por Oate. Cada repetio acrescenta algo ao seu poder afetivo e explicativo at o resultado parecer uma concluso previamente determinada. Cada novo conquistador pode esperar que os nativos caiam a seus ps simplesmente devido fora do roteiro reativado (TAYLOR, 2013, p. 64).

            Podemos, no entanto, escolher seguir os roteiros da conquista como prticas reiteradas disseminadas em escolas e na mdia majoritria ou criticar os roteiros, apontando suas brechas, falhas e memrias submersas. Esta segunda opo aparece, por exemplo, quando Eliane sublinha a particularidade do incio da solido das mulheres, apontando no roteiro histrias que foram silenciadas pela prtica de reativao de um roteiro padro, trazendo para o foco vozes que foram caladas, como a da criana-velha-louca que passou a vida esperando seu homem-peixe colonizador, ou a de muitas Marinas, Juaras e Marias de Lourdes obrigadas a migrar com suas crianas s costas para vivenciar o racismo cotidiano. Que sistemas significantes e econmicos, porm, mantm essas vozes silenciadas? Taylor prope que, ao identificarmos o roteiro, reflitamos sobre a eficcia de sua re-encenao:

Como um sistema paradigmtico de visibilidade o roteiro tambm assegura a invisibilidade. Ainda h mais razo para nos perguntarmos, ento, por que esse roteiro continua a ser reencenado e por que ele ainda exerce tanto poder. (TAYLOR, 2013, p.92)

            Podemos depreender de Taylor (2013, p. 100-101) que o roteiro situa o descobridor como aquele que v e que nunca se sente obrigado a se descrever ou a se situar; j os amerndios, apesar de presentes fisicamente, so reconhecidos apenas para serem desaparecidos nesse ato. A objetificao do corpo primitivo reafirma a supremacia cultural do sujeito que v, legitimando toda uma indstria de especialistas em lnguas ou etnografia que, assim como Colombo, se sentem capazes de interpretar as performances do nativo. Diante da reprodutibilidade de corpos no falantes institudos pelos roteiros hegemnicos, a voz de Eliane nos apresenta um roteiro no-hegemnico que difere da unilateralidade da conquista dos dominantes sobre os dominados para situar-se no como aquela que v, mas como aquela que per-forma a prpria memria a partir das experincias vivenciadas. O assassinato do ndio X pela famlia colonizadora inglesa X reencena o assassinato de Sep Tiaraju em 1756; da mesma forma, as solides de Maria de Lourdes e Marina (Juara) rememoram o assassinato de Maral Tup-Y e a dor das vivas indgenas que jamais se calam, mesmo se lhe arranquem os dentes. A cartilha de alfabetizao, editada pelo Grumin no fim da dcada de 80, modifica os roteiros hegemnicos de apagamento, subvertendo letramentos verticalizados exteriores realidade cultural Potiguara, para propor a discusso da discriminao e a conscientizao poltica. Eliane testemunha, sujeito e participante do ato de transferncia vital da memria cultural passada em sua literatura. Ela no apenas uma observadora impassvel, pois, ao descrever o mundo o modifica no ato divino da criao, propondo nas simbologias das personagens Cunhata e Jurupiranga novas espacialidades para as identidades indgenas ressurgidas.

 

 

Re-inventando a Ancestralidade, apesar das Performances de Poder

 

            Em oposio s constantes performances de poder, encontram-se as memrias incorporadas que compem a identidade indgena, sendo continuamente performadas a cada ao ritual e cotidiana, trazendo em si a continuidade da histria ancestral. Os roteiros da conquista representam muitas vezes as performances de dominao e opresso, baseadas e sustentadas pelo antagonismo e pela dominao do Eu sobre o Outro. As performances rituais so movidas por uma necessidade inelutvel de contnua reafirmao identitria atravs da honra memria dos ancestrais de um povo. A autoafirmao tnica no se faz em oposio ao Outro, mas sim pelo encontro com uma cosmoviso que, por estar acima de qualquer binarismo, sabe apenas seguir seu percurso e manter sua fora motriz e vital, como podemos ler nesses versos do poema Identidade Indgena:

Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!

Mas caio da vida e da morte

E range o armamento contra ns.

Mas enquanto eu tiver o corao aceso

No morre a indgena em mim

E nem tampouco o compromisso que assumi

Perante os mortos

De caminhar com minha gente passo a passo

E firme, em direo ao sol.

Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro

Carrego o peso da famlia espoliada

Desacreditada, humilhada.

Sem forma, sem brilho, sem fama. [...] Mas a conscincia se levanta a cada murro

E nos tornamos secos como o agreste

Mas no perdemos o amor.

Porque temos o corao pulsando

Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.

Eu viverei 200, 500 ou 700 anos

E contarei minhas dores pra ti

Oh! Identidade (POTIGUARA, 2004, p. 102-103).

A identidade , ento, o que mantm o pulsar do corao e a conscincia indgena, no sendo, de forma alguma, fruto de um roteiro reencenado para dominar o Outro. Apesar do peso da famlia espoliada, a reconstruo identitria traz em si a fora motriz que permite caminhar em direo ao sol e honrar o compromisso assumido perante os mortos. a ancestralidade que mantm a identidade indgena e esta que reativa perpetuamente a memria ancestral. Quando em 1990 Eliane vai ao 49 Congresso dos ndios Norte-Americanos entregar um dossi sobre a situao indgena brasileira, ela descreve ter experimentado, em meio aos 1.500 indgenas presentes com seus trajes mesclados a milhares de penas de guia, em horas e horas de danas, o que ela chama de as msicas e os tambores dos sculos, gerando uma outra sensao espao-temporal: Senti o espao compartimentar-se, transformando-se em fagulhas do tempo, pequenas gotas areas coloridas que me enfeitiaram e me colocaram em contato com os ancestrais (POTIGUARA, 2004, p. 111). Segundo a autora Potiguara, nesta ocasio foi enviada, pela primeira vez, uma moo s Naes Unidas sobre o extermnio dos Povos Indgenas do Brasil. Por meio desse exemplo, podemos entrever que a ao poltica no apenas a moo enviada ONU e o dossi de denncias, mas tambm os sons imemoriais dos tambores dos sculos, afinal, a afirmao de uma poltica da existncia o que permite a afirmao identitria.

Em Metade Cara, Metade Mscara, entramos em contato com uma escrita que reitera, na poesia, no testemunho e em narrativas, os diversos movimentos de uma ao poltica que caminha junto a uma esttica da existncia, constituindo-se tanto de denncias, organizao de grupos de discusso, conscientizao, luta pela garantia de direitos polticos e representatividade junto a mecanismos internacionais, quanto de exaltao cultural e ancestral.

A literatura indgena surge enquanto um espao praticado, em que a agncia cultural de seus autores reafirma a processualidade deste territrio essencialmente no-normativo, mas sim afirmativo de uma permanente poltica da existncia, onde a escrita indgena, enquanto fruto e reflexo da transfigurao da dor em criao, sustenta e mantm tanto a preservao da oralidade, quanto a renovao da palavra ancestral inscrita no papel ou no ambiente digital das novas tecnologias. A dinmica de um corpo orgnico e vivo da cultura indgena continuamente presente nessas criaes literrias, dilui as fronteiras entre escrito e oral, poltica e ancestralidade, arquivo e repertrio, preservao e renovao, dissolvendo os binarismos que sustentam um projeto societrio logocntrico.

A potncia potica da voz de Eliane compe no uma etnografia descritiva do sujeito indgena urbano, mas sim a corporificao de sua imagem diante de nossos olhos, a partir de relatos que apontam para a condio dos indgenas desplazados, denunciando sua invisibilizao social. Sua escrita cor de jenipapo no nos deixa tapar os olhos para a misria e o abandono de um indiozinho que escorria pelo bueiro diante da autora, metade de seu corpo superior debruava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte jazia cansada, escorrendo pelo esgoto urbano (POTIGUARA, 2004, p. 93). O relato nos traz um menino de dez anos derretido feito um relgio de Salvador Dal, com o corpo magro e imundo escorrendo pelo bueiro, olhinhos de tigre, roupas de mendigo, catando centavinhos. A voz de Eliane nos permite ouvir a voz do indiozinho que, indagado pela autora, responde que os meninos de rua lhe roubaram o dinheiro que conseguiu pedindo. Seu tero de me rosnou, afinal, ele no se considerava um menino de rua e ela estava diante de uma nova classe social criada pela pobreza: a de pedinte indgena.

Escrita-denncia e cosmopoltica literria que nos transporta para o plano da fala ancestral cravada na nervura da folha de jenipapo, que lhe traa os contornos. Escrita que se faz terra, signo que transcende a palavra, distendendo-a at alcanar a rtmica do Tor Potiguara e erguer-se em sonho revelado atravs de textos, oraes, poesias e articulaes polticas dentro do Grumin. Estamos diante de uma escrita cosmovisiva que nos abre outras dimenses de conscincia moral, tica, poltica e espiritual. Eliane nos lembra que a palavra da mulher indgena, condicionada pelo racismo e pelo medo, sobrevive porque sagrada como a terra, alimento da cura em todos os sentidos. A personagem Cunhata, aps o sofrimento da perda de suas terras, de sua famlia e de sua conscincia de mulher indgena, no conseguindo saber o paradeiro de seu homem, v sua dor refletida em pginas de desterro, que revolvem a identidade perdida na inrcia da prpria existncia ou em versos que falam da agonia dos Pataxs ou do sentimento Pankararu de ser marginal das cidades, das famlias e das palhoas. Ao retratar as gotas rubras do sangue louco e desvairado de um guerreiro desprendido durante o perodo da colonizao, no poema Tocantins de Sangue, a linguagem potica transpe o corpo indgena colonial para o contemporneo, conclamando em tom de denncia:

Banha o suor do mundo

Com tua luta

Junta lquidos, faz crescer

Nossa gente pobre

Nossa vida amarga

Ns _ Decadentes!

Indgenas, no...

Indigentes.

(POTIGUARA, 2004, p. 60).

Esta fora cosmopoltica aponta para uma palavra fmea que cura porque reacende o inconsciente coletivo ancestral, beijando as cicatrizes do mundo. Sua letra se levanta para percorrer com seu corpo palpvel, toda uma trajetria de preconceito no poema Neste sculo de dor, resistindo espoliada na condio de mulher em febre pra subexestir, Pra que matem nossos filhos / E os joguem nas valas (POTIGUARA, 2004, p. 61). Em meio a tanta dor, a materialidade de sua voz de mulher indgena conclama Unio das Naes Indgenas e a uma busca da identidade adormecida, dizendo no poema Desiluso: NO morte da famlia / NO perda da terra / NO ao fim da identidade (POTIGUARA, 2004, p. 64). A memria incorporada de Cunhata, enfim, se rasga, entoando cnticos de um amor louco e desvairado no poema Velho ndio, ao mirar a imensido dos sculos por meio dos olhos do amante. Estas palavras ditadas ao papel nos contam que certa vez o Grande Esprito disse a Cunhata: Vai ave-menina e mulher! Cria asas e enxergue; um dia, quem sabe, seremos livres! (POTIGUARA, 2004, p. 67). Eliane-Cunhata cria asas e luta em 1988 dentro da Assembleia Constituinte por entre bocas, dentes, sorrisos, entre o cheiro do vermelho do urucum que besuntava os cabelos dos Kaiap, liderados por Megaron, as palhas ressecadas dos indgenas do Nordeste, os olhares de lince dos Terena e Tukano, os olhares saltitantes dos Guarani e o rosto pintado de jenipapo de Ailton Krenak. Personagens histricas e mticas perpassam as pginas da autora, compondo a trama poltica da existncia, entre suas memrias da Constituinte dedicadas ndia guerreira Dona Marta Guarani e sua lembrana de tia Severina, anci guerreira Potiguara, a quem a escritora dedica o poema O Segredo das Mulheres, publicado em 1984 na cartilha de apoio alfabetizao indgena editada pelo Grumin.

A textualidade aqui se faz textura, demarcando um territrio, fincando posio: O indgena precisa sair das paredes, dos museus, das salas de exposio! (POTIGUARA, 2004, p. 94). A voz de Eliane ecoa a autodeterminao dos povos, lembrando-nos da luta poltica travada pelo movimento indgena internacional para a criao do Frum Permanente para Povos Indgenas da ONU. Metade Cara, Metade Mscara faz uma referncia histrica importante a associaes que deram um pontap inicial na ruptura com organizaes de cunho paternalista, como a Coiab (Coordenao indgena da Amaznia Brasileira), inicialmente coordenada por Manoel Moura Tukano, e a Unind (Unio das Naes Indgenas), criada por Marcos Terena, Mrio Juruna, lvaro Tukano, Lino Miranha, entre outros. Eliane nos lembra que territrio cosmologia e no apenas um pedao ou vastido de terras, integrando a cidadania dos povos ressurgidos, como os Pitiguary, no Cear, os Catkin, no Alagoas, ou ainda os Porubor de Rondnia, bem como os ndios-descendentes, em sua luta individual por sua territorialidade indgena.

A escrita Potiguara de Eliane, filha de um povo comedor de camaro, volteia e dana envolvente no poema Cunhata, surgindo plena de odores, gostos e sensaes tteis. O leitor se banha nas guas do Orinoco, espreitando o massacre de Potosi e o canto do pitu, as letras se movimentam na cadncia de um xaxado, ao sabor do churrasco, do chimarro, de uma saia de chita e um chocalho bonito que integra a Zamacueca dos Andes e o Tor do Serto. A escrita se faz audvel, sonora e Eliane nos reparte carne-de-sol, baio temperado, aa geladinho e uma rede quentinha, onde o leitor se deita, transportando-se para as libertas Ilhas Galpagos ou para o Amazonas, ao som das zabumbas e das zampoas. Cada conta de letra de Metade Cara, Metade Mscara vai tecendo um colar de miangas repleto de simbologias e matizes por onde a palavra passeia fio a fio, entre coloraes e estilos literrios. A poesia entremeada pela prosa na qual as personagens Cunhata e Jurupiranga perpassam debates em torno dos direitos reprodutivos da mulher e da luta dos indgenas ressurgidos, dialogando com trechos de uma cartilha de alfabetizao indgena, que prope ensinar no um letramento enrijecido, mas a corporeidade da letra em seu adensar-se no mundo, onde a leitura e a escrita aparecem como matrias de expresso cosmopoltica.

 

 

 

 

Consideraes finais

Entrevemos na literatura de Eliane Potiguara o espao sagrado da fala inscrito por xams, curandeiras, visionrias, guerreiras e inmeras mulheres indgenas violadas e subjugadas pela ao colonizadora. O fazer literrio materializa um grito estrangulado, perpetuando a memria ancestral da identidade indgena reconfigurada no fluxo performativo das vozes ditas ao papel, dando corpo a falas submersas. As memrias incorporadas na textualidade de Eliane se opem s performances de poder, testemunhando uma poltica da existncia na qual a dor se transfigura em criao e potncia potica.

A escritura feminina indgena surge como cura frente ao esfacelamento, promovendo a reconstruo identitria ao reencenar o mito de Cunhata e Jurupiranga, personagens lendrios impulsionados pela fora motriz de uma identidade caminhante. O mito se encarna na escrita-testemunho dos relatos sobre a av da autora, Maria de Lourdes, violentada sexualmente pelo colonizador e obrigada a migrar com a famlia para o Rio de Janeiro. Adentrando a escritura desta autora Potiguara, percorremos mltiplas camadas de sentido, em que a histria de sua av, reencena o incio da solido das mulheres, cuja origem remete ao extermnio dos Guaranis ainda no sculo XVIII, quando Marina, esposa do lder Sep Tiaraju migra sozinha com sua filha nos braos aps o assassinato do esposo.

A incansvel trajetria da autora na garantia dos direitos indgenas redimensiona e ressignifica sua escrita, dando-lhe a dimenso de fala per-formativa que trilha um caminho oposto reencenao dos roteiros hegemnicos, apontando em meio normatividade estabelecida, possveis brechas por onde ecoam mltiplas vozes indgenas capazes de propor outros roteiros e percursos. Estamos diante de uma literatura incarnada, na qual a memria cultural tem a potncia potica de uma poltica da existncia, que cultiva a palavra da mulher indgena como elemento de cura espiritual.

 

 

Referncias

 

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MBEMBE, Achille. Necropoltica. So Paulo: N-1 Edies, 2018.

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TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertrio: performance e memria cultural nas Amricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

 

[Recebido: 04 ago 2020 – Aceito: 9 mar 2021]

 


 

AUTOBIOGRAFIAS DE MULHERES CORDELISTAS; UMA CONTRIBUIO PARA A NOVA HISTORIOGRAFIA DO CORDEL

 

WOMEN CORDELISTS AUTOBIOGRAPHY : A CONTRIBUITION TO THE NEW CORDELS HISTORY

 

                                                                                       Maria Gislene Carvalho Fonseca[47]

http://orcid.org/0000-0003-3201-1946



Resumo: Este artigo trata das narrativas autobiogrficas de trs poetas cordelistas: Julie Oliveira, Izabel Nascimento e Auritha Tabajara. Discutimos aqui sobre como, ao narrar a si mesmas, elas reescrevem a histria do cordel. Para isso, utilizamos como referncia a Teoria do Ponto de Vista de Hill Collins (2019, 2019a) e embasamo-nos metodolgica e epistemologicamente nas perspectivas do feminismo decolonial apontadas em Curiel (2020), Lugones (2019) e Anzalda (2019). Para discutir a dimenso do gnero no cordel, apoiamo-nos nos trabalhos de Santos (2020) e Lemaire (2017, 2018, 2020). Com isso, observamos que preciso nos voltarmos para as biomitografias e pontos de vista das mulheres cordelistas para sermos capazes de refletir sobre o universo do cordel.

Palavras-chave: Cordel. Mulheres. Autobiografias.


Abstract
: This article deals with the autobiographical narratives of three poets: Julie Oliveira, Izabel Nascimento and Auritha Tabajara. We discuss here how, in narrating themselves, they rewrite the history of the cordel. For that, we used Hill Collins' Theory of Point of View (2019, 2019a) as a reference and based methodologically and epistemologically on the perspectives of decolonial feminism pointed out in Curiel (2020), Lugones (2019) and Anzalda (2019). To discuss the gender dimension in the cordel, we rely on the work of Santos (2020) and Lemaire (2017, 2018, 2020). With that, we observed that It is necessary to turn to the biomitographs and points of view of the women cordelists in order to be able to reflect on the universe of the cordel.

Keywords: Cordel. Women. Autobiographies.

 

 

Introduo

 

Historicamente, as narrativas produzidas por mulheres vm sendo apagadas da historiografia oficial – produzida por homens acadmicos, brancos, a partir de conhecimentos eurocentrados. No caso do cordel, isso no to diferente. As narrativas tambm priorizam os pontos de vista masculinos, de homens que muitas vezes esto buscando aceitao do universo acadmico, e que invisibilizam as produes de mulheres. Sem falar nas formas como as mulheres so tratadas enquanto suas personagens: estereotipadas como doces e belas, ou como descontroladas e feias.

A forma possvel de reverter essa situao a partir do reconhecimento, valorizao e visibilidade das produes de mulheres. As cordelistas so parte importante e fundamental para a histria do cordel, para o entendimento de suas perspectivas de tradio e suas produes reescrevem aquilo que costumamos aprender sobre este universo. Ao olharmos para as autobiografias das mulheres poetas, estamos olhando para sua prpria vida, mas tambm para suas aes que afetam e que constituem aquilo que o cordel contemporneo.

Neste artigo, observamos como isso se d em cordis autobiogrfico das poetas Julie Oliveira, Izabel Nascimento e Auritha Tabajara. O objetivo no fazer uma comparao entre as histrias, mas identificar como cada uma, ao seu modo, ao contar sobre suas vidas e trajetrias artsticas, tambm registram o tempo e contam a histria do cordel.

Para essa reflexo, temos como base terica os estudos sobre a mulher no cordel de Santos (2020) e Lemaire (2017, 2018, 2020) articulados com a Teoria do Ponto de Vista de Hill Collins (2019). Nossa anlise est ancorada em uma metodologia feminista decolonial, descrita por Curiel (2020), e no Pensamento de Fronteiras, proposto por Anzalda (2019), que nos permitem reconhecer as vozes das poetas como forma de conhecimento fundamental para o entendimento aqui proposto, buscando nos versos aqueles elementos que desestabilizam as estruturas narrativas patriarcais.

 

 

A teoria do Ponto de Vista e as contribuies do pensamento feminista negro de Hill Collins para pensar o trabalho das mulheres cordelistas

 

O pensamento feminista negro tratado por Hill Collins quase um chamamento para todas aquelas cuja produo de conhecimentos est fora dos centros de reconhecimento. desse pensamento que emerge a discusso sobre o ponto de vista, conforme nos apresenta ngela Figueredo. O pensamento feminista negro um conjunto de experincias e ideias compartilhadas por mulheres negras que envolve interpretaes tericas da realidade a partir de um ponto de vista (FIGUEREDO, 2017, p. 3) Trata-se de uma convocao para que todas contemos as nossas prprias histrias a partir de nossas experincias – muitas vezes subalternizadas por um sistema que hierarquiza saberes e modos de transmisso.

Para Patrcia Hill Collins, a luta das mulheres afro-americanas para terem suas vozes ouvidas desenvolveu um ponto de vista autodefinido e coletivo sobre a feminilidade negra (HILL COLLINS, 2017, p. 3) e isso ajudou a responder sua representao nos discursos dominantes. Trata-se de uma ao que nos ajuda a pensar sobre as estratgias de visibilidade de outros grupos, externos queles que se propem universais, como o caso das mulheres poetas cordelistas do Nordeste brasileiro.

Para refletirmos sobre a produo dos cordis autobiogrficos de Izabel, Julie e Auritha como narrativas que tecem tambm a historiografia do cordel, partimos das discusses de Hill Collins (2019) sobre a teoria do ponto de vista. A autora afro-americana traa essa reflexo para falar sobre a importncia do ponto de vista das mulheres negras ao contarem suas prprias histrias. Tomamos de emprstimo tal reflexo para falarmos sobre uma manifestao cultural que marginalizada a partir do olhar do cnone letrado e academicista.

A histria oficial do cordel, defendida pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel e por centros de estudo, como a Fundao Casa de Rui Barbosa, vem sendo contada a partir de uma perspectiva masculinizada, que trata a poesia de cordel como um ambiente conservador e localizado no espao destinado ao popular no mbito da literatura. Enquanto no encontrarmos espaos para que as mulheres poetas contem suas histrias, os seus pontos vistas, no poderemos desestabilizar essa narrativa normatizadora.

As mulheres cordelistas so silenciadas em diversos momentos: quando no podem usar seus nomes como autoras de seus versos; quando no podem participar de disputas e pelejas; quando os homens afirmam que so poucas e raras as mulheres cordelistas; quando eles negam o sexismo no ambiente da poesia; quando reservam uma mesa apenas, como uma espcie de cota que no pode se extrapolada, para a participao de mulheres nos eventos. a partir desses silenciamentos que aqueles que dominam a narrativa historiogrfica conseguem se impor. E contra isso que nos posicionamos.

Assim, a partir de Hill Collins (2019, 2019a), a teoria do ponto de vista nos ajuda a refletir sobre o poder da autodefinio. Segundo a autora, as vozes das mulheres afro-americanas no so de vtimas, mas de sobreviventes (HILL COLLINS, 2019a, p. 273) e isso fundamental para pensarmos sobre uma nova escrita da histria. Precisamos olhar para as diversidades das experincias, que produzem diferentes narrativas. As vozes que se sobressaem nas relaes de poder, que criam e reverberam tradies, no podem ser tomadas como as nicas possveis. E contra isso que as vozes das mulheres poetas que tratamos aqui se mobilizam.

Deste modo, elas transformam silenciamentos em linguagem materializada, o que contribui para evidenciar as relaes de opresso contra as quais as mulheres poetas de cordel lutam. Suas falas reivindicando espaos mais respeitosos para seus trabalhos, como durante o movimento #cordelsemmachismo de 2020, geraram reaes de represlias que exigem estratgias cuidadosas de ao. Nestes termos, essas narrativas, que emergem de movimentaes e inquietaes, desafiam as opresses e criam outras histrias possveis.

Segundo Hill Collins (2019a), a autodefinio, que decorre das narrativas de si, rejeita os pressupostos de que aqueles em posies poder teriam autoridade e legitimidade para interpretaes de uma realidade universalizante. Essa discusso aponta para uma urgncia fundamental ao discutirmos questes de gnero no que dizem respeito interseccionalidade de raa, de sexualidade e de classe social. Quando falamos sobre as mulheres poetas de cordel, consideramos sua diversidade interna. So mulheres negras, indgenas, gordas, lsbicas, bissexuais que so frequentemente silenciadas em seus espaos de circulao e que tm no cordel um modo de expresso. Mas, nesse ambiente, elas encontram outros desafios e necessidades de mobilizaes. Deste modo, imprescindvel que suas experincias narradas a partir de suas prprias vozes – aqui consideradas a partir de cordis autobiogrficos – sejam definidoras de outras histrias possveis sobre o universo do cordel.

Pensar pela dimenso do feminismo negro e a teoria do ponto de vista no significa que estamos igualando as experincias distintas de opresses pelas quais passam as mulheres. Pelo contrrio. A partir desse pensamento, fundamentamos as especificidades das agendas e demandas que as mulheres, individualmente ou em grupo, convocam. Rejeitamos um ideal universalista da mulher a partir do que Lugones (2019) considera como um problema da modernidade europeia: o binarismo de gnero. Em vez disso, entendemos o que prope Hill Collins (2017):

Inserindo o adjetivo negro desafia a brancura presumida do feminismo e interrompe o falso universal desse termo para mulheres brancas e negras. [...] O termo feminista negra destaca as contradies subjacentes brancura presumida do feminismo e serve para lembrar s mulheres brancas que elas no so nem as nicas nem a norma feministas (HILL COLLINS, 2017, p. 13-14).

 

A partir destas discusses, podemos entender o poder da autodefinio para a construo de outras narrativas historiogrficas possveis, que nos levam a transformar a escrita da histria do cordel. Que passa a ser um espao que, em sua diversidade, evidencia e se define tambm pelos trabalhos desenvolvidos pelas mulheres. Neste sentido, narrar a si articula relaes de poder que so retomadas e assumidas pelas mulheres que contam suas prprias histrias.

 

 

Feminismo decolonial

 

Como uma investigao que visa contribuir para uma reescrita da histria do cordel, partimos de um posicionamento epistemolgico feminista e decolonial (ORTIZ OCAA, 2019). Segundo Curiel (2020, p. 121), as metodologias decoloniais nos oferecem um pensamento crtico para entendermos a especificidade histrica e poltica de nossas sociedades, [...] questionam narrativas da historiografia oficial e mostram como se configuram hierarquias sociais. Entretanto, esta autora aponta que, em uma perspectiva feminista decolonial, a partir de Lugones (2019), as colonialidades no so definidas apenas por operadores raciais, mas tambm por dimenses de gnero e de sexualidade.

Ainda nessa perspectiva, Glria Anzalda prope um pensamento a partir de uma conscincia mestia, como algum que rompe as fronteiras e vive o trnsito que entende a mestia como um produto da transferncia de valores culturais e espirituais de um grupo para outro (ANZALDA, 2019, p. 324). Este entendimento nos permite pensar o saber a partir de posies que no podem (ou no deveriam ser) hierrquicas. Sendo construdo de formas conjuntas, em parcerias, o saber se faz nas fronteiras entre o eu e o outro/a outra.

La mestiza tem de se mover constantemente para fora das formaes cristalizadas – do hbito; para fora do pensamento convergente, do raciocnio analtico que tende a usar a racionalidade em direo a um objetivo nico (um modo ocidental). Para um pensamento divergente, caracterizado por um movimento que se afasta de padres e objetivos estabelecidos, rumo a uma perspectiva mais ampla, que inclui, em vez de excluir (ANZALDA, 2019, p. 325).

 

Anzalda (2019) prope que pensar como mestia no se trata de uma mera juno de pedaos, tampouco uma juno de foras opostas. Para a autora, a conscincia mestia rompe com aspectos unitrios e universalizantes e tem o trabalho de desmontar as dualidades sujeito-objeto, mostrando de que maneira essa dualidade pode ser transcendida.

Quando pensamos na historiografia do cordel tradicionalmente compartilhada por instituies oficiais, como a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que colocam poetas homens como protagonistas na produo de folhetos sob o argumento de que haveria poucas mulheres fazendo poesia, nos vemos diante da necessidade de alguns rompimentos. H um silenciamento das vozes das mulheres e das narrativas que destacam sua participao – inclusive daquelas decorrentes de quando se fazia necessrio que mulheres assinassem seus folhetos com pseudnimos masculinos, como o caso de Maria das Neves, que assinava com o nome de seu marido, Altino Alagoano.

Deste modo, pensando a partir de uma conscincia mestia (ANZALDA, 2019), inquietamo-nos com essa invisibilidade imposta s mulheres. Imposio que parte de homens, que tambm so excludos de uma literatura cannica, que almejam um micropoder, cuja existncia se faz no exerccio de apagamento dos conflitos e disputas de sentidos presentes e em trnsito nas fronteiras das definies do cordel.

Nossos escritos devem, ento, ser modos de articular nossas prprias inquietaes e servirem para evidenciar desestabilizaes de narrativas tidas como dadas. Deste modo, ao entender que a luta mestia , acima de tudo, uma luta feminista, Anzalda (2019, p. 330) considera que apesar de sabermos de onde vem o dio masculino e a consequente violncia contra as mulheres, ns no desculpamos, no toleramos e no iremos mais tolerar. Segundo a autora, preciso coragem para romper com a sujeio que imposta s mulheres em estratgias narrativas de ternura, como um sinal de vulnerabilidade. Uma forma possvel de rompimento quando passamos a contar as nossas prprias histrias, como vemos as mulheres poetas fazerem.

 

Atravs de nossa literatura, arte, corridos e contos populares, temos de compartilhar nossa histria com elas/eles, para que quando organizarem comits de ajuda aos navajos ou aos agricultores chicanos ou a los nicaraguenses, no rejeitem algumas pessoas por causa de seus medos e ignorncias raciais. Elas/eles entendero que no esto nos ajudando, mas seguindo nossa liderana (ANDALZA, 2019, p. 332).

Precisamos retomar a possibilidade de narrarmos a ns mesmas, desestabilizando aquelas histrias que foram contadas como forma de compensar seus prprios defeitos (LUGONES, 2019, p. 332), como formas de exercer poderes de uns grupos sobre outros. Nestes termos, Lugones (2019, p. 361) aborda uma colonizao da memria e prope que o termo colonialidade nomeia

No apenas uma forma de classificar pessoas atravs de uma colonialidade do poder e dos gneros, mas tambm para pensar sobre o processo ativo de reduo das pessoas, a desumanizao que as qualificam para a classificao, o processo de subjetivao, a tentativa de transformar o colonizado em menos que humano.

 

Anzalda (2000, p. 230) tambm discute os desafios de se fazer ouvir sendo mulher, mestia, queer. Para a autora, eles combatem e atacam as mulheres de cor, porque desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortveis imagens estereotipadas que os brancos tm de ns. A escrita das mulheres, ento, aparece como uma afronta e uma forma de resistncia.

Ns anulamos, ns apagamos suas impresses de homem branco. Quando voc vier bater em nossas portas e carimbar nossas faces com ESTPIDA, HISTRICA, PUTA PASSIVA, PERVERTIDA, quando voc chegar com seus ferretes e marcar PROPRIEDADE PRIVADA em nossas ndegas, ns vomitaremos de volta na sua boca a culpa, a auto-recusa e o dio racial que voc nos fez engolir fora. No seremos mais suporte para seus medos projetados (ANZALDA, 2000, p. 231, destaques da autora).

 

isso o que fazem as mulheres poetas quando se organizam para contarem suas prprias histrias. Seja nos folhetos e em suas narrativas autobiogrficas, seja ao mobilizarem-se por transformaes socioculturais, mercadolgicas e polticas. As poetas enfrentam as imposies histricas das narrativas que frequentemente apagam suas contribuies e devolvem ao universo do cordel as suas histrias, o seu ponto de vista.

 

 

A mulher na poesia de cordel

 

Quando olhamos para a histria da poesia de cordel, somos levados a longas antologias baseadas em folhetos de autoria masculina. Isso no diferente, por exemplo, quando acompanhamos eventos, feiras e festivais. Os espaos ocupados pelas mulheres poetas ainda so restritos (CARVALHO; OLIVEIRA, 2018) e muito disso se deve a um poder institudo para que essa histria seja contada: ela vem sendo conduzida por homens.

Essa situao no exclusiva do universo do cordel, mas reflete uma situao que atravessa as sociedades capitalistas (FEDERICI, 2019) e a sua historiografia. Resulta, ainda, de toda uma estrutura de formao e valorizao do conhecimento (LEMAIRE, 2017; 2018). esse saber eurocentrado, masculinizado, branco, heterossexual, que criticado ao apoiarmo-nos em uma perspectiva decolonial para o desenvolvimento desta reflexo.

Lemaire (2020) nos explicita, em uma aprofundada discusso, que parte do Cancioneiro das Donas de Carolina Michaelis, diversas estratgias de poder a partir do uso da linguagem e do saber para um movimento excludente que faz parte da historiografia do cordel. Segundo Santos (2020), h registros de publicaes de mulheres desde os anos 1930. A pesquisadora faz referncia a Maria das Neves Pimentel, que assinava como Altino Alagoano (nome de seu marido) e gravadora Maria Athayde, filha do conhecido editor Joo Marins de Athayde nos anos 1940. Ainda assim, elas no constam nas antologias e catlogos sobre o cordel que comeam a ser publicados nos anos 1960.

Um estudo da Fundao Casa de Rui Barbosa, organizado em 5 volumes e publicado nos anos 1970, configura-se em uma importante e densa pesquisa sobre a poesia de cordel. uma obra utilizada como bibliografia em universidades para o estudo da poesia de cordel e, assim, tem um grande alcance ainda nos dias de hoje. Esses textos, produzidos com a colaborao de Cavalcanti Proena, Orgenes Lessa, Antnio Houaiss e Manuel Diegues Junior, tiveram o apoio do Ministrio da Educao e Cultura e, portanto, tratam do que se tornou a historiografia oficial do cordel. essa a histria que repetidamente contada quando se fala da poesia de cordel – a de folhetos impressos, separados de suas formas orais, de origem portuguesa etc. nessa histria que no encontramos as vozes das mulheres – ou as encontramos como raras e desinteressadas[48] pela poesia.

Ainda sobre a histria contada pela FCRB, Lemaire (2020, p. 184) aponta que

Para indicar os autores dos folhetos, privilegia-se o nome de trovador, uma palavra medieval. Trata-se de uma estratgia discursiva que permite, pela aproximao com a literatura da Idade Mdia europeia e com o tipo de poeta que era o trovador medieval – homem e membro da nobreza –, impor a ideia de uma poesia ao mesmo tempo antiga e de autoria exclusivamente masculina, com origens alheias, nobres e escritas, silenciando e ocultando a atualidade, a especificidade regional do folheto, a sua base oral, cantada, a presena de mulheres cantadoras.

 

Por meio de poderes acadmicos e letrados estabelecidos, o cordel inferiorizado a partir de um referencial cannico. Torna-se uma poesia marginalizada. E, dentro da esfera desta margem, os homens se utilizam de um micropoder criador de normas, regras e ordens que excluem e minimizam as mulheres que tambm so poetas. Segundo Mello (2020, p. 8), a mulher que faz cordel tem pouca visibilidade em virtude de preconceitos duplos: o de pertencimento a uma cultura das bordas e pelo pertencimento a uma cultura marcada pelo androcentrismo. So aceitas, apenas, aquelas que esto dispostas a submeterem-se a essas normas e s narrativas construdas por esses detentores de um poder que emana da posse de editoras, da direo de academias, de visibilidade internacional e da retroalimentao de egos pelos pares.

Movida pela inquietao diante da invisibilidade das inmeras mulheres poetas que no apareciam nas antologias, silenciadas em espaos pblicos, a professora Fanka Santos cataloga em O Livro Delas ttulos de mulheres cordelistas at os anos 2010. Santos (2020) prova com sua pesquisa que as produes das autoras no sou poucas ou raras, e sugere que um grande problema, que teve como consequncia esse apagamento das mulheres poetas, que a historiografia da literatura que conta a trajetria do cordel feita a partir de uma perspectiva scriptocntica, que utiliza como mtodo de investigao da oralidade as mesmas formas utilizadas para a pesquisa de fenmenos escritos. Por isso, a pesquisadora aponta uma urgncia de transformao no apenas nos objetos de estudo, mas tambm dos paradigmas que direcionam esses trabalhos.

Nesse cenrio, as mulheres poetas tm se organizado politicamente para reagirem a um apagamento histrico de suas contribuies para a poesia de cordel. Elas se renem em grupos e associaes, mas tambm informalmente, pensando produtos, eventos e aes polticas de mobilizao. Essas estratgias tm encontrado nas redes sociais on-line um espao para sua existncia, divulgao e convocao de novas adeses causa de um cordel menos excludente.

E por caminhos das discusses de gnero no cordel que eu vejo uma possibilidade de fratura mais evidente: essa que os poetas tradicionalistas e os que se pregam progressistas tentam apagar. Porque a produo das mulheres que vem questionando e oferecendo condies de continuidade, no pelas vias de suporte ou de formato, mas pela dimenso poltica de resistncia que o cordel oferece (FONSECA, 2019, p. 209),

 

E uma reivindicao fundamental dos grupos de mulheres poetas de que suas vozes sejam ouvidas e respeitadas. Para isso, fundamental que elas contem suas prprias histrias e, assim, contem tambm uma nova histria do cordel. Como aponta Adichie (2019), os riscos imanentes de uma histria nica so de que os indivduos repercutam seus desconhecimentos como verdades nicas.

Em um universo simblico de produo de conhecimento pautado em uma referncia masculinizada, importante referirmo-nos a um registro de memrias que desloca o eixo narrativo para as memrias de mulheres, de mulheres negras, de mulheres perifricas, que contam suas prprias histrias pelas vias do cordel, testemunhando suas vidas, seus embates, suas resistncias sociais, culturais e polticas. Eis o que buscamos, quando olhamos para as narrativas autobiogrficas de Auritha Tabajara, Julie Oliveira e Izabel Nascimento.

 

 

Autobiografias em cordel

 

Em um mundo de conhecimentos pautados pelos saberes produzidos e difundidos em relaes de poder, Adichie (2019) indica a urgncia de acessarmos uma ampla diversidade de histrias. A partir dos estudos de Hill Collins (2019) sobre a produo de conhecimento de mulheres negras sobre elas mesmas, pensamos aqui na importncia de as mulheres poetas contarem tambm as suas prprias histrias e, assim, contriburem para a nova historiografia do cordel, proposta por Santos (2020).

bell hooks (2019) reflete sobre a importncia de narrar a si mesma a partir da escrita de uma autobiografia. Para a autora, um dos principais aspectos transformativos do movimento feminista tem sido o de convocar as mulheres a contarem suas prprias histrias. Como uma estratgia de resistncia, erguer a voz era uma forma de rebelio consciente contra a autoridade dominante (HOOKS, 2019, p. 20).

A partir de reflexes pedaggicas, hooks (2019) considera que as histrias pessoais so formas de as pessoas se conectarem e se identificarem, mas as experincias pessoais seriam desconsideradas nos sistemas educacionais e de formao do conhecimento. Haveria uma busca pela universalidade do saber, sendo que o universal sempre externo, masculino, branco, elitista. E, nesse cenrio, as vozes das mulheres incomodam, assustam e, por isso, so silenciadas.

A narrao de si, para hooks (2019, p. 226), uma forma de construo de identidades e de fortalecimento das memrias individuais cotidianas:

 

Para muitas pessoas exploradas e oprimidas, a luta para criar uma identidade e nomear a prpria realidade um ato de resistncia, pois o processo de dominao – seja a colonizao imperialista, o racismo ou a opresso machista – tem nos esvaziado de nossa identidade, desvalorizando nossa linguagem, nossa cultura, nossa aparncia. Repito, isso s uma fase no processo de revoluo.

 

Para hooks (2019, p. 227), isso permitiria que mulheres e homens utilizassem suas prprias experincias como formas de teorizao e de politizao dos saberes, tornando-se um processo de historicizao e permitindo reconhecermo-nos como parte da histria, como fazem as mulheres cordelistas.

No livro autobiogrfico em cordel Corao na aldeia, ps no mundo, escrito por Auritha Tabajara (2018), mulher indgena nascida no Cear, encontramos na orelha deste que ela considera a poesia de cordel como autoexpresso e resistncia. Por meio dela busco descontruir esteretipos atribudos s mulheres indgenas, uma vez que no perco a minha ancestralidade morando na cidade e usando tecnologia.

Os textos de Julie Oliveira, professora, poeta e editora cearense, foram publicados em sua rede social Instagram[49], que ela utiliza como espao de divulgao de seus trabalhos. A poeta uma das organizadoras do movimento Cordel sem Machismo e coordena o coletivo Cordel de Mulher.

Izabel Nascimento sergipana, professora e poeta de cordel. Atualmente preside a Academia Sergipana de Literatura de Cordel e est frente do movimento Cordel sem Machismo. Seus dois folhetos de cunho autobiogrfico tratados nesse texto so Cordel de Me e Filha (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2019) e Relato de voz e verso (NASCIMENTO, 2018).

H quatro eixos que identificamos nas narrativas das trs poetas como articuladores para essa outra histria do cordel. So temas que no aparecem tratados nas discusses conceituais e nas abordagens definidoras do cordel, pautadas nas experincias folcloristas, acadmicas, tampouco naquelas produzidas por poetas homens. So eles: a ancestralidade, as lutas pessoais cotidianas, os machismos e os dilogos individuais com o universo do cordel.

Destacando o primeiro eixo, observamos que as autoras trazem uma importante referncia ancestralidade matrimonial. As trs poetas no inauguram suas aes poticas individualmente em suas vidas, mas emergem de dilogos com outras mulheres. Elas se apresentam como herdeiras dos bens culturais transmitidos pelas mulheres mais velhas, ou seja, de bens matrimoniais, como descreve Lemaire (2018): um conjunto de bens materiais e culturais pertencentes s linhagens femininas.

No livro de Auritha, ela aborda essa ancestralidade a partir da imagem da av, com quem aprendeu a contar histrias:

Contava para a vov,

Que dizia: v sem medo,

O tempo que vai chegar

Desvendar o segredo.

Escute, prenda, pratique,

Vai precisar logo cedo (TABAJARA, 2018, p. 12).

 

Alm de ter herdado o aprendizado sobre contao de histrias em rimas, Tabajara (2018) tambm tinha na av um referencial de fora, de luta e de sabedoria.

Izabel Nascimento filha de pai e me poetas e tambm aborda esse aprendizado em sua narrativa autobiogrfica. Em ambos os textos de Nascimento (2018; 2019), ela destaca o que aprendeu sobre a poesia com sua me.

Os meus pais so os poetas

Que Deus me deu de presente

Mame, grande cordelista

Papai, cordel e repente

Fruto desse amor gigante

Versejo desde o instante

Que me entendo como gente (NASCIMENTO, 2018, p. 7).

 

Desta herana, ela evidencia tambm sua gratido no cordel em que assina junto de Ana Santana Nascimento:

 

Assim como o fruto nasce

Quando a raiz traz vida

Feliz o fruto que honra

A jornada percorrida

Eu honro quem me gerou

Se serei, se fui, se sou:

Obrigada, Me querida! (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2019, p. 16)

 

E ainda:

 

Ana Santana, mame,

Forte, inteligente e bela

H tempos que o vu da arte

Flamula, buscando nela

Histria, cho, garantia

Assim, bebi poesia

Do leite materno dela (NASCIMENTO, 2018, p. 7).

 

Julie Oliveira filha de pai poeta, com quem aprendeu as tcnicas e estruturas de sua poesia. Mas em seus relatos apontados aqui, ela tambm traz outros aprendizados adquiridos com sua me e uma declarao de respeito por sua me e por sua av.

Sou filha de Assuno

Mulher doce, paciente;

Neta de Alice, tambm,

E honro cada semente

Porque carrego comigo

A fora de minha gente (OLIVEIRA, 2020, on-line).

 

Da ancestralidade, heranas de mulheres, seja nos aprendizados sobre poesia de cordel, sobre contao de histrias ou mesmo sobre outros aspectos da vida, seguimos para as abordagens que as poetas fazem do universo do cordel. Elas contam sobre como entraram nesse universo, sobre aprendizados.

Auritha conta que comeou a escrever poesia ainda na escola e uniu a isso s contaes de histrias que acompanhava da av:

Aprendeu a ler na rima

Tudo queria rimar:

As brincadeiras e histrias

Que ouvia a vov contar.

Com tambor e marac,

De msica foi gostar (TABAJARA, 2018, p. 10).

 

Julie apresenta seus aprendizados em um dos poemas e atribui sua entrada no universo do cordel tambm a uma relao hereditria, mas, no caso, refere-se a seu pai, o poeta Rouxinol do Rinar.

A poesia eu herdei

De um amigo de f,

Companheiro de jornada

A quem aplaudo de p:

Sou filha do cordelista

Rouxinol do Rinar (OLIVEIRA, 2020, on-line).

 

A entrada de Izabel Nascimento na poesia de cordel se deu ainda criana, aprendendo sobre poesia com seus pais. Ao descrever sua entrada nesse universo, Izabel destaca tambm os desafios que encontraria em seu percurso.

Assim, entrei nesse mundo

Pautada nos bons valores

Meus irmos e eu tivemos

Na arte, dois bons doutores

A estrada iniciava

Eu sequer imaginava

Que nem tudo aqui so flores (NASCIMENTO, 2018, p. 9).

Os desafios de sua vida, at reconhecer-se como cordelista, aparecem nos versos de Auritha Tabajara ao mencionar seu trnsito do espao de sua aldeia at estabelecer-se em grandes cidades como Fortaleza e So Paulo. Nesses espaos, ela ainda muito jovem identifica que nem todo mundo tinha boas intenes.

Agora, l na cidade

Era mocinha inocente

Sorria pra todo mundo

Que passasse sua frente

Mas a maldade do povo

Se fazia ali presente (TABAJARA, 2018, p. 16).

 

Izabel Nascimento conta sobre as dificuldades de sade que enfrentou e sobre como a poesia de cordel foi sua aliada para a superao.

Meus problemas de sade

Deixavam por perto a morte

Que desde cedo tentava

Pr o meu nome no corte

Com diretriz resumida

Busquei dar sentido vida

O cordel foi minha sorte (NASCIMENTO, 2018, p. 10).

 

A poeta Julie Oliveira trata, ainda, dos desafios que encontra pelo caminho, sendo um deles, os trabalhos em parceria e coletividade, que ela entende como fundamentais para que as cordelistas se fortaleam em seus trabalhos.

Seguir sozinha fcil

cmodo, eu sei fazer

Mas, decidi caminhar

Em conjunto, pra vencer

Com cordel e aliadas

No vamos ficar caladas

Chegue junto, venha ver! (OLIVEIRA, 2020a, on-line).

 

O machismo uma situao recorrente, como j apontado nas discusses tericas deste trabalho. Ele aparece na narrativa das mulheres poetas tanto quando elas falam sobre suas inseres no universo do cordel quanto ao mencionar outras experincias da vida – visto que o machismo como um comportamento no exclusivo de um grupo unificado, mas se expande por toda a sociedade.

Nascimento (2018) denuncia situaes me machismo no universo do cordel a partir de suas experincias:

Ser mulher na poesia

Exigiu muito de mim

A mo do machismo pesa

O seu disfarce ruim

Carrega na estridncia

O joio da incompetncia

Ainda hoje assim. (NASCIMENTO, 2018, p. 12).

 

Julie Oliveira destaca essa situao a partir de sua ao de resistncia e de luta.

 

Ser Youtuber, popstar

sonho de muita gente

O meu ver a mulher

Ter tratamento decente

Por isso, eu estou no front

E no fujo desse afronte,

A minha fora pungente.

[...]

Eles nos querem chorando

Chateadas, desunidas

verdade que algumas

Ainda esto iludidas

Porm vo se esclarecer

E nunca mais vamos ter

Nossas vozes preteridas! (OLIVEIRA, 2020a, on-line)

 

Na narrativa de Auritha Tabajara, o machismo se manifesta em suas experincias cotidianas alm do cordel. Acontece, por exemplo, quando ela chega cidade e um homem a assedia com olhares.

 

Um cabra meio de longe

Desde cedo a observava

Veio se achegando aos poucos,

Fez que uma fruta comprava

E, como um lobo faminto,

Para a mocinha olhava (TABAJARA, 2018, p. 17).

 

E quando o pai de sua filha a processa por abandono do lar e pede, judicialmente, o pagamento de penso alimentcia.

 

Rejeitado, o companheiro

Recusou-se a aceitar

Foi bancar o pai-heri

No conselho tutelar.

Esperou ela sair

E j foi denunciar (TABAJARA, 2018, p. 28).

 

Dialogando com o conceito de biomitografia de Audre Lorde, ou seja, uma narrativa mais preocupada com o estado de esprito de quem narra do que com a preciso de detalhes, a autobiografia para hooks (2019, p. 319) um relato de uma histria muito pessoal que convoca no exatamente como os eventos aconteceram, mas como nos lembramos deles. isso o que as trs poetas fazem em suas narrativas. Mais do que, precisamente, contar fatos com uma pretenso de verdade, elas narram suas perspectivas diante de suas prprias experincias, trazendo tona suas emoes e sentimentos, evidenciado as afetaes de suas histrias com o universo do cordel.

 

 

Consideraes finais

 

Segundo hooks (2019, p. 264), falar a marca da liberdade, de se fazer sujeito. Para a autora, contar as nossas prprias histrias a forma de alcanarmos o poder por compartilharmos o nosso ponto de vista sobre a histria. E isso que Julie Oliveira, Izabel Nascimento e Auritha Tabajara fazem quando escrevem sobre si mesmas: declaram suas liberdades individuais ao mesmo tempo em que contam a histria do cordel.

importante considerarmos as narrativas das mulheres para contarmos a histria do cordel. Como a professora Fanka Santos iniciou, precisamos construir novos olhares para a historiografia oficial, inserindo as contribuies das mulheres poetas. Deste modo, estamos transformando a histria do cordel, mas tambm a histria da literatura. Ao observarmos as brechas na histria, a partir de questionamentos e de fraturas aparentes, que podemos pensar nessa reescrita.

As narrativas das mulheres cordelistas esto inseridas em uma relao de disputa de poderes sobre a memria, sobre os modos de conhecimento sobre o universo do cordel. Elas desestabilizam os saberes institucionalizados destacando suas experincias pessoais, suas relaes de matrimnio cultural e apontando as opresses machistas que configuram desafios em suas lidas. preciso nos voltarmos para as biomitografias e pontos de vista das mulheres cordelistas para sermos capazes de refletir sobre o universo do cordel.

 

 

Referncias

 

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TABAJARA, Auritha. Corao na aldeia, ps no mundo. Lorena: UKA Editorial, 2018.

 

 

[Recebido: 07 ago 2020 – Aceito: 24 jan 2021]


 

MEMRIA, VOZ E AUTORIA EM OS SAPATOS DE T, DE CREMILDA E ELISABETE NASCIMENTO

 

MEMORY, VOICE AND AUTHORSHIP IN OS SAPATOS DE T, BY CREMILDA AND ELISABETE NASCIMENTO

 

Fernanda Oliveira da Silva[50]

http://orcid.org/0000-0001-9831-2827

 

Maria Teresa Salgado[51]

http://orcid.org/0000-0003-2993-3632

 

Resumo: Ao ler Os Sapatos de T, de imediato, evidencia-se que as histrias ali narradas so contadas por mais de uma voz. O processo que compe esse livro interessante, pois so as contaes da me, Cremilda, escritas pela filha, a escritora Elisabete Nascimento. Atravs das memrias e das vozes que protagonizam a obra, somos levados a conhecer outra verso da histria considerada como a oficial do pas. A partir dos possveis dilogos com as teorias de Michael Pollak (1989), Laura Cavalcante Padilha (2007) e Gayatri Spivak (2010), iniciamos este breve estudo, analisando a memria como elemento fundamental para a composio da narrativa e para o protagonismo da mulher negra, que assume, aqui, um papel de griot, trazendo a sua verso da histria, denunciando a pobreza, a desigualdade, o racismo, a escravido e dando visibilidade s vozes da Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. A inteno dessa anlise colaborar com a visibilidade de algumas dessas vozes.

Palavras-chave: Memria. Oralidade. Vozes femininas. Subalternizao.

 

Abstract: When reading Os sapatos de T, immediately, it is evident that the stories narrated are told by more than one voice. The process that makes up this book is interesting, as it is the account of the mother, Cremilda, written by her daughter, the writer Elisabete Nascimento. Through the memories and voices that lead the work, we are brought to know another version of the story considered as the country's official. Based on the possible dialogues with the theories of Michael Pollak (1989), Laura Cavalcante Padilha (2007) and Gayatri Spivak (2010), we begin this brief study, analysing memory as a fundamental element for the composition of the narrative and also for the protagonism of the black woman, who assumes, here, a role of griot, bringing her version of history, denouncing poverty, inequality, racism, slavery and giving visibility to the voices of the Baixada Fluminense of the state of Rio de Janeiro. The intention of this brief study is to contribute to the visibility of some of these voices.

Keywords: Memory. Orality. Female voices. Subordination.

 

 

O que os livros escondem, as palavras ditas libertam

(Conceio Evaristo)

 

As palavras da escritora Conceio Evaristo no se camuflam em eufemismos para denunciar um antigo problema que ainda persiste no campo da literatura brasileira. Por longos anos, a escrita literria consolidou-se como um espao de poder branco, excluindo as camadas sociais negras, que possuam formas de conhecimento consideradas inferiores. Tais camadas tambm tinham o seu acesso barrado ao nico conhecimento considerado importante pela elite brasileira. Assim, por muito tempo, deu-se visibilidade apenas a um lado da histria; at o momento em que algumas vozes silenciadas comearam a romper cada vez mais os cercados impostos e passaram a ser ouvidas nos espaos acadmicos. Importante dizer que tais vozes marginalizadas sempre se manifestaram e transmitiram saberes, a despeito das muitas tentativas de obstruo e silenciamento sofrido ao longo da histria. Nossa inteno, com esse breve estudo, colaborar com a visibilidade de algumas dessas vozes.

Nossa epgrafe tambm mostra a urgncia de mais estudos literrios sobre as escritas que foram mantidas fora do chamado cnone, visto que suas origens pertencem a espaos historicamente marcados pelo silenciamento forado, conhecido como uma das estratgias de opresso do colonialismo e da escravido. A abertura para as novas enunciaes tem acontecido aos poucos, pois a reivindicao do direito escrita s foi escutada tardiamente.

Nesse sentido, interessa-nos lembrar a relao que Antonio Candido faz entre os direitos humanos e a literatura, ao considerar que so bem incompressveis, entendendo que ambos no podem ser negados a nenhuma pessoa, uma vez que tm um papel importante de humanizao. Ao colocar a literatura ao nvel de necessria, Candido a define como algo fundamental para compor a existncia do ser humano. Para isso, o autor relaciona a literatura e os direitos humanos de duas maneiras: a primeira refere-se organizao mental que a literatura proporciona, pois, ao dar forma aos sentimentos e viso do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza (CANDIDO, 1988, p. 186); a segunda relaciona-se ao aspecto de desmascaramento social e denncia, pelo fato de a literatura focalizar as situaes de restrio dos direitos, ou de negao deles, como a misria, a servido, a mutilao espiritual (CANDIDO, 1988, p. 186).

Assim, entende-se que a literatura um direito de todas e de todos, e compreendemos a necessidade de tornar a escrita de mulheres, sobretudo de mulheres negras, visveis. Tal ideia justifica a escolha da obra de Elisabete Nascimento como corpus deste artigo. importante esclarecer que no se busca, aqui, apenas trabalhar a narrativa da escritora com o intuito de preencher alguma espcie de cota nas pesquisas acadmicas, mas, sim, como procuramos mostrar ao longo deste texto, para evidenciar as qualidades literrias da obra de Nascimento.

Para compreender a anlise que aqui se prope, importante uma breve apresentao de Elisabete Nascimento. A escritora nasceu em Barros Filhos, uma periferia do Rio de Janeiro. Aos quatro anos, passou a morar no municpio de So Joo de Meriti, cidade onde Nascimento permanece morando, localizada na Baixada Fluminense. A literatura herana das contaes da me e das letras de samba-cano de seu pai. Sua formao acadmica, desde a graduao at o doutorado, foi realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Por mais de trinta anos, atuou na educao bsica e, por quinze, no ensino superior. Atualmente, membro do grupo de pesquisa Escritas do Corpo Feminino (UFRJ) e desenvolve projetos de leitura, letramento e escrita criativa com estudantes de escolas pblicas. Nascimento tem nove livros, dos quais oito so por autopublicao. So eles: Exu no Pao Imperial; Dirio de bordo do Almirante Negro; Os Sapatos de T; Contos Pro(L)ibidos; Ciranda de Meninos; Luiza e Babi e o Mistrio do Lago de Onira; Mscara de flandres: em fragmentos; Abayomi: minha amiga imaginria e Amor de Abiku. Os versos e a prosa que compem as obras evidenciam a importncia de histrias vividas e contadas por mulheres e homens que tiveram suas existncias negadas.

Ao ler Os Sapatos de T, de imediato, evidencia-se que as histrias ali narradas so contadas por mais de uma voz. O processo que compe este livro interessante, pois so as contaes da me, Cremilda, escritas pela filha, a escritora Elisabete Nascimento. Ambas so narradoras da histria, e esta oscilao de vozes permite o contato com as memrias, os testemunhos e os saberes da me da escritora. Assim, acreditamos estar diante de uma forma artesanal de comunicao (BENJAMIN, 1975, p. 69) em que experincias so trocadas e nela as vozes narrativas deixam suas marcas como a mo do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1975, p. 69).

A narrativa comea a ser contada pela voz da filha, Elisabete: Essa a histria dos meus sapatinhos. E tambm dos sapatos da minha me e da me de minha mame, a velha Deolinda (NASCIMENTO, 2015, p. 13). Em seguida, aparecem versos de uma cano que vai perpassar toda a narrativa:

A liberdade de estar descalo

Criou calo e esporo,

Por isso os ps da gente Monjolo

No cabem nos sapatos no

(NASCIMENTO, 2015, p. 13).

Interessa-nos analisar os versos acima, pois podemos entend-los como uma maneira de explicar uma das estratgias da escravido. Sabe-se que, no perodo escravocrata, o uso dos sapatos era atribudo condio de liberdade do indivduo. Homens e mulheres, escravizados e livres, se diferenciavam socialmente pelos calados que usavam ou no. Tanto que um escravizado at poderia vestir calas, palet, mas nunca calar tamanco, nem [...] sandlias. De p no cho. Para deixar bem exposto o estigma indisfarvel do estatuto de cativo (ALENCASTRO, 1997, p. 79). Logo, a pequena cano carrega uma possvel justificativa, a deformidade dos ps, para consolidar uma das opresses do perodo colonial.

As primeiras pginas, assim como o ttulo, j nos mostram que o sapato o fio condutor da narrativa. Cremilda inicia suas contaes falando sobre a sua me, Deolinda, e a dificuldade dela de usar sapatos: Mame, sempre que vou visit-la, reclama que seus sapatos doem os ps. E l vou eu comprar mais um par de sapatos (NASCIMENTO, 2015, p. 14). Nas linhas seguintes, a narradora-protagonista[52] transporta sua histria para um tempo-passado, volta-se para as recordaes de sua infncia: Aos oito anos eu j era empregada domstica. Eu cuidava da casa e de duas crianas. Eu s aprendi a escrever j com trinta anos... (NASCIMENTO, 2015, p. 23).

A composio da narrativa de Os Sapatos de T, como pudemos ver no trecho acima, costurada pelas memrias da narradora-protagonista. Alm disso, possvel notar que a memria de Cremilda representa uma realidade que, infelizmente, no exclusiva da sua experincia. Sabe-se que o trabalho infantil e o no acesso escola foram, e ainda so, problemas reais das periferias e dos morros dos grandes centros urbanos brasileiros.

Nesse sentido, pensamos nas memrias coletivas, aquelas interditadas, e questionamos a histria que sempre foi considerada a verdadeira. Vejamos, no fragmento a seguir como, atravs das lembranas de Cremilda, a histria do pas contada:

Meus pais eram do tempo do dinheiro de couro e da moeda de conchinha. Chamavam meu pai de rebelde. Chamavam minha me de rebeldia. Ele nasceu junto com a Revolta da Vacina e minha me, com a Revolta da Chibata. Eu nasci com a Revolta Comunista e minha filha mais velha com o Golpe Militar, e mais revoltas. Nada por acaso na famlia dos revoltados (NASCIMENTO, 2015, p. 21).

Acima, o nascimento de cada pessoa da famlia relacionou-se aos momentos importantes da histria do Brasil. Novamente, vemos a memria particular tomar uma proporo ampla. Interessa-nos, nesse momento, pensar no texto Memria, esquecimento, silncio, de Michael Pollak. Ao referir-se ao estudo da histria oral, reala-se a relevncia das memrias subterrneas, que, como parte integrante das culturas minoritrias e dominadas, se opem Memria oficial, no caso a memria nacional (POLLAK, 1989, p. 4). Essas memrias chamadas subterrneas conseguem emergir, de forma transgressora, mesmo sendo destinadas ao silncio, provocando, assim, interferncias na divulgao dos fatos considerados oficiais. O silncio que foi, e ainda , imposto as vozes subalternizadas consegue ser ouvido atravs do interesse de registrar as vivncias de pessoas simples, como foi feito pela escritora Elisabete Nascimento em Os Sapatos de T.

As lembranas da narradora-protagonista entrecruzam-se com eventos histricos do pas. Ao rememorar o ano de seu nascimento, Cremilda acaba por trazer tona a denncia em relao ao grande nmero de homens negros escravizados que, em troca de alforria, escolheram lutar na Guerra do Paraguai. Tal fato resultou nas mortes desses homens que nem se quer puderam sentir a sensao de liberdade: Quando nasci, em 1935, papai j estava com 40 anos, mas morreu cinco anos depois. Ele era neto de escravo, que foi a guerra do Paraguai, em vo, em troca de liberdade (NASCIMENTO, 2015, p. 24).

A partir disso, pode-se compreender que as memrias subterrneas da narradora-protagonista, ao surgir em espaos tomados pelo poder da escrita, modificam as cenas de grandes acontecimentos e, assim, como destaca Pollak (1989), possibilitam a construo de outras histrias formadas pelas vivncias e pelas experincias das pessoas subaltenizadas.

Alm das memrias, outro elemento fundamental para a composio de Os Sapatos de T a oralidade. Ela se apresenta na obra de diversas formas, como por exemplo, os versos musicados que penetram a narrativa, j citados e analisados anteriormente. Alm disso, pode-se observar que a estrutura do discurso nos mostra a presena de dilogos, ou seja, Cremilda parece estabelecer dilogos com algum a todo instante. Pode-se observar isto na seguinte passagem: Certo dia, todos estvamos felizes com as sobras de um leito, do porco do vizinho. Pare de rir, Luiza, o vizinho no porco no... (NASCIMENTO, 2015, p. 14). Para alm disso, sabe-se que, segundo Bakhtin (2003), um enunciado sempre uma resposta a outros.

H um fragmento que, no por acaso, remete-nos a tradio africana: ҃ preciso contao. Quer saber o que isso quer dizer, Carlinha? Desenhe nossa rvore sagrada, um imbondeiro, e voc saber sobre imensa famlia (NASCIMENTO, 2015, p. 23). Pode-se notar que a partilha de conhecimento atravs das histrias, por meio de memrias da tradio, segundo Laura Padilha, difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se, por isso, um exerccio de sabedoria. (PADILHA, 2007, p. 35). Essas observaes fazem-nos compreender a presena da oralidade, uma das heranas da cultura africana, como um aspecto essencial que influencia na estrutura e na esttica da obra.

Ao pensar sobre a estrutura e a esttica, interessante retornarmos para a dedicatria da obra de Elisabete Nascimento que no deixa dvidas sobre o processo criativo do livro: Fugindo aos padres de edio, esta dedicatria no de autora para algum, mas das mos que escrevem a voz das memrias de Cremilda, minha me, companheira minha e de meus irmos por mais de meio sculo (NASCIMENTO, 2015, p. 9). Sendo assim, a mo de Elisabete imprime sua marca nas histrias contadas por Cremilda. Deste modo, a voz da narradora-protagonista e da narradora-ouvinte esto presentes nos relatos, para que a histria seja continuamente compartilhada entre aquela que fala e a que ouve e tambm escreve.

Com base nessa observao, interessa-nos analisar a relao estabelecida entre quem conta, quem escuta e escreve Os Sapatos de T. Para comear esta anlise, parecem-nos pertinentes duas narrativas de tradio oral de Angola: o missoso e a maka. Logo, torna-se fundamental nos debruarmos sobre o livro Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na fico angolana do sculo XX, de Laura Padilha. Vejamos a definio:

Missosso angolano [...] dentro do quadro da tradio oral autctone, aquela forma narrativa percebida pelo natural como sendo totalmente ficcional, no sentido em que v nela um produto apenas do imaginrio, algo no acontecido no real emprico, pois pertencente apenas ordem da fantasia. Ope-se, por isso, maka, na origem, outra forma de narrativa que relatava um acontecimento representado como vivido, ou pelo contador, ou por algum de sua intimidade, ou por pessoas de que ouviu falar. Assim, a maka [...] seria a ficcionalizao de uma histria tomada como verdadeira, razo pela qual tinha um fim utilitrio evidente, sendo que sua tendncia didtica no [era] tcnica, mas essencialmente social (PADILHA, 2007, p. 40).

A partir das definies dadas acima, acreditamos que o processo de criao escolhido para a composio da narrativa constitua-se, simultaneamente, da maka e do missosso, visto que as histrias, ao serem contadas pela narradora-protagonista, passam pelo movimento de reinveno da narradora-ouvinte e escritora, transfigurando-se em fico. Esta anlise torna-se cabvel a partir da fala de Elisabete Nascimento na dedicatria, j citada, do livro. Porm, faz-se necessria a reproduo de mais um fragmento para que compreendamos a anlise levantada: Difcil tarefa, dar voz a tantas vozes que me inspiram o tempo todo. Peo desculpas por interferir constantemente com as minhas prprias percepes sobre as histrias maternas nestas narrativas (NASCIMENTO, 2015, p. 9).

O uso frequente de vocativos um detalhe importante que atravessa todo o livro, pois, alm de caracterizar o dilogo, ressaltando a oralidade, demonstra o interesse e a preocupao da narradora-protagonista em manter vivos em sua memria os saberes ancestrais e transmiti-los:

Ela pedia pra eu nunca esquecer as vozes importantes em nossas vidas. Bem, aqui dentro destas letras tem uma voz, tem muitas vozes esquecidas. A de mame Deolinda, a da vov Julia, a do papai Antonio e a voz dos seus pais e avs que perderam seu nome na travessia dos viventes de Luanda e outros de Moambique. Por isso preciso contao. Quer saber o que isso significa, Carlinha? (NASCIMENTO, 2015, p. 23).

Interessante, no fragmento acima, a reflexo que se pode fazer a partir dele. A narradora-protagonista – seguindo o conselho de sua me – para no esquecer os testemunhos, as memrias, tenta preserv-los por meio da oralidade, aproximando-se do gnero angolano da maka, ou seja, partilhando a histria de uma coletividade por meio do relato de sua vivncia.

Acreditamos ser inevitvel a aproximao da imagem da narradora-protagonista, uma mulher negra de 80 anos, com o griot, a figura do mais velho na cultura africana, ou seja, aquele que transmite o conhecimento a partir das memrias e das histrias. Sobre o griot, Laura Padilha explica sua importncia dentro da sociedade africana: O ancio liga o novo ao velho, estabelecendo as pontes necessrias para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram [...], tentando preservar os pilares de sustentao da identidade, antes, durante e depois do advento colonial (PADILHA, 2007, p. 57).

H uma cena que dialoga com a cultura africana. No por acaso, vemos a herana africana aparecer na forma em que as histrias so contadas na obra. No dia de chuva, todos formamos uma roda em volta da fogueira onde mame cozinhava [...] tempo bom, da casa de estuque e da contao de histria e de adivinhao (NASCIMENTO, 2015, p. 17). De pronto, esta potica imagem faz com que lembremos tambm de trechos da literatura angolana.

A narrao, escrita em primeira pessoa, permite que a voz subalternizada se torne protagonista da contao de sua prpria histria. Maria Nazareth Soares Fonseca, ao refletir sobre o romance Becos da memria, de Conceio Evaristo, ressalta a importncia da escolha da pessoa do discurso. Para ela,

O sujeito que assume a ao de narrar o que expressam essas vozes excludas sabe que o registro dos sofrimentos dos miserveis expe os cortes constantes do prprio corpo, feridas difceis de serem cicatrizadas. Para salvar do esquecimento as histrias de vida mergulhadas na pobreza extrema e no abandono, o escritor, fazendo-se sujeito participante, assume narrar as histrias dos lugares degradados como uma forma de luta contra a misria, deslocando o prazer meramente contemplativo, como diz Walter Benjamin, para uma atitude poltica que se concretiza na maneira como a escrita procura vasculhar as vidas dos que lutam por sobreviver em condies intensamente desfavorveis (FONSECA, 2017, p. 192).

Pensando nisso, parece-nos que a escolha de Elisabete Nascimento, ao apresentar a voz de sua me Cremilda, para narrar e para assinar a autoria do livro, um ato poltico e uma das prticas feministas atuais. Para explicar a empatia que aqui ocorre, compreendemos que um dos fatores que impulsiona a proposta de Os sapatos de T a sororidade. Vemos, a seguir, um comentrio elucidativo sobre esse conceito:

uma experincia subjetiva entre mulheres na busca por relaes positivas e saudveis, na construo de alianas existencial e poltica com outras mulheres, para contribuir com a eliminao social de todas as formas de opresso e ao apoio mtuo para alcanar o empoderamento vital de cada mulher. A sororidade a conscincia crtica sobre a misoginia e o esforo tanto pessoal quanto coletivo de destruir a mentalidade e a cultura misgina, enquanto transforma as relaes de solidariedade entre as mulheres. Para combater a crueldade e o equvoco da inimizade, o feminismo precisa fortalecer e promover a sororidade, eliminar a misoginia pessoal e coletiva, no reproduzir formas de opresso entre mulheres como a discriminao, a violncia e a explorao (LAGARDE, 2009, apud GAMBA, 2007, s/p).

Ao recolher as histrias e transform-las em uma obra, Elisabete no apenas d voz a sua me, como tambm faz com que a narrativa alcance outras mulheres que vivem ou passam por experincias semelhantes. Alm do mais, acaba por reforar a ligao entre essas mulheres, de modo a denunciar as prticas pautadas na segregao e na desigualdade que, transformadas em fico, evidenciam a superao pela oralidade e pela escrita.

No poderamos deixar de observar que as vozes femininas negras, tanto como narradoras quanto escritoras, mostram-nos que essas mulheres, mesmo sendo instrudas submisso e ao silncio, falam e agem de forma independente. Isso s corrobora que considerar a passividade e apatia como caractersticas da mulher um grande equvoco. A filsofa francesa Simone de Beauvoir, h tempos, esclareceu tal ideia. No entanto, infelizmente, ainda estamos longe de compreender tal processo de essencializao da mulher.

[...] a passividade que caracterizar essencialmente a mulher um trao que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas um erro pretender que se trata de um dado biolgico: na verdade, um destino que lhe imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 2016, p. 24).

A constatao de agir, falar e, assim, (re)escrever sua prpria histria aparece quando Cremilda lembra que a perspectiva de um futuro bom, segundo o desejo de seu pai, era um bom casamento e bastava aprender a escrever o nome. Porm, Cremilda foi alm e realizou sonhos que nunca imaginara: Mas at sonho que no sonhei, eu realizei: Casamento, andar de avio pra l e pra c, saber ler e escrever livros e no apenas assinar (NASCIMENTO, 2015, p. 18).

Outro aspecto digno de nota considerarmos a obra como um possvel lugar de fala para as vozes que foram silenciadas por tantos anos, desde a escravido. Pensar no conceito de lugar de fala nos remete ao pensamento da escritora indiana Spivak, sobretudo, em seu texto Pode o subalterno falar?, que levanta questes importantes sobre o silncio imposto aos que foram colonizados. Spivak (2010, p. 66-67) nota, dentro do grupo de subalternos, a diferena entre homens e mulheres:

No contexto do itinerrio obliterado do sujeito subalterno, o caminho da diferena sexual duplamente obliterado. A questo no a da participao feminina na insurgncia ou das regras bsicas da diviso sexual do trabalho, pois, em ambos casos, h evidncia. mais uma questo de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgncia, a construo ideolgica de gnero mantm a dominao masculina. Se, no contexto da produo colonial, o sujeito no tem histria e no pode falar, o sujeito subalterno feminino est ainda mais profundamente na obscuridade.

Um dilogo possvel com Os sapatos de T o recente livro Memrias da plantao: episdios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, sobretudo, na introduo intitulada como Tornando-se sujeito. Nele, a escritora fala sobre sentir uma fome coletiva de ganhar voz, escrever e recuperar histria (KILOMBA, 2019, p. 27). Ao longo desta breve anlise, vimos que as contaes da narradora-protagonista contrapem as histrias verdadeiras que, por muito tempo, foram ensinadas. Por isso, Deolinda alerta desconfiem o tempo inteiro do faz de contas e do condo. melhor do que tapar o sol com a peneira (NASCIMENTO, 2015, p. 49).

Os sapatos de T apresentou a histria de uma pessoa que, por ser mulher, teve seu futuro projetado pelo pai, que a limitava ao papel de esposa, que sofreu racismo por ser negra e vivenciou vrios abusos como empregada domstica. Logo, somos levados a refletir sobre a mltipla excluso das mulheres negras na sociedade, afetadas pelo que Kimberl Crenshaw (2002), ao definir o conceito de interseccionalidade, chamou de cruzamento e sobreposio de distintas formas de subalternizao, como o patriarcalismo, o racismo e a opresso de classe. Para isto, importante a contribuio de Carla Akotirene, para quem

A interseccionalidade visa dar instrumentabilidade terico-metodolgica inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitrias onde mulheres negras so repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposio de gnero, raa e classe, modernos aparatos coloniais (AKOTIRENE, 2018, p. 14).

Ao final da obra, possvel compreender o ttulo: a narradora-protagonista conta-nos que a morte de Deolinda, sua me, chega e ela fez uma pantufa de feltro bem fofinho e coloquei nos ps de mame que, com certeza faria uma visita aos parentes distantes de Angola (NASCIMENTO, 2015, p. 47) e depois em sonho, mame disse que os sapatos de T finalmente no doam seus ps (NASCIMENTO, 2015, p. 47).

E, na ltima pgina do livro, nos apresentada uma nova verso dos versos que iniciaram essas contaes, ou cantaes, uma vez que se expressam tambm como vozes que buscam ecoar o canto de novas histrias:

A liberdade de estar descalo

Criou a iluso,

De ser ela o motivo de tanto calo e esporo,

Nos ps de gente Monjolo

Mas deixa estar; que por obra de rebeldia

Nem eu, nem mame, nem vov e ningum mais

Acreditou ou acredita naquela estrofe viciada

(NASCIMENTO, 2015, p. 53)

Essa estrofe mostra-nos que a situao de subalternizada no ser mais aceita, que estas vozes negras femininas que aqui narraram no se conformaro com as verses das histrias que foram impostas. De acordo com bell hooks[53], a nica maneira de as mulheres negras construrem uma subjetividade radical resistindo ao conjunto de normas e desafiando s polticas de dominao baseadas em raa, classe e sexo (HOOKS, 2019, p. 125). Sendo assim, podemos pensar nas contaes de Cremilda e na escrita de Elisabete como aes transgressoras e resistentes a opresses de uma sociedade enraizadas em um sistema colonial.

Aps esse percurso por Os sapatos de T, notou-se a importncia do processo criativo escolhido para a construo da obra. Ao dar voz a Cremilda e escrever a narrao a partir das memrias, Elisabete possibilita outras verses da histria e a protagonismo dessa voz. Alm disso, essa construo acabou por compor uma obra inspirada em moldes ancestrais. Assim, a partir dos procedimentos criativos j mencionados, a autora rompe com um modelo tradicional da literatura ocidental, enquanto revela a superao da mulher negra, que no aceita mais ficar no espao da invisibilidade e do silenciamento.

 

 

Referncias

 

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Imprio. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 12-447.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. So Paulo: Plen, 2019.

BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao verbal. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vol. 2. A Experincia Vivida. Trad. SrgioMilliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos. So Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 63-81.

CANDIDO, Antonio. Direito literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vrios escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 1988.

CRENSHAW, Kimberl. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminao racial relativos ao gnero. Estudos feministas 1, p. 171-189, 2002. Disponvel em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2002000100011&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 17 jun. 2019.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Costurando uma colcha de memrias. In: EVARISTO, Conceio. Becos da memria. Belo Horizonte: Pallas Edies, 2017. p. 191-198.

HOOKS, bell. Mulheres negras revolucionria: nos transformando em sujeitas. In: Olhares Negros: Raa e Representao. So Paulo: Elefante, 2019. p. 97-127.

KILOMBA, Grada. Memrias da plantao: episdios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobog, 2019.

LAGARDE, M. Definindo sororidade. Adaptado de Maiara Moreira de ROS, Marcela Lagarde y de los. Sororidad. In: GAMBA, Susana Beatriz. Diccionario de estdios de gnero y feminismos. Buenos Aires: Biblos, 2007. Disponvel em: https://we.riseup.net/radfem/definindo-sororidade-marcela-lagarde. Acesso em: 29 mar. 2020.

NASCIMENTO, Cremilda Mizael. Os sapatos de T: a filha do reino das guas de Deolinda e Antnio. Org. Elisabete Nascimento e Bruno Luiz da Silva Nascimento. Rio de Janeiro: Quartica, 2015.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na fico angolana do sculo XX. 2. ed. Niteri: EdUFF Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.

POLLAK, Michael. Memria, esquecimento, silncio. Estudos histricos, v. 2, n. 3. Rio de Janeiro, 1989.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Traduo Sandra Regina GoulartAlmeida et al. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

 

 

[Recebido: 20 jul 2020 – Aceito: 07 dez 2020]

VOZES DE MARACANGALHA: INTERSECO DE SABERES E AFETOS

 

 

VOICES OF MARACANGALHA: INTERSECTION OF KNOWLEDGE AND AFFECT

 

 

Railda Maria da Cruz dos Santos[54]

https://orcid.org/0000-0002-3151-689X

 

Edil Silva Costa[55]

https://orcid.org/0000-0002-3151-689X

 

 

Resumo: Apresenta-se brevemente a produo potica tradicional de Maracangalha, povoado de So Sebastio do Pass, Bahia, a partir do repertrio da manifestao cultural Lindro Amor. As cantigas analisadas foram registradas no caderno de anotaes Cultura popular, da professora Nvea, moradora da localidade. Partimos do pressuposto que a dinmica dessa produo, ao longo do tempo, coloca nesse territrio os corpos de mulheres negras que, com suas vozes, interseccionam saberes, fazeres e afetos, de si e de seus pares, como dispositivo de (re)existncia. Para tanto, o artigo se ampara no mtodo qualitativo de cunho etnogrfico e nos tericos: Foucault (1996), Guattari e Rolnik (1986), Kilomba (2019), Quijano (2005) e Zumthor (1993, 2005, 2007, 2010). Alm do repertrio do caderno, trataremos tambm das narrativas de mulheres que integram o grupo de cultura popular supracitado. Por fim, tecemos consideraes acerca dos caminhos trilhados por essas mulheres para o deslizamento e permanncia da potica da voz nos dias atuais.

Palavras-chave: Maracangalha. Lindro Amor. Poticas orais. Cultura popular. Mulheres negras.

 

Abstract: The traditional poetic production of Maracangalha, a village in So Sebastio do Pass, Bahia, is briefly presented, based on the repertoire of the cultural event Lindro Amor. The songs analyzed were noted down by a local teacher, known as Pr Nvea and recorded in a notebook named by her as Popular Culture. We start from the assumption that the dynamics of this production, over time, places in this territory the bodies of black women who, with their voices, intersect knowledge, actions and affections, of themselves and their peers, as a device of (re)existence. To this end, the article is based on the qualitative method of ethnographic nature and the theorists: Foucault (1996), Guattari (1986), Kilomba (2019), Quijano (2005) and Zumthor (1993, 2005, 2007, 2010). In addition to the repertoire of the section, we will also deal with the narratives of women who are part of the aforementioned popular culture group. Finally, we make considerations about the paths taken by these women for the sliding and permanence of the poetics of the voice today.

Keywords: Maracangalha. Lindro Amor. Oral poetics. Popular culture. Black women.

 

 

O Lindro Amor de Maracangalha

 

Eu vou pra Maracangalha, eu vou
Eu vou de uniforme branco, eu vou
Eu vou de chapu de palha, eu vou
Eu vou convidar Anlia, eu vou...

(Caymmi, 1978)

 

A voz corrobora a existncia de um coletivo, de uma ao poltica, de uma cultura. Nesse sentido, a voz exerce no meio humano uma funo forte, mas no idntica (ZUMTHOR, 2005, p. 80), uma vez que se corporaliza, de acordo com o sujeito de enunciao, rompendo e remodelando-se no tempo e no espao. a partir dessa premissa que pensamos no texto da cultura popular, mais especificamente, a poesia oral de grupos subalternizados que criam sua linguagem singular como mecanismo de insurgir contra o sistema hegemnico. Assim, da linguagem das minorias que emanam as reflexes deste artigo, das narrativas e dos cantos tradicionais que fizeram e fazem parte da cultura popular da comunidade de Maracangalha.

O nome do lugar conhecido pela cano de Dorival Caymmi. Decidido, o eu lrico iria para l com Anlia, se ela quisesse ir, seno ele iria s. Mas, o que nem todos que ouvem a cano sabem onde fica Maracangalha e porque ele queria tanto ir l. Vamos atender ao aceno dele, aceitando seu convite para nos aproximarmos desse lugar, com o ouvido atento s vozes de seus moradores.

Maracangalha um distrito do municpio de So Sebastio do Pass, cidade do interior da Bahia, cerca de sessenta quilmetros de Salvador[56]. Fazendo parte da regio do Recncavo, o ncleo urbano de So Sebastio do Pass bastante antigo: foi uma freguesia criada em 1718, sendo distrito de So Francisco do Conde at 1926, quando foi emancipada e promovida a cidade. A partir da dcada de 1960, desenvolve-se graas explorao de poos de petrleo e, embora rica, tem uma das populaes mais pobres do Estado e ndices de desenvolvimento humano muito baixos.

Com uma populao negra predominante, em funo do processo de ocupao da rea ainda no sculo XVIII e da necessidade de mo de obra escravizada para a lavoura de cana-de-acar, a cultura local preserva fortes traos desse caldeamento. Compreendemos que nesse processo de criao h um dinamismo histrico, cultural e temporal, que possibilita novos modos de configurao e ressignificao do texto tradicional oral na atualidade. Nosso olhar se voltar mais especificamente para as mulheres negras e sua produo cultural nos dias de hoje. Desse modo, focaremos nos modos de produzir de mulheres que interseccionam saberes, dizeres e afetos, e seus corpos como territrio de (re)existncia da voz potica nessa localidade.

Nos limites deste artigo, destacamos a manifestao cultural denominada Lindro Amor. De acordo com informaes locais, trata-se de uma brincadeira presente em Maracangalha desde o perodo dos engenhos que l existiam, estendendo-se pelo processo de industrializao da cana-de-acar pela Usina Cinco Rios e sendo recriada por moradores da vila atualmente. Segundo Pr Nvea – como conhecida a professora Nvea –, uma das mulheres integrantes do grupo Lindro Amor, o cortejo saa nos dias de feira e nos dias de pagamento dos trabalhadores da usina para arrecadar fundos, mas tambm com objetivo de simplesmente brincar ou festejar a vida. Assim ela explica:

O Lindro Amor um festejo, um cortejo formado por mulheres, homens e crianas, [...] que pediam ajuda para o caruru de So Cosme, So Roque e Santa Brbara. Ento, vinha na frente uma caixinha toda enfeitada de flores com a imagem do santo, as mulheres danando e os homens tocando e cantando o ritmo de afox. O cortejo saa na rua de casa em casa, pedindo oferenda ao dono da casa [...]. Um cortejo nascido de dentro dos terreiros de candombl que aqui existiam, surge da necessidade de angariar fundos para fazer e dar as oferendas para os orixs [...]. Alm disso, o Lindro Amor participava do ritual da botada da usina, ou seja, quando a usina ia comear a funcionar, moer a cana (Pr Nvea, informao verbal, 31/07/2019).

Como percebemos no depoimento acima, h inicialmente uma motivao financeira. O peditrio sempre foi costume nas irmandades e nos terreiros de candombl. Nasce da necessidade para angariar fundos, mas tambm uma forma de envolver a comunidade nas celebraes, tornando a festa uma promoo coletiva. O peditrio pode ser individual como, por exemplo, por parte do iniciado no candombl que no tem recursos para bancar a feitura do santo ou a festa para o seu orix. Nesse caso, o sujeito pede de porta em porta a ajuda necessria, em nome do santo. Em geral, usam as indumentrias de sua condio e hierarquia, portam balaios com imagens, pipocas ou a comida do orix e pedem dinheiro ou outro tipo de ajuda. Esse costume, menos frequente nos dias atuais, tambm serve como exerccio de humildade para o filho de santo, assim como para tornar pblica sua condio de iniciado. As irmandades costumavam pedir esmolas para obter recursos destinados ajuda humanitria para os mais necessitados, mas tambm para as festas dos santos de sua consagrao.

Na descrio de Pr Nvea, o balaio substitudo por uma caixinha toda enfeitada de flores com a imagem do santo e a ajuda seria para o caruru de So Cosme, So Roque ou Santa Brbara, santos catlicos, mas que tm estreita relao com as casas de santo no Recncavo da Bahia. Pedir ajuda para oferecer comida (o caruru) justifica-se porque, nesse contexto, o banquete deve servir a toda comunidade. No existe festa sem comida, sem fartura e sem compartilhamento. Oferece-se a comida do santo, mas esta deve ser tambm compartida com os envolvidos e assim se exerce a devoo.

A msica e a dana, do jeito que so apontadas por ela, nos remetem para a sada do terreiro para a rua: as mulheres danando e os homens tocando e cantando o ritmo de afox. Afox um ritmo do terreiro, uma evocao ou chamamento para o santo. Tocar e danar na rua o ijex, ou seja, o ritmo de afox tambm tornar pblica a relao do cortejo com os terreiros. Curiosa a estratgia de colocar o cortejo na rua coincidindo com o dia do pagamento dos trabalhadores e dias de feira, porque nessas ocasies haveria mais dinheiro circulando e, portanto, seria mais vantajoso para alcanar o objetivo. Com o passar dos anos, o cortejo ganha caractersticas mais de folguedo ou festejo e a funo de peditrio vai se esvaziando. Da surge a questo: quais as funes que assume hoje? O que leva esses sujeitos a reinventarem essa tradio e como ela se configura na contemporaneidade? Qual o papel das mulheres nesse contexto?

Assim, procuramos compreender o Lindro Amor, suas motivaes de criao e permanncia, enquanto texto que produz sentidos para a comunidade de Maracangalha e para as mulheres, demarcando seus territrios de identidades e produo de subjetividades. Flix Guattari, em Subjetividade e histria, ao abordar sobre produo subjetiva, traz para seu debate o termo singularizao como forma de recusa produo subjetiva capitalstica. Para o autor, essa singularizao seria como dispositivos, vias de escape para que grupos sociais, as minorias, criem seus prprios modos de referenciao, suas prprias cartografias (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 49). Assim, propomos pensar a produo potica de Maracangalha como um processo singular em que a subjetividade ocorre emprestando, associando, aglomerando dimenses de diferentes espcies (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 37). Nesse sentido, processo de singularizao relaciona-se com processo criativo, ligaes, resistncia, troca de saberes, de afetos, mas tambm com a produo potica.

A nossa anlise ancora-se nos estudos culturais, a partir de uma viso interdisciplinar, aliada a um referencial terico que dialoga com a proposta referida, alm das narrativas apresentadas e materiais (orais/virtuais ou impressos/materiais) recolhidos da tradio oral da comunidade. Isso porque consideramos as mulheres integrantes do Lindro Amor enquanto arquivos vivos (COSTA, 2016) e suas narrativas reveladoras de prticas de armazenamento, conservao e catalogao de saberes.

Osmar Moreira Santos, na obra Arquivos, testemunhos e pobreza no Brasil, aborda que, para alm de seu corpo e performance, caixas de sapatos, bas, gavetas entre outros, podem constituir-se em arquivos de pobres como lugar de resistncia (SANTOS, 2016, p. 16). Assim, os relatos, mas tambm colees de objetos, documentos e cadernos de anotaes, podem ser vistos como arquivos[57] da cultura de tradio popular dessa comunidade. Enquanto resistncia, os arquivos podem significar a labuta do trabalho, a criao e recriao da cultura oral, mas tambm resistncia aos embates culturais no interior de um coletivo.

Diante desta silepse, pensar as poticas orais tambm analisar os sentidos, as formas de resistncia e ressignificaes para a comunidade e para as pessoas que faziam e fazem parte desses grupos. Portanto, a partir da apresentao e breve anlise do Lindro Amor, propomos refletir sobre os territrios da voz, os corpos de mulheres negras e a interseco de saberes e de afetos em sua produo cultural.

 

 

Delineando o territrio da voz em corpos de mulheres negras

 

Conhecida por sua hospitalidade, poeticidade e musicalidade, Maracangalha tambm lembrada por narrativas orais sobre personagens famosos neste cenrio, como a histria da sambadeira Amlia[58] e do capoeirista Besouro[59]. Algumas dessas narrativas remontam ao tempo dos engenhos, quando grupos afrodescendentes eram escravizados e explorados pelo sistema de poder.

Como foi dito, Maracangalha pertence ao municpio de So Sebastio do Pass, a 51 Km do cruzamento das rodovias BR-324 e BR-110. No acesso vila, h um monumento, uma espcie de chamin, que representa partes da usina e identifica o nome da comunidade. Apresenta uma paisagem natural e modificada, marcada pelos canaviais, pelas guas do Rio Joanes e por um solo denominado massap, elementos esses que se fundem no processo de construo de sua linguagem potica.

Portanto, ao chegar comunidade, nos deparamos com uma encruzilhada, que pode ser descrita, percebida e visualizada em suas formas, mas tambm em sentidos. Na horizontal, temos uma linha frrea que nos leva para outros contextos e cenas culturais. J no sentido vertical, trilha-se para o centro da comunidade. importante ressaltar que nesse cruzamento, avistamos, esquerda, as runas da Usina Cinco Rios. Seu nome gasto pela ao do tempo, representa a decadncia de uma atividade econmica que permanece na lembrana dos mais velhos.

Nesse territrio cultural, h uma praa nomeada Dorival Caymmi que, em seus contornos, revela traos especficos do local como o desenho de um violo, signo que compe e faz parte da cultura popular tradicional da localidade. Em volta da praa, casas arquitetadas na poca em que os moinhos da usina estavam a todo vapor, a Igreja Nossa Senhora da Guia, alm do largo do mercado, que serviu e serve de palco para as festas populares da comunidade. Maracangalha era toda festa e oraes, como descreve Valdevino Neves Paiva:

O largo da capela parecia uma lapinha. Barracas de palha de pindoba ou dendezeiro, enfeitadas de bandeirolas multicores, eram o principal ponto de atrao turstica das pessoas vindas das fazendas vizinhas, da cidade de So Sebastio do Pass e de outras, como Candeias, So Francisco do Conde, Santo Amaro, Salvador entre outras. [...]. Por toda parte o povo andava, e em toda parte havia um ponto de diverso: aqui uma roda de samba; [...] adiante uma roda de capoeira com capoeiristas famosos da Bahia, como Mestre Bimba e outros; mais frente – cavaleiros trajados a rigor, cavalos enfeitados [...]. Ngo bebo no faltava, perturbando as rodas de samba, intrometendo-se entre os folies do afox organizado por Lau (Ladislau Bispo) na fazenda Quibaca, ou entre os blocos que Jos Porfrio ou Z Pretinho colocavam nas ruas (PAIVA, 1996, p. 67).

A saborosa descrio de Paiva nos d a dimenso de quo colorida e fervilhante era Maracangalha em dias de festa, envolvendo pessoas advindas de outras cidades, num conjunto que misturava religiosidade, cavalgadas, samba e capoeira, tudo regado a muita bebida e podendo haver confuso. nesse territrio que analisaremos as produes poticas dos moradores de Maracangalha, reconhecendo a contribuio dessas produes para a formao identitria baiana e brasileira. O lugar potico, onde mulheres negras trocam saberes para que a memria da tradio atravesse o tempo e o espao.

Embora o Lindro Amor no seja uma manifestao cultural exclusivamente feminina, nossa pretenso aqui apresentar um breve olhar sobre o deslizamento dos corpos das mulheres negras que fazem parte da cultura de tradio oral de Maracangalha. Quem so essas mulheres? O que seus corpos produzem?

Tentando traar um perfil das narradoras maracangalhenses, observamos que elas so senhoras de 60 a 80 anos, em grande parte no escolarizadas ou semianalfabetas, praticantes do cristianismo e de religio de matriz africana. Historicamente, as mulheres negras da regio eram trabalhadoras dos engenhos, das casas grandes, amas de leite, rezadeiras e sambadeiras. Atualmente, seus afazeres vo alm dos de donas de casa. Exercem atividades representativas em sua comunidade, como mes de santo, costureiras, professoras, lderes de grupo cultural, entre outras ocupaes. Mulheres de classes populares que, por intermdio de suas memrias, transportam, mas tambm conectam passado e presente, percebendo ou no, que suas aes resultam na atualizao e conservao da potica oral.

Para o medievalista Paul Zumthor, o corpo ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso (ZUMTHOR, 2007, p. 77). De acordo com o pensamento do autor, o corpo o local que emana a voz. Nele, a voz se materializa, dando uma impresso de presena, impondo-se, preenchendo espao, tanto material quanto semntico. Enquanto territrio vocal, o corpo presena performtica. J a voz precisa do corpo para atingir sua plenitude (ZUMTHOR, 2005). Portanto, o corpo das mulheres negras deve ser visto como o espao territorial da voz potica tradicional de Maracangalha, que se articula em um trnsito semntico discursivo para sua (re)existncia.

Grada Kilomba, ao discorrer sobre os corpos de mulheres negras, afirma que No racismo, corpos negros so construdos como corpos imprprios, como corpos que esto fora do lugar, por essa razo corpos que no podem pertencer (KILOMBA, 2019, p. 56). A afirmao da autora pontua, mas tambm valida o longo processo histrico vivido pelas mulheres negras inseridas no sistema racista, opressor e patriarcal, que invalidam seus corpos e, automaticamente, todos seus conhecimentos. Ao nos referirmos s mulheres negras, seus corpos no podem ser vistos como primitivos ou irracionais, como foi conceituado na perspectiva eurocntrica para as relaes de dominao e explorao de trabalho (QUIJANO, 2005). Entretanto, aqui, o corpo tem uma integridade, uma racionalidade, ele produz linguagem. o corpo um territrio em que ganha vida a performance potica. Ele carrega a memria cultural, mas tambm a voz da tradio. Desse modo, interessa-nos investigar a atuao das mulheres de Maracangalha enquanto corpos que resistem e enfrentam e revertem os discursos que as desqualificam.

 

 

Entre a oralidade e a escrita, extenses da memria

 

Adentrar a comunidade de Maracangalha, enquanto pesquisadoras, vasculhar, com o olhar minucioso, as gavetas, bas e quartinhos, procura de objetos, indumentrias, bandeiras, cadernos, livros, instrumentos musicais, CDs, DVDs etc. Compem o cenrio investigado, altares, imagens de So Cosme e Damio, do Sagrado Corao de Jesus e Maria, Santo Antnio, quadros que representam outras paisagens culturais. Interessa-nos a poesia oral/escrita, o canto, as narrativas em performances, entrelaando discursos do ontem e do agora, mas tambm todo esse cenrio e os objetos que o compem. Esse conjunto integra a produo da cultura local, revelando as formas de arquivamento da memria, individual e coletiva.

Todo arquivo uma seleo e parte de uma ao, valor, significao que determinado objeto representa para um indivduo ou seu grupo, pois desde a seleo para essa guarda, de forma intencional ou no, o ato de arquivar os objetos, carregam em si a memria de seu guardio. Os arquivos da cultura popular esto distantes dos arquivos pblicos, dos grandes centros culturais, das instituies que representam o Estado, mas tambm so formas de salvaguardar e preservar a memria cultural, seus fazeres, suas crenas, seus costumes, da ao do tempo. Ademais, percebemos que os sujeitos tambm selecionam seu arquivo material com formas prprias de organicidade e metodologia, cuja diversidade se faz presente nos arquivos pblicos, mas com cuidado e zelo, pelo valor simblico que esses arquivos representam para os indivduos e para a comunidade. Portanto, metodologia e organicidade perpassam por um ato subjetivo dos sujeitos.

Alm disso, os arquivos trazem em si o vazio, o silncio, o rastro de outros tempos, experincias e vivncias. Assim, vemos que podem servir de testemunhos de lembranas e esquecimentos, assim como so tambm ferramentas para a preservao de informaes culturais relacionadas ao grupo do Lindro Amor. Destacamos dentre os objetos de fixao de memrias um dos cadernos da professora Nvea.

Para a leitura dos signos presentes no acervo cultural do Lindro Amor, apropriamo-nos da expresso arquivista anarquista proposta por Reinaldo Marques que, ao fazer referncia ao perfil do pesquisador ao lidar com o arquivo literrio, deve atuar como arquivista anarquista, lendo o arquivo a contrapelo (MARQUES, 2008, p. 117). Segundo o autor, isso possibilita uma leitura crtica, a desconstruo da ordem dos arquivos, formulando novas formas de leituras e interpretaes. O sujeito do arquivo desafia o arquivista, pois o fora a olhar para o que ocultado e acurar o ouvido para ouvir os silenciamentos.

O pesquisador/ouvinte, em contato com as formas de arquivos, deve voltar seu olhar para a natureza discursiva, sua ocultao ou exposio [...], mas tambm para a narrativa que se estabelece nesses fragmentos (COSTA, 2016, p. 60). Nesse sentido, vemos que o pesquisador deve atentar para a linguagem presentes nos objetos, os sentidos revelados pelo arquivo. Desse modo, considerando os narradores como arquivos vivos (COSTA, 2016), a construo de sentidos da potica oral se atualiza, se ressignifica, apresentando a intervocalidade que, segundo Paul Zumthor (1993), deve ser entendida como a voz que faz uma trilha no tempo e no espao, mas que tambm carrega a tradio.

Importante notar que, embora a transmisso dos saberes seja predominantemente oral, encontramos no caderno de anotaes um suporte valioso que indica no s o domnio do cdigo escrito, mas o uso adequado dessa ferramenta em funo do desejo de registro e salvaguarda. Zumthor (2010, p. 39) prescreveu que a poesia oral hoje se exerce em contato com o universo da escrita. Para o autor, esse contato pode acontecer em um prazo mais ou menos longo, chamando a ateno para o impacto da escrita sobre a poesia oral. A declarao de Zumthor apresenta relao com as formas de arquivo da cultura popular de Maracangalha, uma vez que os arquivos carregam a voz da tradio. Ao acessar esses arquivos virtuais/materiais, seus narradores/ouvintes, atravs da performance, proporcionam a produo e a transmisso da potica oral. Por outro lado, o caderno de anotaes, como o de Pr Nvea, revela a transcrio da voz, materializando a palavra oral em escritura, uma espcie de segunda lngua (Zumthor, 2005), afirmando o domnio do cdigo escrito em um territrio aparentemente dominado pela oralidade. Pode-se tambm revelar, numa perspectiva espacial, um territrio afetivo em que pares trocam afetos e experincias.

Dentre as mulheres que tem o domnio da escrita no grupo Lindro Amor, Pr Nvea tem as melhores condies para registrar no caderno – que intitulou Cultura Popular – aspectos essenciais do Lindro Amor, mas no s. Trata-se de uma relevante produo sobre a cultura de tradio oral, uma espcie de cdice, onde esto registradas as narrativas orais que atravessaram e atravessam o tempo na vila. A autora configura esse arquivo em duas partes: na primeira esto escritos cnticos, benditos e louvores em honra a Maria, So Roque e Santo Antnio; na segunda parte, encontramos as cantigas de Bumba-meu-boi, Folia de Reis, Samba de roda, bailados e do Lindro Amor. Nesse breve sumrio do caderno, esto listados os interesses da autora/organizadora e os textos caractersticos da tradio da comunidade que vo de textos religiosos a folguedos.

Nvea afirma que o caderno tem funo pedaggica dentro da comunidade, servindo de manual para as professoras ensinarem a cultura de tradio oral aos alunos da escola de ensino fundamental presente na vila, objetivando as apresentaes dos eventos escolares e a comemorao do dia do folclore, alm de servir de guia para as novenas dos santos catlicos e da festa da padroeira – Nossa Senhora da Guia. Assim, o caderno Cultura popular uma produo individual, uma escrita de si, que apresenta os saberes de uma coletividade, mas tambm, assim como a voz, se move para atender os mltiplos letramentos[60] da comunidade.

A cantiga do Lindro Amor que segue faz parte desse arquivo:

Eu no sou daqui,

Sou de Maracangalha.

Eu no sou daqui,

Sou da terra de Anlia.

Trago o samba no p

E o meu chapu de palha.

O sujeito potico dessa cantiga demarca um lugar e sua identidade cultural. O sujeito que fala est em outro espao que no Maracangalha, mas sente necessidade de demarcar seu territrio de identidade, valendo-se dos signos conhecidos do lugar em outros contextos. Desterritorializa-se e reterritorializa-se, autoafirmando-se. Para isso, empreende um movimento de apropriao ou antropofagia cultural da cano de Dorival Caymmi, como uma forma de dar maior visibilidade ao grupo, uma vez que o nome da localidade conhecido nacionalmente graas aos versos desse compositor. Ademais, chamam a ateno os signos presentes no texto de Caymmi: Anlia, chapu de palha e samba no p. Fazendo referncia a Amlia, segundo os moradores, a maior sambadeira de Maracangalha e por isso mesmo citada por Caymmi, o sujeito se coloca no mesmo lugar que deu fama ao povoado. A referncia ao chapu de palha, repetindo a mesma rima usada por Caymmi (Anlia/palha) uma clara aluso ao acessrio do grupo de samba que, por sua vez, imita as indumentrias dos trabalhadores dos canaviais e outras labutas.

Ao dizer eu no sou daqui, o sujeito potico coloca-se no lugar do estranho ou forasteiro em relao ao territrio-no-lugar ou um aqui ocupado provisoriamente. Por outro lado, coloca-se como algum que sabe bem qual lugar o seu e o vai descrevendo nos versos seguintes, no com caractersticas da paisagem, da localizao ou atividade econmica, selecionando aspectos culturais. Descreve o seu lugar como a terra da Anlia, e isso lhe basta. Assim como lhe basta descrever a si mesmo como algum que sabe sambar e usa chapu de palha. Com esses signos, cria-se uma imagem homognea que identifica o sujeito potico e todos os outros sujeitos da terra de Anlia.

O primeiro e o terceiro versos, eu no sou daqui, tambm nos remetem a uma cano de domnio pblico: Marinheiro s, gravada por Clementina de Jesus[61]:

Eu no sou daqui, marinheiro s

Eu no tenho amor, marinheiro s

Eu sou da Bahia, marinheiro s

De So Salvador, marinheiro s.

Assim como nos versos do Lindro Amor se diz textualmente sou de Maracangalha, aqui tambm necessrio dizer de onde se , demarcar seu territrio: eu sou da Bahia/de So Salvador. Nos versos do marinheiro fica subentendido que um sujeito em trnsito, um viajante solitrio (marinheiro s); nos versos do Lindro Amor, esse trnsito pode se justificar pelo fato de o cortejo tambm se deslocar para outras localidades para pedir a esmola dos santos, de acordo com a explicao de Pr Nvea mencionada anteriormente. Eis um aspecto que se constitui como forte indicador de identidade: o sujeito gira o mundo, mas se revela a partir do seu lugar de origem: no se diz eu sou..., mas se diz eu sou de.... Nos versos de ambas as cantigas parece transpirar um certo orgulho ao revelar seu territrio e tambm a necessidade de demarcar o deslocamento, explicitado nos versos eu no sou daqui.

A cantiga Marinheiro s ficou marcada pela interpretao nica de dona Clementina de Jesus, dona de uma voz negra que nos remete ancestralidade e aos cnticos dos terreiros, ela mesma pioneira em gravar pontos de macumba e dar visibilidade ao matriarcado nas religies de matriz africana. Ao dizer eu no sou daqui, essa voz nos diz tambm desse lugar diasprico e solitrio. Se consideramos que a Marinha do Brasil foi um dos poucos lugares a acolher os negros libertos no perodo ps-abolio, em funo das pssimas condies de trabalho e da forma desumana como os trabalhadores eram tratados, haver ainda muito a se dizer dessa cantiga[62]. No entanto, no caber aqui, pois nos desvia do repertrio do Lindro Amor e das anotaes de Pr Nvea.

Em outra folha do caderno, encontramos a cantiga de samba de roda que segue:

Arraste a cadeira e senta, mulher!

Tu no dana, tu no samba,

que diabo faz em p?

Arraste a cadeira e senta, mulher.

Como se v nessa quadra, o contexto de interlocuo a roda de samba. O sujeito potico revela um incmodo pelo fato de a mulher estar de p, sem danar. Na roda, o lugar do corpo danante o centro. Em volta da roda esto os msicos e os cantadores, os que no danam e se limitam a responder os refres e bater palmas. A mulher em geral ocupa o centro, o lugar da dana, assim como o sapateado e a umbigada. Nesse espao central, espera-se o corpo livre, comandado apenas pelo ritmo da msica. No entanto, nessa cantiga, podemos observar que no h liberdade de escolha. O corpo feminino que, apesar de estar de p, no ocupa o lugar da brincadeira, convidado a sentar-se, ou seja, excludo da roda. O tom imperativo arraste a cadeira e senta no deixa opo nem meio-termo: ou est dentro ou est fora (ou dana ou senta). A estrutura circular da cantiga, comeando e terminando com versos idnticos (a ordem de se sentar) deixa clara a insistncia nessa ideia: nos versos centrais est a explicao (Tu no dana, tudo no samba) e a indignao (que diabo faz em p?), reforando o incmodo com a repetio que inicia e fecha a estrofe (arraste a cadeira e senta).

Essa mulher parece no ter voz nem escolha, devendo assumir o papel j previamente determinado. Poderia parecer uma preocupao motivada pela gentileza de dar assento a uma dama, no fosse o tom grosseiro da pergunta que diabo faz em p? Como se essa posio da mulher de p atrapalhasse o samba, ocupando o lugar de quem deveria danar. Nessa situao, ela excluda da roda, invisibilizada, sendo colocada como mera observadora. Por outro lado, a ordem de se sentar pode ser interpretada tambm como uma provocao para que todas as mulheres participem do samba. Os versos dizem claramente qual o lugar que a mulher deve ocupar e, se no o fizer, comete um interdito que se traduz no incmodo e na irritao do sujeito potico. Em ltima instncia, seu corpo ocupa o seu lugar de estar no mundo e, se esse lugar ou seu comportamento visto como inadequado, porque ela faz uso da liberdade de desafiar o pr-estabelecido.

desse modo que essas cantigas se convertem como farto material etnogrfico, documentos da memria cultural que revelam os modos de ser e fazer das comunidades narrativas. No Lindro Amor, as vozes das mulheres da comunidade de Maracangalha so ressignificadas e traduzidas em discursos. Entende-se discurso como formas de expresso da linguagem que servem de ferramenta para essas mulheres se posicionarem contra hierarquias discursivas que tentam silenciar suas vozes e invalidar seus saberes. Desse modo, vamos ao encontro do pensamento de Foucault (1996) sobre interdio da fala de grupos subalternizados pelo sistema de poder. Segundo o autor, esses grupos at falam, mas existem mecanismos de poder que os impedem de serem ouvidos. Nesse sentido, o discurso dessas mulheres negras interditado por uma ordem discursiva que, no seu interior ou exterior, dita o que deve ser falado e por quem.

Desse modo, essas mulheres juntam esforos e criam parmetros para seus modos de produzir. Nos seus corpos, esto as engrenagens discursivas da produo potica e de sua coletividade, o lugar marginalizado pela cultura hegemnica, silenciado historicamente pelo discurso do poder, como nos alerta Kilomba (2019), ao argumentar que o silncio da subalterna tem suas razes no colonialismo. Nesse sentido, ao produzir e transmitir a potica oral, essas mulheres negras tentam romper essa barreira discursiva colonial, que nega seus conhecimentos e suas vozes. Por outro lado, o que observamos a existncia desse lugar e o eco de suas vozes atravessarem o tempo, mover-se em sua comunidade por intermdio de suas memrias. Nota-se que essas narradoras tm conscincia do que fazem e o porqu fazem, no havendo passividade em suas produes.

na linguagem e com a linguagem que essas mulheres e seus pares buscam o devir emancipatrio e poltico em suas vidas, tentando sair de um lugar comum. Os que a produzem de modo inconsciente ou no, criam uma lngua prpria que os caracterizam, construindo suas identidades. Esses so os aparatos que determinam o modo de produzir utilizado por essas pessoas, caracterizando um estilo prprio, possibilitando sair do padro de normalidade discursiva. Portanto, essas mulheres se apropriam da linguagem como dispositivo ou veculo para levar a memria do texto oral a novos interlocutores e outros contextos. E, nesse deslizamento, elas se afirmam enquanto mulheres negras, alm de descobrirem outras formas de ser mulher, insurgindo-se contra um sistema de poder.

A cena teatral, performtica, de transmisso dessa potica, evidencia o protagonismo dessas mulheres negras como os pilares fundamentais da produo, mas tambm a interseco de seus saberes e de seus corpos, alm dos seus esforos para valorizao e revitalizao do texto na atualidade. Assim, percebemos os modos de produo da poesia oral como o processo de singularizao que geram ligaes de resistncia, embates e fora criativa. Esses elementos possibilitam a produo, a transmisso desse fazer literrio, alm de categoriz-lo como uma produo de troca dos afetos e saberes.

 

 

Consideraes finais

 

As reflexes apresentadas neste artigo nos levam a pontuar os caminhos trilhados por mulheres para produzir a cultura popular de tradio oral. Analisamos que esses caminhos levam seus fazeres para um campo discursivo onde esto presentes embates internos e externos, aes polticas, relaes de fora, mas que tm como resultado a valorizao e salvaguarda do texto oral. Alm disso, a via mostra as engrenagens desse processo, medida que a produo acontece, a poesia oral se move para a atualizao e ressignificao.

Por outro lado, ressaltamos que elas, ao reinventarem o processo de produo, tambm se reinventam enquanto mulheres. Desse territrio de fala, com seus pares, buscam emancipao e ascenso social, vivenciam experincias que possibilitam insurgncia de prticas que desestabilizam, mas tambm modificam discursos sociais que servem de barreira para ascenso do grupo e de sua cultura.

Por fim, a produo da potica oral perpassa pela criao artstica, singularizao, criatividade da linguagem, mas tambm pela resistncia e (re)existncia da cultura popular de tradio. Nessa perspectiva, literatura e vida caminham juntas no campo de produo, como possibilidade, ferramenta, maquinaria de criao potica. Ademais, nessa linguagem e no entrelaar dos corpos dessas mulheres negras que, historicamente, seu texto produzido, transmitido e ressignificado no tempo. Vivendo e predominando nos registros e na memria cultural de Maracangalha.

 

 

Referncias

 

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ZUMTHOR, Paul. Introduo poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

 

 

 

[Recebido: 11 out 2020    Aceito: 13 jan 2021]


 

A POTICA DA VOZ NO TERRITRIO DO MARAVILHOSO NAPOLITANO E BAIANO: TRANSMISSO ORAL, CONSELHO E TROCA DE SABERES

 

THE POETICS OF VOICE IN THE NEAPOLITAN AND BAHIAN TERRITORY OF THE MARVELOUS: ORAL TRANSMISSION, ADVICE, AND SHARED KNOWLEDGE

 

 

Adriana Aparecida de Jesus Reis[63]
https://orcid.org/0000-0002-9717-4642

 

 

 

Resumo: O mito de Eros/Cupido e Psiqu foi narrado nos livros IV, V e VI do romance antigo O asno de ouro por Lcio Apuleio. O texto da literatura latina forneceu a fonte para o escritor napolitano Giambattista Basile (1575-1632) escrever sua obra-prima Lo cunto de li cunti (O conto dos contos). Ele usou o mito como inspirao para escrever o nono conto de fadas da segunda jornada, o qual recebeu o ttulo de O cadeado. Parente em primeiro grau de O cadeado o conto maravilhoso Anglica mais afortunada (O prncipe Tei). Essa histria foi coletada pelo folclorista brasileiro Marco Haurlio em Igapor, na Bahia, e registrada em seu livro Contos e fbulas do Brasil. Este artigo busca analisar no somente o dilogo intertextual entre os contos maravilhosos napolitano e baiano, mas principalmente os elementos populares que se ligam transmisso dessas narrativas pela oralidade, tendo em vista que tais histrias primeiro foram contadas oralmente por contadores e depois ouvidas por compiladores e folcloristas que as registraram em suas coletneas maravilhosas. Verifica-se que os escritores deram um toque particular s narrativas coletadas, demonstrando a presena de uma oralidade, porm reconstruda por recursos que evidenciam suas culturas locais.

Palavras-chave: Ciclo noivo-animal. Contos maravilhosos. Oralidade. Giambattista Basile. Marco Haurlio.

 

Abstract: The myth Eros and Psyche was narrated by Lucio Apuleio in the books IV, V, and VI of his novel The Golden Ass. The Latin literary text provided the source from which Neapolitan writer Giambattista Basile (1575-1632) drew the inspiration to write his own masterpiece, Lo cunto de li cunti (The tale of tales). He used the myth as a basis to build the ninth fairy tale from the second journey on, which was titled The padlock. A close literary relative to The padlock is the wonder tale Angelica, the most fortunate (The tegu prince). The story was collected by Brazilian folklorist Marco Haurlio in Igapor, Bahia, and registered in his book Tales and Fables of Brazil (2011). This paper aims to analyze not only the intertextual dialogue between the Neapolitan and Bahian tales but especially the popular elements that are tied to the oral transmission of such narratives. It takes into account the fact that those stories were first told orally by storytellers and then heard by collectors and folklorists that registered them in their tale collections. It is noticeable how writers gave a personal touch to the collected narratives, which demonstrates the presence of certain orality but reconstructed by resources that highlight their local cultures.

 

Keywords: Animal-groom cycle. Wonder tales. Orality. Giambattista Basile. Marco Haurlio.

 

 

As vozes da tradio

 

            Segundo o etngrafo Lus da Cmara Cascudo, em seu livro clssico Literatura oral no Brasil, contar histrias populares, desde os primeiros registros escritos, remonta a um ambiente protocolar em qualquer parte do mundo, segundo o qual as histrias e as adivinhaes so narradas durante as primeiras horas da noite. A escolha por esse hbito noturno, de acordo com o mestre potiguar, explica-se pelo fato de ser o horrio final da tarefa diria e pela atmosfera de tranquilidade e sossego espiritual para a evocao e ateno do auditrio. Escolhendo o ambiente noturno, Cascudo (1984, p. 228) nos recorda dos melhores ttulos que denunciam essa universalidade do hbito

Mil e Uma Noites, Fireside Stories de Kennedy, Veills Bretonnes de Luzel, XIII Piacevoli Notte de Straparola, Foyer Breton, de mile Souvestre, Veilles Des Mayens, de Couthion, Veilles Allemandes, traduo de lHritier de lAin, de contos, crnicas e tradies dos irmos Grimm.

            De todas essas colees europeias de narrativas populares que explicitam a preferncia pelo hbito de contar histrias noite, nos interessa a coletnea italiana XIII Piacevoli Notti, de Straparola, tambm designada de Le piacevolli notti (As noites agradveis). Essa obra pode ser considerada precursora na compilao do gnero maravilhoso na Itlia, pois o escritor Gian Francesco Straparola reuniu, maneira de Boccaccio, em treze noites, narrativas populares a partir de 1553 (SPERBER, 2009). Das 75 histrias que formam esta coletnea italiana, encontramos no somente contos de fadas, narrados ao modo maravilhoso, mas tambm contos realistas, articulao bem percebida por Ana Lcia Merege: Publicado pela primeira vez em Veneza, no ano de 1550, o livrou reunia contos de fadas, contos populares, como O Gato de Botas[64], e histrias de carter cotidiano, cujo bom-humor lhe valeria crticas por parte dos autores e estudiosos de moral mais rgida (MEGERE, 2010, p. 43).

            Essa diferena de gnero entre contos de fadas e histrias de carter cotidiano tambm se mostra relevante na lngua italiana, pois, para os contos de fadas ou populares, existem as palavras fiaba ou racconti, que designa a presena do elemento maravilhoso, e para as histrias de carter cotidiano, existem as palavras novella (singular) ou novelle (plural), que so narrativas curtas verossimilhantes. fato que o escritor italiano Straparola, justamente por mesclar matria narrada do modo maravilhoso as histrias verossimilhantes, aproxima-se de Giovanni Boccaccio, autor do Decamerone ou Decamero, obra-prima da literatura italiana do sculo XIV, conhecida, principalmente, pela narrao da peste negra do final da Idade Mdia em seu conto moldura, dentre outros temas. Ainda que Straparola se aproxime de Boccaccio, devemos ressaltar que a obra deste escritor italiano do sculo XIV composta somente por narrativas do gnero novelle, ou seja, histrias verossimilhantes, ao nmero de cem.

            Utilizando a estrutura de moldura, inaugurada por Boccaccio no sculo XIV na literatura italiana, depois empregada por Giovan Francesco Straparola em Le piacevolli notti, e escolhendo, porm, o hbito diurno para contar seus cinquenta contos de fadas recolhidos da oralidade, encontra-se o escritor italiano Giambattista Basile (1575-1632), autor de Lo cunto de li cunti ovvero trattrattenemiento de peccerille ou O conto dos contos ou entretenimento dos garotinhos em portugus, obra-prima publicada postumamente, entre 1634 e 1636, pela irm do escritor, Adriana Basile, uma famosa cantora de pera da Itlia seiscentista (do sculo XVII).

A obra Lo cunto de li cunti, tambm percursora do registro do gnero maravilhoso na Itlia, foi publicada originalmente em dialeto napolitano no sculo XVII, em razo de sua matria ter sido recolhida entre a camada popular, formada por camponeses e marinheiros do interior da provncia de Npoles, por Basile durante seu encargo como governador feudal da provncia. Mas foi somente em 1925, pelas mos do crtico, filsofo e tradutor italiano Benedetto Croce, que Lo cunto de li cunti de Basile foi traduzido para o italiano standard (o italiano mais prximo do dialeto florentino utilizado pelos trs mestres italianos do sculo XIV), recebendo um novo ttulo em aluso ao modelo estrutural usado por Boccaccio no seu Decamerone: Pentamerone ossia la fiaba delle fiabe (Pentamero ou seja a fbula das fbulas).

Apesar da tardia traduo de Croce, inegvel que o crtico italiano tornou a obra de Basile corrente por toda a pennsula italiana, j que havia restries lingusticas ligadas ao dialeto de Npoles, considerado marginal na poca. Entretanto, essa mudana de ttulo, embora estratgica, ao aproximar a obra napolitana do ttulo da obra de Boccaccio, acabou por desmerecer, sobretudo, a engenhosidade de Basile enquanto escritor, demonstrada desde o ttulo original do livro, pois o ttulo Lo cunto de li cunti, ou O conto dos contos em portugus, salienta, a nosso ver, a estrutura de encaixe, ao ressaltar o conto maior Lo cunto que enquadra os contos menores li cunti, o que vai ao encontro da observao do crtico italiano Michele Rak:

A obra foi construda do seguinte modo: um conto (o quinquagsimo da abertura/pontes narrativas/fechamento) no interior do qual so narrados outros quarenta e nove contos. Por este motivo a obra foi intitulada conto dos contos. Se fala de jogo dos jogos no mesmo sentido [...]. O quinquagsimo conto a histria de Zoza que abre e fecha a obra e tem a mesma estrutura do ltimo conto (As trs cidras, o quadragsimo nono: confira o conto 9 da quinta jornada) (RAK, 2004, p. 15, traduo nossa[65]).

            Como bem destacou Rak (2004), o conto moldura (quinquagsimo), que assinala os quarenta e nove contos internos obra, a histria da princesa Zoza, uma princesa que nunca sorria e, quando sorria, em virtude de gestos bizarros de uma velha avistada pela princesa atravs da janela do palcio. Na verdade, a velha havia levado um tombo, o que provocou uma grande gargalhada na princesa e ao mesmo tempo uma grande ira na velha, que, por esse motivo, jogou uma maldio sobre a princesa, segundo a qual o prncipe com quem ela se casaria, chamado Taddeo, estava dormindo numa tumba longe da cidade e, ao encontr-lo adormecido, ela teria, caso quisesse se casar com ele, chorar um vaso de lgrimas. Diante disso, Zoza parte para fora da cidade e encontra o prncipe adormecido, e logo se pe a chorar, porm, a princesa vencida pelo cansao e adormece e quem termina de encher a nfora a velha escrava, fato que rompe o estado letrgico do prncipe, que, pensando que a escrava fosse sua salvadora, se casa com ela e a leva para morar em seu palcio na cidade de Torrelunga. Inconformada pelo ardil do qual foi vtima, Zoza tambm arquiteta um plano: morando em frente ao palcio do prncipe, a princesa d de presente escrava vrios objetos mgicos, dentre eles uma boneca que incute na ex-escrava o desejo incontrolvel de ouvir contos de fadas. Assim, o prncipe convoca dez mulheres velhas e mais linguarudas da cidade para narrar, durante cinco dias, ou jornadas, e entre banquetes e jogos tpicos da vida cortes, dez contos de fada (dez contos por dia), totalizando, ento, cinquenta contos maravilhosos, sendo o quinquagsimo a prpria histria de Zoza. A princesa desmascara a ex-escrava no ltimo conto da ltima jornada, fechando assim o quadro, o que conduz o final feliz para a princesa e a punio para a escrava.

            A obra de Basile composta, alm da histria de Zoza, que representa a narrativa moldura, por quarenta e nove contos enquadrados que contm contos de fadas considerados matrizes literrias de contos clssicos encontrados nas colees de Perrault e Grimm, de acordo com Merege (2010, p. 45): Publicada em 1634-36, a obra contm as primeiras verses escritas de histrias como Cinderela e A bela adormecida, num tom cmico e s vezes grosseiro que soa de forma estranha aos leitores dos contados herdados da tradio dos Grimm.

            Alm de conter histrias famosas em todo o folclore europeu, Lo cunto de li cunti, de Basile, conserva histrias populares do tipo ciclo noivo-animal, termo cunhado por Bruno Bettelheim em sua obra A psicanlise dos contos de fadas, para designar contos de fadas originrios do mito de Cupido e Psiqu (BETTELHEIM, 2020), conto mtico que fora recolhido e registrado por Lcio Apuleio no romance antigo O asno de ouro. Do ciclo noivo-animal, foi registrado por Basile em O conto dos contos o nono conto de fadas narrado na segunda jornada, intitulado Il catenaccio (ou O cadeado em portugus), como comprova Croce (2010, p. 165, traduo nossa) na introduo do livro em italiano: E ns compreenderemos, sobretudo, que vrios entretenimentos pertencem ao grupo daquele, que o conto de fadas mais famoso e mais rico de histria, o conto de Psiqu – Assim o nono da segunda jornada, no qual se conta a histria de Luciella[66].

O mais curioso que esse conto, que narra a histria de Luciella (Lucinha) e seu caso amoroso com um prncipe encantado que foi alvo de uma maldio, chegou ao imaginrio baiano, com o ttulo de Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), recolhido pelo escritor e folclorista brasileiro Marco Haurlio em Igapor, na Bahia, e registrado em seu livro Contos e fbulas do Brasil, conforme atesta o prprio coletor da obra brasileira: Um conto recolhido em Igapor, Bahia, chamado Anglica mais afortunada, com a histria de um prncipe encantado tei, parente em primeiro grau de O cadeado (entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron (HAURLIO, 2018, p. 11).

            Por terem o mesmo ancestral mtico, tanto o conto maravilhoso de Giambattista Basile, intitulado O cadeado, quanto o conto maravilhoso de Marco Haurlio, chamado Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), so histrias populares pertencentes ao ciclo noivo-animal, o que j nos leva a inferir que, j pela denominao da expresso noivo-animal, que todas essas histrias tm em comum o elemento maravilhoso da metamorfose do noivo em animal; no caso da verso brasileira, como denota o ttulo, um prncipe Tei, com quem Anglica aceita o sacrifcio de viver sem nenhuma resistncia, motivo do noivo-animal retomado na verso brasileira, segundo Haurlio (2011). Dada a essa convergncia, temos como objetivo, no presente artigo, fazer uma comparao intertextual entre os contos maravilhosos do napolitano Giambattista Basile e do brasileiro Marco Haurlio, examinando, principalmente, os elementos populares que remetem transmisso oral dessas histrias populares, os quais, ao nosso entendimento, demarcam o territrio da potica da voz nessas narrativas maravilhosas, que, alis, foram primeiro contadas oralmente e depois ouvida por esses coletores, que as registraram em suas coletneas.

As vozes da tradio tambm esto presentes na coletnea brasileira Contos e fbulas do Brasil, resultado do trabalho que o folclorista, poeta e escritor Marco Haurlio[67], nascido na Bahia, j vinha desenvolvendo desde 2005 com sua publicao de Contos folclricos brasileiros, voltada ao pblico infanto-juvenil, porm a coletnea de 2011 uma reunio de histrias destinadas a leitores de todas as idades. A coletnea Contos e fbulas do Brasil inclui, alm de contos populares recolhidos na Bahia, contos oriundos de outros estados do Nordeste, como Pernambuco e Alagoas, todos coletados da rica tradio oral da regio por meio de um gravador. O dilogo de Marco Haurlio com a tradio se manifesta no somente pelo rico acervo de contos recolhidos daquela regio, mas tambm pelo fato de o folclorista dedicar seus Contos e fbulas do Brasil a Brulio do Nascimento, como Haurlio (2011, p. 11) testemunha no prefcio que escreveu para sua coletnea: E ao Professor Brulio do Nascimento, emrito catalogador do conto e do canto popular, ofereo mais estas flores colhidas do jardim da tradio.

            Explicita a relao entre Brulio do Nascimento e Marco Haurlio, alm da dedicatria feita no prefcio O conto popular no sculo XXI por Haurlio (2011), o fato de ambos os folcloristas brasileiros terem classificados seus contos populares com base no catlogo ATU, sistema de classificao internacional ampliado em 2004, o que nos mostra a influncia do primeiro sobre o trabalho do segundo folclorista, pois Brulio do Nascimento foi o primeiro estudioso de folclore a utilizar esse sistema no Brasil na verso mais atualizada em sua coletnea de 2005, Catlogo do conto popular brasileiro. Igualmente fez Marco Haurlio em sua coletnea Contos e fbulas do Brasil, ao inserir na parte final de seu livro a seo Classificao e notas[68] feita por Paulo Correia.

 

 

O frescor das histrias napolitanas no Nordeste brasileiro

 

            De acordo com Haurlio (2018), algumas narrativas registradas no folclore brasileiro exalam o mesmo frescor das histrias napolitanas, unidas pela origem comum e pela exuberncia de tipos e motivos. Verificaremos, ento, em que medida as histrias contadas oralmente no Nordeste brasileiro, mais precisamente o conto Anglica mais afortunada, exalam o frescor das napolitanas recolhidas e recriadas por Basile j no sculo XVII, por exemplo O cadeado. Nesse sentido, utilizamos a expresso recriada por Basile, dado o estudo realizado em 2018, no qual analisamos o conto napolitano, de Basile, como uma recriao intertextual do mito Cupido e Psiqu. Contudo, uma vez que este conto napolitano foi ouvido e coligido na Bahia por Marco Haurlio no sculo XXI, acreditamos que no se possa excluir a possibilidade de o escritor napolitano ter ouvido e recolhido essa narrativa j na forma de conto de fadas, tendo em vista as inmeras andanas tpicas desse gnero pela tradio oral.

            Mas antes de analisarmos os contos em questo, passamos sntese de seus enredos. No conto napolitano O cadeado, narrada a histria de Luciella que vai buscar gua numa fonte e encontra um escravo que a leva a um belssimo palcio, onde ela tratada como rainha e dorme todas as noites com um prncipe encantado que a aconselha a no ver o rosto dele. Aconselhada pelas irms invejosas a ver com quem dormia, Luciella descobre que dorme com um belssimo jovem e expulsa por ele. Depois de tanto perambular grvida por alguns meses, Luciella acolhida por uma donzela no palcio da me do prncipe encantado, onde Luciella tem um filho, e depois de quebrada a maldio, que afastava o prncipe encantado de seu filho recm-nascido e de Luciella, eles fazem as pazes e se casam. J o conto baiano Anglica mais afortunada (O prncipe Tei) conta a histria de Anglica que, pela m sorte de seu pai caador, que havia prometido ao Tei como recompensa do alimento que lhe deu a primeira coisa que o prncipe avistasse no quintal, pensando na cadelinha que tinha, levada para morar num buraco com o prncipe Tei e proibida por ele de ver seu rosto. Por sentir saudades de sua famlia, Anglica visita suas irms mais velhas e seu pai, o qual lhe d uma vela e um fsforo e a incita descobrir com quem dorme todas as noites. Ao iluminar seu leito noite, Anglica avista o belssimo prncipe com quem dorme e expulsa por ele. Depois de tanto caminhar de bucho, utilizando a expresso do narrador, Anglica acolhida por uma velha que a ajuda por recomendao do rei daquela cidade. Na morada da velha, Anglica e seu filho recm-nascido recebem durante trs noites a visita do prncipe Tei que est preso a uma maldio. Na terceira noite, a maldio se rompe e eles finalmente ficam juntos. Em seguida, o rei e a rainha, pais do prncipe Tei, buscam seu filho e a famlia dele, terminando, assim, o conto.

            A primeira convergncia entre os contos maravilhosos napolitano e baiano diz respeito mulher ser a contadora de histrias, figura que se liga tradio oral, segundo Cmara Cascudo (2004, p. 19-20), citando Paul Sebillot:

Paul Sebillot mostra que a mulher a melhor contadeira de histrias que o homem. Guarda em maior quantidade porque lhe cumpre o agasalho dos filhos e a tarefa de adormec-los, entretendo-os com o maravilhoso. Os irmos Grimm fizeram sua coleo admirvel ouvindo as velhas, as tias da tradio oral portuguesa, as bs, e mes-pretas no Brasil.

            Dando continuidade tradio de ser a melhor contadeira de histrias, a contadora de quem o folclorista Marco Haurlio ouviu o conto maravilhoso baiano Anglica mais afortunada uma mulher chamada Lucidalva Pereira dos Salvos na cidade de Igapor, conforme a anotao depois do conto. Igualmente o conto maravilhoso O cadeado, de Basile, visto que narrado por uma velha-personagem narradora chamada Ciommetella, anunciada no fragmento da narrativa-moldura que enquadra o conto:

Casou grande compaixo no corao de todos as desgraas passadas pela pobre Lisa, e mais de quatro estavam com os olhos vermelhos e lgrimas nos cantos, pois no h nada que mais desperte piedade do que ver algum sofrer inocentemente; mas tocando Ciommetella desenrolar o carretel, assim disse [...] (BASILE, 2018, p. 229, grifo nosso).

            Na obra de Basile, muito comum, ao nos referirmos s contadoras de histrias, a expresso velha personagem-narradora, visto que, alm de exercer a funo de narradora do conto que se prope a narrar, a velha personagem da narrativa-moldura, porque ela foi convidada pelo prncipe Taddeo e sua esposa impostora para narrar contos maravilhosos e entret-los durante o dia entre banquetes e jogos, disso decorre o fato dos cunti de Basile serem narrados durante o dia, escolha que contraria quela tradio apontada em outras colees europeias, por exemplo a do italiano Straparola que procedeu Basile na literatura italiana: Le piacevolli notti. Outro aspecto que diferencia a obra de Basile da coletnea brasileira, escrita por Marco Haurlio, reside no fato de que a velha contadora, no caso em nmero de dez em O conto dos contos, ser identificada por um defeito fsico que se revela no nome dela, no caso, a velha personagem-narrradora do conto O cadeado Ciommetella tinhosa, anunciado na introduo da obra italiana, junto aos nomes das noves personagens-narradoras da obra.

            Uma possvel explicao para esses eptetos presentes nos nomes das contadoras, em que se evidencia o disforme, reside no gosto pelo grotesco prprio do Barroco, corrente literria em voga no sculo XVII que privilegia o bizarro, na qual se filiava o escritor napolitano. Observao semelhante nossa tm as pesquisadoras Bonetto e Reis (2018), segundo as quais essa marca do grotesco barroco presente nos nomes das dez velhas-personagens narradoras de Basile um procedimento utilizado para obter o efeito pardico com o Decamerone, de Boccaccio, ao rebaixar a classe social de abastada para pobre e transformar as dez narradoras de jovens com bons costumes para velhas fofoqueiras com distores fsicas.

            A velha personagem-narrradora Ciommetella tinhosa, ao contrrio das outras nove contadoras, no parece ter no epteto que a identifica uma indicao de alguma distoro fsica, dada a primeira acepo deste adjetivo em portugus, que, segundo o Dicionrio Michaelis online, significa teimosa. A segunda acepo para a palavra tinhosa repugnante ou que causa nojo, significado figurado que ao nosso ver parece estar mais ligado ao universo das distores fsicas e ao efeito do grotesco, j que o barroco privilegia o repugnante.

Embora tais associaes com os significados da lngua portuguesa sejam pertinentes, para analisar o adjetivo tinhosa, que no caso desqualifica o nome Ciommetella, temos que averiguar o sentido da mesma palavra em lngua italiana, para isso, recorremos edio bilngue (napolitano e italiano) da obra de Basile, traduzida pelo estudioso italiano Michele Rak, que manteve o ttulo original da obra, Lo cunto de li cunti, assim como o tradutor Francisco Degani, que traduziu a obra integral de Basile diretamente do napolitano para o portugus brasileiro em 2018, preservando o ttulo original, O conto dos contos, e dando a conhecer os contos de Basile em nosso pas, pois, caso quisssemos ler Basile em lngua portuguesa, tnhamos que recorrer a tradues esparsas.

Na edio bilngue traduzida por Rak (BASILE, 2013), a velha personagem narradora chamada de Ciommetella tignosa. No interior do adjetivo tignosa em italiano est a palavra tigna, que Ҏ uma doena na pele que leva queda dos cabelos [...] (traduo nossa do original la tigna una malattia cutnea che porta alla caduta dei capelli [...] (PICONE, 2004, p. 113). Alm de nos informar um significado preciso para a palavra tigna, o pesquisador italiano Michelangelo Picone nos oferece uma pista de anlise para esse epteto, ao se questionar se essa doena deseja aludir capacidade desta narradora de revelar com os seus contos a verdade das coisas. A resposta logo nos dada por ele, que afirma ser a prpria Ciommetella com o seu ltimo conto, que tambm o conto conclusivo da coletnea (se exclui-se aquele principal de Zoza), a desmascarar a artimanha da escrava[69] (PICONE, 2004, p. 114).

De fato, essa capacidade de Ciommetella ligada doena tigna verificada na fala desta velha personagem-narradora no fragmento que enquadra o conto O cadeado, depois que a velha narradora anterior lhe cedeu voz:

Os conselhos da inveja sempre foram pais das desgraas, por que debaixo da mscara do bem encerram a face da runa, e a pessoa que tem nas mos os cabelos da fortuna deve imaginar ter a todo momento cem pessoas que estendam cordas diante de seus ps para faz-las levar um tombo, como aconteceu a uma pobre moa que, pelo mau conselho das irms, caiu da escada da felicidade, e foi misericrdia do cu que no quebrasse o pescoo (BASILE, 2018, p. 229).

Nesse fragmento, que se refere fala de Ciommetella tinhosa (tignosa), o conto O cadeado tambm revelar a verdade dos fatos, verdade que consiste em desmascarar a face das irms invejosas da protagonista, as quais do conselhos irm mais jovem, provavelmente protagonista Luciella, como atitude de benevolncia para prejudic-la ou para faz-la levar um tombo. Concordamos, portanto, com a anlise de Picone (2004) sobre Ciommetella ser uma velha personagem-narradora cuja doena fsica tigna, que causa a queda de cabelos, alude atitude de revelar a verdade ou de desmascarar as personagens invejosas, pensando nas irms de Luciella, e impostoras, pensando na escrava que tomou o lugar da princesa Zoza.

            Alm de antecipar o fato que Luciella ser prejudicada por suas irms mais velhas, a fala da narradora Ciommetella tambm anuncia o tema do conto maravilhoso a ser narrado por ela, o da inveja. Recuperando este mesmo tema, como uma espcie de arremate ao conto, Basile (2018, p. 232) o insere tambm no desfecho, mas na forma proverbial: fruto da inveja o mal de estmago. Nesse aspecto, devemos explicar que prprio do estilo literrio de Basile, da interveno artstica do escritor, os contos serem encerrados por um provrbio de origem napolitana, elemento que tambm se liga tradio oral, assim como o fato de as narradoras serem mulheres, justamente por remeter sabedoria popular, pois, de acordo com o Benjamin (2015), era muito comum o contador de histrias tradicional utilizar provrbios como uma forma de conselho de utilidade prtica aos seus ouvintes.

            Refora essa ideia de conselho na forma proverbial o significado da expresso O fruto da inveja o mal de estmago em lngua portuguesa ou figlio de lamidia lantecore (BASILE, 2013, p. 416) em dialeto napolitano, pois, conforme a plataforma italiana Corpo di Napoli, que explica os provrbios napolitanos da obra de Basile, o mal-estar que prende o estmago; tem o mesmo efeito da nusea, que permanece e nunca passa. a sensao de quem rumina inveja e de quem pago assim com a mesma moeda[70]. A partir de tal explicao, podemos entender que fazer mal a algum, por inveja, prejudicar a si prprio. Esse significado comprovado pelo desfecho do conto de Basile, no qual as irms mais velhas e invejosas so punidas. Diante disso, compreendemos que o provrbio napolitano, elemento frasal que nos sugere por metonmia a voz do contador de histrias no conto O cadeado, aconselha o ouvinte a no se deixar ser conduzido pela inveja, sentimento que pode ser entendido como uma doena, porque s provoca dor e sofrimento por quem o sente.

            Alm de remeter a uma forma de sabedoria popular e coletiva, dada a experincia comunitria em que estava inserido o contador de histrias tradicional, o elemento proverbial na obra napolitana pode ser associado a uma frmula de transmisso oral, pois, segundo Cascudo (1984), uma marca da oralidade, comumente utilizada pelos folcloristas, as repetidas formas de comear e terminar uma histria, que podem ser semelhantes ou dessemelhantes em culturas diferentes. Quanto s formulas finais, Cascudo (1984, p. 230) afirma: Para findar as frmulas so vrias e raro ser o narrador que as esquea. Pode aparecer mesmo um retoque pessoal sugestivo. o requinte da tcnica o saber fechar bem uma estria. Fundamentando-nos no terico, compreendemos que Basile, ao utilizar o provrbio napolitano para fechar bem seus cunti, quer explicitar tanto seu requinte como escritor e sua cultura de origem, a napolitana, quanto chamar a ateno do seu ouvinte, no caso do leitor, aconselhando-o sobre sentimentos coletivos, o da inveja.

            De forma contrria, o conto brasileiro Anglica mais afortunada no apresenta uma frmula final, como podemos notar pelo desfecho: Dessa forma, o encanto foi quebrado. Passados uns dias, o rei e a rainha foram casa da velha buscar o filho, a nora e o neto para viver com eles no castelo (HAURLIO, 2011, p. 66). Nessa parte final do conto baiano, percebemos, assim como na verso napolitana, portanto, uma convergncia, a restaurao da situao de tranquilidade e a unio dos amantes que foram antes separados pela ao dos personagens, no caso, o pai de Anglica no conto baiano, e as irms invejosas de Luciella no conto napolitano. No entanto, no porque a verso baiana no apresente uma frmula final que ela no preserva traos da oralidade. Em vez disso, acreditamos que a ausncia da frmula final no conto baiano comprova justamente as andanas desta narrativa pelo territrio do maravilhoso, pois medida que o conto maravilhoso napolitano foi emigrando no tempo e geograficamente, possvel que ele tenha perdido algumas marcas da oralidade, como a frmula final proverbial, e incorporado outras locais, da cultura brasileira nordestina, como veremos mais adiante.

Alm do provrbio, outro elemento lingustico ligado transmisso oral, que comprova a importncia e a valorizao do material folclrico coligido por Basile no sculo XVII e por Marco Haurlio no sculo XXI, a presena da cantiga cantada na voz do prncipe encantado, na verso napolitana, e na voz do Tei, na verso baiana, cuja letra revela a maldio sob a qual os noivos estavam presos e impedidos de visitarem sua famlia, formada pelas protagonistas (Anglica e Luciella) e seus filhos recm-nascidos. Nesse sentido, a cantiga pode ser interpretada como um elemento que resgata a matria folclrica nos dois contos maravilhosos, pois, para Cmara Cascudo citado por Clria Botelho da Costa, esse material constitui, assim como o provrbio, o imaginrio popular de uma sociedade. Por sua natureza folclrica, esse material no traz explicitamente nem a marca do tempo nem o espao onde foi criada. Trata-se de uma produo annima, que no permite a identificao do autor (COSTA, 2013).

            Ainda que no seja possvel a identificao de seu criador, colocamos a seguir as cantigas nas verses do conto napolitano, esquerda, e baiano, direita, para efeito de cotejo entre suas adaptaes socioculturais:

O cadeado

 

Oh, belo filho meu,

se minha me soubesse,

em bacia de ouro o lavaria,

com faixas de ouro enfaixaria,

e se o galo nunca cantasse,

nunca de vocs me separaria

(BASILE, 2018, p. 231, grifos nossos).

Anglica mais afortunada (o prncipe Tei)

 

- Meu filho, se papai e mame soubera filho de quem tu era, te lavava em bacia de prata e te enxugava em toalha com fios de ouro. Se o galo no cantasse, jegue no urrasse, o sino no tocava, contigo eu amanhecera o dia (HAURLIO, 2011, p. 65, grifos nossos)

 

 

            Como podemos notar pelas palavras em destaque, h sutis diferenas entre as cantigas napolitana, de Basile, e baiana, de Haurlio. Mas antes de nos atermos a essas mincias, evidente que elas denunciam o mesmo contedo na fala dos noivos de Luciella e Anglica: a maldio que os impedia de se aproximarem de seus filhos recm-nascidos, vinculada ao amanhecer do dia, representado em ambas as cantigas pelo canto do galo. Trata-se de uma convergncia menos evidente estabelecida com o prprio mito, ao qual se associam ambas as narrativas maravilhosas, pois, assim que o dia amanhecia, Cupido desaparecia do leito de Psiqu, retornando, somente, no ambiente noturno, assim como os noivos de Luciella e Anglica, tanto que Bettelheim (2002) fala em vidas diurna e noturna de Psiqu, ao se referir ao mito: a diurna tediosa, por ficar sozinha, e a noturna prazerosa, por estar com Cupido.

            O canto do galo, presente nas duas cantigas, alm de passvel de ser lido como uma aluso ao mito de Cupido e Psiqu, pode ser interpretado como uma superstio popular, pois, segundo Braga (1986), o canto do galo uma crena cujo poder afastar os demnios e fazer sugir a aurora. Por essa razo, o canto celebrado nos hinos e oraes da Igreja, sobretudo na tradio do povo portugus. Essa superstio popular do canto do galo est presente nos contos napolitano e baiano, porque neles a manifestao dos demnios ocorre no perodo noturno por meio da maldio, elemento mgico que auxilia os prncipes encantados a visitarem suas famlias durante noite, tanto que, assim que o galo canta ou o dia amanhece, os prncipes encantados so afastados do seio familiar. Justamente por promover o afastamento das figuras paternas, acreditamos que o canto do galo, em ambas as cantigas, sofreu uma inverso de sentido: a noite, por auxlio da maldio, tem uma acepo positiva, por aproximar os prncipes de sua famlia, e o dia, anunciado pelo canto do galo, tem uma acepo negativa, por afastar os prncipes de seus entes. Trata-se de um efeito paradoxal atribudo ao canto do galo, pois nos contos de fadas a maldio comumente associada a algo que pode trazer malefcios para suas vtimas. Essa acepo negativa para o canto do galo nos dois contos reverberada pelo tom de lamentao das cantigas, que constituem as falas dos prncipes.

            Vrios elementos que encontramos em ambas as cantigas, como a visita noturna, a me e filho recm-nascido e o canto do galo, esto presentes tambm no episdio do nascimento de Jesus e da visita dos trs reis magos. Este episdio cantado pela cano de Reis[71], intitulada Saudao da Lapinha, pelos seguintes versos:

8. E os reis, mas quando eram santo, No caminho se encaminharam. Viagem de fazer um ano, Em onze dias chegaram/. 9. Na chegada l da lapinha, Todo mundo j dormia. Nossa Senhora com seu manto, A Jesus ela cobria/10. Na chegada l da lapinha, O porteiro recebeu-se. Bateu asa e canta o galo, Menino Jesus nasceu[72].

            A partir desses versos, podemos aproximar as cantigas de ambos os contos e cano da Lapinha pela seguinte disposio: o prncipes encantados nas cantigas esto para os reis magos na cano de Reis, j que eles fazem a visita noturna; Luciella e seu filho recm-nascido esto para Nossa senhora e o menino Jesus; as faixas de ouro/toalhas de ouro esto pelo manto, e canto do galo a interseco maior que une as cantigas e cano, representando o nascimento do dia e o fim da maldio na cantiga e o nascimento do dia e do menino Jesus na cano de Reis, da o canto do galo ser celebrado nos hinos e oraes da Igreja catlica. Diante de tal leitura, pela simples proximidade entre esses elementos, tanto das cantigas quanto da cano de Reis, j seria suficiente para falar da incorporao do conto popular no s por elementos locais, j que a tradio da Folia de Reis muito celebrada no interior de vrias regies brasileiras, mas principalmente por elementos que aludem a outras mitologias, no caso, mitologia crist, da qual faz parte a narrativa do nascimento de Jesus, ainda que os contos napolitano e baiano tenham sido originrios do mito greco-romano de Eros/Cupido e Psiqu.

Explicada as convergncias entre os contos napolitano e baiano e os contos e os mitos greco-romano e cristo respectivamente, passamos a examinar as mincias que evidenciam os distanciamentos: nos versos da cantiga napolitana, percebemos elementos mais nobres nos objetos bacia de ouro e faixas de ouro, enquanto na cantiga baiana, os mesmos elementos foram trocados por bacia de prata e toalhas com fios de ouro. Em razo da prata ser um elemento menos nobre que o ouro e provavelmente a tolha ser um tecido de qualidade inferior ao da faixa, uma possvel motivao para essa desqualificao dos materiais elencados seja o fato de o palcio do rei, pai do prncipe Tei, ser menos nobre na verso baiana, dada a diferena de sculos entre os contos. Tais divergncias, embora relevantes, so sutis entre as cantigas, pois a que mais salta aos nossos olhos a meno ao jegue e ao sino na verso baiana, este ltimo pode estar associado ao canto do galo, dada a superstio desse canto celebrado na tradio crist.

Ao nosso olhar comparativo, a meno ao jegue na verso baiana uma referncia relevante para o contexto sociocultural do conto baiano, pois o jegue um animal muito recorrente na representao da paisagem e da vida cultural nordestina, tanto que existe, na Bahia, mais precisamente na cidade de Uau do estado, uma tradio chamada jecana, como evidencia Albuquerque (2014, p. 175): No dia do vaqueiro tambm ocorre a Jecana que o desfile de homens, mulheres, adultos e crianas, montadas em jegues, e esta j est em sua 11 edio com o objetivo de destacar a importncia do animal, to comum no Nordeste do Brasil. Ainda que o conto baiano aqui cotejado tenha sido recolhido na cidade de Igapor, tambm do estado da Bahia, aproveitamos a referncia cultural tradio da jecana na cidade de Uau, porque, segundo a pesquisadora, a cidade de Uau uma referncia aos sertes da Bahia, por ser um muncipio que ainda preserva as mais genunas expresses e manifestaes da cultura popular, constituindo, assim, o celeiro de cantadores, poetas populares, repentistas, sanfoneiros, aboiadores, zabumbeiros etc.

Apesar de o jegue no conto baiano ser uma referncia que nos sugere a adaptao da narrativa cor local, o serto baiano do Nordeste, o elemento que revela maior expressividade da cultura nordestina no conto de Marco Haurlio j est contido no prprio ttulo da narrativa: Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), visto que o lagarto tei um noivo-animal recorrente nas histrias populares brasileiras que originaram do mito Cupido e Psiqu, conforme Doralice Fernandes Xavier Alcoforado: Nas verses brasileiras, o noivo metamorfoseado pode vir na aparncia de fera, lagarto, tei, veado, porco, leo, drago, sapo, boi, camaleo, burro, urubu, cobra, lagartixa, papagaio, pombo, peixe ou mesmo beija-flor (ALCOFORADO, 2000, p. 42).

O argumento para a substituio do prncipe encantado da narrativa napolitana, descrito como monstro pelas irms de Luciella, disso ele ser considerado tambm noivo-animal, pelo prncipe Tei da narrativa baiana, pode ser tirado com base em Alcoforado (2007) que afirma ter encontrado, em sua pesquisa de campo, recolhendo histrias populares do mito de Apuleio no estado da Bahia, trs contos com elementos temtico-estruturais que os integram ao tipo 2: O Peixe Dourado (v. 1), A Histria do Tei (v. 2) e O Pssaro Assu (v. 3). O tipo 2 apresenta contos que se articulam a partir de uma carncia de pesca ou de caa que afeta a vida do chefe de famlia, porque caar ou pescar a sua profisso. Essa carncia, entretanto, pode ser superada caso o chefe aceite a oferta de abundncia de alimentos proposta por um ser encantado, em troca da primeira coisa a ser vista no retorno casa. No costume de ver sempre a cachorrinha, o progenitor aceita a proposta. Contudo, ao chegar em casa, a prpria filha ou o filho que o ser encantado avista. O pretendente no propriamente um monstro, na acepo que dada ao termo, porm animal mais ou menos familiar, um peixe ou um tei, que deseja casar-se com a moa, ou a Me dgua que deseja casar o rapaz com a sua filha (ALCOFORADO, 2007).

Assim como nos trs contos coletados por Alcoforado[73] (2007), no conto baiano, recolhido por Haurlio (2011), o pai de Anglica, chefe da famlia, tambm desempenhava o papel de caador, que, alis, no lhe rendia alimento:

Houve, h muito tempo, um caador muito pobre que era vivo e morava com suas trs filhas numa casinha da mata. Um dia, ele no estava tendo sorte na caada. J era tarde e o homem no tinha conseguido nada para a ceia. Muito triste, sentou-se numa pedra e comeou a maldizer sua sorte. Nisso chega um tei e pergunta para o velho [...] (HAURLIO, 2011, p. 64).

            A partir deste trecho, analisamos que a escolha pelo tei como noivo-animal no conto baiano justifica-se no somente por ser um animal associado pesca e, portanto, um alimento que pode compensar a situao de carncia do chefe da famlia, que exerce a funo social de caador, mas tambm por demonstrar a capacidade do conto de se adaptar ao universo cultural do contador, no caso do serto baiano da regio nordeste, o que explicita, sobretudo, o carter etnogrfico do texto oral que percorre pelo territrio do maravilhoso, acomodando-se s mais diversas localidades geogrficas.

 

 

Consideraes finais

Ao recolher o conto maravilhoso baiano da tradio oral, Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), que evidencia uma relao intertextual com o conto napolitano O cadeado, recriado por Giambattista Basile com base no mito de Cupido e Psiqu ou talvez recolhido j na forma de conto maravilhoso no sculo XVII pelo escritor napolitano em sua obra-prima Lo cunto de li cunti (O conto dos contos), o poeta, escritor e folclorista baiano Marco Haurlio dialoga com a tradio na qual se insere o escritor Basile. A tradio oral se manifesta, na obra de ambos os escritores compiladores, por elementos comuns, como a contadora de histria, a cantiga e a superstio popular do canto do galo, e distintos, presena e ausncia de frmulas finais, mas ambos recursos evidenciam o contexto sociocultural de produo de suas respectivas obras, haja vista a referncia tanto ao jegue quanto ao lagarto Tei no conto baiano coletado por Haurlio (2011) na cidade de Igapor, e a cultura napolitana e as deformaes fsicas prprias do Barroco no conto napolitano recriado ou possivelmente recolhido por Basile.

Alm da voz do escritor napolitano na coletnea Conto e fbulas do Brasil, ecoam outras vozes da tradio, porm de folcloristas brasileiros: Brulio do Nascimento, para quem Haurlio (2011) dedica sua coletnea Contos e fbulas do Brasil, e com quem compartilha o uso do ndice internacional ATU de classificao dos contos, j adotado por Brulio do Nascimento em seu Catlogo do conto popular brasileiro, de 2005; e Doralice Alcoforado, cujos trabalhos pioneiros no Brasil desde a dcada de 90 revelam a presena do mito de Cupido e Pisqu no imaginrio baiano, dado o ttulo de sua antologia Belas e Feras baianas: um estudo do conto popular e as reflexes terico-crticas da pesquisadora que mostram o tei como o noivo-animal recorrente no contexto cultural do serto do Nordeste brasileiro.

No movimento analtico, embora tenhamos identificado ressonncia dessas vozes da tradio no conto baiano e na obra de que faz parte, no podemos deixar de mencionar a importante reflexo que Haurlio (2011) faz no prefcio de seu livro: o carter coletivo de qualquer coletnea de contos tradicionais em qualquer poca, pois, sempre que uma antologia de contos tradicionais publicada na aurora dos tempos, ela resgata consigo, por um lado, autores annimos que elaboram e reelaboraram tais histrias e, por outro, contadores de histrias, que desempenham o papel de retransmissores atuais, como as contadoras, de quem Haurlio ouviu e recolheu o conto baiano e por meio de quem Basile ouviu e narrou o conto napolitano selecionados para este artigo.

 

 

Referncias

 

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[Recebido: 08 ago 2020    Aceito: 24 jan 2021]

 


 

COLETIVO LUSA MAHIN - SARAU DAS PRETAS: O PROMIC E A PERFORMANCE COMO MOBILIZADOR IDENTITRIO E FORMATIVO

 

 

COLETIVO LUSA MAHIN - SARAU DAS PRETAS: PROMIC AND PERFORMANCE AS IDENTITY AND FORMATIVE INSTRUMENT

 

 

Amanda Maria Damasio Teixeira[74]

https://orcid.org/0000-0002-4064-05

 

Ana Cristina Pereira da Silva [75]

https://orcid.org/0000-0003-2924-95

 

Resumo: Utilizando como foco o projeto londrinense Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas, este artigo pretende expor como o PROMIC (Programa Municipal de Incentivo Cultura) viabiliza performances em torno da literatura, da formao e de questes identitrias. Dito isso, utilizaremos como vis de anlise os textos de Zumthor (2007) e Aguilar e Cmara (2017), para compreender o papel da voz e da performance, e a teoria dos polissistemas de Even-Zohar (2013), em que discute sobre os polissistemas literrios e suas periferias. Tambm sero utilizadas transcries de entrevistas com duas produtoras culturais encarregadas do projeto. Levando em conta o artigo de Mariano (2019), em que pressupe-se uma interseco entre os polissistemas perifricos de Even-Zohar e a literatura afro-brasileira, foi possvel concluir que o PROMIC mobilizou aes mltiplas (em espaos privilegiados ou no, utilizando como base o texto escrito ou saberes orais) que contribuem para maior nfase mulher negra e de narrativas afro-brasileiras silenciadas por uma questo racial e perifrica, contribuindo, ento, para a oxigenao do cnone.

Palavras-chave: Sarau. Polticas pblicas. Literatura afro-brasileira.

 

Abstract: Using as a focus point the project Coletivo Lusa Mahin - Sarau das Pretas, based in Londrina, this article aims to show how PROMIC (a municipal cultural program) enables performances around literature, learning and identity matters. That said, the following authors were used as analisis bias: Zumthor (2007) and Cmara (2017) (to comprehend the role of voice and performance) and the Even-Zohars polysystem theory (2013), work in which he discusses literary polysystems and its peripheries. Transcribed interviews with the two cultural producers behind the project will be presented also. Taking into account Marianos article (2019), in which one could presuppose an intersection between the Even Zohars peripheral polysystems and afro-brazilian literature, was possible to conclude that PROMIC made actions viable (in multiple places and via written text or oral knowledge), giving more emphasis to black women and afro-brazilian narratives that were silenced by a racial and peripheral issue, contributing, finally, to a more balanced canon.

Keywords: Soiree. Public Policy. Afro-brazilian literature.

 

 

 

 

Introduo

 

Atualmente, os impactos das polticas pblicas de cultura so colocados em discusso, so questionados. Em Londrina, o PROMIC (Programa Municipal de Incentivo Cultura) viabiliza a execuo de inmeros projetos a partir de renncia fiscal. Um dos projetos contemplados, categorizado na rea destinada Literatura, o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas, originalmente criado em 2015 para financiar a ida de um grupo de mulheres negras londrinenses para Braslia, onde participaram da 1 Marcha Nacional das Mulheres Negras. Esse acontecimento fez com que as pessoas envolvidas formassem o Coletivo de Mulheres Negras Lusa Mahin, responsvel pelo Sarau e por outros eventos formativos em que questes identitrias e relacionadas literatura afro-brasileira so colocadas em discusso. Segundo Fiama Helosa[76], uma das produtoras do evento, os objetivos so:

 

trabalhar a cultura afro-brasileira nas escolas e demais espaos educativos, abordando a importncia da compreenso da identidade negra e os desafios que ela enfrenta na sociedade brasileira a partir de diferentes formas (literatura, teatro, contao de histrias, palestras, roda de conversa) e tambm marcar a cena cultural londrinense com um espao dedicado cultura negra ( exaltao das nossas razes africanas) e ao fortalecimento da nossa comunidade por meio de um Sarau.

 

Assim, fica claro que o Sarau um dos espaos de fortalecimento da cultura negra local, que tem como atividade principal as performances que nele acontecem, mas que no se restringe s a isso.

O sarau tambm um dos espaos de discusso e de abertura para dilogo acerca da identidade afro-brasileira. Dessa forma, busca-se entender de que forma o PROMIC auxilia na realizao desses objetivos? De que forma a voz e a performance contribuem ou no para o fortalecimento de uma identidade londrinense e para o protagonismo da mulher negra?

 

 

Poltica pblica, polissistema e performance: uma questo de carter social

 

            Um dos tericos que utilizaremos neste trabalho Itamar Even-Zohar. Sua pesquisa em relao ao polissistema literrio, expresso cunhada pelo autor, discute o cnone literrio e as relaes que o afetam, dando nfase ao seu carter social. Sua proposta parte do reconhecimento de que a heterogeneidade da cultura ampla e se forma a partir de movimentaes centrpetas e centrfugas, em que a periferia e o centro da recepo literria se impactam. Sobre isso, Even-Zohar (2013, p. 8) declara:

 

A ideologia de uma cultura oficial como a nica aceitvel em uma dada sociedade tem como consequncia uma massiva compulso cultural que afeta a naes inteiras mediante um sistema educativo centralizado e que torna impossvel, inclusive a estudiosos da cultura, observar e valorar o papel das tenses dinmicas que operam no seio da cultura para sua efetiva manuteno. Como um sistema natural que necessita, por exemplo, de regulamentao trmica, os sistemas culturais necessitam tambm de um equilbrio regulador para no entrar em colapso ou desaparecer.

 

Ento, de acordo com a configurao expressa por Even-Zohar, possvel pensar em um repertrio brasileiro (e mltiplo, claro), em que essa centralizao (intrinsecamente relacionada ao social, ou seja, aos indivduos detentores do poder) implicaria uma posio menos prestigiosa literatura afro-brasileira (que se veria ento s custas de uma elite branca, por exemplo) e de outros nichos perifricos, supondo a existncia de um sistema ou um conjunto de elementos afro-brasileiro – hiptese defendida no artigo de Mariano (2019, p. 10):

 

Dentro da perspectiva brasileira, do sculo XIX, qualquer projeo de sistema literrio proveniente das populaes negras - e aqui poderamos pensar em outros recortes identitrios de minoria - seria devidamente barrada por um sistema hegemnico de literatura, muito bem estruturado nos rgidos moldes de raa, classe, gnero etc.

 

Assim, a literatura afro-brasileira dependeria de intervenes que se relacionam intimamente com o que Even-Zohar (2013, p. 6) expe como luta entre vrios estratos. Estando o polissistema literrio intrnseco ao social, o racismo tambm o afetaria, minimizando, talvez, seu alcance, visibilidade e recepo daqueles que se identificam como afro-brasileiros. interessante notar que o repertrio cannico definido pelas relaes travadas no polissistema, externas a um conjunto de caractersticas literrias, como discute Even-Zohar (2013). Embora, como explica o autor, o polissistema pode reorganizar-se sempre a fim de um equilbrio. Nesse sentido, o financiamento de projetos como o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas pode auxiliar nessa movimentao? Quais foram as pessoas beneficiadas durante a realizao do projeto? De acordo com Poliana Santos[77], uma das organizadoras do Sarau, este foi o trajeto:

 

Quando ns fomos aprovadas no PROMIC, ns tivemos a possibilidade de realizar o nosso trabalho na zona rural, fizemos oficinas dentro do Eli Vive, o acampamento do MST, ns cruzamos a cidade de Londrina de Norte a Sul, de Leste a Oeste, podendo levar o nosso trabalho, com a estrutura de material pedaggico, material humano, que proporcionado por essas estruturas financeiras, n? Voc poder contratar oficineiros e oficineiras, comprar material didtico, se locomover pra isso... porque as pessoas no se atentam que o movimento social no vive s de amor, n? O movimento social no vive s de educao. Ele precisa de estrutura para ser realizado. E participar de um programa de Bolsa como o PROMIC d a estrutura para que esses trabalhos saiam de determinados nichos, podemos dizer ''privilegiados'', de acesso para ir mesmo para as periferias, para alm das fronteiras do urbano... ento, isso muito importante.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 1 – Performance no sarau

Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.

 

Deve-se ressaltar, ento, a utilizao da bolsa para o desenvolvimento de uma pedagogia e seus materiais, como tambm a contratao de terceiros e o transporte at os locais selecionados. Ele permite que essa ateno se volte a espaos desprivilegiados, fazendo com que esses tenham acesso a servios que dificilmente chegam at eles. Alm disso, h uma mobilizao local em torno de necessidades culturais que poderiam afetar as periferias e reas rurais da cidade. Houve tambm uma movimentao de aproximao entre a Academia e espaos perifricos, quando, obtendo maior visibilidade e estrutura por ser justamente aprovado pelo PROMIC, o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas juntou-se a um projeto de extenso de Escrita Criativa da Universidade Estadual de Londrina. interessante notar que no mesmo trecho da fala de Poliana Santos vemos formas diferentes de abordagem em relao ao protagonismo da mulher negra – utilizando espaos perifricos (terreiros) e privilegiados (academia), como num contexto educativo informal e formal:

 

O Sarau das Pretas, em suma, tem um propsito fundamental em trabalhar a questo da formao, e essa formao a gente entende como trocas de saberes; dando o protagonismo da mulher, principalmente, da mulher negra. Ento assim, ns obtivemos, por exemplo, dentro do trabalho do Sarau das Pretas, um encontro dentro de uma casa de ax, que o terreiro da me Omin, onde vrias mulheres mais velhas trouxeram a sua cultura do benzimento, ento a gente fez essa troca com elas. Elas nos explicaram as questes das benzedeiras, os chs, trazendo essa historicidade atravs da sua oralidade, ali contando como era quando elas eram crianas, como se deram essa identidade de se ver como mulheres negras, ento muito pontual para ns essas vivncias. Ns nos organizamos para levar, por exemplo, uma oficina de Escrita Criativa, com o pessoal do professor Flvio Freire da UEL, ao pessoal do Flores do Campo. Ns nos organizamos para, com as crianas, trazer um material ldico, mas que faa o debate do racismo. Receber essa devolutiva, sabe, nesse processo educacional, , para ns, o mais importante. Um espao de formao onde a gente consiga resgatar essa historicidade pela questo da mulher negra, pelo olhar da mulher negra, e tambm levar um pouco da academia fazendo essa troca.[78]

 

A multiplicidade de eventos realizados pelo Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas permite uma abrangncia maior em relao discusso em torno da literatura afro-brasileira. Justaposto teoria dos Polissistemas, possvel perceber que o projeto no se limita apenas ao livro, produto final de todo um repertrio, como dir Even-Zohar (2013, p. 10), mas s tradies orais e formao e criao de novos leitores e produtores culturais (escritores):

 

difcil eliminar imagens respeitadas ao longo do tempo, e parece natural, portanto, que produzir e consumir textos tenha sido sempre a atividade mais importante na literatura. Em certos perodos, no obstante, o texto era mais marginal em relao a outras atividades no sistema literrio, tais como o escritor ou algum acontecimento total sob a forma de atuaes diversas.

 

As performances, ento, realizadas em variados espaos culturais da cidade (Usina Cultural, Cemitrio de Automveis e Casa da Vila), alm dos outros lugares j citados, demonstram um entendimento total de literatura por parte das organizadoras do evento, levando em conta que Even-Zohar compreende que as noes de livro e repertrio so parciais e no do conta para discutir um polissistema heterogneo. Dessa forma, capaz de adentrar lugares e alterar, nem que seja por pouco tempo, a hierarquia do espao, o direcionamento da ateno – conscientizando aqueles que permitem o racismo estrutural e aquelas que sofrem com este.

Assim, a partir da visibilidade garantida ao Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas, por meio do financiamento do PROMIC, possvel inferir que o PROMIC provoca maior oxigenao entre a canonicidade literria local, permitindo discusses que no abrangem apenas o livro ou a leitura em voz alta, mas a valorizao de tradies e vozes silenciadas por um sistema intrnseco ao polissistema literrio – o sistema social.

Como relatado por Even-Zohar (2013), existem foras centrfugas que podem carregar ou transferir propriedades de polissistemas perifricos para o centro – e poderamos afirmar que o sarau estudado uma dessas foras, colocando em evidncia essa identidade e suas vivncias:

 

De modo semelhante, por meio da estrutura polissistmica das literaturas envolvidas como podemos dar conta dos vrios e intrincados processos de interferncia. Por exemplo, ao contrrio da crena comum, a interferncia tem lugar, frequentemente, por meio das periferias (EVEN-ZOHAR, 2013, p. 18).

 

interessante relatar, ento, a importncia de projetos de polticas pblicas como o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas que, por meio da literatura e da voz, impactam o social. Atravs de suas performances, indivduos se conscientizam sobre a posio da mulher negra na sociedade, como tambm adquirem conhecimentos silenciados justamente por uma questo racial. O financiamento decorrente de uma bolsa do PROMIC provoca uma luta mais igualitria, talvez, entre os estratos, permitindo estruturas perifricas terem mais visibilidade e melhor formao mesmo distantes dos grandes centros.

 

 

 

Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas: a performance como forma de re-existncia

 

O Coletivo Lusa Mahin – Sarau das pretas foi criado, conforme j dito, pelo coletivo Lusa Mahin, em 2015. A priori, segundo as organizadoras, o coletivo era formado por Poliana Santos, Fiama Helosa, Thasa Carvalho, Silvia Castro e Rute. A formao atual conta com Fiama Helosa, Poliana Santos, Ana Paula Barcellos, Mariana Valle e Jamile Baptista, frente do coletivo.

Visando arrecadao de recursos para a Marcha das Mulheres Negras, realizada em Braslia em novembro do mesmo ano, o sarau cujo protagonismo a mulher, sobretudo a mulher negra, teve continuidade aps o evento. A reflexo sobre a importncia do protagonismo da mulher negra para o cenrio cultural e artstico de Londrina impulsionou o grupo a buscar parcerias culturais.

A partir disso, o sarau surge como forma de fomento s trocas literrias, sendo visto como um evento, um momento de confraternizao, a princpio, e depois com o PROMIC agregado tambm, ao sarau, um trabalho de formao, um aspecto educacional, segundo Poliana Santos.

Na produo literria contempornea, o singular se faz presente por meio do coletivo, o que leva criao de grupos, denominados coletivos, que so constitudos pela afetividade e pela identidade partilhada, caractersticas essenciais para a formao de redes afetivas (LEON, 2014). Sendo assim, o Coletivo Lusa Mahin vem a ser um agente importante dentro do sistema literrio corroborando para o estabelecimento de redes que fortaleam e deem protagonismo cultura negra.

O modus operandi do Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas conta com diversas atividades que visam promover a cultura afro-brasileira, contemplando as mais diferentes manifestaes artstico-literrias. No entanto, a voz o cerne de todas as edies do sarau, por meio da performance que ressignifica o texto literrio e possibilita as trocas afetivas atravs das redes formadas por ela.

 

Imagem 2 – Exposies e instalaes no sarau

Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.

 

Na programao, discotecagem com DJ J Moreno, roda de capoeira com o pessoal do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), apresentao musical com Tio Carvalho, Feirinha, gastronomia popular e momento de contao de histria para as crianas. O Sarau das Pretas se insere ainda como pr-abertura do Festival Literrio de Londrina – LONDRIX, por isso permeia a festa com momentos de microfone aberto para as mais diversas possibilidades de manifestao literria. Nosso encontro ser na Vila Cultural Cemitrio dos Automveis, a partir das 18h. Esperamos vocs! A entrada gratuita. Todas as atividades contam com o patrocnio do PROMIC, produo da P! Artstica e realizao do Coletivo Lusa Mahin.[79]

 

O PROMIC possibilitou ao Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas maior visibilidade s performances realizadas no evento, aumentando sua rede de alcance para as discusses sobre a cultura afro-brasileira e para divulgao de sua respectiva literatura. A lei de incentivo, que um dos agentes presentes no polissistema de Even-Zohar (2013), contribuiu para que a literatura afro-brasileira se movesse dentro desse sistema sentido ao centro dele.

claro que muito h de se fazer para que a literatura afro-brasileira chegue ao centro do sistema literrio, pois sabemos que as dificuldades em relao ao mercado editorial ainda so muitas. No entanto, o PROMIC como apoio para o sarau, evento cujo cerne a performance, surgiu como forma de movimentar essa literatura e dar condies de circulao dos textos literrios para alm do livro impresso.

 

Fazer o Sarau sempre foi uma forma de militncia porque acreditamos na importncia de fazer esse trabalho cultural sobre a cultura negra. Ao longo do percurso, tivemos muitos apoiadores e colaboradores, mas nunca de forma financeira. O dinheiro investido para realizar o Sarau, muitas vezes, era colocado do nosso prprio bolso. Muitas vezes, investimos com o nosso prprio dinheiro, depois recupervamos o valor com as coisas que fazamos para serem vendidas no evento (como comidas, bebidas, etc.) e, depois, guardvamos o que sobrava, quando sobrava depois de pagar todo mundo, como uma poupana do Sarau. Esse valor era investido novamente na prxima edio e assim amos indo. Mas essa limitao financeira nos impedia de crescer. Ns tnhamos vontade de ampliar as aes, mas no tnhamos perna. Ento, vimos no PROMIC essa possibilidade, que ele fosse o meio de financiarmos nossas aes. Com esse financiamento, conseguimos ampliar as atividades como j vnhamos planejando. Por isso, nosso projeto do PROMIC contemplou duas faces: a primeira educacional - em que fomos em escolas das reas urbana e rural falar com crianas, adolescentes e adultos sobre a cultura negra, alm tambm de oficinas abertas para a comunidade; e a segunda, cultural - momento em que realizamos edies do Sarau das Pretas para mostrar o resultado dos trabalhos desenvolvidos nas oficinas e para fortalecer a cena cultural negra na cidade.[80]

 

O ato performtico nico, dotado de corporeidade, carregado de sensaes e emoes. Uma voz no pode ser vista separada de um corpo, sempre que existir uma voz vai existir um corpo (ZUMTHOR, 2007). Dessa forma, voz, corpo e espao se fundem a fim de convocar a performance para mostrar que sua presena transforma as leituras possveis de uma obra (AGUILAR; CMARA, 2017, p. 13).

Imagem 3 – Apresentaes musicais

Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.

O corpo, os gestos, os modos de vestir, as entonaes da voz, so aspectos que o texto escrito sugere, mas no permite vivenciar. Atravs da performance, esses aspectos so vistos, sentidos e apreendidos de forma mais ntima, e assim, os sujeitos se afetam mutuamente permitindo essa experincia vivenciada.

 

Na performance a voz emanao do corpo, uma representao plena, que no apenas uma forma de comunicao que transmite conhecimento, mas que transforma o conhecimento, e sendo assim transforma de alguma forma o ser. A voz marca tanto o performer quanto o espectador, estabelecendo uma comunicao potica, uma experincia vivenciada [...] (SILVA; FERNANDES, 2019, p. 122).

 

As performances que acontecem nos Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas so dotadas de representatividade e ancestralidade. Como exemplo, temos um encontro que aconteceu dentro de uma casa de ax, que o terreiro da me Omin:

 

vrias mulheres mais velhas trouxeram a sua cultura do benzimento, ento a gente fez essa troca com elas nos explicando as questes das benzedeiras, os chs, trazendo essa sua historicidade atravs da sua oralidade, ali contando como era quando elas eram crianas, como se deram essa identidade de se ver como mulheres negras, ento muito pontual para ns essas vivncias.[81]

 

Alm de ser um meio de divulgar a literatura afro-brasileira, as performances do sarau tambm trazem a questo da representatividade a partir da histrias contadas por essas mulheres. E a, a mquina performtica se faz instrumento de transformao do conhecimento e de re-existncia para o performer e para o espectador. Espectador esse que se reconhece no performer ou que conhece a cultura afro-brasileira a partir das vivncias e dos saberes transmitidos pelas mulheres negras atravs da performance.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o sarau uma forma de resistncia no sentido de re-existir, de fazer re-existir. importante deixar claro o conceito de resistncia, visto que na atualidade, vrias so as possibilidades de sentido que se pode atribuir ao termo.

 

Ora, diante da ideia de que o poder, como relao de foras, funciona sempre como produtor de afetos, que a resistncia aparece para Foucault como um terceiro poder da fora. Se as foras se definem segundo o poder como um afetar e um ser afetado, resistir a capacidade que a fora tem de entrar em relaes no calculadas pelas estratgias que vigoram no campo poltico. A capacidade que a vida tem de resistir a um poder que quer geri-la inseparvel da possibilidade de composio e de mudana que ela pode alcanar.

Resistir , neste aspecto, o oposto de reagir. Quando reagimos damos a resposta quilo que o poder quer de ns; mas quando resistimos criamos possibilidades de existncia a partir de composies de foras inditas. Resistir , neste aspecto, sinnimo de criar. Sendo assim, a resistncia , para Foucault, uma atividade da fora que se subtrai das estratgias efetuadas pelas relaes de foras do campo do poder. Esta atividade permite fora entrar em relao com outras foras oriundas de um lado de fora do poder [...]. Foras do devir, da mudana, que apontam para o novo e engendram possibilidades de vida (MACIEL JR., 2014, p. 2).

 

Dessa forma, em Foucault que se busca fundamentar essa afirmao do sarau enquanto resistncia (re-existncia), em especial o Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas que coloca em evidncia a mulher negra no campo social e atua nesse mesmo sentido o qual Maciel Jr. (2014), ao retomar Foucault, nos traz o conceito de resistncia como criao, como fora da mudana que aponta para o novo e permite a abertura de possibilidades.

 

Imagem 4 – Integrantes do Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas

Fonte: Arquivo do evento (Facebook), 2019.

 

O Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas resistncia, porque resistir nessa perspectiva Ҏ criar, para alm das estratgias de poder (MACIEL JR., 2014, p. 2). O sarau cria possibilidades de composio e de mudana social por meio da performance. A voz, o corpo e o espao permitem que o texto literrio ganhe vida e possibilitam sua entrada em novos espaos sociais por meio das trocas de saberes e das trocas afetivas que operam nos saraus.

 

 

Consideraes finais

 

O Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas contou com o apoio do PROMIC para realizao das edies do sarau, e esse incentivo foi de grande importncia para a viabilizao do evento que, de acordo com seu modus operandi, mobiliza a divulgao de textos literrios de mulheres negras e a insero deles em diferentes espaos sociais por meio da performance.

A lei de incentivo municipal cultura foi essencial para que a literatura afro-brasileira londrinense rompesse as barreiras do mercado editorial, criando possibilidades de divulgao desses textos para alm do livro impresso.

O PROMIC necessrio, porm ainda insuficiente e tardio, nem sempre realizando a projeo para alcanar todos os grupos que poderiam oxigenar a literatura local, distanciando-se de um cnone que replica um repertrio j conceituado. Sofrendo alguns ajustes, o programa poderia ser ainda mais impactante nesse sentido.

A performance, enquanto cerne de um sarau, funciona no Coletivo Lusa Mahin – Sarau das Pretas como uma possibilidade de fortalecer a cultura afro-brasileira, trazendo em si sua ancestralidade e representatividade e permitindo a vivncia da cultura negra.

A questo identitria, to cara literatura contempornea, a essncia desse sarau, que traz nomes to importantes para homenagear a mulher negra, como Lusa Mahin, Marielle e Y Mukumby. A performance vem contribuir para a valorizao da identidade negra no cenrio local e o PROMIC viabilizou essas aes do Coletivo Lusa Mahin.

Em tempos em que cada vez mais recursos destinados cultura, arte e literatura so cortados, esse trabalho se faz relevante para que se chame ateno para a importncia dessas aes, sobretudo para aqueles que esto margem da sociedade.

 

 

Referncias

 

AGUILAR, Gonzalo, CMARA, Mario. A mquina Performtica: a literatura no campo experimental. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

EVEN-ZOHAR, Itamar. Teoria dos Polissistemas. 2013. Traduo de Luis Fernando Marozo, Carlos Rizzon e Yanna Karlla Cunha. Disponvel em: >https://seer.ufrgs.br/translatio/issue/viewFile/2211/22< Acesso em: 29 jul. de 2020.

LEONE, Luciana Di. Poesia e escolhas afetivas: edio e escrita na poesia contempornea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

MACIEL JR., Auterives. Resistncia e prtica de si em Foucault. Trivium, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 01-08, jun. 2014. Disponvel em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-48912014000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 15 abr. 2020.

MARIANO, Jos Victor Nunes. Da periferia do hegemnico: o sistema literrio afro-brasileiro. In: Suplemento literrio de Mato Grosso Ndoa do Brim. Edio 67. 2019. Disponvel em: >https://www.researchgate.net/publication/341104225_Da_periferia_do_hegemonico_-_O_sistema_literario_afro-brasileiro<. Acesso em: 30 jul. 2020.

SILVA, Ana Cristina Pereira da; FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. Sarau e performance: a rede Londrix e estratgias de insero do texto potico. Revista Boitat, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019, p. 118-131. Disponvel em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/38312/27135. Acesso em: 15 abr. 2020.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. Traduo de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

 

[Recebido: 16 ago 2020 – Aceito: 03 mar 2021]


 

 

 

ENTREVISTA

 


UMA CONVERSA COM E SOBRE SALETE MARIA DA SILVA

 

A CONVERSATION WITH AND ABOUT SALETE MARIA DA SILVA

 

Salete Maria da Silva (Colaboradora)

Andrea Betnia (Pesquisadora)

Bruna Lucena (Pesquisadora)

 

Salete Maria da Silva , antes de qualquer caracterizao, uma mulher com alma e ps de serto, que aprendeu a fazer cordel com uma de suas avs, e, no por acaso, a vida de ns mulheres percorre toda sua obra, seja a cordelstica – com forte teor feminista e revolucionrio –, seja a acadmica, como professora do Bacharelado em Estudos de Gnero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em seus quase 30 anos dedicados criao de cordis feministas e libertrios, publicou mais de uma centena de folhetos, muitos dos quais podem ser lidos em seu blog Cordelirando. membra-fundadora da Sociedade dos Cordelistas Mauditos ‒ importante coletivo de poetas, cantadores e performers fundado no ano 2000, em Juazeiro do Norte/CE.

Esta entrevista uma grande conversa da qual participam quatro pessoas: a prpria Salete Maria, Andra Betnia, Bruna Lucena e Jos Gomes, sendo a primeira a entrevistada; as duas seguintes, as entrevistadoras; e o ltimo, o responsvel pela transcrio literal. Adotamos a conversa como mtodo de realizao desta entrevista por acreditarmos ser [...] uma convocao de saberes diferentes de modo no hierrquico, em que [...] o conhecimento est sempre no plural, conhecimento(s), como defendem Maria Luiza Sssekind e Raphael Pellegrini

Conversamos no dia 6 de outubro de 2020, em uma videochamada repleta de histrias de vidas, de artes de ontens e de agoras ancestrais, sobre sua presena inquietante no cenrio cordelstico. Diante da impossibilidade de estabelecer uma conversa linear com Salete ‒ o que entendemos como um ponto positivo ‒ tendo em vista a exposio de um pensamento que nos lembra um palimpsesto, os assuntos abordados foram surgindo motivados no apenas por nossa curiosidade como entrevistadora, mas, sobretudo, pelos motes com os quais a entrevistada nos presenteava medida que tentava refazer sua trajetria tanto pessoal quanto potica, seguindo uma rota que se deixava guiar por seu modo inquieto e inquietante de estar no mundo.

Ao optarmos por empregar, no ttulo dessa entrevista, com e sobre, sem nos decidirmos por apenas um, trata-se menos de vontade de escolha e deciso, e mais, muito mais, de vontade de dar conta do que a intimidade de dividir palavras, escutas atentas, conhecimentos, bem como de dar a ver essa importante cordelista de nosso aqui e agora.

Bruna Lucena (BL) ‒ Ns estamos aqui com Salete Maria da Silva, cordelista, ativista, professora e outras coisas sobre as quais falaremos adiante.

Andra Betnia (AB) – Boa tarde, Salete. Agradecemos mais uma vez sua disponibilidade e generosidade ao se dispor para essa conversa. Sabemos que voc est muito ocupada com a vida nesses tempos, mas vamos l. Salete, vamos comear falando sobre sua trajetria?

Salete Maria (SM) – No estava no meu horizonte ir para a universidade porque na minha famlia no existia essa tradio, como de resto todos os meus contemporneos, os meus colegas l da comunidade onde eu vivia. S que, no Ensino Mdio, fui fisgada por uma militncia Marxista, por meio do Partido Comunista do Brasil, do Partido dos Trabalhadores. Naquela poca existia uma espcie de recrutamento da juventude, pra que nos organizssemos. E eu era muito ativa, gostava de ficar recitando coisas nos eventos da escola. Nessa ocasio, embora ainda no entendesse nada de Marxismo, de Socialismo, de nada, eu tinha uma revolta relacionada questo de classe. Eu nasci em So Paulo, numa favela onde hoje est funcionando o estdio de futebol que pertence ao Corinthians e, ali, na Zona Leste, eu morava na rua chamada Estado do Cear porque todas aquelas ruas eram ocupadas, naquela favela, por nordestinos, cearenses em sua maioria. E meus pais foram para l, como tantos outros no final de 1950 e na dcada de 1960, em busca do Eldorado, porque se buscava uma vida melhor. Ambos agricultores, meu pai nascido numa cidade chamada Vargem Alegre, no Cear, e minha me, na menor cidade do Cear, que se chama Granjeiro, especificamente na zona rural desse muncipio, que ainda hoje o menor do Cear. Meu pai, embora agricultor, foi para So Paulo trabalhar na construo civil. Minha primeira irm nasceu no Cear. Depois eu nasci em So Paulo, depois eles voltaram para o Cear. Ao todo, somos seis filhos: um em cada lugar. Ento, meu pai, como operrio, trabalhou na construo civil. Grande parte daqueles prdios que tem na Avenida Paulista tem o suor do meu pai.

Ento, eu tinha uma coisa assim de questionar as desigualdades sociais e essa turma de esquerda do Ensino Mdio que vai me despertar. E, uma vez, minha me, quando ela era faxineira do Palcio do Governo, foi acusada de roubar um material de limpeza, uma coisa assim. Isso me marcou muito. E embora nesse tempo eu j fosse muito apaixonada pela literatura, porque meu melhor professor de todos os tempos foi um homem, um professor chamado Sebastio, professor de letras: Literatura, Lngua Portuguesa e Literatura l na Escola Jos Lins do Rgo, em So Paulo. Era 5 srie e depois ele foi meu professor na 7 tambm, e esse professor me emprestava muitos livros e eu participava de concursos de poesias, s que a escola no oferecia possibilidade de falar da Literatura de Cordel. E meus pais tinham cordel em casa e eu levava, esse professor era muito receptivo, mas nunca inseria no programa, n? Enfim. O fato que eu queria fazer Letras, eu me inspirava naquele professor que dava oportunidade, que estimulava a leitura, enfim. A a histria era assim: no era exatamente pensando eu vou pra faculdade fazer Letras; era pensando assim: eu quero ser uma escritora, eu quero ler mais, eu quero escrever mais. Mas no era tipo: eu vou pra faculdade, n?

Depois, quando terminei o Ensino Mdio, eu j fiz todo o Ensino Mdio, grande parte dele, no estado do Cear. Ento, eu j estava militando no Partido Comunista e meu companheiro ‒ que o pai da minha filha, n? ‒, meu companheiro da poca, ele era trotskista e atuava numa ala do PT chamada Convergncia Socialista e ele disse: Eu vou fazer faculdade, vou fazer Histria. A ele se inscreveu e eu fiquei na dvida. Eu queria me inscrever em Letras, s que eu ainda tinha muita mgoa, muita revolta pelo que aconteceu com minha me. Eu falei assim: Ah, ento acho que eu vou fazer Direito porque eu quero atuar na rea do Direito do Trabalho. Ento, eu fiz vestibular, n? Eu era muito autodidata e eu lia muito, e eu era a nica mulher que atuava no Partido Comunista. Ento, assim, eu passei na faculdade de Direito, apaixonada pelo Direto do Trabalho, mas quando chegou l eu me encantei pelo Direito Constitucional, mas, paralelamente a isso, eu seguia lendo e escrevendo muito, muita Literatura de Cordel sem publicar.

A, em 94, quando eu pari minha primeira e nica filha, eu pari tambm um cordel. Ela nasceu em maro e eu pari o cordel e publiquei. Eu tava desempregada, ento, eu escrevi, n? Houve uma morte l no bairro e eu escrevi aquele cordel que de 94, a primeira edio: Mulher Conscincia ‒ nem violncia, nem opresso. Ento, eu mesma paguei. Tinha uma grfica l em Juazeiro do Norte, onde publiquei quase a maioria dos meus cordis. Depois eu fui publicar na grfica Lira Nordestina, que uma grfica assim... ela, hoje acho que est vinculada Universidade Regional do Cariri, ainda est! Mas eu publicava em uma grfica de fundo de quintal, ela nem tinha CNPJ, era de Seu Ccero, e a grfica Lderes. Depois ele regularizou, muitos anos depois. Ento, eu publiquei esse cordel e como eu era militante, eu discutia com as mulheres, conversava com elas e esse cordel era sempre muito lembrado para dialogar sobre essas violncias. No eram os documentos que eu aprendia na faculdade, no eram as regras, no eram os textos acadmicos porque as minhas interlocutoras no eram acadmicas. Ento, esse cordel foi a minha entrada no mundo da Literatura. Assim, minha entrada oficial, n? J que eu era uma leitora e uma escritora, mas no publicava.

S que bvio que eu digo que a influncia da militncia, ela foi importante pra mim, mas [pausa] antes mesmo de eu estar na escola, eu tinha essa paixo pela Literatura de Cordel por causa da minha av. Eu falo muito sobre isso em outras entrevistas e eu dei uma entrevista pra Caros Amigos uma vez e eles deram a visibilidade que a minha av merecia naquela entrevista porque comeam falando dela e o impacto dela na minha vida. Ela era uma performer, eu no tinha essa noo, mas a minha av era miudinha. Eu tenho um metro e cinquenta e dois [1,52m]; minha av era muito menor do que eu e se agigantava diante de mim assim. No s porque eu era uma criana e ela era uma adulta, mas porque eu via assim uma poetriz, digamos assim, uma mulher que era fascinante. Ento, ela no sabia ler, n? Durante um perodo da vida ela enxergava, mas depois ela ficou cega e ela era apaixonada pela Literatura de Cordel. Todo mundo na minha famlia era, mas minha v era a que tinha mais fora, n? A que nos unia em torno dessa literatura. E a ela vivia na zona rural l de Granjeiro, num lugar chamado Canabrava, Canabrava dos Gregrios, e essa mulher que amava a Literatura de Cordel exerceu em mim essa influncia.

Ento, assim, eu conto isso num cordel chamado Feminismo em Cordel: como foi que comeou? e l eu conto um pouco dessa coisa de eu gostar muito de todos os cordis. L tinha um ba, cheio de cordis, embora fosse numa casa que somente uma pessoa lia, que era minha tia Senhora, que viva at hoje. Era a nica pessoa que lia, lia muito pouco, mas era ela a pessoa responsvel por ler o cordel, os cordis ali [rpida pausa] e meu av, quando ele ia pra cidade, fazendo compra – feira do ms. Eu brinco, acho que no cordel Cordelirando [rpida pausa novamente] eu conto isso e tambm nesse outro Feminismo e Cordel, eu lembro que meu av, as vezes que eu ia pra l, porque vocs deveriam pensar: Mas como assim, voc tava em So Paulo e no Cear ao mesmo tempo?. A minha, a nossa vida era uma vida de idas e vindas. Meus pais foram l por conta do xodo rural, tiveram uma filha, voltaram pro Cear: todas as vezes que tinha uma crise econmica, que ficavam desempregados, que as coisas apertavam porque o aluguel era caro e eles moravam, apesar de no morarem numa casa, mas era um barraco alugado; e quando tambm a violncia comeava a espreit-los, corriam de volta para o Cear. E l eles tinham as casas dos parentes pra ficar, tinha roa, no faltava aonde eles serem acolhidos. Ento, assim, havia frias em que eu estava na casa dos meus avs e havia perodos em que eu morava na casa deles.

Ento, assim, meu av ia pra roa, pra feira e ele levava um saco que era a bolsa que ele transportava a feira, a ele trazia... eu costumava brincar que ele trazia os quatro efes: era o feijo, a farinha, o fumo e foieto porque minha av nunca chamou o cordel de Cordel, ela chamava os foieto, n? Ento, ela tinha os clssicos: A histria de Joo Grilo, O soldado jogador, ela tinha l A histria do Valente Joo Garcia, Z Garcia ‒ no lembro agora. Ela tinha tudo, tudo, tudo, tudo. E meu av, ele tava se alfabetizando, ento, ele ficava na roa o dia inteiro, quando chegava tomava banho, jantava e depois sentava um pouco l no terreiro, conversava com as pessoas. Mas, depois ele voltava e sentava num tamborete e acendia uma lamparina e comeava: ‒Um B com A, BA; um B com E, BE; tudo cantado. Eu ficava impressionada, n? De ver aquele homem... Meu av tinha uma aparncia muito bonita, ele era um homem negro, baixinho, cambota; e ele tinha essa coisa de querer estudar, ento, ele tinha a tabuada e tinha a carta de ABC. E ento eu ficava observando aquele homem aprendendo a ler.

E minha av, no! Nunca aprendeu a ler, mas ela era quem articulava o... vamos chamar de sarau, que na poca ningum usava esses termos, n? A l tinha um alpendre, na casa dela, ento, sentavam-se as pessoas nas cadeiras, as crianas sempre no cho junto com os cachorros; mas os adultos tinham cadeiras [risos] e tinha a muretinha do alpendre onde vizinhos, compadres, conhecidos chegavam, conversavam sobre vrios assuntos, mas sempre tinha o recital. E a minha tia Senhora, ela que lia essas histrias, e minha av ficava a corrigindo porque minha av tinha de cor; todos os folhetos minha av tinha decorado. E quando eu aprendi a ler de verdade, minha me contava que eu j tava lendo cordel e num sei o qu, e minha av dizia: Pois sente aqui na cadeira que eu quero ver se voc sabe ler mesmo.

Ento, minha av era uma espcie de professora, mesmo sem saber ler, sem decodificar palavras, letras etc. Eu lia os cordis pra ela e ela me corrigia porque tinha a cadncia, n? Tinha toda uma coisa de voc performatizar e eu ficava lendo ali como quem l qualquer coisa, e minha av corrigia: No bem assim...; e claro, uma criana s vezes num sabe ler direito e minha av ia me dizendo como era a palavra e tal. A chegada do Lampio no Inferno foi o primeiro cordel que eu lembro de ter lido; lido eu mesma – no ouvido, ouvi outros. A, eu dizia: Um cabra de Lampio, a ela dizia: Por nome Pilo Deitado; e voltava pra mim: Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado / Agora pelo Serto anda causando viso / Fazendo mal-assombrado. A, ela dizia: Pare a, no bem assim. A, ela voltava e dizia: Um cabra de Lampio / Por nome Pilo Deitado / Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado[82]. Ento, ela imprimia musicalidade, ela tinha uma coisa assim. E ela se levantava – se ela tivesse sentada – e ela agitava os braos, aquela coisa, n?

Ento, assim, eu fui percebendo que no era s uma escrita, era uma coisa de msica! Era uma articulao entre msica, oralidade, escrita etc. etc. Mas nada de teoria, no tinha acesso s teorias e at hoje no tenho muito conhecimento sobre Teoria Literria ou Oralidade ou Cordel ou Tradio. Conheo vocs duas e tantas outras pesquisadoras que conhecem bem, que tm domnio sobre essas questes, mas ali com ela, era uma escola de teatro, digamos assim, n? Ento era uma coisa... E eu percebia o seguinte: minha av tambm criava. Eu entrevistei minha av algumas vezes, quando eu j estava adulta e minha av j estava bem velhinha. E eu entrevistei naqueles gravadores antigos e parte dessas fitas cassetes eu cedi pra pesquisadora Fanka e depois ela cedeu pra Ria e essas coisas desapareceram porque primeiro eram mal condicionadas, o calor destrua, n? Enfim, mas l no Juazeiro do Norte deve ter ainda alguma coisa.

Ento, minha av quando recitava para mim nas entrevistas ou mesmo nas conversas comuns, eu no sabia quando era uma coisa era dela ou era de algum autor clssico porque como a minha av no estava preocupada em dar crditos e fazer referncias, tinha vez que ela mesclava as coisas do imaginrio dela, da lembrana dela, do cotidiano dela, ento, quando estava varrendo o terreiro – ela estava recitando alguma coisa ‒, eu dizia: De quem esse Cordel, v? De quem esse folheto, v?. Essa histria, n? A, ela dizia: Num sei, no. S sei que eu aprendi, n? Esse a eu no sei de quem no. A em outro pedao ela dizia: Esse aqui meu. Foi eu que inventei isso aqui. Ento, talvez por ela escutar tanto, tantos folhetos e por ela tambm pensar sobre criar, ela no sabia mais o que era dela, o que era dos outros e eu no sei explicar. Sei que isso a foi me influenciando.

Ento, como diz Z Ramalho, naquela poca eu era inocente, porm, besta; e eu achava que os cordis eram lindos e maravilhosos. S que depois, essa coisa de racionalizar, de refletir sobre as desigualdades sociais, me mobilizou a questionar aqueles folhetos que sempre tinham os homens como protagonistas ou os homens como autores, n? E, ento, eu comecei a prestar ateno no meu cotidiano. Eu sei que as histrias que minha av apreciava e que tambm gostava, e que minha tia lia, eram sempre de pessoas de outros pases ou ento eram narrativas assim... histrias imaginadas: O Valente Z Garcia, A Princesa do Vai No Torna, O Pavo Misterioso. Era muita coisa, assim, que no era da vida real, digamos assim. Ento, eu comecei prestando ateno s coisas da vida real e na minha vida real tinha muitas mulheres, dentre as quais eu me inclua, com vrios problemas, e tinha tambm uma coisa de eu achar um pouco ofensivo e dialogar com as mulheres do meu bairro, da minha famlia falando daquelas coisas, do artigo 5 da Constituio. Eu no me sentia confortvel por estar falando sobre o nosso cotidiano a partir dali.

Ento, em 94 eu estava no penltimo ano da faculdade quando eu publiquei meu primeiro cordel. E nas rodas de conversas, no s na militncia, mas com mulheres e ali no era uma conversa entre feministas no, era entre mulheres de uma comunidade que estavam muito impressionadas e muito, digamos assim, temerosas com a morte da vizinha Cristina, que foi assassinada na poca. Ento, o cordel comeava assim: Os nmeros de violncia tm crescido sem parar / Pra garantir resistncia preciso no calar; a eu dizia: Do Cariri para o Brasil quero me manifestar. E comea assim. Eu vou narrando uma srie de coisas e o Cordel tem uma influncia assim marxista porque a explicao que eu dava na poca para isso tinha a ver com a acumulao da propriedade em poucas mos, a violncia estava relacionada tambm com a questo econmica, no era uma explicao totalmente baseada no patriarcado. Era a influncia que eu tinha da poca, de que era uma leitura ideolgica, ligada ao marxismo, num sei o qu. E ento eu levei esse Cordel para a minha av, em 94, e ela morreu em 2002, parece.

Eu levei esse cordel para a minha av, eu li pra ela e ela disse: Isso a no foieto, no. Isso a no tem nada a ver com foieto. Ela no reconheceu [risos], a eu falei: V, tem sim! Olha aqui a rima t bem direitinho.... Eu acho, n? Achava! [continuao do dilogo] A rima t bem construda, eu t rimando bem aqui, . A ela disse assim: No, mas essa histria muito feia, muito ruim, num tem uma coisa assim que prenda, num tem... Quem a mulher dessa histria? Quem o homem? Quem a pessoa?, n? A no tinha uma personagem especfica, que tivesse uma histria que tivesse incio, meio e fim, porque falava de um monte de pessoas ao mesmo tempo, de grupos sociais e tal. E a ela disse: De onde foi que voc tirou isso?. A, eu disse: Da minha cabea, da minha cabea, mas foi porque morreu Cristina, l na Rua So Bento, assim, assim, assado e tudo. A ela disse assim: Mulher (mui, n? Que ela falava), mui, num se mete com isso no. Ela sempre me dava vrios conselhos e ela achava que eu j estava velha, que eu j deveria ter me casado. A, ela dizia: , minha filha, arranja um dono pra tu; to feio uma mulher sem um dono. E ela dizia assim, eu fui l pra me despedir dela, que eu ia viajar pra Fortaleza pra fazer mestrado; a ela disse assim: Tu ainda vai estudar? Tu j leu os livros do Juazeiro, do Crato e agora vai ler os livros de Fortaleza? Minha filha.... A comeava a falar que era melhor eu me casar... A eu fui fazendo cordis, problematizando tambm essa nossa matriz social, cultural; e vieram outros folhetos e, enfim, quando chegou em 100 eu parei de contar. Mas o fato que a maioria relacionada a essa nossa condio feminina, n? Eu digo nossa, considerando a tambm toda a diversidade das mulheres.

E a o curioso que a velhice me chamava muita ateno tambm. E eu escrevi o cordel O que velhice, o ttulo esse: O que a Velhice? E a capa tem a foto de minha av; minha av com um paninho assim no ombro, que ela sempre usava um paninho de prato assim no ombro o tempo inteiro, exceto quando ela saa pra viajar ou pra missa. E ela est na porta da casa dela nesse Cordel e eu vou perguntando o que a velhice, vou questionando e trago vrios elementos porque tambm eu estava influenciada com a obra de Simone de Beauvoir, que ela trata tambm dessa temtica da velhice, que o lado menos conhecido de Simone de Beauvoir, n? E eu no era estudiosa de Teoria Feminista, no era estudiosa de questes de gnero, no. Eu era uma militante, uma comerciria na poca. Eu estudava, trabalhava, escrevia Cordel, cuidava de minha filha e, enfim, no tinha muita abertura no Partido Comunista pra os debates de gnero. Mas, curiosamente, tambm era atravs do Jornal, desse editorial que vinha pra Juazeiro do Norte ‒ que a gente vendia, tentamos recrutar outras pessoas ‒ que, vez por outra, no 8 de maro a aparecia uma discusso sobre mulheres e vinha uma marxista l, Alexandra Kollontai, que s depois de 300 anos que eu vim estudar e conhecer. Mas ela problematizava as mulheres no mundo do trabalho, no mundo social, na poltica e tal e coisa.

Ento, eu tinha muita intuio que eu fui desprezando aos poucos, por uma viso equivocada da racionalidade; e depois eu passei a valorizar. Agora, nos ltimos 5 anos, eu t muito f de intuio. Por exemplo, o cordel A Mulher de Sete Vidas, que o mais longo cordel meu em termos de quantidade de pginas e de estrofes e tal. Esse cordel foi escrito no momento em que eu estava questionando muito as minhas convices polticas, filosficas e meio autobiogrfico. Embora, sendo a mulher de sete vidas, e ela tem sete vidas [risos], e ela aparece com sete experincias diferentes: uma hora ela uma meretriz, outra hora ela uma artista. Ela tem vrias, eu no me lembro, ela tem vrias facetas e ali o momento em que eu dialogo com o Espiritismo, com o Catolicismo Popular, trago coisas do Budismo, alguma inspirao na questo da espiritualidade mesmo, nas suas vrias nuances. Mas, assim, eu depois leio e digo assim: No fui eu quem escreveu esse Cordel porque no o meu estilo, no eram as minhas questes, entende? Ento isso, fui escrevendo...

Outro dia uma pessoa estava me chamando ateno para algo que eu no percebia: que eu escrevia as personagens que estavam todas ali na revista na regio do Cariri, mesmo depois que eu sa do Cariri e mesmo depois que eu sa do Brasil ‒ os cordis feitos fora ‒, todos esto de alguma maneira ali, como diz Belchior, Onde jaz meu corao, n? Porque uma fora muito grande, uma relao muito forte que eu tenho com a Chapada do Araripe, com a regio do Cariri cearense etc. Em que pese ter havido alguns deslocamentos, porque depois que vim pra Bahia eu escrevi o cordel Trs um Real porque andando muito de nibus aqui em Salvador eu via homens e mulheres entrando no busu e gritando trs um real, ento, uma histria que envolve dois vendedores: um homem e uma mulher. E a eu digo: Ele entra e pede desculpa por atrapalhar o silncio da viagem, ela entra e diz isso e eles vo vendendo produtos variados com uma pegada de gnero. Geralmente ela traz produtos mais vinculados s [entre aspas] necessidade das mulheres.

E a, a Minha Preta vem Para a Marcha eu escrevi aqui em Salvador, mas um apelo minha me. Eu falo um pouco dessa condio dela, de mulher negra, de trabalhadora sempre no espao privado e quando foi trabalhar no espao pblico foi realizar no pblico o que ela fazia no privado, n? Porque ela foi agricultora familiar ali no quintal da casa dela. Ela nunca plantou numa roa como os meus tios que tinham uma roa fora de casa, saam pela estrada pra ir pra roa. Minha me no: a roa de minha me era no quintal da casa dela, dela e das irms dela. Depois ela vai para So Paulo, trabalhou de domstica. Eu conto isso no Cordelirando, o cordel chamado Cordelirando, que eu digo que: Sendo filha de um pedreiro e de uma camponesa / A palavra companheiro me foi servida mesa / Aprendi desde criana a ser eu minha fortaleza. Ento l tem algumas estrofes... Eu no me lembro, no tenho vergonha de dizer que eu no tenho de cor nenhum cordel meu, na ntegra. Eu no consigo, muita coisa, ai, quando algum comea a recitar, eu puxo na memria, diferentemente da minha av, e a uma pura intuio, considerando que ela no aprendeu a ler, talvez ela tivesse uma memria e uma capacidade... No sei, vocs talvez tenham melhores condies de me explicar isso. Mais capacidade de memorizar, de armazenar, de organizar, de sistematizar aquilo. Eu no, pelo fato de ler tantas coisas e meu crebro to cansado que [pequena pausa] eu leio, eu tenho de cor cordis de outras pessoas, como o caso tipo A Casa que Me Morava, como o caso de Lus Campos, que aquele meu cordel, um dos meus preferidos, que A carta a Papai No, n? Como o caso de Patativa, como o caso do cordel de Fanka, como o caso do cordel dos Malditos de Hlio Ferraz, quando ele diz assim: 11 de setembro dia sem precedentes na Histria / Aconteceu a vitria de Davi contra Golias / Impactou a ousadia dessa gente Talib / E l na grande ma o capital ps no cho / E a trupe o Alcoro meteu o kibe em Tio Sam. Ento, assim, esse um dos meus cordis favoritos porque me inspira a trabalhar mais a musicalidade do meu prprio texto.

E eu vinha numa pegada histrica de falar muito das dores das mulheres, eu falei muito das dores, das mortes... Aquele cordel Mulheres do Cariri: morte e perseguio, Embalando meninas em tempos de violncia, Mulher Conscincia – Nem violncia, nem opresso, Basta de Feminicdio, No cultura do estupro. Eu sempre tive, contextualmente falando, uma produo que era [rpida pausa] uma denncia, pra usar uma figura jurdica, era um libelo crime acusatrio, n? E depois eu passei a ter necessidade de fazer anncios tambm porque seno eu ficava numa coisa de no ter sada, n? De no espalhar esperana, ento, o Mulheres fazem, por exemplo, j destoa um pouco. No Mulheres fazem eu t falando de protagonismo das mulheres em vrios terreiros, em vrios lugares, em vrias coisas. Lugar de Mulher tambm, n? Lugar de Mulher no t propriamente falando de mortes ou de violncia etc. Ento, sem perceber e sem ser uma coisa deliberada eu comecei a focar mais tambm naquilo que as mulheres so capazes de fazer, no s no que fazem contra elas ou com elas, e a escrevi Minha Preta Vem Pra Marcha, que tem uma hora que eu falo: Vem, traz o doce de mamo, traz tambm a rapadura / Com tua f segue segura. Que mais ou menos falando um pouco sobre minha me, essa marcha da vida dela e tudo.

E a falei de Violeta Arraes, que foi Reitora da universidade onde eu trabalhei e aquele Cordel... Eu fiz alguns cordis em homenagem porque eu quase nunca escrevi sobre encomenda, eu sempre escrevi o que eu quis, tanto que eu estava no Mxico recentemente e eu fiz um cordel, Minha livre expresso, onde eu falo que, [pequena pausa] onde eu intertextualizo com o poema de Cludia Rejane e eu digo: Minha obra ningum tutela. Ento, eu sempre escrevi sobre o que eu quis, mas eu aceitei, poucas vezes eu aceitei fazer alguma coisa sob encomenda porque a causa era justa e as pessoas que me pediram eram pessoas que significavam muito pra mim. Um deles foi Janana Dutra, ativista brasileira, que era uma homenagem primeira travesti a obter uma carteira da OAB no Brasil, era uma ativista cearense, faleceu depois e esse cordel foi feito pra abertura do filme Janana Dutra[83]. Tem um sobrenome... tem um subttulo a, Janana Dutra num sei o que l, do cineasta carioca Vagner de Almeida, que um grande amigo. Ento, eu fiz em homenagem a Janana. Eu convivi com ela l no Cear, a gente se encontrou em algumas atividades, ela mora ne Fortaleza, mas ela nasceu em Canind e foi at ento – durante muitos anos – a nica ... ela se apresentava como travesti, n? Em que pese ela no conseguiu exercer o direito do nome social porque na carteira de OAB o nome dela era Jaime, n? O nome de nascimento, mas ela era reconhecida socialmente como Janana Dutra e eu fiz esse cordel a pedido! No vou nem dizer sob encomenda porque pode soar que algum disse: Diga isso!, mas era a pedido.

E o outro foi a pedido de Orlando, um dos meus maiores amigos ali na regio do Cariri. Orlando era um ativista, um homem gay formado em Letras pela URCA, amante da literatura, amante dos cordis e do cinema. Numa conversa com ele, eu j tava aqui na Bahia, e numa dessas madrugadas insones, eu e ele conversando sobre zilhes de coisas, ele disse: Vou fazer um filme!. Ele j tinha feito um filme chamado Tambm sou teu povo, Senhor, que uma Drag descia a principal rua da cidade com uma vela na mo cantando um bendito chamado: Tambm sou teu povo, senhor, e estou nessa estrada [colaboradora canta como no filme]. Porque nossa vida ali no Juazeiro do Norte era muito marcada pelas, n? Mesmo os ateus, mesmo as pessoas de esquerda, elas tinham esse sentimento de pertena, n? Suas famlias todas tinham a sala do santo. Todas, todas. At hoje minha me honra a memria de minha av fazendo a renovao do santo, no dia 25 de dezembro. Ento, ele disse: Salete, eu quero um filme baseado num cordel teu, mas eu queria uma coisa nova, a, a gente dialogando, enfim, depois de muita conversa eu no consegui dormir e fiquei escrevendo. Quando foi 8 horas da manh, o cordel estava pronto e o cordel O Milagre Travesthriller: A Histria da Travesti que (com f) engravidou. Essa histria muito intertextual porque eu trago outras personagens de outros cordis meus e tambm de outros contextos l do Cariri e dentro da histria tem uma outra histria porque ela vai se basear na histria das macarenas, que eram umas beatas que chupavam umas rosas lilases e nas suas catatumbas elas bailavam e, enfim, era um cordel que era meio assim parecido com o Teatro do absurdo. Depois que eu assisti uma pea do Teatro do absurdo, eu fiquei muito impressionada com aquilo e aquelas imagens vinham, ento, tudo que eu escrevo ainda que nem sempre eu me dei conta [rpida pausa], um dilogo com as coisas que eu vejo, que eu leio, que eu aprendo. Ento, no Milagre Travesthriller, a personagem essa travesti que era temente a Deus, que fez um milagre e que engravida. Ou seja, um debate ps-moderno, pero no mucho, porque ela no recorre s tecnologias de reproduo, ela recorre f no Padre Ccero e ela engravida, mas ela dialoga nessa saga, nessa batalha por engravidar, vai recorrer a vrias pessoas. Ento, ela vai dialogar com a feminista e a feminista diz: Ah, mas todo mundo hoje a pauta do aborto e voc t preocupada com essa questo. E vai dialogar com um homem gay amigo dela. Todas as personagens ali so reais, s a Shirley Dayanna, que o nome que eu dei pra personagem, que fictcia, mas todas as pessoas com quem ela dialoga, inclusive o prprio Orlando.

Ento, assim, a eu vou saindo daquela mulher... H um conjunto de mulheres que fazem parte da minha literatura, por exemplo, o cordel Maria, Helena, que so duas mulheres [risos]: Maria vrgula Helena; uma relao homoafetiva. uma relao lsbica entre duas mulheres ali da regio do Cariri. claro que eu as imaginei como sendo duas vizinhas l, que eram beatas e que trabalhavam na roa e moravam ali na cidade. Na regio do Cariri, as pessoas tm [pequena pausa], digamos, esse privilgio de, s vezes, morarem num bairro e serem agricultoras e irem pros seus trabalhos e voltarem. Ento, uma coisa entre o urbano e o rural, n? E a na histria de Maria, Helena falo desse amor entre elas, mas eu no trago nada de extraordinrio, de tentar mexer naquele ambiente. Elas continuam frequentando a missa, continuam fazendo as coisas delas.

J na histria da Shirley Dayanna tem uma srie de debates envolvendo a Teoria Queer e num sei o qu l, mas nada disso dizendo: Olha aqui uma teoria, como, por exemplo, O que ser mulher?, que uma resposta, n? Uma resposta no! [colaboradora demonstra contrariedade]. um dilogo com Simone de Beauvoir, n? Ento, eu digo: Sobre a mulher j se disse / tudo que se imaginar / Duns eu j ouvi tolices / Doutros, me pus a pensar / Mas este ser – a mulher – / Afinal o que que ? / Quem se atreve a explicar?. E vou desenvolvendo... A capa uma interrogao, n? A, eu depois vou desenvolvendo vrios argumentos e em algum momento eu pergunto: E se um homem quiser / Ento mudar sua forma?. Ento, um jeito de falar dessas teorias sofisticadas a partir dessa linguagem, apesar de minha av no ter legitimado num primeiro momento, n? Porque ela disse que isso no era um foieto e tal e coisa.

Mas depois que eu li pra ela A Histria de Z Leitor, que eu vim publicar bem depois. Mas eu escrevi ainda com ela em vida, j t na terceira edio A Histria de Z Leitor, foi a histria que ela mais gostou das minhas histrias, porque se trata de um homem que com mais de 60 anos vai pra a EJA n, a Educao de Jovens e Adultos, e vai se alfabetizar,  e ele quer aprender a ler e ele tem dificuldade ou tem hora que ele quer desistir, e a ele leva um cordel de Patativa, Vaca Estrela e Boi Fub, e depois Fagner musicou e etc.; e ele l esse cordel pra turma, e... enfim. Ali a apoteose n, da alfabetizao dele, e o colega dele que pedreiro vai assistir, e a esposa dele vai, todo mundo vai e enfim. Ento minha av achou a histria linda, porque tinha uma famlia, tinha n [risos mais contidos] uma histria de uma pessoa com incio, meio e fim, e o fim foi feliz e etc., enfim. Ento, ela abenoou esse cordel digamos assim, n? Mas . Meninas, eu t falando muito coisas sem s vezes nem ter uma conexo com a outra, mas o que t me vindo as...

(AB) – Tem conexo demais...

(SM) – Porque os fios da conexo vocs que tm capacidade de articular porque eu t falando assim coisas que me vm memria. Eu tava falando dos cordis a pedido, n? Ento, a pedido de Orlando, a pedido de Vagner Almeida, dois cineastas, e eu fiz o cordel pra homenagear a Violeta Arraes. Eu homenageei Violeta Arraes, homenageei vrios amigos l do Carari, uma amiga que fez uma cirurgia e ela tava fazendo radioterapia, n? E eu chamei isso de Mais uma dose de amor porque ela tinha que tomar mais Iodoradioterapia[84].

E recentemente eu homenageei uma pessoa que no muito bem-vista entre as feministas baianas etc. porque s vezes ele etiquetado de misgino e tal, mas um amigo querido que eu tenho aqui na Bahia, se chama Luiz Mott e eu fiz um cordel sobre os 70, ou mais, anos dele. Ele tava passando a pandemia l na Itlia e com medo de morrer e num sei o qu, no olho do furaco, n? E eu fiz um cordel O Mott Festejar! Ento, no foi exatamente um cordel que ele me pediu, mas ele disse assim: Salete, vamos falar de Cordel, eu l no Mxico e ele l na Itlia, e a gente lutando pra ter um voo de repatriao. Por que que eu t falando do Luiz Mott? Porque a pedido dele, h uns anos, eu fiz um cordel sobre Tibira do Maranho, Santo Gay do Brasil. Ele, como um Antroplogo, pesquisa essas coisas da Inquisio, e a ele descobriu l no Maranho essa coisa do primeiro crime de homofobia do Brasil, que foi praticado contra esse indgena chamado Tibira, ainda no incio n do sculo XVI e a ele me passou a histria, a pesquisa dele e disse: Ah, seria legal ter um cordel e tudo. E eu li a histria toda e contei isso num cordel que foi objeto de pesquisa l no Rio de Janeiro, num grupo de Histria e tal. Ento, assim, mas todo inspirado na pesquisa do Luiz Mott. A fonte do cordel a pesquisa do Luiz e eu conto essa histria sobre por que o GGB – o Grupo Gay da Bahia – fez um requerimento Santa S para reconhecer a santidade desse santo, desse mrtir e como ele antes de morrer foi obrigado a se converter ao Catolicismo. O Luiz Mott ironicamente diz: Ento, j que ele se converteu ao Catolicismo e gente que foi martirizado, igual ou menos do que ele mereceu essa santificao, vamos constranger a Santa S para reconhecer e tal e coisa.... Isso divide as opinies porque tem muita gente que no est interessada em ter um santo gay, muito menos na Igreja Catlica. Mas o fato que uma disputa poltica e achei interessante contar essa histria porque a mim me interessava muito j que a minha dissertao do mestrado foi sobre a igualdade jurdica na ao contra pessoas LGBT. Ento, gostei muito de saber dessa histria. A, foi um cordel que eu fiz a pedido do Luiz e submeti a ele e quando eu submeti, ele disse uma coisa l... Ah, duas ou trs coisas que eu tinha dito que ele queria alterar, ento eu disse: No, Luiz, no aceito que voc mexa no cordel e muito menos que altere a minha rima porque o meu compromisso com a histria e o cordel meu e a rima no vai ser alterada.... Era uma coisa l, mas ele compreendeu, n? E a o cordel um outro cordel sob encomenda.

Mas, fora isso, eu vou escrevendo quando tenho vontade. Tem tempos que eu no escrevo nada, fico travada, tem tempos que eu escrevo. No Mxico eu escrevi 6 cordis em 3 meses. Ento, eu estava num desespero assim.... eu tenho uma aproximao com minha vida aqui no Brasil e mais perto com minhas... eu pedia a minha av, eu orava muito pra que ela me desse inspirao pra eu no pirar, que eu tava ficando maluca trancada dentro de uma casa e com medo de nunca mais voltar, enfim. A, eu sei que eu escrevi o cordel Por amor, cuidem das vidas. Foi em maro, n? todo sobre a pandemia e fazendo um apelo, um cordel denncia e anncio e tudo. E eu no sei nenhuma estrofe dele [risos], t l no Blog, n? E escrevi outros que eu no lembro agora, mas sei que foram 6 cordis. O outro foi sobre Luiz Mott, fez aniversrio l na Itlia e enfim.

Ento, assim, so vrias mulheres que eu vou trazendo, mas no s mulheres, n? Tem muitas figuras vinculadas feminilidade, ento, voc tem a as travestis, voc tem os homens gays, voc tem a ... A personagem mais austera, digamos, que eu j tive foi Z Leitor, mas na verdade tem uma... [rpida pausa] pegada assim geracional e de classe.

Bruna Lucena (BL) – Tem o do seu pai, n, Salete?

(SM) – Ah, ok!

(SM) – Verdade, Bruna, tem... Meu pai aquele cordel eu no consigo recit-lo porque eu comeo a chorar. Ento, no dia do lanamento dele, eu tive de me socorrer de pessoas...

(BL) – Que lindo aquele cordel...

(SM) – ...

(BL) – Por isso que eu lembro, eu acho ele lindo... [risos]

(SM) – . uma homenagem pro meu pai que eu fao, logo aps ele ter passado por um cncer agressivssimo, n? E diz assim: Meu pai por seu um pedreiro... – a nica estrofe que eu ainda lembro porque muito emocionante pra mim: Meu pai por ser um pedreiro / Dele muito me orgulho / Sempre foi muito guerreiro / Homem de muito barulho / Seja curando tormento / Seja mexendo cimento... – [colaboradora tenta relembrar a rima]: Ele desata o embrulho. Ele diz assim: Seja curando tormento / Seja mexendo cimento / Ele desata o embrulho. A eu vou contando a histria dele, que ele saiu em 44 [1944]... Que ele nasceu em 44 e depois ele saiu do Nordeste brasileiro ainda jovenzinho pra trabalhar na construo civil, a ele brinca que subiu na vida, n? Ele deixou a lavoura para subir num andaime, ele brinca assim. Tem essa boa lembrana.

Ento, Bruna, tem o do meu pai... Eu homenageei alguns homens que eu considero importantes na minha vida. Ento o meu tio Z Alexandre, recentemente, que eu nomeei o cordel dele de Vai nas asas dos Arcanjos. O curioso que, um ms antes do meu tio falecer, eu liguei para ele e ele disse assim: Olha, eu t deixando aqui uma herana pra voc. A eu achei estranho aquela conversa e tudo... A ele: No, eu t velho.... Porque em maro ele perdeu um neto e ele tinha dito: , porque que Deus no me levou e deixou meu neto, to jovem?. Ento, quando eu cheguei do Mxico, que eu liguei pra ele, ele disse assim: Eu no tinha mais f que eu ia ver voc, no, ser que eu ainda lhe vejo?. A gente conversando no telefone, a, eu disse assim: tio, num fala um coisa dessa, num sei o qu.... A ele disse assim: Eu t deixando aqui uma herana pra voc: um caderno de folhetos e a mquina de escrever, mas ela t toda quebrada, as letras saindo fora de lugar e tudo.... A, eu disse: , num t gostando desse papo de herana, mas em termos de presente eu estou adorando, ento quando essa pandemia passar, eu vou a e a gente vai ver esses cordis e vai – ele tambm no chama de cordel, chama de folheto – a gente vai publicar e num sei o qu.... Enfim.

Ento, assim, minha herana t l, eu ainda no pude ter contato, n? Quando passar essa pandemia eu vou atrs, mas ele sabia que de todos os parentes a pessoa mais fissurada assim no cordel e na produo dele e tudo, sou eu. Ele escreveu A Casa que Me Morava, que um clssico, n? Fui visitar meu serto / Aonde morou meus pais / A saudade era demais / Pra ver aquele torro / Atravessei o boqueiro e avistei a Canabrava / Com tanta saudade eu tava pra ver aquela casinha / Que hoje no mais minha / A casa que me morava [colaboradora recita o cordel do tio]. E a ele vai desenvolvendo toda a histria de vrias passagens da vida dos meus avs nessa casa etc., etc. Tem uma hora que ele diz: Tendo dinheiro eu comprava / A casa que meu pai fez / Pra eu morar outra vez / Na casa que me morava. lindo esse cordel, muito emocionante. E tem um muito engraado que ele diz: Em cada dez brasileiros / Tem oito ou nove ladro; que ele fez a num dos perodos a de campanha eleitoral, l comprou muitas confuses, por isso o cordel no foi publicado assim em grande escala, mas era assim uma outra inspirao pra mim. Era no, segue sendo, n? [pequena pausa] Fiz o do meu primo tambm... Tem tanta coisa. O de Orlando muito emocionante porque o Orlando faleceu sem ver o resultado do filme baseado no meu cordel. O filme existe e se chama Travesthiller. O meu cordel Milagre Travesthiller, mas o filme Travesthiller.

Ento, so cordis em que eu trago majoritariamente a temtica das mulheres, falando da desigualdade de gnero, trago en passant a questo da velhice, a questo geracional, racial, mas a classe t muito presente porque de todas as minhas conscincias a primeira foi a conscincia de classe, n? Ento, isso foi o que me levou a me desviou de ser algum da rea de Letras pra ser algum do Jurdico. Foi uma coisa de dizer assim: Ah, ento eu vou fazer faculdade de Direito e eu vou me dedicar ao Direito do Trabalho porque eu no quero que acontea com nenhuma pessoa, nenhuma mulher, o que aconteceu com minha me e num sei o qu.

E de fato eu advoguei um tempo na rea do Direito do Trabalho e depois eu me desencantei com essa coisa da advocacia trabalhista. A, eu fiz cordis e nos atos processuais t l o qu que a Sammyra botou o cordel chamado Alvar Judicial, que uma petio que eu fao em cordel pra que o juiz autorize que um agricultor l de Cariri saque o resduo do FGTS, que ele chegou de So Paulo e tava desempregado e era agricultor, foi pra So Paulo trabalhou um pouco com carteira assinada e estava desempregado e voltou. A, eu fiz essa petio sabendo que ela no seria indeferida porque o juiz era um poeta tambm: Doutor Pedro Bezerra. No era um poeta de cordel, mas era um poeta e muito sensvel. Do ponto de vista legal, ele no teria como dizer que eu tinha que escrever em prosa porque o cdigo do processo diz que tem que ser na lngua verncula, n [risos]? A petio tem que ser em Lngua Portuguesa e tem que dizer os fatos e dizer o direito. S que no tradio escrever em poesia e a o pessoal escreve uma coisa com incio, meio e fim, mas qualquer outro juiz poderia indeferir dizendo que no estava de acordo com a tradio jurdica bl, bl, bl, bl. Ento, ele acolheu, ficou muito emocionado e abriu vistas pro promotor de justia. O promotor tentou fazer uma gracinha despachando em uma estrofe [risos], no conseguiu rimar, mas despachou. O que vale a inteno. E esse senhor, chamado Jesus, t l no folheto... E ainda era na mquina de datilografia. Se vocs olharem no Cordelirando, um scanner da pgina, do processo, vo ver que ainda era no tempo da mquina de datilografia que eu peticionei. S que eu recentemente percebi o seguinte: que aquilo para o que eu menos me esforcei na vida algo que tem tido algum valor, entende?

Eu no fiz cordel pra me tornar famosa, eu no fiz cordel pra ganhar dinheiro porque primeiramente eu pagava do meu bolso, por isso que eu publiquei pouco na dcada de 90, que eu no tinha emprego. Eu vim ter um emprego em 98, emprego assim que me deu condio de me sustentar porque eu tralhava, obviamente, desde os quatorze, mas assim como comerciria, depois como pesquisadora do SINE, depois como pesquisadora do IBGE, depois eu trabalhei numa escolinha – mesmo sem eu ser formada ‒, eu fiz um teste e fui professora infantil. Na poca eu fui professora da Educao Infantil no Colgio Balo Mgico, ento no dava para eu sustentar o meu hobby, digamos assim, ento, foi uma poca em que eu produzi muito e no publiquei muito e... Teve coisa que eu produzi em 90 e s vi publicar no ano 2000. Ento, por exemplo MARIA DE ARAJO e seu lugar na histria, que a beata Beatitude, ele publicado em 2001, quando eu consegui recursos porque teve tempo que eu publiquei pelo Cordel, ou o projeto SESCordel, e a uma poltica; no nem uma poltica pblica porque o SESC que do Sistema S, da Indstria e tal, comrcio. Mas o SESC tinha uma iniciativa, um projeto de autoria de Fanka chamado SESCodel Novos Talentos, ento, eu me submeti a esse edital chamados novos talentos l na Regio do Cariri. E eu cheguei a publicar dois ou trs: o MEU PAI foi publicado pelo SESCodel Novos Talentos.

Ento, s vezes, uma coisa publicada numa dcada e ela foi produzida numa dcada anterior, mas faltava condies, no tinha uma poltica pblica no estado do Cear, um edital, uma coisa... um incentivo produo. Tinha incentivo leitura, mas o leitor e a leitora ia ler o que j estava disponvel naquelas prateleiras. A, com esse projeto criou-se uma Cordelteca e eu que no era s escritora de cordel, mas era tambm leitora, frequentava pra ler os cordis das pessoas, participava de uns saraus, recital etc. Os lanamentos eram lindos. Porque eu sou anterior aos Mauditos, n? Ento, eu publico antes dos Mauditos ‒ que o grupo que eu ajudei a fundar junto com Fanka e outras pessoas ‒, que alis vai sair um livro agora de autoria de Cludia Rejane sobre os Mauditos. Eu quero at confessar para vocs que deu o maior babado...

[Seguindo a tnica dos folhetins, a continuao da entrevista ser publicada em outro momento, de modo a manter aguada a curiosidade de nossas leitoras e leitores]



[1] Edilene Matos ensasta, professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. Ocupa a cadeira nmero 13 da Academia de Letras da Bahia.

[2] Antnio Aleixo foi agraciado com o Grau de Oficial da Ordem de Benemerncia, em 27 de maio de 1944.

[3] Antnio Vieira (Antnio Jos dos Santos Vieira), poeta, nasceu em fevereiro de 1949 e morreu em junho de 2007.

[4] Cordel Remoado um conceito criado por Antnio Vieira e consiste na palavra dita e/ou escrita ao modo dos folhetos de cordel, que se faz acompanhar pelo movimento do corpo ao som de instrumentos musicais: violo, pandeiro e percusso.

[5] Refiro-me esttua em bronze do poeta Antnio Aleixo, sentado mesa na Esplanada do Caf Calcinha, em Loul, de autoria de Lagoa Henriques. H, ainda em Loul, uma outra esttua de Aleixo, na Quinta do Lago, de autoria do mesmo Lagoa Henriques e igual do Caf Calcinha.

[6] Antnio Fernando dos Santos – Tssan (1918-1991), grande amigo de Antnio Aleixo, foi um expressivo artista e poeta portugus.

[7] H, no sul de Portugal, um antigo costume de grupos de crianas que vo de porta em porta, durante as festas natalinas, cantar as janeiras, quadras que se vo repetindo, alterando-se apenas o nome do dono da casa, que ento homenageado em troca de algum dinheiro ou prenda natalina.

[8] Na concepo de Antnio de Oliveira Salazar, o popular tem uma matriz rural, com a qual se identifica, explicao dada em seus discursos polticos. Cf. MELO, Daniel. O essencial sobre a cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus Novus, 2010.

[9] Este sujeito capaz/de fazer mil promessas/mas faz tudo s avessas/das promessas que faz. O primeiro verso dessa quadra era O Salazar capaz e foi substitudo por Magalhes para proteger o amigo poeta. Cf. DUARTE, Antnio de Sousa. Antnio Aleixo, o poeta do povo. Lisboa: ncora, 1999, p. 79.

[10] Acrescida obra de improviso de Aleixo, a parte do teatro muito interessante. So trs autos: 1. O Auto do Curandeiro, no qual expe sua viso a favor do saber mdico e faz crticas explorao dos curandeiros. 2. O Auto da Vida e da Morte. Nesse auto, o autor cria personagens como o da vida til e o da vida ftil e traz novamente a viso da cincia a servio da vida. 3. Ti Joaquim. Auto inconcluso, escrito em coautoria com Tssan, anuncia uma sociedade que no tolera formas de subverso.

[11] 7 edio do livro Este Livro que vos deixo, publicao de V. Martins Aleixo, 1983, localizada em Obras Gerais IV – 348.3.33

[12] Antnio Aleixo: o poeta do povo por Antnio de Sousa Duarte. Lisboa: ncora, 1999. PQ 9261 – A484 Z67 1999; ALEIXO, Antnio. Inditos (seleo, prefcio, notas, fixao de textos e ttulos por Ezequiel Ferreira. Loul, 1978. NLCS 81/0610.

[13] ALEIXO, Antnio. Inditos. Loul. V. Aleixo, 1978. FRBNF 35232149; Este livro que vos deixo (3. ed.). Lisboa, 1975 (contm um indito do autor – O Auto de Ti Joaquim). FRBNF 35408496.

[14] E-mail: fundacao.aleixo@gmail.com.

[15] Zeca Afonso – Jos Manuel Cerqueira Afonso (1929/1987), compositor, cantor, poeta, autor de vrias canes, incluindo Grndola, Vila Morena (Cantigas do Maio, 1971), que virou senha pelo Movimento que instaurou a democracia, em Portugal no dia 25 de abril de 1975.

[16] O espetculo uma cocriao e interpretao de Armando Correia, Carolina Cantinho e Pedro Pinto.

[17] Acrstico de Antnio Vieira e constante de todos os seus folhetos a que tive acesso.

[18] Em 2007, foi defendida uma dissertao de Mestrado em torno da obra de Antnio Vieira, sob o ttulo O Cordel Remoado: os casos e prosas do poeta cordelista Antnio Vieira, de autoria de Maria Luiza Franca Sampaio, no Curso de Ps-graduao em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional do Departamento de Cincias Humanas, Campus V, da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).

[19] Essa poesia foi declamada por Maria Bethnia no espetculo dentro do mar tem rio. E foi gravada posteriormente no DVD Piratas.

[20] Os folhetos eram tambm denominados por Antnio Vieira de livretos. Esses folhetos/livretos foram adquiridos por mim nas mos de sua viva (Coracy Vieira).

[21] Dona Can: me dos artistas Caetano Veloso e Maria Bethnia.

[22] Essa publicao foi no ms de dezembro e o poeta habilmente chamou a ateno para a tradio de dar presentes no Natal, publicizando seu folheto.

[23] O Encontro de Antnio Vieira com Antnio Aleixo, folheto de autoria de Antnio Vieira, 2005. Este folheto se encontra na Biblioteca do Congresso Americano, AFC 1970/002: M08302.

[24] Professor Substituto da UNEB e pesquisador em Literatura de Cordel.

[25] Optamos aqui pelo termo folheto que tambm engloba romance em vez de cordel.

[26] SOUSA, 2012.

[27] SOUSA, 2010a.

[28] SOUSA, 2016.

[29] SOUSA, 2009, p.107-111.

[30] SOUSA, 2010b.

[31] SOUSA, 2018.

[32] SOUSA, 2016.

[33] Professora emrita da Universit de Poitiers. Centre de Recherches Latino-Amricaines. Poitiers, Frana. E-mail: rialemaire@hotmail.com

[34] Em A peleja potica epistolar entre a poetisa Bastinha e o poeta Patativa do Assar (SANTOS, 2011, p. 46-47), Francisca Pereira Santos publicou trechos dessa correspondncia.

[35] Existe, desde 2013, a Rede Mnemosine, fundada pela pesquisadora/narradora/cordelista Josy Correia. Inspirada pela tese de doutoramento de Fanka Santos e oficializada em 2015, a rede promove aes de mapeamento, pesquisa, difuso e fruio de folhetos, recitais e feiras produzidas por mulheres. No ano de 2017, chegou a Portugal, onde possui um acervo de folhetos femininos, partilhados com a Universidade do Algarve e promove eventos, programas radiofnicos e audiovisuais, transmitidos ao vivo pela Internet. Contato: redemnemosine@gmail.com

[36] A respeito do conceito de matrimnio, ver Lemaire (2018).

[37] Atualmente Rita Segato que, j nos quadros do pensamento decolonial, retoma a noo de dualidade plural como base da metodologia do trabalho antropolgico, no sobre mas com as (mulheres das) comunidades indgenas do Brasil (SEGATO, 2012).

[38] Men Engage um movimento intercontinental, criado por homens e apoiado por movimentos de mulheres do mundo inteiro, que, todos juntos, objetivam e praticam um questionamento radical da violncia masculina e seus funcionamentos nas sociedades humanas. Um simpsio virtual, o UBUNTU SYMPOSIUM, rene, em contnuo e durante oito meses (de novembro de 2020 a junho de 2021), ativistas, militantes, movimentos, pensadores, profissionais e inteletuais para divulgar e debater as condies e experincias de uma re-educao dessa violncia masculina como conditio sine qua non de uma humanizao e pacificao do planeta-mundo.

[39] Mestrando em Estudos Literrios no Programa de Ps-graduao em Lingustica e Literatura da Universidade Federal de Alagoas.

[40] Doutora em Literatura e Cultura-UFBA e Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus III – Juazeiro.

[41] Usamos no decorrer deste texto as expresses: voz indgena, eu indgena e eu-potico para nos referirmos ao eu-lrico dos poemas.

[42] O poema conta com cinco estrofes, no entanto, aqui, traremos apenas a primeira e a ltima estrofes.

[43] Uma verso preliminar da temtica abordada aqui foi apresentada pela autora no IV Seminrio Fluminense de Sociologia, realizado pelo PPGS-UFF em 2015 em comunicao intitulada ... Mesmo que nos arranquem os dentes e a lngua: o espao sagrado da fala na literatura indgena. O presente artigo amplia o debate, aprofundando conceitos e propondo novas questes de investigao.

[44] Ps-doutora em Sciences de LInformation et de la Communication pela Universit dAvignon et des Pays de Vaucluse-UAPV. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ Imagem, Corpo e Subjetividade, ps-doutoranda em Comunicao e Cultura pelo Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGCOM-UFRJ.

[45] Eliane Potiguara apelida Marina, a esposa do lder indgena guarani do sculo XVIII, Sep Tiaraju. Ela aparece como Juara em outros textos seus.

[46] Para mais informaes, ver LEITE, Renata Daflon. ndios Online: posts que no querem calar. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p. 46.

[47] Doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais e professora da Universidade Federal de Ouro Preto.

[48] Se os autores, por uma razo ou por outra, no conseguiram citar uma s autora, uma s trovadora, que realmente o sexo fraco no se interessa pelo cancioneiro nordestino (LUYTEN, 2003, p. 146 apud Santos, 2020, p. 14) [grifo nosso].

[49] instagram.com/julie.oliveras

[50] Pesquisadora bolsista FAPERJ. Possui graduao em Letras – Lngua Portuguesa e Literatura – ABEU Centro Universitrio (2016), especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas – UFRJ (2018). Atualmente, cursa Mestrado em Letras Vernculas, rea de Literaturas Africanas e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Escritas do Corpo Feminino nas Literaturas de Lngua Portuguesa ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[51] Graduao em Letras (Ingls), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982); mestrado em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988); doutorado em Literaturas Africanas, pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (1997) e desenvolveu pesquisa de ps-doutorado, em Literaturas de lngua portuguesa, em Paris IV (Sorbonne), com nfase na escrita feminina (2016). Atualmente, professora-associada de Literaturas Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, universidade onde trabalha desde 2006. Tem experincia na rea de Letras, voltando-se para Literaturas de lngua portuguesa (Literaturas Africanas, Afro-brasileiras e Portuguesa) e atuando principalmente nos seguintes temas: literaturas africanas e literatura comparada. Desenvolve pesquisa em literaturas de lngua portuguesa e interessa-se, sobretudo, por imagens ligadas ao universo do riso, da busca de felicidade e das questes de gnero. pesquisadora associada do CRIMIC (Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibriques Contemporains).

[52] Com o intuito de facilitar a identificao das vozes narrativas, escolhemos nomear Cremilda como narradora-protagonista, ou seja, aquela que conta a histria, e Elisabete como narradora-ouvinte, por escutar e escrever as falas de Cremilda.

[53] bell hooks professora, filsofa e intelectual negra americana. Seu nome de nascimento Gloria Jean Watkins, e seu pseudnimo, inspirado no nome de sua bisav materna, escrito em letras minsculas com a finalidade de passar a ateno da figura autoral para as ideias de seus textos.

[54] Possui graduao em Letras Vernculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS (2006), Especializao em Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Faculdade Catlica de Cincias Econmicas da Bahia/FACCEBA. Mestranda do Programa de Ps-graduao em Crtica Cultural (Ps Crtica/UNEB).

[55] Possui Graduao em Letras Vernculas (Universidade Federal da Bahia/1987), Mestrado em Letras e Lingustica (Universidade Federal da Bahia/1995) e Doutorado em Comunicao e Semitica (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo/2005). Professora Titular Plena de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia, atuando como professora permanente no Programa de Ps-graduao em Crtica Cultural (Ps Crtica/UNEB). Integrou por diversas vezes a coordenao do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL. Tem experincia na rea de Letras, com nfase em Literatura, pesquisando os seguintes temas: tradio oral, identidade cultural, literatura oral e conto popular.

[56] So Sebastio do Pass est situado na Regio Metropolitana de Salvador e fica distante 58 quilmetros da capital, a 37 metros de altitude. Segundo dados do IBGE de 2019, sua rea total de 538,32 km² e populao de 44.300 habitantes. O municpio possui quatro distritos: Nazar de Jacupe, Lamaro do Pass, Maracangalha e Banco de Areia.

[57] Entende-se por arquivo um conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva [ou individual], pblica ou privada, pessoa ou famlia, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte (SANTOS, 2016, p. 27).

[58] Faz-se referncia a Maria Amlia da Cruz (03/05/2011-16/02/1992), foi uma moradora e sambadeira, natural de Maracangalha. Era uma verdadeira e primorosa artista no s na arrancada como no sapateado perfeito, na caprichada rodada e na umbigada final (PAIVA, 1996, p. 26, grifo do autor). Segundo, Paiva e moradores da vila, Maria Amlia da Cruz Anlia, musa de Caymmi.

[59] Besouro descrito como um homem temido em toda regio por sua valentia e mandingas [...]. Capoeirista de primeira linha, puxador de samba [...] (PAIVA, 1996, p. 67).

[60] O significado do letramento varia atravs dos tempos e das culturas e dentro de uma mesma cultura. Por isso, prticas to diferentes, em contextos to diferenciados, so vistas como letramento, embora diferentemente valorizadas e designando a seus participantes poderes tambm diversos (ROJO, 2009, p. 99).

[61] A composio, de tradio oral, foi gravada por Clementina de Jesus no LP Marinheiro s. A cantiga , por vezes, atribuda a Caetano Veloso, que foi quem produziu o LP de Dona Clementina, lanado em 1973, assim como quem fez a adaptao da cantiga.

[62] Prova disso a Revolta da Chibata, rebelio de negros marinheiros em 1910. O que motivou o motim foi justamente o uso de chibatadas, aceito oficialmente, por oficiais brancos para punir marinheiros negros e mulatos.

[63] Graduou-se em Licenciatura em Letras com habilitao em portugus/italiano pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP/IBILCE, Campus de So Jos do Rio Preto-SP. Desenvolve pesquisa de Mestrado com fomento CAPES junto ao Programa de Ps-graduao em Letras, pela Unesp/So Jos do Rio Preto-SP. membro do grupo de pesquisa Narrativas maravilhosas, mticas ou populares: da oralidade literatura (CNPQ), liderado pela Prof. Dr. Maria Celeste Tommasello Ramos.

[64] Assim como o italiano Gian Francesco Straparola no sculo XVI, o italiano Giambattista Basile tambm recolheu uma verso de O gato de Botas no sculo XVII, com o ttulo de Cagliuso, quarto entretenimento narrado na segunda jornada (fiaba IV, giornata II) de Lo cunti de li cunti.

[65] Do original: Lopera costruita in questo modo: un racconto (il 50 composto da: appertura/ponti narrativi/chiusura) allinterno del quale vengono raccontati altri 49 racconti. Per questo lopera stata intitolata racconto dei racconti. Si parla di gioco dei giochi nello stesso senso [...]. Il 50 racconto la storia di Zoza che apre e chiude lopera ed ha la stessa struttura dellultimo racconto (I tre cedri, il 49 : v. 9).

[66] Do original: E noi troveremo, anzitutto, che varii trattenemienti appartengono al grupo di quella, chՏ la fiaba pi famosa e pi ricca di storia, la fiaba di Psiche – Cos il nono della G.II, nella quale se racconta di Lucciella.

[67] O poeta, folclorista e escritor brasileiro Marco Haurlio publica, alm das coletneas de contos populares, como Contos folclricos brasileiros e Contos e fbulas do Brasil, vrios ttulos do acervo da literatura oral brasileira, dentre eles assuntos de cordel. Suas publicaes podem ser encontradas em: https://marcohaurelio.blogspot.com/p/bibliografia.html.

[68] Nesta seo, feita por Paulo Correia em julho de 2007, ele escreve: Todos os contos desta coletnea foram classificados de acordo com o catlogo ATU, com exceo dos que nele no figuram, classificados com a ajuda de catlogos regionais (HAURLIO, 2011, p. 198).

[69] Do original: Sar proprio Ciommetella con il suo ultimo racconto, che anche il racconto conclusivo della raccolta (se si esclude quello principale di Zoza), a smascherare lingano della schiava.

[70] Do original: che prende lo stomaco; quel senso di nausea che rimane e non se ne va mai. E' la sensazione di chi rumina invidia e che viene ripagato cos dalla sua stessa natura.

[71] O nome Folia de Reis designa grupos catlicos populares, que se renem no perodo de 24 de dezembro, noite, at o dia 6 de janeiro, para oferecer seu voto de devoo ao Santos Reis, em comemorao ao nascimento do menino Jesus (KIMO, 2006, p. 1).

[72] A letra da cano Saudao da Lapinha est integralmente transcrita na dissertao de mestrado Msica, ritual e devoo no terno de folia de Reis do Mestre Joaquim Pol, defendida por Igor Jorge Kimo, da qual retiramos os versos citados.

[73] Resultado da pesquisa de campo do conto mtico de Apuleio no imaginrio baiano, empreendida na dcada de 90, o livro Belas e feras baianas: um estudo do conto popular (2008), publicado pela pesquisadora e folclorista brasileira Doralice Xavier Fernandes Alcoforado que atuou como professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

[74] Mestranda em Estudos Literrios pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisa a relao entre polticas pblicas municipais e estaduais e a literatura.

[75] Mestranda em Estudos Literrios pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisa a performance e os saraus literrios em Londrina.

[76] SANTOS, Fiama Helosa Silva dos. Entrevista - Sarau das Pretas. Concedida a Ana Cristina Pereira da Silva e Amanda Maria Damasio Teixeira. Londrina, 13 jul. de 2020. No prelo.

[77] SANTOS, Poliana. Entrevista 2 – Sarau das Pretas. udios transcritos de WhatsApp. Concedida a Ana Cristina Pereira da Silva e Amanda Maria Damasio Teixeira. Londrina, 28 jul. de 2020. No prelo.

[78] SANTOS, 2020, s/p.

[79] Excerto da pgina do Facebook do coletivo COLETIVO LUSA MAHIN – SARAU DAS PRETAS. Disponvel em: https://www.facebook.com/saraudaspretaslondrina. Acesso em: 10 ago. 2020.

[80] SANTOS, Fiama, 2020, s/p.

[81] SANTOS, Poliana, 2020, s/p.

[82] Neste trecho da entrevista, a colaboradora Salete Maria recita o cordel A chegada do Lampio no Inferno numa tentativa de exemplificao das correes da av sofridas por ela na sua infncia. Essa prtica se repetir ao longo da entrevista.

[83] O filme chama-se Janana Dutra: Uma Dama de Ferro. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=zdtNOHia1qA. Acesso em: 10 jul. 2020.

[84] A colaboradora se referia a mesma terapia conhecida tambm como Iodoterapia ou mesmo Radioiodoterapia.