REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA
ANPOLL
Revista Boitat uma publicao semestral, de
acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de
Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)
GT LITERATURA
ORAL E POPULAR
BINIO 2020/2022
COORDENADORA
Profa. Dra.Dlcia Pombo
Secretaria Estadual de Educao do Par
delciauab@gmail.com
VICE-COORDENADORA
Profa. Ma. Dia Favacho
PPGED-UEPA
favachodia1@gmail.com
SECRETRIO
Profa. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
SEDUC/UFPA
alexandre_ranieri@hotmail.com
IDADE MDIA
ORALIDADE E PERFORMANCE
Dados Internacionais de Catalogao na
Publicao (CIP)
Boitat:
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa
e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] /
Universidade Estadual de Londrina - n. 31, v. 1, jan. /jun., 2021. –
Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2021. Semestral Requisitos do sistema: Adobe Reader. Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index> ISSN: 1980-4504 1.
Literatura oral 2. Oralidade 3. Cultura popular 4. Manifestaes arttisticas
I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Fernandes, Frederico Augusto Garcia III. Universidade Estadual de
Londrina. IV. Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e
Lingustica. V. Ttulo: Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular
da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica -
ANPOLL |
CDD: 808.5
ndice
para o catlogo sistemtico:
1. 2. |
Oralidade Cultura popular |
82 |
EXPEDIENTE
EDIO
Dr. Alexandre Ranieri
Ferreira (UFPA)
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes (UEL)
EDITORIA ASSISTENTE
Dra. Mauren Pavo
Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)
Dra. Andra Betnia da
Silva (UNEB)
ORGANIZAO
Dr. Nerivaldo Alves
Arajo (UNEB)
Dr. Joo Evangelista do
Nascimento Neto (UNEB)
COMISSO EDITORIAL
Dra. Anna Christina
Bentes
Universidade Estadual de
Campinas
Dra. Ana Lcia Liberato
Tettamanzy
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Berenice Araceli
Granados Vsquez
Universidad Nacional
Autnoma de Mxico
Dra. Cludia Neiva de
Mattos
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da
Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da
Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto
Garcia Fernandes
Universidade Estadual de
Londrina
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve
(Portugal)
Dr. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa
(Canada)
Dr. Jos Guilherme dos
Santos Fernandes
Universidade Federal do
Par
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do
Par
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do
Sul
Dra. Maria do Socorro
Galvo Simes
Universidade Federal do
Par
Dra. Maria Incoronata
Colantuono
Universitat Autnoma de
Barcelona
Dr. Mrio Cezar Silva
Leite
Universidade Federal de
Mato Grosso
Dr. Ronald Ferreira da
Costa
Professor do Instituto
Federal do Paran
Dr. Slvio Renato Jorge
Universidade Federal
Fluminense
Dra. Vanderci de Andrade
Aguilera
Universidade Estadual de
Londrina
Dra. Vera Lcia Medeiros
Universidade Federal do
Pampa
PARECERISTAS DESTE NMERO
Dra. Ana Lcia Liberato
Tettamanzy
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Claudia Freitas
Pantoja
Faculdades Integradas do
Vale do Iva
Dra. Cristiane de Assis
Portela
Universidade de Braslia
Dr. Dejair Dionsio
Universidade Estadual do
Centro-Oeste
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da
Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da
Grande Dourados
Dra. Eumara Maciel dos
Santos
Universidade Federal do
Oeste da Bahia
Dra. Francisca Pereira dos
Santos
Universidade Federal do
Cariri
Dr. Jos Henrique de
Freitas Santos
Universidade Federal da
Bahia
Dra. Laura Regina dos
Santos Dela Valle
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Dra. Lnia Mrcia
Mongelli
Universidade de So Paulo
Dra. Maria Nilda de
Carvalho Mota
Universidade do Estado de
So Paulo
Dra. Maria Ygnez Ayala
Universidade Federal da
Paraba
Dra. Snia Pascolati Vido
Universidade Estadual de
Londrina
Dra. Yara Frateschi
Vieira
Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo
PROJETO E ENSAIO VISUAL
Jssica Arajo Dantas
REVISO
Sylvia
Calandrini
SUMRIO
EDITORIAL
Um
convite roda da cultura popular
Nerivaldo Alves Arajo, Joo Evangelista
do Nascimento Neto ...................................................5
DOSSI
Corporeidade vocal e a pesquisa acadmico-artstica
Vagner de Souza Vargas ..................................................................................................................9
O Saci centenrio: uma anlise mitocrtica do Saci Perer
– Resultado de um inqurito
Andriolli Costa................................................................................................................................26
A literatura de cordel como reinvindicao do direito
Literatura
Letcia Fernanda da Silva Oliveira.................................................................................................37
O Rap indgena dos Br Mcs: a construo argumentativa da
polmica
Rubens Damasceno-Moraes, Vanessa Martins
Leo ....................................................................46
Tamo junto, favela! A arte perifrica como um mtodo
educacional
Ana Carolina de Souza
Silva.........................................................................................................60
A pintura um silncio? A arte perifrica como um mtodo
educacional
Vanessa Tavares da Silva..............................................................................................................71
Midiartivismo em tempo de pipa: msica, poesia e arte a favor
do ativismo social
Ricardo Oliveira de Freitas............................................................................................................83
Pontes sobre o rio Capiberibe e o mar
Ana Cristina Marinho....................................................................................................................96
Movimento Cult do Rio de Janeiro e os discursos sobre o
coco de Pernambuco
Genilson Leite da Silva, Bruno Rodolfo
Martins........................................................................107
Testemunhos da catstrofe: memrias do trauma em Vozes de Tchernbil
Joyce Rodrigues Silva Gonalves................................................................................................117
Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm
Everton Brito. Karina Souza, Lucas Caf,
Maria Thereza Azevedo...........................................128
Poticas Orais, corpo-memria e o ritmo das narrativas de
mestres e mestras contadores de histrias tradicionais
Luciene Santos, Margarida Corsi, Lana Lula
Amorin.................................................................139
CONVIDADO
A potica do retalho
Joo Evangelista do Nascimento
Neto........................................................................................151
ENTREVISTA
Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria
do homem que levou os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a
cantoria
Andria
Betnia da Silva
...........................................................................................................168
Um convite roda da cultura popular
O dossi AS MANIFESTAES DA
CULTURA POPULAR E SEUS MLTIPLOS DILOGOS se d em uma roda, cujos membros
brincantes, nesse espao, se do as mos criando um crculo infinito, forte e
colaborativo. Nessa roda, enquanto uma pessoa est no centro, cantando,
contando e performatizando sua histria, seu enredo, as demais coparticipam num
giro de saberes, sorrisos, corpos e vozes.
Nesse dossi, tornamos pblica
uma srie de estudos e vivncias orgnicas sobre manifestaes da cultura
popular. Aqui, cultivamos a pluralidade de saberes e sabores que nascem,
crescem e resistem em meio ao povo e por ele. Esses conhecimentos se formam por
uma multiplicidade de vozes, de pensamentos; se constituem vivos nos corpos que
resistem ao tempo, s lutas e tentativas de apagamento.
Essa roda da cultura sem
fim, porque se alimenta da vida cotidiana do povo. Enquanto houver povo, haver
cultura, que se manifestar por meio da palavra, ressignificada e personificada
na palavra-letra, na palavra-voz, mas tambm na palavra-corpo, na palavra-tinta,
na palavra-barro...
Por meio da palavra que o
ser se faz homem e mulher, mas por meio da cultura que esse homem e essa
mulher se fazem gente. Por isso, fazemos um convite leitura desse dossi. Ele
no mais um arquivo, daqueles que escondem papis, conhecimentos. Os textos
que compem esse acervo ganham fora se lidos no s com os olhos mas, num
movimento circular-sinestsico, se forem sentidos com o corpo, se suas vozes
forem ouvidas, o gosto dos seus sentidos forem saboreados, porque cultura existe
para ser degustada, e que nossos pelos se ericem diante de suas potncias, e os
nossos coraes jubilem frente a alma desse ente vivo.
Esse dossi uma declarao
pblica em defesa da cultura popular, que brota em lugares subalternizados, mas
que se espalha por onde quer e como quer, encontrando novos cultivos, outros
agricultores. Ns, seres humanos, somos aqueles e aquelas que aram essa terra,
o espao humano, onde se faz cultura todos os dias e, por ela, se vive e se
transforma a vida, e se muda o mundo:
A cultura o instrumento do
ser pensante, brincante e sentinte. As reflexes e atos que dela surgem vm em
forma de dana, de riso, de fora, do olhar e do tocar; brota da admirao e,
por conseguinte, da tomada de conscincia, individual e coletiva,
respectivamente, por isso mesmo, o espao cultural sempre lugar de
rememorao e celebrao, mesmo que disso resulte indignao, resistncia e
luta. Assim, nesse dossi, entram tambm na roda:
que o povo luta com a sua
voz, com as suas marchas, mas tambm com seu bailar, sua pintura, seus sonhos,
sorrisos e lgrimas. Por isso, a roda, que se forma nesse dossi, movimento
contnuo, que muda de cadncia, conforme o tema, mas nunca perde o ritmo;
alterna a melodia, sem desfocar a performance; e toda essa cinesia simboliza a
vida e a humanidade em seu estado mais pleno:
Nesses artigos, vemos
mltiplos corpos, vozes; belezas to distintas, traos fortes das gentes que
fazem a cultura popular nos espaos pblicos, privados, nos livros e mdias. A
palavra G-E-N-T-E, sinnimo de P-O-V-O, parece significar algo to amorfo, mas,
na verdade, no h dicionrio que consiga, at hoje, atribuir sentido
definitivo a elas; ns, povo-gente, no somos sem forma, pelo contrrio, temos
vrios aspectos, diversas fisionomias. No h molde que nos encaixe e nos
aprisione, porque nos (re)adequamos vida, ao contexto e ao pretexto. desse
modo que a roda da cultura popular se amplia, recebendo novos brincantes:
Quem encerra essa roda/nmero
da Revista Boitat Ariano Suassuna, com sua fala/canto em BREVE PROSA COM ARIANO SUASSUNA OU A HISTRIA DO HOMEM QUE
LEVOU OS CANTADORES AO TEATRO E MOSTROU OUTROS RUMOS PARA A CANTORIA.
Dessa forma, os
dilogos presentes nesse dossi so excertos de manifestaes diversificadas,
que se revelam numa profuso de sons, cores e sabores. So discursos de
autoconhecimento e da compreenso do outro. So modos de vida e formas de ao
que precisam ser conhecidas e experenciadas.
Por fim, vamos
roda!
Nerivaldo Alves Arajo
https://orcid.org/0000-0001-9423-3603
Joo Evangelista do
Nascimento Neto
https://orcid.org/0000-0003-4937-7311
Corporeidade vocal e a pesquisa acadmico-artstica
Vocal Corporeity and
Academic-Artistic Research
Vagner de Souza Vargas[1]
https://orcid.org/0000-0002-6350-9256
Resumo: Abordagens investigativas relacionadas aos processos criativos nas mais
distintas linguagens artsticas tm se desenvolvido com diferentes nfases ao
longo do tempo. O objetivo deste artigo o de apresentar uma proposta de
trabalho de campo na pesquisa acadmica em artes cnicas, na qual foi desenvolvido um tipo de processo criativo, com
o intuito de refletir sobre as interfaces entre aspectos corporais e vocais na
pesquisa acadmico-artstica. Este trabalho demonstrou uma possibilidade outra
para o desenvolvimento do trabalho de campo, assim como tambm reafirma a
necessidade de que a grande rea das artes como um todo se permita a divulgar outras
abordagens para a pesquisa acadmica.
Palavras-Chave:
Metodologia da Pesquisa. Corporeidade Vocal. Corpo-Voz. Processo Criativo.
Pesquisa Acadmico-Artstica.
Abstract: Investigative approaches related
to creative processes in the most distinct artistic languages have emerged with
different approaches, especially nowadays. The aim of this article is to
present a proposal for field work in academic research, in which a kind of
creative process was developed, with the purpose of reflecting about the
interfaces between body and vocal aspects in academic-artistic research. This
work has demonstrated another possibility for the development of field work, as
well as reaffirming the need for the great area of the arts - as a whole - to
be allowed to disseminate other approaches to academic research.
Keywords: Research Methodology, Vocal
Corporeity, Body-Voice, Creative Process, Academic-Artistic Research.
Introduo
A pesquisa acadmica em
artes performativas possui abordagens metodolgicas, em acordo com as suas
especificidades de rea, estabelecidas ao longo dos anos (CARREIRA et al.,
2006). Entretanto, em acordo com as necessidades contemporneas, alguns
artistas-pesquisadores sentem o desejo de desenvolverem suas investigaes por
vias metodolgicas que no necessariamente venham ao encontro dos seus anseios
conforme os mtodos tradicionalmente desenvolvidos o fazem.
Neste sentido, urge a
necessidade em se propor abordagens para o desenvolvimento da investigao
acadmica de um modo geral, propiciando perspectivas que hibridizem, borrem
fronteiras entre as metodologias tradicionais e/ou que possibilitem se
desenvolver por meios outros[2]. Mas, potentes em viabilizar reflexes que contribuam
produo acadmica e artstica. Estas abordagens outras encontram em
suas caractersticas, parmetros e desenvolvimentos, os elementos essenciais
para se legitimarem em si, constituindo-se como perspectivas alternativas
pesquisa acadmica, em especial, s pesquisas em artes performativas
(PRENDERGAST, 2003; 2014; PARKER-STARBUCK; MOCK, 2011; KERSHAW; NICHOLSON,
2011; KERSHAW, 2012; AALTONEN; BRUNN, 2014; VARGAS et al., 2019). Apesar
de haver muitas abordagens metodolgicas para as pesquisas acadmicas na grande
rea das cincias humanas, este artigo focar suas reflexes para o contexto
das pesquisas em artes performativas.
O objetivo deste artigo
o de apresentar uma proposta de trabalho de campo na pesquisa acadmica em
artes performativas, na qual foi desenvolvido um tipo de processo criativo por
um ator[3], com o intuito de refletir sobre as interfaces entre
aspectos corporais e vocais em sua investigao. Neste texto, tambm ser
relatada esta perspectiva sobre como trazer um processo criativo que trabalhe
aspectos relacionados s vivncias corporais e vocais no trabalho em artes
performativas por meio de uma etapa de empiria em uma investigao acadmica,
ou como chamada por Vargas (2018), acadmico-artstica, pois se prope a
hibridizar quaisquer linhas separatrias que possam dividir a pesquisa entre
estas reas.
Antes de mais nada, para
ler este texto, h de se faz-lo como um convite a observar como um ator se
utilizou de uma proposta tcnica, associando corpo e voz, sonoridade e
corporeidade, ou, como mencionado por Vargas (2018): corpo-voz – vide
p. 85 – e corporeidade vocal – vide p. 23 –, para
desenvolver uma pesquisa acadmica, na qual a sua prtica como investigao no
trabalho de campo tambm envolveu um processo criativo. Por se tratar de um
artigo no qual se explanar sobre alguns procedimentos adotados durante o
trabalho feito ao longo de um doutoramento, neste texto, em certos momentos, os
relatos sero escritos em primeira pessoa, como um convite ntimo e intencional
de trazer quem o esteja a ler para
perto de reflexes to particulares desenvolvidas na tese de Vargas (2018).
Este texto tambm se
prope a oferecer um outro modus[4] de se pensar e efetuar o trabalho de campo em pesquisas que
envolvam processos artstico-criativos. Talvez, a descrio dos procedimentos
adotados no estudo que serve de mote para a escrita deste artigo possa oferecer
algum rudo queles que no esto acostumados a transgredir as propostas de
metodologias das pesquisas tradicionalmente efetuadas no meio acadmico.
Entretanto, justamente por este motivo, muitos artistas-pesquisadores tm
optado por buscar maneiras outras para o desenvolvimento dos trabalhos
empricos em suas investigaes, de modo que estejam em acordo com seus
anseios, como o caso dos estudos publicados por Prendergast (2003; 2014),
Parker-Starbuck e Mock (2011), Kershaw e Nicholson (2011), Kershaw (2012),
Aaltonen e Brunn (2014), Vargas (2018) e Vargas et al. (2019). Por outro
lado, para a leitura do texto deste artigo, tambm convido o(a) leitor(a) a um
olhar afetuoso, uma vez que a descrio de um processo criativo, mesmo que
tenha sido desenvolvido com o intuito de suscitar reflexes, tambm um ato de
desnudamento do artista que se prope a relat-lo, expondo suas fragilidades,
vulnerabilidades e dilemas ao longo deste processo.
Etapas de uma composio no
processo criativo: conceitos necessrios
Os processos criativos
em artes performativas podem ser realizados com distintas abordagens, conforme
aprouver s necessidades dos trabalhos que as(os) artistas estiverem
desenvolvendo. Neste momento do texto, faz-se importante ressaltar que, apesar
de a discusso deste artigo estar focada a partir da perspectiva do trabalho de
ator, por se tratar de uma temtica relacionada s reflexes sobre corpo e voz,
o que aqui ser exposto tambm serve s perspectivas de trabalhos de artistas
em dana, pera, performance art, msica, circo, burlesque, dragging
e demais artes, as quais sero englobadas dentro da terminologia artes
performativas apenas por uma questo de facilidade de escrita textual a este
artigo. Alm disso, tambm necessrio enfatizar que, apesar de este artigo
centrar suas abordagens falando sobre uma perspectiva para atores, por se
tratar de uma discusso que pode ser ampliada s diversas artes, quando estiver
falando sobre estes aspectos para atores, todas as reflexes e propostas aqui
tratadas tambm podem ser expandidas e reverberadas s demais artes
performativas.
Nesse sentido, ao se
propor uma abordagem investigativa acadmico-artstica, na qual o processo
criativo em artes se desenvolva como parte essencial dos procedimentos de
investigao, podemos pensar todo o contexto de pesquisa como um processo de
composio. No caso deste artigo, permito-me traar um paralelo com as
reflexes propostas por Bonfitto (2009, p. 142) sobre o ator-compositor, ao
considerar que
H, alm disso, especificidades ligadas
ao ator-compositor. A partir do conhecimento dos elementos que envolvem a
prtica de seu ofcio, e utilizando-se da ao fsica como eixo dessa prtica,
ele adquire a possibilidade de deixar de ser somente uma pea da engrenagem que
constitui a obra teatral, assim como pode superar a condio de consumidor de
tcnicas de interpretao. [...]. O ator adquire um valor de instrumento
potente, capaz de oferecer inmeras possibilidades de resoluo para os
processos cnicos.
O enlace feito com o que
destacado acima, a partir de Bonfitto (2009), se refere a pensar a pesquisa
acadmico-artstica em artes performativas como um processo para alm do
desenvolvimento de tcnicas. Nesse sentido, os artistas-pesquisadores, ao
avanarem em um processo criativo de pesquisa nesta rea, devem estar abertos a
este processo buscando que o fornecimento de elementos esttico-reflexivos e
poticos durante esses vivenciamentos em pesquisa, lhes possibilite subsdios
necessrios ampliao das discusses pertinentes aos seus trabalhos. Este
direcionamento se refere a um modus particular desta especificidade de
rea em desenvolver seus estudos, pedagogias, achados e reflexes. Neste caso,
a composio parte de um princpio no qual o artista ir pensando, elaborando,
vivenciando e refletindo sobre cada etapa antes e durante o seu trabalho de
campo, encontrando elementos que serviro como disparadores reflexivos a serem
desenvolvidos a posteriori. O ator se pe como parte ativa neste
processo em busca dos subsdios que lhe conduziro ao caminho das reflexes
relacionadas sua investigao, tudo isso ao longo do processo criativo,
compondo o seu trajeto de pesquisa de campo por meio de sua corporeidade[5].
Quando nos propomos a desenvolver uma investigao
acadmico-artstica em artes performativas por meio de uma proposta
metodolgica focada no trabalho corporal e vocal para atores, de maneira
conjunta e indissociada, h de se perceber que as reflexes oriundas desse
processo sero permeadas profundamente por vivncias e experimentaes
corporais e vocais. As experincias desse processo potencializaro as prximas
etapas da pesquisa proposta. Ao se refletir sobre elementos relacionados a
questes corporais e vocais ao longo do processo criativo, necessitamos
conceber esses aspectos tambm englobando saberes sensveis do corpo humano.
Sobre isso, apesar de Aleixo (2010) no desenvolver uma tese sobre o que venha
a ser um saber sensvel, explicando seus meios e compondo um arcabouo
epistemolgico para tanto, este autor refere alguns elementos importantes de
serem trazidos discusso aqui proposta, quando diz que
O acesso
aos mltiplos procedimentos do trabalho vocal para o exerccio de criao
potica, uma vez que experimentados e assimilados praticamente – ou seja,
como um saber sensvel do corpo, como algo que eu sei porque posso realizar
– amplia as possibilidades do ator pesquisar, improvisar e criar poticas
vocais, bem como compreender e propor formas ampliadas de relao com a fala e
com o texto em cena, alm de dominar distintos modos objetivos de abordagem de
estilos e propostas da linguagem teatral (ALEIXO, 2010, p. 104).
Desse modo, partindo destes disparadores de indcios reflexivos expostos
acima, podemos pensar no trabalho corporal e vocal de maneira ampliada. Esta
acepo, conduz o ator a considerar esta abordagem como um aprofundamento nos
elementos que compem a corporeidade vocal. Esta corporeidade vocal aqui
compreendida como sendo fruto de uma interrelao entre aspectos corporais
– relacionados a experincias e exerccios fsicos/estticos/expressivos
– e vocais – relacionados tambm a experincias e exerccios
especficos pensando nas estruturas vocais e correlatas. Corpo e voz sendo
assim indissociados, expandem a concepo de voz ao todo corporal, um imenso
fluxo de relaes entre o som em cada parte de seu corpo, descobrindo
possibilidades e se deixando aberto criao potica da voz enquanto corpo e
do corpo enquanto voz, resultando em uma corporeidade vocal.
Nesse sentido, refletir sobre o processo criativo sob a via da
corporeidade vocal, permite potencializar no apenas experincias e vivncias
que fornecero subsdios a serem desenvolvidos ao longo do processo, mas,
tambm, a assumir este aspecto como integrante de um processo de saber sensvel.
Este processo potencializa a corporeidade vocal a desempenhar um papel como
disparadora de significaes. Ao longo de seu processo criativo, caber ao ator
ir mesclando, experimentando, pesquisando e vivenciando possibilidades e, neste
nterim, ir selecionando caminhos e experincias que estejam lhe fomentando
reflexes relacionadas sua investigao (VARGAS, 2018). Associo a isso o que Bonfitto (2009, p. 140-141) refere ao falar sobre as
escolhas metodolgicas de trabalho dos atores:
A utilizao de materiais de diferentes
naturezas dever gerar, por sua vez, a necessidade de inserir transies entre
esses materiais. A busca de sentido de cada material e das possveis transies
entre eles envolve, dessa forma, uma competncia especfica do ator. Utilizando-se
de vrios materiais, o ator poder selecion-los somente a partir das
percepes resultantes de uma experimentao prtica. Ele dever ser capaz de
perceber quais os materiais adequados, que produzem sentido a partir da
execuo de suas aes.
Com o intuito de ir gerando sentidos e significaes ao longo de seu
processo criativo durante a pesquisa de campo, em sua prtica como
investigao, o ator dever compor um modus que lhe permita organizar os
elementos trabalhados, assim como, tambm, em constituir meios para
recuper-los e expandi-los a cada dia de trabalho. Uma possibilidade para este
tipo de composio se refere criao de partituras corporais e vocais. Neste
caso, o termo
partitura ao qual me aproximo aqui empregado tomando por base o que fora
referido por Barba (2010, p. 62) como sendo:
O
desenho geral da forma de uma sequncia de aes e ao desenvolvimento de cada
uma das aes (incio, pice, concluso); preciso dos detalhes de cada ao
e de seus desdobramentos (sats, mudanas de direo, variaes de
velocidade); ao dinamismo e ao ritmo: a velocidade e a intensidade que
regulavam o tempo (no sentido musical) de uma srie de aes. Era a mtrica das
aes com suas micro pausas e decises, o alterar-se de aes velozes e lentas,
acentuadas e no acentuadas, caracterizadas por uma energia vigorosa e macia;
orquestrao das relaes entre as vrias partes do corpo (mos, braos,
pernas, ps, olhos, voz, rosto).
O que esse autor descreve no trecho acima se refere a uma
maneira de organizar movimentos, aes fsicas e vocais dentro de uma sequncia
fixada (no sentido de poder ser rememorada e resgatada em cada dia de trabalho)
pelo ator ao longo de seus treinamentos. A elaborao dessas aes deve obter
um certo grau de preciso no apenas no que diz respeito sua execuo, mas
para que, por meio desse processo, o ator possa ir percebendo as nuances e
sutilezas de cada aspecto que pode estar no entre cada ao. Esses
procedimentos so realizados ao longo dos momentos em que os atores se pem nas
salas de ensaio/trabalho/estdios desenvolvendo exerccios e experincias que
lhes permitam a abertura e a disponibilidade para a identificao de matrizes
corporais e vocais que sero integradas, elaboradas em sequncias
posteriormente organizadas em movimentos, sons e aes (VARGAS, 2018). Quando
se situa esta possibilidade como integrante de uma etapa s pesquisas
acadmico-artsticas em artes performativas, deve-se ter em mente que haver a
necessidade em se traar hipteses de partida, objetivos e questes iniciais
que serviro como primeiros passos antes do processo criativo em si como
trabalho de campo dessa investigao. Esta abordagem, utilizando-se de
partituras corporais e vocais, requer um perodo prolongado durante o trabalho
de campo, uma vez que, segundo Barba (2010, p. 63):
Uma partitura s comeava a viver depois de ter sido fixada
e repetida muitas vezes. A partitura era a manifestao objetiva do mundo
subjetivo do ator. [...]. A partitura era a busca da ordem para dar espao Desordem.
[...]. A elaborao compreendia as mudanas de ritmo e de direo no espao, a
fixao das micro pausas entre uma ao e outra e um novo arranjo das vrias
partes do corpo (braos, pernas, expresses faciais), que era diferente do
material originrio. [...]. Durante suas improvisaes, o ator ia pescar
materiais de onde destilar (elaborar) em seguida uma partitura. Teria sido
estpido pescar com redes furadas e deixar que os peixes fugissem quando
chegassem superfcie.
Para o ator-pesquisador que se proponha a realizar um
trabalho nessa perspectiva, no basta apenas organizar as aes em uma ordem
especfica. Ele precisa compreender em seu corpo, em sua corporeidade, os
caminhos que transpassam cada uma delas, permitindo que essa disposio ou justaposio
em ordenamento fomente possibilidades de gerar material criativo de trabalho
dirio. Cada fragmento contm um mundo, uma constelao de possibilidades
instigantes. A cada dia de trabalho, sentidos e significados surgem e se
potencializam na medida em que o ator se compreende e se entrega
experimentao de possibilidades. No entre-espao desse processo, existe um fio
condutor que pode ser chamado de subpartitura (VARGAS, 2018). Segundo Barba
(2010, p. 64), subpartitura :
O modo em que o ator via, ouvia, sentia o cheiro e reagia
dentro de si, ou seja, como ele contava a histria da improvisao para si
mesmo atravs de aes. Essa histria interior comportava ritmos, sons,
melodias, silncios e suspenses, perfumes e cores, figuras isoladas e montes
de imagens contrastantes, uma enchente de aes interiores que se manifestavam
em precisas formas dinmicas. A subpartitura um elemento tcnico que pertence
particular lgica criativa de cada ator.
Partitura e subpartitura so conceitos interligados, porm
com distintas especificidades. Sobre esse assunto, Barba (2010, p. 65) ainda
afirma que
A
subpartitura um apoio interno, um pilar escondido que o ator esboa para si e
que no tenta representar. No deve ser confundido com o significado que a partitura
vai assumir para quem a observa. Sem a subpartitura, aquilo que o ator
apresenta no mais a criao de uma corrente subjetiva de reaes, uma linha
orgnica guiada por uma coerncia interna, mas gesticulao, movimento e
deslocamentos casuais.
Por este motivo, ao se
utilizar da criao de partituras e subpartituras durante o seu processo
criativo, em uma investigao enfocando a corporeidade vocal, h de se estar
aberto a extrapolar a pura execuo de tcnicas. Nesse sentido, devemos buscar
nas inter-relaes do corpo-voz as sensaes, experincias, sentidos,
significados, emoes e vivenciamentos que conduzam a possibilidades
reflexivas, as quais serviro de vias de acesso aos caminhos a que esta etapa
da investigao se abrir. Este tipo de abordagem requer que as tcnicas sejam
ultrapassadas em prol de que o artista-investigador se permita e se entregue
criao.
Entretanto, tambm
gostaria de enfatizar que processos criativos que se utilizem dos aspectos
relacionados criao de partituras corporais e vocais fazem parte de diversas
abordagens metodolgicas nas pesquisas acadmico-artsticas em artes
performativas. Este artigo no est expondo alguns destes elementos como uma
inovao metodolgica. Mas, sim, com o intuito de propiciar um enlace com o que
ser apresentado mais a diante neste texto, ressaltando a singularidade da
proposta que ser brevemente descrita e, assim, expor os referenciais que a
legitimam tambm como uma perspectiva outra pesquisa
acadmico-artstica contempornea. Porm, nesse contexto, como poderia o ator
conduzir e desenvolver seu processo criativo ao longo do trabalho de campo?
Um experimento potico-teatral
O que ser dito como sendo um experimento potico-teatral no
texto deste artigo parte da concepo feita por Vargas (2018, p. 32), ao
referir que este procedimento envolveu a criao de uma partitura cnica a
partir do texto Prometeu Acorrentado, de squilo. Segundo este autor
descreve nesta parte de sua tese, o experimento potico-teatral envolve a
criao e adaptao de movimentaes corporais, vocais e suas inter-relaes
com a corporeidade, a fim de se criar um fragmento de cena que no necessite ter
as mesmas concepes ligadas dramaturgia literria, situaes cotidianas, nem
muito menos utilizao em encenaes. Esse experimento se refere a um modus operandi de que os atores dispem
para gerarem matrizes de trabalho e vivenciarem sensaes que podero ou no
ser utilizadas ao longo dos seus processos criativos. Esses materiais de
trabalho sobre si fornecem subsdios para que o ator possa expandir suas
reflexes para outros contextos e questes no necessariamente relacionados ao
trabalho que est realizando naquele momento. Tambm considero que esta
abordagem seja uma maneira pela qual os atores consigam buscar elementos de
reflexo para quaisquer questes a partir das relaes que estabelecem com a
sua corporeidade por meio de um modus
peculiar de ir desenvolvendo o processo criativo e a prpria compreenso de seu
trabalho (VARGAS, 2018).
O experimento potico-teatral um procedimento compreendido
de muitas nuances durante o processo criativo, sendo uma delas a criao da
partitura cnica. Esse um tipo de pesquisa de campo, na qual o prprio campo
o corpo do ator, sua corporeidade, ou seja, as maneiras pelas quais
experiencia, vivencia e se relaciona com as experincias ao longo desse
processo, resultam em reflexes que no compartimentalizam o corpo, mas o
potencializam como elemento disparador de possibilidades. Este aspecto permite
ao ator conduzir sua pesquisa, considerando o corpo como um ente global de
relaes, ou seja, assumindo-o como/em corporeidade (VARGAS, 2018). Apesar de
estar frisando que o experimento potico-teatral desenvolvido por Vargas (2018)
tenha sido efetuado com o intuito de aprofundar reflexes sobre corporeidade de
maneira ampliada, suas possibilidades como procedimento vivel investigao
sobre questes relacionadas sonoridade e voz no devem ser esquecidas, nem
muito menos a sua intrnseca relao com o corpo do ator, com sua corporeidade. Esta proposta de trabalho permite conceber uma perspectiva
de desenvolvimento das partituras corporais e vocais, pensando-as como
elementos estticos, poticos, imbricados, vivenciados de maneira inseparvel,
potencializando corpo, voz, emoes, sentimentos e sensaes como matrizes
unssonas e/ou dissonantes em atividade.
Entretanto, faz-se
necessrio ressaltar que este tipo de abordagem no visa apenas descrever
procedimentos, processos e vivenciamentos durante a pesquisa de campo. Estas
descries so importantes de serem feitas e, de certa maneira, tambm
legitimam, registram e fornecem elementos para se compreender no apenas os
procedimentos adotados e escolhas ao longo do trabalho de campo, mas tambm,
possveis evidncias que estaro surgindo para compor o arcabouo de reflexes
futuras s prximas etapas da pesquisa em questo. Mas, para alm disso, este
tipo de proposta de trabalho de campo possui caractersticas de pesquisa
especficas das artes performativas. Desse modo, tambm possibilita que
artistas-pesquisadores desta especificidade de rea conduzam suas investigaes
encontrando meios que venham ao encontro das maneiras pelas quais eles
desenvolvem seus processos de significao, reflexo e legitimao das
potencialidades evidenciadas em suas pesquisas. Para alm das descries dos
procedimentos e vivenciamentos ao longo da pesquisa de campo, neste tipo de
abordagem, a ampliao dos disparadores reflexivos, surgidos ao longo do
processo, se faz necessria como catalisadora das discusses propostas nos
objetivos da investigao que esteja sendo desenvolvida.
Por este motivo, com o intuito de avanar a discusso
proposta neste artigo e exemplificar o que vem sendo exposto neste texto, logo
a seguir, sero brevemente descritos alguns princpios sobre como se
desenvolveu uma parte da proposta realizada por Vargas (2018) para se trabalhar
com arqutipos vocais, associados a ressonadores corporais. Esta diviso
textual se faz importante para que, quem estiver a ler, possa dispor de
subsdios que lhe propicie uma leitura mais fluida sobre quando o experimento
potico-teatral for descrito. Nesse sentido, possibilitar-se- que se percebam
as reflexes possveis sobre como pensar em um tipo de dramaturgia da
corporeidade vocal, configurando-se como uma peculiaridade que se expande
tcnica e se desenvolve por meio de um mergulho esttico ao longo do processo
criativo.
Arqutipos vocais e o experimento potico-teatral
A proposta de trabalho
com arqutipos vocais surge a partir de teraputicas desenvolvidas em um tipo
de prtica especfica de voz-terapia, conforme apresentada por Stein (2009), na
qual a autora descreve detalhadamente exerccios de voz-terapia por meio de
arqutipos e as tcnicas relacionadas a estes procedimentos. Nessas atividades,
foram estipulados e elencados quatro arqutipos – Criana, Amante,
Guerreiro e Me – associados a ressonadores localizados em certas partes
do corpo. O acionamento sonoro de cada um desses arqutipos na parte do corpo
relacionada com o ressonador especfico de cada um deles, desencadeia
sentimentos/emoes/sensaes com localizaes corporais especficas e
acionadas a partir de uma vibrao sonora da voz no ressonador associado a cada
arqutipo em especfico (VARGAS, 2018, p. 94).
Devido ao fato de a
tcnica sobre os arqutipos vocais ser uma proposta singular e que requer
especificaes sobre a sua adaptao a partir do que fora descrito por Stein
(2009), por uma questo de espaamento textual, esta tcnica em especfico no
ser detalhada neste artigo, uma vez que o objetivo deste texto se foca mais no
que possvel apreender a partir do experimento potico-teatral em si e no em
uma das tcnicas que propiciaram o seu desenvolvimento. Contudo, caso seja de
interesse do(a) leitor(a) em perceber como a tcnica dos arqutipos vocais foi
adaptada a uma proposta de trabalho nas artes performativas, a tese de
doutoramento de Vargas (2018) contm elementos aprofundados sobre esta
abordagem e o trabalho de Stein (2009) descreve, em detalhes, os procedimentos
relacionados voz-terapia.
Segundo Vargas (2018, p. 95), neste tipo de abordagem, os
indivduos tm possibilidades de se relacionarem de maneira diferente com as
suas sonoridades e descobrir possibilidades ainda no vivenciadas por meio de
outras tcnicas. Cabe ainda frisar que Vargas (2018) se utilizou dos
arqutipos vocais como uma das abordagens tcnicas durante o desenvolvimento de
seu experimento potico-teatral. Entretanto, este autor deixa claro que esta
foi uma escolha particular, o que no significa que outros
artistas-investigadores possam empregar tcnicas e abordagens diferentes, caso
desejem desenvolver suas investigaes se utilizando de um experimento
potico-teatral. Nesse sentido, antes de descrever sobre o experimento
potico-teatral em si, logo abaixo, sero explicitados, brevemente, os quatro
arqutipos escolhidos que foram trabalhados por Vargas (2018), nos quais a voz
era dinamizada, associada a ressonadores corporais especficos, propiciando
experincias emocionais/estticas que serviram de matrizes para o processo
criativo que ser descrito logo a seguir neste texto.
Todas as emoes
vivenciadas nesses exerccios eram percebidas e associadas s suas localizaes
nos ressonadores de cabea, relacionados a determinadas vozes agudas. Segundo
Vargas (2018, p. 95) relata em seu trabalho: Esse processo me permitia
descobrir sensaes emotivas que os sons das vozes desvelavam e a localizao
corprea de onde eles poderiam ser acessados.
No trabalho com este
arqutipo, a voz era deslocada para a parte superior torcica, devendo explorar
todas as possibilidades dos ressonadores presentes nesse local. Estes
exerccios pretendiam investigar sonoridades no mais agudas. Mas, agora, de
extenso mediana, buscando o encontro desses sons com as emoes que poderiam
ser associadas nessa regio do corpo. Segundo Vargas (2018, p. 95), os exerccios
utilizados envolviam sentimentos relacionados ao amor e afetividade, aliados
responsabilidade e ao poder.
Esta etapa do trabalho
envolvia exerccios nos quais o impulso vocal deveria partir da regio
diafragmtica de maneira dinmica e expansiva, deixando as sonoridades da
emergidas, reverberarem ao longo de todo corpo, observando as sensaes e
emoes que despertavam. Segundo Vargas (2018, p. 96), Esse arqutipo
acessado por meio de movimentos e ritmos fortes em uma constante relao com o
cho e a base.
Os trabalhos associados
a este arqutipo propunham exerccios que envolviam o deslocamento do centro de
ressonncia da voz para a poro infra umbilical. Segundo Vargas (2018, p. 96),
As emoes aqui trabalhadas, bem como das matrizes corpreas que esses sons
nos remetem, forneciam indcios para o acesso de matrizes de trabalho
relacionadas a sentimentos de conforto, melancolia, saudade, separao, amor,
generosidade, acolhimento, proteo e sensaes de introspeco.
O experimento potico-teatral: criando partituras e
subpartituras
Durante os treinamentos
diariamente realizados ao longo do trabalho de campo, matrizes corporais e
vocais, que estavam relacionadas aos arqutipos vocais escolhidos para serem o
foco de trabalho, foram sendo fixadas, assim como suas localizaes corpreas e
as emoes ali registradas. Essas matrizes serviam como elementos para a
criao da partitura fsica e vocal, assim como tambm para o seu resgate e desenvolvimento
do trabalho a cada dia de pesquisa.
Com o intuito de situar
o(a) leitor(a) no contexto da fala e no momento vivenciado pela personagem do
texto Prometeu Acorrentado, uma simples e breve descrio se faz necessria
para expor alguns aspectos emotivos que o ator considerou como envolvidos na
cena e que foram trabalhados por meio das partituras corporais e vocais. O
trecho escolhido para comear a ser encaixado nas partituras trabalhadas foi
uma parte de uma fala da personagem Prometeu que, aps doar a chama do
conhecimento e esperana aos mortais, condenado por Zeus a ficar acorrentado
no alto de um penedo por toda a eternidade. Diariamente, um corvo vem a este
local para comer o fgado de Prometeu ao longo do dia. noite, o corvo vai
embora e o fgado se regenera, para, durante o amanhecer seguinte, iniciar o
martrio dirio de Prometeu por toda a eternidade. O fragmento de texto
escolhido conta exatamente o momento em que Prometeu, aps receber a condenao
divina por ter doado a chama do conhecimento aos humanos, est sendo carregado
at o alto do penedo, preso em correntes e, ento, lamenta a sua situao,
temendo a chegada do corvo, pois a noite est acabando. Porm, se faz
importante salientar que Vargas (2018) tambm esclarece que optou pelo texto
Prometeu Acorrentado como uma escolha particular, em consonncia com os
argumentos acima expostos sobre as particularidades de escolhas deste autor
para o desenvolvimento deste trabalho.
A partir do momento em
que o trecho do texto j havia sido escolhido e a partitura bsica de matrizes
fsico-vocais j estava elencada, foram includas as prticas com os arqutipos
vocais direcionando-os para esse contexto. A partitura corporal-vocal foi
dividida em seis momentos: 1. A subida ao penedo, 2. Preso s correntes, 3.
Lamento, 4. Revolta contra Zeus, 5. Medo do trmino da noite, 6. Chegada do
corvo[6]. Com o intuito de simplificar a escrita deste artigo e
facilitar a sua leitura, o que aqui denominado como sendo uma partitura
corporal-vocal, engloba os conceitos de partitura e subpartitura mencionados
anteriormente neste texto.
Dependendo da frase do
texto, foi utilizado um arqutipo vocal diferente. Esta tambm foi uma escolha
particular como investigador, no intuito de verificar como o trnsito da voz
pelas localizaes corporais de cada arqutipo, poderiam conduzir diferentes
emoes/sensaes/experincias que a personagem Prometeu poderia
sentir/vivenciar/experienciar durante essa fala. Neste caso, o contexto da
personagem Prometeu foi situado dentro das escolhas de conduo tcnica para a
partitura e subpartituras. Mas, as sinestesias vivenciadas ao longo deste
processo criativo extrapolam quaisquer personagens, fornecendo elementos
reflexivos ao ator, independentemente de uma relao com texto e personagem.
Apesar de, neste caso, o ator se referir a questes relacionadas personagem,
o que ele ia percebendo/vivenciando/experienciando ao longo do processo, lhe
fornecia elementos reflexivos a serem desenvolvidos em seu trabalho como
ator-pesquisador para alm de situaes especficas a este texto e personagem.
As reflexes suscitadas ao longo deste processo se configuram como instncias
potentes, catalizadoras de subsdios s prximas etapas da investigao. Esta
perspectiva, se refere a um modus particular que alguns artistas podem
ter para conduzir e elaborar as maneiras pelas quais compreendem, se
questionam, refletem e discutem sobre assuntos especficos de/em sua rea do
conhecimento.
Na composio da
partitura corporal-vocal, Vargas (2018) optou por trabalhar a passagem da
localizao fsica de um arqutipo vocal para outro de maneira contnua. Esta
opo foi adotada para que a criao no se transformasse apenas em uma
demonstrao tcnica somente passvel de compreenso por aqueles que conhecem
esse processo de trabalho. Muito embora estes procedimentos tenham acontecido
durante um perodo emprico de investigao de um ator, por meio de um tipo de
processo criativo, com objetivos e direcionamentos relacionados ao que motivou
tal pesquisa, o que est exposto na frase anterior vem ao encontro de ressaltar
que estes procedimentos tambm podem ser efetuados pensando em matrizes para
tambm serem utilizadas quando de um evento teatral per se. Nesse sentido, as partituras e
subpartituras foram encadeadas simultaneamente, sem impedir o fluxo e
continuidade do desenvolvimento das aes. Conforme dito acima, esta foi uma
escolha particular, o que no impede a outros atores de organizarem suas
partituras e subpartituras de maneiras distintas das como foram efetuadas no
trabalho de Vargas (2018). Logo abaixo, alm de serem descritos momentos deste
processo criativo, tambm sero
expostas algumas percepes e reflexes que foram surgindo ao longo do trabalho
de campo, com o intuito de trazer ao texto deste artigo a ilustrao alargada
sobre como um artista que desenvolveu um trabalho de prtica como investigao,
conduziu seus catalizadores de reflexes que viriam a seguir em sua pesquisa.
Entretanto, gostaria de ressaltar que as prximas partes deste texto sero
escritas em primeira pessoa, pois se tratam de descries particulares,
realizadas durante o experimento potico-teatral, conforme dito anteriormente.
Esta abordagem feita com o intuito de compartilhar detalhes deste
procedimento. Mas, afinal, como foi dividido o experimento potico-teatral e
como foi vivenciado pelo ator-pesquisador que o desenvolveu?
A subida ao penedo[7]
Esse momento se referia
subida de Prometeu ao penedo, j condenado, sendo carregado pelos seus
algozes. Para essa sequncia, foi criado um movimento de subida, em que
Prometeu caminha sentindo o peso das correntes e as dores pelas torturas que
est passando. O som que conduz esse movimento grave, em lamentao, fazendo
referncia aos lamentos das tragdias gregas. Esta sonoridade foi trabalhada
tendo como origem as emoes oriundas da regio prxima da base infra
umbilical, relacionada ao Arqutipo da Me. A opo por esse arqutipo
vocal, associado a esse ressonador corporal, para esse momento da personagem,
se deu em funo de ele estar relacionado a sentimentos de dor, melancolia e
sofrimento.
Durante os trabalhos
dirios, as percepes sinestsicas[8] forneceram importantes subsdios para a identificao e
fixao de matrizes corporais e vocais que podem ser dinamizadas em outros
momentos. Considero que essas
percepes so muito importantes para despertar a compreenso do ator sobre
como operacionalizar seus momentos criativos, ao se entregar a esse tipo de
proposta metodolgica. Como exemplo disso, descrevo aqui algumas percepes
surgidas durante o processo:
Ao trabalhar o Arqutipo
da Me, sentia uma ressonncia grave, muito forte, na altura da crista
ilaca, me trazendo uma sensao de dor que desperta muitas emoes e o choro
de maneira que ainda no consigo control-lo. Conforme vou colocando o som
nesse ressonador, vou conseguindo criar o clima da caminhada do Prometeu
(VARGAS, 2018, p. 105).
Ao longo do processo de
vivenciamento das experincias perpassadas pelo som em intrnseca relao com a
minha corporeidade, ao trabalhar esses aspectos com este ressonador vocal,
associado ao Arqutipo da Me, percebi que as sensaes do som nessa
regio de ressonncia permitiam que as emoes fossem expandidas em larga
escala. Esta percepo me pareceu ser uma boa alternativa a se trabalhar com o
objetivo de abordar situaes enfrentadas pelas personagens das tragdias
gregas. Alm disso, essa ressonncia de som grave trazia referncias sobre como
acredito que poderia ser um tipo de aplicao dessa fala dentro dos aspectos
clssicos de melopeia[9], presentes em muitos textos de teatro grego da Idade
Antiga.
Preso s correntes[10]
Essa sequncia bem
rpida e se d no momento em que Prometeu termina de fazer o movimento em
espiral de subida ao penedo e tem seus braos presos s correntes, sentindo o
cansao de tal atividade e o peso de sua sentena. Ento, Prometeu cai e fica
de ccoras durante a prxima
fala. Nesse momento, utilizei o Arqutipo do Guerreiro, pois sentia que
era um breve instante de luta, tentativa de mostrar sua fora e resistncia,
mesmo que rapidamente. Entretanto, neste fragmento textual, Prometeu
aceita sua condio e sua pena, deixando-se prender. Esse momento realizado
em uma frao de segundos. Mas, a fora que impulsiona e conduz todos esses
movimentos, surge a partir do impulso sonoro suscitado pelo acionamento do Arqutipo
do Guerreiro. Este tipo de impulso sonoro, associado ao Arqutipo do
Guerreiro, parte de contraes e relaxamentos dinmicos e intensos das
musculaturas envolvidas nos movimentos de apoio diafragmtico, trazendo um tipo
de vigor ao momento que se est experienciando.
Lamento[11]
Nesta parte, inicia a
fala de Prometeu propriamente dita. Enquanto ele est agachado, permanece
lamentando sua situao e o que lhe ocorreu. Inicialmente, foi utilizado o Arqutipo
da Me, com a mesma localizao do ressonador corporal utilizada durante A
subida ao penedo. Porm, quando Prometeu comea a questionar os deuses
sobre o seu aprisionamento, o foco de ressonncia foi deslocado para a regio
diafragmtica, associada ao Arqutipo do Guerreiro, pois, durante o
processo criativo, considerei
essa situao como um momento de revolta, resistncia e demonstrao de fora
da personagem que merecia ser trabalhado desta maneira. O deslocamento da
voz por estas localizaes corporais, associadas aos arqutipos, foi assim
registrado:
Logo que
comecei a trabalhar essa partitura do Prometeu, fiquei com receio de trabalhar
em cima de apenas um arqutipo, pois acredito que ele sinta muitas coisas
enquanto conta a sua histria, passando por mgoa, dor, sofrimento, raiva,
revolta, amor e solido por exemplo. Talvez, se eu transitar pelos arqutipos
consiga imprimir outros coloridos minha voz, desbravando emoes que esto
localizadas em algumas partes do meu corpo (VARGAS, 2018, p. 106).
Suscitado por essas
sensaes, com o intuito de verificar como faria para Prometeu sentir a dor
localizada na regio do fgado,
desloquei o foco de ressonncia para o ressonador corporal associado ao Arqutipo
da Criana. Este direcionamento foi assumido, pois, nesse momento da fala,
ao longo dos vivenciamentos do processo criativo, considerei que a personagem se sentia fragilizada,
enfraquecida, impotente e a voz de cabea, sendo conscientemente falhada, lhe
aumentava a sensao de sofrimento e solido. Enquanto a sequncia de
movimentos ia descendo e voltando, ao agachar, considerei que Prometeu ia
sentindo o peso das correntes, causando-lhe dor e o fazendo retornar ao lamento
anterior. Sobre essa situao,
cito o seguinte:
No momento em que o Prometeu sente a dor
da chaga no fgado, comecei a buscar essa dor fsica e me surgiu um som agudo
de grito. Desloquei a voz para o Arqutipo da Criana, pois nesse local
se pode trabalhar com os sons agudos de maneira mais fcil. Ao trabalh-los em staccato,
encontrei a sensao de sofrimento que a personagem sente nesse momento e,
quando fao a voz deslizar pelo meu corpo, por cada um dos arqutipos, at
voltar para o da Me, consigo perceber todo o sofrimento dele (VARGAS,
2018, p. 106).
Ao longo dessa
sequncia, trabalhei a voz para ir se deslocando entre os ressonadores at
atingir o foco de ressonncia na regio do Arqutipo da Me, pois
considero que a personagem volte a ficar melanclica e triste, lamentando sua
situao. Dessa maneira, ao longo do processo criativo, este foi um meio
experienciado que propiciou tais sensaes de maneira mais efetiva. Antes de
partir para o prximo momento, Prometeu comea a se levantar. Para este
nterim, a motivao que o conduzia foi trabalhada de maneira a estar associada
regio do Arqutipo do Amante. Entretanto, em funo disso, aqui, os
sentimentos trabalhados esto relacionados
a aspectos do amor, da entrega, da responsabilidade, da compaixo, que geram
sofrimentos. Sobre essa transio, saliento as seguintes descries feitas ao
longo do processo:
Quando Prometeu
vai falar sobre o que fez e do seu castigo, sinto que deve ser algo que ele
aceite, que no questione, pois ama tanto aos mortais, quanto aos deuses. Mas,
aqui, vou explorar o trabalho do Arqutipo do Amante, encarando as
emoes associadas a essa regio, pelo lado que causam dor e sofrimento, pois,
durante os treinamentos, costumo trabalhar esse arqutipo apenas pela sua outra
faceta (VARGAS, 2018, p. 106).
No ltimo grito de
lamento da personagem, antes de falar sobre Zeus, tambm houve a opo por se
trabalhar o Arqutipo do Guerreiro, porm sob outra perspectiva. Agora,
ao invs da fora, foi trabalhado o impulso vindo dessa regio, mas como uma
impotncia da personagem frente situao. Durante os treinamentos dirios, envolvidos no processo
criativo, considerei que esse impulso me ajudava a deslocar a voz para a regio
do Arqutipo do Amante para o momento em que Prometeu fala sobre o seu
amor aos homens, conforme foi exposto em:
Procuro
maneiras de transitar com a voz pelos diversos ressonadores. Como percebo que o
Prometeu passa por muitas emoes durante essa cena, quero criar possibilidades
para trabalhar os arqutipos de diversas formas. Quando ele fala no amor que
ele tem pelos mortais, estou em busca das emoes do Arqutipo do Amante,
relacionadas ao Rei, Imperador e o seu amor incondicional queles que acreditam
nele (VARGAS, 2018, p. 107).
A passagem para o
prximo momento comeava aps Prometeu falar sobre a situao de estar preso em
correntes no alto do penedo. Com o intuito de vivenciar essas sensaes da
passagem, os movimentos e a voz foram trabalhados de maneira a mostrar e
vivenciar a sua dor fsica e emocional. Para tanto, foi realizada a mesma
transio entre os arqutipos feita antes, com o impulso surgindo da regio
diafragmtica, associada ao Arqutipo do Guerreiro, chegando regio da
cabea, associada ao Arqutipo da Criana, at voltar regio infra
umbilical associada ao Arqutipo da Me. Desse modo, foi trabalhada a
passagem de vrias emoes da personagem, intrinsecamente associadas s
movimentaes corporais e vocais experienciadas neste momento da partitura. Ao
longo do processo, foi possvel observar que este procedimento me auxiliou a
preparar a personagem ao prximo momento da fala.
Revolta contra Zeus[12]
Esse um momento
bastante breve, quando Prometeu percebe alguma movimentao prxima ao penedo.
A personagem aproveita a possibilidade de estar sendo ouvido por algum para,
ento, expressar a sua revolta contra Zeus. Aqui, foram trabalhados o Arqutipo
do Guerreiro e as emoes associadas a essa regio. Como Prometeu est
preso em correntes, com o intuito de vivenciar esta sensao, os movimentos
foram trabalhados por meio de impulsos leves, vindos da regio diafragmtica.
As dificuldades sentidas em trabalhar com o Arqutipo do Guerreiro foram
descritas aps um dos dias de treinamento da seguinte maneira:
Tenho muita
dificuldade em trabalhar o Arqutipo do Guerreiro, pois o excesso de
impulso diafragmtico me faz perder o controle da voz, podendo faz-la ficar
muito aguda e no acho que trabalhar essa energia de fora, revolta e coragem
com sons muito agudos tenham a ver com o Prometeu. S consigo segurar o tom da
voz, pois puxo a energia do Guerreiro para a base e os movimentos no me
deixam levar pelo tom da voz (VARGAS, 2018, p. 107).
Apesar de ser um momento
rpido, a sequncia vocal e corporal da Revolta contra Zeus, me permitiu trabalhar em cima de uma
dificuldade pessoal em lidar com o fluxo de energia associado ao Arqutipo
do Guerreiro. Alm disso, tambm possibilitava dar nfase a um pequeno
momento da fala da personagem em que ela protesta contra a sua sentena.
Medo do trmino da noite[13]
Nesta parte da
partitura, aps vir da transio pelo Arqutipo do Guerreiro,
rapidamente, deslocava o centro energtico para o ressonador associado ao Arqutipo
do Amante, pois, ao longo dos treinamentos dirios que envolveram o
processo criativo, considerei que esta me foi a via mais efetiva para trabalhar
o momento em que Prometeu fala de seu amor aos mortais. Quando a personagem
escuta algum som se aproximando, considero que este seja o seu ltimo instante
de medo neste trecho do texto, pois Prometeu sabe que o corvo se aproxima para
comer o seu fgado. Essa sequncia de movimentos foi conduzida pela voz trabalhada
na regio associada ao Arqutipo da Criana. Como esse arqutipo foi
trabalhado em menor proporo que os outros durante a construo das partituras
e subpartituras desse fragmento de texto, nesse rpido momento em que a
personagem teme a chegada do animal que lhe tortura diariamente, aproveitei para encaixar esse
arqutipo durante essa transio. Essa escolha foi feita com o intuito de que,
apesar ser um deus e de compreender a sua pena, considero que, neste momento,
Prometeu pudesse mostrar sua fragilidade e o quanto sofria tambm pelas dores
fsicas causadas pelo corvo. Nesse sentido, ao longo do processo, o ressonador
associado ao Arqutipo da Criana parecia ser o mais adequado para
potencializar estas sensaes neste momento da fala.
Chegada do corvo[14]
Esse era o ltimo
momento da partitura corporal-vocal criada para o experimento potico-teatral.
Na verdade, esse momento se referia a uma ltima experimentao feita para o
trabalho dos ressonadores associados a arqutipos na voz com essa personagem.
Porm, neste fragmento da fala, resolvi
pontuar o final da partitura. Quando o corvo chega para comer o fgado
do Prometeu, ao invs de buscar um som relacionado a algum dos ressonadores associados aos arqutipos trabalhados, optei por criar uma espcie de fermata
para o silncio. Entretanto, apesar de no estar emitindo som, a
conduo do movimento se deu pelo acionamento energtico a partir do Arqutipo
da Criana, associado sensao de medo, temor e dor. Essa opo surgiu
aps alguns improvisos durante os treinamentos, conforme descrito abaixo:
Hoje, eu queria definir o final da
partitura, mas no sabia que som deixar para o momento em que o corvo come o
fgado do Prometeu pela ltima vez nessa fala. Deixar um grito sair, poderia
ser uma opo. Tentei faz-lo vindo da regio do corpo associada a cada um dos
arqutipos vocais, mas eles no coincidiam com o movimento que o meu corpo
estava fazendo. Ento, ao tentar experimentar o Arqutipo da Criana
para esse final, em uma das repeties, no consegui emitir som, s uma
vibrao do ar, senti como se fosse s um fluxo energtico e, da, surgiu o
final da minha sequncia, com todas as emoes que o silncio precisava gritar
nesse instante (VARGAS, 2018, p. 108).
A experincia do final
dessa partitura permitiu explorar outra possibilidade de acesso aos
arqutipos associados aos ressonadores vocais: a no emisso sonora. Contudo, percebi que esse indcio vinha
apenas a ressaltar que existem ainda muitos caminhos para se descobrir no
trabalho por meio de arqutipos na voz, inclusive, para a utilizao de
exerccios que permitam a explorao de no-sons, de sons no-oralizados, de um
habitat de sentidos que se libertam dos sons, mas que podem se fazer
sentir por quem esteja convivenciando esse momento. A percepo de que o ato de
no emitir um som tambm poderia ser acionado nesses ressonadores, associando
essa informao aos arqutipos ali trabalhados, tambm me propiciou evidenciar
a possibilidade de expressar textos no-oralizados, mas vivos em latncia energtica
de sensaes, imagens, vontades, emoes, sinestesias, subtextos. Esse fato
tambm chamou a ateno para a existncia de uma vida pulsante em um entre-espao
no expresso por sons, o que me instigou mais a investigar sobre como seriam
essas potencialidades presentes em no-sons, nos silncios. Ainda h que se
adentrar aos entre-espaos por onde as relaes de/entre corporeidades se
expandem para alm do som, mas, ainda assim, potentes em vibraes em
corporeidade. Investigaes estas que ficaram para trabalhos futuros, j que
no so o foco dos procedimentos descritos no texto deste artigo. Entretanto,
no que tange reflexo da tese desenvolvida por Vargas (2018), h um denso
aprofundamento sobre aspectos relacionados ao subtexto, inconsciente e o
silncio como instncias vivas relacionadas a aspectos intrnsecos
corporeidade. Porm, estes sero assuntos para serem ampliados em artigos
futuros e que foram densamente desenvolvidos na tese de doutorado de Vargas
(2018).
Consideraes finais
A breve descrio feita
neste artigo sobre o experimento potico-teatral efetuado por Vargas (2018)
ilustra uma perspectiva possvel para um tipo de etapa de trabalho de campo na
pesquisa acadmico-artstica em artes performativas. Esta perspectiva elucida a
possibilidade de profissionais destes campos do conhecimento desenvolverem
processos criativos como fontes de matrizes que lhes fornecero subsdios para
avanarem s etapas seguintes de suas pesquisas. Desse modo, sem se ater
necessariamente s metodologias tradicionais de pesquisa acadmica em artes
performativas, os artistas destas reas podem legitimar e constituir meios outros
efetivao de suas investigaes, partindo de seu prprio contexto de
trabalho em arte, como artistas, em seus processos de criao.
Este tipo de prtica
como investigao em artes requer um robusto arcabouo terico-prtico, com o
intuito de estabelecer parmetros, criar pontes, borrar possibilidades e abrir
caminhos coerentes proposio metodolgica de maneira diferenciada das
tradicionalmente empregadas no meio acadmico. Conforme dito anteriormente,
este artigo no visa trazer tona uma inovao metodolgica no campo das artes
performativas, tampouco deslegitimar outras metodologias de pesquisa. H uma
grande diversidade de possibilidades metodolgicas para a realizao de
pesquisas nesta especificidade de rea. O trabalho desenvolvido por Vargas
(2018) vislumbra uma possibilidade outra para este campo do
conhecimento, como tambm, ilustra uma perspectiva sobre como um ator mergulha
em seu processo criativo, com o intuito de buscar disparadores reflexivos a
elementos que extrapolam a etapa emprica em si.
Alm disso, a
reafirmao de pesquisas acadmico-artsticas que se desenvolvam a partir de
abordagens metodolgicas que se distinguem de alguma maneira das tradicionais,
assim como tambm de sua publicao e divulgao, corroboram para o
fortalecimento e estabelecimento de possibilidades outras s pesquisas
no contexto contemporneo. Mas, para que isso seja possvel, avaliadores e
consultores de peridicos especficos de rea, assim como acadmicos que
orientam e conduzem pesquisas nas universidades e centros de
investigao/criao artstica, necessitam estar abertos e disponveis a estas
possibilidades outras, distintas das tradicionalmente realizadas e
publicadas. Desse modo, alm de se estar consolidando outras
perspectivas e caractersticas destas especificidades de reas do conhecimento,
se est contribuindo para ressaltar suas singularidades, sem que isso
signifique minimizar critrios de qualidade cientficos, acadmicos e
artsticos.
No que tange aos
aspectos relacionados corporeidade vocal, neste artigo fica evidenciada uma
proposta singular em se experienciar possibilidades vocais por meio de uma
perspectiva esttica que se prope a desenvolver prticas corporais e vocais de
maneira indissociada. Alm disso, neste texto, a partir do trabalho de Vargas
(2018), tambm fica evidenciada uma maneira particular para artistas dessa rea
descreverem seus percursos de pesquisa, metodologias, pedagogias e reflexes ao
longo dos processos criativos. Com isso, tambm considero possvel vislumbrar
esta abordagem como um tipo de proposta diferenciada ao trabalho criativo dos
profissionais das artes performativas.
Trabalhar poticas
relacionadas corporeidade vocal suscita que as(os) artistas se entreguem a
experienciar e vivenciar situaes criativas para alm das tcnicas previamente
adquiridas e/ou desenvolvidas. Desenvolver investigaes na perspectiva da
corporeidade vocal propicia englobar as reflexes de maneira a no desvincular
as pedagogias, processos de significao e matrizes reflexivas oriundas das
percepes e vivncias integradas entre corpo e voz. Esta abordagem requer uma
genuna e sincera disponibilidade aos processos inerentes ao ato criativo.
Produzir conhecimento a partir dos contextos dos processos criativos de
artistas, contribui para o espraiamento, progresso, desenvolvimento e
divulgao de peculiaridades caractersticas a este ofcio. Alm disso, este
tipo de abordagem tambm expe maneiras diferenciadas de se operacionalizar o
conhecimento e suas reverberaes possveis no campo da pesquisa
acadmico-artstica.
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[Recebido em 17 out 2020 – Aceito em 17 set
2020]
O Saci centenrio: uma anlise mitocrtica de Saci Perer – resultado de
um inqurito
The 100-year-old Saci: a mythocrytic analyses
on Saci Perer – result of an inquiry
Andriolli Costa [15]
https://orcid.org/0000-0002-8589-27
Resumo: Este trabalho revisita o livro O Saci Perer – Resultado de um
Inqurito, organizado por Monteiro Lobato em 1918. O Inqurito conta
com mais de 70 depoimentos que do a ver verses plurais do mais brasileiro dos
mitos: o saci – duende negro, com herana europeia e indgena. Partindo
do levantamento da Narrativa Cannica e do reconhecimento do lastro simblico
do Nome do mito, o trabalho d incio a uma anlise mitocrtica fundamentada na
vertente arquetipolgica da Teoria Geral do Imaginrio, buscando evidenciar as
constelaes simblicas que emergem da obra. Tensionando leituras de que o
texto evocaria imagens racistas e demonizadas, a partir da anlise encontramos agrupamentos
referentes aos mitologemas do Indgena, do Pssaro, do Escravo, do
Transgressor, do Demnio e do Heri, que evidenciam uma complexidade inata no
mito enquanto aquele que hesita entre aliado e castigador, entre aparentado do
diabo e eleito de Deus, entre desvio mantenedor do status quo e
inspirao para a liberdade.
Palavras-chave: Saci; Imaginrio; Folclore; Mito; Monteiro Lobato.
Abstract: This
article revisits the book O Saci Perer – resulto of an inquiry,
organized by Monteiro Lobato in 1918. The Inquiry counts on more than 70
testimonials that gives us plural versions of the most Brazilian of the myths;
the saci - a black and legless imp with a red cap inherited from the European
gnomes and with indigenous origin. Starting with the identification of the
Canonical Narrative and the recognition of the symbolic coverage of the Name of
the myth, this works develops a mythocritic analysis based on the
archetypological aspect of the General Theory of the Imaginary, seeking to
highlight the symbolic constellations that emerge from the ouvre. Tensioning
readings that the text would evoke racist and demonized images, through the
analysis weve found the following mythologems: the Indigenous, the Bird, the
Slave, the Transgressor, the Demon and the Hero, which show an innate
complexity in the myth as that who hesitates between ally and punisher, between
the devil and the elect of God, between the deviation used to maintain the
status quo and the inspiration for freedom.
Keywords:
Saci; Imaginary; Folklore;
Myth; Monteiro; Lobato.
Introduo
O ano era 1917 quando Monteiro Lobato usou das
pginas que dispunha no Estadinho, suplemento do jornal O Estado de
S. Paulo, para fazer uma convocatria. O escritor j ganhara notoriedade
anos antes com a publicao de artigos que consolidavam a imagem do caipira
enquanto um parasita da terra e eptome do atraso, seja devido a prticas de
cultivo antiquadas (como a coivara), pela suposta preguia ou pelo modo de vida
pacato. Afeito a polmicas e sempre de dedo em riste, entretanto, Lobato
retornava desta vez temtica interiorana para encontrar nela no mais o bode
expiatrio da conjuntura brasileira, mas sua panaceia. Buscava, para tanto,
realizar um inqurito. Sobre o futuro presidente da Repblica? No. Sobre o
saci (LOBATO, 2008, p. 36). Ambos, a obra e o mito que a inspirou, sero
objeto deste estudo.
Muitos compreendem a campanha lobatiana, que
trouxe o duende perneta como estandarte, mero reflexo de seus arroubos
nacionalistas. E h motivos para isso. No mais puro deboche, o autor dedica o Inqurito,
por um lado, saudosa Tia Esmria e a todas as pretas velhas contadoras de
histrias; por outro, ao bairro do Trianon, regio que elegeu como substrato da
goma europeia na capital paulista. No mesmo perodo, o autor j se demonstrava
desgostoso com o estrangeirismo que invadia o Brasil nos modos, no vocabulrio,
e especialmente na arte. Revolta-se especialmente com esttuas de duendes
barbaudos, encapotados para o frio sob o sol tupiniquim – reflexo do que
julgava ser uma covarde esttica nacional. Para Lobato, deveramos assumir
nossos motivos, com imagens no de anes nibelungos, mas de curupiras,
papagaios, macacos ou, claro, de sacis (LOBATO, 2008, p. 29).
Seria uma incorreo, entretanto, limitar o
lanamento do Inqurito busca pela valorizao do nacional –
especialmente tendo em vista a pesada crtica lobatiana ao caipira e sua
admirao modernidade, indstria e aos Estados Unidos. O que a explica,
portanto? Uma resposta possvel pode ser encontrada nas razes simblicas do
imaginrio. de se lembrar que estvamos no pice da Grande Guerra, a primeira
at ento. As promessas de progresso permanente da tecnologia, que nos levaria
ao apogeu da evoluo humana, se concretizavam em forma de carnificina. O mito
de Prometeu, que trazia as promessas do fogo e da Tcnica para o homem, se
convertia na desumanidade fustica daquele que perdeu sua alma na busca pelo
sucesso (DURAND, 1998, p. 256).
Essa relao de descrdito momentneo com o
progresso maquinstico est manifesta na abertura do Inqurito, j
publicado na forma de livro. Nela, percebemos que, brutalidade cometida pelas
naes ditas civilizadas, Lobato buscou um contraponto no saci e em tudo o que
derivava a partir dele (o interior, a natureza, a pilhria e, claro, a
liberdade).
Quem se afoutasse a abrir uma folha
sorvia sangue dos telegramas seo livre. Um engulho. Foi quando surgiu o
Saci, e veio com suas diabruras aliviar-nos do pesadelo. Por vrias semanas
alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa ateno para
quadro mais ameno que o trucidar dos povos. Bendito sejas! Ests perdoado de
muitas travessuras por haveres interrompido, por um momento, em nossa
imaginao, a hedionda sesso permanente de horror, aberta pelo sinistro 2 de agosto
de 1914, de execrabilssima memria (LOBATO, 2008, p. 27).
No total, foram mais de 70 depoimentos recebidos
para o projeto que se tornaria publicao. Certas cartas traziam um incontido
deboche, outras poucas uma crena velada. A maioria recordava com nostalgia as
lembranas da meninice encantada pelas histrias do mito. O mtodo do Inqurito
coletivo, diferente do ensaio individual, favoreceu a pluralidade de imagens.
Por certo que h um recorte de classe imediato entre os informantes – no
mnimo na questo da alfabetizao, j que os relatos foram enviados por
escrito – s que ainda assim abre-se espao para imagens que independem
da viso de mundo de um nico autor. Assim, por certo que o racismo e a eugenia
manifestam abertamente nas correspondncias de Lobato e de modo latente na sua
fico (HABIB, 2003) no devem ser ignorados. No entanto, a fora simblica que
d forma ao saci antecede e muito as elocubraes do autor sobre raa.
Neste trabalho, filiado Teoria Geral do
Imaginrio, revisitamos Saci Perer
– Resultado de um Inqurito pouco aps o centenrio de sua publicao
para buscar na obra cultural as respostas que apenas a mitocrtica pode
oferecer: quais imagens simblicas constelam a partir do saci no Inqurito?
Como elas so dinamizadas por uma sociedade marcadamente racista e que saa h
apenas trs dcadas da abolio da escravatura? E, acima de tudo, possvel a
partir da obra compreender o porqu, mesmo um sculo depois, o saci permanece
sendo um dos mais mitos mais famosos do pas?
A mitodologia durandiana, como ele mesmo a
batiza, se centra no estudo do mito enquanto imaginrio manifesto e busca
analisar as redundncias da imagem em uma obra cultural, que se repete para
melhor impregnar e persuadir (DURAND, 1998). Compreendendo o mito como a
narrativa, o mitologema como seu esqueleto e os mitemas como as menores
partes narrativas que constituem o mito (DURAND, 2012), o percurso consiste em
identificar e organizar os mitologemas e mitemas para a partir deles orientar a
anlise. Assim, perseguiremos a presa mtica no texto do Inqurito para
tirar suas consequncias em uma anlise que, embora no ignore as controvrsias
envolvendo a biografia do autor, a tensione para encontrar no prprio texto
seus sentidos epifnicos.
O Inqurito
J consolidado na imprensa paulista, com quem
colaborava frequentemente com artigos provocantes que movimentavam a audincia,
Lobato passou a insistir na temtica do saci em um artigo publicado no dia 24
de janeiro de 1917. O gancho para o assunto foi trazido por um companheiro de
redao: Manuel Lopes de Oliveira Filho, o Manequinho Lopes. O bilogo, hoje
considerado pai do Parque Ibirapuera, era tambm articulista do jornal e,
segundo Lobato, um grande investigador da lngua Tupi e das culturas populares.
Lopes buscou plasmar a figura do duende brasileiro em barro do Po[16],
oferecendo o motivo perfeito para o texto lobatiano: a falta de representaes
artsticas dos mitos brasileiros.
Figura 1 – Saci
de Manequinho Lopes
Fonte:
ESTADO, 1917, p. 4.
Se o medo e a escurido, reflete Lobato, foram capazes
de gerar tanto os deuses gregos imortalizados pelos aedos quanto a corte
das fadas em sonhos preservados pela dramaturgia de Shakespeare; no Brasil, que
em nada lhes devia no quesito da fantstica popular, faltava ainda o
envolvimento dos artistas para abraar de vez essa cultura. No apenas por
desinteresse, mas por falta de acesso. Afinal, justifica o autor, se era comum
encontrar tomos dos mais variados dedicados mitologia celta nas bibliotecas pblicas,
o mesmo no pode ser dito dos livros sobre nosso folclore que raramente
conspurcavam o nobre ambiente livresco. Para manter a honestidade do registro,
Lobato recomendava ir ao povo. Afundar na roa para uma consulta ao grande
livro no escrito da crendice popular (LOBATO, 2008, p. 32).
Talvez aos olhos de hoje a assertiva de Lobato possa
parecer banal. No entanto, preciso lembrar que na poca, especialmente nos
peridicos dominados por uma elite intelectual altamente excludente, tudo
aquilo ligado ao folclrico era abordado pela perspectiva do extico, pouco
mais que um folhetim de curiosidades. Basta ver, por exemplo, aquele que
considerado um dos primeiros artigos de jornal no qual o mito do Saci Perer
mencionado. Publicado em 1859 no Correio Paulistano, o texto j se
coloca na defensiva, justificando-se o tempo todo. O pedido de desculpas ao
mesmo tempo em que apascenta o pblico, menospreza de incio todo o contedo
das narrativas que investiga
Respeitvel
leitor, venervel crtico de testa enrugada e olhar inspirado, no vos
revoltais contra as histrias populares que vou comear a escrever. So crenas
errneas e muitas vezes cmicas as do povo, mas nem por isso destitudas de
interesse; recreiam a imaginao, acalmam por vezes os cuidados do esprito e
so para muitos recordao doce do passado (CORREIO PAULISTANO, 1859, p. 2).
Se o Correio j antecipava crticas, Lobato no
esperava menos polmica quando trouxe a temtica ao Estado meio sculo
depois. E se alguns leitores se mostraram ultrajados com um jornal srio
gastar tinta e papel com to grosseira superstio popular, dessas que depe
contra os nossos crditos de civilizados perante as naes estrangeiras
(LOBATO, 2008, p. 35), muitos outros se envolveram com a narrativa j
nostlgica. O interesse havia sido despertado.
Lobato (2008, p. 37) encontrou no Perer – tido
por ele como a mais original de nossas criaes populares – o
protagonista perfeito para sua campanha. Encantado resultante do imaginrio do
indgena, do negro e do europeu, defendia Lobato, o saci era a sntese da
cultura brasileira. O mito, explica ele, vem do autctone que lhe deu o nome
atual, corruptela de aa cy perereg[17]. Sofreu o influxo do africano, passando
de caboclinho a molecote. Modificou-se por injuno da psquica portuguesa. O
mestio meteu nele muita coisa de seu (LOBATO, 2008, p. 38). Estudar o saci,
desta forma, era estudar o Brasil
O inqurito se consolidou a partir de cartas dos
leitores que deveriam responder a uma trinca de perguntas orientadoras.
a) Sobre a sua
concepo pessoal do Saci; como a recebeu na sua infncia; de quem a recebeu;
que papel representou tal crendice na sua vida, etc.;
b) Qual a forma
atual da crendice na zona em que reside;
c) Que histrias
e casos interessantes, passados ou ouvidos sabe a respeito do Saci.
Nem todos se valeram deste expediente, chegando a
enviar msicas, poemas ou relatos de memria – em histrias escutadas na
infncia pela voz de mucamas, amas de leite, ex-escravos ou funcionrios da
fazenda. Outros abraaram o empreendimento e foram a campo conversar com
caboclos, boiadeiros, parentes mais velhos. Retratos de distino de classes
entre quem contava e quem ouvia, por um lado, mas por outro um resumo da
dinmica do folclore – transmitido pela oralidade, mas fixado por lastros
simblicos ainda mais poderosos mobilizados pelo imaginrio.
A participao foi considervel e gerou um livro
publicado em 1918. No total, a publicao contou com 73 depoimentos, incluindo
um assinado pelo prprio Saci e redigido por Lobato. O grosso das
correspondncias vinha de So Paulo e interior, mas tambm houve depoimentos
enviados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Outros, em seus relatos,
mencionavam tambm os estados de Gois, Mato Grosso e Paran, e um leitor, de
maneira ampla, a regio Nordeste. Uma amostragem concentrada – focada nos
leitores do jornal paulista – mas que j demonstrava a fora do mito pelo
territrio nacional.
O envolvimento do pblico no foi obra do acaso. O
saci movimenta emoes que vo muito alm da nostalgia, e remete a imagens
ancestrais que nos ligam nacionalmente enquanto brasileiros e, em sentido
amplo, enquanto gnero humano. isso que percebemos em nossa Mitocrtica.
Primeiros passos
Nos estudos do mito importante ter como ponto de
partida dois elementos distintos: o reconhecimento da narrativa cannica e a identificao do nome verdadeiro que o mito assume. Nomear conhecer. So esses
elementos que sero tensionados pela mitocrtica – por meio da
identificao dos mitologemas e organizao de mitemas redundantes – para
que enfim o mito ento se revele.
A narrativa cannica, como sugere Eunice Gomes, no
um resumo de textos sobre o mito, mas aquilo que o sistematiza (GOMES, 2011).
Seria algo como um modelo padro, um tipo ideal weberiano, que forma sua
representao hegemnica. Esta imagem construda tendo por base no apenas o
senso comum, mas tambm a influncia miditica, em um processo de
retroalimentao no qual o texto cultural se torna mais coerente, menos
arracional, e de mais fcil compartilhamento.
No caso do mito do saci, o cnone fala de um moleque
negrinho, de uma perna s, que pratica todo o tipo de diabruras, mas sem nunca
ser verdadeiramente mal. O saci carrega por vezes um cachimbo, veste carapua
vermelha – a fonte dos seus poderes mgicos – e se desloca por meio
de um redemoinho. Interessante notar que falar de saci , imediatamente, falar
em modos de sua captura. Mesmo hoje a grande atividade escolar de celebrao do
folclore costuma ser uma caa ao saci.
O Stio do Picapau Amarelo, srie infantil
escrita por Lobato entre 1920 e 1947 – e que contou com inmeras
adaptaes audiovisuais – institucionalizou um desses mtodos: o uso da
peneira para cont-lo e o roubo da carapua para desempoder-lo. Aquele que
toma a carapua do saci ganha poder sobre ele, e, tendo-o preso, pode
chantage-lo para que realize os desejos de seu captor. A fora dele est na
carapua, como a fora de Sanso estava nos cabelos. Quem consegue tomar e
esconder a carapua de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno
escravo (LOBATO, 2005, p. 18, grifo nosso).
Com o tempo, a narrativa cannica vai sofrendo tamanho
influxo cultural que pode paulatinamente se afastar dos mitologemas originais,
perdendo mitemas em um processo de esvaziamento e desbastamento. No nvel
mximo da estereotipia, temos apenas a casca do mito, um nome que nada mais
diz, uma imagtica sem lastro de sentido. Num momento anterior a este, quando
apenas um mitema valorado enquanto os demais so suprimidos, diz-se que o
mito sofreu heresia – termo usado em seu sentido etimolgico, como
a escolha de uma nica viso (DURAND, 2010, p. 144).
A fora da mdia na construo desta narrativa
cannica desbastada se mostra quando o prprio lastro da adaptao original vai
se perdendo nos vrios nveis de massificao da mensagem. Monteiro Lobato
evidentemente se inspirou no material colhido em seu Inqurito para
compor sua verso literria do Saci no Picapau Amarelo, publicado trs
anos depois. Ainda assim, precisou fazer escolhas. Na obra infantil, o saci tem
costume de chupar sangue dos cavalos. Traz as mos furadas como duendes
portugueses e carrega ainda muito de demonaco, marcadamente pelo temor a
objetos religiosos e ao cheiro de enxofre. Nas subsequentes adaptaes
televisivas, o duende brasileiro perdeu muito de sua referncia religiosa,
deixou o cachimbo de lado, foi destitudo do furo nas mos e tornou-se mais
moleque do que diabrete.
Por vezes, um mito est mobilizando mitemas to
distintos – ou ordenados em constelaes to diferentes – que pode
carregar falsamente um nome, enquanto escamoteia outro (DURAND, 1998, p. 247). No
Inqurito encontramos uma srie de variaes alm do tradicional Perer,
atribudas a onomatopeias do canto de pssaros: Saci Ceper, Saci Cerer, Saci
Trique, Saci Siriri, Saci Serumperer, Saci Perereca, Saci Sater, Saci Mofera,
Saci Saper, Saci Sader, Saci Patar, Saci Sia-Teresa.
Lobato (2008), todavia, aceita mais a sugesto de
Manequinho Lopes: viria do Tupi aa cy
perereg, olho mau saltitante, mas salienta que a etimologia no ficou
comprovada. O nome, no caso, indicaria que o duende possui olhos doentes e,
portanto, sempre vermelhos. Curioso perceber que a viso, sempre ligada
percepo e a capacidade de discernir falha nesta interpretao do saci,
fazendo com que as fronteiras entre certo e errado no fossem facilmente
distinguveis para ele.
A miopia, por outro lado, tambm prejudica a agncia.
Algo que no percebemos na etimologia proposta por Teodoro Sampaio. Negrinho
irrequieto e malfico, tendo um dos olhos doente (a-y) e outro muito vivo e
bulioso (a-perer) (SAMPAIO, 1901, p. 311.) Diferente do Perer de Lopes, o
Saperer carregaria em si a dualidade do olho bom e do mau. Como as lnguas
indgenas so baseadas na oralidade, no na escrita, isso quer dizer que o
texto escrito exige forma fixa, enquanto o oral permite que os vrios
entendimentos coexistam ao mesmo tempo e na mesma histria.
H ainda outra sugesto de origem autctone: derivao
do mito Guarani do Yasy Yater que, conforme Juan Ambrosetti, significa
fragmento da lua. No a lua romntica e acalentadora, mas masculina, enganosa
e sedutora. Os primeiros registros tanto de Saci, quanto de Yasy so
contemporneos; datam da segunda metade do sculo XIX. Impossvel afirmar com
certeza qual mito antecedeu o outro, ainda que o consenso indique a origem
indgena. No entanto, apesar da proximidade dos nomes, o processo de derivao
– com supresso de mitemas e acrscimo de outros – gerou mitos
completamente distintos. Ambrosetti (1894, p. 135), ao descrever o mito do
Yater, o faz com os seguintes termos:
Um
ano loiro, bonito, que anda coberto por um sombreiro de palha e levando um
basto de ouro em sua mo. Seu ofcio o de roubar os meninos de colo, que
leva para o monte, lambe, brinca com eles e logo os abandona envoltos em trepadeiras.
[...]. No falta quem assegure que ele rouba tambm as mulheres bonitas, que
so igualmente abandonadas, e que o filho que nasce desta unio, com o tempo,
tambm ser um Yasy Yater.
No
se pode ignorar que o duende Guarani ser descrito como loiro rende, de
imediato, o qualificativo de bonito, enquanto a feiura frequentemente
atribuda ao saci. Neste relato, em especfico, no se fala da cor de sua pele;
mas frequentemente descrita como plida feito o satlite terrestre. J no
prprio Inqurito, beleza um atributo mencionado apenas uma vez quando
atribuda ao saci, enquanto que feio ou horrvel – de maneira
explcita e implcita – so recorrentes. No depoimento 59 temos um
exemplo desta feiura para o informante: cara quadrada de preto velho, nariz
chato, olhos vermelhos e embriagados, orelhas enormes, lbios grossos, boca
torta de fumante (LOBATO, 2008, p. 298). So as mobilizaes do mitologema do
Escravo – onde constelam imagens ligadas raa, captura, servido
forada quando a carapua tomada.
Em um trabalho pioneiro, Renato Queiroz comparou todos
os adjetivos e qualificadores ligados ao saci no texto fonte organizado por
Lobato com uma pesquisa de campo que desenvolveu no interior de So Paulo cerca
de 70 anos aps a publicao do Inqurito. Levanta com isso o argumento
para sua crtica introdutria: o Inqurito, enquanto campanha organizada
por um veculo de imprensa, oferece um recorte elitista dos depoimentos. Para ele,
o mito se ajustava perfeitamente aos interesses ideolgicos de setores da
classe dirigente da poca no sentido de discriminar simultaneamente negros e
caipiras. As referncias ao Saci e suas aes reproduziriam a maior parte dos
esteretipos depreciativos com os quais so definidos os negros na sociedade brasileira.
A prpria falta de perna indicaria essa deficincia como mais um
elemento de desaforo (QUEIROZ, 1987, p. 70).
Por outro lado, em seu trabalho de campo que buscava
um recorte caipira, Queiroz encontra variaes que julga considerveis nas
descries do mito. O duende continua negro, mas menos demonaco e animalesco.
E no contm qualquer referncia ao fartum peculiar aos negros e muito menos
ao odor de enxofre, que tanto incomodavam os olfatos sensveis dos informantes
de Monteiro Lobato (QUEIROZ, 1987, p. 75).
O antroplogo se questiona como foi possvel que um
diabrete preto, perneta e migrante rural acolhesse tanta simpatia em uma sociedade
to profundamente marcada pelo preconceito racial, seguidora de princpios
cristos e vida pela urbanizao (QUEIROZ, 1995, p. 142). Para ele, a resposta
foi uma paulatina domesticao do saci, que se tornou mais moleque, perdendo
traos assustadores e diablicos, num processo que exploramos ao refletir sobre
a narrativa cannica. Em seu raciocnio, entre imagens de bandido, malandro e
bufo, o saci continua refletindo o mesmo lugar destinado aos negros nas
narrativas. A dignidade e respeitabilidade permaneceriam, assim, exclusivas
aos brancos (QUEIROZ, 1995, p. 147).
Outro ponto de interesse na pesquisa de Queiroz est
na forma como sugere a relao do mito do saci com a populao negra. Esta
ligao se daria fundamentalmente por uma perspectiva utilitarista. Presume ele
que os escravos tivessem grande interesse em manipular a figura do moleque
travesso, atribuindo s suas peraltagens uma srie de ocorrncias –
pequenos furtos, quebra de utenslios etc. – pelas quais, no fosse o Saci,
acabariam sendo mais seriamente responsabilizados e punidos (QUEIROZ, 1987, p.
92).
A anlise materialista de Queiroz certamente vlida,
mas cabem ressalvas. Primeiramente, por ignorar o valor simblico das
narrativas, como se as aes concretas estivessem descoladas de uma
movimentao do mito no imaginrio – ou como se o imaginrio no tivesse
consequncias concretas. Para alm disso, esteve ausente tambm na sua leitura
o fato de que o mito no esttico, mas dinmico. Ao analisar qualquer mito
dcadas aps um primeiro estudo, a degradao ou incorporao de mitemas
inerente ao objeto. Quem se domesticou foi o saci ou a sociedade? O racismo no
desapareceu, claro, mas escamoteia seu rosto.
Vale apontar: o depoimento que abre o Inqurito
assinado por uma mulher de famlia negra e proletria, que incorpora no texto
referncias raciais que hoje percebemos racistas (LOBATO, 2008, p. 41). Em
diversos depoimentos, os depoentes entrevistam informantes de classes pobres,
vrios negros, e incorporam o relato em linguagem direta, mimetizando a
oralidade e a prosdia dos informantes. E mesmo esse grupo atribui descries
recorrentes no que diz respeito ao mito: feiura, fedor, aparncia animalesca,
etc. Um exemplo ilustrador de uma realidade da poca: o racismo no era um
pecado da elite que assinava o Estado, mas uma condio de tal maneira
imbricada no pensamento que emergia em todas as instncias do social, nas
cincias, na elite branca e no proletariado negro.
O racismo d forma ao registro, mas ser que tambm afeta
os mitologemas, as estruturas que fundamentam o mito? No seria essa uma
reduo ao mitologema do Escravo? Veremos a seguir.
A mitocrtica
Na investigao dos relatos do Inqurito, relacionamos
os seguintes mitologemas: o Indgena, o Pssaro, o Demnio,
o Heri, o Transgressor e o j abordado Escravo. A
referncia ao saci indgena, cuja origem Tupi-Guarani exploramos acima, aparece
no texto apenas nos textos introdutrios escritos por Lobato ou nos introitos
de Manequinho Lopes, ambas tentativas de racionalizar o mito. Entretanto,
encontramos alguns entrecruzamentos espaados com os mitemas evocados pelo
Yasy: em especial o do Sequestro e da Seduo. O depoimento 10
o nico que fala de um saci mais sexualizado, tentador de moas, mas sem
referncias a gravidez (LOBATO, 2008, p. 75). Por outro lado, os verbos
atrair, sumir e arrastar para o mato repetem-se ao longo do texto, sendo
aquele que sofre a ao um grupo de crianas, animais e, em uma nica meno,
as crioulas (LOBATO, 2008, p. 354). Atravessamentos entre Saci e Yasy se
mostram claramente no depoimento 53, em que o duende descrito como negro, mas
com cabelos cor de ouro e portando um pedao de pau.
No mitologema do Pssaro, encontramos a fora da
origem ornitloga. Oito depoimentos falam sobre o saci se transformar em
pssaro, numa forma frequentemente ligada tristeza e melancolia, a um castigo
ou ao envelhecimento. Ao observar os sons atribudos ao saci, curioso
perceber que, com exceo do depoimento 70, o cantar do pssaro sempre descrito
como lamentoso, transmitindo toda sua dor, enquanto o assovio do duende, em
nove das dez vezes em que mencionado, descrito como zombeteiro, estridente
e desafiador.
Enquanto
o saci ave chora de tristeza, o saci Transgressor diverte-se s gargalhadas e
assovios. Mais do que um bufo, um profanador, e concentra aes vinculadas
ao rompimento de proibies e de interditos. Seu habitat so as
encruzilhadas, ou as estradas que percorre sempre nos horrios de transio
– tabus frequentes no imaginrio popular. Saci circula s desoras, nas
horas mortas ou nas horas de ave Maria[18], alm de
perseguir quem trabalha em dias santos. O rompimento da interdio sua norma,
mas tambm sua maldio. filho de Jabiru com mulher que casa trs vezes ou
afilhado de mulher separada (depoimento 24) – reflexo das imagens que um
casamento desquitado gerava sobre a figura feminina. Gluto, devora canjica
rapidamente apenas para regurgit-la na panela dos homens (LOBATO, 2008, p.
235). Beberro incorrigvel, seca as adegas de vinho e depois as preenche
novamente com urina (LOBATO, 2008, p. 43). Uma mobilizao tpica do arqutipo
do Trickster.
Para Queiroz, o trickster assume muitas vezes o papel
do bobo da corte. Um personagem a quem institudo o direito de romper a
norma, quebrando aparncias e ultrapassando barreiras que ningum da sociedade
ousaria cruzar. Entretanto, por meio desse processo catrtico que o trickster
representa, a ordem seria na verdade reforada.
E ainda com o mrito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se
instaurar caso as normas, os cdigos e os interditos viessem a se dissolver
(QUEIROZ, 1991, p. 98). Seria este o caso do saci?
John Roberts, em um livro dedicado a compreender a
distino entre o trickster divino dos nativos africanos para o trickster
profano dos negros da dispora, indica que o trajeto antropolgico do contexto
da escravido gerou transformaes na forma como o arqutipo mobilizado
(ROBERTS, 1993). Sua chave de leitura a escassez: na frica, escassos eram os
recursos, fazendo que ali se proliferassem histrias em que a astcia era o
caminho para atingir a sobrevivncia e a bonana. J nos Estados Unidos escravagista,
a falta era de liberdade. A astcia, ento, era a arma para resistir
opresso. Nesse contexto, o trickster assumiria um outro papel arquetpico para
as populaes em restrio de liberdade: o de Heri.
Quatro vezes o saci chamado de heri pelos
depoentes, sendo um deles o Heri das capoeiras – no sentido de matas
(LOBATO, 2008, p. 274) e em outro como o Heri da sexta-feira, indicando a
relao com os perodos de transio (LOBATO, 2008, p. 348). Mas isso pouco
diz. Quando olhamos para as funes estabelecidas pelo saci nas narrativas do Inqurito,
percebemos uma relao bem mais complexa. Saci o guardio dos segredos, o
protetor da Flor de Samambaia – capaz de realizar o desejo de quem a
encontrar (LOBATO, 2008, p. 250). ainda um doador de riquezas, um ente que
auxilia no casamento e na resoluo de causas perdidas com muito mais
facilidade que os santos, ocupados demais com assuntos celestes (LOBATO, 2008,
p. 295). Saci profano saci prximo, terrestre, capaz de agir por ns.
especialmente exemplar o relato em que uma ex-mucama relembra quando era
obrigada a fazer cafun na cabea de sua ama enquanto esta rezava o tero. Acarinhada
na cabea, a mulher acabava sempre dormindo no meio do processo, e a escrava
era obrigada a aguardar que ela acordasse para continuar velando sua orao.
Certa vez, em meio a um cochilo, a ama foi visitada em sonho por um saci que
pregou nela uma solene bofetada. Desde ento, conta, a mulher nunca mais
dormiu no tero. Tempos depois, a negra assumiu: o saci foi essa mo que est
aqui! (LOBATO, 2008, p. 187). Respiros de liberdade em um contexto de
restrio, soprados pelos ventos de mudana do duende.
O imaginrio da noite faz concentrar no saci vrios
elementos que transparecem no Inqurito: orelhas de morcego; olhos como
dos bichos noturnos; dentes pontiagudos e unhas enormes como fera. Em algumas
verses, seu p termina em uma garra de corvo, recuperando o aspecto da ave de
mau agouro. Em outras, ps, chifres e barbas de bode faro eco aos demnios europeus.
Por outro lado, no apenas aos seres da noite que o saci comparado. Os
leitores descrevem o saci como sendo esperto como caxinguel, mais rpido que
veado, e com viso mais precisa que da coruja. So metforas comparativas,
claro, no descries fsicas, mas com isso percebemos traos positivos tambm
presentes no relato.
A peneira, que na narrativa cannica se tornou o
grande objeto da captura do saci, quase no mencionada no Inqurito.
Quem faz as vezes de artefato um rosrio bento – tanto de contas quanto
um improvisado, feito de capim. A peneira s captura se for de cruzeta, ou
seja, se trouxer uma cruz segurando as tramas da palha. Enfim, percebemos, o
que capaz de tirar a liberdade do saci no nada alm do componente
religioso.
Essa
averso, que mobiliza o mitologema do Demnio, traz contradies curiosas.
Vrios relatos o descrevem como filho do demnio, parente do diabo, alcoviteiro
do demnio ou como satans regenerado. No entanto, igualmente comum dizer
que o mito incapaz de qualquer maldade grande. Mais ainda, um dos depoimentos
mais conhecidas diz que o saci era um demnio que fugiu do inferno e que
recebeu do prprio Deus uma carapua capaz de torn-lo invisvel para que possa
continuar mantendo distncia das hostes infernais (LOBATO, 2008, p. 129). O
fato inquieta um depoente, que manifesta: Como dindinha conciliava sua f
catlica e suas relaes com o capetinha? (LOBATO, 2008, p. 295).
Ocorre que o caboclo sempre teve uma relao dual com
o demnio na narrativa oral. Era este o grande pai da maldade, mas era ao mesmo
tempo um inimigo trgico cuja derrota sempre estava assinalada. H todo um
ciclo de histrias do Diabo Logrado na literatura oral (CASCUDO, 2012). O
demnio, pai da mentira e senhor da astcia, acabava enganado pelo heri. Era o
povo que atestava assim sua prpria capacidade e inteligncia – desde
que, claro, conhecedor da tradio.
Consideraes finais
Ao reintegrar os mitemas que circundam o mito do saci,
percebemos que, nos termos de Gilbert Durand, a anlise feita por Renato
Queiroz leva o mito heresia. Amputa-o no da perna, mas de todos os outros
mitemas que no os ligados negritude e escravido. O saci descrito no livro
como feio, insidioso, bestial, mas tambm como inteligente, veloz, amigo,
protetor. Amaldioado e aparentado do demnio, tambm abenoado pelo
altssimo. Castiga os negros, mas tambm os vinga. Com sua magia, capaz de
invadir qualquer buraco de fechadura, imune s regras. Rompe suas correntes e
a dos que enxergam nele imagens de seus prprios anseios de libertao.
Quando a luta difcil, disfara-se de pssaro e vai
chorar suas dores nas brenhas. Mas logo volta, recupera o riso e faz ecoar bem
alto seu deboche aos poderosos. Quem pode derrot-lo somente o povo, dotado
de astcia e tradio. Ainda assim, ele sempre volta.
Elemento importante tambm a perna que falta. Nunca
descrita como deficincia, mas como peculiaridade. Verbos ligados ao saltar,
pular, correr so dos mais populares aos ligados ao saci. O nico p gera uma
relao de homologia com o redemoinho e o furaco, que tambm tocam o solo em
um nico ponto. Sua ausncia tambm seu poder.
Cascudo (2012) nos lembra que a carapua do saci
smbolo de liberdade no Ocidente desde a Roma antiga, quando o pilu vermelho
– artefato sagrado da deusa Libertas – era oferecido aos escravos
que ganhavam libertao. Tempos depois, o objeto seria apropriado pelos grandes
movimentos libertrios, como a Revoluo Francesa e a Guerra Civil Americana.
No entanto, muito antes disso, os duendes, gnomos e trasgos j vestiam o gorro
encarnado. So, afinal, livres enquanto foras da natureza. No por acaso que
para escravizar um saci preciso tomar sua carapua. Sua grande fonte de magia
a liberdade.
Por que o saci permanece atual? Por que ainda hoje
comunica com tantos brasileiros? Ora, os poderes estabelecidos podem ser
outros, mas as dinmicas de dominao e subordinao permanecem evidentes. As
classes proletrias e os grupos negros e marginalizados continuam merc de
uma elite cientificista, economicista e racista. Os ventos que o saci comanda
sopram hoje por todo o Brasil. ele, afinal, este heri trapaceiro que chora
por ns, mas tambm sabe rir. Que rompe com o estabelecido e que pode at
trazer o caos, mas com a certeza de que com ele tambm vem a mudana.
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[Recebido: 30 dez
2020 – Aceito: 18 mar 2021]
A
Literatura de Cordel como reivindicao do direito Literatura
Cordel
Literature as a claim to the right to Literature
Letcia Fernanda da Silva Oliveira[19]
https://orcid.org/0000-0003-1821-37
Resumo: O presente artigo
prope a discusso de dois clebres ensaios do socilogo Antonio Candido
analisando a Literatura de Cordel e a funo social que esta desempenha. As
reflexes propostas pelo crtico literrio abordam importantes questes como as
desigualdades sociais e a literatura como forma de humanizar o homem. Sendo
sempre associada s belas artes, a literatura foi constantemente reafirmada
como uma espcie de saber elevado e forma de edificao do homem, mas o que
pretendemos demonstrar que mesmo nas culturas populares, como a Literatura de
Cordel, quando os poetas tomam a voz e reivindicam a literatura como forma de
fruio para as camadas mais populares, este direito acessado por todos e no
apenas pelas classes mais elevadas. Abordando especificamente o contexto em que
esta literatura surge no Brasil, o comeo do sculo XX, demonstramos como os
poetas foram fundamentais para que o seu pblico de leitores/ouvintes pudesse
desfrutar da arte e usufru-la como um bem.
Palavras-chave: Literatura de Cordel;
Antonio Candido; Direito literatura; Fruio; Humanizao.
Abstract: This article proposes
the discussion of two renowned essays written by the sociologist Antonio
Candido in contraposition to Cordel Literature and the social role that it
performs. The thoughts proposed by the literary critic address important
questions such as social inequities and the literature as a way to humanize
men. Always associated with the fine arts, literature was constantly reaffirmed
as a type of superior knowledge and a form of edifying men, but what we intend
to demonstrate is that even in popular cultures, such as Cordel Literature,
when poets own the voice and reclaim literature as a method of enjoyment for
the most popular classes, than this right is accessed by everyone and not just
by the upper classes. Addressing specifically the context in which this
literature emerges in Brazil, the beginning of the 20th century, we intend to
demonstrate how the poets were fundamental so that their audience of
readers/listeners could enjoy art and consume it as a good.
Keywords: Cordel Literature;
Antonio Candido; Right to literature; Enjoyment; Humanization.
A literatura como parte
dos direitos humanos
Em seu famoso ensaio O direito literatura,
publicado em 2004, Antonio Candido trabalha a importante questo dos direitos
humanos, elencando entre estes o direito literatura. Vivendo em tempos de
reflexo acerca das injustias sociais e a insensibilidade demonstrada frente a
essa questo, no parece uma desconexo com a realidade pensar sobre como a
literatura pode tambm fazer parte dos direitos humanos. Se acreditamos que
precisamos transformar a realidade e romper com o antigo estado das coisas,
seria um debate profcuo este que reflete sobre como a fruio literria
tambm um direito. Conceder o acesso literatura seria, portanto, mais uma
forma de diminuir as desigualdades sociais.
Como afirma o autor, pensar nos direitos humanos
faz com que consideremos indispensvel ao outro aquilo que tambm
indispensvel para ns. E ao considerarmos esse pensamento, a literatura mais
um bem a ser reivindicado entre tantos outros tidos como indispensveis, ou incompreensveis, pois esses so
aqueles que no podem ser negados a ningum. So os bens capazes de garantir a
sobrevivncia, no apenas fsica, mas tambm mental, espiritual. Para Candido
(2004, p. 173),
O fato que cada poca e cada cultura
fixam os critrios da incompressibilidade, que esto ligados diviso da
sociedade em classes, pois inclusive a educao pode ser instrumento para
convencer as pessoas de que o que indispensvel para uma camada social no o
para outra.
Esse pargrafo evidencia que o debate sobre o
acesso literatura no pode ser desvencilhado da reflexo sobre direitos
humanos, pois seriam as classes altas que definiriam o acesso das classes menos
favorecidas s artes, fazendo, ento, com que os direitos humanos fossem
desrespeitados em mais uma de suas vertentes. importante relembrar e
reafirmar que as elites so sempre vistas como detentoras do saber, em que
esto inseridos os indivduos que podem criar conhecimentos e, dessa forma,
aumentar ainda mais o prprio poder.
importante ressaltar ainda que o ensaio de Candido no aborda especificamente a
literatura popular, apresentando exemplos referentes apenas ao mbito cannico,
mas, ao descrever a sua viso do que a literatura, perceptvel que a sua
definio abrange textos antes desprezados pelo cnone. Para o socilogo,
seriam textos literrios todas as formas de criaes de toque potico,
ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade (CANDIDO, 2004, p.
174). Ento, o autor parte para um debate fundamental de seu ensaio: o fato de
que no h qualquer homem ou povo que consiga viver sem a literatura,
responsvel por confirmar a humanidade do homem.
A
literatura seria capaz de humanizar e de ser responsvel por enriquecer tanto o
indivduo como o grupo. Essa humanizao definida por Candido (2004, p. 180)
como o exerccio da reflexo, a aquisio do saber, a boa disposio para com
o prximo, [...] a percepo da complexidade do mundo e dos seres. Ela um
meio eficaz de transmitir conhecimentos, mas tambm uma forma de trazer a
sensibilidade tona, fazendo com que o indivduo seja capaz de refletir e ser
emptico com o outro. Muitas vezes a literatura ser capaz de mostrar uma
realidade diferente daquela em que o leitor vive e, portanto, ser capaz de
transport-lo, ainda que momentaneamente, para outro universo.
Candido apresenta, ento, outra importante
reflexo e que se faz necessria para os propsitos deste artigo. O autor
aponta que a relao da literatura com os direitos humanos pode ser vista sob
dois vieses: o primeiro, em que a literatura seria uma necessidade universal
que deve ser satisfeita, pois neg-la seria mutilar a nossa humanidade
(CANDIDO, 2004, p. 186); o segundo, a literatura atua como um instrumento de desmascaramento,
pelo fato de permitir que haja foco na restrio dos direitos ou na falta
deles. O autor conclui, ento, que nesses dois vieses ela se encaixaria na luta
pelos direitos humanos.
A
diviso social brasileira seria responsvel por impedir que as classes sociais
mais baixas no possam ter acesso s obras cannicas da mesma maneira que as
classes dominantes. A literatura escrita acaba sendo um privilgio de pequenos
grupos, por diversos motivos, cabendo s classes mais baixas apenas as formas
consideradas populares.
Outro importante ensaio do socilogo Antonio
Candido, e complementar discusso deste primeiro que citamos, A literatura
e a formao do homem, publicado em 2002, em que o autor discute a funo da
obra literria dentro de uma sociedade e aborda mais uma vez como se d a
humanizao do homem por meio da literatura.
A literatura, principalmente quando enxergada de
maneira purista, muitas vezes, foi retratada como um meio de edificao do
homem, mas no esse o sentido que Candido buscou apontar em suas reflexes,
pelo contrrio. A edificao seria responsvel por afastar o homem de uma
humanidade verossmil, criando a ideia de um funcionamento literrio prximo
aos manuais de virtude e boa conduta. A literatura, ento, seria necessria
para mostrar que existe uma complexidade em torno de si prpria.
Paradoxos, portanto, de todo lado,
mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padres oficiais) e a sua poderosa fora
indiscriminada de iniciao na vida, com uma variada complexidade nem sempre
desejada pelos educadores. Ela no corrompe
nem edifica, portanto; mas, trazendo
livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em
sentido profundo, porque faz viver (CANDIDO, 2002, p. 84-85).
Para Candido, a necessidade universal da
fantasia se manifestaria em todos os instantes possveis da vida humana, haja
vista que praticamente impossvel pensar em qualquer indivduo que passe
muito tempo sem ter qualquer tipo de alegoria em sua mente, ou fora dela. E,
sendo assim, a literatura uma resposta a essa imaginao inesgotvel:
A literatura propriamente dita uma das
modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas
formas mais humildes e espontneas de satisfao talvez sejam coisas como a
anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifo. Em nvel complexo surgem as
narrativas populares, os cantos folclricos, as lendas, os mitos. No nosso
ciclo de civilizao, tudo isto culminou de certo modo nas formas impressas,
divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance,
narrativa romanceada (CANDIDO, 2002, p. 80).
possvel ento refletir e concluir que a
literatura traz em si muitas possibilidades, sendo capaz de tanto humanizar
quanto desumanizar. O mais importante de todos esses questionamentos sobre a
possibilidade de humanizar de fato, que sendo a literatura indissocivel da
formao do homem no haveria como ela no causar nenhum tipo de afetao na
formao da personalidade de qualquer indivduo. Somos afetados pelos textos
literrios de diversas formas, no apenas quando falamos dos textos mais
eruditos. A literatura e a arte esto nas pequenas coisas que nos rodeiam,
possibilitam a fruio da realidade de uma maneira necessria em qualquer
civilizao.
Um breve retrospecto
sobre o surgimento da Literatura de Cordel
Refletindo especificamente sobre a Literatura de
Cordel e o seu advento, no absurdo afirmar que o fazer potico dos poetas
vai de encontro ao pensamento que Candido defende nestes ensaios. Enquanto o
romance moderno foi construdo sobre bases que priorizam a leitura individual e
o isolamento do leitor, gerado tambm a partir da segregao do romancista,
como afirma Walter Benjamin em O narrador, quando se trata de narrativas
populares, como o cordel, espera-se que o pblico receptor faa o oposto,
haja vista que o consumo dos folhetos esteve sempre estritamente ligado
oralidade e s leituras pblicas. O que comprova tambm que o autor se
equivocou ao afirmar que a arte de narrar estava em vias de extino, pois, se
para Benjamin (1994) tais narradores no seriam relevantes dentro da literatura
cannica, a Literatura de Cordel comprova que os narradores orais sobrevivem e
se reinventam na cultura popular.
tambm importante salientar que no apenas a
cultura popular que influenciada pela literatura cannica, pois o inverso
tambm acontece. A literatura escrita tambm se apropria e se alimenta da
literatura popular, o que promove toda uma circularidade de influncias. Ou
seja, os narradores orais continuam sendo indispensveis para todo o sistema
literrio.
Pensar e pesquisar a Literatura de Cordel , de
certa forma, revisitar alguns conceitos da teoria literria, como autoria[20] e originalidade[21], e at mesmo repensar o
prprio termo literatura. pertinente considerar que as narrativas
populares foram marginalizadas, sendo at mesmo consideradas como uma espcie
de paraliteratura, uma viso bastante preconceituosa, que marginalizava e
rebaixava essas existncias culturais divergentes. Obviamente esse tipo de
postura consistia numa reafirmao da superioridade da literatura considerada
cannica, ocorrendo isso inclusive dentro do meio acadmico.
A Literatura de Cordel brasileira se configura
como uma expresso cultural popular, que traz em si diversos tipos de
sapincias e utilidades. Faz parte de sua estrutura, ento, o resultado de
trocas culturais entre os imaginrios das culturas que formaram o Brasil,
fazendo assim com que histrias tradicionais vindas do contexto ibrico fossem
remodeladas e ganhassem novos contornos especificamente brasileiros. Era comum
que os folhetos fossem usados para retratar fatos que ocorriam exatamente
naquele momento histrico. impossvel, portanto, pensar a existncia dessa
tradio cultural sem pensarmos tambm na transmisso oral e na memria
coletiva, pois ambas so de fundamental importncia para que muitas narrativas
ibricas no tenham se apagado no decorrer de sculos. Pelo contrrio,
permaneceram to fortes e ecoando nas mentes nordestinas, que quando so
transpostas pelos cordelistas ganham ainda mais fora.
Os versos dos cordelistas buscavam aproximar o
pblico leitor/ouvinte de suas criaes, e, por isso, ocorre tambm a
identificao desse pblico com o que estava ali sendo retratado. Os folhetos
so capazes tanto de trazer histrias maravilhosas, em que se vencia a fome e a
seca, ou ento mostravam como fazer o pobre, amarelinho[22], vencer os ricos.
Traziam tambm em si os preceitos catlicos, muito respeitados e seguidos na
poca, responsveis por causar uma impossibilidade eterna s mulheres, pois
elas jamais seriam to virtuosas como a Virgem Maria.
As penas ferozes de autores como Leandro Gomes
de Barros[23],
o mais importante cordelista pioneiro, traziam tambm em si muitas crticas ao
momento social e histrico em que viviam. No se conformavam com a Proclamao
da Repblica, com os novos impostos, e tambm no viam com bons olhos os
pequenos progressos femininos da poca, assim como algumas mudanas trazidas
pela Belle poque.
Os poetas pioneiros eram descendentes dos
cantadores que os precediam, haja vista que essa uma tradio secular. Muitos
deles sendo apenas semiletrados, faziam da memorizao uma grande aliada do
fazer potico, pois diferentemente do que muitas vezes se pensa, no apenas
por inveno que criam seus versos, h um extenso trabalho com a memria na
prtica dos cordelistas. Alm disso, traduziam para os versos os anseios
populares, pois tinham contato direto com seu pblico. No escreviam de maneira
afastada, como o romancista moderno.
[...] o cantador nordestino, herdeiro e
depositrio do fluxo lentssimo da tradio como memria convertida em
descoberta, representa um ponto de chegada de materiais errticos que tm atravessado
como meteoritos o firmamento de sistemas culturais inclusive muito distantes,
para depois serem reutilizados por uma vontade artstica em que a coletividade
se realiza com gosto e frmulas prprias. (PELOSO, 1996, p. 78).
A escolha pela anlise desse perodo em
especfico, as primeiras dcadas do sculo XX, se fez oportuna por ser o
momento em que a importncia dos cordelistas era ainda maior. Convm relembrar
que era um momento em que ainda no existia fcil acesso ao rdio, e a TV ainda
estava longe de existir. Sendo assim, as nicas formas de entretenimento e
informao que existiam de maneira escrita eram, respectivamente, os livros e
os jornais. Cabia aos poetas transpor esses textos para versos, pois somente
assim a populao poderia ter acesso a tais conhecimentos.
O fato de os folhetos serem feitos com um
material barato, para serem estendidos nas feiras, fez tambm com que fosse uma
literatura menos afastada do seu pblico leitor/ouvinte do que a literatura
cannica, que tem como caracterstica o leitor solitrio. Alm disso, ainda que
a maior parte da populao fosse analfabeta, por se tratar de uma literatura
oral, feita para ser lida em voz alta, todos podiam ter acesso a essas
histrias, no mais apenas aqueles que eram os detentores do saber, os que
sabiam ler.
O cordel luz de
Candido
possvel pensar a problemtica que envolve as
reflexes propostas por Antonio Candido no contexto da Literatura de Cordel
interpretando, ento, os cordelistas como verdadeiros protagonistas de uma extensa
reivindicao do direito literatura. Cumpriam, no contexto em que estavam
inseridos, o papel de atores sociais, sendo de fundamental importncia para
garantir que a populao pudesse alcanar a literatura e a fruio, direitos
que antes lhes eram negados, por diversos motivos.
Ento, se a literatura cannica no pode ser
aproveitada plenamente por todas as camadas da populao, por meio dos
processos criativos dos poetas e as suas habilidades de transposio de
histrias que a fruio ser alcanada. Sendo o acesso a livros difcil, seja
pela linguagem ou pelo valor financeiro, ento seria por meio de folhetos de
cordel que a imensa maioria da populao nordestina conseguiria conhecer muitas
narrativas e preencher a sua prpria necessidade de fantasia. Mais do que nunca
a literatura passa a ser uma forma de conhecimento e no apenas de
divertimento, pois os versos dos cordelistas so capazes de levar o pblico
leitor/ouvinte a lugares inimaginveis, bem como trazer notcias do que
acontecia no Brasil e no mundo. Preenche, ento, o que Antonio Candido assinala
como a necessidade universal de fantasia.
No ltimo tpico de O direito literatura,
Candido (2004, p. 191) conclui que
a luta pelos direitos humanos abrange a
luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes
nveis da cultura. A distino entre cultura popular e cultura erudita no deve
servir para justificar e manter uma separao inqua, como se do ponto de vista
cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicveis, dando lugar a
dois tipos incomunicveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupe o
respeito aos direitos humanos, e a fruio da arte e da literatura em todas as
modalidades e em todos os nveis um direito inalienvel.
Baseando-nos neste pargrafo, possvel
estabelecer que, ainda que ao elaborarem seus versos e que isso faa parte de
uma ampla reivindicao do que aqui chamamos de direito literatura, essa
reivindicao no poderia se encerrar apenas na Literatura de Cordel.
possvel afirmar que, dentro do contexto em que escolhemos analisar aqui, a
excluso era inevitvel, justamente por se tratar de um contexto em que a
populao nordestina estava extremamente desfavorecida frente ao Sul do pas,
que abrigava a capital do Brasil.
Ao trazer o debate sobre o Regionalismo, em A
literatura e a formao do homem, Candido (2002) demonstra que a literatura
pode ser usada tanto para humanizar quanto para desumanizar, e com a Literatura
de Cordel isso no seria diferente. Um grande exemplo que as mulheres muitas
vezes foram grandes vtimas das crticas dos cordelistas, pois o que se cobrava
delas eram posturas inatingveis. Uma mulher digna deveria se espelhar em
Maria, a virgem me de Jesus, Cristo, a mulher reconhecida por Deus como perfeita.
Isso pode ser visto em Os martrios de Genoveva (ATADE, s. d., p. 2-3):
Genoveva era dotada
De inteligncia e engenho
Nas feies dela se lia
O mais perfeito desenho
A natureza em orn-la
Se esmerou e fez empenho
Alm dessas qualidades
Em tudo era preciosa
Modesta e trabalhadora
Corts e religiosa
Graas a educao
De sua me extremosa
Quando estava em oraes
Ajoelhada entre os pais
Parecia ser um anjo
Das regies divinais
Que tinha baixado a terra
Para exemplo dos mortais.
Se ela no figura nos versos como modelo para
todas as mulheres, ir lhes caber a representao oposta a essa. Muitas vezes
utilizando esteretipos existentes naquela sociedade, os poetas retratavam as
mulheres com comportamento destoante do que era socialmente aceito: eram perversas
e capazes de desonrar o homem. Em se tratando da mulher negra, esse quadro era
ainda mais violento, pois dentro do contexto literrio do cordel, ali no
caberia qualquer representao positiva. Em O Bataclan moderno, Atade tece
crticas s mudanas sociais vividas pelas mulheres:
Mundo velho desgraado
Teu povo precisa de um freio,
Para ver se assim melhora
Este costume to feio
De uma moa seminua
Andar mostrando na rua
O sovaco a perna o seio.
De primeiro uma donzela
Andava bem prevenida,
Se acaso ia um passeio
Se encontrava ela vestida
Hoje essa mesma donzela
A moda obrigou a ela,
Sair pra rua despida (ATADE, 1953, p. 1)[24].
por meio das crticas dos poetas que ocorre
tambm o que Candido chamou de desmascaramento, pois quando tecem crticas ao
governo, como faz Leandro Gomes de Barros, por exemplo, seu pblico
leitor/ouvinte consegue perceber que esto sendo vtimas de enganaes e
abusos. Para Marques (2014, p. 55), Era, portanto,
atravs das lentes satricas do(s) poeta(s) popular(es) que o sertanejo via e
entendia aquele mundo prenhe de novidades e mudanas inusitadas. O exemplo pode ser
visto nas seguintes estrofes, em que Barros busca denunciar a realidade em que
os nordestinos estavam vivendo. Em Um pau com formigas, o poeta tece uma de
suas denncias acerca das mudanas vivenciadas no novo sculo:
Chamam este sculo das luzes
Eu chamo o sculo das brigas
A poca das ambies
O planeta das intrigas
Muitos cachorros num osso
Um pau com muitas formigas.
Ento depois da repblica
Tudo nos causa terror
Cacete no faz estudo
Mas tem carta de doutor
A cartucheira a lei
O rifle governador (BARROS, 1912, p. 1).
As
crticas tambm podem ser vistas em O imposto e a fome:
Disse o
imposto – isso nada,
O Brasil
est todo exposto,
Enquanto existir
governo
Reina a
fome e o imposto,
Os
presidentes de Estados
Dizem
– morram os desgraados
Ficando
ns tudo gosto.
[...]
Justia
em ti no h mais
Creio que
morreu de desgosto,
A lei
ficou como rfo
Sem pai,
sem me, sem encosto,
O carter
foi embora
S
conhecemos agora
Poltica,
fome e imposto (BARROS, 1909, p. 2-3).
possvel perceber como Leandro Gomes de Barros
se empenhava em fazer suas denncias, ultrajado pelos impostos excessivos, pela
fome e pela misria. Em consonncia com o que afirmou Candido, seus versos eram
capazes de despertar a reflexo em seu pblico, fazendo com que pudessem
perceber a complexidade do mundo em que viviam, de uma maneira ainda mais
pungente. Era por meio da stira que seus versos se mostravam ainda mais ferinos.
Concluso
Neste
artigo, buscamos justapor os ensaios de Antonio Candido Literatura de Cordel,
mostrando como a necessidade de literatura e fantasia universal e atinge
todas as camadas sociais. No comeo do sculo XX, a literatura cannica era
negada ao povo nordestino, assim como o direito fruio, algo to desejado
pelas classes sociais mais elevadas. Negar esse direito seria negar tambm a
humanidade daquelas pessoas.
Ao
tomar para si a voz, fazendo com que um integrante do povo pudesse finalmente
ser ouvido, o cordelista passa a representar tambm os anseios de seu pblico
leitor/ouvinte, haja vista que seu sucesso tambm dependia desse dilogo direto
com seu pblico. O poeta de cordel uma figura muito sensvel, pois lhe cabe
perceber muitas nuances da realidade em que habita.
Sendo assim, sob essas novas lentes, criadas
pelos versos dos poetas, o nordestino passava a perceber a prpria realidade de
uma outra forma, pois o poeta era capaz de fazer com que, ao finalmente se
enxergarem de alguma forma representadas na literatura, essas pessoas pudessem
tambm resistir e reexistir, frente a todas as agruras cotidianas que as
cercavam.
Referncias
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Joo Martins de. (A Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista,
considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema) O Bataclan moderno,
Juazeiro do Norte, Editor Jos Bernardo da Silva, 1953.
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BARROS, Leandro Gomes de. O imposto e a fome/O homem que come vidro/O reino da Pedra Fina. Recife, PE: s.n., 1909.
_________. Um Pau com Formigas/ Concluso de Riacho com Turbana. Recife, PE:
s.n., 1912.
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Dissertao de Mestrado. Assis-SP: UNESP, 2017.
PELOSO,
Silvano. O canto e a memria:
Histria e utopia no imaginrio popular brasileiro. So Paulo: tica, 1996.
[Recebido:
15 ago 2020 – 19 set 2020]
O RAP indgena dos Br Mcs: a construo
argumentativa da polmica
The Br Mcs indigenous
RAP: the argumentative construction of polemics
Rubens Damasceno-Morais[25]
https://orcid.org/0000-0001-6245-6394
Vanessa Martins Leo[26]
https://orcid.org/0000-0002-8486-5735
Resumo: Neste artigo, diante de
um exemplo da modalidade argumentativa polmica (AMOSSY, 2017), e pela
perspectiva da argumentao em contexto de interao (PLANTIN, 2008, 2011;
GRCIO, 2013) mostramos, por meio de uma pesquisa de cunho qualitativo, as
funcionalidades das desqualificaes da tese adversria e da pessoa ou do grupo
que representa o Oponente, bem como da impolidez verbal, materializada em
palavres, ironia e ameaas (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM, HARDAKEKER,
2017; DECLERCQ, 2003). Para tanto, analisamos um comentrio e algumas respostas
a esse comentrio, postados na mdia social Youtube, os quais dialogam
com os discursos e os recursos semiticos que circulam pelo clipe de Eju
Orendive, do grupo de rap de (re)existncia indgena Br MCs. A
partir desses excertos, percebemos que, de um lado, aqueles que se posicionam
contra a demarcao de terras indgenas, velando o racismo, e, do outro lado, os
que defendem os direitos dos povos originrios se debruam sobre um debate
polarizado e violento voltado no para um acordo, mas, sim, com a inteno de
provocar a adeso de um Terceiro, segundo a perspectiva dialogal da
argumentao (PLANTIN, 2016).
Palavras-chave: Polmica; Rap Indgena;
Resistncia; Racismo.
Abstract: In the face of an example of the
controversial argumentative modality (AMOSSY, 2017), and using the
argumentation perspective in the interaction context (PLANTIN, 2008, 2011;
GRCIO, 2013), by means of a qualitative research, we show the disqualifications
of the opposing thesis and the person or group that represents the Opponent, as
well as verbal impoliteness, materialized in swearing, irony and threats
functionalities (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM and HARDAKEKER, 2017;
DECLERCQ, 2003). Therefore, we analyze a comment and responses, posted on the Youtube,
which dialogue with the speeches and semiotic resources circulating in the
videoclipe Eju Orendive, by the indigenous rap group Br MC's. From
these excerpts, we realize that, on the one hand, those who stand against the
demarcation of indigenous lands, guarding racism and, on the other hand, those
who defend the rights of indigenous peoples focus on a polarized and violent
debate aimed at for an agreement, but, with the intention of provoking the adhesion
of an audience, according to the dialogical perspective of the argumentation
(PLANTIN, 2016).
Keywords: Polemics; Indigenous Rap;
Resistance ; Racism.
Rap compromisso. No viagem.
(Sabotage, 2000)
O Br MCs o
primeiro grupo de rap indgena do Brasil. Seus integrantes so da etnia
Guarani-Kaiow e habitam as aldeias Jaguapir e Boror, localizadas na cidade
de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. O videoclipe do rap Eju
Orendive[27], composio do grupo, postado no YouTube, mobilizou opinies de internautas, que expressaram seus
posicionamentos em comentrios. Tais comentrios trazem tona discursos de
dois grupos politicamente polarizados[28]. De um lado, encontram-se
os usurios identificados como de esquerda, que se alinham com as causas dos
povos indgenas e, ento, legitimam discursivamente a arte musical de
(re)existncia por eles produzida. Do outro lado, encontram-se aqueles
denominados de direita, os quais, apoiando-se em esteretipos, materializam
discursos racistas e, portanto, tomam o rap dos jovens de Dourados como
apropriao e como perda de cultura. Diante desse cenrio, este artigo se
empenha em analisar as estratgias lingusticas e argumentativas que esses
usurios utilizam para construir seus posicionamentos na plataforma virtual.
Nesse sentido, busca-se responder aos seguintes questionamentos: como se
constri a modalidade argumentativa polmica (a dicotomizao, polarizao e
desqualificao), nos comentrios dos internautas? Destaca-se, nesse contexto, alguma estratgia
argumentativa na construo dos discursos e contradiscursos (im)polidos? Para
tanto, utilizamos a teoria da argumentao do discurso, com foco na polmica,
de Amossy (2011, 2017), bem como os estudos sobre (im)polidez de Culpeper
(2011) e Kerbrat-Orecchioni (2006) e a teoria dialogal da argumentao, com
foco nos papis de atuao de Plantin (2008, 2016) e Grcio (2013). Alm disso,
em funo do vis interdisciplinar dessa pesquisa, utilizamos os apontamentos
de Chang (2005) para falar sobre o rap e do decolonialista Quijano
(2005) para falar sobre assuntos histricos que atravessam e constituem as
identidades indgenas.
Charaudeau (2014)
destaca que as mdias sociais so uma das principais esferas da atividade
social, em que os discursos polticos vm tona. Ademais, Cabral e Lima (2017)
afirmam que o advento e a massificao dessas plataformas provocaram mudanas
comportamentais nas pessoas, sendo que uma dessas mudanas diz respeito ao modo
de elas se organizarem em grupos, com usurios que possuem interesses em comum,
e ao modo de enxergarem o outro, ou seja, de enxergarem aqueles que se
posicionam de modo antagnico. Seguindo esse caminho, Cabral, Marqiesi e Seara
(2015) apontam que esse contexto, que possibilita a livre participao em
discusses bem como a criao de identidades, de perfis fakes, chancela
s pessoas a exposio mais espontnea e, at mesmo, agressiva de suas
opinies. Assim, um vdeo de rap indgena, publicado no Youtube,
com comentrios abertos para todos os usurios, pode se converter em terreno
frtil para a materializao de discursos polmicos.
De acordo com Amossy
(2017), a polmica um debate em torno de uma questo da atualidade, de
interesse pblico, que comporta os anseios das sociedades mais ou menos
importantes numa dada cultura. As marcas dessa modalidade argumentativa, de acordo com a autora, so: a
dicotomizao e a polarizao. A dicotomizao emerge quando posies
antitticas se constroem e se excluem mutuamente. A polarizao, por sua vez,
est interligada ao plano da estrutura actancial – adiante, explicado com
apoio em Grcio (2013) –, que envolve a atuao do Proponente, do
Oponente e do Terceiro. De acordo com Plantin (2008, 2016) so esses papis que
sustentam o debate que ope duas posies dicotmicas. Dessa forma, a
polarizao se compe de um defensor da posio proposta (Proponente), de um
opositor dessa posio (Opositor) e de um ouvinte-espectador da confrontao
(Terceiro). Surge, ento, um ns diante de um eles e, nessa relao, os
procedimentos mais atenuados consistem em desqualificar a palavra do outro e,
geralmente, em desqualificar a pessoa ou o grupo que ele representa, por meio
da violncia verbal e da manifestao das emoes (pathos).
Este estudo se divide,
ento, em cinco partes. A primeira, na qual desvelamos nossos objetivos
iniciais. A segunda, em que falamos sobre a relao existente entre o rap
e grupos identitrios marginalizados (de forma breve, dado o espao limitado de
que dispomos neste artigo), tais como, os negros e os indgenas. Na terceira,
por sua vez, nos empenhamos em mostrar os aspectos da modalidade argumentativa
polmica, a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao, proposta por
Amossy (2017), bem como apontamos como esse ltimo aspecto, ou seja, a
desqualificao, se desdobra em (im)polidez ou agressividade verbal, conforme
Culpeper (2011). Na seo seguinte, apresentamos o corpus e empreendemos a anlise dos dados mostrando como a polmica
se constri em torno de um comentrio e de respostas a esse comentrio do vdeo
Eju Orendive, dos Br MCs. Por fim, tecemos nossas consideraes
finais relacionando-as com a nossa proposta inicial.
(Re)existir e lutar
contra o racismo: a aliana entre o rap e grupos marginalizados
De acordo com Chang
(2005), a cultura do hip hop nasceu no bairro do Bronx, em Nova Iorque,
em meados da dcada de 1960, em meio a implantao de polticas recessivas que
prejudicaram, principalmente, dois grupos marginalizados: os negros e os
mestios dos EUA. Diante desse cenrio, emergiu o movimento Zulu Nation,
encabeado pelos DJs Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash e Kool Herc,
responsveis por reunir jovens desses grupos identitrios em torno de eventos
de msica, de dana e de artes visuais. Souza (2005) aponta que esse movimento
resultou na cultura hip hop, composta pelo rap (sigla para rhythm and poetry), pelo break
(dana) e pelo grafitte (artes visuais). O rap, pela
juno de um MC (mestre de cerimnias) e de um DJ (disk jokey),
se constitui como um gnero potico-musical que, por meio de seus enunciados,
traz tona o cotidiano dos moradores das favelas e das periferias, denunciando
as situaes de desigualdade e de preconceito que lhes interpelam.
O rap emergiu no
Brasil, na dcada de 1980, na cidade de So Paulo. Nesse perodo, So Paulo, de
modo semelhante Nova Iorque, era tomada por construes de moradias
irregulares, habitadas, em maioria, pela populao negra. Em meio a um contexto
de pobreza e de abandono, os ndices de criminalidade e as taxas de homicdio
inflaram (SILVA, 2013). Diante desse cenrio conturbado, em meados de 1980, o rap
consciente emergiu a partir de nomes como Thaide e DJ Hum. No entanto, foi com
o grupo Racionais MCs que o raio-X do Brasil veio tona.
O primeiro grupo de rap
indgena brasileiro, por sua vez, surgiu em 2009, quando os jovens Bruno Veron,
Clemersom Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto, da etnia Guarani-Kaiow,
se uniram para formar o Br MCs. Seus versos denunciam o cotidiano das aldeias
Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do
Sul, onde a pobreza, a violncia, os vcios e o preconceito atravessam seus
moradores. De acordo com dados do site G1[29], em junho de 2019, as
reservas indgenas de Dourados registraram em mdia um assassinato a cada dois
dias e meio. A reportagem aponta ainda que, segundo o MPF, no somente essas
reservas, mas tambm as comunidades indgenas do sul do estado esto
vivenciando uma escalada sem precedentes nos ndices de criminalidade, muito em
funo do consumo exagerado de drogas e lcool, ao passo em que o policiamento
ostensivo e repressivo no acompanha esse cenrio.
A partir dessa
exposio, possvel perceber que os contextos de gnese do rap
estadunidense, brasileiro e indgena brasileiro apresentam entrecruzamentos.
Nos trs casos, o
gnero potico-musical
emergiu em periferias e favelas, espaos permeados por situaes de pobreza e
de violncia. Ademais, entrecruzamentos, tambm, podem ser apontados entre as
histrias dos grupos identitrios que do voz a esses versos, uma vez que a
sociedade brasileira se ergueu com o sangue dos negros e dos indgenas. Desde a
trajetria de colonizao, indgenas e negros foram violentados, fsica e
psicologicamente, sob a justificativa da civilizao, da modernizao e da
salvao, uma vez que foram considerados selvagens, rudes e pagos e deveriam,
portanto, ser domados. Diante desse cenrio, o racismo e a situao de
pobreza, aos quais esses grupos so submetidos, desvelam-se como condies
scio-histrica e discursivamente construdas (QUIJANO, 2005; MOURA, 2004).
A modalidade de
argumentao polmica e os aspectos da (im)polidez lingustica
Para embasar a anlise do corpus em
questo, uma vez que estamos diante de uma pesquisa qualitativa, seguimos a
teoria da argumentao no discurso de Ruth Amossy (2011, 2017), com nfase na
modalidade polmica. De acordo com a autora, a argumentao tecida na
materialidade lingustica em uma situao concreta de comunicao. Desse modo,
o locutor, projetando a imagem de seu alocutrio e adequando-se s normas do
gnero do discurso em questo, lana mo de recursos lingusticos e de
estratgias discursivas a fim de tecer sua teia argumentativa. Nesse sentido, a
autora destaca que Ҏ na espessura da lngua que se forma e se transmite a
argumentao (AMOSSY, 2011, p. 131-132), apontando que o discurso, com a
inteno de persuadir, segue uma ou mais modalidades argumentativas. Dentre as
possibilidades de estratgias argumentativas, a autora destaca: a modalidade
demonstrativa, segundo a qual o locutor apresenta uma tese fundamentada, por
meio de discurso monologal ou dialogal, a um auditrio a fim de conquistar sua
adeso; a modalidade negociada, em que os parceiros, com diferentes opinies,
se empenham para encontrar uma soluo comum para o problema que lhes apetece;
e a modalidade polmica, caracterizada pela presena de participantes com
posicionamentos antitticos, em total desacordo, no qual um ataca a tese do
outro e, at mesmo, a prpria figura do outro a fim de provocar a adeso de um
terceiro. No tocante polmica, a autora destaca ainda que, apesar de
julgamentos precipitados que a ela atribuem valores negativos, para o analista
do discurso, a polmica se mostra rica de ensinamentos na medida em que ela
revela muitas coisas sobre a sociedade e a poca na qual o discurso polmico
circula (AMOSSY, 2017, p. 49). Isso acontece porque a modalidade polmica gira
em torno de temas atuais[30], que circulam pelo espao
pblico.
Amossy (2017, p. 49)
afirma ainda que a primeira marca da polmica como debate da atualidade uma
oposio de discurso, de modo que a existncia de posicionamentos antitticos
essencial para a emergncia dessa modalidade argumentativa. Assim, de acordo
com a autora, o que modaliza a polmica a atividade de materializar
argumentos a favor de sua tese e contra a tese oposta, ou seja, diante desse
cenrio, cabe a ambas as partes da interao construir a fundamentao de suas
proposies bem como a justificativa de suas contraposies. Nesse sentido, Amossy
(2017), baseando-se em Marc Angenot, traz tona a dupla estratgia que
tangencia a polmica que seria a demonstrao da tese e a refutao e
desqualificao da tese antagnica. A partir de ento, Amossy afirma que a
especificidade da polmica dentro do campo da argumentao retrica definida
pela dicotomizao, pela polarizao e pela desqualificao e, de forma secundria, no obrigatria, pela violncia verbal e pelo pathos.
A dicotomizao,
portanto, como aponta Dascal (2008), leva o debate a nveis extremos, uma vez
que, nesse caso, as partes no se empenham em desenvolver um acordo, ou
estabelecer um meio termo, para o problema em questo. Amossy (2017, p. 55)
coloca, ento, que a polmica se diferencia das interaes argumentativas
ordinrias porque ela tende sistematicamente para uma dicotomizao que
dificulta a busca de acordo entre as partes adversrias. No caso deste
trabalho, por exemplo, os participantes que apontam argumentos a favor dos
direitos dos povos indgenas e os participantes que, embasados em esteretipos,
argumentam a favor do desenvolvimento econmico do pas, velando o racismo, no
se empenham nessa discusso para balancear os posicionamentos, e, assim, ao
final, atingir um consenso, pois, eles tm, aqui, objetivos outros.
Para melhor explicar o
processo de polarizao, Amossy (2017) prope a diferenciao entre actantes e
atores. Segundo Plantin (2008), os atores
so os sujeitos concretos da enunciao e os actantes, por sua vez, esto interligados a modalidades discursivas
especficas que envolvem um Proponente e um Oponente em face de um Terceiro.
Esses papis argumentativos, de acordo com o autor, se definem a partir de trs
atos: propor, opor-se e duvidar. Cabe, aqui, ento ressaltar que o campo do
Proponente se compe de diferentes atores, de diferentes grupos sociais, ou
seja, se compe de diferentes vozes, e o mesmo se d com o campo do Proponente;
a juno de participantes to diversos que faz a polarizao difcil de ser
solucionada. Nesse sentido, Grcio (2013), retomando os pressupostos de Plantin,
traz tona a noo de perspectivao
de pontos de vista, que se d quando proponentes e oponentes verticalizam suas
divergncias em uma interao argumentativa. Tal verticalizao notria, por
exemplo, em um ambiente virtual, em que uma polmica se constitui. Isto posto,
Amossy (2017, p. 56) destaca que a diviso actancial entre adversrios tomados
numa relao antittica de tipo conflitual explica que a polmica instaura uma
operao de polarizao, ou seja, a polmica instaura um ns diante de um eles.
Em outras palavras, em
contextos polarizados, o Proponente para se autoafirmar, diante de um auditrio
(Terceiro), desqualifica seu Oponente, atribuindo-lhe valores negativos. Uma
das estratgias utilizadas para tal consiste no ataque da palavra do outro,
seja pela reformulao orientada, seja pela ironia, seja pela modificao dos
propsitos (AMOSSY, 2017, p. 59). Alm disso, outras estratgias utilizadas
para desqualificao da pessoa dizem respeito ao silenciamento, excluso e,
em casos extremos, diabolizao do outro. Declerq (2003, p. 18) assinala que
a polmica nos confronta com essa fora incontrolvel que estimula a ter razo
sobre o outro, a assegurar sua autoridade sobre ele, a submet-lo, a
elimin-lo, se necessrio. Enquanto isso, a demonizao, que divide os grupos
entre o bem e o mal, resulta na reprovao total e na desumanizao do
adversrio. A partir de ento, possvel perceber que, para se posicionar de
modo veemente, o locutor deixa transparecer, em seu discurso, marcas de
subjetividade. A emoo um resultado da implicao do locutor no seu
discurso. O engajamento emocional se faz acompanhar de uma tentativa de tocar o
corao dos leitores/espectadores (AMOSSY, 2017, p. 62) e apresenta,
inexoravelmente, um funcionamento discursivo (PLANTIN, 2011). Em suma,
possvel afirmar que a violncia verbal e outras formas de emoo, marcadas
linguisticamente nos discursos, so estratgias que visam, por meio da
eliminao e do descrdito lanado ao Oponente e a sua tese, provocar a adeso
de um Terceiro.
Culpeper (2011, p. 23)
concebe a violncia ou impolidez lingustica como uma atitude negativa para
comportamentos especcos ocorrendo em contextos especcos. Desse modo, Cunha
(2019) aponta que a impolidez envolve a violao de normas sociais de
comportamento, e o interactante que avalia o comportamento do outro como
impolido v-se na posio de algum cuja face – imagem do eu delineada
em termos de atributos sociais aprovados (GOFFMAN, 1967, p. 5) – foi
ofendida. Cabral e Lima (2017) observam que as manifestaes de violncia
parecem ser mais veementes nos contextos das mdias sociais. Nessa esteira,
Cabral, Marquesi e Seara (2015) afirmam que, nesses contextos, os interactantes
se escondem por detrs da mquina e de perfis fakes, o que lhes assegura
a preservao da identidade e a ausncia de risco de agresso fsica. Segundo
essas autoras, as redes sociais do aos usurios maior liberdade para expor
pontos de vista polmicos e, at mesmo, para agredir outros. Na mesma direo,
Graham e Hardaker (2017) observam que o anonimato pode garantir a muitos
usurios a possibilidade de serem mais sinceros e, por vezes, mais agressivos.
Como j apresentado
acima, objetivo deste artigo estudar a polmica em comentrios do vdeo Eju
Orendive, do grupo de rap indgena Br MCs, postados no Youtube.
Dentre os comentrios realizados e as respostas a ele direcionadas, escolhemos,
para anlise, o comentrio com mais engajamento, ou seja, o comentrio que
obteve maior nmero de respostas. Esse corpus, por sua vez, compe o
corpo deste artigo, por meio de imagens, de prints da tela do Youtube.
A partir dessa materialidade, buscamos, ento, desvelar como se constroem,
nesse contexto, os aspectos da modalidade argumentativa polmica, isto , a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao.
Ademais, nos empenhamos em mostrar como, nesse caso, a desqualificao do
discurso e da figura ou do grupo que representa o Oponente se desdobra em
discursos (im)polidos e atravessados por violncia verbal. Em outras palavras,
a seguir, debruamos esforos sobre as estratgias argumentativas e
lingusticas, a desqualificao materializada em (im)polidez e
violncia/agressividade verbal (xingamentos, ironia e ameaa), utilizadas pelos
usurios durante essa interao virtual.
A polmica em
comentrios do videoclipe Eju Orendive
O Youtube uma
mdia social, fundada em 2005, que tem como funcionalidade principal o
compartilhamento de vdeos gratuitos entre os usurios da rede. Os
vdeos ali postados podem ser compartilhados em outras mdias sociais, bem como
podem receber likes ou dislikes; essa mesma funo, tambm, est disponvel
para os comentrios. Os comentrios[31], por sua vez, dependendo
dos temas que circulam pelo vdeo em questo, se tornam um espao aberto para o
debate em que os usurios expem livremente seus posicionamentos. A partir do momento em que
um comentrio postado, outras pessoas tm a opo de respond-lo refutando ou
defendendo a opinio que foi exposta. Nessa esteira, Amossy (2017) destaca que
as redes sociais constituem a praa pblica do sculo XXI. No entanto, nessa
praa, de acordo com Cabral e Lima (2017), o que pauta as interaes mais o
conflito do que a harmonia. Dessa forma, o Youtube, apesar de no
ter como foco principal a discusso, tornou-se uma arena propcia
argumentao polmica, em que um Proponente prope uma tese que atacada por
um Oponente, diante de um auditrio.
O Youtube se
destaca por ter se tornado uma plataforma requisitada para o lanamento e para
a divulgao de videoclipes de grandes nomes e de nomes em ascenso
(KLICKPAGES, 2019). O videoclipe da msica Eju Orendive, do grupo de rap
indgena Br MCs, foi postado na mdia no dia 28 de setembro de 2010,
no canal Cufatvddos. A produo (Captura de Tela 1 e Captura de Tela 2)
composta por imagens dos integrantes do Br (Bruno Veron, Clemersom
Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto), da etnia Guarani-Kaiow, vestidos
moda dos rappers americanos (com bons, calas largas e camisetas), bebendo
cerveja, pintando os rostos com urucum e cantando seus versos rimados sobre o
cotidiano das aldeias que habitam, Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de
Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. As aldeias Jaguapir e Boror constituem
um espao interpelado por milcias, formadas
pelos prprios indgenas, ataques de diversas ordens devido a questes de
demarcao de terras e pela ausncia da segurana pblica. De acordo com
levantamento da Procuradoria[32] da
Repblica de Dourados, nessas terras, a taxa de homicdios foi de 101,1 por 100
mil habitantes, entre os anos de 2012 a 2014. No Brasil, a taxa mdia de 29,2
homicdios por 100 mil habitantes
Captura
de Tela 1 Captura
de Tela 2
Fonte: Youtube,
2020.
Fonte: Youtube, 2020.
Isto
posto, buscamos, a seguir, desvelar como a polmica e os componentes que a
constituem (polarizao, dicotomizao e desqualificao), em consonncia com
Amossy (2017), se constroem pelo comentrio e pelas respostas escolhidas para a
anlise. Dessa forma, nosso objetivo mostrar, tomando como ponto de partida
essa materialidade lingustica, a partir do conceito da dicotomizao, como
duas opinies divergentes se excluem mutuamente. Enquanto isso, no tocante
polarizao, trazendo tona o funcionamento dos papis da argumentao (PLANTIN,
2008), buscamos esboar como se posicionam o Proponente e o Oponente, ou seja,
delimitamos quais discursos o Proponente defende e o Oponente refuta. Seguindo
esse caminho, esmiuamos o motivo pelo qual os interactantes utilizam a
desqualificao do discurso do adversrio e da figura ou do grupo que o
representa. Nesse sentido, mostramos como a (im)polidez e a violncia verbal,
em consonncia com Culpeper (2008), por meio de ironia, palavres, xingamentos
e ameaa, so utilizadas, nesse contexto polmico, como estratgias
argumentativas e lingusticas, diante de um Terceiro.
Dito
isso, analisando a materialidade lingustica de Eju Orendive[33],
possvel detectar discursos relacionados a religies crists: [...] Sempre
peo a Deus / Que ilumine o seu caminho / E o meu caminho; ao
racismo: [...] Voc no consegue me olhar / E se me olha no consegue me ver /
[...] Aquele boy passou por mim / Me olhando diferente; violncia: [...]
Por que ns matamos e morremos? / Em cima desse fato a gente canta / ndio e
ndio se matando / Os brancos dando risada; a um desejo por mudana e por
equidade: [...] Vamos mostrar para os brancos / Que no h diferena e podemos
ser iguais; e ao rap como experincia artstica de resistncia: Aqui o
meu rap no acabou / Aqui o meu rap est apenas comeando / Eu
fao por amor / Escute, faz favor.
Os
comentrios que so aqui analisados foram publicados h 5 anos. Para desvelar
como a modalidade argumentativa polmica sobre eles se desdobra, utilizamos prints
da tela do Youtube, e, por questes ticas da pesquisa, omitimos a
identidade dos usurios. O comentrio abaixo recebeu 17 likes, nenhum dislike
e 56 respostas:
Print
de Tela 1 (Excerto 1)
Fonte: Youtube, 2020.
A partir de ento,
mostramos como os usurios materializam suas opinies caminhando para um
cenrio de dicotomizao e de polarizao, ou seja, para uma situao em que os
pontos de vista se excluem e apontam para um eu diante de um ns. Dessa
forma, para iniciar a anlise, apontamos como o posicionamento do Proponente,
aqui, tambm chamado de Usurio 1, construdo. Traando esse caminho, a
partir do comentrio ndios, querendo
sempre mais terras demarcadas para viver como pessoas que no so ndios. Faz
um rap com esse tema bomba, fica evidente que o Usurio 1 se posiciona,
explicitamente, contra uma das questes centrais para os povos indgenas, que
a demarcao. Nesse sentido, ao afirmar que os indgenas querem terras para viver como pessoas que no so ndios,
o Usurio 1 desvela que sua opinio, extremamente racista, est atrelada a uma
imagem cristalizada, estereotipada, acerca dessas identidades e, dessa forma,
ele desconsidera as trajetrias de violncia outras que levaram, quase sempre
de forma compulsria, as sociedades e os povos indgenas s suas formas de vida
atuais (NASCIMENTO, 2018, p. 1421).
As primeiras respostas,
direcionadas ao Usurio 1 j confirmam, por sua vez, a insurgncia de uma
situao de oposio, ou seja, de dicotomizao, caracterstica imprescindvel,
de acordo com Amossy (2017), para a modalidade argumentativa polmica. A
dicotomizao, aqui, por sua vez, aparece atrelada desqualificao do
discurso e da figura do outro, por meio da (im)polidez ou violncia verbal,
como mostramos a seguir, a partir do Excerto 2.
Print
de Tela 2 (Excerto 2)
Fonte: Youtube, 2020
Na primeira resposta, fica caladinho, o conflito comea a
ser delineado por meio da desqualificao, caracterstica tambm essencial para
a polmica de acordo com Amossy (2017), direcionada ao Usurio 1 e ao seu
argumento. O fato de o Usurio 1 ter respondido no to afim mostra, no entanto, que ele mantm a inteno de
no aderir ao posicionamento do outro e, dessa forma, a dicotomizao, ou seja,
a presena de ideias antitticas, comea a se constituir. Na resposta seguinte,
a desqualificao delineada pela (im)polidez, a partir de estratgias
lingusticas, ou seja, a partir das escolhas lexicais pelos termos babaca e otrio, por parte do Usurio 3, que imprimem interao um
carter violento. Nesse momento, cabe aqui ressaltar que a (im)polidez verbal
uma estratgia utilizada pelo locutor para angariar a adeso do auditrio, no
entanto, ela no obrigatria para a qualificao de dada modalidade
argumentativa como polmica (CULPEPER, 2011; AMOSSY, 2017). Esse movimento de
adeso, porm, pode ser, inicialmente, desvelado a partir dos likes que
a resposta recebeu, sendo que 19 usurios clicaram nessa opo. Ademais,
considerando o que j foi exposto acerca da interao, possvel observar a
transparncia de uma situao polarizada, uma vez que o Usurio 1 compe o
campo Proponente, pois, diante dos discursos que circulam no vdeo, ele expe
sua tese e os Usurio 2 e Usurio 3 compe o campo Oponente, pois responderam
ao Usurio 1, apresentando uma posio contrria (PLANTIN, 2008).
At esse momento, no entanto,
o posicionamento do Oponente fora demonstrado de modo implcito por meio da
desqualificao materializada em violncia verbal. A tese oposta, que se apoia
no fato de as terras indgenas serem deles um direito adquirido, comea a ser,
efetivamente, discursivamente construda, a partir dos comentrios a seguir:
Print
de Tela 3 (Excerto 3)
Fonte: Youtube, 2020.
No excerto 3, o Usurio
4, do campo Oponente, inicia a construo de uma tese contrria do Usurio 1,
ao apontar que a demarcao um ato de reparao histrica, uma vez que os
povos indgenas so os donos originrios dessas terras (A terra deles por direitos! Eles estavam
aqui antes). O Usurio 1, por sua vez, destaca que a defesa de uma
posio se d em funo da falta de informao, assim, desqualificando e
descreditando a tese oposta (O que
mais chama a ateno a falta de informao dos que me criticam porque falei a
verdade). Nesse momento, ao afirmar que as ONGs gringas se filiam luta pela
demarcao, porque tm interesses econmicos relacionados explorao das
terras indgenas, ele lana mo de um discurso alinhado ao discurso da extrema
direita, embasado em fake news, que comeava a se inflamar pelo pas (As demarcaes esto criando um outro pas
dentro do Brasil, comandado por ONGs gringas que s querem explorar nosso pas).
Esses comentrios foram realizados h 5 anos, em 2015, ano em que o pedido de impeachment
da presidente Dilma Rouseff, filiada ao PT (Partido dos Trabalhadores),
partido considerado de esquerda/centro-esquerda, foi acolhido pela Cmara dos
Deputados. A partir de ento, como assinalado por Amossy (2017), possvel
perceber como a polmica nos revela fatos sobre o contexto scio-histrico de
um momento especfico em dado espao fsico.
O confronto direita vs.
esquerda, tambm, veio superfcie nesse espao discursivo, como possvel
perceber nos comentrios a seguir:
Print
de Tela 4 (Excerto 4)
Fonte: Youtube, 2020
No Excerto 4, os Usurio
1 e Usurio 6 se posicionam imprimindo descrdito opinio alheia, sendo que,
para tanto, se utilizam do recurso argumentativo da desqualificao que, nesse
caso, adquire as faces da (im)polidez e agressividade verbal que se materializa
por meio dos recursos lingusticos do palavro e da ironia. O Usurio 6, do
campo Oponente, na tentativa desqualificar o Usurio 1, chama-o de cria bolsonarista, dando a entender
que, de acordo com sua perspectiva, ser esse um motivo de desdm (Perder tempo com cria bolsonarista? Nem
fodendo). Aqui, a opo pelo recurso lingustico do palavro (nem fodendo)
imprime o tom de (im)polidez comunicao.
O Usurio 1, em
resposta, elabora um argumento, debruando-se no recurso da ironia, tambm
muito empregado pela direita conservadora, que diz respeito ao fato de as
pessoas de esquerda serem contraditrias por fazerem o uso da tecnologia (Falou o usurio de internet que tem conta no
Google e falam mal dos capitalistas...). O raciocnio, por eles
utilizado, de que as pessoas de esquerda so socialistas e no devem usufruir
da tecnologia que uma ferramenta criada pelo capitalismo. Isto posto, o
Usurio 7, do campo Oponente, surge no espao discursivo e utiliza como estratgia
argumentativa a desqualificao da tese adversria por meio apresentao de
fontes externas, apresentando um link do site Pragmatismo
Poltico. Nesse caso, a ironia d o tom de (im)polidez e evidencia que essa
interao no pacfica, mas, sim, agressiva, intolerante. Um no quer
convencer o outro. Os interactantes virtuais buscam vencer uma batalha,
diante de um Terceiro.
Print
de Tela 5 (Excerto 5)
Fonte: Youtube, 2020.
No excerto 5, possvel
observar mais uma vez a desqualificao materializada em (im)polidez em ao. O
Usurio 8, no incio de sua exposio, se refere ao seu opositor chamando-o de
ancefalo e, dessa forma,
alm de atingir o outro, ele atinge tambm a tese adversria, dando a entender
que somente uma pessoa sem crebro defenderia esse posicionamento. O Usurio 1,
em resposta, caminha pelas mesmas trilhas e desqualifica a imagem do Oponente
ao se expressar de maneira (im)polida e agressiva, utilizando uma expresso
pejorativa: burro ignorante de merda.
Ademais, ainda nessa seara, ele acusa o Oponente de se esconder por trs de um
perfil fake. Dito isso, ele faz o uso
da estratgia da correo gramatical/ortogrfica para desqualificar a tese
oposta e, para endossar o descrdito, ele finaliza a resposta fazendo uma ameaa
velada ao adversrio (O correto
acfalo seu burro ignorante de merda, fake de araque que nem coragem de colocar
o nome tem! [...] Um nick de merda desses... Onde vc mora? Quem sabe eu possa
ter a oportunidade de te mostrar minha mao macia).
O Usurio 8, diante
desse cenrio de impolidez lingustica e ameaa, revela que a violncia verbal
inerente a pessoas fracas que precisam atacar as outras, diante da escassez
de argumentos. (Tpico Perde o
argumento, apela para a fraqueza da ameaa. Mostra bem a que veio. Fraco).
Isto posto, o Usurio 1, irredutvel diante de seu posicionamento, se empenha
mais uma vez em desqualificar o usurio por meio de palavras com sentido
pejorativo e palavro como burro
e merdinha e da expresso macho da internet.
A partir de ento,
possvel perceber que os dois grupos polarizados – de um lado, aqueles
que legitimam o rap indgena como uma arte de resistncia, os
considerados de esquerda, e, do outro, os usurios de direita, que, por meio de
discursos preconceituosos e baseados em esteretipos, deslegitimam os direitos
desses povos – se empenham na construo de argumentos opostos,
interpelados por (im)polidez lingustica, aqui, materializada em palavres,
ironias e ameaa, porm no chegam a um consenso, pois a preferncia por esses
recursos tem como alvo a adeso do auditrio.
Consideraes finais
A modalidade polmica,
proposta por Amossy (2017), se caracteriza pela presena da dicotomizao, da
polarizao e da desqualificao, diante de uma situao conflitual de debate.
Nessa situao, a exposio de argumentos e de contra argumentos, por parte dos
interactantes, no tem como objetivo final um acordo, mas, sim, a adeso de um
Terceiro, ou seja, a adeso de um auditrio (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).
A partir da materialidade lingustica analisada, ou seja, do corpus em
questo, percebemos que os participantes dessa interao, na construo de seus
posicionamentos, diante de um Terceiro, lanam mo de estratgias
argumentativas e lingusticas como a desqualificao por meio da (im)polidez ou
da agressividade verbal, que ganham forma por meio de palavres, xingamentos,
ironia e ameaa, como tentamos mostrar na anlise apresentada.
Tendo em vista as
caractersticas da modalidade argumentativa polmica, Cunha (2019, p. 7)
ressalta que, nesse caso, o comportamento violento ou impolido exerce funes
importantes, no devendo ser entendido como uma degenerescncia da interao ou
como uma ruptura irracional de acordos, contratos ou quadros que subjazem
interao (COSER, 1982; LOCHER; BOUSFIELD, 2008). Ademais, para Cabral e Lima
(2017), a violncia constitui uma estratgia eficaz quando a inteno do
locutor desqualificar o interlocutor. Essas autoras destacam, apoiando-se em
Culpeper (2011), a importncia de palavras de sentido pejorativo, palavras de
baixo calo, entre outras aparecerem de forma marcada no discurso dos
interactantes. A violncia se d, portanto, pela linguagem, o que endossa o
posicionamento de Culpeper (2011) e de Cabral e Lima (2017) a respeito da
marcao lingustica da impolidez, principalmente, nas redes sociais, onde as
interaes se do, em maioria, por meio da linguagem verbal.
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[Recebido:
22 jul 2020 – Aceito: 19 set 2020]
Tamo
junto, Favela! A arte perifrica como um mtodo educacional
Were in together, Favela! Peripheral art as an
educational method
Ana Carolina de Souza Silva
https://orcid.org/0000-0001-5099-1058
Resumo: Neste trabalho,
apresentamos alguns resultados de uma pesquisa realizada no[34] Centro de Estudos
Lexicais e Terminolgicos (Centro LexTerm) da Universidade de Braslia. Tambm
divulgamos alguns relatos de experimentaes vivenciadas em instituies educacionais
e em casas de cultura do Distrito Federal. A primeira prtica trata de uma
experincia educacional e de carter mais cientfico-especulativo; a segunda
envolve, fundamentalmente, a poesia e a performance. Nosso objetivo , a partir
da esttica artstica das periferias, verificar estratgias eficazes que buscam
resgatar uma populao marginalizada e em condio de vulnerabilidade, alm de tornar acessveis contedos
fundamentais em busca de conscientizao e justia social. Dessa forma, constatamos
que, mesmo em condio de subalternidade, o povo perifrico no
passivo, uma vez que rejeita os saberes do opressor, assim como resgata e forja
saberes prprios. Pelo exposto, podemos observar a importncia de trabalhar a
arte com narrativas e linguagem que contemplem a realidade de falas
perifricas.
Palavras-chave: Periferia; Linguagem;
Arte; Poltica; Educao.
Abstract: In this work, we
present some results of a research carried out at the Center for Lexical and
Terminological Studies (LexTerm Center) of the University of Braslia. We also
publish some reports of experiments experienced in educational institutions and
in cultural houses in the Federal District. The first practice deals with an
educational experience and has a more scientific-speculative character; the
second fundamentally involves poetry and performance. Our objective is, based
on the artistic aesthetics of the peripheries, to verify effective strategies
that seek to rescue a marginalized and vulnerable population, in addition to
making fundamental content accessible in search of awareness and social
justice. Thus, we find that, even in a condition of subordination, the
peripheral people are not passive, since they reject the knowledge of the
oppressor, as well as rescue and forge their own knowledge. From the above, we
can observe the importance of working art with narratives and language that
contemplate the reality of peripheral speech.
Keywords: Periphery; Language; Art; Politics; Education.
Consideraes iniciais
Minha gerao av
comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo de novo (BISPO DOS SANTOS,
2019, p. 27).
Dona Julita, minha v, nascida no serto da Ema,
no municpio de Pianc (PB), uma mulher sisuda de 93 anos. Ela casou-se aos 18 anos para poder sair de
casa. Minha bisa, Aurora, foi uma mulher abandonada pelo biso em 1983. Essas
mulheres muito tm a contar, mas trarei foco especial a Dona Julita, pois
minha maior inspirao nessa trajetria educacional, acadmica, poltica,
artstica, ativista e existencial.
Vov, a mando de bisa Aurora, teve de abandonar
os estudos logo cedo para poder cuidar dos irmos mais novos. Mas no s. As
mozinhas pequenas que sonhavam decodificar as letrinhas tiveram que catar
bolas de algodo para garantir a subsistncia da famlia. Hoje, vov conta essa
histria com muito rancor e lgrimas nos olhos. Era 1967 quando ela e o v Joo chegam ao Distrito Federal – depois
de tentar a vida em So Paulo − e, achando espao para existir na capital,
se juntam a tantas e tantos outras (os) Severinas (os) nas vilas operacionais
em busca do sustento. Foi sustentao capitalizada. Vov limpou casas e vov
ergueu muros.
A maioria dos
trabalhadores optou por continuar na regio, mesmo que o plano fosse de que
todos retornassem aos seus estados aps a construo de Braslia. Nas vilas
operacionais, um novo termo foi criado para designar esses trabalhadores:
candangos. Segundo Tavares (2009), essa terminologia de natureza pejorativa. O
termo candango africano (quimbundo[35]);
ele foi usado pelos portugueses para se referir aos negros no perodo colonial.
No contexto da construo de Braslia, uma das hipteses levantadas por
Tavares, a partir de sua investigao, a de que o termo fora inspirado no
nome de um cachorro que habitava o Palcio do Catetinho. Tendo Kubitschek
sabido disso, chamava os operrios – em especial os nordestinos –
de tal forma. Outra hiptese a de que o termo operrio era designado aos
trabalhadores de maior prestgio (como arquitetos e engenheiros) e candango
mo de obra explorada nas jornadas de trabalho (TAVARES, 2009).
Depois da construo, nordestinas (os), mineiras
(os) e goianas (os) foram erradicados do lar a partir da campanha da senhora
Vera Prates[36]
e realocados a cerca de 30km de distncia do centro. Como diria o rapper X, a Ceilndia resultado de
sangue, suor e lgrimas[37];
essa fala confirma a dificuldade dos moradores em se estabelecerem na Regio Administrativa
– doravante RA. Isso ocorre no somente por serem despejados, contra a
prpria vontade, de seus lares que ficavam prximos a Braslia, mas tambm por
terem diversas limitaes que impediam sua dignidade enquanto pessoas. A luta
dos candangos que construram a capital foi em prol da garantia de um pedao
de cho, como afirma o cantor X.
Pau que nasce torno, nunca se endireita, o
que dizem. Com o destino manco, vov seguia sua travessia s cegas. Como
possvel uma pessoa analfabeta sobreviver diante de uma cidade urbanizada,
diante de uma capital nacional, diante de uma complexa burrocracia? Sem ao menos assinar o prprio nome?
Dos
destinos que a vida tem, eu, calanga, nasci no cerrado. Vejo a histria de Dona
Julita como o ponto inicial para mostrar que pau que nasce torno pode ser
modificado e que cada passo dessa peregrina foi essencial para construir uma
narrativa diferenciada. No se trata da regra, mas da exceo. No entanto,
foram necessrias apenas duas geraes frente das de Dona Julita para que o
pau fosse forjado em caneta. E caneta ativa.
Comunidade e polticas autnomas
Vou
aprender a ler pra ensinar meus camaradas
(MENDES, 2005).
Dona Julita e Seu Joo chegaram ao Distrito
Federal com seus cinco filhos ainda pequenos. Eles estavam em um territrio
desconhecido e diante de uma complexa configurao de culturas. O natural
que, a tudo que nos parea estranho, haja repulso. Mas, mesmo diante da
misria comum a todos, estava tambm um forte instinto de sobrevivncia entre
esses seres gregrios.
Vivemos
resqucios da colonizao. Uma das estratgias de dominao est em controlar e
distribuir de forma desigual os direitos bsicos. gua, alimentao, sade,
lazer, transporte e educao so apenas alguns dos direitos garantidos a qualquer
cidado em territrio nacional, mas essa garantia torna-se ironia quando
observamos a realidade. Como bem afirma a poeta Meimei Bastos (2017),
mas, mais ensino mdio pra qu?
se no fundamental os menor j to se
perdendo
na falta do professor.
o corre na esquina
o plano de extermnio,
manuteno da opresso
E como as comunidades sobrevivem diante da
negligncia do Estado? Podemos pensar na Ceilndia e na campanha de erradicao
que ocorreu em 1970. Ao chegarem ao novo territrio, no havia sequer gua
encanada disponvel para a comunidade, de forma que as famlias recorriam a
poos e nascentes, tendo de caminhar alguns quilmetros carregando baldes de
gua na cabea. A Caixa dgua, monumento da cidade, um marco histrico para
a RA, pois foi sinalizada como um direito cidadania.
A nossa sociedade no igualitria. Os direitos
so escolhidos a alguns e pincelados nos jogos de privilgios. Como afirma a
intelectual Sueli Carneiro (2005), essa estrutura social hierarquizada
baseada em parmetros raciais e de classe. Nessa conjuntura, negar a educao
aos marginalizados o trato de manuteno das desigualdades. A educao a
chave de acesso a cidadania, a igualdade, ao mercado de trabalho. Esse plano de
excluses um plano genocida.
Vov sobreviveu,
mame tambm, assim como tantas e tantos outros que no tiveram o direito de
estudar. Mame saiu precocemente da escola para poder ajudar financeiramente em
casa. Essa histria plural. A maioria na Ceilndia (34,1%) tem o primeiro
grau incompleto. Estou na exceo. Se o desejo foi de mudar a histria desse
ciclo peregrino, ele no foi consciente, mas, por ironia ou no, formei-me
professora. Pensava eu, desde o trabalho de concluso de curso da graduao,
desde a produo de minhas poesias para publicao, em cortar o problema pela
raiz. E, nessa constituio, compreendo-me comunicadora. Arte-educadora. Gri.
na concluso
de curso que decido trabalhar com um grupo pouco explorado no Instituto de
Letras da Universidade de Braslia: os quilombos. Mas no relatava os quilombos
rurais, tradicionalmente conhecidos pelas prticas ancestrais, a cultura de
subsistncia e o modo alternativo de viver uma economia em comunidade. Tratava
do quilombo em um espao urbano, com maioria negra vivendo, tambm, a partir do
esprito de comunidade. Esse territrio chamado favela, periferia, quebrada,
gueto. Nesse nterim, eu escolhi meu quilombo, a Ceilndia.
Chamar a
periferia de quilombo resgatar uma simbologia de resistncia e luta. Nesses
espaos, alguns dispositivos so utilizados a fim de garantir a resistncia e
sobrevivncia diante da condio de despejados. O que na periferia representa
fortemente essa luta a cultura Hip Hop[38].
Para nossa pesquisa, focamos em um elemento: o rap. Ao longo da investigao,
percebia que os cantores traziam analogias da Ceilndia enquanto um espao de
resistncia, tendo como referncia o quilombo. Esse aquilombamento ocorre quando
a periferia se identifica como um corpo negro escravizado em busca de
libertao. A exemplo, vejamos a letra do grupo ceilandense Sobrevivente de
Rua:
Pois
somos um desde a Revolta dos Mals
A unio
do povo em um povo s
Quando
existir o que vai reduzir o opressor a p
Um salve
a todos os levantes, insurgentes, populares
Ns
somos um desde o Quilombo dos Palmares[39]
Esse material
precioso foi utilizado como mtodo de educao lingustica em minha experincia
acadmica. Escolhi uma escola[40]
de Ensino Fundamental II para pensar o contexto urbano de Ceilndia em uma
perspectiva quilombista[41],
uma vez que essa tomada de conscincia contribui para apropriao do termo
dentro de uma nova concepo, uma transformao na lngua. Isso porque, com a
transformao lingustica, h expressamente uma modificao nas prticas e
cultura do povo. Levar materiais como letras de rap que valorizam a
cultura, os saberes, a realidade e a particularidade lingustica de uma
comunidade, ento, contribui para a conscientizao e emancipao de um povo.
Quando os
saberes de um povo so negados, desmoralizados e inferiorizados, culturas so
mortas. Em contraposio, quem est no lugar de dominao tem seus saberes
supervalorizados, e quem quer que queira sobreviver diante do caos social deve
seguir as regras de quem posto como senhor. Vov no estudou, como
consequncia, muito pelejou. Mame no concluiu a educao bsica e teve srias
consequncias no mercado de trabalho. Minha gerao (filha) precisou de cada
passo das ancestrais para segurar um diploma de educao superior. Muito foi
superado, mas impossvel seguir essa trajetria sozinha.
A noo de
comunidade dentro das favelas faz com que ns, os moradores, a partir do que
temos, contribuamos uns com os outros. Seja o po, uma roupa em desuso, um
dinheirinho para a passagem, um conhecimento e ombro amigo, essa dana coletiva
fundamental para a existncia de nossos territrios marginalizados. O que eu
tinha em mos era o conhecimento formal, uma veia artstica latejante e a
necessidade de distribuir a conscincia pelas esquinas de meu quilombo.
Felizmente, na Ceilndia, a cultura pulsante. Espaos como o Jovem de
Expresso, a Casa Akotirene e o Sarau VA so ambientes que disponibilizam
atividades culturais para nossa comunidade. Em todos esses locais, h o momento
do palco aberto, ocasio em que o microfone e o palco esto disponveis para
que pessoas compartilhem sua arte, seja ela a poesia, a msica, a dana, ou
mesmo uma fala de conscincia.
Foi no palco
aberto que permiti que minha arte fosse publicada. At ento, no me entendia
como artista, mas era bom ver a reao das pessoas ao ouvirem minha palavra
que, a princpio, muito tmida, queria dizer algo. Muitos artistas relatam que
a oportunidade de compartilhar sua arte cura. Comigo no foi diferente. Mas
quanto mais eu pegava no microfone, mais sentia o peso da responsabilidade em
minha fala. Como costumamos dizer, o microfone como uma arma. Com essa
conscincia, procurava e ainda procuro elaborar poesias e performances que
estejam de acordo com a justia social, que denunciem as mazelas cometidas,
sobretudo, contra a populao negra e que elevem nosso povo no sentido de
contribuir com nossa autoestima.
Dessa forma, a
poesia uma arma sutil de combate, um livro, conscincia. no microfone
que quebro o silncio de geraes. Digo o que as minhas de antes no puderam
dizer e desafio o opressor a refletir sobre seu lugar. O silncio adoecedor.
Ele imposto em qualquer relao hierarquizada, seja chefe e empregado,
professor e aluno, pobre e rico, branco e preto, homem e mulher. Quem quebra o silncio
cura a si e aos ouvintes que se identificam com o contedo da fala. Quanto mais
representativas forem a forma e contedo da fala, mais poltica e comunitria
se torna a ao do verso.
A linguagem perifrica, o contedo
desalienante. Portanto, busco relatar um mundo que no corresponda aos padres
capitalistas, patriarcais e cristos, para quebrar com a hegemonia colonial
europeia. preciso contar a histria por outra perspectiva. Chimamanda Ngozi
Adichie j nos chama a ateno do perigo da histria nica. Como ela afirma,
mostre um povo como uma coisa, uma coisa s, sem parar, e isso que esse povo
se torna (ADICHIE, 2009, p. 12).
A histria
do Brasil contada de forma que o povo pindormico[42] e o povo africano so
carregados de preconceitos. Para Adichie (2009), os esteretipos so
problemticos por serem concepes incompletas que tomam nossa dignidade, nossa
humanidade. Os rtulos que carregamos so de selvagens, inferiores,
desumanizados, bestiais, ignorantes, coitados, tutelados, sditos. Quanto a
isso, j nos chama a ateno o mestre quilombola Antnio Bispo dos Santos:
No plano individual, as pessoas afro-pindormicas foram e continuam
sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas,
intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como feias,
sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem costumes e
culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva se constitui em
dilogo com as identidades individuais e respectivamente pelos seus valores, no
preciso muita genialidade para compreender como as identidades coletivas
desses povos foram historicamente atacadas (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 37).
O argumento do colonizador, ao atacar a cultura
de povos afro-pindormicos, o de que ramos (e ainda somos) um povo sem
histria, sem civilizao. preciso questionar quo equivocado o conceito de
civilizao pode ser. Ser mesmo que uma relao de explorao com a terra e
seus recursos naturais, assim como uma relao violenta com povos e animais que
habitam a terra pode ser constituda como civilizao? O desequilbrio na
produo e no consumo configura civilizao? Escrever configura civilizao?
Ao que diz respeito histria, s tem direito
sua quem tem o domnio da escrita. No senso comum, a histria do Brasil comea
em 1500, quando o colonizador comea a escrev-la com uma tica vampiresca e
distorcida. A escrita ser o saber que legitima a concepo de desenvolvimento.
Por traz desse quiproqu est uma estratgia perfeita que autoriza a dominao
de uns sobre outros. No basta que os saberes legtimos sejam brancos,
masculinos e cristos (ou seja, eurocentrados), tambm devem ser escritos? O
grafocentrismo nada mais do que uma poltica genocida de lnguas e culturas
de povos que no correspondem ao povo europeu.
A
linguagem que utilizamos na periferia diversa. Gosto de como a intelectual
Llia Gonzalez a categorizava, colocando-a como o pretogus, que esse
portugus da gente, sincretizado, modificado, a marca de africanizao do portugus falado no
Brasil (GONZALEZ, 1988, p. 70). O signo latino, mas a essncia carregada
de pindoramas e africanidades. Essa linguagem o nosso pretogus e nos
representa. Ela est viva. Concluo este tpico com a sabedoria de Bispo, quando
diz:
Muitos so os autores que escreveram sobre a trajetria dos povos afro-pindormicos
e sobre a sua importncia para a histria do Brasil. Portanto, o que vamos
falar pode ser encontrado em vrias bibliografias. Poderamos aqui fazer
referncias a vrias delas, mas no ser necessrio, porque a trajetria desses
povos transpe qualquer texto cientfico ou literrio. Ela visvel e palpvel
materialmente e pode ser sentida imaterialmente, tanto quando olhamos para o
passado e fazemos referncia aos nossos ancestrais, como hoje quando visitamos
as comunidades da atualidade e dialogamos com as suas organizaes e
manifestaes culturais (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 38).
A arte perifrica engajada
Misso cumprida ento
palmas pra nis mesmo
Periferia a palmas pra nis mesmo
A todos os maloqueiros palmas pra nis mesmo[43].
A cano acima
do grupo de rap Viela 17. Trata-se de rap da Ceilndia, rap
de quebrada, rap que salva vidas. O rap, o funk, o samba,
so sons que ecoam em periferias como a Ceilndia; so educadores de um povo.
Como diriam Cidinha e Doca, O povo tem a fora, precisa descobrir / Se eles
no fazem nada, faremos tudo daqui[44].
Mas qual a importncia de considerar tal discurso dentro das periferias?
possvel que essas narrativas contribuam na educao formal?
A arte da
periferia engajada. A tomada de conscincia dos moradores vivida na prtica
ao sentirmos, no cotidiano, a ausncia do Estado. A representatividade nos
espaos de poder mnima, se pensarmos em termos estatsticos. Maioria negros,
maioria mulheres, maioria pobres, e essa maioria continua a ocupar os espaos
minorizados. No entanto, como j mencionado anteriormente, a periferia se
mantm pela coletividade e esprito de luta. Como bem j declarava o professor
Abdias do Nascimento:
A continuidade
dessa conscincia de luta poltico-social se estende por todos os Estados onde
existe significativa populao de origem africana. O modelo quilombista vem
atuando como ideia-fora, energia que inspira modelos de organizao dinmica
desde o sculo XV. Nessa dinmica quase sempre heroica, o quilombismo est em
constante reatualizao, atendendo exigncias do tempo histrico e situaes do
meio geogrfico (NASCIMENTO, 2019, p. 282).
Um exemplo
muito evidente disso a escritora negra Carolina Maria de Jesus e suas
denncias dentro de um minsculo quarto de despejo. Os quartos de despejo so
mltiplos, as denncias mais ainda, plurais e singulares, pois, como diria Gog,
periferia periferia em qualquer lugar[45].
Os males daqui so como os de l. Nas dores nos encontramos, traamos
estratgias e sobrevivemos. Tambm nos encontramos nos amores de sermos
verdadeiramente coletivos, sociveis.
Nas periferias
do Distrito Federal, h diversas vozes, sobretudo de mulheres negras, que so
muito inspiradoras. Essas vozes so estmulos para a luta de emancipao de um
grupo to marginalizado. Apesar dos recortes de cor e gnero, possvel crer
que, com o empoderamento da base, toda uma estrutura pode ser melhor
equilibrada. Isso porque o modelo triangular hierrquico social pressiona os
que esto no topo (homens brancos, hteros, catlicos, ricos) a ceder,
voluntariamente ou no, espao s (aos) que esto chegando. Estamos chegando e,
como diz a cano de BK, Rael, Emicida, Rincon Sapincia, Djonga e Mano Brown,
o cu o limite:
Melhor irem se acostumando
Vo ter que se adaptar
Os pretos com o din gastando
Sem se preocupar
E pra contrariar seus planos
Nas grades no vamos ficar
Unidos, se fortificando
Ei, quem vem l[46]
Consideramos
didtica essa arte que se manifesta como instrumento de luta e discurso
ideolgico: a arte dos ocultos. Um bom exemplo de missionria nas
periferias do Distrito Federal Meimei Bastos. Ela poeta, atriz e
arte-educadora, idealizadora do Slam[47]
Quebrada. O trabalho de Meimei se estende a todos os cantos da capital. Das
periferias aos espaos de poder, tive a oportunidade de acompanhar esse encargo
enquanto poeta em locais como o Imaginrio Cultural (Samambaia), o Complexo
Cultural (Samambaia), o CCBB (Plano Piloto), a Universidade de Braslia (Plano
Piloto) e o Jovem de Expresso (Ceilndia).
O Slam
Quebrada me deu a oportunidade de competir no campeonato nacional (Slam
BR) em dezembro de 2018. Essa foi uma porta aberta para que eu me lanasse enquanto
poeta e performer. Na disputa nacional, percebo que a multiplicidade discursiva
no Slam BR impressionante e o esprito de luta quase uma regra. A
maioria dos participantes so negros e negras de periferias de 18 estados
brasileiros. Vejo nesse evento uma forma de disseminar a literatura da quebrada
que ecoa em vozes desocultadas.
Esse movimento
poltico e autntico. A linguagem representativa e busca o reconhecimento,
a alteridade. Em meu trabalho enquanto poeta e arte-educadora, procuro levar
comigo mulheres como Meimei Bastos e Thabata Lorena, para citar alguns
exemplos. Abaixo, segue um trecho do poema de Meimei Bastos (2017, p. 19) que
utilizei no projeto Parada Sociocultural[48]:
aqui, no cumprimentar
ns olha nos i,
d bom dia pra tia,
pro menor na quina,
pra mina da padaria,
pro tio do verduro.
no tem bisu errado,
no tem de querer ser,
pois ns
j
Outro projeto o
qual tive a oportunidade de participar foi o bip – bRASLIA
iNSPIRA pOESIA[49]. Foram
selecionados poemas de artistas do/no Distrito Federal que falassem, em suas
narrativas, sobre como viver nessa regio; como resultado, foi publicada uma
antologia potica. Para alm da publicao, foram idealizados saraus para que
artistas e seus poemas fossem apresentadas (os) s escolas pblicas nas regies
administrativas Cruzeiro, Candangolndia e Ncleo Bandeirante. Paralelamente,
trabalhei como poeta e mestre de cerimnias, o que me deu a oportunidade de uma
interao mais ntima com as (os) alunas (os). Sempre que as (os) questionava
se gostavam de poesia, elas (es) diziam que no. Essa resposta automtica o
reflexo da ideologia que se tem de que poesia literatura de elite, difcil de
ser compreendida, chata, entre outros esteretipos. Mas bastava que eu
perguntasse se as (os) alunas (os) gostavam de rap e a grande maioria
levantava as mos em alegria.
A palavra rap advm da sigla em ingls rhythm and poetry[50] (ritmo e poesia), ou seja, a poesia
est nos emaranhados do rap. Recursos como mtrica, rima e linguagem
figurada podem ser facilmente encontrados nas canes. A exemplo, a cantora e
compositora Thabata Lorena:
Eu no sou a tal, nem sou aquela
Sou mais uma menina que sobe a favela
S pago um pau pra ela
Minha ama de leite
Favela[51]
Enquanto
educadora, so essas as narrativas que considero primordiais no processo de
ensino e aprendizagem nas periferias. Dentro da cultura das quebradas, a lngua
carregada de particularidades e as expresses utilizadas pelos falantes so,
cotidianamente, aceitas nos contextos de fala.
A forma altamente
violenta e impositiva do colonizador, ao chegar nesse territrio nacional,
desconsiderou todo o saber ancestral e cultural de povos pindormicos e
africanos. Essas marcas se apresentam na contemporaneidade. Afro-pindormicos
so sempre colocados margem e so inferiorizados dentro das relaes
verticais na sociedade. Sobretudo, s mulheres negras, foram atribudas as
funes maternas. Somos as mes de toda uma populao, cuidamos de nossos
filhos e dos filhos alheios nas casas de luxo. Temos um papel primordial de
base e, por sermos base, somos desqualificadas.
Eu, mulher
negra e perifrica, me, procuro quebrar esse ciclo. De vov analfabeta, de me
domstica: filha educadora. Eu educo a favela com poesia e denncia. De
qualquer forma, reconheo que trabalhar com jovens de escola pblica de
periferia desafiador e extremamente delicado. Reflito sobre os dados da
Infopen[52]
divulgados em 2014, que destacam que o perfil da populao carcerria
constitudo por 31% de cativos entre 18 e 24 anos, sendo 67% de cor negra; e
53% tm o Ensino Fundamental incompleto. A maioria dos crimes cometidos por
trfico (27%) e roubo (21%), sendo o tempo total das penas da populao
prisional condenada entre 4 e 8 anos (26% dos casos). Por isso, em meu processo
de concluso na graduao, a escolha por uma instituio de Ensino Fundamental
na Ceilndia no foi ocasional.
A escola
selecionada fez parte de meu histrico escolar. Enquanto ceilandense e negra,
pude vivenciar prticas de excluso na instituio quando cursara o Ensino
Fundamental II. Compreender a experincia vivida nessa pesquisa, no caso,
dependeu da combinao com experincias passadas. Diante da profisso que tive
possibilidades de exercer, posso perceber a responsabilidade social que
carrego. Voltar Ceilndia, agora em condio de professora, retribuir todo
o conhecimento adquirido em minha caminhada.
Observo o
material didtico disponvel, que decepcionante. A gramtica tradicional
ainda a mais utilizada na instituio. Essa gramtica de carter preconceituoso
em relao s variantes que fogem do padro do portugus e tem a necessidade de
estabelecer parmetros em busca de um uso idealizado da lngua, ocorrncia
arcaica que se inicia desde os gregos antigos (MARTELOTTA, 2016, p. 45).
Esse atributo se
reflete at hoje em nossa lngua. Sempre que se aponta um portugus errado
por estar fora dos padres de um portugus idealizado e elitizado, chamado
portugus culto. Se observarmos mais criticamente, averiguvel que a questo
da erudio da lngua est ligada s relaes de poder. Efetivamente as classes
altas so as que tm mais contato com estruturas corretas (MARTELOTTA, 2016,
p. 47) e, portanto, so tambm as classes com mais oportunidades e privilgios.
Para
compreender o funcionamento da lngua, preciso assimil-la ao contexto com o
todo (MARTELOTTA, 2016, p. 63). Trata-se de uma anlise mais aprofundada que a
gramtica faz; trata-se da prxis
e, por isso, considero a linguagem perifrica essencial e significativa nessa
pesquisa.
E onde esto,
nas escolas, materiais didticos que se relacionam com a realidade dos alunos?
Onde esto os materiais que acompanham o movimento, a mudana, a dinmica na
linguagem deles? Onde esto, ao menos, as prticas que contemplam o universo
dos jovens perifricos?
Professor, me refiro a voc: se parar para repensar na
sala de aula, perceber o quo desprendido est o material disponibilizado para
os aprendizes. E no preciso refletir muito profundamente para compreender
que suas prticas tambm esto. vulgar e desumano culpar apenas a instituio
de ensino, assim como o material didtico. O juzo comea olhando para si
mesmo, no quo compromissado socialmente est ao entrar em uma sala de aula para
comear esse culto, que o ensinamento.
Consideraes
finais
a real que eles tm
medo
do formigueiro se
atiar,
da gente se armar de
conhecimento.
eles to ligado que
quando ns
respirar ns,
eles morrem sem ar
(BASTOS, 2017, p. 47).
A voz da periferia som que ecoa e cura. Ns
falamos, e a tradio da oralidade vem dos de antes, de ontem. Dandara falou,
Carolina Maria de Jesus falou, minha av falou. Hoje eu falo. As prximas
falaro. sentando no cho e ouvindo que aprendemos. A minha arte a palavra.
Atravs dela me curo, curo os de antes, curo quem vir. E a partir dessa cura,
procuro ser uma referncia de ancestral curada.
O corpo que se move na favela um corpo
poltico. Mover-se um ato poltico em si. Se pensarmos sobre as estratgias
genocidas, quando nos movimentamos, estamos agindo contra a colonialidade
exterminadora. Cada corpo um arquivo, pois contm memria, contm histria,
contm narrativas.
Como a palavra por si s no d conta, a
performance vai ecoar na vibrao de cordas vocais. no grito, no rito, no
canto, nas louvaes. A performance mostrar o potencial de toda essa
oralidade que carregamos em nossa memria, em nosso DNA, em nossos costumes que
o colonizador foi incapaz de exterminar. Se estamos vivos, algo deve ser
aprendido conosco. E o lixo fala, e numa boa, fala muito bem[53]. Todo mundo se entende, e
com isso estamos sobrevivendo, vivendo, mantendo nossa histria.
Como diriam Bernadino-Costa e Grosfoguel (2016),
mesmo em condio de subalternidade, no somos sujeitos passivos, uma vez que
podemos rejeitar os saberes do opressor, assim como resgatar e forjar nossos
prprios saberes. Que busquemos, ns, os favelados, enaltecer nossos
conhecimentos, produzir e compartilhar saberes, elevar nossa autoestima.
Vov minha escola. Mame minha escola. Homens e mulheres
educadores que passaram em minha trajetria so minha escola. A terra minha
escola. A msica minha escola. A periferia minha escola. Nossa fala
ancestral, tem poder, objetivos e coletiva, orgnica[54].
Nosso saber vivo. Sigamos juntos. Subamos juntos. Tamo junto, favela!
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[Recebido: 23 jul 2020 – Aceito: 24 set
2020]
A pintura um silncio? Ou qual a voz da pintura?
Is a painting silence? Or whats the voice of a
painting?
Vanessa Tavares da Silva[55]
https://orcid.org/0000-0003-4943-6166
Resumo: Neste trabalho, examinaremos o processo
pictrico e a pintura a partir da perspectiva que relaciona literatura e
oralidade. Para tanto, apresentaremos os procedimentos do artista visual
brasileiro Eduardo Berliner em uma de suas pinturas, Leda e o Cisne, com a qual o artista retoma um dos mitos gregos. De
modo amplo, tomam-se os estudos da oralidade como o resgate de um ponto
fundamental do estabelecimento das relaes entre os seres e o mundo, que,
embora invisvel, vigente. Assim,
verificar-se-, por meio dos desvios estabelecidos nas anlises, os
procedimentos e a pintura de Berliner como locus
de vigncia de aspectos primrios da oralidade, assim como questes da
performance e do mito, trazendo tona mais uma via de compreenso da pintura,
sendo ela tambm possibilidade de espao de resistncia relao com o mundo
somente pela via da razo. Tomamos como base o pensamento de Walter Ong (1998),
Paul Zumthor (1993) e Michele Simonsen (1987), entre outros autores, cujas
vises nos auxiliaram na perspectiva de uma compreenso mais ampla sobre a
pintura e os procedimentos que a envolvem, dando-nos a perceber a presena da
oralidade, tambm nessa esfera, de modo a ampliar a apreenso sobre as relaes
entre a humanidade e o mundo.
Palavras-chave: Pintura; Oralidade; Desvio; Processo
criativo.
Abstract: We
will examine the pictorial process and painting relating literature and
orality. We will address the procedures of the Brazilian visual artist Eduardo
Berliner (1978) and one of his paintings, Leda
and the Swan (2015), in which the artist takes up one of the Greek myths.
Broadly speaking, the studies of orality are seen as the retrieval of a
fundamental feature in the establishment of relations between human beings and
the world, which, although invisible, is in force. Thus, through the deviations
established in the analyses, we will establish Berliner's procedures and
painting as the validity locus of primary aspects of orality, as well as issues
of performance and myth, bringing to light yet another way of understanding a
painting, which is also the possibility of a space of resistance to the
relationship with the world only through reason. We draw from the thoughts of
Walter Ong, Paul Zumthor and Michele Sominsen, among other authors, whose
visions have helped us build a broader understanding of painting and its
procedures, giving us insight into the presence of orality, also in this
sphere, in order to broaden our perception of the relationship between humanity
and the world.
Keywords:
Painting; Orality; Deviation; Creative process.
Introduo
Os objetos, hoje, objetam. No futuro, objetos e gestos revestir-se-o
porventura da dignidade perdida. A palavra amor, um pedao de po, a letra A,
deixaro assim de ser acidentes mortais da vida quotidiana. Dessacralizados,
voltaro a ser to decisivos como a mais nfima pincelada que o pintor realizou
no quadro. E cada uma destas pinceladas revelar a estrutura do mundo.
Ernesto Sousa
O que, no jogo
de tenso provocado por formas e cores, possvel ser ouvido? No presente
estudo, desenvolver-se- a tentativa de estabelecer e/ou reconhecer elementos
com os quais possamos compreender e apreender a produo pictrica do artista
brasileiro Eduardo Berliner na esfera do que as perguntas que aqui orbitam
permitem como possibilidade de resposta.
O que h como
pano de fundo, alm das deteces dos traos de oralidade, a compreenso ou o
desvelamento do papel da arte (seja ela literria ou pictrica) de superar os
achatamentos e simplificaes advindos do projeto moderno de civilizao, que
privilegia a razo como medida de compreenso e definio de mundo.
A partir da
pergunta feita por Ernesto Sousa, que intitula um de seus textos publicado em
1968, Oralidade, futuro da arte?, o autor lana, para o futuro, uma
perspectiva da totalidade das coisas, de ns mesmos e dos outros, na qual as
relaes no mais se dariam a partir de suas funcionalidades e essa
possibilidade residiria, possivelmente, na retomada daquilo que foi abandonado
ou simplesmente esquecido (SOUSA, 2011 p. 41-42). Foi a partir da pergunta do autor
que surgiram as duas indagaes que intitulam este texto num aparente paradoxo.
O prprio estudo se dar como possibilidade de resposta, ao evidenciar o
existente que no percebido pela via do visvel: a oralidade.
Eduardo Berliner e os pontos disparadores para a investigao
O artista tem
uma produo que passa a figurar no cenrio nacional e internacional desde
meados de 2008, ano da aquisio do Prmio CSI Marcantonio Vilaa. Depois
disso, foi convidado para expor na 29 Bienal Internacional de So Paulo, em
2010, e tem mantido uma produo constante, participando de importantes mostras
e exposies individuais e coletivas, dentro e fora do pas.
A perspectiva
adotada para o engendramento das questes levantadas se d, tambm, a partir do
carter processual, algo evidente na pintura do artista em questo. Embora o
carter processual seja inerente a toda e qualquer produo, no
necessariamente artstica, referimo-nos aqui sua evidncia como mais uma das
pistas que reiteram o sentido de determinadas obras. Num breve retrospecto,
notamos no Romantismo, que negava fatores como a racionalidade e a
representao, o aparecimento do carter processual e tomamos como exemplo as
pinturas de Turner (1775-1851). No Impressionismo, o carter processual passa a
ganhar mais evidncia e no nos faltam exemplos, como as pinturas de Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919) e Morisot (1841-1895). Seguimos nos
deparando com a evidncia da processualidade nas obras ao longo de outros
movimentos artsticos, assim como nas Vanguardas Artsticas Europeias do incio
do sculo XX e, do mesmo modo, seguimos com esta deteco para momentos
importantes como a Action Painting
norte-americana na dcada de 1950, movimento que nos direciona para a ideia de
performatividade como um dado do aspecto processual na pintura.
O ponto de
partida para este estudo envolve o que o prprio artista diz sobre seu processo
em vdeos recentes sobre sua produo. Neste ponto, estabeleceremos relaes
entre algumas de suas falas e aspectos da oralidade, advindos do pensamento de
Walter Ong e de Paul Zumthor. Em seguida, faremos o paralelo entre a pintura,
em linhas gerais, desde o processo e a evidncia da processualidade em sua
materialidade, at as possibilidades de fruio e a performatividade, segundo
Zumthor, estabelecendo a ideia de jogo como uma estrutura ampla. Por fim, a
partir da pintura Leda e o Cisne,
organizaremos, em princpio, uma leitura formal para, a partir dela, seguirmos
evidenciando, com mais amplitude, suas possibilidades de sentido.
Pintura como gnero: desvio
A pintura um silncio? O modo mais
comum e restrito de resposta, ou seja, a partir de um olhar meramente
funcional, seria: sim, a pintura no fala. Ela nasce como pintura, para ser
pintura e, portanto, atua nessa esfera da linguagem, a da visualidade. A essa
possibilidade de explicao, necessria a abertura da superfcie de
compreenso, sendo a pintura, tambm, algo que compe o mundo, faz parte do
campo gerador de sentidos numa dinmica que pode nos levar totalidade das
coisas, na qual os sentidos se interpenetram, so atravessados uns pelos outros
e se complementam. Neste estudo, ser restituda pintura a face que a
compreenso de mundo, apenas pela via da razo, abrevia.
Para tanto, a
ideia de desvio ser dada pela tomada de emprstimo da concepo de romance de
Bakhtin (1998) para ento encontrarmos na pintura de Berliner, por essa mesma
via, as marcas da oralidade primria a partir do pensamento de Walter Ong
(1998). Para Bakhtin: o romance o
nico gnero por se constituir, e ainda inacabado. [...]. A ossatura do romance
enquanto gnero ainda est longe de ser consolidada, e no podemos ainda prever
todas as suas possibilidades plsticas (BAKHTIN, 1998, p. 397). A ideia a de
nos atermos a um tipo de pintura qual essa definio caiba, salientando a
prematuridade de tom-la como definitiva, j que a presente pesquisa no toma
como base um amplo aspecto investigativo. Por ora, com base na extenso deste
estudo, a convergncia entre a concepo de romance de Bakhtin e uma possvel
definio pictrica, se dar a partir do que Nicolas Bourriaud indica como um
dos pontos de conquista da pintura moderna e que, na concepo do autor,
fundamental para a compreenso das relaes entre arte e vida na
contemporaneidade; segundo ele,
A
primeira luta da pintura moderna consistiu, evidentemente, em conquistar sua
autonomia expressiva, mas tal reivindicao no passava do preldio de uma luta
de morte contra a nova ideologia do trabalho: a arte moderna se d pelo
objetivo de constituir um espao dentro do qual o indivduo possa finalmente
manifestar a totalidade de sua experincia e inverter o processo desencadeado
pela produo industrial, a qual reduz o trabalho humano repetio de gestos
imutveis numa linha de montagem controlada por um cronmetro (BOURRIAUD, 2011,
p. 13).
O que nos leva a
compreender a pintura como espao de acontecimentos que no so previamente
calculados, como uma atividade no submetida a uma lgica decorrente de
operaes correlatas a outros tipos de trabalho e que, no limite, converge com
um modo de conceber a vida, ligado aos movimentos nela engendrados, prximo das
experincias vividas. neste ponto que se inicia a possibilidade de
deslocamento daquilo que Walter Ong evidencia como prprio do modo como se d a
formulao do conhecimento na cultura oral, pois
Na
ausncia de categorias analticas aperfeioadas, que dependem da escrita para
organizar o conhecimento distante da experincia vivida, as culturas orais
conceituam e verbalizam todo o seu conhecimento como uma referncia mais ou
menos prxima ao cotidiano da vida humana, assimilando o mundo estranho,
objetivo, interao imediata, conhecida de seres humanos (ONG, 1988, p. 53).
Esse aspecto
mais direto nos aproxima da concepo de totalidade, distanciando-nos de
designaes e, portanto, do modo, apenas,
funcional das coisas. Ainda assim, tudo pode funcionar, mas a diferena,
nesse sentido, reside na interao com a amplitude de possibilidades que ns,
os outros, as coisas e toda a sorte acontecimentos, portanto, oferecem
cotidianamente de modo direto e no previamente calculados. Num movimento de
maior amplitude, podemos nos reencontrar com a dignidade perdida, conforme
Souza (2011) aponta.
Silncio
No caso de Berliner a conscincia da intransponibilidade entre o
dizvel e o visvel (entre a compreenso oral e a coisa em si) que far que ele
busque outra sintaxe visual, cuja narrativa vai impregnar a imagem no mais
pela ideia da forma como frma, mas atravs da forma que se transmuta
constantemente pela metamorfose.
Marcio Doctors
Em um vdeo,
Eduardo Berliner fala sobre o tempo em seu processo de preparao para o
trabalho. Para ele, a pintura tem incio antes mesmo que algo passe a figurar
em suas telas, que, em geral, so de grandes dimenses. Nessa extenso de
tempo, o artista fala sobre o cessar gradativo dos dilogos internos e do rudo
do mundo, que passam a dar lugar ao processo como agente e, assim, segue na
constituio pictrica. Segundo o artista: a partir de um ponto o processo age como coautor; o processo conta uma
histria em paralelo, que no linear [...] uma pintura. Sobre parte
de seu repertrio, ele comenta: costumo
trabalhar coletando, registrando minhas percepes do mundo: coisas que eu
vejo, coisas que eu ouo[56].
Dado esse
estgio, o que se instaura em suas pinturas so elementos do mundo, os que o
artista coleta no transcorrer dos dias, assim como os que residem em sua
memria. A partir da movimentao processual e do silncio no ato criativo,
esses elementos se reorganizam na tela, seguindo a ordem constitutiva da
linguagem. Estabelecem-se, ento, novos
jogos de sentido.
As vozes
cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham o real; a
voz potica os rene num instante nico – o da performance –, to
cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma
presena fugidia mas total. [...]. A voz potica , ao mesmo tempo, profecia e
memria [...]. A memria, por sua vez, dupla: coletivamente, fonte de saber;
para o indivduo, aptido de esgot-la e enriquec-la. Dessas duas maneiras, a
voz potica memria (ZUMTHOR, 1993, p. 139).
Em comentrios
sobre seu processo de criao, notamos que a memria tambm um dos grandes
agentes e possvel observar o paralelo acerca do que Ong (1998, p. 50) nos
diz sobre o carter das formulaes nas tradies orais, j que
No h
nada para retroceder fora da mente, pois a manifestao oral desapareceu to
logo foi pronunciada. Por conseguinte, a mente deve avanar mais lentamente,
mantendo perto do foco de ateno muito daquilo com que j se deparou. A
redundncia, a repetio do j dito, mantm tanto o falante quanto o ouvinte na
pista certa.
Nesse sentido,
poder-se-ia pensar na pintura como um modo de fixar o aspecto fugidio da mente;
entretanto, trata-se de uma compreenso apressada. Embora estejamos falando
sobre aspectos processuais, ou seja, os que antecedem a imagem final,
possvel tambm compreender o carter indeterminado e incerto daquilo que se
apresenta na prpria pintura. Segundo Blanchot (1987, p. 84), Cada obra, cada
momento da obra, volta a pr tudo em questo, e aquele que deve apenas ater-se-lhe,
no se atm, portanto, a nada. Seja o que for que ele faa, a obra retira-o do
que ele faz e do que pode. Ou seja, uma pintura pode ser um tipo de
experincia diversa a cada vez que com ela nos defrontamos. Assim,
conectamo-nos com seu aspecto de totalidade, pois j no nos veramos mais, em
relao a ela, a partir de trajetos pr-definidos, tendo o aspecto fugidio como
uma constante, desde o que antecede o prprio processo, atua na processualidade
e se faz presente na obra finalizada.
Pintura e
performatividade
Como dito inicialmente, a processualidade passou
a figurar no campo dos sentidos e nos interessa pens-la como um aspecto que
guarda em si um dado performativo. De modo bastante elementar, pensaremos no
dado performativo como o conjunto dos gestos que geram determinada obra, aqui,
no caso, a pintura. Para tanto, tomaremos de emprstimo o sentido de
performance como jogo de Zumthor. Em
suas palavras: A performance jogo, no sentido mais grave, seno no mais
sacral, deste termo (ZUMTHOR, 1993, p. 240), e esta definio implica uma
estrutura de compreenso mais complexa, que abrange o conjunto de gestos ora
mencionados, perceptveis, tambm, a partir de uma visualidade.
Em A
letra e a Voz, livro
publicado em 1993, Zumthor apresenta questes relativas ao texto e
imagem, referindo-se s iluminuras, atestando a correspondncia e a
complementariedade entre as dimenses visuais e auditivas e, novamente, tomamos
tal perspectiva para vislumbrarmos as possibilidades relacionais com a pintura,
compreendendo aspectos da recepo na estrutura complexa de jogo mencionada
anteriormente:
O dilogo visualizado, por oposio ao
texto que constitui materialidade em seu lugar, volta-se para a ordem
sensorial. Restitui o olho as condies empricas, concretas, das percepes
naturais. O artista no dispe de meios para fazer escutar a voz; mas pelo
menos cita a intencionalidade naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de
sugerir ao ouvido a realidade sonora (ZUMTHOR, 1993, p. 125).
A respeito das pinturas no modo como hoje as
concebemos, Zumthor (1993, p. 125) afirma que a diferena de procedimentos
entre elas e as imagens medievais reside na ausncia da narrativa explcita.
Em outra passagem, o autor relaciona a pintura oralidade, retomando as
palavras de um trovador medieval:
A pintura – explica no sculo XIII
Richart de Fournival para justificar a ilustrao de seu Bestiaire damour – tem por virtude tornar presentes as
coisas comemoradas... como o faz a palavra pronunciada, no momento em que se
escuta; o texto de Richart claro e no faz referncia escritura, mas
somente percepo auditiva. No tringulo da expresso, a imagem tem sua parte
ligada com a voz. A imagem tambm s se comunica na performance (ZUMTHOR, 1993,
p. 127, grifos do autor).
Retomando a noo de desvio, seguimos com o
autor no caminho que sugere sua frase: A
imagem tambm s se comunica na performance, a partir de suas consideraes
em Performance, recepo e leitura, publicado em 2007, ao nos dizer sobre o olhar
versus ler:
O olhar no pra de escapar ao controle,
registra, sem distinguir sempre, os elementos de uma situao global, a cuja
percepo se associam estreitamente os outros sentidos. A vista direta gera assim uma semitica selvagem, cuja
eficcia provm mais da acumulao das interpretaes do que de sua justeza
intrnseca. O latim medieval designava pelo termo signatura o resultado dessa atividade do olho humano. Signatura implica que o olhar transforma
em signum o que ele percebeu. O
objeto dessa percepo speculum,
palavra-chave das culturas medievais: um reflexo emana disto e, como reflexo,
exige a interpretao (ZUMTHOR, 2007, p. 72, grifos do autor).
Embora descreva tal ciclo para falar do que se
perdeu em potncia na leitura de um texto simplesmente decodificando-o,
saltando a etapa do olhar e indo diretamente para a noo a que corresponde
aquele conjunto de caracteres, talvez seja possvel, ainda, verificar tal
circularidade diante de uma pintura, experienciando-a em sua completude.
A compreenso da arte, literria ou pictrica,
como evento, um acontecimento em meio vida que nos atravessa em sua
complexidade sinestsica, que nos recobra sobre as coisas em sua totalidade e no em suas finalidades, como apregoou
Ernesto Souza, parece ser inevitvel. Faz sentido, ento, recuperar a abertura
da definio bakhtiniana de romance, cujas razes se encontram no modo de vida
do medievo (BAKHTIN, 1998) para pensar a pintura, assim como as noes
zumthorianas medievalistas e pr-textuais, recuperando assim o que a autoridade
do poder pela racionalidade nos fez esquecer.
Leda e o Cisne na tradio da pintura: mito, lenda e tradio oral
Na tradio oral, haver tantas variantes menores de um mito quantas
forem as repeties dele, e a quantidade de repeties pode aumentar
indefinidamente.
Walter Ong
Leda e o Cisne foi um tema repercutido com
intensidade e possvel vislumbrarmos a fora dessa reverberao no salto
desde a sua origem na oralidade at seus desdobramentos contemporneos.
Entretanto, este no o modo mais adequado de se perceber a produo acerca de
tal lenda, como um ponto que repercute, sendo ela o originrio de tantas
produes em diversos meios, no tempo e no espao.
O modo mais
adequado reside em, ao percebermos tal produo como repetio, voltarmo-nos ao seu princpio, ou seja, quilo que, da
prpria lenda, ressoa na frequncia da vida. Segundo Simonsen (1987, p. 5,
grifos da autora), O mito est entre
os principais gneros narrativos populares representados na Europa, juntamente
com a gesta ou saga, o conto, a lenda e a anedota.
O mito, ligado a um ritual, tem um
contedo cosmognico ou religioso. Simboliza as crenas de uma comunidade, e os
acontecimentos fabulosos que ele narra so tidos como verdicos. [...]. A
lenda, relato de acontecimentos tidos como verdicos pelo locutor e seu
auditrio, localizada: as definies de tempo e de lugar integram o relato
(SIMONSEN, 1987, p. 6, grifo da autora).
Assim, vemos que
a longevidade do tema se deve constatao da presena da cultura oral, em
concomitncia cultura quirogrfica, como uma constante, ainda que seja
possvel notarmos os diferentes nveis de influncia de uma sobre a outra. E
essa constncia, ou seja, a prpria vida, que mantm ativo o que reside na
lenda. Segue abaixo uma breve verso:
OS AMORES DE ZEUS
O rei dos deuses no se dedicava apenas a desgraar os homens.
Tambm procurava fazer as mortais felizes, sobretudo aquelas que lhe
agradavam... e foram muitas. Embora fosse casado com a deusa Hera, Zeus teve
inmeras aventuras amorosas. Sua legtima esposa era ciumentssima e no
gostava nem um pouco das escapulidas do marido. Quando vinha a saber que ele
tinha ido visitar uma mortal, ficava louca de raiva. Sua clera s se aplacava
quando ela se vingava da mortal ou dos filhos que essa mulher tivera com o
deus. Hera estava sempre de olho em Zeus, que fazia de tudo para escapar sua
vigilncia.
Zeus gostava de assumir a aparncia de algum bicho a fim de evitar
a desconfiana de suas bonitas vtimas. Usou dessa artimanha para se aproximar
da bela Leda. A jovem acabara de se casar com Tndaro, rei da Lacedemnia. Zeus
se transformou em cisne e, fingindo-se perseguido por uma guia, refugiou-se
junto da jovem rainha, que o acolheu em seus braos. Aproveitando-se dessa
terna proteo, ele se uniu a ela e lhe deixou dois ovos de tamanho incomum. De
um nasceram dois gmeos, Castor e Plux; do outro, duas irms, Clitemnestra e
Helena. Essa unio permaneceu secreta, e Tndaro acreditou que tinha dado
quatro filhos sua jovem esposa (POUZADOUX, 2001, p. 16).
Foram muitos os
artistas que retrataram Leda e o Cisne,
como Leonardo da Vinci, Tintoretto, Giovanni Boldini, Matisse, Czanne e tantos
outros. Apesar da pluralidade iconogrfica suscitada pelo tema, atravs do
tempo e de diferentes momentos artsticos, o destaque para trs obras, a
partir das quais – Figuras 1, 2 e 3, todas de mesmo ttulo: Leda e o cisne – sero salientados apenas alguns aspectos para, a partir
deles, observarmos, no item subsequente, a pintura feita por Eduardo Berliner.
Na obra do francs Albert-Ernest Carrier-Belleuse (1824 -1887), escultor
francs – Figura 1 – temos ainda muito da gestualidade e dos
padres clssicos da representao. Na tela de Vicente do Rego Monteiro
(1899-1970), pintor brasileiro – Figura 2 – a dinmica intensa
tanto na espacialidade, quanto nos aspectos pictricos, e nos revela, em sua
figurao, o carter ertico da lenda. Em A
Leda e o Cisne de Cy Twombly (1928-2011), artista norte-americano – Figura
3 –, nos deparamos com a pura intensidade com que se apresentam os
aspectos grficos, entremeados por delicadas passagens cromticas.
Figura 1 – Leda e o
Cisne (1870)
Albert-Ernest Carrier-Belleuse, terracota fundida, Altura
(sem base): 14 1/2 pol. (36,8 cm), Metropolitan
Museum of Art, NY.
Figura 2 – Leda e o Cisne (1947)
Vicente do Rego Monteiro, leo sobre tela, 50 x 65 cm.
Figura 3 – Leda and the Swan (1962)
Cy Twombly, leo, lpis e crayon sobre tela, 190,5 x 200 cm.
MoMA, NY.
Leda e o Cisne de Berliner
O erotismo um dos aspectos da vida interior do homem.
Georges Bataille
Figura 4 – Leda e o Cisne (2015)
Eduardo Berliner, leo sobre mdf, 170 x 170 cm.
Na pintura de
fundo escuro, nota-se a vibrao de uma cena. As pinceladas so marcadas e
vigorosas, geram movimento. As figuras, em tons mais claros, saltam em primeiro
plano e tal contraste tambm gera certa movimentao. So ao todo – em
princpio – quatro elementos que brotam do fundo escuro: uma figura
humana feminina e trs cisnes; um deles de corpo inteiro, cujo bico invade a
boca da figura humana, ao mesmo tempo em que segurado por ela pelo pescoo.
Dos outros dois cisnes s se v a cabea no canto direito e inferior da tela,
ambas surgindo de uma massa mais escura e densa. Na figura feminina, h o
movimento compositivo das pinceladas, mas, ao mesmo tempo, nota-se a rigidez
que beira figurao de um boneco. Na parte dos cabelos dessa figura, possvel
enxergar tambm a cabea de mais um cisne, que, no caso, seria o quarto.
Seguindo em observao por este ponto pelo fundo da tela, d para perceber a
continuidade de seu corpo, sugerida pelas nuances disformes do plano escuro.
Observando a parte inferior da pintura, na saia de Leda, possvel perceber as
duas mos da figura se tocando pelas extremidades dos dedos, sendo a da direita
uma espcie de rastro do processo pictrico, atestando o carter dbio, j que
seria esta a mesma mo a segurar a figura de um dos cisnes pelo pescoo. O
carter de dubiedade aparece, pelo menos, duas vezes em toda a pintura.
Um dos aspectos
principais da lenda, intensamente explorado nos exemplos anteriores, o
ertico. primeira vista, possvel atestar a ausncia de tal aspecto na
verso de Berliner. Quando o artista fala sobre suas produes, recorrente a
afirmao de que, ao sobrepor uma coisa outra, a pintura no mais sobre
nenhuma delas, mas sobre uma terceira coisa.
Ainda assim, ao
manter o ttulo, invariavelmente somos levados lenda e ao seu teor. Esse o
ponto em que somos colocados num jogo com os sentidos, compreendendo e
percebendo a pintura para alm de seu carter representativo, tal como diz Marcio
Doctors ao compreender a produo do artista: Quando percebi que a questo de
Eduardo Berliner na pintura era a radicalidade do visvel, entendi, ento, o
que me atraa na sua obra: diante da realidade e do real no h recuo possvel.
[...] a arte em potncia; no representa nada [...] (DOCTORS, 2015, s. p).
Retomando
Ernesto Sousa, pelo menos nessa situao, como se o objeto no objetasse. No
h aqui a representao do carter ertico, mas seu prprio teor. Na pintura de
Berliner, Leda est vestida e de branco, mas, na face escura que percorre o fundo
de toda a rea pictrica, constituda por pinceladas densas, vigorosas e
agitadas, ela o prprio cisne, o cisne, por sua vez, Leda. Eles fundem-se
na escurido da tela, no espao interdito
da pintura. Nessa repetio do mito,
na cena aparecem as crenas de uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos
que ele narra so tidos como verdico (SIMONSEN, 1987, p. 6). Retornamos,
ento, a um ponto do que j foi dito acerca da lenda e do mito,
redimensionando-o para o que pulsa no caso de Leda e o Cisne, agora, segundo Bataille:
O
erotismo , de forma geral, infrao regra dos interditos: uma atividade
humana. Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade no deixa
de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia com horror,
mas ao mesmo tempo o conserva (BATAILLE, 1987, p. 62).
Desse modo, o
teor ertico no est representado, como no caso das verses da lenda de
Monteiro e Carrier-Belleuse; ele o que se apresenta na vertigem e
radicalidade dos gestos, na massa densa de tinta espalhada pela tela, na
sensualidade de cada pincelada. Apresenta-se, ento, cada elemento, tomando de
emprstimo o termo de Derrida (apud
Deleuze), em seu aspecto figural
– quando, mesmo no abrindo mo da figurao, como foi o caso na
verso de Cy Twombly, ope-se ao figurativo (DELEUZE, 2007). Nesse sentido, a escassez de vida da figura humana, e do mesmo
modo no cisne negro, revela o ponto mximo do ertico, segundo Bataille, a
prpria morte na fuso com o outro, j que O sentido ltimo do erotismo a
fuso, a supresso do limite (BATAILLE, 1987, p. 85).
Consideraes finais
Qual a voz da pintura? Tudo o que nos
atravessa, depreendendo de seu campo e, simultaneamente, convergindo para ele.
Esta a sua voz e ela, entre outras nuances, compe a esfera da linguagem de
uma cultura, ainda que esta se perceba como sendo da escrita, nos movimentos
mais e menos sutis da vida. O fato que os aspectos da oralidade e da escrita
coabitam e, em nveis distintos, alteram-se mutuamente, num processo contnuo
de transformao nas qualidades de ambos. Isso tudo pode ser invisvel.
Neste estudo,
ainda que de modo incipiente, tratou-se de compreender aspectos da oralidade
pela via da pintura e isso nos indica a possibilidade de ampliao do campo
desses estudos. Ao mesmo tempo, ampliaram-se tambm as possibilidades de
recepo, compreenso e anlise do campo pictrico.
Embora tenhamos
considerado uma pintura de Berliner em especfico, notamos que, em sua produo
como todo, o artista retrata situaes aparentemente banais; no entanto, suas
configuraes – paleta cromtica, aspectos gestuais, espacialidade,
sobreposies e justaposies – apresentam a radicalidade com que seus
temas nos so apresentados, desvelando o aspecto vertiginoso e limtrofe. Em suas
pinturas possvel observar estruturas que se repetem, que se sobrepem, numa
formulao visual mais agregrativa do que analtica (ONG, 1998). como se
aquilo que sabemos se intensificasse
(ou entrasse em xeque) na contundncia que ganha ao tornar-se pintura, seja com
golpes sutis ou no de presena, jogando com o que pensvamos ter apreendido do
mundo at ento.
Nas pginas finais de A
letra e a voz, Paul Zumthor fala sobre a necessidade da quebra do
ciclo hegemnico que a literatura passa a exercer na era clssica, primeiro
na Europa e depois na Amrica, servindo ao Estado. Contrape essa situao ao
papel do texto potico medieval como tendo sido til (ZUMTHOR, 1993). Finalizo
com suas palavras, compreendendo a equivalncia da expresso discurso
literrio como correspondente pintura, assim como as demais formas de
arte, quando diz que nada impedir o discurso literrio, ainda que contra os
sujeitos que o proferem, de visar a uma totalidade, e esta, o mais das vezes,
de ser recuperada e identificada a uma Ordem (ZUMTHOR, 1993, p. 284).
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_________. Performance, recepo, leitura. Traduo Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Nayf, 2007.
Vdeos
ARTE! Brasileiros - Eduardo Berliner fala
sobre Corpo em Muda. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=6DFgwbCWBZc Acesso em: 9 ago. 2020.
Trecho do programa de tv sobre arte contempornea, CATLOGO, de Marcos Ribeiro, disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 9
ago. 2020.
Imagens
Figura 1 Leda e o Cisne -
escultura da coleo do Metropolitan Museum of Art NY. Disponvel em:
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/206819 . Acesso em: 8 ago.
2020.
Figura 2 LEDA e o Cisne. In:
ENCICLOPDIA Ita Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. So Paulo: Ita
Cultural, 2020. Disponvel em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2506/leda-e-o-cisne. Acesso em: 8 ago.
2020. Verbete da Enciclopdia. ISBN: 978-85-7979-060-7.
Figura 3 Leda e o Cisne de Cy
Twombly. Disponvel em: https://www.moma.org/collection/works/80083 Acesso em: 10 ago.
2020.
Figura 4 A imagem da pintura do
artista Eduardo Berliner est em seu portflio, publicizado pela Casa
Tringulo, galeria de arte que o representa. O material est disponvel em: https://www.casatriangulo.com/media/pdf/EB_portfolio2019.pdf Acesso em: 10 ago.
2020.
[Recebido:
15 ago 2020 – Aceito: 15 out 2020]
Midiartivismo em Tempos de pipa: msica, poesia e arte a favor do ativismos social
Mediartivism
in Tempo de pipa: music, poetry and
art as social activism
Ricardo Oliveira de Freitas[57]
Resumo: O texto apresenta
discusso terica e conceitual acerca do fenmeno do midiartivismo, um
neologismo formado pelas palavras mdia, arte e ativismo,
que pode ser traduzido como qualquer ao ou iniciativa que faz uso de expresses
em arte e recursos de mdia a favor de uma causa, sempre social e poltica,
quando expe problemas e prioridades de determinado grupo ou comunidade. Para
tanto, realiza uma leitura crtica da narrativa audiovisual e potica, Tempo
de Pipa, de Breno Silva, integrante de coletivos de arte e mdia atuantes
na periferia de Salvador, Bahia. O videoclipe ilustrativo das aes
midiartivistas e insurgentes que eclodem nas muitas periferias pelo Brasil
afora, resultantes da participao de diversos artistas intimamente ligados a
coletivos artsticos criados nos ltimos anos, alm de ser fruto do trabalho
colaborativo e do associativismo que integra artistas, eles prprios, marcados
por traos e recortes de minoridade e pelo comprometimento com produes contra-hegemnicas
que inspiram resistncia, dissidncia e transformao.
Palavras-chave: Midiartivismo;
Coletivos; Tempo de Pipa.
Abstract: This paper aims to present a theoretical and conceptual discussion
about the phenomenon of midiartivism, a neologism formed by the words media,
art and activism, which can be translated as any action or initiative that uses
expressions in art and media resources in favor of a cause, always social and
political, when it exposes problems and priorities of a certain group or community.
For this reason, the paper performs a critical reading of the audiovisual and
poetic narrative, Tempo de Pipa, by Breno Silva, a member of art and
media collectives working on the outskirts of Salvador, Bahia. The video is
illustrative of a midiartivist action, since it is a product resulting from the
participation of several artists closely linked to artistic collectives created
in recent years in the most diverse peripheries throughout Brazil, in addition
to being the result of the collaborative work and the associativism that
integrates artists, themselves, marked by minority traces and by their
commitment to against hegemonic productions that inspire resistance,
insurgence, dissent and transformation.
Keywords: Midiartivism;
Collectivs; Tempo de Pipa.
Introduo
da
boca pra fora reproduzo minha viso
de
fora pra dentro nem sempre quem bate esquece
a
morte aqui viva
e
o otimismo a ltima coisa que aparece[58]
(SILVA,
2020).
Em julho de 2020, foi lanado o videoclipe do rap
msica-poesia Tempo de Pipa, de Breno Silva[59]. Seria mais uma das
muitas novas produes que alimentam o panorama musical baiano, no fosse o
fato de tanto a msica como o videoclipe terem sido produzidos atravs daquilo
que tem tomado corpo entre integrantes de grupos e comunidades desprivilegiadas
no Brasil nos ltimos anos: o trabalho colaborativo, o associativismo, a arte e
a mdia a favor da causa social e poltica feitas pelas mos de muitos
sujeitos.
Tempo de Pipa resultado da participao de diversos
artistas intimamente ligados a coletivos artsticos, tais como o selo
Balanagulha, o Coletivo P Descalo e o Corvo Vermelho Produes, que fazem a
produo executiva e a distribuio do trabalho. A prpria constituio do
produto caracterstica da ao de coletivos. Tempo de Pipa composto
pelas vozes de Breno Silva e Sued Nunes; pela poesia de Breno Silva; pela
fotografia de Gabriel Moreno, Jomar Fonseca e Thiancle Carvalho; pela montagem
de Thiancle Carvalho e pela produo do mesmo Breno Silva e Marvin Pereira.
Meu interesse pelo videoclipe deve-se ao fato de
ser produto resultante do trabalho coletivo, isto , ser fruto do fenmeno de
proliferao de coletivos, de grupos de artistas ou de artistas individuais que
utilizam recursos de mdia e expresses em arte para exporem suas causas,
tornando pblicas suas demandas, seus problemas e suas prioridades, quando
constroem narrativas contra-hegemnicas sobre si.
Tempo de Pipa tambm ilustrativo da importncia dos
coletivos, do trabalho colaborativo, dentro de um projeto de produzir
midiartivismo, que vem criando frutos a partir de 2010, em Sussuarana, bairro
da periferia de Salvador; num primeiro momento, com a criao do coletivo Mdia
tnica, e, logo depois, com o surgimento do coletivo Sarau da Ona, desfocando
a ateno sobre o lcus tradicional de produo de cultura e arte na cidade
(Orla e Centro) para a regio da Pennsula, periferia de Salvador.
O texto ora apresentado, fruto da pesquisa que
venho desenvolvendo desde 2017 sobre midiartivismo, presta-se a contribuir para
uma discusso terica e conceitual acerca do fenmeno, a partir da leitura
crtica da narrativa audiovisual e potica de Tempo de Pipa. Para tanto,
sigo o que foi estabelecido por Penafria (2009), ao assumir que, aqui, no fao
uma anlise audiovisual, mesmo que esse tipo de metodologia aparea como
elemento de apoio leitura crtica e discusso terica e conceitual, que o
que realmente veremos.
Midiartivismo:
arte e a mdia a favor do ativismo social
Midiartivismo qualquer ao ou iniciativa que
faz uso de expresses em arte e recursos de mdia a favor de uma causa. O termo
um neologismo formado pelas palavras mdia, arte e ativismo,
que, de modo geral, traduz toda produo em arte que utiliza recursos de mdia,
a fim de tornar pblica uma ou muitas questes de interesse de determinado
grupo ou comunidade – quando fala sociedade e aos seus dirigentes. Por
isso, o midiartivismo tambm pode ser entendido como uma expresso poltica que
toma formas artsticas e miditicas; ou, ainda, uma expresso artstica e
miditica que toma forma como ao poltica.
Para Rui Mouro, arte e o ativismo possuem
caractersticas distintas. Ao passo que arte da ordem do simblico, o
ativismo da ordem da realidade – j que intervm, mesmo que atravs de
aes simblicas, diretamente, na vida, na existncia. Ao passo que a arte se
constri atravs de aes individuais, devido preocupao com as questes
relativas aos aspectos da autoria, o ativismo sempre uma ao coletiva, feita
por muitas mos, mentes, corpos e vozes – pois, se a arte reinterpreta o
mundo, o ativismo existe para transform-lo. Entretanto, como lembra o autor,
h muitas zonas de convergncia, elos e traos de comunho entre uma e outra
esfera, como quando tanto a arte como o ativismo se posicionam no mundo
sonhando com outros mundos (MOURO, 2015, p. 54).
Isto , ambos se afirmam segundo uma
prxis to idealista quanto idealizada, criando representaes que na sua
exposio pblica pretendem reverberaes exteriores ao que efetivamente criam.
Algumas dessas reverberaes, pela assumida interseo artstica/ativista, so
j chamadas de artivistas (MOURO, 2005, p. 54).
A mdia, o terceiro elemento no trip do
midiartivismo, participa, nesse jogo comparativo e dicotmico, como o elemento
aglutinador das disparidades, ao romper e subverter com os limites entre um
domnio e outro. Afinal, como lembra o mesmo Mouro (2015, p. 54):
Comeando por uma perspectiva alargada,
do tipo holstico, que entre inclusive em aspetos semiolgicos, podemos desde
logo desestruturar os argumentos categricos que separam as guas entre o
domnio da arte e o domnio do ativismo, colocando questes como: Operando arte
e ativismo com simbolismos, que fronteira separa o simblico que permanece
apenas no simblico – se tal possvel – do simblico que intervm
no real? No ser sempre a partir de intersubjetividades simblicas – via
conceitos, imagens, palavras, objetos ou atos – que tanto procedemos
compreenso e representao (incluindo artstica), como atuamos no real
(incluindo o ativismo)? At que ponto as diferenas ao nvel das categorizaes
culturais do simblico no derivam de meras convenes de posicionamento
assumido e permitido em cada enquadramento definido num determinado momento e
contexto? Enquadramento que sendo definido simultaneamente ao nvel individual
e coletivo – categorias psicoculturais parte e resultado uma da outra
–, consequentemente problematiza o que na criao artstica produo
individual ou no ativismo se faz apenas pelo coletivo.
O artivismo tem sido, corriqueiramente,
traduzido como as expresses que fazem uso do corpo como suporte para expressar
ou comunicar, a depender da interpretao que se faz de determinada ao
ativista. Como se concretiza atravs de performances, quase sempre efmeras e
momentneas, o uso de recursos de mdia tem sido recorrente. Essas tecnologias
(de informao e comunicao) servem tanto ao registro da iniciativa, ao
manterem a imortalidade da ao e performance, como se prestam a elemento da
obra em seus termos tcnicos, propriamente.
Apesar de tomar como objeto uma obra
videogrfica, produzida a partir de uma poesia cantada, musicada e
interpretada, considero que, Tempo de Pipa no menos uma ode ao corpo
e performance; sendo, ele prprio, o vdeo, o corpo que performa e, por isso,
mdia e multiarte.
que ns t sem sorte desde quando
inventaram o termo,
ns inventa arte enquanto vive pra
suportar o medo
que minha escrita desabafa, eu no minto
mas no diz tudo que penso, meu dio
resumido
(SILVA, 2020).
O midiartivismo pode ser entendido como um
conjunto de prticas que se afastam de modos clssicos do fazer poltico
institucionalizado. No so coletivos formados a partir da comunho de
ideologias, mas, to somente, das articulaes, negociaes, compartilhamentos,
afinidades, do amor pela arte e por determinada causa. Ao produzirem arte
crtica s clssicas representaes divulgadas pela poltica institucional, os
coletivos e artistas midiartivistas redesenham as noes de poltica e de
mercado.
um novo mercado que surge no bojo da ascenso
dos grupos e comunidades subalternizadas e do fortalecimento dos novssimos
movimentos sociais, expresso que tem sido utilizado para nomear recentes
mobilizaes sociais e polticas com forte repercusso na mdia[60].
Tanto como os coletivos de arte, os novssimos
movimentos sociais caracterizam-se pelas manifestaes autnomas e apartidrias
e, por isso, assemelham-se experincia dos coletivos, no que confere
autonomia a seus militantes (PEREZ; SOUZA, 2017).
Esse novo mercado tambm considera a efemeridade
da obra e sua perpetuao atravs de uma obra de segunda mo, no mais das
vezes, atravs do registro da ao ou performance.
No caso de Tempo de Pipa, como ocorre com
a poesia e com a msica, de modo geral, a obra se perpetua atravs do
videoclipe que compe uma outra obra – agora, acrescida de elementos
visuais que participam do conjunto esttico e semitico constituintes da pauta
tema central da obra basilar.
No caso especfico da ao poltica, o
midiartivismo se afasta das formas institucionalizadas do fazer poltico ao
promover encontros regidos menos por razes ideolgicas e mais pelo
compartilhamento de emoes, sentimentos e prazeres estticos. A noo de nova
forma de se fazer poltica, novos usos de novas e velhas mdias, novas
expresses em arte e um novo mercado artstico e miditico aponta para a
importncia do midiartivismo ao construir novos rumos para as experincias do
sensvel.
Como arte interessada, o midiartivismo produz
tticas conceituais, simblicas e estticas, numa perfeita combinao entre
arte e pensamento[61]. Alm disso, o
midiartivismo tem como qualidade o fato de agir no mbito da cultura. Por isso,
correto afirmar que as prticas midiartivistas so sempre intervenes
culturais, assim como prticas sociais comunicativas, elaboradas por
artistas-ativistas[62].
Coletivos:
o associativismo no uso das mdias radicais alternativas
Coletivos so grupos de pessoas que se renem,
produzem e elaboram aes e pensamento em torno de um tema, criando um tipo de
associativismo. O termo sempre autodesignativo e se caracteriza pelo fato de
traduzir as novas formas de mobilizao, distantes das organizaes
burocrticas e hierrquicas (PEREZ; SOUZA, 2017, p. 3). Essas mobilizaes so
tanto sociais como culturais e artsticas e prezam pela multiplicidade de
pautas, pela horizontalidade e pela participao antiautoritria, liberal,
igualitria e progressista.
A presena em mdia outra caracterstica
importante nas aes organizadas pelos coletivos. Como precisam expor suas
causas junto esfera pblica poltica, a esfera de visibilidade miditica
surge como importante, seno a principal, aliada.
Por isso, correto afirmar que o uso e abuso
dos recursos de mdia uma ao ttica para ocupao da esfera pblica
poltica a partir da participao em sua base ampliada, a mdia.
A criao de coletivos no um fenmeno novo,
como veremos adiante. Entretanto, a emergncia desses grupos no atual cenrio
brasileiro e, por que no dizer, global, tem uma particularidade: ela surge no
bojo do debate sobre as identidades dissidentes e minoritrias, trazido na
esteira da alavancada dos estudos tnico-raciais, de gnero, dos estudos da
interseccionalidade como sistema de opresso, dos estudos queer, dos
estudos culturais, dos estudos decoloniais, da ampliao do acesso s TICs
(Tecnologias de Informao e Comunicao), do uso e abuso das mdias digitais,
do expressivo mergulho das sociedades globais na rede mundial de computadores,
do fortalecimento dos movimentos sociais, da ampliao do debate LGBTQIA+ na
mdia, da ascenso das identidades no binrias, do combate ao racismo como
condio elementar, da positivao dos guetos, das favelas, morros, cortios e
terreiros, da criao dos novos e novssimos movimentos sociais. Como afirma
Arturo Escobar (2005), esses estudos criam um espao enunciativo cujo ponto de
coincidncia a problematizao da colonialidade em suas diferentes formas.
John Downing, em entrevista a Patrcia Cavalli,
define mdia radical alternativa como caracterizada por tipos de mdias no
convencionais. O autor credita s mdias no convencionais e alternativas o
poder de transformar realidades polticas, econmicas e sociais. A mdia
radical, ainda segundo ele, uma forma de democracia, j que a dignidade do
cidado no s ter direito educao e sade, mas, tambm, arte e
comunicao ou, ainda, mdia (CAVALLI, 2009). Nesses termos, Downing
apresenta uma definio muito valiosa do que poder ser considerado uma mdia
– definio essa que perpassa uma amplitude de suportes, veculos,
expresses, sensibilidades e experincias estticas.
Mdia , entretanto, um conceito bastante
amplo para Downing. No apenas o rdio, a televiso, o jornal e o cinema
constituem o universo das mdias, mas tambm as canes populares, incluindo a
a vitalidade da msica negra de vrios pases; a dana afro-americana; o
grafite praticado pelas gangues de jovens, principalmente na cultura hip-hop
norte-americana, na antiga Unio Sovitica e na Nigria; o vesturio (que ele
chama de mdias txteis), sobretudo os trajes mais na Guatemala durante
a ditadura militar, as arpilleras das mulheres chilenas durante o regime
militar, as colchas sul-americanas usadas como comunicao clandestina, os
broches e buttons de lapela; os adesivos de para-choques; o rock
de garagem; o teatro popular, incluindo o teatro de rua de nosso Augasto Boal;
[...] os filmes e vdeos populares e/ou polticos, incluindo a experincia da
TV Maxabomba do Rio de Janeiro; a Internet radical; a tev comunitria e de
acesso pblico; a culture-jamming (utilizao desviante dos smbolos
culturais oficiais como oposio finalidade a que se destinam), etc.
(MACHADO, 2002, p. 13).
Downing (2002) lembra que muitas mdias so
alternativas. Sobretudo, no que no so controladas por blocos monolticos
criados por grandes organizaes comprometidas com os interesses do
capitalismo. Mas, para ser radical, preciso que se manifeste contra as foras
de opresso, que permitam que seus usurios possam vislumbrar a liberdade e
expressar suas ideias. Ela deve ser, sobretudo, combativa, no que se ope a um
modelo hegemnico de produo. Por isso, a mdia radical alternativa sempre se
diferir da mdia alternativa, pura e simplesmente, j que uma expresso de
subverso, dissidncia, disseno, de questionamento e crtica ao status quo,
s presses e construes hegemnicas. A mdia radical , pois, sempre
contra-hegemnica.
Por hegemonia, entendo o proposto por Antonio
Gramsci, quando penso o midiartivismo como expresso de arte e mdia a favor de
causas contra-hegemnicas. Para Gramsci (2004), a hegemonia pode ser definida
por um movimento poltico majoritrio, que preza pela manuteno do sistema capitalista
e que organiza a sociedade em torno do domnio cultural e da liderana mantida
atravs de rgos de informao e da cultura. A contra-hegemonia, por sua vez,
seria a perspectiva oposta de futuro, que defende o engajamento das massas e a
contestao pelas massas, ao invs da subordinao pura e simplesmente.
Nesses termos, o midiartivismo seria um conjunto
de aes e iniciativas a favor das causas dos grupos e das comunidades no
hegemnicas, minoritrias, subalternizadas, desprestigiadas, desprivilegiadas,
desfavorecidas – o que nos remete, mais uma vez, ideia da
alternatividade como proposta por Downing (2002).
A ideia de tornar pblicas causas, problemas e
prioridades de determinado grupo ou comunidade coloca em cena a noo de esfera
pblica poltica e de visibilidade miditica. Esfera pblica, como conceito
proposto por Habermas (1984), o espao social da representao (pblica), que
deve ser gerido pela argumentao, discurso, publicidade e privacidade e que
funciona como mediador e lugar de conversa e influncia entre o Estado e a
esfera privada. A definio do conceito ilustrativa da importncia da
ocupao dessa esfera, que sempre poltica, j que lugar de visibilidade de
demandas, da exposio de problemas e de prioridades. A esfera de visibilidade
miditica assume, assim, o importante papel de tornar acessvel o debate
pblico, funcionando como uma ponte entre sociedade civil, sistema poltico,
cultura e poltica (MAIA, 2002).
A
arte engajada e arte desinteressada
A participao de coletivos de arte e artistas
na esfera pblica e de visibilidade miditica nos afasta da ideia da arte
contemplativa, daquela arte que transmite emoes, mas que nada diz. Tambm
permite questionar se h, de fato, uma arte que nada diz, que puramente
contemplativa, mas, no necessariamente comunicativa, interpretativa. Nesse
sentido, pode-se afirmar que toda arte, no que fala para fora de quem a produz,
do artista, do autor, sempre marcada por traos de intencionalidade. Por
isso, ouso mesmo dizer que todo fazer esttico, toda arte , por excelncia,
poltica, j que est em constante dilogo com o mundo fora da obra. Por isso,
sempre uma arte atuante (MOURO, 2015).
Ento sigo no
contra-ataque dividindo
com quem soma
multiplicando os versos sem subtrair o
que amo
fao jus aos que se foram e me inspiro em
quem t chegando
(SILVA, 2020).
Essas produes no so inditas no cenrio
brasileiro da arte e da mdia. Artistas e grupos de artistas integrantes de
grupos e comunidades subalternizadas falam das suas prioridades desde h muito
tempo, sem considerarmos a cultura popular como a cristalizao das
manifestaes do povo sobre a totalidade das instncias que regem suas vidas. O
samba, os grupos de escolas de samba, os nordestinos, o teatro popular etc. so
exemplos. Na dcada de 1970, expresses mais conceituais de arte, com
experincias mais incisivas de grupos de artistas produzindo artivismo com uso
do corpo como suporte para a performance, vo dando forma ao que hoje
reconhecemos como coletivos, ao ocuparem a cena miditica, o mainstream
do espetculo, o showbusiness, a indstria cultural, mesmo quando eram
alternativos, underground[63]. Mas, a peculiaridade
dessas produes e iniciativas que elas ocorrem na esteira do fortalecimento
dos movimentos sociais e identitrios e da paradoxal ameaa s democracias com
a ascenso do conservadorismo promovido pela extrema-direita. Por isso, aliadas
ao uso de expresses artsticas nas prticas polticas contemporneas, essas
expresses, aes, iniciativas revelam-se crticas, questionadoras,
expressivas, potentes, revoltosas e insurgentes.
Ao ser utilizada como recurso para promover o
ativismo sempre social e, por isso, poltico, a arte alcana o patamar de arte
interessada em oposio ideia de arte desinteressada, da arte que no quer
dizer nada, da arte que fala por si, da arte pela arte. Por isso, mais uma vez,
se transforma em arte engajada, em arte a favor de uma causa, por isso, uma
arte poltica.
Parte dessas causas no diz respeito apenas ao
que est fora da obra, fora da arte. Muitas vezes, a prpria expresso ou
linguagem artstica a merecedora de reconhecimento. Afinal, muitas das
expresses que emergem com os coletivos e artistas militantes so expresses,
at ento, invisibilizadas. So artistas e coletivos que problematizam as
prprias linguagens artsticas, muitas vezes, tradicionais, assim como as
normas sobre ser e estar no mundo.
A utilizao de inmeras linguagens e
plataformas para explicitar, comentar e expressar vises do mundo e de produzir
pensamento crtico, multiplica o espectro do artivismo a partir do qual
possvel intervir potica e performativamente e construir espaos de
comunicao e de opinio no campo poltico – arte de rua, aes diretas,
performances, vdeo-art, rdio, culture jamming, hacktivism,
subvertising, arte urbana, manifestos e manifestaes ou desobedincia
civil, entre outras. [...] Que conexes se buscam entre poticas e performances
no espao pblico e no ciberespao? E de que modo o artivismo encontra no mundo
digital um territrio amigvel para se tornar viral e simultaneamente para se
construir como um arquivo de documentao performativa poltica? (RAPOSO, 2015,
p. 5).
So expresses que falam das coisas das
minorias, dos grupos e comunidades minoritrias, desprestigiados,
desfavorecidas, desprivilegiadas, subalternizadas, que questionam as foras
hegemnicas e tudo o que est includo dentro dessas foras: binarismos,
naturalizaes, normatizaes relativas ao gnero, s sexualidades, raa,
classe, s religiosidades, aos regionalismos. Por isso, sempre um movimento
dissidente, insurgente, j que rompe, quebra com as normas, at ento,
vigentes.
A incerteza a aliada mais sincera de
quem luta pra viver do prprio sonho
O brao armado do Estado corrompe
Eles se alimentam do nosso sangue
(SILVA, 2020).
A
arte e a mdia que educam
A prticas de midiartivismo tambm esto a favor
do ensino e da aprendizagem, da transformao pela educao, pela arte
educadora. A exposio de uma causa tambm pode ser interpretada com uma aula,
como um compartilhamento de informao, mas, sobretudo, como processo de
aprendizagem no qual competncias, habilidades, vises de mundo,
comportamentos, crenas, conhecimentos ou valores so transmitidos. Por isso, o
midiartivismo sempre uma militncia formativa e pedaggica, uma ao e uma
prtica educativa.
O midiartivismo reorganiza as noes at ento
concebidas de arte, das possibilidades de usos da mdia e, sobretudo, de
mercado e poltica.
O artivismo se transforma em midiartivismo
quando a ao e performance que, na maioria das vezes, somente existem enquanto
esto sendo realizadas, passam a se materializar atravs do registro, quando
passam a ser mediadas pelo uso de tecnologias de mdia (vdeos, fotografias,
textos, udio). Nesse sentido, importante chamar a ateno para a importncia
da legendagem das performances como orientadoras da fruio, do sensvel e da
experincia esttica, fenmeno muito parecido com o que foi pensado por Walter
Benjamin (2018) em relao legenda das fotografias.
Em Tempo de Pipa, a transformao da
poesia e da msica em videoclipe tambm chama a ateno para o poder do vdeo
de possibilitar a perenidade da obra e para as discusses em torno da traduo
da obra como obra de segunda monta – momento em que o debate sobre o
registro como elemento de interferncia na obra vem tona, questionando o status
do registro nas performances como recurso de uma metalinguagem ou de uma arte
de segunda ordem.
Tempo de Pipa: poesia musical videografada
No caso da msica, como em Tempo de Pipa,
a letra a norteadora semiolgica do que se quer dizer, falar para o mundo.
No diferentemente de outras expresses, para o caso da msica, as imagens,
estticas ou em movimento, registros dos shows ou divulgadoras do trabalho,
como no caso dos videoclipes e dos lbuns visuais, servem como construo
semitica do que se quer anunciar. A favela e sua juventude com tudo o que tm
de negativo e positivo: mazelas, tristezas, alegrias e criatividade.
H uma linguagem favelstica em Tempo de
Pipa que, de certo modo, une a favela daqui, da Bahia, com as favelas de
l, do Brasil. Faz parecer que favela uma coisa s, seja no Rio de Janeiro,
seja em So Paulo, seja no Recife, seja em Salvador ou, ouso mesmo dizer, seja no
mundo. Afinal, os mecanismos de excluso reservados aos grupos e comunidades
desfavorecidas, no por caso, moradores de reas empobrecidas, so parte de um
projeto poltico nacional, construdo no seio da cultura fundante do processo
civilizatrio brasileiro. Mas, s faz parecer, j que, mesmo que haja uma
comunho em termos dos problemas e prioridades e, por extenso, das causas, h
especificidades mnimas e particulares na favela daqui que s dizem respeito
favela daqui. Os traos de regionalismos tambm contribuem para dizer que essa
favela que fala para o mundo a favela de c, da Bahia. Bota ta, faz mais
falta do que baba[64]. Mas, na universalidade
particular, traduzida pela escuta dos Racionais, e na recusa Bblia,
tida como universalidade totalizadora, que o poeta diz ter entendido o que
divino e humanidade.
minha quebrada foi
batizada por nome de bicho
bicho esse que ns num
v desde o prprio batismo
sussuarana veloz por
instinto
mas os menino aprendeu a
correr ouvindo zuada de tiro
ou da me que t
gritando preocupada com o filho
e se cachorro latir de
madrugada
tambm aviso
(SILVA, 2020).
Tempo de Pipa rap, msica-poesia-vdeo para
ser ouvido, lido e visto[65].
O vdeo tem incio com uma cena em que a pipa
est no cho, ou melhor, na laje, no cho da laje. Afinal, pra ser pipa, tem
que subir na laje.
O vdeo tem quatro minutos e quarenta e oito
segundos de durao.
A pipa costura o que est sendo cantado,
declamado, dito. Ela somente subir no quarto e ltimo minuto do vdeo, quando
fecha o videoclipe num enquadramento que toma o rolo de linha, a linha
estendida pro cu e a pipa solta no ar no meio do casario de alvenaria sem
reboco, com tijolos expostos e, ao longe, os conjuntos de apartamentos. A
permanncia da pipa na laje , assim, o fio condutor da poesia.
Enquanto Breno vai preparando a sua subida,
botanu a sua pipa no ar, o enredo vai se desenrolando. Ora na laje, ora nos
becos, escadas e vielas.
O cenrio sempre Sussuarana. Breno fala de
dentro da comunidade, a partir da comunidade. Ao fundo, ora floresta (morada da
ona que deu nome ao bairro), ora casas de alvenaria, ora os conjuntos
habitacionais, tipo os b ne ag – BNH, as cobi – COHAB e os
conjuntos habitacionais das caixas e previdncias dos sindicatos de trabalhadores,
os famosos ap – apartamentos, que se espalharam pelo Brasil nos anos
de 1960 e 1970.
O cenrio do vdeo crtica social que combina
imagem e poesia. Ouso dizer que mesmo a msica d um tom melanclico s rimas,
fazendo parte dessa combinao. A pipa, nesse sentido, conduz a narrativa no
somente atravs da imagem, mas, tambm, atravs da palavra.
Nesse sentido, Tempo de Pipa
ilustrativo da iniciativa midiartivista, pois congrega as mais variadas formas
e manifestaes e expresses artsticas em articulao com um produto
audiovisual, portanto, miditico, promovendo aes absolutamente distanciadas
das formas institucionalizadas do fazer poltico.
mdia e arte, midiarte, a favor das causas e
das crticas sociais. arte protesto, no necessariamente panfletria, j que
no instrumento de mera propagao de uma de uma ideologia, mas, sobretudo,
manifestao.
A transformao da msica em videoclipe tambm
chama a ateno para o poder do vdeo de possibilitar a perenidade da obra e a
traduo da obra como obra de segunda monta – momento em que as
discusses sobre o registro como elemento de interferncia na obra vm tona,
questionando o status do registro nas performances como recurso de uma
metalinguagem ou de uma arte de segunda ordem.
A distopia retratada tanto na letra como na
msica (atravs da batida e do andamento lentos) e no vdeo (na conjuno entre
cenrios, tomadas e planos) projeta um futuro descrente em bvia referncia ao
afropessimismo como elemento conceitual marcador e interventor (SEXTON, 2016),
recorrncia nos discursos sobre a condio de ser negro e negra no mundo. A
rima em que Breno diz: bala perdida virou mais, mais que amigo, agora quase,
quase, um ente querido, ilustrativa disso que parece apontar para a desesperana.
Mas, a pipa que sobe no final do vdeo mostra outra atitude.
Sobre a pipa [...]
quando a gente tem a pipa... tem aquela coisa mtica da infncia que poder
voar. A gente deposita na pipa o que a gente no pode. A pipa pode fazer uma
coisa que.... isso d uma ideia de liberdade, n? Poder subir e fazer o que a
gente gosta, o que a gente deseja, o que a gente quer, o que a gente merece,
entende? Ento, esse lance, n, essa coisa de subir muito mais ligada a isso,
entendeu? Por que eu falo: e os pivete sabe que pra ser pipa, tem que subir na
laje, sem esforo no tem dom, tem que ter coragem, entendeu? ento, nesse
sentido, n? Sem esforo no te dom, sem fora de vontade, voc no vai pra
lugar nenhum. a mesma coisa para colocar uma pipa no ar. Se voc no fizer
esforo dela subir, ento... voc tambm no consegue colocar ela no ar (SILVA,
2020)[66].
Tempo
de Pipa, ao combinar cenas em preto e branco com cenas coloridas, d o tom
do discurso que marcar produo audiovisual como oscilando entre a luta a
favor da mudana e a constatao de que nada mudar. Parece pessimista, mas,
no . Exemplo disso o fato de apresentar as lajes, os espaos acima e sobre
os telhados. A cmera quase nunca est dentro de algum lugar. Seu lugar o
espao aberto, o ar livre. As lajes e os espaos acima do telhado muito se
assemelham ao desgnio da pipa: subir. No, necessariamente, para escapar do
algo ou algum. Mas, to somente, para chegar ao alto, ao lugar de poder, de
prestgio. A cmera, ao optar por tomadas de baixo para cima, refora a fora
grandiosa de Breno e Sued, representantes da juventude negra e perifrica, que
tomam a cena e que mesmo quando parecem cair, sobem. quase como o trecho da
poesia que fala da tia que queria alho para temperar o dio, mas, acabou
cortando cebola e transbordou em lgrima.
Tempo de Pipa faz isso bem, j que, como ao
midiartivista, o vdeo-poesia-musical confere poder e visibilidade causa da
coletividade organizada. Por isso, Tempo de Pipa funciona como mdia
radical alternativa, aos moldes do defendido por Downing (2002) j que informa,
comunica e constri discursos contra-hegemnicos.
O artista ativista Breno Silva (1) e a cantora
Sued Nunes (2) em cenas do vdeo Tempo de Pipa
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xZlWWOmHwFw
Concluso
Grupos contra-hegemnicos, atravs das mais
diversas estratgias discursivas e suportes, como as mdias, com poesia, msica
e vdeo, promovem um tipo de mdia geral de pequena escala e sob muitas formas
diferentes – que expressa uma viso alternativa s polticas, prioridades
e perspectivas hegemnicas (DOWNING, 2002, p. 21).
Ao realizar produes que utilizam poesias,
vozes, msicas, vdeos e vivncias para comunicar pautas, num tipo de esttica
ativista e insurgente, os coletivos e artistas subvertem normas e iderios
cristalizados sobre o que movimento social, arte e mdia.
A esttica da dissenso tambm a tica da
resistncia, para usar termos caros a Rui Mouro (2015). uma esttica ativista
e poltica. Por isso, o artivismo no se limita apenas s questes do mbito da
poltica, mas, sobretudo, tica e s estticas.
Tempo de Pipa, por exemplo, ao fazer midiartivismo,
produz, atravs do audiovisual e de toda a sorte de expresses de criatividade,
esttica voltada tanto para o prazer da fruio e entretenimento como para o
fazer poltico.
necessria ateno
especial a esses novos movimentos e tipos de produo, frutos da contra conduta
e da subverso dos que se munem de armas estticas para fazer ecoar suas vozes
[...]. O advento da Internet intensifica essas novas configuraes polticas,
mais libertrias e no menos eficientes, permitindo o surgimento de novas
vozes, que incidem sobre a liberdade de novos corpos e subjetividades. Essa nova
forma de fazer poltica [...] quase sempre considerada estranha e
deslegitimada por quem somente acredita na maneira autoritria e burocrtica do
fazer poltico (FREITAS, 2019, p. 258).
O midiartivismo quebra paradigmas e contribui
para o aniquilamento dos discursos excludentes. mdia e arte que vm das
quebradas para quebrar paradigmas e revelar a beleza do que foi considerado
inspito por muito tempo, a partir da reiterao e perpetuao de discursos que
encontravam respaldo nos meios de comunicao hegemnicos e nos sistemas
institucionalizados clssicos da educao. o levante das dissidncias que no
permitem que sejam silenciadas e se nutrem de estratgias para vencer o
apagamento, a marginalizao e o alijamento. a arte que extrapola os limites
do quadro, da moldura e at mesmo das paredes do museu [...] para se instalar
na realidade absoluta, na vida cotidiana (FREITAS, 2007, p. 86). o artivismo
que se conecta com seus pblicos. o midiartivismo a favor da transformao,
que reestrutura relaes de poder e reorganiza as esferas de poder, privilgio
e prestgio.
esse poema no tem fim
eterno, eu digo
(SILVA, 2020)
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[Recebido:
11 ago 2020 – Aceito: 19 set 2020]
Pontes sobre o rio Capiberibe e o mar
Brigdes over the
Capiberibe river and the sea
Ana Cristina Marinho[67]
https://orcid.org/0000-0003-2645-6113
Resumo: O artigo busca
construir uma cartografia de duas editoras/livrarias que publicavam/comercializavam
colees de livros populares em finais do sculo XIX e incio do XX: a Livraria
Portugueza, localizada na cidade do Porto, e a Livraria Contempornea,
localizada na cidade de Recife, Pernambuco. Nesse mapa, encontramos dois comerciantes
portugueses e um terceiro personagem, o poeta, editor e comerciante de livros
Leandro Gomes de Barros, que viveu na cidade de Recife e manteve, nas duas
primeiras dcadas do XX, uma intensa atividade ligada ao livro e leitura,
caracterizando-se como um agente literrio. O encontro desses trs personagens
possibilita discusses sobre a escrita, a leitura e a comercializao de livros
no incio do sculo XX, no Brasil e em Portugal. O percurso terico foi
norteado por discusses sobre a histria do livro e da leitura encontradas em Abreu
(1999), Chartier (1997), Anselmo (1991) e Vencio (2005), alm de estudos sobre
cartografias literrias de Fernandes (2012), Cury (2007), Harley (1990) e Martin-Barbero
(2004).
Palavras-chave: Leandro Gomes de
Barros; Livraria Contemporanea; Livraria Portugueza; Edies populares.
Abstract: The article seeks to build a cartography of two publishers/bookstores
that published/marketed collections of popular books in the late 19th and early
20th centuries: Livraria Portugueza, located in the city of Porto, and Livraria
Contempornea, located in the city of Recife - Pernambuco. On this map, we find
two Portuguese traders and a third character, the poet, editor, and book trader
Leandro Gomes de Barros, who lived in the city of Recife and maintained, in the
first two decades of the 20th, an intense activity linked to books and reading,
being characterized as a literary agent. The meeting of these three characters
allows discussions about writing, reading, and selling books in the early 20th
century, in Brazil and Portugal. The journey was guided by discussions about
the history of books and reading (Abreu, 1999; Chartier, 1997; Anselmo, 1991;
Vencio, 2005), in addition to studies on literary cartography (Fernandes,
2012; Maria Zilda Cury, 2007; Harley, 1990; Martin-Barbero, 2004).
Key-Words: Leandro Gomes de
Barros; Livraria Contemporanea; Livraria Portugueza; Popular Editions.
Neste texto, busco refazer os caminhos de uma editora
do Porto, a Livraria Portugueza, que publicava livros de cordel e os enviava
para o Brasil, j em finais do sculo XIX e incio do sculo XX. Nessa mesma
poca, criava-se e consolidava-se no Brasil a literatura de folhetos, diferente
em vrios aspectos da literatura de cordel portuguesa. As obras impressas pelo
editor portugus Joaquim Maria da Costa, e enviadas a Pernambuco, eram vendidas
na Livraria Contemporanea, de Ramiro Moreira da Costa, casa frequentada pela
elite pernambucana e tambm pelo poeta Leandro Gomes de Barros. Seguirei os
passos de dois editores de livros populares e um proprietrio de livraria que
exerciam suas atividades no perodo que vai de 1883 (data mais antiga de
publicao de obras pela Livraria Portugueza a que tive acesso) a 1918 (ano da
morte de Leandro Gomes de Barros).
Quando iniciei a pesquisa nos arquivos da
Biblioteca Nacional do Porto, no esperava me encontrar com o poeta Leandro
Gomes de Barros, antigo conhecido dos estudos sobre tradies orais e populares
que fazem parte da minha trajetria como pesquisadora e professora de
literatura na Universidade Federal da Paraba.[68] Inquietavam-me, naquele
ano de 2013, as discusses veiculadas em jornais e revistas, e tambm em
ambientes de discusso acadmica (congressos, seminrios) sobre os novos escritores
de literatura brasileira que circulavam em diferentes espaos, participavam de
feiras literrias e estabeleciam relaes diferenciadas com as editoras, o
mercado, o pblico e a crtica.
Para Maria Zilda Cury, possvel falar em novas
cartografias literrias, nesses primeiros anos do sculo XXI, pois os
escritores assumem a postura de agentes culturais, transitando por espaos que
no o estritamente literrio, o que, inevitavelmente, interfere na escrita de
seus textos (CURY, 2007, p. 7). Pensando na literatura de folhetos no Brasil,
chamada por Mrcia Abreu de um gnero editorial e no apenas um gnero
literrio (ABREU, 1999), essas novas geografias narrativas no me pareciam
to novas assim. Os poetas populares, nas primeiras dcadas do sculo XX, eram
agentes culturais, viajantes performticos, sobreviventes do verso e da lira.
No estudo sobre a Tipografia So Francisco
(1940-1972), em Juazeiro do Norte- CE, Rosilene Melo evidencia o quanto a
histria das tipografias populares est ligada s estratgias de sobrevivncia
criadas pelos poetas e editores, em um mercado que sofre tanto influncias
econmicas quanto religiosas, familiares e afetivas (MELO, 2010). A literatura
de folhetos no Brasil acompanhou os caminhos da estrada de ferro, do algodo e
da borracha, mas tambm os caminhos da f, do misticismo, do encantamento pelo
verso que transformaram pequenas cidades, como Juazeiro do Norte, em grandes
centros de distribuio de folhetos de cordel.
No Nordeste brasileiro surgiram, ainda nas
quatro primeiras dcadas do sculo XX, tipografias em cidades como Areia,
Itabaiana, Guarabira e Catol do Rocha-PB, Novas Russas-CE e Currais Novos-RN.
Em Juazeiro do Norte, a Tipografia So Francisco, posteriormente Lira
Nordestina, se configurou como a maior editora popular, sobrevivendo durante 30
anos e agregando em torno da produo e venda de folhetos poetas, cantadores,
danadores de coco e reisado, praticantes de umbanda e candombl, astrlogos,
curandeiros, rezadores, artistas da madeira, da palha, do barro.
Se fosse possvel desenhar novos mapas culturais
no Brasil, a partir da trajetria de poetas e vendedores de folhetos, as
cidades de Belm (Editora Guajarina), Juazeiro do Norte (Tipografia So
Francisco), Campina Grande (Tipografia Estrela da poesia) e So Paulo (Editora
Preldio) estariam muito mais prximas da cidade de Recife, lugar escolhido por
Leandro Gomes de Barros para editar seus folhetos, do que os estados vizinhos
do Rio Grande do Norte e Alagoas.
A
construo de territrios se d a partir de interesses comerciais, polticos,
mas tambm simblicos, afetivos, emocionais. As fronteiras geogrficas ou
polticas no podem ser referncias para a delimitao de territrios
culturais. Hoffman (1999) considera a desterritorializao como marca dominante
nas produes literrias da ltima dcada do sculo XX. Personagens em
trnsito, poetas transformados em agentes culturais, configuram o que a autora chama
de novos nmades. Pensando na experincia dos poetas e editores da literatura
de folhetos no Brasil, essas vivncias nmades no representam nenhuma novidade,
como pudemos perceber ao longo da pesquisa.
A abordagem cartogrfica, que aqui busco seguir,
toma a historiografia no como uma sucesso de fatos, eventos, e sim como uma
justaposio de textos, mapas, enfatizando o processo de construo das
relaes de poder presente nos textos (FERNANDES, 2012). Para Frederico
Fernandes,
Enquanto a abordagem sincrnica
culturalista guia-se pela tenso dicotmica, na qual os vetores ideolgicos de
formao cultural so intensificados, a abordagem cartogrfica uma anlise
descritiva e interventiva que considera os efeitos de subjetividade dos agentes
envolvidos na performance (FERNANDES, 2012, p. 151).
Essa anlise descritiva e interventiva busca
interligar sujeitos e objetos, na tentativa de construir novos mapas da cultura
pois, segundo Martin-Barbero (2004), a cartografia no precisa representar
apenas fronteiras, pode representar encontros, relaes, intercmbios. E
nesse sentido do encontro e dos intercmbios que caminha a minha escrita, numa
tentativa de ligar a cidade do Porto cidade do Recife, a vida de livreiros,
editores e tipgrafos dessas duas cidades, ao percurso de poetas populares.
Trs sujeitos se cruzam nessa histria: Joaquim Maria da Costa, editor da
Livraria Portugueza, na cidade do Porto; Ramiro Moreira da Costa, portugus
emigrado para Recife, proprietrio da Livraria Contempornea e Leandro Gomes de
Barros, poeta e editor de folhetos, um dos responsveis pela criao do gnero
literatura de cordel no Brasil.
Um
Costa de l e outro de c
A Editora de Joaquim Maria da Costa, sucessor
dos Machado & Costa, estava localizada no Largo dos Loyos, 55-56, Porto. A
Livraria Portugueza vendia colees de entremezes, fados, contos populares,
lindos livrinhos em versos amorosos e cartas amorosas em prosa e verso. Em um
folheto de 1902 aparece o seguinte anncio: Linda Colleco de livrinhos
amorosos; Linda Colleco de Oraculos; Livrinhos de Canticos Religiosos;
Colleco de contos modernos; Linda Colleco de testamentos. Em 1903, a
editora passou a vender tambm Almanachs e Reportorios Saragoanos para o
anno e Histrias e contos recreativos para o povo. Publicava ainda a
Coleco de fados modernos (1893 a 1897) que teve em torno de 16 nmeros. Na
quarta-capa do folheto Brados de Comiserao a favor das almas do purgatrio
(s/d) encontramos a seguinte indicao das atividades desenvolvidas pela
Livraria Portugueza:
Neste estabelecimento h um variadssimo
sortimento de compndios adoptados em todos os lyceus, collegios, aulas e
escolas oficiais e particulares do reino; livros de missa e semana santa, desde
o preo de 160 reis at 9$000 reis; obras msticas aprovadas pelas autoridades
eclesisticas; literatura histrica e clssica, de direito e medicina; uma
abundante colleco de romances dos melhores autores e a preos reduzidos; bom
sortido de obras recreativas e populares; obras theatraes; dramas, comedias,
scenas e poesias cmicas; livros em branco, cartilhas, pautas, traslados,
almanachs e reportrios de todos os autores, histrias e contos em prosa e
verso para o povo; Alphabetos, taboadas, methodo faclimo, catecismo, Manual
Enciclophedico; impressos para as escolas e professores de instruo primaria. Grande
desconto para revender. Pedidos a Joaquim Maria da Costa, com direo acima
mencionada.
Alm dos cordis publicados pela Livraria
Portugueza, tive acesso a textos e colees de histrias populares publicados
por outros casas como a Typographia de Antonio Alvarez Ribeiro (Officina de
Antonio Alvarez Ribeiro; Tipografia da viva Alvarez Ribeiro & Filhos); o
Bazar Feniano - Livraria de Antonio da Silva Santos & C, que depois passa
para Diamantino da Silva Cardoso, j no sculo XX; a Livraria Chardron de Lello
& Irmo; a Livraria Lello e irmo; a Typographia Gandra e Filhos; a
Livraria de J. E. da Cruz Coutinho e a Livraria Civilizao, de Eduardo da
Costa Santos. O pesquisador Arnaldo Saraiva tambm menciona, no seu livro Folhetos
de cordel e outros da minha coleo, outras 16
livrarias/tipografias/oficinas da cidade do Porto que editavam cordis
(SARAIVA, 2006).
Selecionei uma coleo editada por Ramiro
Moreira da Costa para acompanhar o percurso desses livros: a Coleo de
Histria Populares. Os livros dessa coleo eram impressos na Typographia a
vapor de Arthur Jos de Souza & Irmo, Largo de S. Domingos, 66-67 (ou
74-76). Cada ttulo da coleo era vendido, em 1904, por 60, 80 ou 100 reis.
Segundo Giselle Martins Venncio,
As colees criadas pelas casas
editoriais europeias podem ser consideradas o principal instrumento de
afirmao do poder dos editores marcando uma verdadeira ruptura no processo de
publicao de livros desenvolvido at ento. A criao de colees populares
foi, justamente, o que permitiu aos editores o estabelecimento de um comando
editorial atravs do qual eles passaram a estabelecer as normas do mercado (VENNCIO,
2005, p. 5).
No percurso feito pela pesquisadora, trilhando
os caminhos da coleo Biblioteca do Povo e das Escolas, e que envolve trs
livreiros/editores – David Corazzi, Lisboa; Francisco Alves, Rio de
Janeiro e Gualter Rodrigues, Cear –, possvel conhecer aspectos da histria
dos livros, desvendando, pelo menos em parte, a dinmica cultural que se estabelecia
entre a Europa e as diversas regies do Brasil no sculo XIX (VENNCIO, 2005,
p. 5). Seguindo esse mesmo caminho, tento traar uma cartografia da produo e
comercializao de folhetos de cordel, de finais do sculo XIX at as primeiras
duas dcadas do sculo XX, levada pela mo do poeta Leandro Gomes de Barros.
Mas, antes, sigo a refazer o percurso que me trouxe de volta para o Brasil.
Tive acesso a 29 ttulos da Coleo de
Histrias Populares, o mais antigo deles datado de 1891. Ttulos como as
verdadeiras histrias da Princesa Magalona, da Imperatriz Porcina, de Joo de
Calais, do infante D. Pedro de Portugal, do Imperador Carlos Magno, passando
pela Verdadeira Malicia e maldade das mulheres e a malicia dos homens (1901)
e chegando Histria curiosa e engraada do Preto e o Bugio Ambos no Matto,
discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil e acrescentado com o
engraado Tango Americano e O velho, o rapaz e o burro e as canonetas –
o sonho (1897).
A editora tambm
publicava a Bibliotheca de Leituras Populares, que reunia obras mais voltadas
para histrias de crimes, venturas e desventuras amorosas, milagres de santos,
monlogos para amadores dramticos, entre outros ttulos. E ainda, segundo
informaes de Arnaldo Saraiva, a coleo de contos populares portugueses
– 16 ttulos publicados desde o ano de 1885.
Joaquim Maria da Costa,
no folheto Breves noes de Histria Ingleza, escreve a seguinte advertncia:
Advertncia do
editor aos leitores dos livrinhos
Quando me
resolvi publicar a Bibliotheca da Histria de todos os povos no tive em mira
lucros a auferir de tal publicao, mas to somente divulgar o mais possvel
pelas classes menos abastadas, que no conhecem as lnguas estrangeiras umas
breves noes, ou pequeno resumo da Histria das grandes naes do mundo para
instruo no s dos portugueses, mas dos filhos da outras naes que desejem
aperfeioar-se no nosso idioma. Os portuguezes encontraro nesta amena leitura
o conhecimento dos principaes factos dos povos que at hoje mal conheciam, e
aos estrangeiros servir-lhe- de estmulo ao estudo quando desejem dedicarse
lngua portuguesa, pois que ao mesmo tempo que se habilitam, pelo estudo, a uma
lngua estranha, utilizam e recordam os feitos heroicos dos seus antepassados.
Se o Editor desta interessante colleco de livrinhos uteis, poder conseguir o
que intenta, julgar-se- bem pago do pequeno servio que julga prestar quelles
que desejam instruir-se, preenchendo com esta publicao uma lacuna que desde
h muito se sentia na literatura portuguesa. Porto, 1 de maro de 1903. O
editor, Joaquim Maria da Costa.
Foi a partir dos anos 1845 que comearam a
surgir as sries e colees populares em Portugal, destinadas ҈ vulgarizao
de um modelo massificado da boa literatura, de conhecimentos teis ou de
formas de comportamento social e moral (PINTO; MONTEIRO, 2013, p. 206). A
abertura do mercado e a possibilidade de os editores ganharem dinheiro com a
comercializao de obras parecia desagradar aos intelectuais e literatos, mas
garantiu o sustento de muitas famlias e contribuiu para a profissionalizao
desses mesmos trabalhadores.
Os livrinhos uteis que chegavam s classes
menos abastadas atravessaram o mar e chegaram s mos de outro livreiro
portugus. Nesse mesmo folheto de 1903 aparece a informao de venda das obras
editadas na Livraria Portugueza para a ndia, frica, EUA (Califrnia) e
Brasil. No Brasil o depsito geral de livros era a livraria do snr. Ramiro
Moreira Costa & C, em Pernambuco.
E chego ao nosso segundo viajante, atraco no
cais do porto, em Recife, e caminho at a rua 1 de Maro, onde estava
localizada a Livraria Contemporanea de Ramiro Moreira da Costa. Em 1890, j
aparecem notcias sobre caixas enviadas a Ramiro Costa em vapores que chegavam
de Lisboa ao porto do Recife (Jornal A provncia, 21 de janeiro de
1890). A livraria vendia materiais para escritrio, instrumentos musicais,
tinta e typos, brinquedos, impressos, ferragens, papel, livros, pratos de
porcelana, pinturas de artistas franceses, charutos, imagens sacras,
fotografias, mveis, bolsas escolares...
Sobre a vida movimentada do estabelecimento, do
conta as seguintes notcias publicadas tambm no jornal A provncia:
-
Exposio do retrato do grande chefe abolicionista e republicano cearence Joo
Cordeiro, feito por Libanio Amaral (15 de maio de 1890);
-
Exposio Peitoral de Cambar – quadro com a fotografia do suntuoso
estabelecimento Agrico Industrial do Parque Pelotense [...] onde funciona a
importante fbrica do precioso medicamento denominado Peitoral de Cambar (18
de janeiro de 1891);
-
Exposio de um grande quadro das fotografias do atelier Frederico Ramosa (2
de junho de 1891);
-
Anncio procura de professor para atuar no engenho da Gamelleira, tendo a
livraria como local de contato (21 de janeiro de 1900).
Chama
a ateno uma exposio de um quadro de suntuoso estabelecimento que poderia
funcionar para atrair compradores para um remdio que seria vendido,
futuramente, no mesmo estabelecimento loja. A presena de anncios para a
contratao de professores tambm evidencia o importante papel desempenhado
pela livraria no campo da instruo e formao de novos leitores e leitoras.
Ramiro Moreira da Costa viveu 76 anos, entre
idas e vinda a Portugal para cuidar da sade e dos negcios. Chegou ao Brasil
em 1878, desembarcando no Maranho, onde foi comerciante durante algum tempo.
Depois, em 1888, instalou a Livraria Contemporanea na cidade do Recife que
passa, a partir de 1905, a aparecer nas notcias de jornal com o nome de Ramiro
Moreira da Costa & Filho. Nesse perodo, o local, mais do que um ponto de
venda, era um ponto de encontro de intelectuais, a exemplo do que acontecia no
Rio de Janeiro, como demostram os estudos sobre livrarias, tipografias e
editoras de Hallewell (1985), Abreu e Schapochnik (2005) e Venncio (2005),
para citar apenas alguns nomes.
Ramiro Costa participou da vida cultural e de
negcios da cidade do Recife. Foi suplente da comisso fiscal do Banco Popular,
eleito em 1891; em 1900 possua 20 aes da Companhia Tethys de seguros
martimos e terrestres; foi procurador do senhor Jos Gonalves Dias,
proprietrio de fbrica de surragem, compra e venda de solla, sita a rua da
Palma, n. 97 (A provncia, 16 de maio de 1900); fez parte da comisso
de rbitros da Alfndega de Pernambuco para o fim de resolver sobre as
questes que forem suscitadas acerca da classificao de mercadorias, na
Classe 19 – Papel e suas aplicaes (A provncia, 14 de maro de
1901); juiz por devoo da tradicional festa do senhor Bom-Jesus do Bom-Fim a
realizar-se no dia 01 de janeiro de 1906 na cidade de Olinda; acionista da
Companhia Industrial Fiao e Tecidos de Goyanna, em 1906, negcio que passa a
ser de um dos seus filhos; membro da Junta administrativa da Santa Casa de
Misericrdia do Recife, 1916, e, por fim, integrante da Comisso Pro-Ptria
criada em funo da situao melindrosa de Portugal diante da declarao de
guerra feita pela Alemanha (A provncia, 20 de maro de 1916). Temos aqui
apenas alguns exemplos da atuao de Ramiro Costa na cidade de Recife e tambm
em Goyanna (atual Goiana-PE), nas duas primeiras dcadas do sculo XX.
Durante o velrio do seu filho, Eugenio de Almeida Costa,
morto aos 36 anos, compareceram associaes religiosas, membros de associaes
manicas, alto comercio, funcionrios pblicos estaduais e federais (A
provncia, 09 de agosto de 1921). Talvez esse seja um bom resumo dos
espaos ocupados pelo comerciante e da atuao do Costa de c, durante as cinco
dcadas em que viveu na cidade do Recife.
E
eis que surge o poeta
Construir uma cartografia de editores,
impressores e livreiros das cidades do Porto e do Recife me levou a um encontro
inusitado com o poeta Leandro Gomes de Barros, encontro este que terminou por
me trazer de volta s questes que me inquietavam, naquele ano de 2013: sobre os
novos escritores que circulavam em feiras e exposies, recebiam cachs para
participarem de eventos culturais e acadmicos, chamados de verdadeiros agentes
culturais. Seguindo os passos de Ramiro da Costa, atravs dos jornais
disponveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, como
descrito anteriormente, eis que me deparo com a seguinte notcia: Enviado pelo
seu autor o sr. Leandro Gomes de Barros, recebemos ontem um exemplar de sua
edio de versos sobre A Morte do dr. Jos Marianno. Gratos. (Jornal de
Recife, 20 de junho de 1912).
Leandro Gomes Barros, assim como o Ramiro
Moreira da Costa que comunicava ao Jornal as novidades que chegavam sua
livraria, tambm anunciava suas novas produes. Em 16 de novembro de 1915, o mesmo
jornal noticia um opsculo do poeta, tomando por tema a morte do D. Luiz
Raymundo da Silva Brito, arcebispo de Olinda. No dia 31 de maio de 1916, temos
a seguinte notcia:
Um protesto
Veio ontem ao
nosso escritrio o sr. Leandro Gomes de Barros, autor de numerosos versos
populares, tais como A vassourinha e tantos outros e declarou-nos protestar
contra o sistema de alguns indivduos venderem livros de versos com o seu nome.
Entre outros citou o nome do Sr. Simo Francisco Marques, que assim procedeu no
Amazonas.
Protestos
semelhantes tambm foram feitos pelo poeta Gonalves Dias, como comprovam os
estudos de Marisa Lajolo: o poeta se queixava na imprensa sobre a distribuio
no Brasil de exemplares da edio de seus poemas intitulados Contos,
publicados em 1857 pelo tipografo/editor alemo Brockhaus, pois o contrato com
a editora s permitia a distribuio do livro na Europa (LAJOLO, 2005).
A
participao de Leandro no mundo das editoras e livrarias no se restringia
edio e venda de folhetos. possvel afirmar que ele administrava, com a
ajuda da filha Rachel, que assinava muitos dos seus folhetos como uma forma de
garantir a originalidade da cpia, um completo sistema de produo e
comercializao. O poeta se inseria nas brechas do sistema (capitalista,
globalizado) que envolvia, alm da escrita, a edio, publicao e venda de
livros; a participao nas redes de socializao da cidade de Recife e de outras
cidades; o envio de notas para os jornais e as viagens constantes s cidades de
Juazeiro do Norte-CE, Paraba e Rio Grande do Norte, alm de cidades do
interior dos estados de Pernambuco. A imagem do poeta popular com sua mala de
livros debaixo do brao, vendendo em feiras de pequenas cidades do serto, no
parece compor, por completo, a figura do Leandro Gomes de Barros que venho
tentando desenhar.
Em
23 de agosto de 1917, o poeta enviou ao jornal A provncia o folheto O
po e a batata. Essa primeira notcia que encontrei me conduziu a uma srie de
outras notas publicadas em jornais de Pernambuco e do Cear. No jornal O
rebate (Juazeiro do Norte), de 28 de novembro de 1909, publica o cordel Lucta
do diabo com Antonio Silvino. A partir dessa publicao, localizei outros 6
poemas, todos publicados numa seo intitulada Lyra Popular:
-
A creao do mundo, em 19 de dezembro de 1909;
-
As capas de uma viva, em 16 de janeiro de 1910;
-
Ciume de duas noivas, em 23 de janeiro de 1910;
-
O padre de Joazeiro, em 06 de fevereiro de 1910;
-
A proclamao dos banhos, em 20 de fevereiro de 1910;
-
As lagrimas de Antonio Silvino por Tempestade, em 6 de maro de 1910.
O
folheto Lucta do diabo com Antonio Silvino, publicado no jornal com um total
de 26 estrofes, est disponvel na Coleo Cordel, da Fundao Casa de
Rui Barbosa, numa verso com 40 estrofes. Nesse folheto tambm consta o poema
Vingana dum filho. Foi publicado ainda nessa coleo o folheto As lagrimas
de Antonio Silvino por Tempestade.
Sobre
o jornal O Rebate sabemos que foi impresso em Juazeiro do Norte-CE entre
os anos de 1909 e 1911, com edies semanais, geralmente aos domingos. Fundado
pelo padre Joaquim de Alencar Peixoto, tambm diretor e redator-chefe do jornal,
tinha como propsitos contribuir para a autonomia poltica de Juazeiro, naquela
poca subordinado ao Crato, e defender o Padre Ccero, um dos principais
motivadores e apoiadores do peridico. Assis Daniel Gomes analisa os poemas
publicados na seo Lyra Popular, nos anos de 1909 e 1910, e enumera os
principais temas e poetas que ocuparam as pginas do jornal (GOMES, 2013).
Leandro Gomes de Barros estava entre os primeiros, com 48% das citaes.
A publicao do folheto O padre de Joazeiro,
em 06 de fevereiro de 1910, evidencia um trao do poeta que difere dos muitos
outros folhetos nos quais a defesa do clero jamais aparecia. Talvez como parte
das estratgias do poeta para se inserir na cultura letrada, o tom bastante
ameno e h mesmo uma defesa do padre contra todos que o acusavam de se
aproveitar da f e devoo dos pobres com fins polticos:
No serto do Cear
Apareceu um pastor
E qual outro Christo,
nosso
Adorvel Salvador,
um anjo de bondade
Enviado do Senhor.
um pastor exemplar
O padre do Joazeiro
Do-lhe esmola e d
esmola
E no interesseiro
Tudo que faz de graa
No aprecia dinheiro.
[...]
A uns quinze dias
passados
Disse-me um velho
romeiro
Que est suspenso de
ordem
Por no ser interesseiro
Os padres detestam elle
Por no gostar de dinheiro.
[...]
Elle desses que
detestam
A maldita corrupo
Julga que a graa de
Deus
o verdadeiro po
E o homem lucra tudo
Se ganhar a salvao.
As
notcias veiculadas nos peridicos chamam a ateno para uma rede de
sociabilidade que coloca o poeta em contato com as chamadas elites intelectuais
da cidade de Recife e tambm do Juazeiro do Norte, alm de profissionais
liberais e comerciantes em geral. Vejamos os que dizem os estudos mais recentes
sobre a obra do poeta e sobre a literatura de folhetos do Nordeste.
Sobre o campo literrio que envolve a literatura
de cordel, evidencio os estudos da pesquisadora Bruna Paiva de Lucena que vem
discutindo, desde a sua dissertao de mestrado, defendida em 2010, esses
lugares de disputa. No seu livro Poticas a cu aberto: o cordel e a crtica
literria, Lucena (2018) tece crticas concepo escriptocntrica da
literatura brasileira e a forma como a crtica literria, em especial as obras
de Silvio Romero, Jos Verssimo, Afrnio Coutinho e Antonio Candido, lida com
a presena/ausncia das literaturas de tradio oral na vida cultural do pas.
Lucena
(2018), no captulo I – Fora do Prumo, discorre ainda sobre as
estratgias de resistncia utilizadas pelos/as escritores/as no mbito das
poticas perifricas e populares. Menciona, a partir dos questionamentos de
Judith Butler (posicionalidade estratgica) e James C. Scott (resistncia
cotidiana), formas de resistncia presentes nas prticas dos/as escritores/as
da literatura de cordel, que, para alguns setores do meio erudito, podem
parecer formas de submisso.
Acredito que as prticas de Leandro Gomes de
Barros, as estratgias utilizadas pelo poeta para conseguir viver de poesia,
no adquiram esse carter de submisso, mesmo quando aparecem em meios eruditos.
O trnsito entre os locais da cultura (BHABHA, 2005) por onde transitava
revela, talvez, muito mais uma insero pelas bordas, com a inteno de fazer
parte do centro, do que uma submisso, mesmo que estratgica. Leandro ocupa os
jornais, as livrarias, os locais de prestgio, ao mesmo tempo que vende seus
folhetos nas feiras, viaja pelos interiores com sua mala e compra briga na
rua com aqueles que vendem seus poemas por debaixo do balco.
Um escritor que vive da venda de seus folhetos,
que circula por vrias cidades do Nordeste, que publica versos em um jornal de
Juazeiro do Norte-CE, no parece se encaixar no perfil traado por alguns
pesquisadores e repetido infinitas vezes nos estudos sobre a chamada poesia
popular. Vejamos a biografia presente no site da Fundao Casa de Rui
Barbosa:
Sua atividade potica o obriga a viajar
bastante por aqueles sertes para divulgar e vender seus poemas e tal fato
comentado por seus contemporneos, Joo Martins de Atade e Francisco das
Chagas Baptista [...]. Foi um dos poucos poetas populares a viver unicamente de
suas histrias rimadas, que foram centenas. Leandro versejou sobre todos os
temas, sempre com muito senso de humor.[69]
Nascido
na cidade de Pombal-Parahyba, em 1865, mas criado at os quinze anos na cidade
de Teixeira, possvel afirmar que a formao de escritor passa pela mo de
padres da Igreja Catlica (era sobrinho do Padre Vicente Xavier de Farias), de
poetas/cantadores da cidade, como Francisco Romano, Germano da Lagoa e Silvino
Pirau, de frequentadores das livrarias, tipografias e redaes de jornais e do
mercado So Jos, na cidade de Recife, sem falar nos trilhos do trem. Como
sabemos, a Rede Ferroviria do Nordeste (antiga Great Western of Brazil Ry)
unia os estados do Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco e Alagoas. Nesse
mapa esto interligadas as cidades de Recife, Fortaleza, Teresina e depois
Belm, que passou a ser um centro de produo e distribuio de folhetos no
Brasil.
As andanas de Leandro Gomes pelos sertes
sempre aparecem nas notas biogrficas. O que nunca aparece a sua atuao no
meio intelectual da cidade de Recife, o convvio entre os homens de letras,
as conversas na Livraria Contemporanea, visitas s bibliotecas e gabinetes de
leitura (disso no tenho notcia, mas quero poder imaginar que, de fato,
aconteciam).
possvel desenhar um mapa de percurso do poeta
na cidade do Recife: da rua 1 de Maro, onde se localizava a Livraria
Contemporanea, para o Mercado So Jos eram 7 minutos a p; o Gabinete
Portugus de Leitura ficava a 2 minutos da Livraria e a Cmara Municipal, onde
funcionou a Biblioteca Provincial (no perodo de 1875 a 1930), a 14 minutos,
com uma passagem pela ponte Santa Isabel, ltima ponte sobre o rio Capibaribe.
Leandro Gomes de Barros, que escrevia, imprimia
e vendia seus folhetos, tambm fazia suas performances nos mercados e estaes
de trem, conversava com intelectuais da cidade, pagava anncios de suas
produes nos jornais e denunciava alguns indivduos [por] venderem livros de
versos com o seu nome, como pudemos acompanhar nesse estudo. Ruth Terra
informa que o poeta vendia seus folhetos nas ruas de Recife, nos bares do largo
das Cinco Pontas, nas estaes de trem e dentro dos trens (TERRA, 1983). Essa
informao parece ter contaminado todas as outras aes do poeta, como se
vender folhetos na rua e nas estaes de trem o impossibilitasse de tambm
publicar seus versos em jornais e participar de ciclos de conversa e trocas de
experincias de leitura em locais frequentados pela elite intelectual da
cidade. Um pblico urbano, com prticas de sociabilidade que envolvem os
gabinetes de leitura, as bibliotecas, as livrarias, parece no fazer parte da
histria da literatura de cordel. E essa imagem vai se propagando nos vrios
estudos sobre o gnero.
Por fim, retomo a discusso sobre cartografias e
mapas na tentativa de imprimir mais alguns versos a essa narrativa. Para Harley
(1990), a cartografia nunca apenas o desenho de mapas – ela a
fabricao de mundos. E j que eu posso fabricar mundos, mas no sem muito
esforo e apoiada em alguma documentao, imagino um mundo separado por um
oceano, mas unido por poetas e cantadores, tipgrafos e homens de negcio.[70] Conversas na Livraria
Contemporanea, visitas aos jornais e tipografias, calorosos debates em praas
pblicas. As trocas culturais, nesse mundo globalizado do sculo XIX, como
afirma Jean-Yves Mollier (2008), desafiam as fronteiras que ns mesmos,
pesquisadores desse sculo XXI, insistimos em levantar. E se, no gnero
editorial cordel, Belm fica bem mais perto de Recife do que a Parahyba, o
Porto fica logo ali.
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[Recebido:
29/12/2020 – Aceito: 29/12/2020]
Movimento cult do Rio de Janeiro e os discurso sobre o coco de Pernambuco
Movimento cult in Rio de Janeiro and discourses about
coco de Pernambuco
Genilson Leite da Silva [71]
https;//orcid.org/0000-0002-7098-7125
Bruno Rodolfo Martins [72]
https;//orcid.org/0000-0002-6480-3676
Resumo: Este artigo trata das tenses, prticas, discursos, entre pessoas, lugares e disputas de narrativas, em torno do que chamado genericamente de cultura popular. Como recorte, identificamos o circuito de rodas culturais existente na cidade do Rio de Janeiro – chamado aqui de Movimento cult – como expresso tpica dessas tenses, e que, de alguma forma, reatualiza as relaes de poder j demarcadas pelos folcloristas do pas desde o incio da Repblica. Como exemplo, analisamos uma dessas tenses relacionada ao Coco realizado nessas rodas, que fez emergir embates demarcados por questes de cultura, raa, origem nativa e tradio. Caracteriza-se por pesquisa etnogrfica e tem como procedimento de coleta de dados a netnografia e observao participante, como tticas para dar conta das questes relacionadas contemporaneidade. A partir disso, identificou-se relatos de como esse Movimento reproduz o projeto colonial implcito das dinmicas prprias das elites dominantes diante dos grupos dominados. Por fim, transforma essa cultura popular em produto de consumo da elite para si prpria, em que se extingui, a cada dia, sua fora poltica, seus aspectos de resistncia cultural e a participao de populares, visto o preo de mensalidade das aulas e dos ingressos para os shows, deixando seus criadores fora da roda.
Palavras-chaves: Movimento Cult; Rodas Culturais; Coco; Projeto colonial; Indstria Cultural.
Abstract: This article deals with tensions, practices, discourses, between people, places and narrative disputes, around what is generically called popular culture. As an excerpt, we identified the circuit of cultural circles existing in the city of Rio de Janeiro - here called Movimento Cult - as a typical expression of these tensions, and that, in some way, refreshes the power relations already demarcated by the country's folklorists since the beginning of the Republic. As an example, we analyzed one of these tensions related to Coco carried out on these wheels, which caused clashes deriving due to issues of culture, race, native origin and tradition. It is characterized by ethnographic research and its data collection procedure is netnography and participant observation, as tactics to deal with issues related to contemporaneity. Based on that, reports were identified of how this Movimento reproduces the colonial project implicit in the dynamics of dominant elites in the face of dominated groups. Finally, it transforms this popular culture into an elite consumer product for itself, where its political strength, its aspects of cultural resistance and the participation of the people are extinguished every day, given the price of tuition for classes and tickets for school. the shows, leaving their creators out of the roda.
Keywords: Movimento Cult; Cultural Rodas; Coco; Colonial project; Cultural Industry.
Reflexes iniciais sobre Movimento Cult e o circuito das rodas culturais
Ritualisticamente, alguns grupos culturais se alternam em dias previamente marcados todos os meses do ano para a realizao de rodas em espaos pblicos: uns fazem rodas de Coco, outros de Jongo ou Samba de Roda, entre outros brinquedos populares. Ou, como dito em 2014, por um integrante de um desses grupos: fazemos tudo, mas, nossa especialidade jongo. Seus integrantes se conhecem e se revezam muitas vezes participando da roda de outros grupos, para fortalecer essa rede.
Para o pblico desavisado, essas rodas so expresses mximas de uma suposta cultura brasileira que podem ser contempladas, apreciadas, participadas e em alguma medida, consumidas. So oportunidades nicas para se ter acesso a elas no modo delivery: sem sair de casa. Nesse sentido, (1) sendo brinquedos populares locais da cidade ou do estado, no seria preciso se deslocar para as periferias de onde so nativas, nem ter contato com as comunidades locais e tradicionais que as praticam e mantm seus sentidos polticos de resistncia cultural vivos; e (2) sendo brinquedos de outros estados, no seria preciso viajar para poder curtir, comentar ou compartilhar.
A existncia e a estruturao do Circuito de Rodas Culturais pela cidade do Rio de Janeiro (e em algumas cidades prximas), o que satiricamente chamamos aqui de Movimento Cult, exemplifica algumas tenses tpicas e histricas fomentadas pela academia e por folcloristas pelo pas, diante das culturas populares, tradicionais, folclricas, enfim, pelas culturas dos outros, das pessoas excludas e marginalizadas pelo sistema social vigente. Sobretudo, pela forma como se colocam habilitados a desenvolver/realizar prticas que fazem parte da memria de um povo, apropriando-se do que foi/ ferramenta de resistncia e usando como simples atividade de lazer ou produto a ser vendido no mercado do extico. Em alguma medida, traz elementos novos, em especial, as questes conjunturais, como as escassas polticas pblicas de editais, ou o que chamamos de modinha pelo que popular e afro-indgena das regies Norte e Nordeste[73] do Brasil.
No incio dos anos 2000, surgem alguns grupos que poderamos chamar de parafolclricos, considerados aqui como grupos que trabalham com propagao, divulgao e/ou a comercializao das ditas manifestaes folclricas ou cultura popular brasileira. Esses grupos, ainda vale destacar, so independentes de instituies, pois, apesar de terem estudantes universitrios, no esto vinculados a nenhuma universidade.
Nesse sentido, importante para esta anlise a existncia da Cia Folclrica do Rio[74], vinculada Escola de Educao Fsica e Desportos – EEFD da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em atuao na cidade bem antes dos anos 2000, e que influenciou e influencia ainda a formao desses outros grupos, mesmo que indiretamente: uns seguindo o modelo de ao da mesma, alguns outros se contrapondo ou se descobrindo nesse processo de construo de um coletivo. Mas algo em comum pode demonstrar uma certa unidade nesses grupos: a maioria de seus integrantes estudaram na UFRJ, e alguns, com mais nfase, passaram pelos cursos da EEFD, tiveram contato com a Cia. (seja por aulas, eventos ou apresentaes), e outros compuseram durante algum tempo (ou ainda compem) o corpo da mesma.
Podemos supor que, antes dos anos 2000, a conjuntura no favorecia a criao desse tipo de grupo parafolclrico independente; afinal, se desde a dcada de 1980 j havia a Cia Folclrica, por que s na virada do milnio haveria esse gosto pelo extico e essa vontade de montar e compor um grupo? Em outro caminho mais contundente, por que a ausncia de gosto pelo extico natural da regio prpria do Sudeste? Seguimos com a provocao: cad a Folia de Reis, Clvis, Bate-bolas, Mineiro-pau, Congada, Batuque de umbigada? No, os universitrios do Sudeste nunca pensaram na extino dessas manifestaes prprias dos estados do Sudeste, discursos vazios e sem ao efetiva e que s servem as manifestaes do Norte ou Nordeste do pas, tpico da academia para ter acesso direto ao objeto de pesquisa.
bem mais que um gosto do extico ou uma preocupao com a suposta extino de um brinquedo popular qualquer. Trata-se, uma vez mais, como dizem Simas e Rufino (2020), do projeto colonial em curso, que preza a mortandade e todos os seus caminhos. Pensar que essas aes so mortais no nenhum exagero. Os mesmos autores insistem na necessidade de encantamento do mundo, no retorno aos modos de viver que se direcionam para a vida.
E, aqui, se trata da vida das populaes negra, indgena, perifrica, favelada, escolhidas para serem marginalizadas pelo sistema social que vivemos, e que sempre foi alvo desse projeto, tanto no sentido do genocdio, como no sentido do semiocdio, que silencia modos de comunicar, vises de mundo, linguagens e palavras, como diz Sodr (2005, p. 4). Mas essas culturas de que tanto se quer vivenciar so produzidas por essas populaes, e sempre o fizeram enquanto ttica de resistncia, enquanto poltica de vida, em busca de manter o encantamento do mundo e de si mesmas. Justamente, por essas e outras questes, Simas e Rufino (2020, p. 15) escrevem que o extermnio e a subalternizao secular de princpios comunitrios e de prticas rituais contrrias ao padro dominante so um dos componentes da poltica de mortandade e do desencantamento do mundo.
No basta(ria) a apreciao esttica do outro, tampouco a avaliao etnocntrica e arrogante de uma salvaguarda emergencial de um brinquedo igualmente avaliado como em perigo de deixar de existir, exigindo uma ao supostamente consciente do povo do sul[75] em cuidar dessas manifestaes culturais afro-indgenas do Norte e do Nordeste. E, aqui, esse cuidado nada menos que ocupar espaos culturais, polticos e pedaggicos que devem/deveriam estar ocupados pelas populaes tradicionais que mantm esses brinquedos de resistncia desde a criao dos mesmos.
A tese recorrente e que traduz essa situao a premissa de que a cultura popular do povo, logo, para qualquer pessoa se servir dela, desconsiderando as desigualdades sociais e raciais que estruturam a sociedade, permitindo o acesso, o estudo e, como vemos, a reproduo vontade e descompromissada com as autorias tradicionais por pessoas de classe mdia e com oportunidades de classe correspondentes; enquanto os agentes culturais de raiz continuam desfavorecidos – como antes, e agora, somando-se a tais concorrncias nas disputas por seus prprios lugares (usurpados) de direito.
Carlos
Brando percorre uma linha similar e denuncia as desigualdades das relaes de
poder nessa expanso do popular, e v como engano a ideia de circularidades
proposta por pesquisadores como Nstor Garca Canclini, Peter Burke ou Renato
Ortiz.
Em tempos em que convivemos com conceitos como culturas hbridas, hibridizao de culturas ou circularidade de/entre culturas, um provvel engano poderia ocorrer ao estabelecermos como uma panfolclorizao todo o complexo trabalho de criao cultural dos diferentes sujeitos e povos negros ao longo de nossa histria, esquecendo que uma parte importante do que consideramos erudito em nossas realizaes artsticas mais diversas tambm, e em boa medida, resultado do trabalho de suas mos e mentes (BRANDO, 2009, p. 725).
Para o autor, esse engano desconsidera a forma como a cultura popular capturada pelas elites, que a ressignifica, e retiram seu pertencimento aos populares. Nesse processo, so expropriadas pela elite, passando a receber um rtulo de erudito ou clssico como forma de desvalorizao e desqualificao do popular. Entre os jarges que poderiam resumir essa questo est o que diz: a cultura negra boa, desde que no praticada por pessoas negras.
Waldenyr Caldas comenta sobre um processo de fetichizao da cultura do outro e nos diz que
uma das formas de a classe dominante manter seu poder sobre as demais classes sociais por meio da produo e do consumo da cultura diferenciados. Ela no deve, segundo sua prpria ideologia de classe dominante, consumir os mesmos produtos das classes subalternas. E realmente no os consome (CALDAS, 2008, p. 82).
No toa esse crescimento oportuno de grupos e de ocupaes de espaos pblicos, assim como a vontade de viver da/s cultura/s apresentada/s por seus componentes, e as adaptaes realizadas pelos mesmos diante dos brinquedos para conseguir isso.
Continuamos enfticos no tratamento dessa questo: o circuito do Movimento Cult vem ocasionando para as manifestaes tradicionais/culturais intensas transformaes que as descaracterizam e deformam suas prticas, no s por romper com seus processos ritualsticos, mas por criar novos processos que buscam sofistic-las a ponto de descaracteriz-las. Vemos a imposio de uma esttica que expropria as prticas a ponto de criar grau de valor, em que se legitimada pela uniformizao e no pela capacidade de improvisao, criatividade, espontaneidade, individualidade, coletividade, cooperatividade ou pertencimento.
Afinal, para que sofistic-la? Esse termo indica que essas culturas precisariam se tornar acessveis sensibilidade das elites, e que seus produtores originais deveriam adaptar-se para que as mesmas sejam dignas de serem consumidas. Nesse sentido, o que trazemos para pauta o reconhecimento de que o circuito do Movimento Cult no seria apenas um espao de manipulao do popular, espao de uma vontade ingnua e um desejo utpico, mas tambm um espao de comercializao da cultura.
Essa concorrncia, tpica da estrutura comercial, se mostra desleal, pois nivela agentes culturais que esto desigualmente posicionados na estrutura social, diante das disputas de editais e suas correspondncias burocrticas, complexas para esses prprios universitrios, quanto mais para os grupos tradicionais que tiveram pouco acesso a um ensino de qualidade, ou ainda em condies desfavorveis para se organizarem para tais empreitadas, ou mesmo estarem sujeitos a vulnerabilidade social. Proporcionalmente a isso, tambm surgem pessoas entre esses grupos parafolclricos se autointitulando mestres e mestras dessa ou de outra tradio, ou de vrias(!).
Importa salientar que essa sofisticao est a servio desse projeto colonial e de base capitalista que, logo, busca retirar dessas manifestaes seu poder libertrio e sua autonomia, com o intuito de manter os privilgios e as hierarquias sociais baseadas nas desigualdades de raa, cultura e origem produzidas pelos herdeiros da colnia. Com isso, elevar as culturas populares categoria de eruditas est mais relacionado com o processo de esfoliao, que vem despir essas culturas de seu carter poltico, eliminando assim qualquer possibilidade de emancipao e independncia de seus produtores originais, transformando-a por fim em mero produto a ser consumido, domesticando-as.
Zezito de Arajo demonstra que, para serem reconhecidas ou simplesmente apresentadas para a sociedade, essas culturas so estigmatizadas e estereotipadas. Em termos gerais, destaca que
ao se folclorizar a cultura, folcloriza-se com ela, o
indivduo e o grupo racial. [Isso faz] parte de um mecanismo histrico de
produo do homem-espetculo ou espetaculoso, do ser extico e leviano, e, como
tal incorporado dimenso no-sria (ARAJO, 2011, p. 4).
Transforma-se numa cultura sem valor, mas com preo. Algo que pode ser comprado, usado e descartado. Quando traduzimos isso para seus praticantes tradicionais, a morte que se estabelece, seja simblica ou fsica. No seria uma preocupao urgente a vida dessas pessoas?
A reflexo pertinente de Michel Nicolau (2005, p.141-142) demonstra trs modos de se matar a cultura, e ambas se retroalimentam muitas vezes: um modo exotizar a cultura, no qual se perde a herana, por no conseguir se reproduzir; outro modo desprezar a cultura, provocando esquecimento e isolamento, devido a sua no incluso no sistema social; e uma outra padronizar, passando pela perda de identidade, se adequando ao sistema, mas perdendo suas caractersticas prprias de criao. Em suma, sob essa mesma lgica, as culturas podem ser coisificadas e mortas, e as pessoas que a produzem, tambm.
Esse escrnio ocorre na mesma dinmica escancarada que tornou o mito da democracia racial como uma verdade tanto para negros, quanto para brancos. Muitas vezes, grupos e mestres populares, assim como povos e comunidades tradicionais, de forma paradoxal, so em certo ponto gratos a esses praticantes que levantam a bandeira da cultura popular, no a deixando acabar(!?).
O espetculo das ruas no caminho de uma indstria cultural (?)
A busca por insero numa sociedade na qual tudo espetacularizado, em que transformaes impostas de fora para dentro dessas tradies culturais, em que as mesmas so praticadas com outros propsitos por pessoas tambm de fora das tradies, atribuindo valores aliengenas s mesmas, se torna o fundamento desse tipo de Movimento.
Essa sociedade se torna um local onde o irreal assume o topo de uma hierarquia a servio de uma sociedade do espetculo, onde o espelho reflete imagens turvas e essas imagens devem ser reproduzidas em grande escala (ADORNO, 2002). Problematizamos essa reproduo pelo fator da hierarquizao e as normas de conduta pr-determinada.
O fato de oferecer ao pblico uma hierarquia de qualidades em srie serve somente qualificao mais completa. Cada um deve-se portar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nvel, determinado a priori por ndices estatsticos, e dirigir-se categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo (ADORNO, 2002, p. 172).
Essa busca por uma padronizao (seja de uma dana, msica, figurinos etc.) nada mais que uma tentativa de se encaixar como um produto aos olhos da indstria cultural. Para alcanar tal status, perde-se e abre-se mo de prticas antigas, rituais, cdigos e identidades. Silencia-se as subjetividades, a criatividade, a espontaneidade e a capacidade de improvisao dos indivduos envolvidos. Cria-se um espao onde a tcnica sistemtica, espao onde o improviso no permitido, e por fim, a diversidade tem um exemplar a seguir.
Fica ntida a violncia simblica, uma vez que os smbolos e cdigos de povos e comunidades tradicionais sucumbem diante dessas demandas; tm a forma de violncias psicolgicas, uma vez que essas referncias tradicionais, frente s suas necessidades, veem suas prticas cotidianas gerando renda a terceiros, enquanto as mesmas sub-existem financeiramente.
A violncia da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indstria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distrao. Mas cada um destes um modelo do gigantesco mecanismo econmico que desde o incio mantm tudo sob presso, tanto no trabalho quanto no lazer que lhe semelhante (ADORNO, 2002, p. 175).
Acreditamos na capacidade transformadora da cultura popular e reduzi-la a um produto nesse contexto o mesmo que desvalorizar toda histria de vida e resistncia de praticantes da mesma como matriz geradora; transformar a cultura em algo descartvel como todo e qualquer produto desenvolvido atualmente pelo sistema capitalista, conforme a obsolescncia programada.
O Coco dos cariocas (?)
Ater-se s questes pura e simplesmente esttica apenas mais uma forma de alienar os dominados para que esses no percebam o que realmente ocorre. Seguindo uma linha reflexiva objetivada pelo projeto colonial, podemos observar que alguns aspectos que caracterizam as rodas e eventos de Coco do Rio de Janeiro apresentam ou buscam apresentar caractersticas que, de certa forma, tentam manter uma (suposta) esttica similar ao que ocorre no Nordeste. O que ao nosso olhar soa como uma estereotipao: uma construo de personagens que se fazem presentes no imaginrio do sudestino.
H nesses movimentos, a dinmica de trazer referncias tradicionais (na pessoa de mestres e mestras, ou outras pessoas envolvidas com tradies do Coco) para o Rio e promover com essas uma turn onde essas referncias so levadas a vrios lugares ou a grupos, para passar seus conhecimentos aos sudestinos aventureiros desbravadores da cultura, que colaboram com contribuies simblicas, voluntrias ou conscientes, em que, depois de arcar com algumas despesas, tal montante dessas contribuies ser entregue a essa referncia mestra. Podemos questionar ainda por que o valor da aula ou oficina oferecida por essas referncias, via de regra, sempre um valor inferior ao pago pela pessoa participante? H nessas prticas os resqucios do que Taussig (2010, p. 15) denomina de fetichismo da mercadoria, que para ele pode ser interpretado como o que transforma pessoas em coisas e coisas em pessoas.
Avaliamos nesse sentido que, para alm da prpria cultura tradicional ser adaptada e servida como produto, as referncias tradicionais so tambm coisificadas, colocadas num contexto de prestao de servios, perdendo poder de negociao, sendo intermediadas por terceiros, como que empresrios ou produtores de artistas de elite, que tomam para si boa parte do montante – sem, contudo, a premissa de um acordo que formalizasse isso. Mestres e mestras so tratados quase como uma propriedade desse ou daquele grupo, que se coloca como intermedirio entre outros grupos, pessoas interessadas e instituies com potncia de realizar algum contrato.
Outra questo que chama a nossa ateno a prepotente capacidade – ou seria tpico exerccio de poder – desses grupos em legitimar qual nordestino pode ou no falar sobre, ou questionar essa dinmica. A exemplo disso, apresentamos a anlise de dados recolhidos nas redes sociais. Neles, observamos a tenso criada entre esses grupos parafolclricos do Rio de Janeiro e um nordestino, que, de passagem pela cidade no ano de 2018, questiona as dinmicas e o modo do fazer Coco dos grupos cariocas.
Visamos captar essas tenses como resultado da mercantilizao da cultura e como retrato do projeto colonial, atravs do processo de deslegitimao ou desqualificao de seu discurso. Um tpico exemplo que transforma as tradies populares em coisa produto, como tambm seus praticantes tradicionais – que podem at ter voz, mas no sero escutados.
A partir desse recorte, observamos que os grupos do Rio de Janeiro foram taxativos em desqualificar o discurso desse nordestino pernambucano, Ednaldo, hoje assumindo o nome social Caetana da Silva devido ao processo de transio de gnero a qual est passando. Ela reivindicava questes relacionadas aos fundamentos presentes na estrutura e nos rituais existentes na manifestao. Acredita-se que essas reivindicaes expressariam uma disputa de territrio e nicho de mercado, uma vez que a mesma era uma potente concorrente do grupo parafolclrico Zanzar[76], que ministra suas aulas e oficinas de cultura popular no Circo Voador, ao lado da Fundio Progresso, local onde Caetana ministra suas oficinas de danas e ritmos pernambucanos.
Caetana se autolegitima atravs do discurso de ter vivncia com mestres e mestras de Coco e Maracatu de Pernambuco, alm de ser nativa do mesmo estado. Segundo ela, nos eventos dos grupos do Rio h uma descaracterizao da manifestao no que diz respeito aos rituais, estrutura e funo. J os grupos do Rio apontam um essencialismo na argumentao de Caetana, junto ao desejo de se autodenominar mestra e dona da cultura nordestina. Como em todas as tenses, h um pouco de verdade em cada um dos lados. Por um lado, vemos uma pessoa nordestina que vem para o Sudeste na esperana de sobreviver de apresentaes, aulas e oficinas de dana popular, porm a mesma fora alertada sobre a importncia de fechar com esses grupos para poder transitar de forma harmnica entre os mesmos e ainda fazer uma grana. Por outro, temos os grupos criativos que inventam movimentos, toques e rituais estranhos ao Coco, descaracterizando-o.
Os Cocos no Nordeste, mais precisamente de Pernambuco, mesmo s vezes denominados Coco de roda, tm uma estrutura aberta, na qual quem brinca livre para transitar pelo espao e essa mesma liberdade dada a tocadores, diluindo a rigidez de papel fixo para os mesmos. Outro aspecto importante na brincadeira a falta de uma coreografia ou de movimentos muito elaborados, o que estimula a criatividade dos brincantes, assim como tambm se torna algo mais convidativo e envolvente. A insistente batida dos ps no cho, o trup, dialoga com o ritmo dos tambores e nos remete a uma relao com a natureza e as ancestralidades afro-indgena. A dana marcada por pisadas firmes no cho que reverbera por todo o corpo que se posiciona projetado para terra como um tipo de reverncia e conexo com a terra.
J no Rio de Janeiro, a manifestao acontece em um espao restrito com delimitao do mesmo em formato de crculo e com casal solista. Observamos nessas rodas de Coco uma dinmica de compra semelhante da capoeira, na qual os participantes que pretendem substituir uma das pessoas no centro, ou o casal, precisa, ritualisticamente, saldar os instrumentos ou os tocadores, e posteriormente aquele a quem se deseja substituir. Os movimentos so construdos tendo como influncia os movimentos dos Cocos nortistas e nordestinos. Observa-se uma abordagem genrica dos gestos, uma vez que esses mesclam as diferentes expresses da manifestao existente no Norte e Nordeste.
Nos grupos do Rio, os movimentos so amplos com grandes deslocamentos dentro do crculo, e percebe-se tambm uma coreografia complexa que exige grande habilidade de seus participantes, fatores esses que projetam na roda uma perspectiva de palco, onde o casal solista protagonista de um espetculo e cada integrante tem um papel definido que pode ser revezado. Logo, a conexo com a terra, espiritualidades e ancestralidades afro-indgenas passam a ser secundrias em relao questo esttica ali posta, h uma preocupao esttica sobre o melhor figurino, o melhor posicionamento dos braos, o melhor trup, a performance atltica. Os saltos e uma horizontalidade do corpo que desvirtuam a relao do contato e conexo com a terra, interferindo assim no fluxo de energia. H tambm pouco dilogo com o ritmo: no se dana para e nem com a msica.
Os aspectos que distinguem uma manifestao da outra as colocam em relao de contraponto ou conflito entre ancestralidade e show, entre o encantamento e a performance atltica, que se faz presente nos objetivos daqueles que os praticam. No Rio, a delimitao espacial, a construo cnica e a incluso de roupas estereotipadas do tipo roupas de ir para roda, onde as mulheres vestem saias de chita, cada vez mais coloridas e rodadas e os homens ficam mais vontade denotam uma performance que sofre grandes influncias das dinmicas vivenciadas nas aulas de outros estilos de dana e de teatro, extraindo das manifestaes populares, no caso do Coco, sua dimenso poltica e social em nome de um suposto resgate, que no passa de um desservio. Um des-encantamento.
Consideraes nem to finais
O relato aqui apresentado foi construdo a partir de observaes dos eventos nas rodas e de conversas e tenses que se passaram nas redes sociais e de nossa experincia enquanto pesquisadores, mas tambm como brincadores no tradicionais preocupados com as tradies e seus brincadores. Durante esse perodo, percebemos o grande fluxo de pessoas que se interessam pelas culturas populares nordestinas e logo procuram desvirtuar suas potencialidades polticas e sociais por interesse prprio ou por modinha. Criam grupos que disputam os poucos editais ofertados pelas Secretarias de Cultura, tomando na mo grande as poucas chances de grupos e mestres tradicionais em ter acesso a algum recurso que minimamente permitiria aos mesmos desfrutar de transporte e alimentao para participaes em eventos.
Durante esse perodo de experincia visitando mestres e grupos tradicionais, o que foi percebido aqui no Rio de Janeiro que esses universitrios guardies da cultura popular raramente esto dispostos para as manifestaes do sudeste, exceto samba, carnaval e jongo; to escassa quanto sua disposio para se deslocar para regies mais distantes da cidade, como tambm Baixada Fluminense. Comumente, esses se limitam a percorrer o circuito de roda que tem sua variao entre o Centro do Rio e a Zona Porturia (Lapa, Rua do Lavradio, Praa XV, Cais do Valongo, Largo da Prainha, Pedra do Sal, Praa Mau) e o subrbio (limitado entre Mier e Madureira), ou alguns eventos espordicos em datas comemorativas como no caso da festa tradicional do Boi Brilho de Lucas, em Parada de Lucas, ou do Quilombo de So Jos no Vale da Serra, em Valena, no interior do estado. Em relao a esses dois ltimos, o primeiro disponibiliza nibus saindo da Lapa para o transporte ida e volta, gratuitamente, para quem desejar ir para a festa, que tambm espao de apresentao desses mesmos grupos. O segundo virou um evento anual que tem at empresa de turismo oferecendo pacotes de viagem para apreciao da festa, onde esses grupos de universitrios se digladiam para fazer parte da festa com a finalidade de expor seu trabalho para a comunidade do Movimento Cult e ganhar notoriedade que posteriormente render alunos e apresentaes financiadas.
Para ns, ficam ainda algumas questes renitentes: ser que esse modelo de grupo parafolclrico serve resistncia cultural, enquanto colaboradores potentes dos grupos, mestres e mestras tradicionais, ou sero aqueles que padronizam, folclorizam e enquadram as tradies s regras sociais dominantes, aos fetiches da elite, ao comrcio do extico?
Seria mais cmodo a esses grupos se organizarem para brincar, do que para apoiar grupos tradicionais? Ou seria, na verdade, mais conveniente?
Ou continuam se vangloriando de supostas influncias salvacionistas que os mesmos estariam promovendo com suas aes (de pesquisa e montagem de espetculos[77]) entre os grupos tradicionais?
O circuito de rodas culturais do Movimento Cult promove algum encantamento, no sentido que Simas e Rufino (2020) indicam? Aplicam uma poltica de vida para, com ou pelos grupos tradicionais, ou participam construindo ainda mais invisibilizao, padronizao e morte, ocupando os lugares daqueles outros que as criaram e as mantiveram desde sempre?
Referncias
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TAUSSIG, Michael. The
devil and commodity fetishism in South America. Chapel Hill: TheUniversity of North Carolina Press, 2010, pp. xi
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Amrica do Sul. So Paulo:
Editora da Unesp, 2010, p. 11-15; 17-20; 23-69).
[Recebido: 31 dez 2020 – Aceito
:18 mar 2021]
Testemunhos da catstrofe:
memrias do trauma em Vozes de
Tchernbbil
Catastrophy testimonies:
memories of trauma in Voices from
Chernobyl
Joyce Rodrigues Silva Gonalves[78]
https://orcid.org/0000-0003-4643-1810
Resumo: Este artigo tem como objetivo
realizar uma breve anlise da obra de Svetlana Aleksivitch, Vozes de
Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a partir da perspectiva
dos estudos memorialsticos. O livro rene relatos orais de pessoas que
vivenciaram, direta ou indiretamente, a maior catstrofe tecnolgica do sculo
XX, ocorrida na usina de Tchernbil, na ento Unio das Repblicas Socialistas
Soviticas em abril de 1986. O gnero testemunho permite que sejam ouvidas as
memrias traumticas de pessoas comuns, como camponeses, residentes das aldeias
no entorno da usina nuclear, donas de casa, mes e pais de famlias, bem como
de profissionais ligados produo de energia em Tchernbil, como engenheiros,
fsicos nucleares, professores, bombeiros e militares soviticos.
Palavras-chave: Histria; Oralidade;
Catstrofe; Testemunho; Tchernbil.
Abstract:
This
article aims to conduct a brief analysis of the book of Svetlana Aleksivitch, Voices from Chernobyl: the oral history of a
nuclear disaster, from the perspective of memorialistic studies. The work
gathers accounts of oral speech from people who experienced, directly or
indirectly, the greatest technological catastrophe of the 20th century, that
occurred at the Chernobyl nuclear power plant, in the Union of Soviet Socialist
Republics, in April 1987. The testimony genre allows the memories of ordinary
people, such as peasants, residents of the villages around the nuclear power
plant, housewives, mothers and fathers of families, as well as professionals
related to energy production in Chernobyl, as engineers, nuclear physicists,
teachers, firefighters and Soviet military.
Key-words: History; Orality;
Catastrophe; Testimony; Chernobyl.
Escolhi o gnero das vozes das pessoas espreito e ausculto
meus livros nas ruas, atrs das janelas. Nelas, pessoas reais contam os
principais acontecimentos de seu tempo: a guerra, a queda do imprio
socialista, Tchernbil, e todos eles conservam na palavra a histria do pas, a
histria comum. Tanto a antiga, como a mais recente. E cada um guarda a
histria de seu pequeno destino humano.
Svetlana Aleksivitch, autora bielorrussa, se
dedicou escrita de testemunhos traumticos, registrando em suas obras as
memrias de centenas de pessoas que vivenciaram as guerras e as demais
tragdias soviticas. Aleksivitch afirma, em seu discurso proferido na
Academia Sueca, Estocolmo, na ocasio do recebimento do prmio Nobel de
literatura em 2015, que a memria do povo sovitico uma memria sempre
traumtica, que a histria da (s) nao (es) soviete (s) nunca foi tranquila,
e que a isso essas pessoas esto familiarizadas: A memria nos inspira. Ns
sempre vivemos no terror, somos capazes de viver no terror; o nosso habitat.
E nisso, o nosso povo no tem rivais... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 227).
Na obra Histria, Memria, Literatura: o
testemunho na era das catstrofes, Mrcio Seligmann-Silva (2003) avalia que
o sculo XX considerado um perodo catastrfico, uma vez que ocorreram vrias
revolues, duas guerras mundiais, tragdias humanas, polticas e tecnolgicas.
Em Catstrofe e representao, Seligmann-Silva e Nestrovski (2000)
renem ensaios que tecem consideraes a propsito dos limites da linguagem, do
pensamento e da imaginao na representao da catstrofe nas artes. A tica da
representao um ponto crucial, principalmente na esttica da recepo, uma
vez que a crtica das artes, e aqui privilegiamos a literatura, exerce seu
papel tambm em relao s escritas de si, em que a voz narrativa se coloca em
primeira pessoa, como nos gneros autobiogrficos, memorialsticos. A obra de
Svetlana Aleksivitch constituda por testemunhos, em que os lembradores se
colocam a rememorar suas experincias traumticas. A despeito de esses sujeitos
no escreverem suas prprias memrias, concederam entrevistas autora para que
ela o fizesse.
Embora a pequena cidade de Tchernbil seja
localizada na Ucrnia, as consequncias da exploso do reator nmero quatro de
sua usina nuclear se estenderam por grande parte da Europa, particularmente e
de modo mais intenso pela Bielorrssia, j que a cidade se localiza muito
prximo fronteira com esse pas. Os impactos do desastre na populao
vulnervel vo desde os danos fsicos, psicolgicos, sociais, at o desamparo
dos direitos humanos, que foram, de modo geral, negligenciados.
Svetlana Aleksivitch utiliza em suas obras a
tcnica da metodologia oral, do discurso falado atravs dos testemunhos que
recolhe de pessoas comuns. Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do
desastre nuclear, os relatos nos permitem ter uma noo do que essas
pessoas sentiram ao vivenciar tamanha tragdia e os impactos dela desde sua
deflagrao at os dias atuais, j que a zona de excluso, extenso territorial
no entorno da usina, est permanentemente condenada. sua terra envenenada.
Sendo a autora uma das pessoas atingidas pelo desastre de Tchernbil, ainda que
indiretamente, no captulo inicial da obra em anlise ela tece suas prprias
consideraes acerca do que significou o incidente e como suas vidas foram
definitivamente mudadas a partir de ento. A primeira reao foi um
emudecimento diante do fato trgico: Entre o momento em que aconteceu a
catstrofe e o momento em que comearam a falar dela, houve uma pausa. Um
momento de mudez. E todos se lembram dele... (ALEKSIVITCH, 2016, p.
41).
O silncio que se instaurou perfeitamente
compreensvel, considerando que em situaes traumticas normal que as
pessoas fiquem em estado de choque, que no saibam nem mesmo como reagir.
Ademais, aquelas que, mesmo perplexas, poderiam vislumbrar alguma explicao,
que poderiam de algum modo elaborar o trauma, no encontravam meios para tal. A
cincia, a literatura, a filosofia tambm no as possibilitavam uma
sistematizao racional da catstrofe, o que explica o porqu
[C]alaram-se os filsofos e escritores,
expulsos de seus canais habituais da cultura e da tradio. Naqueles primeiros
dias, era mais interessante conversar no com cientistas, funcionrios ou
militares com muitas medalhas, e sim com os velhos camponeses. Gente que vivia
sem Tolsti e Dostoiviski, sem internet, mas cuja conscincia de algum modo
continha uma nova imagem de mundo. E ela no se destruiu (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 42).
Os camponeses, pessoas simples em sua maioria,
tambm no sabiam ao certo o que havia ocorrido, mas o impacto em suas vidas
foi tamanho que alterou seus destinos. A maioria foi evacuada dois, trs dias
depois, umas e outras acabaram retornando revelia das orientaes do Estado.
Mesmo as que emigraram tiveram a sade seriamente comprometida, famlias
destrudas, planos arruinados. esse o principal enfoque da obra de Svetlana:
Eu quero narrar a histria de forma a no perder de vista o destino de nenhum
homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 50).
Em Vozes
de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a autora privilegia
memrias que so, simultaneamente, individuais e coletivas. Do ponto de vista
do coletivo, importa dizer que as reflexes de Maurice Halbwachs (2004) em seu
livro A memria coletiva contriburam
imensamente para a compreenso das questes sociais que compem a memria. Para
o terico francs, a memria aparentemente mais particular remete a um grupo. O
indivduo carrega em si a lembrana, mas est sempre em interao com a
sociedade, seus grupos e instituies. no contexto dessas relaes que nossas
lembranas so construdas. Como nao, o pensamento coletivo predominou
durante muito tempo entre os soviticos: [M]as isso tambm a imagem da
barbrie, essa falta de medo pela prpria vida. Ns sempre falamos ns e no
eu: ns mostraremos o herosmo sovitico, ns revelaremos o carter
sovitico para o mundo todo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 333).
Do ponto de vista individual, Svetlana
Aleksivitch permite que histrias particulares sejam conhecidas, que sejam
contados destinos conduzidos pela catstrofe. O pensamento individual surge
mesmo nas amarras do coletivo: [D]epois de Tchernbil, sente-se isso. Ns
temos aprendido a dizer eu. Eu no quero morrer! Eu tenho medo! [Natlia
Roslova, presidenta do Comit Mulheres de Moguilov] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
334).
O primeiro dos relatos na obra de Svetlana de
Liudmila Igntienko, esposa grvida de um dos primeiros bombeiros que foram
enviados ao reator para tentar apagar o incndio aps a exploso. A mulher
descreve como tudo aconteceu e como se deram as duas semanas seguintes, em que
viu o esposo se esvanecer rapidamente em um hospital de Moscou em consequncia
da sndrome aguda radiativa. A descrio chocante, carregada de horror. Aps
a morte do marido, a esposa encontra nos sonhos uma alternativa para
sobreviver, neles ela se encontra novamente com seu amado e com a filha que
nascera morta em razo da radiao a que esteve exposta enquanto acompanhava e
cuidava do homem. Liudmila confessa: Assim vou vivendo. Vivo ao mesmo tempo
num mundo real e irreal. No sei onde me sinto melhor, e completa: As pessoas
no querem ouvir falar da morte. Dos horrores [...] Mas eu falei do amor, como
eu amei (ALEKSIVITCH, 2016, p. 37-38).
A fuga da realidade bastante recorrente ao
longo do livro e se mostra de diversos modos. A prpria autora reconhece: A
realidade resvala, no cabe no homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 49). H um relato
interessante que exemplifica esse resvalamento do real, em que a voz que
testemunha o desastre se coloca alm da realidade, que parece viver uma vida
imaginria, surreal:
E eu me lembro do duende. Ele vive h muito
tempo aqui comigo, no sei exatamente onde, saiu do forno. De capuz preto e
roupa preta com botes brilhantes. No tem corpo, mas se move. Durante um tempo
eu pensei que fosse meu marido que vinha me ver. Veja s... Mas no. um
duendezinho... Vivo sozinha e no tenho com quem falar, de modo que noite eu
conto para mim mesma o dia que passou. [Maria Fedtovna Veltchko, cantora
popular e contadora de histrias] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 210).
A alucinao surge, nesse caso,
como consequncia do trauma vivido e da solido ps-catstrofe. Alis, muitas
pessoas vivenciaram/vivenciam a solido ps-Tchernbil, pois vrias perderam suas famlias ou
acabaram se isolando de algum modo.
Aps o perodo inicial em silncio, os
atingidos pela catstrofe comearam a retomar o fato e elaborar suas memrias
traumticas. Mas, afinal,
[P]ara que as pessoas recordam? Para
restabelecer a verdade? A justia? Para se libertar e esquecer? Ou por que
compreendem que participaram de um evento grandioso? Por que buscam no passado
alguma proteo? E, alm disso, a recordao uma coisa muito frgil, efmera,
no um conhecimento exato, uma suposio do homem sobre si mesmo. Isso
ainda no conhecimento, apenas sentimento. [...]. Para que as pessoas
recordam? a minha pergunta. Mas eu falei com voc, pronunciei algumas
palavras. E compreendi alguma coisa... Agora no sinto to sozinho. Mas o que
acontece com os outros? [Piotr S., psiclogo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 55-57).
O relato acima bastante consciente da
dificuldade da assimilao dos fatos; considerando-se que foi proferido por um
psiclogo, perfeitamente compreensvel. Mas, como a testemunha j sinalizara
em sua fala, como as pessoas lidam com suas prprias lembranas, de modo geral,
algo problemtico a ponto de se questionarem: [E]nto, o que melhor:
lembrar ou esquecer? [Evguni Aleksndrovitch Brvkin, professor da
Universidade Estatal de Gmel] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 131).
H uma relao intrnseca
entre lembrana e esquecimento. O sujeito que rememora est sempre colocando em
evidncia uma memria selecionada, consciente ou inconscientemente, enquanto
rechaa outras partes das experincias vividas. Quando o lembrador no se d
conta desse movimento, como se houvesse uma amnsia decorrente do trauma
vivenciado. O relato abaixo exemplifica essa falha da memria, uma lacuna que
pode ser considerada em termos neurolgicos e tambm
psicolgicos/psicanalticos:
[E]u me esqueci de tudo. S lembro que estive
ali, mas no me recordo de mais nada. Eu me esqueci de tudo. No terceiro ano
depois da desmobilizao, aconteceu uma coisa na minha memria... Nem os
mdicos entendem... No consigo sequer contar dinheiro, me perco. Perambulo de
um hospital a outro... J contei isso, ou no? [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 104).
Trauma e amnsia esto, portanto,
frequentemente e intimamente relacionados, assim como as lembranas
encobridoras, sinalizadas por Sigmund Freud et al. (1969) como uma forma de
escamotear memrias traumticas ao se rememorar fatos mais triviais do passado.
Algumas pessoas tinham a noo da contribuio
que seria prestar seus testemunhos para a histria oficial: [L]embrar? Eu
quero e no quero lembrar. Se os cientistas no sabem nada, se os escritores
no sabem nada, ento os ajudaremos com a nossa vida e a nossa morte [Ktia
P.] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 147). Outras precisavam contribuir consigo mesmas:
No me pergunte. No vou dizer. No vou falar nada sobre isso... No, eu posso
conversar com voc para tentar entender, se for possvel [Nina Kovaliova,
esposa de um liquidador] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 269).
Por outro lado, houve aqueles que sentiam
necessidade de testemunhar suas experincias traumticas, como Nikolai Kalguin
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 65): [E]u quero testemunhar. Isso aconteceu h dez
anos e todo dia se repete comigo. Agora mesmo. Carrego isso sempre comigo. No
sou escritor, no saberia como contar... Mas sou testemunha. Observamos nessa
fala que o trauma se repete na memria, que no foi elaborado nem superado. No
caso desse personagem, a fatalidade maior se concretizou na morte da filha,
motivo pelo qual o homem se revolta e reitera: [E]u quero testemunhar, a minha
filha morreu por culpa de Tchernbil. E ainda querem nos calar (ALEKSIVITCH,
2016, p. 68). Percebemos nesse discurso que houve um silenciamento imposto
pelos responsveis pela tragdia e pelo prprio Estado, por isso a importncia
da histria oral para preencher as lacunas da histria oficial.
Um motivo muito comum que leva algum a
testemunhar sobre determinado acontecimento a conscincia da finitude da
vida. medida que o tempo passa, sente-se a necessidade de revelar algo
importante, principalmente quando se trata de um fato histrico, como o caso
do acidente em questo. Os documentos com registros sobre o desastre de
Tchernbil foram destrudos por vrias razes: primeiro porque,
burocraticamente, os papis oficiais na Unio Sovitica s eram arquivados
durante trs anos, depois porque eram radiativos, e, por ltimo, porque houve a
reestruturao do exrcito e a dissoluo das unidades administrativas e
militares depois da Perestroika. Porm, alguns conjecturavam uma circunstncia
muito plausvel: [] possvel que tenham sido destrudos para que ningum
soubesse a verdade. E ns somos testemunhas. Mas em breve morreremos [Annimo]
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 117).
Alm da omisso de documentos, houve tambm
omisso de verdades. As autoridades diziam que estava tudo sob controle,
enquanto os habitantes de aldeias ao redor de Tchernbil recebiam altssimas
dosagens de radiao. Algumas comunidades foram evacuadas, outras no. Os camponeses
continuaram a cultivar, colher e consumir normalmente os alimentos que
plantavam. Muitos deles foram persuadidos a permanecerem em suas casas, pois
eram tambm mo de obra para o Estado.
No apenas pessoas comuns, que viviam no campo
e em pequenas aldeias foram enganadas, tambm militares tiveram informaes
omitidas enquanto serviam ao Estado, alguns foram enviados para o trabalho em
Tchernbil aps o acidente sem ao menos terem conhecimento disso, apenas foram
convocados e encaminhados. Um dos militares que testemunha na obra de Svetlana
afirma que no os informavam sequer os valores das doses radiativas que estavam
recebendo durante o trabalho: [o]s roentgen que nos tocavam eram segredo
militar. [...]. Nem sequer ao partirmos disseram quanto... Cachorros! Filhos da
puta [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Vrias denncias da mesma natureza
so encontradas ao longo das narrativas na obra em anlise.
Havia ainda controvrsias entre cientistas
sobre os riscos que corriam os militares em servio. Alguns afirmavam que no
havia problema nenhum, outros alertavam para o mal que faria a exposio
radiao. Uns acreditavam que estavam seguros, outros sabiam do perigo e das
provveis consequncias.
De fato, era plenamente compreensvel que as
pessoas fossem facilmente ludibriadas pelas autoridades, e at mesmo que no
acreditassem, quando eram advertidas, no perigo a que estavam sujeitas com a
alta radiao, uma vez que estavam lidando com um inimigo invisvel:
A culpa da radiao ou de quem? Como ela ?
Vai ver, mostraram-na em algum filme. Voc viu? Ela branca ou o qu? De que
cor? Uns contam que ela no tem cor nem cheiro, outros contam que negra. Como
a terra! Se no tem cor, como Deus: est em todo lugar, mas ningum v.
Querem nos assustar. As mas esto penduradas nas rvores e as folhas tambm,
as batatas esto crescendo no campo... O que eu penso que no houve nenhum
Tchernbil, que inventaram isso tudo. Enganaram as pessoas [Anna Petrvna
Badieva, residente na zona contaminada] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 83).
Podemos observar no trecho acima a descrena
naquilo que no materializado, no que no visto a olhos nus, o que acentuou
o perigo das partculas radiativas. Para a personagem, se a vida continua
seguindo seu curso normalmente, ento no houve catstrofe, est tudo certo. Em
outro relato percebemos tambm essa necessidade de materializao do perigo.
Duas idosas garantem ter visto o monstro da radiao:
Pois olhe: est vendo aquela casa ali meio
construda? Os moradores a abandonaram e foram embora. Por medo. Uma noite
dessas fomos ver por dentro. Olhamos pela janela. E ali estava, debaixo de uma
viga, a radiao. Com uma cara ruim e olhos de fogo! Negra, negra!
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 317).
Tal fala soa como uma alucinao, uma neurose
traumtica, como descrita pela psicanlise de Freud et al. (1969) em seu texto O
mecanismo psquico do esquecimento. Esse mesmo mecanismo pode ser observado
no caso do relato da mulher que v um duende em casa. Enfim, cada um encontra
uma forma para conduzir suas experincias traumticas, seja para lembr-las ou
para esquec-las, ainda que atravs de uma pulso de morte, que seria uma
soluo e, para uns, at mesmo uma bno: [D]e alguns Deus se apieda, mas a
mim ainda no concedeu a morte. Continuo viva [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 71).
A morte, alis, um tema predominante nos
relatos reunidos na obra de Aleksivitch e estava
presente entre indivduos de todas as faixas-etrias, inclusive os natimortos.
Como consequncia do desastre aumentaram os ndices de abortos, tanto
espontneos quanto induzidos, e houve um grande desequilbrio entre as taxas de
natalidade e mortalidade na regio no perodo ps-catstrofe.
Alguns soldados que estiveram nas guerras em
que a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas lutou afirmam que a tragdia
de Tchernbil se equipara situao blica. medida que as pessoas iam
morrendo em decorrncia de doenas desencadeadas pela radiatividade, os
enfermos j imaginavam seus momentos finais: [N]o est claro como vou morrer.
Se eu pudesse escolher a minha morte, seria uma morte comum. No como as de
Tchernbil. A nica coisa que sei que com o meu diagnstico no se dura
muito. [...]. Estive no Afeganisto. Ali a coisa era mais fcil. Com uma
bala... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120).
A iminncia da morte pairava sobre todo o povo
de Tchernbil, at mesmo as crianas tinham conscincia disso. Uma das
testemunhas relata uma cena que presenciou em um nibus, em que um menino no
cedeu seu lugar a um idoso, que o repreendeu dizendo: Quando voc for velho,
tambm no vo te ceder o lugar. Eu nunca vou ficar velho, respondeu o
menino. E por qu?. Todos ns vamos morrer logo [Llia Kuzmenkova,
professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 299).
Um dos captulos finais de Vozes de Tchernbil dedicado ao coro de crianas e adolescentes
que a autora entrevistou em um hospital, e os relatos so profundamente
tristes, trgicos. Um adolescente conta como vrios de seus amigos e colegas de
tratamento j se foram e se mostra resignado com a morte iminente:
Mas como me aborrecem essas paredes cinza do
hospital. Como estou fraco ainda. [...]. E a minha chega. Ontem ela (a me)
pendurou um cone na enfermaria. Cochicha alguma coisa naquele canto, se pe de
joelhos. Todos se calam: professores, mdicos, enfermeiras. Acham que eu no
suspeito de nada. Que no sei que vou morrer em breve (ALEKSIVITCH, 2016, p.
348-349).
Em vrios dos testemunhos orais podemos
observar a perspectiva infantil da morte, como uma criana que sabia que o av
estava morrendo e queria ver como que sua alma sairia voando. As brincadeiras
frequentemente giravam em torno da catstrofe da usina: [E]u tenho um
irmozinho pequeno. Ele adora brincar de Tchernbil. Constri um abrigo, cobre
de areia o reator. Ou ento se veste de espantalho e corre atrs de todo mundo:
Uh-uh-uh! Eu sou a radiao! ALEKSIVITCH, 2016, p. 348). Na escola desenhavam
a Tchernbil submersa no caos do acidente nuclear, ainda que pouco ou nada
fosse dito sobre a questo. O silncio sobre a catstrofe nas escolas era uma
realidade, uma vez que havia falta de informaes para repasse, censura do
Estado e at mesmo um bloqueio psicolgico que impedia que as pessoas em
Tchernbil conversassem entre si sobre o desastre. Geralmente falavam sobre o
fato com estrangeiros, jornalistas e parentes que no residiam na zona
contaminada.
As memrias de crianas so realmente
impactantes, das mais singelas s mais trgicas e desoladoras. Viam tudo que
possuam ser enterrado em grandes buracos, suas casas com todos os seus
pertences, livros, brinquedos:
[E]enterram tudo com areia e barro e comprimem.
No lugar da aldeia fica um campo liso. A nossa casa est enterrada l. E a
escola, o soviete local. E tambm o meu herbrio e dois lbuns de selos, que eu
sonhava em buscar. Eu tinha uma bicicleta. Tinham acabado de comprar para mim
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 346).
O desastre significou uma guerra atmica, desde
a movimentao de pessoas na regio at a luta pela vida. Alguns utilizavam a
expresso campo de concentrao, campo de Tchernbil para se referirem ao
territrio contaminado pelos elementos qumicos radiativos. [...] hoje a
guerra outra. No dia 26 de abril de 1986, ns sobrevivemos a uma guerra. Uma
guerra que no terminou (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120). Os militares e todos os
que serviram em Tchernbil foram considerados por muitos como heris:
Eu os considero heris, e no vtimas de
guerra, de uma guerra que como se no tivesse acontecido. Chamam de acidente,
de catstrofe. Mas foi uma guerra. At os nossos monumentos de Tchernbil
parecem militares [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao
Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).
Assim como acontece em um cenrio
de guerra, as pessoas serviam, muitas voluntariamente, outras por presso.
Contudo, no recusavam a misso, at mesmo cientistas se dispuseram ao trabalho
braal, como conta uma testemunha Svetlana:
[S]ou engenheiro qumico, doutor em cincias
qumicas, e me obrigaram a abandonar o emprego de responsvel por um
laboratrio qumico num importante complexo industrial. E como me utilizaram?
Pem nas minhas mos uma p. Esse foi praticamente o meu nico instrumento. Foi
aqui que nasceu o aforismo: contra o tomo, a p [Ivan Jmkhov] (ALEKSIVITCH,
2016, p. 247).
Aqueles que sobreviveram catstrofe tiveram
que lidar, como se no bastasse o trauma imensurvel do desastre e as condutas
de guerra, com o preconceito e a discriminao. [A]s pessoas tm medo de ns.
Dizem que somos contagiosos. Por que Deus nos castigou? [Annima]
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 74). O fato de terem sido altamente expostos radiao
os tornou um povo txico:
Podamos ter ido embora daqui mas considerei
com meu marido e decidimos ficar. Temos medo das outras pessoas. Aqui ao menos
so todos de Tchernbil. No assustamos um ao outro; se algum oferece mas ou
pepinos do seu jardim, da sua horta, ns pegamos e comemos. No escondemos os
alimentos com vergonha no bolso para depois jog-los fora. Todos ns temos a
mesma lembrana, a mesma sorte. Em qualquer outro lugar, em qualquer parte ns
somos estranhos. Apestados. Olham para a gente de rabo de olho. Com receio. As
pessoas nos chamam gente de Tchernbil, crianas de Tchernbil, evacuados
de Tchernbil. J estamos acostumados [Nadijda Burakova, habitante do povoado
urbano de Jiniki] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 290).
Podemos observar no relato supracitado que os
danos foram muito alm de fsicos, psicolgicos e materiais, mas tambm foram
morais, afetaram a vida humana, social, e at ntima. Sabendo da impotncia
sexual masculina como uma das sequelas da alta radiao, um jornalista tentou
tratar do assunto com alguns militares que atuaram no acidente; entretanto,
nenhum deles se abriu para falar sobre a questo; conseguiu somente
confidncias de algumas mulheres que os conheciam:
[O]lhe, agora mesmo estavam sentados aqui com
vocs uns rapazes (elas riem), pilotos. Uns caras de dois metros. Cheios de
medalhas. Para os sovietes eles so bons, mas para a cama no prestam [Serguei
Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para
Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).
O fantasma da consequncia ntima, sexual,
cercava os homens que trabalharam diretamente no acidente nuclear, pois as
mulheres, tendo conhecimento disso, no desejavam se unir a eles para namorar
nem casar:
[G]ostei de uma garota: Vamos namorar?. Para
qu? Voc agora um dos de Tchernbil. Quem vai querer casar com voc?.
Conheci outra garota. Nos beijamos, namoramos. A coisa estava ficando sria.
Vamos nos casar, eu propus. E ela me perguntou algo mais ou menos assim:
Ser que voc pode? Est em condies?. Eu iria embora daqui, e certamente
ainda vou. Mas tenho pena dos meus pais... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
115).
Tchernbil passou a ser considerada como
doena:
[U]m dia, morreu inesperadamente uma jovem
grvida. Sem diagnstico algum, nem sequer o patologista deu o diagnstico. Uma
menina se enforcou. Do quinto ano. Assim, sem mais nem menos. Os pais ficaram
loucos. O diagnstico era o mesmo para todos: Tchernbil, quando acontecia
algo, todos diziam: Tchernbil... [Nina Konstantnovna, filloga, professora]
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 165).
Alm de diagnstico mdico, Tchernbil passou a
servir tambm como justificativa para os problemas da nao, assim como as
guerras. A catstrofe trouxe novamente as medidas extremas por parte do
governo, redistribuio e racionamento: [a]gora surgia a possibilidade de
jogar tudo na conta de Tchernbil. Se no fosse Tchernbil... (ALEKSIVITCH,
2016, p. 335).
A catstrofe criou um povo, surgiu um novo
grupo: [o] mundo se dividiu: h os de Tchernbil, ns; e h vocs. O resto dos
homens [Nikolai Jrkovi, professor] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 172).
A metodologia de coleta de informaes e
testemunhos utilizada por Svetlana Aleksivitch proporciona a exposio de
vrios casos, crendices e supersties, o que comum na histria oral. Essas
vozes reunidas formam um coro, como denominado pela prpria autora em alguns
captulos do livro. Muitas ressoam a religio e a f, um suporte comum e
efetivo para a sobrevivncia daqueles que recorrem crena e se apegam a ela.
O humor, apesar de contraditrio, s vezes, se
tornava tambm um modo de escapismo, uma espcie de fuga da realidade cruel em
que o povo de Tchernbil estava inserido. H certo estranhamento quando
refletimos sobre um fato trgico ser ou no risvel, mas anedotas eram comuns
entre a populao da regio. H um episdio cmico que exemplifica a
possibilidade de rir para no chorar:
[C]hora quem no labora... Veja uma ucraniana
que vende no mercado umas mas grandes e vermelhas. Ela grita: Comprem mas!
Mas de Tchernbil!. Algum a aconselhou: No diga, moa, que de
Tchernbil. Assim ningum vai comprar. Que nada! Compram sim, e como! Uns
levam para a sogra, outros para o chefe [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 78).
Ao mesmo tempo, as pessoas enxergavam a beleza
e o horror que as rodeava. As terras soviticas no entorno de Tchernbil so
descritas no livro como paisagens belas: [E] essa mesma beleza era o que fazia
daquele horror algo ainda mais pavoroso. O homem tinha que abandonar aqueles
lugares (ALEKSIVITCH, 2016, p. 136). Alguns dos testemunhos registrados pela
autora lamentam que as pessoas no puderam mais desfrutar dos prazeres
cotidianos, como nadar nas guas lmpidas de seus rios, ou colher flores e
frutos dos seus bosques.
O que percebemos nos registros de Svetlana
Aleksivitch que houve muita negligncia e desordem por parte das autoridades
e dos responsveis pela conduo do caso: [N]o escreva sobre as maravilhas do
herosmo sovitico. Tambm houve, verdade. Mas primeiro voc deve falar da
negligncia e da desordem, depois das proezas [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 111), e que, apesar da disposio ao sacrifcio que o povo demonstrou, o
descaso do governo o que tiveram em troca:
[S]omos pobres, sobrevivemos de donativos. O
comportamento do Estado, por outro lado, de pura vigarice, abandonou essa
gente por completo. Depois que morrem, inscrevero o nome delas em ruas,
escolas ou alguma unidade militar, mas s depois que morrerem (ALEKSIVITCH,
2016, p. 216).
[E] nas sesses da comisso governamental,
informava-se de maneira simples e habitual que: para tal coisa deve-se perder
duas ou trs vidas; para outra, uma vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 220).
Nem mesmo beira da morte era comum o
arrependimento por ter servido a ptria em Tchernbil: [U]ma vez eu lhe
perguntei: Voc agora se arrepende de ter ido?. E ele moveu a cabea,
dizendo: no (ALEKSIVITCH, 2016, p. 359).
A censura era uma constante em relao ao
acidente nuclear. Jornalistas, cinegrafistas, fotgrafos eram rechaados
durante sua atuao, tinham seus instrumentos de trabalho confiscados: [E]ra
proibido filmar a tragdia, s se podia filmar o herosmo! (ALEKSIVITCH,
2016, p. 219). Assim como todas as instncias
sociais eram controladas pelo governo, tambm a medicina e outras cincias eram
submissas poltica, por isso geralmente se omitiam as informaes mais
polmicas e a verdade sobre os ndices de radiatividade na regio.
Mesmo em meio catstrofe, a cultura de
privilgios continuava reinando. Um relato de Vozes de Tchernbil denuncia um caso de desamparo de uns em favor
de outros, que tinham prioridade por serem ricos:
[V]m minha memria alguns fragmentos. Cenas.
Um presidente de colcoz retira em dois caminhes todas as suas coisas, a sua
famlia, os mveis; e o responsvel do Partido exige um carro para eles. Exige
justia. Eu sou testemunha de que por vrios dias no conseguiam sequer retirar
de l as crianas da creche. No havia transporte (ALEKSIVITCH, 2016, p.
159-160).
Houve em torno do desastre nuclear muitos
mitos. As consequncias da tragdia eram difundidas entre as pessoas locais e
as que no residiam na regio. O imaginrio sempre um espao frtil, e,
diante de um fato como esse, a mitologia passou a fazer parte do cotidiano
popular:
[O]s jornais e as revistas competem entre si
para ver quem escreve as coisas mais terrveis, e esses horrores agradam,
sobretudo queles que no os viveram. Todo mundo leu algo sobre os cogumelos do
tamanho de uma cabea humana, mas ningum os encontrou. Como os pssaros de
duas cabeas (ALEKSIVITCH, 2016, p. 173).
Mitologias parte, mudanas de fato
aconteceram tanto na paisagem, quanto no carter nacional:
[N]o apenas a paisagem mudou, pois onde antes
se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas tambm o
carter nacional mudou. Todos esto depressivos. O sentimento de estarem
irremediavelmente condenados. Para uns, Tchernbil uma metfora, um smbolo.
Para ns, a nossa vida. Simplesmente a vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 291).
A catstrofe de Tchernbil gerou um trauma mais
amplo, alm dos aspectos fsicos, psicolgicos e sociais, surgiu um trauma da
cultura:
Por que se escreve to pouco sobre Tchernbil?
Os nossos escritores continuam a escrever sobre a guerra, sobre os campos de
trabalho stalinistas, mas calam sobre Tchernbil. H um, dois livros e
acabou-se. Voc acha que mera casualidade? O acontecimento ainda est
margem da cultura. um trauma da cultura. E a nica resposta o silncio.
Fechamos os olhos como crianas pequenas e acreditamos que assim nos
escondemos, que o horror no nos alcanar [Evguni Brvkin, professor
universitrio] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 130).
Como j sinalizado por Svetlana em seu discurso
na Academia sueca na cerimnia do prmio Nobel de literatura, a cultura da
tragdia inerente ao povo sovitico. Outro relato de uma testemunha tambm
chama a ateno para a questo quando reflete [s]obre o destino da cultura
russa, sobre a sua inclinao para o trgico. Sem a sombra da morte, no se
podia entender nada. S sobre a base da cultura russa seria possvel entender a
catstrofe. S a nossa cultura estava preparada para entende-la (ALEKSIVITCH,
2016, p. 296).
Embora o povo sovitico estivesse sempre
acostumado cultura da tragdia, houve um estado de choque decorrente do
desastre de Tchernbil, uma impotncia coletiva diante do trauma: [M]e
incomoda a minha experincia como professora. [...] Eu me sinto impotente. H
cultura antes de Tchernbil, e nenhuma cultura depois de Tchernbil. [...] onde
esto os nossos escritores, os nossos filsofos? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 283).
Quando lidamos com testemunhos de violncia,
com lembranas traumticas, comum nos depararmos com o discurso do indizvel.
Faltavam palavras para descrever as experincias, a lngua no d conta de
traduzir a memria, como afirma Giorgio Agamben sobre a tragdia da Segunda
Guerra Mundial e o Holocausto. Em sua obra O
que resta de Auschwitz, Agamben (2008, p. 11)
observa as dificuldades dos testemunhos de guerra em que trata-se de narrar o
que aconteceu e de afirmar que o que aconteceu no faz parte do narrvel. Algumas
testemunhas encontram outras formas de expresso quando o discurso no
possvel ou suficiente: [P]or que me tornei fotgrafo? Porque me faltam as
palavras (ALEKSIVITCH, 2016, p. 298).
Apesar das experincias do horror e do trauma,
houve um aprendizado da humanidade depois do desastre. Na concepo de uma
testemunha entrevistada por Svetlana Aleksivitch: [N]o s ns, mas toda a
humanidade se tornou mais sbia depois de Tchernbil. Amadureceu, entrou em
outra idade [Guendi Gruchevi, deputado bielorrusso] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
185).
As pessoas, geralmente, passam a refletir mais
sobre sua existncia quando ocorrem desastres como em Tchernbil. possvel
reconhecer em situaes extremas a efemeridade da vida e a importncia do
registro dos fatos histricos, pois esses normalmente se consolidam como
verdades do mundo e entram para a Histria oficial, como exemplifica o excerto
abaixo:
[E]u sonhava! Lamentava no estar l em 1917 ou
em 1941. Hoje penso de outra forma: eu no quero viver a histria, no tempo
histrico. A minha pequena vida ficaria imediatamente sem defesa. Os grandes
acontecimentos a esmagariam sem sequer not-la. Sem se deter. Depois de ns,
restar apenas a histria. Restar Tchernbil. E onde est a minha vida? O meu
amor? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 270).
Apesar da conscincia da finitude de suas vidas
annimas, alguns se apegam crena na histria, de modo que esperam a justia
com o passar do tempo: [E]u creio na histria. No julgamento da histria.
Tchernbil no terminou, apenas comea [Vassli Nesternko, ex-diretor do
Instituto de Energia Nuclear da Academia de Cincias da Belars] (ALEKSIVITCH,
2016, p. 328).
As imagens apocalpticas de Tchernbil so como
uma verso tecnolgica de fim do mundo. No obstante, Svetlana Aleksivitch
pondera sobre a possibilidade de incidentes catastrficos como esse se
repetirem:
Antes de tudo, em Tchernbil se recorda a vida
depois de tudo: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para
lugar nenhum, cabos para parte alguma. Voc se pergunta o que isso: passado ou
futuro? Algumas vezes parece que estou escrevendo o futuro (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 51).
Podemos concluir que a contribuio da tcnica
de coleta de testemunhos orais fundamental para preencher as lacunas da
histria oficial, que frequentemente no privilegia alguns discursos populares
importantes. A tentativa de silenciamento e excluso das vozes que denunciam os
horrores e as injustias de uma nao encontra resistncia quando esses
sujeitos marginalizados social e culturalmente encontram um lugar de fala como
o que oferece a obra de Svetlana Aleksivitch.
Referncias
AGAMBEN,
Giorgio. O que resta de Auschwitz.
Trad. Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2008.
ALEKSIVITCH,
Svetlana. Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear.
Trad. Sonia Branco. So Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD,
Sigmund; STRACHEY, James; FREUD, Anna, STRACHEY, Alix; TYSON, Alan; SALOMO,
Jayme. Edio Standard brasileira
das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969. 24v.
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Trad. Beatriz Sidou. So Paulo:
Centauro, 2004.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio (org.). Histria, memria, literatura: o testemunho na era das
catstrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio; NESTROVSKI, Arthur (org.). Catstrofe e representao. So Paulo: Escuta, 2000.
[Recebido: 21 jul 2020
– Aceito: 25 set 2020]
Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm
Rap and Resistance:
Necropolitics and Scale in Os meninos correm
Everton
Santos de Brito[79]
https://0000-0002-2182-1700
Karina
Figueredo Souza[80]
https://0000-0002-5704-9767
Lucas
Santos Caf[81]
https://0000-0003-2654-0788
Maria Thereza de Oliveira
Azevedo[82]
https://0000-0003-2912-2346
Resumo: Este artigo se
prope a um exerccio de anlise do poema oral Os meninos correm da rapper Pacha Ana, para refletir sobre o
mal-estar do tempo presente e as possibilidades de resistncia pela oralidade.
O conceito de escala foi
desenvolvido pela sociolingustica e, neste artigo, nos baseamos na coletnea
organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema. A noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica,
buscando compreender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a
sociedade como elementos dinmicos. Na discusso, um dilogo com as epistemes
decoloniais e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor
Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.
Palavras chave: Resistncia;
Escala; Necropoltica; Rap; Os meninos correm.
Abstract: Exercise in the analysis of the
oral poem Os meninos correm from
Pacha Ana, to reflect on the discomfort of the present time and the
possibilities of resistance, that's what it proposes this article. The concept
of scale developed by sociolinguistics, based on the collection organized by E.
SummersonCarr and Michael Lempert on the topic, is the reference for the
analysis. The notion of scale contributes to the understanding that reality is
not static, seeking to understand things, processes, events, history, society
as dynamic elements. In the discussion, a dialogue with the decolonial and
afro-diasporic epistemes, above all, based on the reflections of Professor
Achille Mbembe and the concept of necropolitics.
Key words: Resistance; Scale; Necropolitics; Rap; Os
meninos correm.
Os meninos correm da bala, da vala, da farda
Pacha Ana
Ela apruma o corpo, levanta a cabea com altivez, ergue o
brao direito para o alto, em posio de luta, como se estivesse se preparando
para uma guerra. Os cabelos com um volumoso dread
agigantam a sua figura no palco. No antigo pelourinho da cidade, na Praa da
Mandioca, centro histrico de Cuiab, capital do estado de Mato Grosso, Ana
Gabriela Santana, a rapper Pacha Ana
evoca seus ancestrais para falar/batalhar do/no tempo presente. A palavra sua
arma. Sua voz ecoa na praa: Os meninos correm da bala, da vala, da farda.
a competio de poesia falada, o Slam[83] do Capim Cheiroso que entrecruza periferias e
centro redesenhando novas linhas de comunicao com a cidade. A artista
mato-grossense, mulher, negra, MC, rapper,
poeta, cantora e compositora, tem se destacado no cenrio nacional e h tempos
se debrua nesta temtica da denncia/resistncia, buscando inspiraes e
aprendizagem na prpria experincia histrica do povo negro, sobretudo, das
mulheres pretas.
Neste artigo,[84] optamos por trazer o poema Os meninos correm de
Pacha Ana[85] para propor um exerccio de anlise a partir da noo de escala, desenvolvida pela sociolingustica,
tendo como referncia a coletnea organizada por E. Summerson Carr e Michael
Lempert sobre o tema, em dilogo com epistemes decoloniais[86] e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do
professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.
O rap e as oralidades urbanas
Muitas so as prticas da oralidade, da performance, da
palavra, seja escrita nos muros ou falada/cantada em forma de rap, que ocupam os espaos da cidade
para discutir/escancarar a poltica de extermnio de algumas populaes. No
Brasil, essas expresses nos alertam principalmente sobre as polticas de morte
e os genocdios enfrentados pelas populaes negras. O rap, por exemplo, reverbera nos coletivos que se organizam de
vrias maneiras, seja em forma de batalhas ou slams ou mesmo em apresentaes nas ruas, em shows. O RAP (rhythm
and poetry) tem ressonncia das narrativas orais africanas e remete
tradio dos griots[87]. A fora da palavra oral da dispora africana funciona
como um mecanismo depositrio de conhecimentos preservados que os colonizadores
interditam no discurso oficial (CARVALHO, 2014, p. 325). Retomando a tradio
africana da oralidade, o rap surgiu nos bairros jamaicanos na
dcada de 1960 e foi levado para os bairros pobres de Nova Iorque, no comeo da
dcada de 1970. No Brasil, o rap foi
disseminado em So Paulo, na dcada de 1980, nas danas de break entre os integrantes do movimento hip-hop.
As narrativas do rap
normalmente so relatos de violncia, discriminao, excluso e injustia
social contra grupos historicamente subrepresentados e postos em situao de
marginalidade. Essa manifestao da literatura oral urbana considerada pelo
historiador Robin Kelley como uma arma poderosa na luta pela libertao negra
(KELLEY, 2002, p. 11). Est fundamentado em uma potica da luta e da
experincia vivida (KELLEY, 2002, p. 9), uma forma de resistncia cultural
para lidar com as condies da vida diria, das opresses quotidianas, da
sobrevivncia (KELLEY, 2002, p. 11). O rap
ganhou fora nos espaos perifricos das cidades brasileiras e acabou por criar
especificidades, poticas singulares a partir do lugar onde se manifesta.
O mal-estar do
tempo presente
No tempo presente, o que qualificamos como um mal-estar pode
ser percebido a partir da intensificao de certo repertrio afetivo:
discursos-afetivos de dio, xenofobia, racismos, misoginia, homofobia,
incivilidade, intolerncias, violncias e tantas outras atrocidades
naturalizadas, que segregam, ceifam vidas, todavia, so elevadas condio de
normalidade. Boa parte desse mal-estar causada pela disseminao das ideias
neoliberais de desempenho, competio, hiperconcorrncia, sucesso e
hiperindividualismo que produzem discursos de dio e buscam destruir possveis
prticas de solidariedade.
Os discursos fascistas vm recheados de clichs que se
amparam em fundamentalismos religiosos, apagamento e silenciamento histrico,
memoricdio, epistemicdio da diversidade de saberes, gneros e sexualidades
que divergem do conceito de famlia tradicional, na qual, o pilar o homem
branco, produzindo assim, ideologias e prticas txicas que no so defensveis
eticamente. Apoiam-se na inveno de um passado mtico para legitimar um ideal
de pureza de raa e crena, ligado tambm ao ideal de fronteiras, que so ao
mesmo tempo fronteiras geogrficas e simblicas, revelando uma sociedade
atrelada a uma srie de dicotomias classificatrias, sendo a classificao
racial a mais importante delas, pois, como afirma Anbal Quijano, a racializao
das relaes de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o
sustento e a referncia legitimadora fundamental do carter eurocentrado do
padro de poder, material e intersubjetivo (QUIJANO, 2009, p. 107).
A diversidade de ideias, a manifestao da pluralidade de
epistemes assusta os indivduos dessa sociedade causadora do mal-estar,
justamente, porque desestabiliza discursos hegemnicos e hierarquias
estabelecidas nos processos de dominao. Na tentativa de perceber
possibilidades e desvios diante da sensao de incapacidade, de paralisia que
este cenrio impe, nos propomos ao exerccio de observar um modo de
resistncia que se d pela oralidade do rap.
Assim, buscamos construir uma reflexo a partir de uma narrativa que pode ser
uma alternativa para alertar sobre esses tempos no como o fim do mundo, o fim
dos caminhos e a perda das esperanas, mas como denncia e resistncia na busca
de uma sociedade mais humana, diversa e plural. Ao observarmos o poema oral Os
meninos correm, escrito para ser falado, nos
detivemos na sua forma, utilizando o conceito de escala, para
perceber uma potica de resistncia.
Escala e a construo
de sentidos na forma
A escala um conceito que veio da
geografia e foi desenvolvido na antropologia lingustica e na sociolingustica,
na tentativa de buscar outras formas de observao dos objetos. Para o
sociolinguista Jan Blommaert: Teorizar envolve a explorao de novas imagens e
metforas, capazes de nos ajudar a imaginar objetos de forma distinta, a v-los
como diferentes, objetos que exigem abordagens analticas diferentes (BLOMMAERT,
2007, p. 1).
Assim, a partir
da compreenso do conceito de escala, apresentado na obra Scale – Dicourse and Dimensions of
Social of Social Life[88]
pelos organizadores E. Summerson Carr e Michael Lempert, podemos dizer que se
trata da formao do sentido que possumos de real e de concretude, pois a
noo de escala no possui um carter
hegemnico. Os autores salientam que o mundo material no pr-configurado, h
na materialidade do mundo um complexo trabalho de construo semitica,
envolvendo signos lingusticos e no lingusticos. (CARR; LEMPERT, 2016). Entre
outras acepes, a noo de escala
contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando
entender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade
como elementos dinmicos. Esta construo no-esttica amplia a possibilidade
de nos relacionarmos com o objeto de anlise. (CARR; LEMPERT, 2016). A
compreenso de escala sugere
movimento e anlise – ampliar os referenciais e se manter aberto se torna
uma necessidade de um trabalho escalar. Movimento escalar um movimento
produtor de sentidos, sendo que o nosso processo de significao sempre
escalar, uma vez que para atribuir significados daquilo que real ou material
sempre fazemos projees (CARR; LEMPERT, 2016). As metforas, por exemplo, so
uma projeo escalar. Produo de narrativas so sempre projees escalares.
Fenmenos escalares so sempre fenmenos relacionais, assim toda empreitada
relacional comparativa. Analogias, totalizaes, sistemas classificatrios e
esteretipos so relacionais, portanto escalares. O sentido no definitivo,
assim, ao nos lanarmos ao exerccio de propormos novas projees, obteremos
resultados completamente diferentes. Para os autores no h
escalas ideologicamente neutras, e pessoas e instituies que se destacam nos
exerccios escalares geralmente reforam as distines que os ordenaram (CARR; LEMPERT, 2016, p. 3. Traduo nossa).[89]
Pensando, ento, na relao entre as imagens disparadas
pelo poema Os meninos correm de Pacha Ana e as que construmos a partir
do contato com a obra de Achile Mbembe, realizamos um exerccio de anlise da
estrutura do poema, dentro de uma perspectiva escalar. Como defendem Carr e
Lempert (2016, p. 3. Traduo nossa):
as escalas nas quais os atores sociais se baseiam para organizar,
interpretar, orientar e agir em seus mundos no so dadas, mas so construdas –
e um tanto trabalhosas. Escalar no simplesmente assumir ou afirmar
grandeza ou pequenez por meio de clculo. Pelo contrrio, [...] as pessoas
usam a linguagem para dimensionar o mundo ao seu redor. [...]. Embora as coisas
possam ser grandes, por analogia, a criao de escala sempre implica em
distines, entre a grandeza da costela de uma baleia e a pequenez de um
mrmore, por exemplo. Como um esforo inerentemente relacional e comparativo, o
dimensionamento pode assim conectar e at confinar o que geograficamente,
geopoliticamente, temporalmente ou moralmente prximo, ao mesmo tempo em que
distingue essa proximidade da que est distante. Da mesma forma, hierarquias
em escala so os efeitos dos esforos para classificar, agrupar e categorizar
muitas coisas, pessoas e qualidades em termos de graus relativos de elevao ou
centralidade. Por exemplo, pense em como uma entidade ou domnio parece
abranger outro, como em mapas que subordinam localidades de ordem superior,
unidades administrativas ou do modo como se pensa os estados-nao, as
comunidades acima.[90]
Os meninos correm –
escala e necropoltica – um dilogo possvel.
Os meninos correm
Os meninos correm,
Os meninos correm
almejando tudo,
almejando o mundo,
pensando que a
pressa a soluo pra tudo,
mas no no.
Eles correm por
medo,
correm em segredo,
correm na
contramo.
Os meninos correm
por causa do atraso, correm pra no ser um fardo, e isso nem um caso isolado.
Os meninos correm,
alguns porque
gostam,
outros s porque
precisam mesmo.
Inclusive, os
meninos correm mas nem todos chegam mais cedo.
Alis, alguns nem
chegam.
Isso porque os
meninos correm, mas a polcia tambm
e todo dia quando
ele sai, a me pede amm
pra que nada, nem
ningum
tire o seu maior
bem.
Ela reza:
Oromima,
oromimayor, oromimayor, iabadoaiio
Oromima,
oromimayor, oromimayor, iabadoai, io
Ai, ai oxum, ora
i
Ai, ai oxum, ora
i
Isso porque os
meninos correm,
mas se for de
madrugada e ele for preto
j suspeito!
Parece que ser
escuro defeito.
Os meninos correm
da bala, da vala, da farda,
COMO SE AINDA
EXISTISSE SENZALA!
Se vive at os 21,
lucro.
Isso culpa de um
sistema fajuto,
onde alguns
meninos correm e chegam,
outros, deixam
mes em luto.
(Pacha Ana, fevereiro de 2017)
Pacha Ana, fazendo uso do seu lugar de fala –
entendendo que lugar de fala tambm a fala de lugar –, por meio da
oralidade, olha para uma populao que se situa margem, para atravs do afeto
nos aproximar de corpos silenciados, identificados como suspeitos por um
estado de exceo permanente. Os meninos
correm traz uma possibilidade de reflexo sobre os processos de retirada de
direitos, extermnios de populaes racializadas[91] o poder sobre a vida, para construir, assim, um contra
discurso. Mbembe (2016, p. 123) afirma que: matar ou deixar viver constituem
os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania
exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantao e
manifestao de poder. E ainda diz que a soberania a capacidade de definir
quem importa e quem no importa, quem descartvel e quem no (MBEMBE,
2016, p. 135), sendo que tm se caracterizado como descartveis os seres
humanos do sul global, ou seja, os no europeus, que foram classificados como
inferiores a partir de um processo de naturalizao de relaes sociais que
visavam atender os poderosos interesses articulados com a consolidao do
capitalismo/colonialismo/patriarcado.
No poema, a utilizao da palavra correm, numa escala de
repetio, sugere distintas imagens, que percorrem desde a leveza do simples
ato de correr, do imaginrio de meninos que flertam com a infncia e a
liberdade, at o peso da realidade de alguns corpos que precisam correr para
no morrer ou que so mortos enquanto esto correndo. Pacha Ana, ao trazer uma orao/saudao
de matriz africana, construindo uma aluso a vozes das mes pretas, utiliza
projees escalares de ancestralidade, racialidade, temporalidade,
espiritualidade. Demarca um lugar, sugere um ritmo, uma sonoridade, invoca
corpos portadores de saberes ancestrais, tradies orais, propondo olhares para
uma cultura que vem sendo historicamente perseguida, constantemente
desvalorizada e violentamente silenciada. Grosfoguel (2014) afirma que a
expanso colonial europeia significou o genocdio e o epistemicdio de
indgenas, africanos e de mulheres. Alm disso, o colonialismo realizou um
enorme memoricdio, sendo que a estrutura de conhecimento que domina as
universidades de todo o mundo est atrelada estrutura imperialista colonial
de poder. O homem ocidental, europeu, branco, heterossexual, cristo, quem
decide o que o melhor para as demais populaes de todo mundo. Nesses
processos, ele despreza, invisibiliza, destri e assassina sociedades inteiras,
suas culturas e seus saberes. Segundo Grosfoguel, autores homens, brancos, de
cinco pases formam os cnones da cincia desenvolvida em qualquer universidade
do mundo. Isso revela um racismo e um sexismo epistemolgico iniciado com a
modernidade e o colonialismo. Dessa forma, para descolonizar o pensamento
necessrio dialogar com uma diversidade epistmica, buscando enriquecer a
maneira de ver o mundo. Ouvir a voz dos colonizados, estabelecer dilogos com
saberes e epistemes ancestrais constituem caminhos possveis para a
descolonizao do conhecimento. O pensamento e os saberes compartilhados por
Pacha Ana, uma mulher negra, por meio do poema Os meninos correm, se
colocam na contramo da colonizao e da permanente colonialidade. A
ancestralidade evocada pela poetisa nos faz dialogar com mltiplas epistemes,
mltiplos saberes, sobretudo saberes que foram esmagados pela modernidade.
Pacha Ana se coloca na contramo da sociedade do mal-estar no por dar voz
ancestralidade, mas por aprender com ela e, assim, tornar-se/ser tambm essa
ancestralidade.
No trecho em que, optando por destacar o verso com letras
maisculas, sugere um grito, uma ateno maior: COMO SE AINDA EXISTISSE
SENZALA! observamos uma escala emocional-irnica e histrica, que expe uma
indignao pulsante, descrevendo o cenrio que questiona. Em outro fragmento
identificamos escalas classificatrias e de ironia: mas se for de madrugada e
ele for preto / j suspeito! / Parece que ser escuro defeito, que
evidencia a poltica de extermnio de corpos negros. Numa escala crtica, o trecho Se vive at os 21, lucro, situa a
realidade destes corpos que esto margem, sinalizados, marcados para morrer.
Pudemos identificar ainda outras projees escalares dentro do poema, como por
exemplo: escalas de indignao, como no trecho Isso culpa de um sistema
fajuto, onde alguns meninos correm e chegam, outros, deixam mes em luto;
metafricas, como em correm na contramo e correm para no ser um fardo;
bem como poltico-crticas, em Eles correm por medo, correm em segredo e
Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm.
A cada vinte e trs minutos um jovem negro assassinado
no Brasil[92]. Exrcito dispara 80 tiros em carro de famlia no Rio e
mata msico[93]. 75% das vtimas de homicdio no Pas so negras[94]. Assassinatos de jovens negros no Brasil aumentam 429% em
20 anos[95]. Quando nos deparamos com
alguns dados sobre a violncia e a criminalidade no Brasil, colocamo-nos diante
de informaes alarmantes, tanto pelo contedo, quanto pela dimenso miditica
a qual esse contedo submetido. Que corpos merecem viver? Que corpos
merecem morrer? Quem tem o poder de deciso? O poema Os meninos correm
discute essas questes e expe possveis respostas, ainda que numa perspectiva
irnica, a essas perguntas.
Na obra Discurso sobre o
Colonialismo, Aim Csaire reflete sobre os diversos nazismos
cometidos contra povos no europeus, sobretudo os que existiram durante todo o
perodo de colonizao e escravizao das populaes negras, apontando que
esses nazismos sempre foram aceitos pela populao europeia:
no fundo o que no perdovel em Hitler no o crime em si, o
crime contra o homem, no a humilhao em si, seno o crime contra o homem
branco, a humilhao do homem branco, e haver aplicado na Europa
procedimentos colonialistas que at agora s concerniam aos rabes da Arglia,
aos coolies da ndia e aos negros da frica (CSAIRE, 2010, p. 21).
Dialogando com Csaire e Frantz Fanon, Mbembe (2016)
observa que o estado de exceo no foi fundado com o nazismo, pois ele existiu
anteriormente para as populaes negras. A escravido moderna seria um exemplo
de estado de exceo, ou melhor, um estado de terror duradouro. E esse terror
duradouro, identificado por Mbembe, simboliza a realidade de boa parte dos
negros e das negras brasileiras. Atravs do cruzamento dos dados do IBGE sobre
a populao negra no Brasil e o poema de Pacha Ana, podemos afirmar que os
negros vivem em um estado de exceo contnuo, um mundo de morte, de
mortos-vivos, que, segundo o autor, no pode ser explicado seno pela
perspectiva da necropoltica. As novas formas de matar, de fazer de vivos
mortos-vivos, no podem ser elucidados pelo biopoder, uma vez que, esta questo
uma poltica de morte, um ideal de extermnio que acompanha as populaes
negras desde a colonizao.
A necessidade de olharmos para os corpos
negros ressaltada quando olhamos os dados, por exemplo, divulgados pelo Atlas
da Violncia 2019, produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica
Aplicada), e que publica estudos e dados relacionados ao ndice de violncia no
Brasil. Segundo este estudo:
Em 2017, 75,5% das vtimas de homicdios foram
indivduos negros (definidos aqui como a soma de indivduos pretos ou pardos,
segundo a classificao do IBGE, utilizada tambm pelo SIM), sendo que a taxa
de homicdios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de no negros
(brancos, amarelos e indgenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente s
respectivas populaes, para cada indivduo no negro que sofreu homicdio em
2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos (IPEA, 2019, p. 49).
Correr brincando, correr para chegar
escola, correr para pegar o nibus, correr por esporte, correr para no morrer,
correr para no ser eliminado. Pacha Ana nos conecta com O Genocdio do negro no Brasil, uma das primeiras obras escritas por um
intelectual negro brasileiro, visando o combate ao racismo e discriminao
racial em nosso pas. Abdias do Nascimento (2016) detalha como, historicamente,
no Brasil, foi se formando e se construindo um processo de um racismo
mascarado. Segundo ele, o processo comea com a rejeio da histria dos
africanos e seus descendentes, passando pelo mito da benevolncia do branco
portugus para com o negro e das possveis contribuies do branco civilizado
para com o negro incivilizado. Para Abdias, na construo desse racismo
mascarado, houve at quem dissesse que a escravido e outras atrocidades
cometidas contra o negro, seria um mal necessrio para o processo de
civilizao dos mesmos. Neste ponto, voltamos reflexo proposta por Csarie
(2010), de que ao longo do processo de colonizao sempre foi permitido e
aceito assassinar no europeus, sobretudo, negros.
Influenciado por Frantz Fanon, Nascimento
(2016) denuncia a existncia do racismo no Brasil, enfatizando a desvalorizao
da mulher e do homem negro em nosso pas, o branqueamento racial e cultural, a
perseguio cultura africana, a bastardizao da cultura afro-brasileira e
todas as estratgias de genocdio do negro e sua cultura em terras tupiniquins.
Segundo o autor, o racismo camuflado existente no Brasil muito mais nocivo
que o racismo declarado existente na sociedade estadunidense, pois
sustentado pelo mito da democracia racial; o racismo brasileira se esconde,
se camufla, finge no existir. O que dificulta a criao de mecanismos para
combat-lo, contribuindo para um estado de terror duradouro para as populaes
negras.
Walter Mignolo afirma que a colonialidade era a pauta
oculta ou o lado escuro da modernidade. Segundo o autor, pensar o conceito de
colonialidade j um ato descolonizador, pois preciso partir de um olhar
decolonial para observar a barbrie existente por trs do discurso
civilizatrio. Assim, ocultadas por trs da
retrica da modernidade, prticas econmicas dispensavam vidas humanas, e o
conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram
naturalmente consideradas dispensveis (MIGNOLO, 2017, p. 1). Dessa
forma, a partir da viso de Mignolo, podemos pensar que por trs do discurso de
progresso e de desenvolvimento, esto prticas discursivas e representaes que
tiram vidas, dizimam memrias e exterminam culturas. Autores decoloniais como
Ramn Grosfoguel, Anbal Quijano e Walter Mignolo vo concordar que a principal
tarefa dos tericos decoloniais quebrar com a colonialidade existente no
mundo, a colonialidade est travestida de globalizao/modernidade:
H um fato na cultura de toda a Amrica, e na da Amrica Latina em
particular, que envolve o mundo inteiro hoje em sua globalidade e que precisa
ser reconhecido, questionado, debatido e evacuado: a colonialidade do poder.
Esse o primeiro passo para a democratizao da sociedade e do Estado; da
reconstituio epistemolgica da modernidade; da busca por uma racionalidade
alternativa (QUIJANO, 2014, p. 767. Traduo nossa)[96]
Quebrar com a colonialidade significa utilizar a
diversidade epistmica.
Em ambos os casos, a geopoltica e a corpo-poltica (entendidas
como a configurao biogrfica de gnero, religio, classe, etnia e lngua) da
configurao de conhecimento e dos desejos epistmicos foram ocultadas, e a
nfase foi colocada na mente em relao ao Deus e em relao razo. Assim foi
configurada a enunciao da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da
enunciao que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ao
descoloniais focam na enunciao, se engajando na desobedincia epistmica e se
desvinculando da matriz colonial para possibilitar opes descoloniais –
uma viso da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais,
conhecimentos descoloniais e instituies descoloniais (MIGNOLO, 2017, p. 6).
Concluindo: os meninos ainda correm
Utilizando o conceito de escala para realizar um exerccio
de anlise do rapper poema oral Os meninos correm, em dilogo com os conceitos de necropoltica e
decolonialidade, acreditamos que o poema se apresenta como uma resistncia ao
mal-estar que atravessa a nossa sociedade. Como, por exemplo, as possibilidades
apresentadas de diferentes imagens para uma mesma palavra correm ampliam o
nosso olhar, nossa forma de nos relacionarmos com a obra e, principalmente, ao
que ela convoca, possibilitando questionamentos, propondo uma desestabilizao
de sentidos pr-concebidos.
A poetisa rapper Pacha
Ana prope um esforo de denunciar essa necropoltica
que atravessa o tempo presente, apresentando uma forma de poema falado que
questiona as normas criadas ou construdas culturalmente para excluir,
subalternizar e dar prosseguimento lgica colonial que sustenta o atual
padro de poder mundial. A partir de Os meninos correm, entendemos que
possvel ressignificar as normas e os discursos que qualificam o mal-estar,
revelando que nada eterno, absoluto e universal.
Se a colonialidade, as ideias neoliberais, o machismo, o
racismo, a heterossexualidade compulsria nos obriga a ter determinados
comportamentos, se as categorias de dominao construdas pelo homem branco
(ocidental, htero, cristo) nos faz conviver com esse mal-estar, o poema tal
como novas/outras epistemes pode apoiar na construo de questionamentos aos
discursos e as prticas de dominao hegemnicas. Se as categorias de dominao
foram socialmente construdas, se narrativas contam e constroem narrativas,
podemos construir contranarrativas, outros discursos que tragam problemas que
nos apiem em nossos processos de resistncia. No se trata de dar voz aos
corpos oprimidos e sim de pluralizar nossas referncias e dialogar com
diferentes epistemologias, no apenas como fonte de pesquisa, mas como produtora
de saberes que historicamente foram desconsiderados. Descolonizar aprender e
falar com o outro subalternizado. As tenses propostas aqui tiveram como
inteno sulear a inquietao de
pensarmos outros cenrios possveis e criar possibilidades de desestabilizar o
pensamento hegemnico que insiste em se manter como verdade nica e curso
natural da histria. Criar resistncia tambm desestabilizar o olhar colonial
que assola o Brasil, determinando os espaos que as populaes negras devem
ocupar na sociedade.
Deste modo, o exerccio de anlise do poema Os meninos correm, combinando o conceito
de necropoltica de Achile Mbembe com a noo de escala para observar estas obras que povoam a oralidade urbana,
podem trazer tona a construo de uma contra narrativa. Neste caso, a
resistncia est contida tambm na forma do poema reforando a possibilidade de
criao de outros modos de existncia.
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QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder e classificao social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edies Almedina SA, 2009.
[Recebido: 14 out 2020 – Aceito: 19
set 2020]
Poticas Orais,
corpo-memria e o ritmo das narrativas de mestres e mestras contadores de
histrias tradicionais
Oral Poetics, memory-body and the rhythm from narratives of masters
storytellers of traditional stories
Luciene Souza Santos[97]
https://orcid.org/0000-0002-6751-1070
Margarida da Silveira
Corsi[98]
https://orcid.org/0000-0002-5216-8660
Lana Lula Amorim[99]
https://orcid.org/0000-0003-3784-4357
Resumo: O presente artigo versa
sobre a literatura oral e a sua relao com a memria, por meio da voz de
mestres e mestras da tradio, guardies da arte de contar histrias. A memria
aqui apresentada nasce das vivncias e necessidades de comunidades que tambm
as transmitem entre geraes. Uma memria passvel de sofrer mudanas geradas
pelo tempo e pelas mltiplas vozes que a transmitem de um ouvido a outro, de um
espao-tempo a outro. O texto reflete ainda sobre a importncia do corpo
enquanto lugar de memria, engendrado em seus ritos, rituais e narrativas e
compreende a literatura oral sob novas perspectivas paradigmticas e
epistemolgicas. Por fim, esse trabalho tem seu foco tambm na compreenso de
que escutando os contadores de histrias, com suas narrativas de vida e
contos de tradio que a leitura da palavra, compreendida aqui como palavra no
mundo e com o mundo, que a transmisso de saberes pelas vias da oralidade
acontece. Esses mestres e mestras carregam consigo o papel de salvaguardar e
dar movimento s memrias histricas e saberes coletivos, construindo as
culturas e rompendo as lacunas, que ainda existem, entre o passado e o
presente, entre a escrita e a oralidade.
Palavras-chave: Poticas orais. Corpo-memria. Contadores de histrias
tradicionais.
Abstract: This article argues about oral literature and its
relation with memory through the voice of tradition masters, guardians of the
storytelling art. The memory presented here arises from the experiences and
needs of communities that also transmit them among generations. A memory liable
to undergo changes generated by time and by the multiple voices that transmit
it from one ear to another, from one space-time to another. The text also
reflects about the importance of the body as a place of memory, engendered in
its rites, rituals and narratives and comprises oral literature under new
paradigmatic and epistemological perspectives. Finally, this work also focuses
on understanding that it is listening to storytellers with their life
narratives and traditional talesthat the reading word, understood here as the
word in the world and with the world, that the knowledge transmission through
oral routes happens. These masters has the important role of safeguarding and
movementing historical memories and collective knowledge, building cultures and
bridging the gaps that still exists, between the past and the present, between
writing and orality.
Keywords: Oral Poetics; Memory-body; Traditional storytellers.
O papel da memria enquanto resultado do
entrelaamento das experincias cotidianas e o seu lugar nas prticas dos
contadores de histrias
Era uma vez uma mulher que, ao amamentar, entoou
a primeira cano de ninar, plantando, no pequeno recm-nascido, a semente do
desejo de ouvir a voz que traz conhecimentos, vivncias, medos e prazeres. No
muito distante dali, um velho paj narrava aos curumins lendas sobre Tup, Jaci
e Guaraci. Do outro lado da montanha, um ancio africano contava, aos mais
jovens, histrias da me-frica. O que eles tm em comum? Esses trs contadores
– de modo semelhante aos repentistas, cantadores, griots, rakugokas,
ancies de tribos indgenas ou avs urbanas – guardam na memria
vivncias, tradies, mitos, crenas e, de modos singulares, transmitem seus
conhecimentos e lies aos ouvintes, como se lhes entregassem um tesouro
precioso que deve ser guardado, mas tambm dividido.
A literatura oral est ligada voz e
memria. Ela nasce das vivncias
e necessidades de comunidades que tambm as transmitem de boca em boca para
ouvidos atentos e sedentos de conhecimento e fantasia. Narrada ou cantada
oralmente, ela torna-se susceptvel s mudanas impostas pelo tempo e pelas mltiplas
vozes que a transmitem de um ouvido a outro, de um espao a outro, de uma
comunidade a outra.
Muitos gneros da oralidade so
compostos em versos, como as narrativas cordelizadas, estruturadas em
sextilhas, septilhas ou dcimas, que comprovam a afirmao de que o ritmo das
frases, as partes finais ou iniciais semelhantes facilitam tremendamente a
memorizao (LUYTEN, 1992, p. 8). A memorizao depende de muitos aspectos da
narrao. A escolha das palavras, a musicalidade e a conciso dos elementos contribuem
para que o narrador/contador guarde e transmita as lies e os encantamentos
das narrativas.
Silva (2009) argumenta que
as histrias orais so formadas na base da memria popular, sem determinar
autoria, tempo, espao, sem atribuir nomes prprios. na voz murmurante da
oralidade que os contos populares, romances sertanejos, cantigas, xcaras
ganham vida e so transmitidos de boca em boca, atravs dos tempos e espaos.
Assim tambm argumenta Oliveira
(2012, p. 52), ao afirmar que as narrativas populares
conectam o homem com o seu mundo
concreto, descrevem as vicissitudes e os caminhos seguidos ou por trilhar,
mostram claramente a possibilidade de interveno no real, na medida em que a
palavra voa de boca a ouvido, perpetuando a voz de um povo.
Depositrios de um tesouro imenso, os contadores de
histrias transmitem aos ouvintes um conjunto de ideias, fatos e sonhos,
atravs de contos, lendas, provrbios, ditados populares, canes e fbulas,
provenientes do passado longnquo, quando a memria era o modo primordial de
preservar e transmitir histrias, crenas e valores. Passadas de gerao em
gerao, essas narrativas vo ganhando contornos prprios, de acordo com as
necessidades das geraes, comunidades e estilos dos contadores de histrias. Assim,
as tradies populares como bens
culturais imateriais so fludos e dinmicos, transformam-se continuamente,
absorvendo elementos de outras culturas atravs dos mais variados meios. A
prpria palavra tradio, do latim traditio,
tradere, implica uma ao
de entregar, de transmitir, de levar e de trazer de um lugar a outro (OLIVEIRA,
2012, p. 50).
Esse levar de um espao a outro ou de
um ouvido a outro majestosamente exercido por contadores de histrias,
cantadores de repente, recitadores de poesias orais. Narradores que transmitem
as tradies e histrias de suas naes, e tambm de terras longnquas,
associando vivncias, crenas e culturas, que servem de exemplo para as
vivncias dos ouvintes. So estas vivncias, saberes e sonhos que tornam
possveis histrias de peixes mgicos, mquinas voadoras, bois misteriosos,
moas transformadas em touros, pedras em moas, curumins em pssaros, assim
como de vaqueiros, cangaceiros ou beatos imbudos de imensa coragem.
Alm da importncia da memria, que
permite ao contador de histrias transmitir oralmente fatos e mitos, o tempo da narrao tambm um elemento
primordial da tradio oral. H um complexo fio da memria que perpassa por
diferentes modalidades de tempo. Por exemplo, as expresses Era uma vez,
Certa vez, remetem ao tempo mtico, da imaginao, um passado indefinido que
permite ao narrador contar histrias inimaginveis. H o tempo histrico, que
pode relatar oralmente fatos vivenciados pelo narrador, que, confiante em sua
memria e em suas vivncias, relata-as aos seus descendentes.
Outro tempo possvel o tempo familiar
que permite aos descendentes contarem a seus filhos e netos histrias de seus
antepassados, como aquelas que o pracinha da Segunda Guerra trouxe na sua
bagagem de experincias. possvel tambm falar em tempo pessoal, que diz
respeito ao tempo dos nossos pais ou dos pais de nossos pais, que
frequentemente afirmam No meu tempo... para enfatizar todo gnero de mudanas
ocorridas desde suas infncias. Todas estas modalidades de tempo remetem a
narraes orais que transmitem experincias vividas, ouvidas ou histrias
ficcionais.
Nas narrativas orais tambm percebemos
um espao voltil que marcado
em expresses como Num lugar muito distante, Num certo reino, que permitem
ao ouvinte a experincia catrtica de criar o lugar ideal ou relacion-lo ao
seu espao particular. Assim tambm ocorre com relao composio dos perfis das personagens que, atravs de
expresses como Havia uma mulher, nos liberta da obrigatoriedade de um perfil
fixo de mulher e nos permite cri-lo em nossa imaginao, a partir de nossas
vivncias, crenas e desejos.
Na acepo de Zumthor (2018), a narrao de uma histria comporta muito mais que
aspectos verbais. A enunciao oral associa-se voz, entonao, aos gestos, s pausas, s expresses faciais,
aos movimentos do corpo de quem narra, os quais chegam a quem ouve como
elementos da trama, contribuindo para a significao do texto narrado ou
cantado. Tudo isso est implicado na performance da narrao, Ҝnico modo vivo
de comunicao potica (ZUMTHOR, 2018, p. 33), que nos permite experimentar a
vida enquanto contamos ou ouvimos uma histria. Lembremos ainda que, para
Zumthor (2018, p. 18),
Nas poticas transmitidas pela voz [...],
a autonomia relativa do texto, em relao obra, diminui muito: [...] todo
lugar da obra se investiria dos elementos performticos, no textuais, como a
pessoa e o jogo do intrprete, o auditrio, as circunstncias, o ambiente
cultural e, em profundidade, as relaes intersubjetivas, as relaes entre a
representao e o vivido.
Para definir o conceito de performance,
o medievalista recorre a suas leituras e pesquisas e conclui que precisamos
considerar diversos aspectos, dentre os quais, destacamos: a necessidade de um
acontecimento oral e gestual; a ideia de presena de um corpo; a energia
propriamente potica marcada nas sensaes de contadores e ouvintes; a noo
de espao que se torna possvel atravs do corpo (ZUMTHOR, 2018, p. 36-38).
Conforme Oliveira (2012, p. 48),
preciso considerar as fases produo,
transmisso (comunicao), recepo, conservao e repetio
de histrias para encontrar as vozes sibilantes deste processo que vai da
oralidade escrita. Estgios trabalhados por Zumthor (2018, p. 60),
respectivamente, acerca da oralidade, como: formao, transmisso,
recepo, conservao e reiterao. De acordo com Zumthor (2018), se a formao se opera
pela voz, a transmisso se d quando um personagem, usando voz e gesto, recorre
a palavra, que ser recebida por outro personagem por meio da audio e da
viso, processos unidos pela performance do discurso, copresena geradora do
prazer. A conservao est a cargo da memria, mas a memria implica, na
reiterao, incessantes variaes recriadoras (ZUMTHOR, 2018, p. 61), o que o
autor chama de movncia.
Contadores so nmades por excelncia – ou porque viajam de um pas a
outro, de uma cidade a outra, de uma fazenda a outra, enfim, de um espao a
outro; ou porque cruzam a linha do imaginrio, buscando outra atmosfera
possvel que lhes permita e nos permita segui-los de um mundo a outro. Muitas
histrias chegam atravs de homens e mulheres que vo de fazenda em fazenda, de
cidade em cidade, narrando suas histrias maravilhosas que nos convidam a abrir
nossas portas e almas. Essas narrativas nos incitam e nos levam a acolher essas
palavras como um tesouro precioso e a aprender com elas que o
estrangeiro/desconhecido pode ser um amigo que ainda no encontramos. Elas nos
ensinam que preciso abrir nossos coraes para novas aventuras, novos
conhecimentos, novas culturas (BRICOUT, s.d).
Aceitar o convite da voz narrativa
funciona como entrar num mundo desconhecido, pertencente a outro, imergindo em
outra atmosfera, como dos mitos e histrias indgenas ou africanos, do mundo
maravilhoso de cavaleiros de prata, paves misteriosos, moas invisveis, melancias
encantadas, mulheres douradas, prncipes valentes, homens lobos, curupiras, caiporas,
mapinguaris, mulas sem cabea, botos que se transformam em homens, sereias com
cantos hipnticos.
Silva (2009, p. 233) afirma que o
folclore e a literatura oral esto na base da literatura de muitos lugares,
confirmando o ideal de que a oralidade fornece s narrativas orais populares,
assim como aos gneros consagrados pela crtica, um repertrio precioso de
histrias. De acordo com Cascudo (1984, p. 24),
Todos os autos populares, danas
dramticas, as jornadas dos pastoris, as louvaes das lapinhas, Cheganas,
Bumba-meu-boi, Fandango, Congos, o mundo sonoro e policolor dos reisados,
aglutinando saltos de outras representaes apagadas da memria coletiva, resistindo
numa figura, num verso, num desenho coreogrfico, so elementos vivos da
literatura oral.
Foi tambm no imaginrio popular que surgiram as primeiras histrias narradas
pela voz de contadores e transmitidas de gerao em gerao at um dia serem
recolhidas por algum, passando a serem transmitidas de forma impressa,
possibilitando o contexto da leitura silenciosa. A partir da, o narrador
passa a ser essa voz que, representada na brancura da pgina, aspira a
concretude na interao com o leitor (PORTELA, 2009, p. 748). Entretanto, este
narrador carrega, frequentemente, traos da enunciao oral, assegurando
elementos da performance de vozes ancestrais. Zumthor (2018, p. 70-71), ao
tratar da leitura, afirma que a compreenso das palavras necessita de uma
interveno corporal, sob forma de uma operao vocal: seja aquela da voz
percebida, pronunciada ou ouvida ou de uma voz inaudvel, de uma articulao
interiorizada.
De acordo com Oliveira (2012), na
oralidade que a prpria literatura
cannica tem sua origem. Toda fico e toda poesia podem ter origem na voz de
um contador de histrias, que criou, ouviu ou presenciou um acontecimento,
contou e aumentou fatos (ficcionais, mitolgicos, histricos) e os transmitiu a
outro algum que fez o mesmo e assim por diante, ad aeternum. Isso prova que a literatura
impressa serviu-se e serve-se ainda da fico oral, especialmente no que tange aos mitos e lendas reescritos em diversos
gneros e suportes da literatura. Mas a literatura oral est viva entre ns. As
manifestaes orais de diversos gneros fazem parte de nossa existncia. Nas
tribos, nas pequenas cidades ou nos grandes centros, testemunhamos inmeros
exemplos e contadores e contadoras de histrias, que possibilitam diversas
formas de corpo-a-corpo com o mundo e de rupturas da clausura do corpo
(ZUMTHOR, 2018, p. 71.77).
Os aspectos artsticos e etnogrficos
do texto oral reafirmam seu valor esttico e cultural. So narrativas que
comportam imagens semnticas relacionadas a determinadas culturas, comprovando
o valor da memria e da voz como elementos imprescindveis na transmisso de
conhecimentos culturais, histricos, sociais e artsticos. Todos estes aspectos
fortalecem a importncia de contar e ouvir histrias, nos dias de hoje e
antigamente, e reiteram a necessidade de recuperar e recolher histrias que so
ou foram contadas por homens e mulheres cheios de palavras, gestos e cultura.
Corpo-memria e a performance dos narradores orais
Certa tarde, na vida
que dana ou na dana que vive, ouvi um tambor, segui seu chamado e fui
encantada. O encanto veio das letras que brotam das pedrinhas miudinhas, que constituem
o cho de um viver atento, vibrante, agradecido, que sabe ouvir o que e o que
j foi, que sabe agradecer os que j viveram e que, por isso, ainda vivem (Lara Sayo).
Enquanto grupos sociais, os indivduos
buscaram seus meios de se organizar e de construir ou reconstruir os modos de
ser e estar no mundo. Os lugares, as histrias, os saberes e fazeres do o tom
e o sabor a tudo aquilo que vai se constituindo e dando sentido ao que h no
mundo. Atravs das formas como os indivduos interferem e tambm transformam
esses espaos, sejam eles fsicos ou simblicos, que vai se inscrevendo a
histria da humanidade. Nesse locus da historicidade onde se aloca a
fundamental importncia da palavra, seja ela escrita ou falada para a
transmisso, compreenso e apreenso dos saberes sociais.
No entanto, fundamental compreender
que os estudos da palavra, aqui referidos, assumem uma natureza representativa
para alm das compreenses do que epistemologicamente se disps os estudos da
literatura tradicionalmente. Somente na compreenso da leitura em dilogo com
outras linguagens e da elaborao do sentido dela no mundo, que se torna
possvel adentrar no campo das poticas orais. E nesse sentido, entram as
questes da palavra escrita, mas tambm sua relao com os cantos, as danas,
os ritmos, os gestos e, sobretudo, a voz.
O estudo da voz nas poticas orais
amplifica a certeza de um reconhecimento duplo para as questes da literatura oral:
primeiro a elucidao de que essas poticas no estavam centradas
especificamente nos estudos literrios, mas na sua interseco e dilogo entre
vrias reas, interligando e compreendendo sua dimenso esttica, enquanto
norteadora da existncia de uma noo a respeito do performativo-literrio que
ali surge. E a segunda trata especificamente sobre a importncia do corpo
inscrito na literatura. Um corpo que tem historicidade, que se move e
movimenta, criando uma espcie de rito de si, composto de uma escritura e
permitindo-se ler, medida que transmite saberes oriundos de suas vivncias,
memrias e saberes.
A noo de corpo como lugar de memria,
representa o reconhecimento das dimenses estticas e performticas da palavra,
uma vez que os aspectos artsticos dos movimentos fsicos e das expresses
corporais vo se agregando e entrelaando em diferentes nuances aos aspectos
semnticos da palavra escrita, at se perpetrarem numa nova compreenso do
corpo como lugar de memria. Isso, para os contadores de histrias orais, se
evidencia na expressividade latente de suas narrativas. Sobre essa semntica
potica, Zumthor (2007, p. 78) elucida:
Nesse sentido, pode-se dizer que o
discurso potico valoriza e explora um fato central, no qual se fundamenta, sem
o qual inconcebvel: em uma semntica que abarca o mundo ( eminentemente o
caso da semntica potica), o corpo ao mesmo tempo o ponto de partida, o
ponto de origem e o referente do discurso. O corpo d a medida e as dimenses
do mundo; o que verdade na ordem lingustica, na qual, segundo o uso
universal das lnguas, os eixos espaciais direita/esquerda, alto/baixo e outros
so apenas projeo do corpo sobre o cosmo. por isso que o texto potico
significa o mundo. pelo corpo que o sentido a percebido.
O lugar da potica inscrita no corpo
o ponto de partida para se compreender um universo que se abre no campo
epistmico dos estudos das poticas orais, e, adentrar nos seus signos e
significados, inicialmente repensar o poder da palavra potica. Alm disso,
fundamental analisar nesse jogo, a relao ldica do corpo-poesia com as formas
narrativas que deles se extraem. Isso porque, atravs da performance em si, os
narradores ou contadores de histrias vo transmitindo suas leituras, suas
histrias e seus saberes, transmutando em memrias coletivas, o que antes era
compreendido apenas como experincias individuais ou de um determinado grupo.
O texto potico , portanto,
ressignificado, medida que a fuso corpo-palavra-leitura se estabelece na
compreenso de que o texto est em todas as coisas e lugares e que ele dialoga
com o corpo e sua corporeidade, estabelecendo essa relao da palavra escrita
com a palavra falada. Expressa nos ritos e rituais, a palavra escrita est,
portanto, atrelada a seus significados, mas para alm deles, se agrega tambm
s mltiplas linguagens do corpo e dos seus ritmos. Sobre isso, Derrida (2008,
p. 14) discute a respeito da necessidade de uma ruptura do logocentrismo na
escrita, e enfatiza:
Em todos os casos, a voz o que est
mais prximo do significado, tanto quando este determinado rigorosamente como
sentido (pensado ou vivido) como quando o , com menos preciso, como coisa.
Com respeito ao que uniria indissoluvelmente a voz alma ou ao pensamento do
sentido significado, e mesmo coisa mesma [...], todos significantes, e em
primeiro lugar o significante escrito, seria derivado. Seria sempre tcnico e
representativo. No teria nenhum sentido constituinte. Esta derivao a
prpria origem da noo de significante. A noo de signo implica sempre,
nela mesma, a distino do significado e do significante, nem que fossem no
limite, como diz Saussure, como as duas faces de uma nica folha. Tal noo
permanece, portanto, na descendncia deste logocentrismo que tambm um
fonocentrismo: proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do
ser, da voz e da idealidade do sentido.
Alm de uma proposta de disruptura com
a supremacia do texto escrito, essa concepo vem reivindicar a necessidade de
um questionamento que a literatura necessita e prescreve a respeito do lugar da
palavra no mbito das poticas orais e isso subverte e transcende a prpria
noo de literatura, alm de abrir as portas para o fortalecimento dos estudos
da literatura oral na contemporaneidade. Nesse prisma, encontra-se a noo de
corpo como rito, uma vez que a palavra pode ser lida para alm do texto
escrito, atravs da gestualidade e da performance que o narrador das
literaturas orais representa, a partir de suas narrativas. Se para Derrida
(2008) no existe o fora do texto, a leitura do texto nunca se encerra em si
mesma e est sempre aberta leitura do outro e de outros textos.
A questo do texto, nesse sentido, se
resolve no dilogo com o corpo enquanto palavra, pleno de toda a sua
historicidade. iluminada a noo do corpo como performance da palavra, uma
vez que, partindo da premissa de que, se no existe nada fora do texto, no
existe tambm nada fora do corpo. Nesse sentido, a gestualidade assume sua importncia
na compreenso dos textos das poticas orais, j que atravs da voz, dos
cantos, dos ritmos, das expresses que se encontra o tom da literatura oral.
Sobre isso, Zumthor (2007, p. 77), explica:
E nesse sentido que se diz, de maneira
paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que algum me faz sobre
o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui
para mim um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele;
ao dupla, reversvel, igualmente vlida nos dois sentidos. Essa ideia,
eclipsada durante um certo tempo, renasce hoje, em uma espcie de volta ao
rechaado, e, sem dvida, ligado ao conjunto de fenmenos contemporneos que se
embrulham sob o termo duvidoso de ps-modernidade. A generalizao, hoje, da
ideia de performance uma das consequncias.
Sobre esse conjunto de fenmenos
contemporneos a que se refere Zumthor, debrua-se a importncia dos estudos da
memria e sua relao com a literatura oral. Legar histria da literatura a
importncia das narrativas enquanto compreenso de mundo ao redor se faz
necessrio nos estudos contemporneos, uma vez que a presena do narrador e
suas histrias esteve, vez por outra, envolvida com a noo de tradio, como
sinnimo daquilo que passado, obsolescente ou, como prope a concepo
benjaminiana de narrador, um conhecimento acabado em si e que deve ser
transmitido s futuras geraes em suas formas mais puras, fixas e imveis.
Ao contrrio, ouvir as histrias dos
narradores na contemporaneidade, buscando os sentidos de sua historicidade
latente, mas em consonncia com sua movncia, o legado que as
literaturas orais na ps-modernidade deixam para os estudos literrios. E nessa
compreenso, se forem agregadas as questes das literaturas orais de origem
africana, possvel enriquecer ainda mais essa perspectiva de valor de sua
historicidade e valorao de memrias histricas e sociais. Sobre a dimenso
esttica da criao literria africana, Risrio (1996, p. 24) assertivamente
destaca que
A riqueza da criao textual na frica
um fato indisputvel. A menos que uma inteno ideolgica explcita tente
rasurar programaticamente a existncia milenar do texto criativo naquele
continente, como na poca em que fantasias racistas de calibre variado se esforaram
para expurgar o negro da esfera da espcie humana. Alis, aqueles que um dia
pretenderam expulsar o negro do crculo da humanidade, ou quando nada,
confin-lo a um compartimento subterrneo desta, tipo dernier chelon da
espcie, tiveram diante de si, como obstculo intransponvel, a fora e a
finura das produes estticas africanas.
Com essa crtica assertiva em relao
recepo do texto literrio e ao reconhecimento da riqueza cultural que os
estudos literrios legaram do continente africano, Risrio corrobora a
importncia da valorizao das narrativas transmitidas pelos contadores de
histria orais de origem africana. Esses sbios transmissores das suas origens,
atravs de prticas performticas da contao de histrias, atravs das
literaturas, danas, cantos e ritmo, encontram-se ainda hoje por todo o mundo,
exercendo a misso de transmisso dos saberes seculares to fundamentais, mas
incipientemente valorizados e reconhecidos para a humanidade.
De fato, no se pretende aqui adentrar
a conceituao das temticas dos gris, especificamente, no sentido de ampliar
a conceituao do termo, nem tampouco problematizar a fundo tais atribuies e
funes, apesar de to importantes e fundamentais para a histria da
humanidade, porm a inteno de traz-los discusso lanar luz
importncia da palavra – escrita e falada – africana, na
compreenso dos estudos da literatura oral, uma vez que os povos de origem
africana so identificados e definidos como os mestres e mestras da palavra
oral, portanto esto sempre associados ao reconhecimento da importncia das
poticas orais.
Enfim, a partir dessas reflexes,
apreende-se a importncia do corpo enquanto lugar de memria, engendrado em
seus ritos, rituais e narrativas, uma vez que sendo compreendida a literatura
oral sob novas perspectivas paradigmticas e epistemolgicas, se compreende
tambm a importncia da ressignificao do corpo como rito, corpo enquanto
leitor do mundo, uma vez que a palavra, seja ela escrita ou falada, est no
mundo e que antes de tudo, a partir do corpo que se chega a ela. Nesse
sentido, se refaz a compreenso da leitura da palavra, a leitura da escrita e a
consonncia de ambas com a leitura da palavra-corpo-escrita.
Um estudo da memria a partir das
narrativas orais: os mestres contadores de histrias da tradio e seu papel na
transmisso da cultura
Os pequenos sonhos,
dizem os habitantes da floresta de Elgon, na frica Central, no tm grande
importncia. Mas, se uma pessoa tiver um sonho grande, toda a comunidade deve
ser reunida para ouvi-lo. Ento, como um elgoni sabe que foi um sonho grande?
Ao acordar, h um sentimento instintivo sobre a sua significao para o grupo
– mant-lo em segredo um pensamento que nunca ocorre (Clyde W. Ford[100]).
Os sentidos onricos dos povos elgoni
descrevem claramente um cenrio permeado de memrias. Dessas memrias que
vo se recriando, medida que so contadas, que so trocadas, que so
repassadas, como num conto, como num canto, como num sonho. No amplo sentido
terico, os estudos de memria abarcam o campo cientfico global que envolve e
intersecciona os estudos da psicologia, da histria, das linguagens, do corpo e
suas relaes com o tempo-espao em que esto inseridos. Reconhecer, o que aqui
interessa a respeito desses estudos, os da memria social dos povos, a partir
de uma perspectiva problemtica da histria, explicam de certo modo, as
concepes do que vem a ser a memria coletiva e quais so os seus lugares
simblicos e espaciais. Sobre isso, Candau (2019, p. 157) elucida:
A funo identitria desses lugares fica
explcita na definio que dada a eles pelo historiador: toda unidade
significativa de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o
trabalho do tempo fez um elemento simblico do patrimnio memorial de uma
comunidade qualquer. Um lugar de memria um lugar onde a memria trabalha.
Essa premissa vem complementar a noo
de que se existem lugares de memria, sejam eles fsicos ou simblicos e
imagticos-afetivos, a tradio potica nos remeteria a esses lugares, a partir
de seus mitos, narrativas lendrias, ritos e rituais. No entanto, Candau (2019,
p. 164) traz luz a discusso de que as memrias esto sempre em movimento em
relao sua historicidade e para que no recaia no equvoco de querer
mant-la em conservao, elas devem obedecer um princpio de afirmao de si
mesma, mas sendo compreendidas como um projeto inacabado, sem a ideia
onrica de conservar os fatos tais quais aconteceram, nem de se refazer o
passado, uma vez que a memria coletiva s se constitui a partir de uma
movncia ativa, permeada de historicidade, estabelecendo as fronteiras, mas
perfazendo as lacunas entre passado e presente.
Le Goff (1990) entende a narrao ou o
ato narrativo como um ato mnemnico fundamental, ou seja, narrar histrias ,
em si, uma maneira de dialogar, gerir e experimentar as memrias, sejam elas
individuais ou coletivas. Imergido pelas noes do tempo, cabe estabelecer a
que distncia temporal essas memrias se constituem na dialtica distino
entre o tempo presente e os acontecimentos do passado. dinmica, pois essa
distino se refaz medida da reciprocidade existente nesses dilogos dos
tempos. Sobre isso, Le Goff (1990, p. 205) define:
A distino passado/presente que aqui nos
ocupa a que existe na conscincia coletiva, em especial na conscincia social
histrica. Mas torna-se necessrio, antes de mais nada, chamar a ateno para a
pertinncia desta posio e evocar o par passado/presente em outras
perspectivas, que ultrapassam as da memria coletiva e da Histria.
A importncia da memria, a partir das
perspectivas da transmisso dos saberes do passado, a de que os narradores e
mestres da oralidade definidos como seus principais difusores refazem e
salvaguardam um passado ancestral, permeado de saberes tradicionais em
consonncia com as concepes dos estudos da memria, da literatura oral e
todas as suas possibilidades de dilogo. Sobre isso, Abib (2017, p. 89)
explica:
Talvez, uma das caractersticas mais
marcantes das manifestaes oriundas do universo da cultura popular, em
qualquer parte do mundo, e que nos remetem a essa lgica diferenciada que
busquei analisar, sejam justamente as formas de transmisso de seu passado –
que carrega a mitologia ancestral e os saberes tradicionais do grupo –
atravs de trs elementos fundamentais presentes nesse universo: a memria, a
oralidade e a ritualidade.
Isso quer dizer das memrias
individuais e da maneira como elas vo se configurando como coletivas e
partilhadas, atravs dos processos como a oralidade e os rituais dos
narradores, fortalecendo a importncia das tradies, oriundas do passado, mas
no perdendo de vista a noo de cultura em movimento e tradio no-esttica,
como propem Lopes e Simas (2020, p.75), que, ao explicarem o mito da vida,
morte e ressurreio, trazem claramente essa noo de tradio em movimento.
Uma vez que a prpria vida se reinventa, reinventam-se tambm as
tradies, os saberes e as histrias que se contam delas. Nesse sentido, fica
translcida a noo de que atravs de mitos como esse que a
poderosa sntese da ideia de morte como
condio necessria para que exista a vida, comporta uma fabulosa variante de
leitura e mostra como os saberes africanos normalmente se referem a uma ideia
de tradio que no esttica. Nas culturas orais, o conhecimento se
fundamenta no ato de se transmitir ou entregar algo para que o receptor tenha
condies de colocar mais um elo em uma corrente dinmica e mutvel (LOPES;
SIMAS, 2020, p. 75).
Passado e presente se fundem nessa
dinmica. Ainda assim, substancial a representao das tradies para a
construo de uma compreenso maior, que abarque rigorosamente os conceitos das
culturas, essas sendo compreendidas no plural, tal e qual mandam as questes
dos tempos contemporneos, uma vez que as identidades so representadas como
mltiplas (HALL, 2006), tambm as culturas pertencentes delas so pluralizadas.
Mas a importncia da tradio, como herana, como legado, como estrato e ponto
de partida dessas culturas, no pode ser negada, esquecida e perdida na dana
do tempo. Por esses caminhos, os da tradio, que se explicam a importncia
das narrativas e principalmente dos narradores na tarefa de transformar os
saberes individuais em experincias de memrias coletivas. Sobre isso,
entende-se que,
De fato, cada vez que no interior de um
grupo restrito as memrias individuais querem e podem se abrir facilmente umas
s outras, como nos casos em que existe uma escuta compartilhada visando os
mesmos objetos (por exemplo, monumentos, comemoraes, lugares que tero o
papel de ponto de apoio, de sementes da recordao), percebe-se ento uma
focalizao cultural e homogeneizao parcial das representaes do passado
(CANDAU, 2019, p. 46).
Retoma-se assim, a questo das poticas
orais e a sua interrelao com a perspectiva da memria, como se amarrasse o
fio de uma colcha de retalhos, na interseco entre as poticas orais com a
memria e a tradio cultural e suas nuances existentes em concrdia com a
palavra escrita e inscrita no corpo. na importncia ambivalente na elaborao
das memrias, dentro do espao ldico do tempo, que se estabelece a relao
entre memria e as poticas orais. Desse encantamento entre ambas, percebe-se
que Memria e poesia se encontram no jogo de criao do mundo. Jogo do tempo:
do que , do que foi e do que ser, que ao se mostrar no canto do poeta,
instaura uma poca histrica (ABIB, 2014, p. 94).
Assim, e por fim, na escuta das
histrias dos narradores, das histrias da vida, da leitura da palavra,
compreendida aqui como palavra no mundo e com o mundo, que nasce e cresce a
importncia do contador de histrias e de todos os mestres da tradio que tm
a misso da transmisso de saberes pelas vias da oralidade. Esses que esto
certamente a servio de algo maior, o de salvaguardar e dar movimento s
memrias histricas e saberes coletivos, construindo as culturas e rompendo as
lacunas, que ainda existem, entre o passado e o presente, entre a escrita e a
oralidade, num bonito jogo simblico de vida, morte e ressurreio.
Referncias
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Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: UBU Editora, 2018.
_________. Performance, Recepo, Leitura. Trad. Jerusa Pires
Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. rev. e
ampl. So Paulo: Cosac Naify, 2007.
[Recebido:16 fev 2021– Aceito: 16 mar 2021]
CONVIDADO
A potica do retalho
The poetic of retail
Joo Evangelista do Nascimento Neto[101]
https://orcid.org/0000-0003-4937-7311
Resumo:
Neste artigo, discute-se a construo de leituras tendo como analogia uma
colcha de retalhos. A partir de cada retalho – constelao, rizoma,
intertextualidade, arquivo e semiologia –, possvel traar os percursos
de compreenso do texto, tendo como exemplo o Auto da Compadecida,
obra que alinhava traos da cultura popular e seu dilogo interartes. Essa
potica da leitura aqui apresentada constitui-se somente enquanto uma das
mltiplas possiblidades de interao com o texto literrio. Cada leitor,
certamente, costurar seu cobertor de leituras.
Palavras-chave:
Potica; Leitura; Popular.
Abstract: In this article, the construction of readings is discussed using a patchwork quilt as an analogy. From each patch: constellation, rhizome, intertextuality, archive and semiology, it is possible to trace the paths of understanding the text, taking, as an example, the Auto da Compadecida, a work that aligned traits of popular culture, and its interart dialogue. This poetics of reading presented here constitutes only one of the multiple possibilities of interaction with the literary text. Every reader will, of course, sew their blanket of readings.
Keywords: Poetics; Reading; Popular.
Como fazer uma coberta de
taco (ou colcha de retalhos)
Material necessrio:
- Pedaos de panos os mais variados possveis;
- Linha de costura;
- Agulha;
- Tesoura.
Instrues:
Aps ter mo todos os materiais, separa os
retalhos de pano e, com a tesoura, acerta os pedaos para que fiquem com
tamanhos semelhantes. Depois, com linha e agulha, costura um pedao a outro
para materializar-se, enfim, a coberta. O tamanho dela depende de sua escolha
em ser ela para cobrir uma cama de casal ou de solteiro, o que pode ser medido
no prprio leito. O toque final feito costurando-se as extremidades do
cobertor, a fim de no desfiar ou rasgar. A est pronta a coberta, muito usada
no vero por ser leve, alm de deixar o ambiente agradvel por suas multicores.
De como uma coberta de taco pode ter relao
com as leituras
Ler um processo contnuo e de carter
somatrio. A leitura, termo genericamente usado no singular, na verdade,
feita de leituras. Se um homem resultado de suas leituras, essas surgem em
decorrncia das mltiplas escritas, de inmeros textos que se assomam s
leituras da vida, s leituras do Outro e de Si.
Para se fazer uma coberta de taco, necessrio
adquirir uma srie de retalhos. Do mesmo modo, para se estabelecer um homem,
preciso ver o mosaico de leituras que o construram.
Esse artigo constitui-se em um processo de
costura, dia aps dia, quando da apropriao de cada retalho, de cada texto,
unido a outro artesanalmente, com linha e agulha, como o raciocnio humano.
Este texto representa as semelhanas afetivas do leitor com suas referncias de
vida, suas escolhas literrias, assim como a costureira estabelece uma relao
afetuosa com a colcha que elabora com o esforo de suas mos.
Cada taco, cada retalho somado a outro
representa a multiplicidade de eus que permeiam o leitor, que habitam o
escritor. O resultado final da coberta, bela por sua variedade, a analogia ao
leque de leituras de um ser humano.
O homem contemporneo o ser detentor de uma
identidade mltipla, lquida, ps-moderna. Esse homem fragmentado, esse ser
estilhaado, ao contrrio do que os mais tradicionais podem supor, no deve ser
visto com desvantagem; ao contrrio, a vida humana um sucessivo catar de
fragmentos, um constante trabalho de alfaiataria. O que est rasgado pode ser
novamente costurado. Se o retalho est desgastado, pode ser cerzido. O homem
um ser inacabado, em construo. Cada retalho que adquire em sua vida pode ser
acrescido a seu cobertor. Essa manta no precisa ter tamanho exato,
determinado. sempre possvel adicionar mais um taco a ela.
O narrador, nesse instante, pede licena ao
leitor para usar a 1 pessoa do singular, j que ele falar de si prprio.
Assim, o ele deve ceder espao ao eu, para particularizar aquilo que relata
pela sua memria, o instrumento de que dispe, para descrever o que sente, quem
, mesmo, felizmente, sendo um produtor inacabado, ainda h mais para trilhar,
e pretende, com xito, acrescentar mais tacos colcha da sua vida.
1 retalho: a constelao
Eu inicio o relato, em primeira pessoa, citando
O menino que carregava gua na peneira, de Manoel de Barros:
Tenho um livro sobre guas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava gua na peneira.
A me disse que carregar gua na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmos.
A me disse que era o mesmo que catar espinhos na gua
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropsitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
[...]
A me reparava o menino com ternura.
A me falou: Meu filho voc vai ser poeta.
Voc vai carregar gua na peneira a vida toda.
Voc vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vo te amar por seus despropsitos.[102]
Carregar gua na peneira, criar peixe no bolso,
costurar pedaos de panos. A priori,
atividades vs, sem fins prticos ou de pouca valia. Mas pensa dessa forma quem
nunca sentiu o prazer de levar a gua na peneira e molhar-se com ela,
refrescando-se num dia quente de vero. Quem considera um ato insano criar um
peixe no bolso, no experimentou a satisfao de peg-lo e senti-lo perto,
sempre junto, como um amigo que est ali mo para todo intento. Aquele que
pondera ser loucura costurar tacos de panos sem fim, no pressente que de meros
pedaos de restos de tecidos pode surgir uma colcha capaz de aquecer algum
numa noite mais fria.
Eu persigo os despropsitos da literatura,
encanto-me com eles, seduzo-me por eles. Pela literatura, possvel olhar
alm, porque se pode enxergar para dentro. Atravs do texto literrio, eu
tambm cato os espinhos na gua que levo em minha peneira (creio que todos os
seres humanos possuem suas peneiras com gua para levar por sua vida, mas
alguns a abandonam no meio do caminho). Eu sei que o mundo contemporneo, com
sua velocidade, seu tempo reduzido, exige, de cada um, praticidade, mas eu
insisto em parar, muitas vezes, para recolher tais espinhos, mesmo furando os
dedos, da peneira que levo, em meio gua que dela escorre e que torno a
encher. No me esquivo da tarefa de pegar os espinhos, nem do trabalho de
buscar remdio para sarar as feridas, paradoxalmente, na mesma peneira e com a
mesma gua.
Esses despropsitos enchem a alma, conduzem a
vida, e do olhos de lince. Olhar para o interior o mais difcil tipo de
viso que existe. Olhar para dentro enxergar a si prprio, com todas as suas
idiossincrasias, reconhecendo os seus eus. Ao ver intrinsecamente, eu aprendo
a ver melhor o Outro.
Da, com agulha e linha, eu costuro a minha
coberta. Todo dia, eu junto a ela um retalho diferente do outro que juntei
anteriormente. Diferentemente de Penlope, ao esperar seu amado, a coberta no
desfeita, mas acrescida, complementada. O cobertor um emaranhado de
tecidos, como o cu uma profuso de estrelas. Ao olhar a abbada celeste, no
sei quando uma estrela est viva, ou ali apenas o seu brilho que chega at
mim, mas ela, a estrela, aproxima-se, lana sua luz, deixa seu rastro.
Olhar estrelas no cu tem relao com fazer uma
coberta de taco. Perceber as inmeras estrelas que habitam o firmamento,
observar sua luz, determinar cada origem, to despropsito quanto procurar a
origem de cada retalho. por isso que a literatura se prope aos
despropsitos. A cincia esquiva-se daquilo que, para ela, irracional,
procura provar e comprovar suas teorias, seus tratados. A literatura busca o
ser, aposta no sentir. Nesses despropsitos, eu me lano, eu me perco no meio
das estrelas, eu me absorvo por entre os pedaos de pano. Ao perder-me,
encontro-me, para perder-me novamente, a fim de conhecer outras facetas de mim
mesmo.
Para Maurice Blanchot, a Constelao nasce
daquilo que no conhecido, do espao da prpria obra. E falo de estrelas e
assemelho-as literatura. Esse vazio deixado por toda obra o espao a ser
preenchido pelo leitor. Sou eu, leitor, que preciso seguir os rastros de luz
deixados pelos textos, que so fachos no lineares, so luzes que fazem
ziguezagues, que se entrelaam com outras fascas, como os textos fazem
relaes a outros textos, como leituras da contemporaneidade dizem sobre textos
medievais, assim como as pginas escritas podem falar tanto do homem, dialogar
comigo, sobre mim. Para o autor,
a essncia da literatura escapa a toda
determinao essencial, a toda afirmao que a estabilize ou mesmo que a
realize; ela nunca est ali previamente, deve ser sempre reencontrada ou
reinventada. (BLANCHOT, 2005, p. 294).
Como os pedaos de pano precisam ser
reinventados para tornarem-se, juntos, mas sem ordem a ser seguida, sem
estabelecimento de comeo ou fim, apenas uma combinao aleatria, uma colcha;
as estrelas so reinventadas pelo rastro que deixa no cu. A literatura deixa
seus rastros. O leitor segue-os, refazendo os caminhos, abrindo picadas,
forjando estradas. Muitos desses caminhos no so abertos pelo escritor, mas
pelo prprio leitor, ao seguir os rastros que ficam, ao sair procura dos
retalhos, mas tambm seguindo sua intuio, seus anseios, enxergando-se atravs
dos rastros, materializando-se na juno de cada taco de pano, no processo de
coautoria do texto: A leitura operao, obra que se cumpre suprimindo-se,
que se prova confrontando-se com ela mesma e se suspende ao mesmo tempo que se
afirma (BLANCHOT, 2005, p. 357-358).
A leitura um estar em movimento ao permanecer
esttico. Um devir interior, que promove a transformao do mundo. Meu mundo se
suprime, comprime-se diante do texto, mas expande-se, num processo contrrio,
como o universo o faz (ou fez um dia, segundo alguns cientistas). o inverso
do reverso de mim, abenoado pelos deuses da literatura, plainando sobre mim, a
sussurrar em meus ouvidos cantos poticos de amor, louvores inquietude de meu
ser, mas tambm amaldioado pelos demnios que habitam em mim, que voam sob
minhalma, defenestrando meus sonhos, enxertando novos ideais. Ler um texto
sentir as palavras com o corao divino ressoarem na pele com prazer diablico.
Segundo Roland Barthes,
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, d
euforia; aquele que vem da cultura, no rompe com ela, est ligado a uma
prtica confortvel da leitura. Texto
de fruio: aquele que pe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez
at um certo enfado), faz vacilar as bases histricas, culturais, psicolgicas
do leitor, a consistncia de seus gestos, de seus valores e de suas lembranas,
faz entrar em crise sua relao com a linguagem (BARTHES, 2010, p. 20-21).
Para o terico, a Babel literria benquista,
bem-vinda, recebida com festa, com glrias. O texto de prazer abre espao para
o texto de fruio. Um deixa o leitor acomodado, o outro cutuca, incomoda, tira
o sono. O primeiro nina o leitor em suas pginas, o segundo tira-lhe o sono. H
textos que exercem as duas funes: eles apresentam-me os meus deuses e diabos
cotidianos. Esses textos no podem ser classificados genericamente, dependem do
olhar pessoal de cada leitor. E assim, vai-se fazendo a literatura, com linha
de algodo mercerizado ou linha mista (mais usadas em costuras) e uma agulha
para acolchoar (que costura com mais preciso e rapidez), ideologias so
questionadas, novos pensamentos costurados, entrelaados a tantas outras
ideias, alegrias somadas a tristezas vividas. Assim sou eu, assim o ser
humano, assim a literatura, a mais perfeita criao do imperfeito homem.
2 retalho: o rizoma
O manguezal um ecossistema costeiro, que
transita entre os ambientes terrestre e marinho. Existe nas regies tropicais e
subtropicais, possvel encontr-lo em foz de rios. No mangue, encontram-se
vegetao tpica e vida animal em abundncia, aves, peixes, mamferos, rpteis
e invertebrados, como os apreciados siris e caranguejos. Seu solo rico em
nutrientes, por isso as rvores desenvolvem-se com facilidade, mas, com solo
lodoso, as plantas precisam adaptar-se, para tal, utilizam-se de razes areas,
para facilitar a oxigenao, mas bem fincadas no cho.
Na botnica, as razes que se fasciculam so
chamadas de rizomas. Os rizomas funcionam como rgos de reproduo dos
vegetais. Da raiz principal, surgem outras razes em diferentes direes,
fazendo brotar outras plantas. Em um momento, ao leigo, difcil perceber qual
a raiz principal, j que outras germinam dela. Assim a raiz da vegetao do
manguezal. Ela um emaranhado de razes, que se confundem umas as outras. Num
mangue, no h, primeira vista, como estabelecer uma separao. O mangue
resiste pela unio de sua vegetao, pela fora de suas razes que, juntas, so
mais fortes. O mangue resiste gua e ao solo arenoso, fluido. O manguezal
um local de reproduo de vrias espcies animais e vegetais, atuando como
manuteno do equilbrio da natureza. O mangue fora vital, seus rizomas, com
mltiplas entradas, geram outras vidas, sustentam existncias. A rvore o que
se v, aquilo que se contempla majestosa, mas ela nada seria sem a sua raiz,
principalmente numa regio de manguezal.
Uma colcha de retalhos como um manguezal.
Cada pedao de pano, rizomtico, une-se a outro, tambm rizomtico, formando um
todo onde cada parte ainda perceptvel, mas indissocivel. Numa coberta de
taco, os elementos, de tamanhos diferentes, de cores peculiares, de estampas
especficas, simbolizam aquilo que o mangue evidencia: a unio das diferenas.
Conforme Jlia Kristeva, todo texto um mosaico de citaes, todo texto
absoro e transformao de outro texto (KRISTEVA, 1974, p. 64). Todo texto ,
portanto, como as razes de um manguezal, ou como uma colcha de retalhos.
Uma coberta de taco um texto, mltiplo em sua
unidade, formada por rizomas, seguindo o conceito de Gilles Deleuze e Flix Guattari.
Para os autores,
uma das caractersticas mais importantes do
rizoma talvez seja a de ter sempre mltiplas entradas [...]. Ele no feito de
unidades, mas de dimenses, ou antes de direes movedias.
[...]
Um rizoma no comea nem conclui, ele se
encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22. 37).
Um texto rizomtico remete o leitor a outros
textos que o direcionam a demais leituras, numa estrutura fascicular
interminvel. Meu contato com um rizoma se deu por intermdio da microssrie O Auto da Compadecida, de Guel Arraes,
que foi ao ar em 1999, pela Rede Globo. Com quatro captulos, a adaptao do
texto teatral, Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado pela primeira vez em Recife no
ano de 1957, acenou para mim como um intertexto que pulsava vida, que possua
fora e falava aos meus ouvidos, tocava na minha alma.
Percebi, durante os quatro captulos da srie,
a Literatura de Cordel emergindo das vozes de cada personagem. Em cada situao
narrada, o cheiro do serto nordestino passeava por meu corpo, subia as minhas
narinas, chegava ao meu crebro. Mas cada texto de cordel usado por Suassuna,
em sua pea, tambm evoca outros textos. O prprio autor paraibano deixa-se
tomar, em sua pena, por obras portuguesas, como as do autor Gil Vicente, ou de
resqucios cavalheirescos de Miguel de Cervantes, ou ainda do humor social de
Molire. adaptao, para a televiso e posteriormente para o cinema, ainda se
acresce William Shakespeare. Enfim, o rizoma se faz com o dilogo sem comeo
estabelecido, sem fim aparente, como as razes de um manguezal, como os tecidos
que formam uma colcha de retalhos.
3 retalho: a
intertextualidade
Se fosse possvel resumir o Auto da Compadecida em uma s palavra,
esta seria, certamente, a intertextualidade. Os textos de cordis, fonte
primeira de inspirao do autor, ajudam na temtica de cada ato da pea.
O folheto O
dinheiro (O testamento do cachorro),
de Leandro Gomes de Barros, possui, como enredo, as peripcias de um dono para
sepultar seu co com um ritual fnebre. O texto, de cunho religioso e
moralizante, esfora-se por associar a imagem da avareza e da ganncia como os
males da humanidade:
O dinheiro neste mundo
No h fora que o debande,
Nem perigo que o enfrente,
Nem senhoria que o mande.
Tudo est abaixo dele
S ele quem grande.
[...]
Eu j vi narrar um fato
Quer fiquei admirado,
Um sertanejo me disse
Que nesse sculo passado
Viu enterrar um cachorro
Com honras de um potentado.
(BARROS, 2005, p. 1. 5).
Por dinheiro, que constava no testamento
deixado pelo co, o Vigrio da parquia e o Bispo concordam com a celebrao
estapafrdia. O enterro teve ladainha e encomendao do corpo. Segundo o
narrador, nem todo ser humano tinha o privilgio de tantas honrarias em seu
sepultamento. Aqui, a Igreja condenada por seus desvios. Embora no haja um
desejo de destruir a instituio, seus membros so expostos ao ridculo, a fim
de haver um conserto desses que deveriam ser os guias espirituais do povo.
Ariano
Suassuna adapta o folheto de Leandro Gomes de Barros acrescendo a ele a
celebrao do fretro em latim, como exigncia da esposa do padeiro:
JOO
GRILO: Chic, o padre tem razo. Quem vai ficar engraado ele e uma coisa
benzer o motor do Major Antnio Moraes e outra benzer o cachorro do Major
Antnio Moraes.
PADRE
(mo em concha no ouvido): Como? [...]. E o dono do cachorro de quem vocs
esto falando Antnio Moraes? [...]. No vejo mal nenhum em se abenoar as
criaturas de Deus (SUASSUNA, 2004, p. 23-24).
Suassuna intensifica a denncia contra o clero,
pois, para o autor, a religio um meio de reforma social. Protestante
convertido ao catolicismo, o teatrlogo condena os vcios humanos,
atribuindo-lhes as causas da degenerescncia tica e moral humana.
Em A
histria do cavalo que defecava dinheiro, tambm de Leandro Gomes de
Barros, a histria se passa entre dois compadres, de situao financeira
bastante distinta. O pobre vinga-se do rico por sua sovinice, vendendo-lhe um
cavalo que defeca moedas:
Na cidade de Maca
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
Desejava possuir
Todo objeto que via
Esse duque era compadre
De um pobre muito atrasado
Que morava em sua terra
Num rancho todo estragado
Sustentava seus filhinhos
Na vida de alugado
[...]
Foi na venda de l trouxe
Trs moedas de cruzado
Sem dizer nada a ningum
Para no ser censurado
No fiof do cavalo
Foi o dinheiro guardado.
(BARROS, 2006, p. 1-2).
Como forma de punio pela sovinice, o compadre
pobre atia a cobia do amigo, vendendo-lhe o animal que descome dinheiro, em
seguida, uma rabeca que ressuscita mortos. Desse modo, obtm sua vingana e
livra-se do vizinho avaro.
No Auto
da Compadecida, o cavalo foi trocado, por questes de montagem teatral, por
um gato. A rabeca transforma-se em gaita e utilizada na cena em que Severino de
Aracaju intenta matar Grilo e seu companheiro Chic:
GRILO: Agora vou dar uma punhalada na barriga
de Chic.
CHIC: Na minha, no!
GRILO: Deixe de moleza, Chic. Depois eu toco
na gaita e voc fica vivo de novo! [Murmurando, a Chic.] A bexiga, a bexiga!
(SUASSUNA, 2004, p. 113).
A artimanha para enganar Severino no d certo.
Embora iludido em ver o Padre Ccero, e retornar vida, o cabra do Capito
mata Grilo, dando origem ao ltimo ato da pea, o julgamento das personagens.
No texto O
Castigo da soberba, annimo, o baro e sua esposa so julgados por sua
avareza, tendo seus atos expostos no julgamento celestial. Os dois personagens,
no folheto, encarnam os sete pecados capitais, sendo defendidos por Nossa
Senhora:
(Alma) – Rainha, Me Amorosa,
Esperana dos mortais,
Quem recorre a vosso nome
Sei que no desamparais,
Eu, pegando em vossos ps
Sei que no largo eles mais.
(Maria) – Pois, alma, demora a,
Enquanto eu vou consultar,
Fazer pedido a meu Filho,
Ver se eu posso te salvar,
Ver se teus grandes pecados
Tem grau de se perdoar.
(Co) – Como esta tal Maria
Eu mesmo nem nunca vi:
Uns pedem por interesse,
Pedem porque pra si,
Mas ela pede pros outros,
No se enjoa de pedir...
(MOTA, 1955, p. 175).
A alma consegue a justificao atravs da sua
advogada de defesa, Nossa Senhora, que intercede junto ao juiz, Jesus Cristo, a
fim de obter a redeno de seu cliente, o homem. O Co, promotor nesse
julgamento, envergonhado e no logra xito em seus intentos.
No texto suassuniano, a cena do julgamento dura
todo o terceiro (e ltimo) ato da pea. Todos os personagens ficam diante do
juiz Manuel que, negro, ainda encontra espao para discutir questes de
discriminao racial:
De
repente, Joo ajoelha-se, como que levado por uma fora irresistvel e fica com
os olhos fixos fora. Todos vo-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta
rapidamente as costas, para no ver o Cristo que vem entrando. um preto
retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha
uma intensa suavidade de iluminura. Todos esto de joelhos, com o rosto entre
as mos.
ENCOURADO:
[de costas, grande grito, com o brao ocultando os olhos] Quem ? Manuel?
MANUEL:
Sim, Manuel, o Leo de Jud, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vo ser
julgados (SUASSUNA, 2004, p. 136-137).
O ato do julgamento conta com Joo Grilo
intermediando a ponderao feita pelo Encourado para cada ru, a saber: o
Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa. Severino livra-se do inferno por seu
passado de sofrimento. E Grilo consegue retornar ao serto, angariando uma
segunda oportunidade de remisso.
A personagem da pea fora retirada do folheto Proezas de Joo Grilo, de Joo Ferreira
de Lima. Retratado como um garoto sem atributos fsicos, mas dotado de uma
grande inteligncia. Grilo doutora-se em realizar golpes, transformando-se no
mais famoso pcaro do Nordeste:
Joo grilo foi um ente
Que nasceu antes do dia
Criou-se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois das horas
Pela arte que fazia.
[...]
Joo Grilo tinha um costume
Pra toda parte que ia
Era alegre e satisfeito
No convvio da alegria
Joo Grilo fazia graa
Que todo mundo sorria.
(LIMA, 1979, p. 1. 5).
O Grilo, de Suassuna, aps sair de Portugal,
integrou-se ao Nordeste do Brasil, povoando o imaginrio brasileiro. Suas
histrias so contadas, seus feitos repassados por jovens e velhos, por ricos e
pobres. O riso que surge do rosto de quem ouve concorre com a alegria que nasce
do semblante do contador. O cmico existente nos contos, diversos folhetos,
histrias infantis, pea de teatro, mantm vivo, no leitor/espectador, o desejo
de uma vida mais justa.
H, no serto brasileiro, uma relao ntima
com o medievo. As histrias relatadas, os causos vivenciados, ainda exercem
uma intimidade com costumes cristalizados na cultura local. Essa manuteno de
um pensamento, de certos costumes pode ser vista no texto de Suassuna:
A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, atravs da tcnica
do teatro pico cristo, com suas modalidades especficas e seus personagens
estereotipados. [...] sendo a cultura popular nordestina acentuadamente
medievalizante, aquela marca atua como uma espcie de fonte para o prprio
romanceiro, onde o aspecto religioso se refora no s por causa da
religiosidade popular da regio como tambm pela opo pessoal da crena do
autor, convertido ao catolicismo na maturidade (VASSALLO, 1993, p. 29-30).
Esse tom moralizante proporciona um discurso,
muitas vezes, maniquesta. H o certo e o errado, o bem e o mal. Esse discurso,
muito recorrente no medievo, encontra altos ecos ainda em vrios lugares do
Nordeste.
O texto de Suassuna, suas fontes no cordel e
sua influncia do catolicismo popular remetem discusso empreendia por
Deleuze e Guattari (1977, p. 25. 28) ao defenderem que
Uma literatura menor no a de uma lngua
menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior.
[...]
As trs caractersticas da literatura menor so
de desterritorializao da lngua, a ramificao do individual no
imediato-poltico, o agenciamento coletivo de enunciao. Vale dizer que
menor no qualifica mais certas literaturas, mas as condies revolucionrias
de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).
O Auto da
Compadecida faz parte de uma discusso sobre literatura universal e
literatura regional. A concepo de literatura menor atribuda levando-se em
considerao, como afirmaram Deleuze e Guattari, questes ideolgicas,
polticas e lingusticas. O lugar de onde se fala importante para o
estabelecimento de uma classificao. O Nordeste um lugar ideologicamente de
subalternidades. Mesmo Suassuna, um erudito, um escritor regional, segundo o
cnone, por ter cedido literatura popular.
Politicamente, o serto ainda visto como um
lugar de coronis, cujo povo segue dominado, no pensa, no produz cultura.
Todas as expresses feitas pelo sertanejo surgem como subcultura, reinando no
campo do folclore, de uma tradio esttica, portanto, morta.
Toda classificao arbitrria. Todo
hermetismo revela uma incompletude, uma insatisfao. Um texto no cabe em uma
caixa, no se sente cmodo em um cofre. Os folhetos de cordel ou a pea Auto da Compadecida so textos
regionais, mas no somente isso, tambm se constituem obras nacionais, mas
tambm no so apenas isso. Um texto o tudo e o nada:
a obra somente obra quando ela se converte na
intimidade aberta de algum que a escreveu e de algum que a leu, o espao
violentamente desvendado pela contestao mtua do poder de dizer e do poder de
ouvir (BLANCHOT, 1987, p. 29).
Uma obra um compndio com lacunas a serem
preenchidas pelo leitor. Esse que no respeita, necessariamente, as nomeaes e
classificaes oficiais. Literatura menor, universal, nacional, homoertica, de
gnero, tnica. Talvez nomenclaturas que defendam um espao de fala, mas tambm
que excluem tantas outras. Para o leitor, para mim, leitor, o texto um mundo
a ser descoberto, um espao que precisa ser nomeado. Sou eu, leitor, quem o
fao. As palavras esto ali, mas preciso penetrar surdamente nesse ambiente
espera do que h por vir. imprescindvel entregar-se a este mundo, a este
tempo. Nesse instante, no importam cnones, classificaes so indiferentes.
a obra, sou eu e o mundo a desvendar.
4 retalho: o arquivo
O mundo processa uma srie de informaes,
produz conhecimentos que precisam ser guardados. Existe armazenamento para tudo
na contemporaneidade. Em uma empresa, a vida de cada funcionrio arquivada. Na
Igreja, h o rol de membros de seus fiis. No clube, existe a relao de
associados com suas informaes pessoais. Para cada livro publicado no Brasil,
uma cpia envida para a Biblioteca Nacional. Enfim, o arquivo lugar de
lembrana e de esquecimento. Representa o esttico, o imutvel. a memria e a
tradio, o espao do tempo perdido.
Cada retalho um arquivo em potencial. Cada
taco fez parte de uma pea especfica de pano, que foi utilizado para a
confeco de uma roupa, cujas sobras foram relegadas a segundo plano. Mas at
chegar ao abandono, teve impressa em si a ideia de tecido, o prottipo de uma
roupa. Ao ser utilizado em uma colcha de retalhos, adiciona a si mais uma
impresso, somada a tantas outras de diversos tacos.
Por isso, no compreendo o arquivo como algo
morto, inerte. H, certamente, a possibilidade de um conhecimento estar
engavetado, abandonado, esquecido, mas o arquivo , alm disso, e talvez o mais
importante, o lugar de onde se pode dispor de saberes.
Eu recorro memria, enquanto arquivo
individual ou coletivo, para ativar conhecimentos. Ao faz-lo, tal conhecimento
re-elaborado, re-visto. O carter de passividade no se sustenta. O prprio
livro pode ser compreendido como um arquivo: Um texto s um texto se ele
oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composio e a
regra de seu jogo. Um texto permanece, alis, sempre imperceptvel. (DERRIDA,
2005, p. 7).
Enquanto arquivo que, talvez nunca se mostre, o
livro precisa ser tocado por mim, leitor, e vice-versa, no para dissec-lo,
mas para que eu, enquanto leitor, busque o meu saber, encontre as respostas
para os meus questionamentos e, inclusive, suscite outras dvidas sobre mim e
sobre o mundo.
Os
arquivos so um depsito em estado de latncia. O arquivista quem lhe d
sentido. O livro um ser espera do encontro. O domnio do arquivo est nas
mos de quem o ordena, daquele que o consulta. O livro foge do poder de seu
autor, escapa por entre seus dedos. Ao autor, cabe o escrever, o finalizar a
escrita. Sou eu, leitor, quem a continuo:
O domnio do escritor no est na mo que
escreve [...]. O domnio sempre obra da outra mo, daquela que no escreve,
capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lpis e de o afastar.
Portanto, o domnio consiste no poder de parar de escrever, de interromper o
que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade decisiva no instante
(BLANCHOT, 1987, p. 15-16).
Crendo nessa concepo de arquivo, como algo
que exerce duas foras concomitantes, de um lado, a fora intrnseca, que
mantm a tradio, do outro, a extrnseca, que promove o novo, que percebo no
Auto da Compadecida um arquivo vivo,
impregnado da presena de textos diversos, de pocas diferentes, que dialogam
com a pea teatral do autor paraibano.
Ler o texto de Suassuna deparar-me com a
influncia do texto vicentino. Assim como o autor lusitano, Ariano Suassuna
apoia seu texto na rgida moral crist medieval. H uma relao entre a
trilogia da Barca com o Auto,
quando do julgamento dos personagens por seus atos cometidos por toda a vida.
Em Gil Vicente, no entanto, reina um cristianismo oficial, no cedendo espao
para inseres de crenas populares, como no texto brasileiro.
O onzeneiro, a alcoviteira, o fidalgo, o
sapateiro so exemplos de classes sociais representadas nO Auto da Barca do Inferno. NO
Auto da Barca do Purgatrio, tem-se personagens da classe popular, como um
pastor, uma mexeriqueira, um blasfemador. Aqui, o purgatrio, espao
intermedirio entre o cu o inferno, o caminho do meio, a via alternativa
para a sentena divina. J nO Auto da
Barca da Glria, as personagens pertencentes aristocracia, Papa, Bispo,
Duque, so perdoadas mediante arrependimento.
Nesses textos, cada personagem personifica um
pecado capital. Tais falhas precisam ser expurgadas do seio da sociedade, como
meio de reeducar o ser humano. A religio como forma de ensino, elemento de
represso do mal que habita o ntimo do homem. H toda uma construo, em Gil
Vicente, para amedrontar os espectadores de suas peas. Diabos, inferno e
purgatrio, seres e espaos mticos que povoam o imaginrio medieval e que se
materializam na vida cotidiana daquele perodo:
Comena a declarao e argumento da obra.
Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de
expirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per fora havemos de passar em
um de dous batis que naquele porto esto, scilicet, um deles passa pera o
paraso e o outro pera o inferno: os quais batis tem cada um seu arrais na
proa: o do paraso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro
(VICENTE, 1965, p. 27).
O cu, o inferno e o purgatrio tambm so
evocados no Auto da Compadecida. Mas
em Suassuna, tais espaos j foram impregnados pelo catolicismo popular,
permeados de influncias do espiritismo, bem como das culturas negra e
indgena:
O catolicismo popular se exprime mediante
elementos culturais, e as culturas populares, por meio de elementos religiosos.
A simbiose, em alguns casos, to forte que no fcil distinguir o que
pertence religio do que pertence cultura (GOIS, 2004, p. 11).
No Auto,
durante o julgamento que Joo Grilo exercita toda sua retrica. Convence
Manuel a enviar os rus para o Purgatrio, Severino direcionado ao cu e ele,
autor de todas as mentiras e trapaas de Tapero, usa de um discurso de
autopunio para garantir a misericrdia da Compadecida:
A COMPADECIDA: Joo foi um pobre como ns, meu
filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre com a
nossa. No o condene.
[...]
Peo-lhe ento, muito simplesmente, que no
condene Joo. [...]. D-lhe ento outra oportunidade.
MANUEL: Como?
A COMPADECIDA: Deixe Joo voltar.
MANUEL: Voc se d por satisfeito?
JOO GRILO: Demais. [...] (SUASSUNA, 2004, p. 170.
172).
O Amarelo ludibria as divindades, e seu retorno
ao serto promete mais picardias, j que justificava seus atos pela m
distribuio de renda no pas, pela no efetivao de uma vida crist, quando
ele, o prximo, era esquecido, humilhado por uma sociedade excludente.
A construo da personagem Joo Grilo segue o
prottipo do heri picaresco, ou anti-heri, que sobrevive s custas de seus
pequenos golpes. O pcaro no pensa em um futuro distante, preocupa-se com o
hoje, pois carece alimentar-se. Como est s margens da sociedade, o anti-heri
vinga-se de quem o exclui trapaceando, mentindo. No segue uma moral
especfica, nem regras rgidas, o pcaro a tudo subverte em nome de uma
sobrevida diria. O Lazarillo de Tormes,
texto annimo espanhol do sculo XVI, traz ao mundo o prottipo de pcaros que
se seguem ao longo da literatura burlesca mundial:
Vuestra Merced debe saber primero que todos me
llaman Lzaro de Tormes, hijo de Tom y de Antona Prez, de Tejares, pueblo de
Salamanca. Mi nacimiento fue dentro del ro Tormes y por esta razn tom mi
apellido. Mi padre trabajaba en el molino de agua que haba en aquel ro, desde
haca ms de quince aos. Y ocurri que all le lleg a mi madre una noche la
hora de traerme al mundo, y naci yo. De manera que con verdad me puedo decir
nacido en el ro (LAZARILHO DE TORMES, 1994, p. 09).
Lzaro no possui fora bruta, nem autonomia
financeira. S pode usar a inteligncia e a perspiccia. O intrigante ter que
alimentar uma mentira com outra mentira. Ao ser descoberto, resta-lhe fugir e
recomear seu ciclo de picardias.
No texto teatral de Suassuna, Grilo o pcaro
que habita o serto nordestino. V a vida como um palco, onde precisa atuar
para sobreviver. Conforme Derrida (2005, p. 12), a escritura j, , portanto,
encenao, por isso mesmo, a vida, que imita a arte em diversos momentos, deve
adaptar-se s mais diferentes situaes. Grilo o resultado do meio em que
vive:
JOO GRILO: Muito pelo contrrio, ainda hei de
me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Trs dias
passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dՇgua me mandaram. [...]
a qualquer hora acerto com o patro! Eu conheo o ponto fraco do homem, Chic!
(SUASSUNA, 2004, p. 26).
A vingana o nico caminho a trilhar, visto
que o nico que conhece. Ao conviver com avaros, egostas, hipcritas,
torna-se tambm um, por meio de um reforo negativo. O Amarelo age, no fim das
contas, como um daqueles que trapaceia, pois v nisso a nica forma de viver e
suportar as agruras do mundo em que vive.
De todas as formas, a avareza o pecado
capital mais combatido em textos com pcaros. Pela avareza, os homens perdem as
suas almas, afastam-se da divindade, separam-se da religio. Pela sovinice,
Harpago, da obra O Avarento, de
Molire, promove casamentos arranjados para seus filhos, comanda um regime de
conteno de despesas em casa, racionando a comida, escondendo seu tesouro.
conhecido por todos pela sua mesquinhez, como afirma seu servo:
MESTRE TIAGO: Senhor, j que assim quereis,
dir-vos-ei francamente que troam de vs por toda a parte; que vos lanam, de
todos os lados, mil zombarias e que s ficaro satisfeitos quando vos derem um
pontap; e inventam, constantemente, histrias sobre a vossa mesquinhice. [...].
Enfim, quereis saber? No se vai a lado nenhum que no se oua dizer de vs o
pior possvel. Sois o motivo de troa e de risos de todos, e s vos tratam por
avarento, mesquinho, desprezvel usurrio (MOLIRE, 1971, p. 62).
O Padeiro e sua Esposa so os maiores sovinas
que Tapero j viu. Exploram seus empregados, Grilo e Chic, que, por sua vez,
buscam explorar a quem encontram. Mas h avareza em outros personagens do Auto
da Compadecida. O Padre e o Bispo guerreiam pelo testamento do cachorro.
Severino invade a vila e saqueia a todos. Pela avareza, o autor observa os
outros pecados aproximarem-se do homem e tomarem conta de seu esprito. Da
avareza do casal de patres, surge o sentimento de vingana de Grilo, que s
possui sua mente e sua voz como armas para combater os mais fortes:
JOO GRILO: homem sem vergonha! [Chic][103]
Inda pergunta? Est esquecido que ela [A mulher do padeiro][104]
deixou voc? Est esquecido da explorao que eles fazem conosco naquela
padaria do inferno? Pensam que so o co s porque enriqueceram, mas um dia ho
de me pagar. E a raiva que eu tenho porque quando estava doente, me acabando
em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o
cachorro. At carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, Joo Grilo que se
danasse. Um dia eu me vingo (SUASSUNA, 2004, p. 39).
O final do texto de Ariano Suassuna aponta para
uma possvel remisso de Joo Grilo, mas ele retorna mais pobre do cu do que
quando fora julgado. Na verdade, nesse instante, o autor est, atravs do
Palhao, o narrador e condutor da pea, chamando a ateno do expectador, para
que este possvel Grilo que esteja no recinto afaste-se de uma vida de
picardias.
Esses retalhos, acrescidos colcha do Auto da Compadecida, so exemplos de um
arquivo que se pretende mvel, dialogando com outros tacos, conversando com o
leitor.
Em cada retalho montado, um rastro estelar me
chega aos olhos. Em cada imbricamento de textos, uma nova raiz fasciculada gera
outras conexes textuais, musicais, visuais, enfim, prazerosamente, abro o
arquivo e retiro dele a coberta de taco do Auto
da Compadecida, com ela, tantos outros ecos de tantas outras histrias em
despropsitos sem fim.
5 retalho: a semiologia
Segundo Blanchot (1987, p. 12),
A obra literria solitria: isso no
significa que ela seja incomunicvel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l
entra nessa afirmao da solido da obra, tal como aquele que a escreve
pertence ao risco dessa solido.
O texto literrio, solitrio por natureza, pode
aproximar-se de outras linguagens. Dentre essas, a cinematogrfica. Pelo olhar
do cinema, a literatura ganha outros olhares, novas sensaes, outros pblicos.
O Auto da Compadecida um dos textos
do sculo XX mais recorridos grande tela. Pelas lentes das cmeras, Grilo e
seus companheiros recebem interpretaes pela caneta dos roteiristas e adquirem
semblantes conhecidos em todo o pas e tambm fora dele.
A primeira adaptao flmica, A Compadecida, foi dirigida por George
Jonas e estrelada por Regina Duarte, Antonio Fagundes e Armando Bogus. a adaptao
mais parecida com o texto literrio e seu roteiro foi escrito pelo prprio
Suassuna, que acompanhou toda a filmagem, aprovando-a.
Mas de todas as trs adaptaes, essa, de 1969,
a que possui o enredo mais arrastado, j que h uma tentativa clara de fazer
teatro no cinema. Todas as aes da pea so transpostas para a pelcula, mas o
time do humor no teatro no segue o
mesmo tempo na frente das cmeras.
A segunda adaptao, de 1987, foi dirigida por
Roberto Farias. Intitulada Os Trapalhes
no Auto da Compadecida, foi protagonizada pelo quarteto de humoristas
famoso na televiso e no cinema com seus filmes leves e de riso frouxo.
Com a inteno de agradar a crtica, Ariano
Suassuna foi convidado por Renato Arago para coassinar o roteiro da adaptao,
que mantm a figura do Palhao, como o narrador que unifica os trs enredos: a
morte do cachorro, o gato que descome dinheiro e o Julgamento Final. Contudo, o
pblico no assimilou o filme estar associado a um texto srio. Apesar de ter
sido exibido, inclusive em Portugal, foi uma das menores bilheterias dos
Trapalhes, embora tenha recebido boas crticas.
O texto de Suassuna foi adaptado para a
televiso em parte, inserido em novelas, montado para o teatro incontveis
vezes. Tem trechos de seu texto utilizado em livros didticos como exemplo de
literatura dramtica. Sua linguagem leve assimilada com facilidade pelos
leitores e espectadores.
Em 2000, por meio de uma reduo da microssrie
exibida um ano antes, estreou nos cinemas brasileiros O Auto da Compadecida[105],
dirigida por Guel Arraes. Protagonizada por Fernanda Montenegro, Matheus
Nachtergaele, Selton Melo, Marco Nanini e outros, a pelcula foi uma das mais
vistas naquele ano.
Guel Arraes e os roteiristas Adriana Falco e
Joo Falco acrescentam ao texto de Suassuna trechos de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, alm de personagens
de outras peas do autor paraibano, como Torturas
de um corao. O roteiro gil e prende o espectador atravs do riso
gerado pelas astcias de Grilo e pela covardia de Chic.
Essa ltima adaptao a mais popular de
todas. Embora suavize o discurso maniquesta do texto literrio, mantm com
este um dilogo constante, respeitando as diferenas de signos que os
constituem.
Tais filmes tambm contribuem para formar a
colcha de retalhos com suas especificidades. Cada roteiro, cada leitura do
diretor, cada interpretao dos autores no reduz, como muitos crticos pensam,
a obra literria ou por que o filme no mantm uma pretensa fidelidade, sendo
devedor da literatura. Ao contrrio, conversa com esta. No h o superior e o
inferior, h os diferentes, e o sero sempre, como cada retalho de pano um do
outro. Para Robert Stam,
Ns ainda podemos falar em adaptaes bem feitas ou
mal feitas, mas desta vez orientados no por noes rudimentares de
fidelidade mas sim, pela ateno transferncia de energia criativa, ou s
respostas dialgicas especficas, a leituras e crticas e interpretaes
e re-elaborao do romance original, em anlises que sempre levam em
considerao a lacuna entre meios e materiais de expresso bem diferentes (STAM,
2006, p. 51).
Retomo agora a coberta de taco que
venho cosendo diligentemente. Escolho cada retalho, os mais variados, somo-o a
outros. Nessa colcha, somam-se livros, peas de teatro, contos, msicas,
filmes. Nessa profuso de cores, escritas e sons, todos coexistem unidos entre
si, sem a pretenso de estabelecer hierarquias.
6 retalho: o retalho por vir
Em Edward W. Said, encontro a afirmao:
Longe de serem algo unitrio, monoltico ou
autnomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos estrangeiros,
alteridades e diferenas do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).
Todo retalho que li, seja o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,
sejam O Avarento, de Molire, ou O Mercador de Veneza, de William
Shakespeare, ou ainda as Barcas de Gil Vicente, ou O dinheiro, O cavalo que
defecava dinheiro, O castigo da
soberba, folhetos de cordis, sejam A
Compadecida, Os Trapalhes no Auto da
Compadecida, O Auto da Compadecida,
filmes brasileiros. Sejam Derrida, Foucault, Blanchot, em tudo que leio, vejo
uma manifestao cultural. O homem um ser que produz cultura em tudo que faz.
Se creio nisso, abomino a ideia de cultura
superior dominando as outras, mas acredito no embate cultural, numa nsia
constante de tomada de lugar entre os expoentes culturais.
Defendo um maior espao para as culturais
subalternizadas, ditas populares, mas tambm visualizo as constantes trocas
culturais. Vejo que o Eu quer estabelecer-se, mas observo que isso se d em
consonncia com o Outro, para formar, muitas vezes o Ns, o Tu, o Eles.
A semelhana se d por meio da diferena,
porque cada homem um ser que se conhece, outro que se d a conhecer e muitos
seres estranhos povoando os espaos vazios da existncia. Espaos muitas vezes
ocupados pela literatura, que a materializao desses seus que vagueiam por
a procura da plenitude do Nada.
Cresci em meio aos livros, mas a maior lio
que aprendi que os livros que esto dentro de mim. Eu sou uma colcha de
retalhos, eu sou um homem feito de pedaos, belos tacos que, unidos, formam o
que sou. No me sinto formado, no pretendo ser o dono da verdade, j que as
creio mltiplas, e persigo-as e as uso, uma hoje, outra amanh. E disponho de
cada retalho, e retomo meus retalhos, e me leio, procura daquilo que sou e
tambm do que nunca virei a ser.
Estou aqui, eu, espera dos prximos retalhos,
dos textos de fruio, das leituras de prazer. Espero fazer minhas conexes
constelatrias, meus enxertos rizomticos. Eu, assim como o menino de Manuel de
Barros, levo gua na peneira, molhando-me nela, sentindo-a, sentindo-me.
Encontro-me aqui, nesse instante, com um pedao
de colcha, inacabada, uma srie de retalhos, agulha e linha nas mos.
Referncias
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Leandro Gomes de. O cavalo que
defecava dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.
_________.
O dinheiro (O testamento do
cachorro). Fortaleza: Tupynanquim, 2005.
BARTHES,
Roland. O prazer do texto.
Trad. J. Guinsburg. 5. ed. So Paulo: Perspectiva, 2010.
BLANCHOT,
Maurice. O espao literrio.
Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
_________.
O livro por vir. Trad.
Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
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DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Flix. Mil plats
– capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurlio Guerra
Neto e Clia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
DELEUZE,
Gilles, GUATTARI, Flix. Kafka –
por uma literatura menor. Trad. Julio Guimares. Rio de Janeiro:
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Jacques. A farmcia de Plato.
Trad. Rogrio da Costa. So Paulo: Iluminuras, 2005.
_________.
Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Trad.
Cludia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001.
GOIS,
Joo de Deus. Religiosidade popular.
So Paulo: Edies Loyola, 2004.
KRISTEVA, Julia. Introduo
semanlise. So Paulo: Perspectiva, 1974.
LAZARILLO de Tormes. Madrid: Santillana/Universidad de la salamanca,
1994.
LIMA, Joo Ferreira de. Proezas
de Joo Grilo. So Paulo: Luzeiro, 1979.
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STAM, Robert. Teoria e prtica da adaptao: da fidelidade
intertextualidade. Ilha do Desterro,
Florianpolis, n. 51, jul./dez. 2006,
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SAID,
Edward. W. Cultura e imperialismo.
Trad. Denise Bottman. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. comemorativa de 50 anos. Rio de
Janeiro: Agir, 2004.
VASSALO, Lgia. O
serto medieval: origens europias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1993.
VICENTE,
Gil. Obras de Gil Vicente.
Porto: Lello & Irmo, 1965.
[Recebido:
23 ago 2021]
ENTREVISTA
Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria do
homem que levou os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a cantoria
Brief prose with Ariano Suassuna or The story of
the man who took singers to the theater and showed other directions for singing
Andra
Betnia da Silva (Pesquisadora)
https://orcid.org/0000-0003-3316-0812
Ariano
Suassuna (Colaborador/em memria)
Ariano
Suassuna, poeta, romancista e dramaturgo, segundo sua prpria definio, no
apenas era um homem do serto como fez desse espao seu lugar escolhido como
representao do povo brasileiro. Essa entrevista, realizada em sua casa, em
Recife, Pernambuco, no dia 24 de maio de 2013, apenas 1 ano antes de sua
partida, como parte da pesquisa desenvolvida sobre a cantoria de improviso,
revela como atuava junto aos poetas populares alm das fronteiras do campo
literrio, ficcional, e em que medida (embora imensurvel) sua proximidade
desde criana, ainda em Tapero, na Paraba, com as prticas populares o
motivou a agir como um estandarte, cuja flmula atraa ateno de pblicos to
distintos, ecoando pelos quatro cantos sua escrita que bebia em fontes orais.
A conversa
que ora se apresenta resultado do desafio de entrevistar um homem paradoxal,
em vrios sentidos, com conhecimento to vasto e tempo to diminutivo para o
que no lhe despertava paixes. Se tive acesso ao senhor Ariano, vi em seus
olhos o menino Ariano, caminhando com seus sonhos, inquieto e inquietante desde
sempre.
Andra – Boa
tarde. Agradeo a disponibilidade e a gentileza para a cesso dessa entrevista.
Fao um doutorado no qual pesquiso os Festivais de Violeiros e estudo a partir
do p de parede quais so as transformaes que vo surgindo at que a gente
chegue nos Festivais de Violeiros. Todas as pessoas que eu entrevistei at
agora apontam o senhor como uma das primeiras pessoas a ter promovido um evento
de violeiros no teatro, no Teatro Santa Isabel.
Ariano – Eu
acho que uma das primeiras no. Eu acho que foi a primeira [risos], no ? Pra
promover cantador assim, no teatro, eu acho que fui o primeiro.
Andra* –
Ento, eu estou aqui justamente hoje para a gente conversar sobre isso.
Ariano – Pode
ser.
Andra – Eu
queria que o senhor me falasse sobre a sua relao com a cantoria, sobre o que
lhe motivou.
Ariano –
Minha filha, para comear, j que voc fez referncia a essa primeira mostra
dos cantadores aqui, eu vou comear por a. Eu tive uma surpresa porque eu j
conhecia a tradio do romanceiro, principalmente por causa Primeiro porque
como sertanejo eu vi um desafio de viola com um dos maiores cantadores que o
Brasil, o Nordeste e o Brasil tiveram, que foi Antnio Marinho, que era um
grande, um grande cantador. E ele escrevia tambm folhetos, era um poeta
popular. E eu vi, eu vi, tive a sorte de ver aos sete ou oito anos de idade,
por a, eu vi um desafio de violeiros com Antnio Marinho, l na minha terra,
em Tapero, no serto da Paraba. Mas depois eu peguei l na biblioteca de meu
pai livros sobre cantadores. Papai, meu pai era um grande admirador da poesia
popular nordestina. Ele tinha uma memria muito boa, sabia de cor vrios,
muitos versos. E por isso ele se tornou amigo de um pesquisador, hoje meio
esquecido, mas que eu tenho feito tudo para restaurar, trazer nova luz sobre o
trabalho dele, ele se chamava Leonardo Mota, era cearense e ele era muito amigo
de meu pai. Ele dedicou um dos livros dele, Serto Alegre, ele dedicou a
cinco pessoas, entre as quais foi meu pai. E ele, no corpo do livro, ele cita
meu pai como uma das fontes em que ele se baseava, ele diz, ele fala da memria
do meu pai, ele disse que o meu pai forneceu a ele muitos versos. Ento, eu
atravs dos livros de meu pai eu tinha tomado conhecimento dessa tradio do
romanceiro popular do Nordeste. Depois eu vim muito menino estudar no Recife,
fiquei por aqui, fui ficando, vim morar aqui aos 15 anos. Eu vim estudar aos
10, mas depois, quando estava com 15 anos, a minha famlia toda se mudou para
c. Ento, eu no tive mais contato nenhum e eu pensava que a tradio tinha se
extinguido. A, quando foi em 1946, eu fiz uma viagem ao serto do Cear e l
tive a oportunidade de conhecer um grande cantador pernambucano, de So Jos do
Egito, chamado Dimas Batista. Ele era um dos trs irmos Batista que eram
cantadores. Eram trs irmos, todos os trs cantadores: Lourival, que era o
mais velho, Dimas e Otaclio, que era o mais moo. A eu fiz amizade com Dimas,
fiquei deslumbrado com o talento extraordinrio de Dimas e alm do mais com a
pessoa, que ele era uma pessoa extraordinria, acima do comum, um camarada
tranquilo, calmo, gigante, alto, ele era alto e forte, com esse jeito manso de
gigante manso. Ento, eu me impressionei com a rapidez do improviso de Dimas,
fiquei encantado. Ele cantou sozinho, no cantou em dupla. Mas a eu, por intermdio
dele, eu tive conhecimento desses dois irmos dele que existiam e outros
cantadores, ele me falou de muita gente e eu fiquei impressionado. A, nesse
tempo eu era do primeiro ano na Faculdade de Direito do Recife. A, quando eu
cheguei aqui, de volta, eu pertencia ao diretrio, a falei com o pessoal do
diretrio e resolvemos trazer, fazer essa cantoria no Santa Isabel. Ento, eu
trouxe trs poetas, que eram os trs irmos Batista e mais um, um poeta popular
que no improvisava, mas escrevia folhetos, ele se chamava Manoel de Lira
Flores. Ento, fizemos essa cantoria e teve uma repercusso enorme no
municpio, o Teatro Santa Isabel ficou lotado. Ento, um cantador que tinha
muito senso de organizao, ele se chamava Rogaciano Leite, era de So Jos do Egito,
ele a, animado com essa cantoria que eu fiz, resolveu fazer o primeiro
Congresso, o primeiro Festival de Violeiros daqui, foi dois anos depois dessa
cantoria. Eu fiz essa cantoria em setembro de 1946 e Rogaciano Leite organizou
o primeiro Festival no Santa Isabel, onde eu tinha feito, s que, a princpio,
causou uma estranheza muito grande. O diretor quase no permite, t entendendo?
Quase no permite, mas a depois do sucesso com a cantoria e coisa etc., abriu
o caminho e a ainda tivemos outra sorte porque Dr. Arraes, que era um
sertanejo como eu e gostava de cantoria, era Secretrio da Fazenda do governo
aqui de Pernambuco. A, Dr. Arraes bancou o festival, a Secretaria da Fazenda
pagou as despesas e fez o I Congresso, que foi extraordinrio! Foi um sucesso
enorme tambm. E ento, da em diante, depois ele organizou o segundo, dois
anos depois, eu no tenho certeza, depois a... A espalhou-se. Depois desse
primeiro congresso, inclusive, ele, Rogaciano Leite, viajou com Dimas, Dimas e
Otaclio. Acho que Lourival no foi, no. No tenho certeza, mas foram para o
Rio de Janeiro e foram recebidos na Academia Brasileira de Letras, e Manuel
Bandeira escreveu um pequeno poema sobre os dois, tanto que t publicado nos
livros dele hoje. Eu me lembro que ele disse: Sa de l convencido Ento,
voc v por a que teve uma repercusso imediata. E outra coisa, outra coisa
que foi muito importante do ponto de vista do prestgio do cantador nos meios
intelectuais foi o fato curioso. No sei se voc sabe, mas na poca parnasiana
tinha-se o costume de eleger o prncipe dos poetas brasileiros. O primeiro, se
eu no me engano, foi Olavo Bilac, que foi escolhido como prncipe dos poetas
brasileiros. Quando ele morreu, parece que se escolheu Alberto de Oliveira.
Quando Alberto de Oliveira morreu, escolheram um paulista chamado Guilherme de
Almeida. A, quando Guilherme de Almeida morreu, comeou a haver um movimento
para se eleger Drummond, a Drummond escreveu um artigo dizendo que ele no
merecia, no, que quem merecia era Leandro Gomes de Barros, n? E isso deu
uma... Ele saltou de mais de mil folhetos e disse: Esse um poeta do povo
brasileiro mesmo. A ele fez essa citao que eu achei muito boa.
Andra –
Quais as motivaes que o senhor tinha naquela poca, quando participava do
Movimento Estudantil, para promover esse Encontro de Cantadores? Porque at
ento no era algo frequente. At ento, levar os cantadores para o teatro no
era possvel.
Ariano – No,
no, isso no havia, no. E eu lhe no contei isso, mas j tenho contado a, em
outras ocasies, o diretor do teatro a princpio recusou. Ele disse para mim:
Mas voc quer trazer pro palco do Teatro Isabel, onde j foram recitar seus
versos Castro Alves, Tobias Barreto, onde Joaquim Nabuco fez seu discurso, voc
quer trazer cantador de viola? A eu disse: Doutor, eu gostaria de ouvir a
opinio, eu no digo de Joaquim Nabuco, eu no sei, no [riso]. Mas Castro
Alves e Tobias Barreto, eu tenho certeza de que eles iriam gostar, est certo?
A, ele fez assim porque metade da renda ia ser dada aos cantadores e a outra
metade ia ser dada ao abrigo dos cegos que tinha aqui. Ele ento disse: Eu vou
ressalvar a minha responsabilidade. Veja como era considerado um ato nocivo,
vergonhoso, ele ia se envergonhar. A, ele botou assim: Deferido, tendo em
vista a destinao filantrpica de metade da renda. Quer dizer, ele achou que
podia sem se manchar, ele podia deferir, mas por causa da destinao
filantrpica do abrigo dos cegos.
Andra – Influenciou
o fato de seu pai, h muitos anos, ter levado os cantadores para o Palcio do
Governo da Paraba?
Ariano – Sim,
sim, eu tinha conhecimento desse fato, n? E foi uma das coisas que me abriu o
caminho.
Andra – Mas
eu fico imaginando se naquela poca havia uma proximidade entre os estudantes
da universidade e a cultura popular.
Ariano – Sim.
Andra – O
senhor se lembra quais eram os objetivos daquele perodo?
Ariano –
Olha, isso a, o que eu posso dizer, inclusive sem vangloria, porque no fui
eu, para mim no era assim, no. Isso, isso para mim foi decorrente do trabalho
de Hermnio Borba Filho, que era o diretor do Teatro de Estudantes. Ele era
mais velho do que ns, ele era dez anos mais velho do que eu, Hermnio. Entrou
na faculdade de Direito para a gente organizar, reorganizar o Teatro do
Estudante de Pernambuco. Pois bem, Hermnio, eu digo sempre, voc veja, essa
diferena de dez anos hoje no nada porque um homem de 80 anos e um homem de
70, eles conversam de igual para igual. Mas no tempo eu tinha 18 anos e ele
tinha 28, era uma diferena enorme, est entendendo? Ele j era casado, j
tinha um emprego, j tinha uma estrada longa e tinha uma bela biblioteca em
casa e ele era um grande leitor. Era um grande leitor e era hermenutico, quer
dizer, foi a primeira pessoa que eu encontrei assim, um escritor, um autor, um
diretor de teatro que eu encontrei que dava literatura popular uma
importncia muito grande, cultura popular, poesia popular, uma importncia
muito grande, e ele, por sua vez, j se mirava no exemplo de Garcia Lorca, no
? Que era um altssimo poeta, como voc sabe.
Andra –
Claro!
Ariano – E
ele era muito interessado em teatro. Organizou um teatro ambulante, l na
Espanha, tanto que a gente organizou um tambm, seguindo o exemplo de Lorca e a
gente colocou o mesmo nome, o nome do grupo dele era La Barraca, porque ele andava com uma barraca ambulante. Ento, a
gente conseguiu uma barraca aqui, fizemos o grupo com o nome de A Barraca
em homenagem a ele. Estreamos no dia do aniversrio da morte dele, do Lorca,
n? Para protestar contra a morte dele, j era tarde, mas protestamos e para
prestar uma homenagem de gratido a ele por essa inspirao que ele tinha nos
dado. E voc sabe que Lorca tem um livro de poemas chamado Romanceiro Cigano,
quer dizer, onde ele fez com o Romanceiro Cigano o mesmo que a gente pretendia
fazer aqui com o Romanceiro Popular, est certo?
Andra – Que
interessante!
Ariano –
Ento, foi nesse exemplo que ns nos baseamos e que ns comeamos essa jornada.
Termino como comandante e alguma saudade.
Andra – E, a
partir disso, o senhor vai influenciando algumas pessoas.
Ariano –
sim.
Andra –
Conversei com o Brulio Tavares e ele disse que s passou de fato a valorizar a
cultura popular quando ele teve acesso s suas obras.
Ariano – .
Ele tem dito isso em outras ocasies e eu acho muito engraado. Eu no sei se
lhe mostrei isso, Samarone[106].
Ele disse que aos 18 anos, ele foi para...
Andra – Para
Belo Horizonte.
Ariano – Para
Belo Horizonte estudar Cinema, no ?
Andra –
Isso.
Ariano – No
incio, ele no ligava pra nada. Depois, a ele s ligava pro cinema de Godard,
essas coisas. Bom, a ele disse que ficava chateado de ter nascido em Campina
Grande. Ele diz: Mas, meu Deus, com tanto lugar interessante [riso] para eu
nascer, ele disse Tinha tanto lugar interessante para eu nascer, eu fui
nascer em Campina Grande. Ele dizia que olhava jumento na feira ou um matuto
com chapu de couro, carregadores carregando um balaio de ovos l, a ele a
disse que foi quando ele leu A Pedra do Reino e disse que era o pai dele
que estava aqui no Recife comeou a escrever para ele: Olha que coisa interessante!
Andra – Isso
mesmo que ele conta!
Ariano – A
comeou a mandar entrevistas minhas e outras coisas, a ele disse que comprou o
romance dA Pedra do Reino, a ele disse: Quando eu comprei, que abri,
eu voltei para a Paraba e ele disse: Eu descobri, por causa dA Pedra do
Reino que a Paraba era a Grcia antiga, eu achei timo! Que a Paraba,
ela tinha tudo, tinha uma mitologia, tinha tudo aquilo l. Foi uma das
declaraes que me deixaram mais orgulhoso, foi essa de Brulio.
Andra – E ele
fala isso extremamente emocionado, n?
Ariano – .
Andra – Ele
diz A obra de Ariano foi a obra que mudou a minha vida. At ento, ser
nordestino para mim era um peso. Eu fugia disso. E por isso eu procurava
Cinema, eu procurava as influncias que eram estrangeiras e negava tudo que
tinha. E a, a partir disso, ele comea a se envolver tambm com os Festivais
de Violeiros de Campina Grande. E ele comea a fazer um trabalho muito parecido
com o seu, inclusive. O Movimento Estudantil de l da poca se aproxima, os
cantadores convocam os estudantes e eles comeam a organizar.
Ariano –
Muito bom.
Andra –
Ento, de 1974 at 1980, mais ou menos, eles ficam frente juntamente com os
cantadores. S que tem uma entrevista com Jos Alves Sobrinho.
Ariano – Sim.
Andra – Tem
uma entrevista com ele, nos anos 80, na qual ele aponta o seu evento de 1946,
mas a ele diz que Rogaciano teria feito um Congresso em 1946, em Fortaleza.
Ariano – Ah,
eu no sei. No sabia.
Andra – E
depois ele teria feito um aqui.
Ariano – Ah,
no sabia, no. No sabia, no. Eu s tomei conhecimento de Rogaciano em 1948.
Andra – Do
daqui, no ?
Ariano – .
Ele trouxe, inclusive, uma coisa que me comoveu muito. Ele trouxe o Cego
Aderaldo e eu conheci o Cego Aderaldo pessoalmente, que para mim era uma figura
mtica, no ? A, eu estive no Cear agora, h pouco tempo, ns estamos
fazendo um documentrio nos estados do Nordeste, promovido pelo SESC e eu
comprei essa histria que, inclusive, o cego Aderaldo, alm do grande cantador
que era, o Cego Aderaldo, ele era o que eu sonhei ser, est entendendo? Ele era
o dono, ele tinha um circo. Tinha um circo e ele, alm de cantador, ele era um
ator, ele tinha o domnio do palco que eu nunca vi uma coisa daquela. E ele
cantava uma msica tocando viola ou violo, eu no lembro bem porque ele tocava
viola, violo e rabeca. A, chamava-se A gargalhada. A, ele cantava uma
quadra, e a ele, no ritmo do acompanhamento do baio com o qual ele
acompanhava cada quadra, ele comeava a rir, uma risada propositadamente
artificial, est entendendo? E, pois bem, no dava vinte segundos, ningum no
teatro se aguentava, todo mundo estava rindo com ele. Era uma coisa
extraordinria! Ele dizia assim [canta] Minha comadre borboleta/ Meu compadre
gafanhoto/ Venha ver compadre grilo/ T dando com os ps nos outros. Vai-te
embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo,
vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora,
vai. E ele, a, dava uma gargalhada Hahaha!, mas, olhe, era engraadssimo
isso. Ele tinha uma garganta forte, no tinha essa besteira com ele, no. Muito
bom! E eu tive a alegria de conhecer o Cego Aderaldo apresentado por Rogaciano
Leite.
Andra –
Nesse evento que aconteceu no Santa Isabel havia uma disputa entre os
cantadores ou eles eram apenas convidados?
Ariano – No,
no. Eu no gosto muito disso no, est entendendo?
Andra – Sim.
Ariano – Eu
gosto mais de ver cantoria, ento, eu no fiz... Num Congresso que se faz isso,
cada dupla tem que ser assim, porque tem que mostrar muito, cada dupla tem
tantos minutos. Todo mundo que j ouviu uma cantoria sabe, a cantoria tem altos
e baixos. Vai esquentando e a fraca aproveita incidentes, o que uma coisa
muito boa. Severino Pinto, por exemplo, tava cantando um dia e ele disse: Eu
sou Severino Pinto/ Grande cantador do espao, na hora em que ele disse isso,
o galo cantou [riso] no poleiro da fazenda. E ele disse Meu galo, no cante
agora/ Me deixe eu cantar sossegado/ Que o pai que arremeda o filho/ muito
mal-educado [risos]. Como o nome dele era Pinto, no ? A, quer dizer, ento,
a cantoria tem isso. E se voc estabelece um horrio, voc pode pegar 20, 10
minutos de cantoria ruim. Por acaso os nossos cantadores no estavam muito bem
e pode ser um grande cantador e se sair mal, compreendeu? Ento, eu no fiz
isso, no, eu fiz uma cantoria. L o cantador cantava vontade, est
entendendo? O cantador cantava vontade e eram trs irmos, ento, no tinha
isso, no. E todos os dois, Dimas e Otaclio, tinham uma admirao muito grande
pelo Lourival, que era o mais velho, eles consideravam Lourival o maior. Eu,
pessoalmente, gostava mais do Dimas, eu achava Dimas... Lourival tinha um
improviso bom, extraordinrio, mas o Dimas era um cantador mais seguro e eu
achava mais igual, t me entendendo? E ele era mais, no sei, mais profundo,
talvez, do que Lourival. Pois bem, ento, eles cantaram. Agora, inclusive teve
uma coisa muito interessante porque aquilo que eu digo do aproveitamento do
momento. Porque apareceram trs ou quatro estudantes paulistas l, e eu no sei
se eles ficaram se sentindo diminudos pelo sucesso que os cantadores estavam
fazendo l e eles tinham bebido tambm e resolveram entrar no palco para fazer
isso que hoje se chamaria uma performance.
Andra –
Nossa!
Ariano – Est
entendendo?
Andra – Sim.
Ariano –
Ento, a entraram os dois no palco. E eu no sei se voc j viu essa porcaria,
eu j vi mais de uma vez. Aconteceu o seguinte: entrava um assim, em p, e
ficava em p assim, com as mos no bolso, est entendendo? O outro vinha por
trs, abraava ele assim, passava os braos aqui por baixo assim, ento, ficava
ele pra frente e os braos do que estava atrs. E a graa era a gesticulao
no ter nada a ver com o que a boca estava dizendo. Bom, quando eles terminaram
l, a a plateia ficou assim meio fria, mas aplaudiu assim educadamente e
friamente. Isso a foi que eles no sabiam com quem tavam mexendo. Lourival,
que era o sujeito mais sem vergonha do mundo, a eles comearam a cantar um
estilo que chamam Gemedeira porque entre o sexto e o stimo verso a pessoa faz
ai, ai, ui, ui ou ento, ai, ai meu Deus. Pois bem, a ele fez um verso,
at achei que estava numa posio meio estranha, a disse... Eles cantaram
vrios, eu me lembro dessa Sextilha em que ele disse assim... Sim, porque teve
um momento em que os estudantes l viram que no estava fazendo sucesso e eles
resolveram apelar, a deram uma banana assim, deram uma banana para o pblico.
O pblico a ficou acanhado. Ento, Lourival disse assim: O de trs dava
banana/ O da frente discursava/ Quanto mais um se enxeria/ Mais o outro se
encostava/Atrs ainda tinha um jeito/Ai, ai, meu Deus/ Na frente que eu no
ficava [risos]. Rapaz, foi umO teatro quase veio abaixo na hora. Quer dizer,
esse era um momento que, esse era um grande momento da cantoria, n? Quando
aproveita-se o que aconteceu ali e a o pessoal v que improvisado mesmo.
Andra –
Claro! Muitos cantadores tm apontado a presena do balaio, que o senhor deve
conhecer.
Ariano –
Hein?
Andra – O
senhor conhece o balaio? A estrutura que os cantadores levam escrita, que no
improvisada, decorada, e apresentam como se fosse cantoria?
Ariano – Sim,
sim, sim. No sabia que chamava-se balaio, no.
Andra – ,
eles chamam de balaio. E os cantadores tm apontado isso como possibilidade de enfraquecimento
da cantoria porque iria para um Festival ou para um p de parede sem o
improviso, que o que caracteriza esse tipo de produo. Ento, medida que o
balaio vai sendo introduzido, voc vai colocando uma produo escrita no lugar
de uma produo oral.
Ariano – No
da improvisao, no ?
Andra – .
Isso de fato tem mudado muito. Eu tenho visto que a cantoria tem mudado muito
de uns tempos para c, tanto no formato quanto na performance.
Ariano – Eu
no vou, eu no vou a congresso de cantadores, no, que eu no gosto. Eu no
gosto. Inclusive por isso, pelo artificialismo e depois tem outra coisa que
eles fazem que eu tenho horror, uma tal de uma Poesia Matuta, compreende? Que
no era uma tradio do cantador nem da poesia popular. Pelo contrrio. Isso
foi introduo de poeta de classe mdia que Olha, eu acho isso uma falta de
respeito ao povo, est entendendo? Voc repare bem. Em primeiro lugar, a
linguagem, e eu estou falando aqui de teatro de modo geral. A linguagem escrita
no corresponde linguagem falada, outra coisa, est certo? Nem a pronncia.
A linguagem escrita tem muita coisa de conveno, no ?
Andra – Sim.
Ariano – Tem
muita coisa que conveno. Pois bem, se eu entrar com um personagem de uma
pea de teatro, eu digo, eu pronuncio como todo nordestino, eu no digo Ns.
Eu digo Nis, no verdade? Pois bem, se ele me bota como personagem apesar
de eu dizer Nis, eles colocam l N--s e acento. E quando um homem do
povo eles querem botar N-o-i-s com acento, Nis, Nis vai, entendeu? Isso
uma falta de respeito, uma discriminao contra o povo, porque eu no conheo
ningum no Nordeste que diga Ns a no ser padre e pastor protestante [risos].
No ? Padre e pastor protestante dizem Jesus na cruz cercado de luz [risos].
No ? Mas gente normal, no. No ? Diz Jesuis na cruiz cercado de luiz. Mas
quando um homem do povo eles botam o i, est entendendo? Pois bem, na
poesia matuta que eles fazem assim. Aqui tem um rapaz talentoso, muito
talentoso, mas eu no gosto do que ele faz. Eu t dizendo isso porque ele sabe,
ele at j declarou isso. Ele se chama Jessier Quirino. Eu no gosto, no. Pois
bem, nos congressos de cantadores deram para botar essa tal poesia matuta.
Quem inventou isso foi um pernicioso, um maranhense pernicioso chamado Catulo
da Paixo Cearense. Apesar de se chamar Catulo da Paixo Cearense, ele era
maranhense [risos]. Pois bem, esse camarada foi quem inventou isso. Agora voc
veja, ns tnhamos aqui um grande poeta popular, Idelette[107] deve
conhecer, no ? Ele paraibano como eu e mora em Pernambuco como eu. Ele se
chama Jos Costa Leite. Pois bem, ele um grande poeta e um grande gravador.
Ele faz as gravuras dos prprios folhetos, ele que faz. Pois bem, Jos Costa
Leite, ele fez um folheto baseado em um poema de Catulo da Paixo Cearense. E
ele corrigiu os erros todinhos de Catulo. Que lio, no ? Est vendo? O poeta
popular de verdade, ele escreve da maneira que ele acha mais correta, no pode
sair melhor a coisa porque ele no sabe, mas procurar deliberadamente o erro...
Andra – . O
que a gente acaba aprendendo que a oralidade feia, no ?
Ariano – .
Andra – E que
a escrita que bonita porque polida, recortada.
Ariano – ,
, exatamente. Agora o que pior deturpar a escrita partindo de uma falsa
interpretao da linguagem falada. Quando eu encenei o Auto da Compadecida,
eu chamava ateno para isso, procure um erro de Portugus e no tem. Eu acho
que errado a pessoa mudar a letra da linguagem popular. A pessoa tem que
atingir o esprito, mas tambm de uma forma que aquilo ali se esconda e ningum
note, que ningum saiba.
Andra –
Compreendo. Naquela poca, no teatro, qual era o pblico que foi ver essa
cantoria? O senhor lembra?
Ariano – No,
no sei, no. Porque inclusive eu pedi, como eu disse, a ajuda do diretrio e
fizemos. Ns combinamos isso e fizemos com entrada paga, que era pra dar pros
cantadores. Mas ns mesmos, os estudantes, samos vendendo. Eu me lembro bem,
vendi para toda gente da minha famlia, a era o normal, mas vendi para os
vizinhos todos, compraram e foi muita gente de vrios tipos. Agora tinha muito
estudante.
Andra –
Nessa poca, os cantadores cantavam muito com a bandeja, no ?
Ariano – .
No. A cantoria normal era com a bandeja.
Andra – O p
de parede?
Ariano – .
L no. L no foi, no. Porque fizemos com entrada paga na bilheteria do
teatro mesmo. E encheu o teatro, encheu literalmente. Sobrou gente. Foi muito
bom!
Andra – A
partir disso, o senhor continuou tendo iniciativas deste tipo?
Ariano – No.
Eu fiz isso por entusiasmo, est certo? Mas quando apareceu Rogaciano, eu
fiquei muito aliviado e eu disse: Voc agora v em frente. E eu no organizei
mais, no.
Andra – Mas
o senhor se d conta de como isso foi importante para mudanas dentro do
sistema da cantoria?
Ariano – Hoje
estou mais ou menos consciente, na poca no tive medida, no. Eu fiquei muito
feliz de ver aquele povo que foi naquele dia gostar, comprar entrada e aplaudir
os cantadores.
Andra – Mas
foi realmente uma atitude muito desafiadora.
Ariano – Foi.
Andra –
Tirar os cantadores do lugar onde eles costumavam se apresentar e mudar para um
lugar de elite, que era o teatro.
Ariano – Foi.
Mas sempre sou assim. Ainda hoje, no sou mais aquele estudante, no, mas eu
ainda hoje tomo essa deciso. Olha, essa deciso, que eu tive de sair com o meu
circo, que eu fundei um circo, ligado secretaria, sa pelo serto. Foi uma
deciso corajosa, na verdade, porque eu no sabia. Primeiro diziam que o jovem
no ia me ligar por estar viciado pela cultura de massas. E eu queria que voc
visse como , assim de gente.
Andra – Eu
vi sua apresentao em Vitria da Conquista.
Ariano – Ah,
voc viu.
Andra – Eu
vi o entusiasmo dos meninos.
Ariano –
sempre assim.
Andra –
Sempre lotado.
Ariano – E
isso foi uma deciso desafiadora do mesmo jeito que foi a do Festival em 1946.
Andra – Como
que essa cantoria tem influenciado diretamente a sua obra? Eu no digo a
cantoria em si, mas esses elementos da cultura popular.
Ariano –
Olha, voc veja, por exemplo, eu uso, ainda hoje, eu tenho grande admirao
pelo ritmo do Martelo agalopado. Ainda hoje eu uso. Eu escrevi a por 1900 e
quanto? No sei. 1958 ou 1960, eu escrevi um Martelo agalopado em homenagem a
Cames, est certo? Em homenagem a Cames. E ento, eu uso, eu sou poeta, alm
de romancista e dramaturgo, eu sou poeta e como poeta eu uso muito, eu uso Soneto,
que uma forma italianizante, mas que foi introduzida na literatura de lngua
portuguesa por Cames, n? Ele tinha grande admirao por Petrarca. Ento, na
minha poesia mais lrica, eu uso o Soneto. Mas eu gosto muito da forma fixa,
coisa que depois da Semana de Arte Moderna considerado arcaico, mas eu gosto
muito, est certo? Eu gosto muito. Eu gosto muito do verso musical, nisso sou o
oposto de meu amigo e grande poeta, que era Joo Cabral de Mello Neto. Ele
tinha horror musicalidade na poesia. E eu, eu s gosto de poesia musical.
Quer dizer, tenho grande admirao por Lorca, e Lorca era um poeta de uma
musicalidade, inclusive tocava piano e compunha, no ? Era amigo do maior
compositor espanhol do sculo XX, que foi Leonel de Faglia, ele era amicssimo,
os dois fizeram juntos o trabalho de pesquisa do Cancioneiro Espanhol, no ?
Pois bem, e eu ento, peguei Veja bem, eu acho a forma, a forma pica, o
gnero pico da poesia. Isso na poesia de lngua portuguesa no sculo de Cames
a oitava, que ele herdou da poesia italiana tambm, Cames. Ento, voc v
aquela forma usada nOs Lusadas era a oitava. Eu acho o Martelo, como
ritmo, como gnero e como forma muito mais bonito do que a oitava, est certo?
bonito. E eu uma vez, eu peguei os versos de Dante e traduzi. Em vez de usar
o terceto, a Divina Comdia escrita em tercetos. Eu, em vez de usar o
terceto, eu peguei mais de um terceto e juntei e fiz um Martelo. No meu
entender, ficou mais bonito [riso]. No que eu seja melhor poeta do que Dante,
no, que o ritmo do Martelo mais bonito. E ento, eu passei Ainda hoje eu
uso. Eu sustento sempre que Olha, para mim tem uma coisa que o pessoal diz que
eu sou arcaico e diz que o serto uma coisa localizada e eu sou um localista.
E sou. Agora, acontece que eu acho que, aquilo que Paulo diz, eu acho que o ser
humano o mesmo aqui, na China, nos idos do sculo XIII, ou agora, ou no
futuro. Outro dia um camarada me disse: Ariano disse ele, disse a, por a:
Ariano precisa tomar conhecimento do fato de que o homem sertanejo no anda
mais a cavalo, no. Anda de moto. A, eu disse: E ele precisa tomar
conhecimento de que ande de moto ou ande a cavalo o mesmo. Me diga uma
coisa, o homem que anda de moto sofre? Sofre. Tem cime? Tem. Se apaixona? Se
apaixona. Ele o mesmo homem. O fato de andar de moto ou a cavalo no
interessa, no. Isso somente um veculo de se andar, n?
Andra –
Inclusive, o vaqueiro tem feito o aboio hoje com moto, no usa mais o cavalo em
todos os lugares, mas ele continua fazendo o aboio.
Ariano – Ele
continua fazendo o aboio e continua sendo o mesmo ser humano. Se eu pinto o
vaqueiro Pois bem, baseado nisso, eu acho que o Brasil o serto do mundo, t
certo? O nordeste o serto do Brasil e o serto o osso do Nordeste. T
certo? Ento, eu fiz um... Eu vou dizer para voc ouvir o ritmo do Martelo. Vou
ver se eu sei decorado, se eu digo decorado: O Galope sem freio dos cavalos/
Os punhais reluzentes do cangao/ As primas e bordes no seu transpasso/ O
pipoco do rifle e seus estralos/ O sino com seus toques de badalo/ E as onas
com seus olhos amarelos/ O lajedo que trono e que castelo/ O ressono do
mundo / O vento sai, o sol e a madrugada/ E eu tiro no galope do Martelo. T
vendo? No um ritmo bonito?
Andra –
sim.
Ariano – Eu
acho. E um ritmo pico.
Andra – Os
cantadores dizem que o Martelo agalopado o vestibular do cantador.
Ariano – E .
Andra – Que
o gnero mais difcil.
Ariano –
mais do que isso, o doutorado.
Andra – um
doutorado [risos]. verdade.
Ariano – [risos]
Andra – J
estamos terminando, eu queria aproveitar para lhe agradecer e falar da
importncia da sua contribuio para o meu trabalho e para os estudos sobre
cultura popular. E s para finalizar: o senhor possui material dessa poca?
Alguma fotografia, qualquer coisa que remeta a esse perodo que eu poderia ver?
Ariano – Eu
no tenho, no. Agora, um jornal aqui chamado Jornal Pequeno, voc pode
encontrar na biblioteca, eu levei os cantadores, porque eu queria fazer
propaganda da cantoria. Ento, uns dois dias antes ou um antes, eu no me
lembro bem, eu acho que foi uns dois dias antes, eu no me lembro bem, eu levei
os cantadores ao Jornal Pequeno na redao e eles tiraram fotografia dos
cantadores e deram notcia da cantoria. E tem palavras minhas l, no me lembro
se tem...
Andra –
Muitssimo obrigada!
Ariano –
Certo. Obrigado. Eu fico muito contente tambm.
[Recebida
21 dez 2021]
[1] Doutor em Educao, Ator, Licenciado em Teatro. E-mail:
vagnervarg@gmail.com
[2] Ao longo deste texto, as
palavras outro(s), outra(s), em alguns momentos, sero utilizadas em itlico
com o intuito de ressaltar uma nfase a algum aspecto diferenciado e amplo
sobre o que se est abordando na discusso em determinado momento do texto. Esse
recurso tambm utilizado para ressaltar que estas palavras no sero
utilizadas somente como pronomes indefinidos. Quando forem indicadas em
itlico, estas palavras representaro um convite a quem l este texto para
refletir sobre possibilidades distintas das at ento desenvolvidas sobre o
aspecto exposto naquele momento da discusso desse artigo. O emprego deste
recurso em itlico a essas palavras tambm foi feito com o intuito de que quem
esteja a ler este artigo, as considere em itlico como um tipo de provocao
reflexo desapegada das maneiras habituais como se depara com a leitura de um
texto.
[3] Como a discusso deste artigo se dar a partir da pesquisa realizada por um ator, apenas por uma questo de simplificao de escrita, ao longo deste texto, quando forem mencionadas questes que possam ser extrapoladas e relacionadas s(aos) profissionais das artes performativas, sero referidos os termos ator ou atores. Entretanto, as discusses aqui propostas no se limitam somente a designaes de gnero para profissionais desta rea que se identifiquem com o gnero masculino. Sempre que for indicado ator ou atores, o texto tambm estar fluindo as reflexes para o gnero feminino, no-binrie, etc. Neste sentido, convido a quem leia este texto que o faa substituindo as terminologias relacionadas a gnero para maneira como melhor se identificar.
[4] Este outro modus ser
explicado adiante neste texto, quando forem mencionados os procedimentos
relacionados ao Experimento Potico-Teatral, realizado por Vargas (2018).
[5] Sempre que o termo
corporeidade for referido neste texto, ele estar em acordo com as premissas
defendidas no trabalho de Vargas (2018), dentre as quais, de maneira geral, se
pode dizer que a corporeidade evoca um modus particular em se relacionar
com suas percepes sinestsicas, estando atento aos processos significativos
advindos ao longo deste processo no qual o corpo se apresenta com o campo
emprico catalisador de reflexes em por vir.
[6] VARGAS, Vagner. Demonstrao tcnica da partitura corporal-vocal, referente ao experimento potico-teatral, baseado no texto Prometeu Acorrentado, de squilo, j com a organizao dos arqutipos vocais associados aos ressonadores corporais. Disponvel em: <https://youtu.be/dWLD-mCpBB4>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[7] VARGAS, Vagner. A subida ao penedo. Experimento
potico-teatral. Disponvel em: < https://youtu.be/GAaEOquU_Kc>. Acesso em:15 jun. 2020.
[8] Quando me referir neste
texto ao termo sinestesia e suas variantes, estarei concebendo-o de acordo
com o que Vargas (2018, p. 151) refere ao dizer que sinestesia compreende
um conjunto geral de percepes e sensaes interligadas por todos processos
sensoriais. [...] oportunizando uma viso mais ampla ao leitor sobre como o
sistema sensorial/afetivo/emocional/volitivo influi no processo de
significao.
[9] Segundo Aristteles (2007,
p. 35-36), A melopeia ou composio a parte da arte musical que, entre os
gregos, referia-se composio meldica. Esta parte, pela falta de documentos,
a que menos conhecemos; nela a msica estava subordinada poesia. A melodia
uma sequncia de sons musicais dispostos por ordem tal que logram criar um sentido
satisfatrio ao ouvido e ao esprito.
[10]VARGAS,
Vagner. Preso s correntes. Experimento potico-teatral. Disponvel em: <https://youtu.be/crDbkXcmQh0>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[11] VARGAS,
Vagner. Lamento. Experimento
potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/CkEyIZedQR4>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[12]VARGAS, Vagner. Revolta contra Zeus. Experimento potico-teatral. Disponvel em: <https://youtu.be/3yXJm372J7s>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[13]VARGAS, Vagner. Medo do
trmino da noite.
Experimento potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/B7lmnbh4z6k>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[14]VARGAS, Vagner. Chegada do corvo. Experimento
potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/tGQl66EacuY>. Acesso em: 15 jun. 2020.
[15] Doutor em Comunicao e
Informao pela UFRGS, mestre em Jornalismo pela UFSC. Pesquisador de
ps-doutorado da UNEB. Contato: andriolli_costa@hotmail.com.
[16] Cidade da regio
metropolitana de So Paulo de onde veio o barro.
[17] Quem sugere a
etimologia a Lobato Manequinho Lopes, possivelmente influencia por O Tupi na Geografia Nacional, de
Theodoro Sampaio, cuja segunda edio foi lanada em 1914.
[18] Conforme a
tradio portuguesa, o arcanjo apareceu para Nossa Senhora s 18h. Por isso
sempre nesse horrio o sino soava e os trabalhos eram interrompidos.
[19] Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP
[20] Diferentemente da viso
cannica do termo e da maneira como concebemos o plgio atualmente, a autoria
dentro do Cordel enxergada de uma maneira intrinsicamente diversa, ao menos
no comeo do sculo XX. Em um contexto em que a repetio de histrias tradicionais
era algo no apenas natural, como tambm desejado pelo pblico leitor/ouvinte,
cabia aos poetas e editores revisitarem essas narrativas. Impondo-lhes, por
vezes, pequenas modificaes. Podemos concluir que um conceito muito mais
flexvel na literatura popular do que nos romances, por exemplo, em que uma
atitude como essa poderia gerar disputas judiciais.
[21] Pensar a originalidade
tambm envolve a questo de revisitao de textos antigos, portanto a
verdadeira originalidade no contexto do cordel estaria em conseguir produzir
uma obra com linguagem prxima a de seus leitores/ouvintes e da realidade em
que viviam. Dessa forma, seria possvel que o pblico se identificasse com suas
criaes e se sentisse parte de suas narrativas (cf. OLIVEIRA, 2017, p. 52).
[22] Seria o personagem arquetpico Pedro Malasartes, que pode tambm figurar no Cordel sob outras alcunhas. A sua arma secreta o quengo, a inteligncia, e aparece denominado como amarelinho, por causa do fsico disforme e comprometido pelo ancilstomo, pela sfilis e pela deficincia alimentar do trabalhador das usinas e das plantaes (MARQUES, 2014, p. 248).
[23] Nascido em Pombal-PB. Viveu a maior parte de sua vida morando em Recife, cidade em que se fixou e iniciou a sua produo de cordis. Barros conseguiu o feito de viver exclusivamente da venda de seus cordis, o que justifica tambm a sua vastssima produo. Suas obras permanecem no imaginrio coletivo nordestino at os dias de hoje (OLIVEIRA, 2017).
[24] Apesar de o folheto ser referenciado como de autoria de Joo Martins de Atade, a Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema. Essa mudana de autoria ocorreu a partir do momento em que Atade comprou todo o esplio de Barros, a partir de ento Atade passa a assinar os folhetos do autor como se fossem de sua autoria.
[25] Professor doutor e
pesquisador da Universidade Federal de Gois – UFG.
[26] Mestra em Estudos
lingusticos pela Universidade Federal de Gois – UFG.
[27] O videoclipe foi publicado
em 28 de setembro de 2010, no Youtube, no canal Cufatvddos. At a
produo deste artigo, o vdeo trazia 416.452 visualizaes e 889 comentrios.
O acesso foi em 30 de junho de 2020.
[28] Bobbio (1995) apresenta
instigante estudos sobre as diferenas entre esquerda e direita.
[29] Disponvel em:
<https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2019/06/16/em-junho-reserva-indigena-de-dourados-registra-media-de-um-assassinato-a-cada-dois-dias-e-meio.ghtml>
Acesso em: 30 jun. 2020.
[30] Vide trabalhos de Cabral e Lima
(2018).
[31] Por se tratar de um
videoclipe de domnio pblico, essa pesquisa no foi submetida ao Comit de
tica.
[32] Referncia processual na
Justia Federal de Dourados: 5000780-70.2017.4.03.6002.
[33] Devido limitao de
espao, no incluiremos o anexo, com a letra integral da msica.
[34] Doutoranda no Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Mestre em Lingustica pelo Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Graduada em Letras Portugus do Brasil como Segunda Lngua pela Universidade de Braslia. Professora na rede de ensino privado do Distrito Federal. Poeta, performer e atriz.
[35] Lngua de origem banto
falada em Angola pelos ambundos.
[36] Campanha de Erradicao de
Invases – C.E.I. (1970).
[37] Fala do documentrio Rap, o
canto da Ceilndia de Adirley Queirs, 2005.
[38] Os principais elementos que
compem o Hip Hop so o DJ (msico), o break (dana), o grafite
(arte visual), o rap (poesia), o MC (mestre de cerimnias) e a
conscincia.
[39] Todos somos um, faixa 5 do
CD Aqui vamos ns (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.
[40] Por questes ticas, no
ser citado neste trabalho o nome da instituio de ensino, assim como a
identidade dos alunos, por motivos de resguardo. Cito que, para a realizao
deste trabalho, foi concedida a autorizao por parte do diretor e vice-diretor
da escola.
[41] O quilombismo se estruturava
em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas
de difcil acesso, o que facilitava sua defesa e organizao econmico-social
prpria, como tambm assumiram modelos de organizao permitidos ou tolerados,
frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (catlicas), recreativas,
beneficentes, esportivas, culturais ou de auxlio mtuo [...] rede de
associaes, irmandades, confrarias, clubes, grmios, terreiros, centros,
tendas, afoxs, escolas de samba, gafieiras foram e so os quilombos
legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei, erguem-se os
quilombos revelados que conhecemos. [...]. A este complexo de significaes, a
esta prxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo (NASCIMENTO, 2019, p. 281-282).
[42] Pindorama (Terra das
Palmeiras) uma expresso tupi-guarani para designar todas as regies e
territrios da hoje chamada Amrica do Sul (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 20).
[43] Msica S curto o que bom, produzida
no ano de 2004 em parceria com Look e VadiosLocus.
[44] Msica Rap da felicidade
(Eu s quero ser feliz), produzida em 1995.
[45] Msica Braslia Periferia
produzida em 1994 do CD Dia a Dia da Periferia.
[46] Single O cu o limite, lanada
em 2018 no canal YouTube da Devasto Prod.
[47] Campeonato de poesia falada.
[48] Projeto financiado pelo Fundo de Apoio Cultura do
Distrito Federal que visibilizava levar a arte a paradas de nibus de
periferias como o Recanto das Emas e o Riacho Fundo II. Poesia, msica, grafite
e dana foram algumas das manifestaes que se aproximaram do perifrico que
enfrenta o transporte coletivo precrio do Distrito Federal diariamente.
[49] Projeto apresentado
ao Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal em 2017 e contemplado no edital
macrorregional.
[50] Esse movimento surge no
distrito do Bronx (Nova Iorque). uma iniciativa de negros, descendentes de
africanos escravizados que foram trazidos s Amricas, e de latinos que
migraram para os Estados Unidos no ps-Segunda Guerra em busca de melhores
condies de vida (TEPERMAN, 2015).
[51] Msica Favela do CD
Novidades Ancestrais.
[52] O Infopen responsvel pelo
levantamento de informaes estatsticas do sistema penitencirio brasileiro.
[53] Referncia intelectual
Llia Gonzalez ao criticar a lgica de dominao em que negros e negras so
considerados (as) domesticveis, impossveis de falarem por si, por carregarem
atributos de infantilidade, isso tudo por estarmos no lixo da sociedade
brasileira. Assim, a autora conclui que preciso assumir a prpria fala e
afirma: o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).
[54] Esses saberes esto muito
relacionados aos saberes ancestrais que dizem respeito a ser, em contraposio aos saberes sintticos, que envolvem ter. Como o prprio mestre quilombola
Bispo dos Santos afirma: Eu no preciso de Karl Marx e de outros acadmicos:
preciso de minha gerao av, aquela que veio antes de mim e que me move. Essa
lgica organizada em comeo, meio e comeo. Minha gerao av comeo, minha
gerao filha meio e minha gerao neta comeo, de novo (BISPO DOS SANTOS,
2019, p. 27).
[55] Doutoranda do PPG em Letras da Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Cultura Visual pela FAV/Universidade Federal de Gois. Professora do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina.
[56] Trecho do programa de TV
sobre arte contempornea, CATLOGO, criao do diretor Marcos Ribeiro.
Produzido pela TV Imaginria Produes, uma realizao do canal de TV a cabo
CANAL BRASIL. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 8 ago. 2020.
[57] Doutor em Comunicao e Cultura pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro e Professor Titular Pleno da UNEB/Campus I, Professor Permanente do
Programa de Ps-graduao em Estudos das Linguagens – PPGEL/UNEB.
[58] Todos textos que aparecem
alinhados direita so trechos da poesia Tempo de Pipa, de Breno Silva
(2020). Mantive a escrita do texto como encontrada no vdeo disponibilizado no Youtube.
[59] Agradeo ao Breno Silva,
autor da poesia e idealizador do vdeo, pelas contribuies compartilhadas na
pequena e rpida entrevista bate-papo concedida atravs da rede social Instagram,
em agosto de 2020.
[60]
Cf. Day (2005); Gohn (2008).
[61] Cf.
Rosas (2005).
[62] Segundo Gonalves (2012, p.
181), o termo foi criado pelo coletivo norte-americano Critical Art Ensemble,
em 1996.
[63] Viajou Sem Passaporte, 3Ns3
e Tupi No D so alguns desses grupos.
[64] Partida de futebol informal entre
jogadores amadores em campo improvisado.
[65] Mesmo que se reconhea que o videoclipe possui traos de produes convencionais, em seus termos tcnicos, vale ressaltar que o interesse pela produo reside no fato de essa ter sido produzida na lgica do associativismo, por muitos coletivos, e de ser assinada por diretores e artistas com larga experincia na atuao em coletivos. Considero que a singularidade desse tipo de produo no reside, necessariamente, no uso dos seus recursos tcnicos, mas, sobretudo, nas suas possibilidades de narrar histrias, apresentar paisagens e empregar corpos muitas vezes excludos disso que aqui estamos a tratar como produes convencionais, produtos da grande mdia. Para quem tem interesse na discusso acerca da presena das foras e dos fluxos hegemnicos em produtos e produes tidas como contra-hegemnicas, indico a leitura de Freitas (2009).
[66] Entrevista a mim concedida
em agosto de 2020.
[67] Professora do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas e do Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPB.
[68] A pesquisa aqui apresentada
foi feita durante o estgio de ps-doutorado, realizado sob a superviso do
professor Francisco Topa, na Universidade do Porto, entre setembro de 2013 e
agosto de 2014.
[69] Coleo Cordel. Disponvel
em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/. Acesso em: 29 dez. 2020.
[70] No tive acesso a pesquisas
que tratem da atuao das mulheres nesse campo, mas fica aqui o convite para
futuras investigaes.
[71] Mestre em
Arte, Cultura e Cognio (UERJ). Bacharel em Dana (UFRJ) e Licenciando em
Educao Fsica pela mesma. Contato: genilson.leite@hotmail.com
[72] Mestre em
Relaes Etnicorraciais (CEFET-Maracan), Especialista em Histria da frica e
da Dispora Africana no Brasil (FIS) e em Gnero e Sexualidade (UERJ). Bacharel
e Licenciado Pleno em Educao Fsica (UFRJ). Atualmente professor da
SME-PCRJ. Contato: capoeiranomade@yahoo.com.br
[73] Destaca-se que h uma
preferncia pelas manifestaes populares da cultura afro-indgenas do Norte e
Nordeste brasileiro com exceo do jongo,
que o ritmo mais pedido e nico
de origem no Sudeste, e que isso pode ter relao com o trabalho
disseminador do Mestre Darcy do jongo, que com seu grupo Jongo da Serrinha levou o jongo para o
centro do Rio e para os palcos do Brasil e do exterior, assim como tambm
gravou CDs, CD-livro, produziu material audiovisual. A mais, somos agraciados por grupos de Samba de roda e Afox
(BA), Coco
(PE, AL), Maracatu
(PE), Tambor
de crioula, Bumba-meu-boi e Cacuri (MA) e os grupos mistos que como o j citado faz
tudo.
[74] Conforme consta na
pgina da EEFD, no item Histrico da Cia Folclrica, ela foi fundada em 1987
pela professora Eleonora Gabriel, na Escola de Educao Fsica e Desportos
(EEFD). Este projeto originou-se do Grupo de Danas Folclricas da UFRJ,
fundado pela professora Snia Chemale na dcada de 70 (COMPANHIA FOLCLRICA RIO-UFRJ,
2020, p. 1).
[75] Expresso utilizada por nordestinos para se referirem s
pessoas das regies Sudeste e Sul do pas, com um tom de tratamento igualmente
genrico dado por esses ao povo nordestino.
[76] Em sua
pgina do facebook, o Grupo Zanzar (2020, p. 1) descreve o seguinte:
Com quatorze anos de existncia, o Zanzar um grupo de msica e danas
populares brasileiras que trabalha as linguagens das culturas populares
tradicionais (coco, jongo, carimb, cavalo-marinho, maracatu, cirandas e frevo,
entre outros), sendo formado por msicos e brincantes [] e promove
mensalmente, na ltima quinta feira, s 20h, uma Roda de Coco aberta e gratuita
nos Arcos da Lapa. E finaliza exaltando que recria estas manifestaes dentro
de uma linguagem prpria e original que valoriza e se inspira nesta rica
brasilidade.
[77]A Cia. Folclrica (2020, p. 1), ao ir a campo para montar um espetculo, relata que atravs dessa iniciativa surgiu a oportunidade de conhecer e incentivar vrios grupos tradicionais como o grupo de Cirandeiros de Tarituba (Paraty), e que aps o incentivo e o intenso trabalho realizado pela Companhia junto comunidade, os taritubenses reativaram o grupo de danas e, mais tarde, lanaram um CD–livro sobre sua cultura. Defende ainda essa ao como uma contribuio essencial de um projeto acadmico realizado dentro de uma universidade pblica.
[78] Professora da Universidade
Federal de Minas Gerais, doutoranda em Letras/Estudos literrios, rea de
concentrao Teoria da Literatura e Literatura Comparada.
[79] Graduado
em Artes Cnicas (UNESPAR-FAP). Mestrando em Estudos de Cultura Contempornea,
Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPGECCO-UFMT). Membro da Solta
Cia de Teatro de Cuiab – MT, do Coletivo Deriva e do Grupo de Pesquisa
Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades. Professor
colaborador da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.
[80] Graduada em
Comunicao Social – Rdio e TV (UFMT). Mestranda em Estudos de Cultura
Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPG-ECCO/UFMT),
Membro do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e
transversalidades, do In-Prprio Coletivo e Coordenadora das reas Tcnicas da
MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.
[81] Graduado em Histria pela
Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Mestre em Histria pela
Universidade Federal da Bahia. Cursa doutorado em Histria na UFMT. Professor
EBTT de Histria no Instituto Federal do Mato Grosso.
[82] Pesquisadora Associada do
Programa de Ps-Graduao em
Estudos de Cultura Contempornea da UFMT. Doutora em Artes Cincias pela USP.
[83] Slams ou poetry slams so
encontros de poesia falada (spoken word) e performtica, geralmente em forma de
competio, em que um jri popular, escolhido espontaneamente entre o pblico,
d nota aos slammers (os poetas), levando em considerao principalmente dois
critrios: a poesia e o desempenho.
[84] Este artigo teve incio na
disciplina Performatividades discursivo-afetivas
do mal-estar na contemporaneidade,
ofertada pela professora doutora Branca Falabella Fabrcio, no Programa de Ps-graduao em
Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGEL-UFMT).
[85] Nasceu em Rondonpolis (MT).
Seu nome artstico (Pacha) derivado do Quechua, a lngua antiga dos povos incas e pr-incas, significa mundo ou
universo. Pacha tem uma grande atuao no segmento da poesia, tricampe do slam
estadual mato-grossense, foi semifinalista na Copa Brasileira de Poesia –
SlamBR em 2017 e finalista em 2018. Atualmente, em turn pelo Sesc no projeto
A Arte da Palavra, viajando por 7 estados e 14 cidades brasileiras, com o
espetculo Faces: A Poesia Negra Em Mim, Em Ns. Em suas letras, aborda o
empoderamento da mulher, do povo preto, a espiritualidade no Ax e suas
vivncias dirias. Em 2017,
foi contemplada no edital da SEC de Cultura de Cuiab que viabilizou seu
primeiro disco Omo Oy, lanado em setembro de 2018 (Texto fornecido pela
prpria artista).
[86]A crtica ou o pensamento decolonial ou descolonial uma
tentativa de incluir a Amrica no pensamento ps-colonial, uma vez que os
autores ps-coloniais no estudavam ou no se interessavam pelos estudos dos
processos de colonizao e dominao espanhola e portuguesa na Amrica. A
ateno da crtica ps-colonial se restringia aos pases de lngua inglesa,
mais especificamente a ndia e alguns pases do Oriente Mdio que foram
colonizados pela Inglaterra. Diferente do pensamento ps-colonial, a crtica
decolonial vai levar em considerao o dilogo com mltiplas epistemes,
buscando o pluralismo de ideias e a diversidade epistemolgica. A proposta
decolonial que se insira a Amrica Latina nas discusses ps-coloniais, mas, mais
do que isso, que se parta da prpria Amrica Latina e de sua diversidade
epistemolgica para entender suas questes. Para Grosfoguel (2014), existe uma
pluralidade de vises e diversas formas de pensar no interior da crtica
decolonial, afirmando que se fosse nica ou se existisse uma nica forma de
pensar, seria mais uma reproduo do pensamento colonial, como em certa medida,
foi a crtica ps-colonial. Sendo assim, no existe um modelo nico na crtica
decolonial, muito menos a negao ou o desmerecimento de algumas epistemologias
europeias importantes para compreender a questo da dominao e da
subalternidade.
[87] Os griots so considerados guardies da histria e da
memria que por meio da
oralidade transmitem suas histrias e seus
conhecimentos. Muitos so cantadores.
[88] Escala
– Discurso e Dimenses do Social da Vida Social
(Traduo nossa).
[89] there are no
ideologically neutral scales, and people and institutions
that come out on top of scalar exercises ofen reinforce the distinctions that
so ordained them.
[90] that the scales that social actors
rely upon to organize, interpret, orient, and act in their worlds are not given
but made—and rather laboriously so. For to scale is not simply to assume
or assert bigness or smallness by way of a ready-made calculus. Rather, [...] people use language to scale the
world around them. [...]. Although
things can be made big though analogy, scale-making always also entails drawing
distinctions, between the bigness of a whales rib and the smallness of a marble,
for instance. As an inherently relational and comparative endeavor, scaling may
thus connect and even confate what is geographically, geopolitically,
temporally, or morally near while simultaneously distinguishing that nearness
from that which is far. Similarly, scaled hierarchies are the efects of
eforts to sort, group, and categorize many things, people, and qualities in
terms of relative degrees of elevation or centrality. Tink, for example, of the
way one entity or domain seems to encompass another, as with maps that
subordinate localities within higher order administrative units, or of the way
nation-states are commonly thought to hover above communities.
[91] Termo usado por Quijano (2009) ao denunciar a classificao social a
partir da ideia de raa como principal motor do atual padro de poder mundial.
[92] Disponvel
em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295. Acesso em: 10 nov. 2019.
[93]Disponvel em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml. Acesso em: 10 nov. 2019.
[94] Disponvel
em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Publicada dia 05/06/2019.
Acesso em:
10 nov.
2019.
[95] Disponvel em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/assassinatos-de-jovens-negros-no-brasil-aumentam-429-em-20-anos/. Publicada dia 17/04/2019. Acesso: 10 nov. 2019.
[96] Hay um hecho en la cultura de Amrica toda, y enla de Amrica Latina en
particular, que implica a todo el mundo de hoy em suglobalidad y que precisa ser
reconocido, puesto en cuestin, debatido y evacuado: la colonialidad del poder. Ese es el primer paso endireccin
de la democratizacin
de la sociedad
y del Estado; de la reconstitucin epistemolgica de la modernidad; de la bsqueda
de una racionalidad alternativa.
[97] Possui graduao em Licenciatura em Letras
Vernculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1999), Mestrado em
Educao pela Universidade Federal da Bahia (2005) e Doutorado em Programa de
Ps-Graduao em Educao pela Universidade Federal da Bahia (2013). Atualmente
professora adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana e Contadora
de Histrias. Coordena o Programa de Ps-graduao Mestrado Profissional em
Letras /PROFLETRAS/UEFS e lder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Poticas
Orais/UEFS. Tem experincia na rea de Educao, com nfase em Poltica
Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Contao de Histrias,
Leitura, Literatura Infantil e Juvenil, Formao do Leitor e EaD.
[98] Possuo graduao em Letras pela
Universidade Estadual de Maring (1996), mestrado em Letras pela Universidade
Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (2001) e doutorado em Letras pela
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (2007). Sou professora
ASSOCIADO C e fao parte do quadro permanente da Universidade Estadual de
Maring. Tenho experincia na rea de Letras, com nfase em Literatura e Cinema
e ensino de Lnguas, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura
comparada, literatura e outras artes, ensino de literatura, leitura e
letramento texto literrio, interao verbal, lnguas estrangeiras modernas.
Atuo na Ps-graduao do Profletras, Mestrado profissional em Letras,
ministrando a disciplina Leitura do texto literrio. Participo do grupo de
pesquisa Ressignificaes do passado na Amrica: processos de leitura, escrita
e traduo de gneros hbridos de histria e fico – vias para a
descolonizao. Com Ps-doutorado intitulado La dame aux Camlias –
romance, drama, pera, filme, cordel: releituras comparadas do perfil de uma
cortes, na UNIOESTE/Cascavel, sob tutoria do Professor doutor Gilmei
Francisco Fleck; em parceria com a Universit Lyon 2, sob tutoria da Professora
Doutora Maria da Conceiao Coelho Ferreira.
[99] Mestranda em Estudos Literrios
pela UEFS (Bolsista Capes). Pedagoga pela Universidade Federal da Bahia (2007).
Trabalhou como arte-educadora no Espao Cultural Pierre Verger entre os anos de
2010-2016, nas reas de Cultura Digital e incentivo leitura, tendo recebido o
Prmio Pontos de Leitura (2012). Ministra oficinas de escrita e leitura, tendo
participado da exposio "As aventura de Pierre Verger" (2015).
Trabalhou como pedagoga no Programa de Informtica na Educao Especial da OSID,
orientando projetos de pessoas com deficincia, durante os anos de 2005 a 2007.
Durante dois anos foi bolsista de Iniciao cientfica PIBIC, nas reas de
gesto educacional e educao e diversidade. Atua como pesquisadora e
professora, principalmente nos seguintes temas: educao e diversidade -
informtica educativa - arte-educao - educao e cultura.
[100] FORD, W. Clyde. O
heri com rosto africano: mitos da frica. So Paulo: Summus, 1999.
[101]
Possui
graduao em Licenciatura em Letras Vernculas pela Universidade Estadual de
Feira de Santana (1998), mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela
Universidade Estadual de Feira de Santana (2006) e doutorado em Letras pela
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente professor
Titular A da Universidade do Estado da Bahia e professor do Mestrado
Profissional em Letras da Universidade do Estado da Bahia, atuando, ainda como
Diretor do Departamento de Cincias Humanas, Campus V, da UNEB. Tem experincia
na rea de Letras, com nfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes
temas: literatura e outras artes, identidade, afrodescendncia e cultura.
[102] Disponvel em: www.poetriz.wordpress.com/2006/01/11/0-menino-que-carregava-agua-na-peneira/ Acesso em: 3 jan. 2012, s 15h.
[103] Acrscimo nosso.
[104] Acrscimo nosso.
[105] Disponvel em: www.atualfilmes.onsugar.com/Download-O-Auto-da-Compadecida-6193160. Acesso
em: 15 nov. 2010, s 16h.
[106] Dirige-se ao jornalista e escritor Samarone Lima, seu assessor de imprensa, presente em sua casa no momento da entrevista.
[107] Referncia pesquisadora
Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.