REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitat uma publicao semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Letras e Lingustica (ANPOLL)

 

GT LITERATURA ORAL E POPULAR

 BINIO 2020/2022

 COORDENADORA

Profa. Dra.Dlcia Pombo

Secretaria Estadual de Educao do Par

delciauab@gmail.com

 

 

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com

 

 

 

SECRETRIO

Profa. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

SEDUC/UFPA

alexandre_ranieri@hotmail.com

 

 

 

 

 

 


IDADE MDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE

 

 

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

Bibliotecrio: Marcos Moraes – CRB: 9/1701

 

 

Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL [recurso eletrnico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 31, v. 1, jan. /jun., 2021. – Londrina: UEL; Braslia: ANPOLL, 2021.

 

Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

ISSN: 1980-4504

 

1. Literatura oral 2. Oralidade 3. Cultura popular 4. Manifestaes arttisticas I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Fernandes, Frederico Augusto Garcia III. Universidade Estadual de Londrina. IV. Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica. V. Ttulo: Boitat: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Letras e Lingustica - ANPOLL

 

CDD: 808.5

CDU: 82

 

 

ndice para o catlogo sistemtico:

1.

2.

Oralidade

Cultura popular

82



 

EXPEDIENTE

 

EDIO

Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (UFPA)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)

 

 

EDITORIA ASSISTENTE

Dra. Mauren Pavo Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)

Dra. Andra Betnia da Silva (UNEB)

 

 

ORGANIZAO

Dr. Nerivaldo Alves Arajo (UNEB)

Dr. Joo Evangelista do Nascimento Neto (UNEB)

 

 

COMISSO EDITORIAL

Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas

 

Dra. Ana Lcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Berenice Araceli Granados Vsquez

Universidad Nacional Autnoma de Mxico

 

Dra. Cludia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia

 

Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados

 

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina

 

Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)

 

Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)

 

Dr. Jos Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Par 

 

Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Par

 

Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul

 

Dra. Maria do Socorro Galvo Simes

Universidade Federal do Par

 

Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autnoma de Barcelona

 

Dr. Mrio Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso

 

Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paran

 

Dr. Slvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense

 

Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina

 

Dra. Vera Lcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa

 

 

PARECERISTAS DESTE NMERO

Dra. Ana Lcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Claudia Freitas Pantoja

Faculdades Integradas do Vale do Iva

 

Dra. Cristiane de Assis Portela

Universidade de Braslia

 

Dr. Dejair Dionsio

Universidade Estadual do Centro-Oeste

 

Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia

 

Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados

 

Dra. Eumara Maciel dos Santos

Universidade Federal do Oeste da Bahia

 

Dra. Francisca Pereira dos Santos

Universidade Federal do Cariri

 

Dr. Jos Henrique de Freitas Santos

Universidade Federal da Bahia

 

Dra. Laura Regina dos Santos Dela Valle

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Dra. Lnia Mrcia Mongelli

Universidade de So Paulo 

 

Dra. Maria Nilda de Carvalho Mota

Universidade do Estado de So Paulo

 

Dra. Maria Ygnez Ayala

Universidade Federal da Paraba

 

Dra. Snia Pascolati Vido

Universidade Estadual de Londrina

 

Dra. Yara Frateschi Vieira

Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

 

 

PROJETO E ENSAIO VISUAL

Jssica Arajo Dantas

 

REVISO

Sylvia Calandrini



 

SUMRIO

 

EDITORIAL

Um convite roda da cultura popular

 Nerivaldo Alves Arajo, Joo Evangelista do Nascimento Neto ...................................................5

 

DOSSI

Corporeidade vocal e a pesquisa acadmico-artstica

Vagner de Souza Vargas ..................................................................................................................9

 

O Saci centenrio: uma anlise mitocrtica do Saci Perer – Resultado de um inqurito

Andriolli Costa................................................................................................................................26

 

A literatura de cordel como reinvindicao do direito Literatura

Letcia Fernanda da Silva Oliveira.................................................................................................37

 

O Rap indgena dos Br Mcs: a construo argumentativa da polmica

Rubens Damasceno-Moraes, Vanessa Martins Leo ....................................................................46

 

Tamo junto, favela! A arte perifrica como um mtodo educacional

Ana Carolina de Souza Silva.........................................................................................................60

 

A pintura um silncio? A arte perifrica como um mtodo educacional

Vanessa Tavares da Silva..............................................................................................................71

 

Midiartivismo em tempo de pipa: msica, poesia e arte a favor do ativismo social

Ricardo Oliveira de Freitas............................................................................................................83

 

Pontes sobre o rio Capiberibe e o mar

Ana Cristina Marinho....................................................................................................................96

 

Movimento Cult do Rio de Janeiro e os discursos sobre o coco de Pernambuco

Genilson Leite da Silva, Bruno Rodolfo Martins........................................................................107

 

Testemunhos da catstrofe: memrias do trauma em Vozes de Tchernbil

Joyce Rodrigues Silva Gonalves................................................................................................117

 

Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm

Everton Brito. Karina Souza, Lucas Caf, Maria Thereza Azevedo...........................................128

 

Poticas Orais, corpo-memria e o ritmo das narrativas de mestres e mestras contadores de histrias tradicionais

Luciene Santos, Margarida Corsi, Lana Lula Amorin.................................................................139

 

CONVIDADO

A potica do retalho

Joo Evangelista do Nascimento Neto........................................................................................151

 

ENTREVISTA

Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria do homem que levou os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a cantoria
Andria Betnia da Silva ...........................................................................................................168

 

Um convite roda da cultura popular

 

 

 

O dossi AS MANIFESTAES DA CULTURA POPULAR E SEUS MLTIPLOS DILOGOS se d em uma roda, cujos membros brincantes, nesse espao, se do as mos criando um crculo infinito, forte e colaborativo. Nessa roda, enquanto uma pessoa est no centro, cantando, contando e performatizando sua histria, seu enredo, as demais coparticipam num giro de saberes, sorrisos, corpos e vozes.

Nesse dossi, tornamos pblica uma srie de estudos e vivncias orgnicas sobre manifestaes da cultura popular. Aqui, cultivamos a pluralidade de saberes e sabores que nascem, crescem e resistem em meio ao povo e por ele. Esses conhecimentos se formam por uma multiplicidade de vozes, de pensamentos; se constituem vivos nos corpos que resistem ao tempo, s lutas e tentativas de apagamento.

Essa roda da cultura sem fim, porque se alimenta da vida cotidiana do povo. Enquanto houver povo, haver cultura, que se manifestar por meio da palavra, ressignificada e personificada na palavra-letra, na palavra-voz, mas tambm na palavra-corpo, na palavra-tinta, na palavra-barro...

Por meio da palavra que o ser se faz homem e mulher, mas por meio da cultura que esse homem e essa mulher se fazem gente. Por isso, fazemos um convite leitura desse dossi. Ele no mais um arquivo, daqueles que escondem papis, conhecimentos. Os textos que compem esse acervo ganham fora se lidos no s com os olhos mas, num movimento circular-sinestsico, se forem sentidos com o corpo, se suas vozes forem ouvidas, o gosto dos seus sentidos forem saboreados, porque cultura existe para ser degustada, e que nossos pelos se ericem diante de suas potncias, e os nossos coraes jubilem frente a alma desse ente vivo.

Esse dossi uma declarao pblica em defesa da cultura popular, que brota em lugares subalternizados, mas que se espalha por onde quer e como quer, encontrando novos cultivos, outros agricultores. Ns, seres humanos, somos aqueles e aquelas que aram essa terra, o espao humano, onde se faz cultura todos os dias e, por ela, se vive e se transforma a vida, e se muda o mundo:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A cultura o instrumento do ser pensante, brincante e sentinte. As reflexes e atos que dela surgem vm em forma de dana, de riso, de fora, do olhar e do tocar; brota da admirao e, por conseguinte, da tomada de conscincia, individual e coletiva, respectivamente, por isso mesmo, o espao cultural sempre lugar de rememorao e celebrao, mesmo que disso resulte indignao, resistncia e luta. Assim, nesse dossi, entram tambm na roda:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


que o povo luta com a sua voz, com as suas marchas, mas tambm com seu bailar, sua pintura, seus sonhos, sorrisos e lgrimas. Por isso, a roda, que se forma nesse dossi, movimento contnuo, que muda de cadncia, conforme o tema, mas nunca perde o ritmo; alterna a melodia, sem desfocar a performance; e toda essa cinesia simboliza a vida e a humanidade em seu estado mais pleno:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Nesses artigos, vemos mltiplos corpos, vozes; belezas to distintas, traos fortes das gentes que fazem a cultura popular nos espaos pblicos, privados, nos livros e mdias. A palavra G-E-N-T-E, sinnimo de P-O-V-O, parece significar algo to amorfo, mas, na verdade, no h dicionrio que consiga, at hoje, atribuir sentido definitivo a elas; ns, povo-gente, no somos sem forma, pelo contrrio, temos vrios aspectos, diversas fisionomias. No h molde que nos encaixe e nos aprisione, porque nos (re)adequamos vida, ao contexto e ao pretexto. desse modo que a roda da cultura popular se amplia, recebendo novos brincantes:

 

Quem encerra essa roda/nmero da Revista Boitat Ariano Suassuna, com sua fala/canto em BREVE PROSA COM ARIANO SUASSUNA OU A HISTRIA DO HOMEM QUE LEVOU OS CANTADORES AO TEATRO E MOSTROU OUTROS RUMOS PARA A CANTORIA.

Dessa forma, os dilogos presentes nesse dossi so excertos de manifestaes diversificadas, que se revelam numa profuso de sons, cores e sabores. So discursos de autoconhecimento e da compreenso do outro. So modos de vida e formas de ao que precisam ser conhecidas e experenciadas.

Por fim, vamos roda!

 

Nerivaldo Alves Arajo

https://orcid.org/0000-0001-9423-3603

 

Joo Evangelista do Nascimento Neto

https://orcid.org/0000-0003-4937-7311

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOSSI

 

Corporeidade vocal e a pesquisa acadmico-artstica

 

Vocal Corporeity and Academic-Artistic Research

 

Vagner de Souza Vargas[1]

https://orcid.org/0000-0002-6350-9256

 


Resumo:
Abordagens investigativas relacionadas aos processos criativos nas mais distintas linguagens artsticas tm se desenvolvido com diferentes nfases ao longo do tempo. O objetivo deste artigo o de apresentar uma proposta de trabalho de campo na pesquisa acadmica em artes cnicas, na qual foi desenvolvido um tipo de processo criativo, com o intuito de refletir sobre as interfaces entre aspectos corporais e vocais na pesquisa acadmico-artstica. Este trabalho demonstrou uma possibilidade outra para o desenvolvimento do trabalho de campo, assim como tambm reafirma a necessidade de que a grande rea das artes como um todo se permita a divulgar outras abordagens para a pesquisa acadmica.

Palavras-Chave: Metodologia da Pesquisa. Corporeidade Vocal. Corpo-Voz. Processo Criativo. Pesquisa Acadmico-Artstica.

 

 

Abstract: Investigative approaches related to creative processes in the most distinct artistic languages have emerged with different approaches, especially nowadays. The aim of this article is to present a proposal for field work in academic research, in which a kind of creative process was developed, with the purpose of reflecting about the interfaces between body and vocal aspects in academic-artistic research. This work has demonstrated another possibility for the development of field work, as well as reaffirming the need for the great area of the arts - as a whole - to be allowed to disseminate other approaches to academic research.

Keywords: Research Methodology, Vocal Corporeity, Body-Voice, Creative Process, Academic-Artistic Research.

 

 

Introduo

 

A pesquisa acadmica em artes performativas possui abordagens metodolgicas, em acordo com as suas especificidades de rea, estabelecidas ao longo dos anos (CARREIRA et al., 2006). Entretanto, em acordo com as necessidades contemporneas, alguns artistas-pesquisadores sentem o desejo de desenvolverem suas investigaes por vias metodolgicas que no necessariamente venham ao encontro dos seus anseios conforme os mtodos tradicionalmente desenvolvidos o fazem.

Neste sentido, urge a necessidade em se propor abordagens para o desenvolvimento da investigao acadmica de um modo geral, propiciando perspectivas que hibridizem, borrem fronteiras entre as metodologias tradicionais e/ou que possibilitem se desenvolver por meios outros[2]. Mas, potentes em viabilizar reflexes que contribuam produo acadmica e artstica. Estas abordagens outras encontram em suas caractersticas, parmetros e desenvolvimentos, os elementos essenciais para se legitimarem em si, constituindo-se como perspectivas alternativas pesquisa acadmica, em especial, s pesquisas em artes performativas (PRENDERGAST, 2003; 2014; PARKER-STARBUCK; MOCK, 2011; KERSHAW; NICHOLSON, 2011; KERSHAW, 2012; AALTONEN; BRUNN, 2014; VARGAS et al., 2019). Apesar de haver muitas abordagens metodolgicas para as pesquisas acadmicas na grande rea das cincias humanas, este artigo focar suas reflexes para o contexto das pesquisas em artes performativas.

O objetivo deste artigo o de apresentar uma proposta de trabalho de campo na pesquisa acadmica em artes performativas, na qual foi desenvolvido um tipo de processo criativo por um ator[3], com o intuito de refletir sobre as interfaces entre aspectos corporais e vocais em sua investigao. Neste texto, tambm ser relatada esta perspectiva sobre como trazer um processo criativo que trabalhe aspectos relacionados s vivncias corporais e vocais no trabalho em artes performativas por meio de uma etapa de empiria em uma investigao acadmica, ou como chamada por Vargas (2018), acadmico-artstica, pois se prope a hibridizar quaisquer linhas separatrias que possam dividir a pesquisa entre estas reas.

Antes de mais nada, para ler este texto, h de se faz-lo como um convite a observar como um ator se utilizou de uma proposta tcnica, associando corpo e voz, sonoridade e corporeidade, ou, como mencionado por Vargas (2018): corpo-voz – vide p. 85 – e corporeidade vocal – vide p. 23 –, para desenvolver uma pesquisa acadmica, na qual a sua prtica como investigao no trabalho de campo tambm envolveu um processo criativo. Por se tratar de um artigo no qual se explanar sobre alguns procedimentos adotados durante o trabalho feito ao longo de um doutoramento, neste texto, em certos momentos, os relatos sero escritos em primeira pessoa, como um convite ntimo e intencional de trazer quem o esteja a ler para perto de reflexes to particulares desenvolvidas na tese de Vargas (2018).

Este texto tambm se prope a oferecer um outro modus[4] de se pensar e efetuar o trabalho de campo em pesquisas que envolvam processos artstico-criativos. Talvez, a descrio dos procedimentos adotados no estudo que serve de mote para a escrita deste artigo possa oferecer algum rudo queles que no esto acostumados a transgredir as propostas de metodologias das pesquisas tradicionalmente efetuadas no meio acadmico. Entretanto, justamente por este motivo, muitos artistas-pesquisadores tm optado por buscar maneiras outras para o desenvolvimento dos trabalhos empricos em suas investigaes, de modo que estejam em acordo com seus anseios, como o caso dos estudos publicados por Prendergast (2003; 2014), Parker-Starbuck e Mock (2011), Kershaw e Nicholson (2011), Kershaw (2012), Aaltonen e Brunn (2014), Vargas (2018) e Vargas et al. (2019). Por outro lado, para a leitura do texto deste artigo, tambm convido o(a) leitor(a) a um olhar afetuoso, uma vez que a descrio de um processo criativo, mesmo que tenha sido desenvolvido com o intuito de suscitar reflexes, tambm um ato de desnudamento do artista que se prope a relat-lo, expondo suas fragilidades, vulnerabilidades e dilemas ao longo deste processo.

 

Etapas de uma composio no processo criativo: conceitos necessrios

 

Os processos criativos em artes performativas podem ser realizados com distintas abordagens, conforme aprouver s necessidades dos trabalhos que as(os) artistas estiverem desenvolvendo. Neste momento do texto, faz-se importante ressaltar que, apesar de a discusso deste artigo estar focada a partir da perspectiva do trabalho de ator, por se tratar de uma temtica relacionada s reflexes sobre corpo e voz, o que aqui ser exposto tambm serve s perspectivas de trabalhos de artistas em dana, pera, performance art, msica, circo, burlesque, dragging e demais artes, as quais sero englobadas dentro da terminologia artes performativas apenas por uma questo de facilidade de escrita textual a este artigo. Alm disso, tambm necessrio enfatizar que, apesar de este artigo centrar suas abordagens falando sobre uma perspectiva para atores, por se tratar de uma discusso que pode ser ampliada s diversas artes, quando estiver falando sobre estes aspectos para atores, todas as reflexes e propostas aqui tratadas tambm podem ser expandidas e reverberadas s demais artes performativas.

Nesse sentido, ao se propor uma abordagem investigativa acadmico-artstica, na qual o processo criativo em artes se desenvolva como parte essencial dos procedimentos de investigao, podemos pensar todo o contexto de pesquisa como um processo de composio. No caso deste artigo, permito-me traar um paralelo com as reflexes propostas por Bonfitto (2009, p. 142) sobre o ator-compositor, ao considerar que

H, alm disso, especificidades ligadas ao ator-compositor. A partir do conhecimento dos elementos que envolvem a prtica de seu ofcio, e utilizando-se da ao fsica como eixo dessa prtica, ele adquire a possibilidade de deixar de ser somente uma pea da engrenagem que constitui a obra teatral, assim como pode superar a condio de consumidor de tcnicas de interpretao. [...]. O ator adquire um valor de instrumento potente, capaz de oferecer inmeras possibilidades de resoluo para os processos cnicos.

O enlace feito com o que destacado acima, a partir de Bonfitto (2009), se refere a pensar a pesquisa acadmico-artstica em artes performativas como um processo para alm do desenvolvimento de tcnicas. Nesse sentido, os artistas-pesquisadores, ao avanarem em um processo criativo de pesquisa nesta rea, devem estar abertos a este processo buscando que o fornecimento de elementos esttico-reflexivos e poticos durante esses vivenciamentos em pesquisa, lhes possibilite subsdios necessrios ampliao das discusses pertinentes aos seus trabalhos. Este direcionamento se refere a um modus particular desta especificidade de rea em desenvolver seus estudos, pedagogias, achados e reflexes. Neste caso, a composio parte de um princpio no qual o artista ir pensando, elaborando, vivenciando e refletindo sobre cada etapa antes e durante o seu trabalho de campo, encontrando elementos que serviro como disparadores reflexivos a serem desenvolvidos a posteriori. O ator se pe como parte ativa neste processo em busca dos subsdios que lhe conduziro ao caminho das reflexes relacionadas sua investigao, tudo isso ao longo do processo criativo, compondo o seu trajeto de pesquisa de campo por meio de sua corporeidade[5].

Quando nos propomos a desenvolver uma investigao acadmico-artstica em artes performativas por meio de uma proposta metodolgica focada no trabalho corporal e vocal para atores, de maneira conjunta e indissociada, h de se perceber que as reflexes oriundas desse processo sero permeadas profundamente por vivncias e experimentaes corporais e vocais. As experincias desse processo potencializaro as prximas etapas da pesquisa proposta. Ao se refletir sobre elementos relacionados a questes corporais e vocais ao longo do processo criativo, necessitamos conceber esses aspectos tambm englobando saberes sensveis do corpo humano. Sobre isso, apesar de Aleixo (2010) no desenvolver uma tese sobre o que venha a ser um saber sensvel, explicando seus meios e compondo um arcabouo epistemolgico para tanto, este autor refere alguns elementos importantes de serem trazidos discusso aqui proposta, quando diz que

O acesso aos mltiplos procedimentos do trabalho vocal para o exerccio de criao potica, uma vez que experimentados e assimilados praticamente – ou seja, como um saber sensvel do corpo, como algo que eu sei porque posso realizar – amplia as possibilidades do ator pesquisar, improvisar e criar poticas vocais, bem como compreender e propor formas ampliadas de relao com a fala e com o texto em cena, alm de dominar distintos modos objetivos de abordagem de estilos e propostas da linguagem teatral (ALEIXO, 2010, p. 104).

Desse modo, partindo destes disparadores de indcios reflexivos expostos acima, podemos pensar no trabalho corporal e vocal de maneira ampliada. Esta acepo, conduz o ator a considerar esta abordagem como um aprofundamento nos elementos que compem a corporeidade vocal. Esta corporeidade vocal aqui compreendida como sendo fruto de uma interrelao entre aspectos corporais – relacionados a experincias e exerccios fsicos/estticos/expressivos – e vocais – relacionados tambm a experincias e exerccios especficos pensando nas estruturas vocais e correlatas. Corpo e voz sendo assim indissociados, expandem a concepo de voz ao todo corporal, um imenso fluxo de relaes entre o som em cada parte de seu corpo, descobrindo possibilidades e se deixando aberto criao potica da voz enquanto corpo e do corpo enquanto voz, resultando em uma corporeidade vocal.

Nesse sentido, refletir sobre o processo criativo sob a via da corporeidade vocal, permite potencializar no apenas experincias e vivncias que fornecero subsdios a serem desenvolvidos ao longo do processo, mas, tambm, a assumir este aspecto como integrante de um processo de saber sensvel. Este processo potencializa a corporeidade vocal a desempenhar um papel como disparadora de significaes. Ao longo de seu processo criativo, caber ao ator ir mesclando, experimentando, pesquisando e vivenciando possibilidades e, neste nterim, ir selecionando caminhos e experincias que estejam lhe fomentando reflexes relacionadas sua investigao (VARGAS, 2018). Associo a isso o que Bonfitto (2009, p. 140-141) refere ao falar sobre as escolhas metodolgicas de trabalho dos atores:

A utilizao de materiais de diferentes naturezas dever gerar, por sua vez, a necessidade de inserir transies entre esses materiais. A busca de sentido de cada material e das possveis transies entre eles envolve, dessa forma, uma competncia especfica do ator. Utilizando-se de vrios materiais, o ator poder selecion-los somente a partir das percepes resultantes de uma experimentao prtica. Ele dever ser capaz de perceber quais os materiais adequados, que produzem sentido a partir da execuo de suas aes.

Com o intuito de ir gerando sentidos e significaes ao longo de seu processo criativo durante a pesquisa de campo, em sua prtica como investigao, o ator dever compor um modus que lhe permita organizar os elementos trabalhados, assim como, tambm, em constituir meios para recuper-los e expandi-los a cada dia de trabalho. Uma possibilidade para este tipo de composio se refere criao de partituras corporais e vocais. Neste caso, o termo partitura ao qual me aproximo aqui empregado tomando por base o que fora referido por Barba (2010, p. 62) como sendo:

O desenho geral da forma de uma sequncia de aes e ao desenvolvimento de cada uma das aes (incio, pice, concluso); preciso dos detalhes de cada ao e de seus desdobramentos (sats, mudanas de direo, variaes de velocidade); ao dinamismo e ao ritmo: a velocidade e a intensidade que regulavam o tempo (no sentido musical) de uma srie de aes. Era a mtrica das aes com suas micro pausas e decises, o alterar-se de aes velozes e lentas, acentuadas e no acentuadas, caracterizadas por uma energia vigorosa e macia; orquestrao das relaes entre as vrias partes do corpo (mos, braos, pernas, ps, olhos, voz, rosto).

O que esse autor descreve no trecho acima se refere a uma maneira de organizar movimentos, aes fsicas e vocais dentro de uma sequncia fixada (no sentido de poder ser rememorada e resgatada em cada dia de trabalho) pelo ator ao longo de seus treinamentos. A elaborao dessas aes deve obter um certo grau de preciso no apenas no que diz respeito sua execuo, mas para que, por meio desse processo, o ator possa ir percebendo as nuances e sutilezas de cada aspecto que pode estar no entre cada ao. Esses procedimentos so realizados ao longo dos momentos em que os atores se pem nas salas de ensaio/trabalho/estdios desenvolvendo exerccios e experincias que lhes permitam a abertura e a disponibilidade para a identificao de matrizes corporais e vocais que sero integradas, elaboradas em sequncias posteriormente organizadas em movimentos, sons e aes (VARGAS, 2018). Quando se situa esta possibilidade como integrante de uma etapa s pesquisas acadmico-artsticas em artes performativas, deve-se ter em mente que haver a necessidade em se traar hipteses de partida, objetivos e questes iniciais que serviro como primeiros passos antes do processo criativo em si como trabalho de campo dessa investigao. Esta abordagem, utilizando-se de partituras corporais e vocais, requer um perodo prolongado durante o trabalho de campo, uma vez que, segundo Barba (2010, p. 63):

Uma partitura s comeava a viver depois de ter sido fixada e repetida muitas vezes. A partitura era a manifestao objetiva do mundo subjetivo do ator. [...]. A partitura era a busca da ordem para dar espao Desordem. [...]. A elaborao compreendia as mudanas de ritmo e de direo no espao, a fixao das micro pausas entre uma ao e outra e um novo arranjo das vrias partes do corpo (braos, pernas, expresses faciais), que era diferente do material originrio. [...]. Durante suas improvisaes, o ator ia pescar materiais de onde destilar (elaborar) em seguida uma partitura. Teria sido estpido pescar com redes furadas e deixar que os peixes fugissem quando chegassem superfcie.

Para o ator-pesquisador que se proponha a realizar um trabalho nessa perspectiva, no basta apenas organizar as aes em uma ordem especfica. Ele precisa compreender em seu corpo, em sua corporeidade, os caminhos que transpassam cada uma delas, permitindo que essa disposio ou justaposio em ordenamento fomente possibilidades de gerar material criativo de trabalho dirio. Cada fragmento contm um mundo, uma constelao de possibilidades instigantes. A cada dia de trabalho, sentidos e significados surgem e se potencializam na medida em que o ator se compreende e se entrega experimentao de possibilidades. No entre-espao desse processo, existe um fio condutor que pode ser chamado de subpartitura (VARGAS, 2018). Segundo Barba (2010, p. 64), subpartitura :

O modo em que o ator via, ouvia, sentia o cheiro e reagia dentro de si, ou seja, como ele contava a histria da improvisao para si mesmo atravs de aes. Essa histria interior comportava ritmos, sons, melodias, silncios e suspenses, perfumes e cores, figuras isoladas e montes de imagens contrastantes, uma enchente de aes interiores que se manifestavam em precisas formas dinmicas. A subpartitura um elemento tcnico que pertence particular lgica criativa de cada ator.

Partitura e subpartitura so conceitos interligados, porm com distintas especificidades. Sobre esse assunto, Barba (2010, p. 65) ainda afirma que

A subpartitura um apoio interno, um pilar escondido que o ator esboa para si e que no tenta representar. No deve ser confundido com o significado que a partitura vai assumir para quem a observa. Sem a subpartitura, aquilo que o ator apresenta no mais a criao de uma corrente subjetiva de reaes, uma linha orgnica guiada por uma coerncia interna, mas gesticulao, movimento e deslocamentos casuais.

Por este motivo, ao se utilizar da criao de partituras e subpartituras durante o seu processo criativo, em uma investigao enfocando a corporeidade vocal, h de se estar aberto a extrapolar a pura execuo de tcnicas. Nesse sentido, devemos buscar nas inter-relaes do corpo-voz as sensaes, experincias, sentidos, significados, emoes e vivenciamentos que conduzam a possibilidades reflexivas, as quais serviro de vias de acesso aos caminhos a que esta etapa da investigao se abrir. Este tipo de abordagem requer que as tcnicas sejam ultrapassadas em prol de que o artista-investigador se permita e se entregue criao.

Entretanto, tambm gostaria de enfatizar que processos criativos que se utilizem dos aspectos relacionados criao de partituras corporais e vocais fazem parte de diversas abordagens metodolgicas nas pesquisas acadmico-artsticas em artes performativas. Este artigo no est expondo alguns destes elementos como uma inovao metodolgica. Mas, sim, com o intuito de propiciar um enlace com o que ser apresentado mais a diante neste texto, ressaltando a singularidade da proposta que ser brevemente descrita e, assim, expor os referenciais que a legitimam tambm como uma perspectiva outra pesquisa acadmico-artstica contempornea. Porm, nesse contexto, como poderia o ator conduzir e desenvolver seu processo criativo ao longo do trabalho de campo?

 

Um experimento potico-teatral

 

O que ser dito como sendo um experimento potico-teatral no texto deste artigo parte da concepo feita por Vargas (2018, p. 32), ao referir que este procedimento envolveu a criao de uma partitura cnica a partir do texto Prometeu Acorrentado, de squilo. Segundo este autor descreve nesta parte de sua tese, o experimento potico-teatral envolve a criao e adaptao de movimentaes corporais, vocais e suas inter-relaes com a corporeidade, a fim de se criar um fragmento de cena que no necessite ter as mesmas concepes ligadas dramaturgia literria, situaes cotidianas, nem muito menos utilizao em encenaes. Esse experimento se refere a um modus operandi de que os atores dispem para gerarem matrizes de trabalho e vivenciarem sensaes que podero ou no ser utilizadas ao longo dos seus processos criativos. Esses materiais de trabalho sobre si fornecem subsdios para que o ator possa expandir suas reflexes para outros contextos e questes no necessariamente relacionados ao trabalho que est realizando naquele momento. Tambm considero que esta abordagem seja uma maneira pela qual os atores consigam buscar elementos de reflexo para quaisquer questes a partir das relaes que estabelecem com a sua corporeidade por meio de um modus peculiar de ir desenvolvendo o processo criativo e a prpria compreenso de seu trabalho (VARGAS, 2018).

O experimento potico-teatral um procedimento compreendido de muitas nuances durante o processo criativo, sendo uma delas a criao da partitura cnica. Esse um tipo de pesquisa de campo, na qual o prprio campo o corpo do ator, sua corporeidade, ou seja, as maneiras pelas quais experiencia, vivencia e se relaciona com as experincias ao longo desse processo, resultam em reflexes que no compartimentalizam o corpo, mas o potencializam como elemento disparador de possibilidades. Este aspecto permite ao ator conduzir sua pesquisa, considerando o corpo como um ente global de relaes, ou seja, assumindo-o como/em corporeidade (VARGAS, 2018). Apesar de estar frisando que o experimento potico-teatral desenvolvido por Vargas (2018) tenha sido efetuado com o intuito de aprofundar reflexes sobre corporeidade de maneira ampliada, suas possibilidades como procedimento vivel investigao sobre questes relacionadas sonoridade e voz no devem ser esquecidas, nem muito menos a sua intrnseca relao com o corpo do ator, com sua corporeidade. Esta proposta de trabalho permite conceber uma perspectiva de desenvolvimento das partituras corporais e vocais, pensando-as como elementos estticos, poticos, imbricados, vivenciados de maneira inseparvel, potencializando corpo, voz, emoes, sentimentos e sensaes como matrizes unssonas e/ou dissonantes em atividade.

Entretanto, faz-se necessrio ressaltar que este tipo de abordagem no visa apenas descrever procedimentos, processos e vivenciamentos durante a pesquisa de campo. Estas descries so importantes de serem feitas e, de certa maneira, tambm legitimam, registram e fornecem elementos para se compreender no apenas os procedimentos adotados e escolhas ao longo do trabalho de campo, mas tambm, possveis evidncias que estaro surgindo para compor o arcabouo de reflexes futuras s prximas etapas da pesquisa em questo. Mas, para alm disso, este tipo de proposta de trabalho de campo possui caractersticas de pesquisa especficas das artes performativas. Desse modo, tambm possibilita que artistas-pesquisadores desta especificidade de rea conduzam suas investigaes encontrando meios que venham ao encontro das maneiras pelas quais eles desenvolvem seus processos de significao, reflexo e legitimao das potencialidades evidenciadas em suas pesquisas. Para alm das descries dos procedimentos e vivenciamentos ao longo da pesquisa de campo, neste tipo de abordagem, a ampliao dos disparadores reflexivos, surgidos ao longo do processo, se faz necessria como catalisadora das discusses propostas nos objetivos da investigao que esteja sendo desenvolvida.

Por este motivo, com o intuito de avanar a discusso proposta neste artigo e exemplificar o que vem sendo exposto neste texto, logo a seguir, sero brevemente descritos alguns princpios sobre como se desenvolveu uma parte da proposta realizada por Vargas (2018) para se trabalhar com arqutipos vocais, associados a ressonadores corporais. Esta diviso textual se faz importante para que, quem estiver a ler, possa dispor de subsdios que lhe propicie uma leitura mais fluida sobre quando o experimento potico-teatral for descrito. Nesse sentido, possibilitar-se- que se percebam as reflexes possveis sobre como pensar em um tipo de dramaturgia da corporeidade vocal, configurando-se como uma peculiaridade que se expande tcnica e se desenvolve por meio de um mergulho esttico ao longo do processo criativo.

 

Arqutipos vocais e o experimento potico-teatral

 

A proposta de trabalho com arqutipos vocais surge a partir de teraputicas desenvolvidas em um tipo de prtica especfica de voz-terapia, conforme apresentada por Stein (2009), na qual a autora descreve detalhadamente exerccios de voz-terapia por meio de arqutipos e as tcnicas relacionadas a estes procedimentos. Nessas atividades, foram estipulados e elencados quatro arqutipos – Criana, Amante, Guerreiro e Me – associados a ressonadores localizados em certas partes do corpo. O acionamento sonoro de cada um desses arqutipos na parte do corpo relacionada com o ressonador especfico de cada um deles, desencadeia sentimentos/emoes/sensaes com localizaes corporais especficas e acionadas a partir de uma vibrao sonora da voz no ressonador associado a cada arqutipo em especfico (VARGAS, 2018, p. 94).

Devido ao fato de a tcnica sobre os arqutipos vocais ser uma proposta singular e que requer especificaes sobre a sua adaptao a partir do que fora descrito por Stein (2009), por uma questo de espaamento textual, esta tcnica em especfico no ser detalhada neste artigo, uma vez que o objetivo deste texto se foca mais no que possvel apreender a partir do experimento potico-teatral em si e no em uma das tcnicas que propiciaram o seu desenvolvimento. Contudo, caso seja de interesse do(a) leitor(a) em perceber como a tcnica dos arqutipos vocais foi adaptada a uma proposta de trabalho nas artes performativas, a tese de doutoramento de Vargas (2018) contm elementos aprofundados sobre esta abordagem e o trabalho de Stein (2009) descreve, em detalhes, os procedimentos relacionados voz-terapia.

Segundo Vargas (2018, p. 95), neste tipo de abordagem, os indivduos tm possibilidades de se relacionarem de maneira diferente com as suas sonoridades e descobrir possibilidades ainda no vivenciadas por meio de outras tcnicas. Cabe ainda frisar que Vargas (2018) se utilizou dos arqutipos vocais como uma das abordagens tcnicas durante o desenvolvimento de seu experimento potico-teatral. Entretanto, este autor deixa claro que esta foi uma escolha particular, o que no significa que outros artistas-investigadores possam empregar tcnicas e abordagens diferentes, caso desejem desenvolver suas investigaes se utilizando de um experimento potico-teatral. Nesse sentido, antes de descrever sobre o experimento potico-teatral em si, logo abaixo, sero explicitados, brevemente, os quatro arqutipos escolhidos que foram trabalhados por Vargas (2018), nos quais a voz era dinamizada, associada a ressonadores corporais especficos, propiciando experincias emocionais/estticas que serviram de matrizes para o processo criativo que ser descrito logo a seguir neste texto.

a) O Arqutipo da Criana

Todas as emoes vivenciadas nesses exerccios eram percebidas e associadas s suas localizaes nos ressonadores de cabea, relacionados a determinadas vozes agudas. Segundo Vargas (2018, p. 95) relata em seu trabalho: Esse processo me permitia descobrir sensaes emotivas que os sons das vozes desvelavam e a localizao corprea de onde eles poderiam ser acessados.

b) O Arqutipo do Amante

No trabalho com este arqutipo, a voz era deslocada para a parte superior torcica, devendo explorar todas as possibilidades dos ressonadores presentes nesse local. Estes exerccios pretendiam investigar sonoridades no mais agudas. Mas, agora, de extenso mediana, buscando o encontro desses sons com as emoes que poderiam ser associadas nessa regio do corpo. Segundo Vargas (2018, p. 95), os exerccios utilizados envolviam sentimentos relacionados ao amor e afetividade, aliados responsabilidade e ao poder.

c) O Arqutipo do Guerreiro

Esta etapa do trabalho envolvia exerccios nos quais o impulso vocal deveria partir da regio diafragmtica de maneira dinmica e expansiva, deixando as sonoridades da emergidas, reverberarem ao longo de todo corpo, observando as sensaes e emoes que despertavam. Segundo Vargas (2018, p. 96), Esse arqutipo acessado por meio de movimentos e ritmos fortes em uma constante relao com o cho e a base.

d) O Arqutipo da Me

Os trabalhos associados a este arqutipo propunham exerccios que envolviam o deslocamento do centro de ressonncia da voz para a poro infra umbilical. Segundo Vargas (2018, p. 96), As emoes aqui trabalhadas, bem como das matrizes corpreas que esses sons nos remetem, forneciam indcios para o acesso de matrizes de trabalho relacionadas a sentimentos de conforto, melancolia, saudade, separao, amor, generosidade, acolhimento, proteo e sensaes de introspeco.

 

O experimento potico-teatral: criando partituras e subpartituras

 

Durante os treinamentos diariamente realizados ao longo do trabalho de campo, matrizes corporais e vocais, que estavam relacionadas aos arqutipos vocais escolhidos para serem o foco de trabalho, foram sendo fixadas, assim como suas localizaes corpreas e as emoes ali registradas. Essas matrizes serviam como elementos para a criao da partitura fsica e vocal, assim como tambm para o seu resgate e desenvolvimento do trabalho a cada dia de pesquisa.

Com o intuito de situar o(a) leitor(a) no contexto da fala e no momento vivenciado pela personagem do texto Prometeu Acorrentado, uma simples e breve descrio se faz necessria para expor alguns aspectos emotivos que o ator considerou como envolvidos na cena e que foram trabalhados por meio das partituras corporais e vocais. O trecho escolhido para comear a ser encaixado nas partituras trabalhadas foi uma parte de uma fala da personagem Prometeu que, aps doar a chama do conhecimento e esperana aos mortais, condenado por Zeus a ficar acorrentado no alto de um penedo por toda a eternidade. Diariamente, um corvo vem a este local para comer o fgado de Prometeu ao longo do dia. noite, o corvo vai embora e o fgado se regenera, para, durante o amanhecer seguinte, iniciar o martrio dirio de Prometeu por toda a eternidade. O fragmento de texto escolhido conta exatamente o momento em que Prometeu, aps receber a condenao divina por ter doado a chama do conhecimento aos humanos, est sendo carregado at o alto do penedo, preso em correntes e, ento, lamenta a sua situao, temendo a chegada do corvo, pois a noite est acabando. Porm, se faz importante salientar que Vargas (2018) tambm esclarece que optou pelo texto Prometeu Acorrentado como uma escolha particular, em consonncia com os argumentos acima expostos sobre as particularidades de escolhas deste autor para o desenvolvimento deste trabalho.

A partir do momento em que o trecho do texto j havia sido escolhido e a partitura bsica de matrizes fsico-vocais j estava elencada, foram includas as prticas com os arqutipos vocais direcionando-os para esse contexto. A partitura corporal-vocal foi dividida em seis momentos: 1. A subida ao penedo, 2. Preso s correntes, 3. Lamento, 4. Revolta contra Zeus, 5. Medo do trmino da noite, 6. Chegada do corvo[6]. Com o intuito de simplificar a escrita deste artigo e facilitar a sua leitura, o que aqui denominado como sendo uma partitura corporal-vocal, engloba os conceitos de partitura e subpartitura mencionados anteriormente neste texto.

Dependendo da frase do texto, foi utilizado um arqutipo vocal diferente. Esta tambm foi uma escolha particular como investigador, no intuito de verificar como o trnsito da voz pelas localizaes corporais de cada arqutipo, poderiam conduzir diferentes emoes/sensaes/experincias que a personagem Prometeu poderia sentir/vivenciar/experienciar durante essa fala. Neste caso, o contexto da personagem Prometeu foi situado dentro das escolhas de conduo tcnica para a partitura e subpartituras. Mas, as sinestesias vivenciadas ao longo deste processo criativo extrapolam quaisquer personagens, fornecendo elementos reflexivos ao ator, independentemente de uma relao com texto e personagem. Apesar de, neste caso, o ator se referir a questes relacionadas personagem, o que ele ia percebendo/vivenciando/experienciando ao longo do processo, lhe fornecia elementos reflexivos a serem desenvolvidos em seu trabalho como ator-pesquisador para alm de situaes especficas a este texto e personagem. As reflexes suscitadas ao longo deste processo se configuram como instncias potentes, catalizadoras de subsdios s prximas etapas da investigao. Esta perspectiva, se refere a um modus particular que alguns artistas podem ter para conduzir e elaborar as maneiras pelas quais compreendem, se questionam, refletem e discutem sobre assuntos especficos de/em sua rea do conhecimento.

Na composio da partitura corporal-vocal, Vargas (2018) optou por trabalhar a passagem da localizao fsica de um arqutipo vocal para outro de maneira contnua. Esta opo foi adotada para que a criao no se transformasse apenas em uma demonstrao tcnica somente passvel de compreenso por aqueles que conhecem esse processo de trabalho. Muito embora estes procedimentos tenham acontecido durante um perodo emprico de investigao de um ator, por meio de um tipo de processo criativo, com objetivos e direcionamentos relacionados ao que motivou tal pesquisa, o que est exposto na frase anterior vem ao encontro de ressaltar que estes procedimentos tambm podem ser efetuados pensando em matrizes para tambm serem utilizadas quando de um evento teatral per se. Nesse sentido, as partituras e subpartituras foram encadeadas simultaneamente, sem impedir o fluxo e continuidade do desenvolvimento das aes. Conforme dito acima, esta foi uma escolha particular, o que no impede a outros atores de organizarem suas partituras e subpartituras de maneiras distintas das como foram efetuadas no trabalho de Vargas (2018). Logo abaixo, alm de serem descritos momentos deste processo criativo, tambm sero expostas algumas percepes e reflexes que foram surgindo ao longo do trabalho de campo, com o intuito de trazer ao texto deste artigo a ilustrao alargada sobre como um artista que desenvolveu um trabalho de prtica como investigao, conduziu seus catalizadores de reflexes que viriam a seguir em sua pesquisa.

Entretanto, gostaria de ressaltar que as prximas partes deste texto sero escritas em primeira pessoa, pois se tratam de descries particulares, realizadas durante o experimento potico-teatral, conforme dito anteriormente. Esta abordagem feita com o intuito de compartilhar detalhes deste procedimento. Mas, afinal, como foi dividido o experimento potico-teatral e como foi vivenciado pelo ator-pesquisador que o desenvolveu?

 

A subida ao penedo[7]

 

Esse momento se referia subida de Prometeu ao penedo, j condenado, sendo carregado pelos seus algozes. Para essa sequncia, foi criado um movimento de subida, em que Prometeu caminha sentindo o peso das correntes e as dores pelas torturas que est passando. O som que conduz esse movimento grave, em lamentao, fazendo referncia aos lamentos das tragdias gregas. Esta sonoridade foi trabalhada tendo como origem as emoes oriundas da regio prxima da base infra umbilical, relacionada ao Arqutipo da Me. A opo por esse arqutipo vocal, associado a esse ressonador corporal, para esse momento da personagem, se deu em funo de ele estar relacionado a sentimentos de dor, melancolia e sofrimento.

Durante os trabalhos dirios, as percepes sinestsicas[8] forneceram importantes subsdios para a identificao e fixao de matrizes corporais e vocais que podem ser dinamizadas em outros momentos. Considero que essas percepes so muito importantes para despertar a compreenso do ator sobre como operacionalizar seus momentos criativos, ao se entregar a esse tipo de proposta metodolgica. Como exemplo disso, descrevo aqui algumas percepes surgidas durante o processo:

Ao trabalhar o Arqutipo da Me, sentia uma ressonncia grave, muito forte, na altura da crista ilaca, me trazendo uma sensao de dor que desperta muitas emoes e o choro de maneira que ainda no consigo control-lo. Conforme vou colocando o som nesse ressonador, vou conseguindo criar o clima da caminhada do Prometeu (VARGAS, 2018, p. 105).

Ao longo do processo de vivenciamento das experincias perpassadas pelo som em intrnseca relao com a minha corporeidade, ao trabalhar esses aspectos com este ressonador vocal, associado ao Arqutipo da Me, percebi que as sensaes do som nessa regio de ressonncia permitiam que as emoes fossem expandidas em larga escala. Esta percepo me pareceu ser uma boa alternativa a se trabalhar com o objetivo de abordar situaes enfrentadas pelas personagens das tragdias gregas. Alm disso, essa ressonncia de som grave trazia referncias sobre como acredito que poderia ser um tipo de aplicao dessa fala dentro dos aspectos clssicos de melopeia[9], presentes em muitos textos de teatro grego da Idade Antiga.

 

Preso s correntes[10]

 

Essa sequncia bem rpida e se d no momento em que Prometeu termina de fazer o movimento em espiral de subida ao penedo e tem seus braos presos s correntes, sentindo o cansao de tal atividade e o peso de sua sentena. Ento, Prometeu cai e fica de ccoras durante a prxima fala. Nesse momento, utilizei o Arqutipo do Guerreiro, pois sentia que era um breve instante de luta, tentativa de mostrar sua fora e resistncia, mesmo que rapidamente. Entretanto, neste fragmento textual, Prometeu aceita sua condio e sua pena, deixando-se prender. Esse momento realizado em uma frao de segundos. Mas, a fora que impulsiona e conduz todos esses movimentos, surge a partir do impulso sonoro suscitado pelo acionamento do Arqutipo do Guerreiro. Este tipo de impulso sonoro, associado ao Arqutipo do Guerreiro, parte de contraes e relaxamentos dinmicos e intensos das musculaturas envolvidas nos movimentos de apoio diafragmtico, trazendo um tipo de vigor ao momento que se est experienciando.

 

Lamento[11]

 

Nesta parte, inicia a fala de Prometeu propriamente dita. Enquanto ele est agachado, permanece lamentando sua situao e o que lhe ocorreu. Inicialmente, foi utilizado o Arqutipo da Me, com a mesma localizao do ressonador corporal utilizada durante A subida ao penedo. Porm, quando Prometeu comea a questionar os deuses sobre o seu aprisionamento, o foco de ressonncia foi deslocado para a regio diafragmtica, associada ao Arqutipo do Guerreiro, pois, durante o processo criativo, considerei essa situao como um momento de revolta, resistncia e demonstrao de fora da personagem que merecia ser trabalhado desta maneira. O deslocamento da voz por estas localizaes corporais, associadas aos arqutipos, foi assim registrado:

Logo que comecei a trabalhar essa partitura do Prometeu, fiquei com receio de trabalhar em cima de apenas um arqutipo, pois acredito que ele sinta muitas coisas enquanto conta a sua histria, passando por mgoa, dor, sofrimento, raiva, revolta, amor e solido por exemplo. Talvez, se eu transitar pelos arqutipos consiga imprimir outros coloridos minha voz, desbravando emoes que esto localizadas em algumas partes do meu corpo (VARGAS, 2018, p. 106).

Suscitado por essas sensaes, com o intuito de verificar como faria para Prometeu sentir a dor localizada na regio do fgado, desloquei o foco de ressonncia para o ressonador corporal associado ao Arqutipo da Criana. Este direcionamento foi assumido, pois, nesse momento da fala, ao longo dos vivenciamentos do processo criativo, considerei que a personagem se sentia fragilizada, enfraquecida, impotente e a voz de cabea, sendo conscientemente falhada, lhe aumentava a sensao de sofrimento e solido. Enquanto a sequncia de movimentos ia descendo e voltando, ao agachar, considerei que Prometeu ia sentindo o peso das correntes, causando-lhe dor e o fazendo retornar ao lamento anterior. Sobre essa situao, cito o seguinte:

No momento em que o Prometeu sente a dor da chaga no fgado, comecei a buscar essa dor fsica e me surgiu um som agudo de grito. Desloquei a voz para o Arqutipo da Criana, pois nesse local se pode trabalhar com os sons agudos de maneira mais fcil. Ao trabalh-los em staccato, encontrei a sensao de sofrimento que a personagem sente nesse momento e, quando fao a voz deslizar pelo meu corpo, por cada um dos arqutipos, at voltar para o da Me, consigo perceber todo o sofrimento dele (VARGAS, 2018, p. 106).

Ao longo dessa sequncia, trabalhei a voz para ir se deslocando entre os ressonadores at atingir o foco de ressonncia na regio do Arqutipo da Me, pois considero que a personagem volte a ficar melanclica e triste, lamentando sua situao. Dessa maneira, ao longo do processo criativo, este foi um meio experienciado que propiciou tais sensaes de maneira mais efetiva. Antes de partir para o prximo momento, Prometeu comea a se levantar. Para este nterim, a motivao que o conduzia foi trabalhada de maneira a estar associada regio do Arqutipo do Amante. Entretanto, em funo disso, aqui, os sentimentos trabalhados esto relacionados a aspectos do amor, da entrega, da responsabilidade, da compaixo, que geram sofrimentos. Sobre essa transio, saliento as seguintes descries feitas ao longo do processo:

Quando Prometeu vai falar sobre o que fez e do seu castigo, sinto que deve ser algo que ele aceite, que no questione, pois ama tanto aos mortais, quanto aos deuses. Mas, aqui, vou explorar o trabalho do Arqutipo do Amante, encarando as emoes associadas a essa regio, pelo lado que causam dor e sofrimento, pois, durante os treinamentos, costumo trabalhar esse arqutipo apenas pela sua outra faceta (VARGAS, 2018, p. 106).

No ltimo grito de lamento da personagem, antes de falar sobre Zeus, tambm houve a opo por se trabalhar o Arqutipo do Guerreiro, porm sob outra perspectiva. Agora, ao invs da fora, foi trabalhado o impulso vindo dessa regio, mas como uma impotncia da personagem frente situao. Durante os treinamentos dirios, envolvidos no processo criativo, considerei que esse impulso me ajudava a deslocar a voz para a regio do Arqutipo do Amante para o momento em que Prometeu fala sobre o seu amor aos homens, conforme foi exposto em:

Procuro maneiras de transitar com a voz pelos diversos ressonadores. Como percebo que o Prometeu passa por muitas emoes durante essa cena, quero criar possibilidades para trabalhar os arqutipos de diversas formas. Quando ele fala no amor que ele tem pelos mortais, estou em busca das emoes do Arqutipo do Amante, relacionadas ao Rei, Imperador e o seu amor incondicional queles que acreditam nele (VARGAS, 2018, p. 107).

A passagem para o prximo momento comeava aps Prometeu falar sobre a situao de estar preso em correntes no alto do penedo. Com o intuito de vivenciar essas sensaes da passagem, os movimentos e a voz foram trabalhados de maneira a mostrar e vivenciar a sua dor fsica e emocional. Para tanto, foi realizada a mesma transio entre os arqutipos feita antes, com o impulso surgindo da regio diafragmtica, associada ao Arqutipo do Guerreiro, chegando regio da cabea, associada ao Arqutipo da Criana, at voltar regio infra umbilical associada ao Arqutipo da Me. Desse modo, foi trabalhada a passagem de vrias emoes da personagem, intrinsecamente associadas s movimentaes corporais e vocais experienciadas neste momento da partitura. Ao longo do processo, foi possvel observar que este procedimento me auxiliou a preparar a personagem ao prximo momento da fala.

 

Revolta contra Zeus[12]

 

Esse um momento bastante breve, quando Prometeu percebe alguma movimentao prxima ao penedo. A personagem aproveita a possibilidade de estar sendo ouvido por algum para, ento, expressar a sua revolta contra Zeus. Aqui, foram trabalhados o Arqutipo do Guerreiro e as emoes associadas a essa regio. Como Prometeu est preso em correntes, com o intuito de vivenciar esta sensao, os movimentos foram trabalhados por meio de impulsos leves, vindos da regio diafragmtica. As dificuldades sentidas em trabalhar com o Arqutipo do Guerreiro foram descritas aps um dos dias de treinamento da seguinte maneira:

Tenho muita dificuldade em trabalhar o Arqutipo do Guerreiro, pois o excesso de impulso diafragmtico me faz perder o controle da voz, podendo faz-la ficar muito aguda e no acho que trabalhar essa energia de fora, revolta e coragem com sons muito agudos tenham a ver com o Prometeu. S consigo segurar o tom da voz, pois puxo a energia do Guerreiro para a base e os movimentos no me deixam levar pelo tom da voz (VARGAS, 2018, p. 107).

Apesar de ser um momento rpido, a sequncia vocal e corporal da Revolta contra Zeus, me permitiu trabalhar em cima de uma dificuldade pessoal em lidar com o fluxo de energia associado ao Arqutipo do Guerreiro. Alm disso, tambm possibilitava dar nfase a um pequeno momento da fala da personagem em que ela protesta contra a sua sentena.

 

Medo do trmino da noite[13]

 

Nesta parte da partitura, aps vir da transio pelo Arqutipo do Guerreiro, rapidamente, deslocava o centro energtico para o ressonador associado ao Arqutipo do Amante, pois, ao longo dos treinamentos dirios que envolveram o processo criativo, considerei que esta me foi a via mais efetiva para trabalhar o momento em que Prometeu fala de seu amor aos mortais. Quando a personagem escuta algum som se aproximando, considero que este seja o seu ltimo instante de medo neste trecho do texto, pois Prometeu sabe que o corvo se aproxima para comer o seu fgado. Essa sequncia de movimentos foi conduzida pela voz trabalhada na regio associada ao Arqutipo da Criana. Como esse arqutipo foi trabalhado em menor proporo que os outros durante a construo das partituras e subpartituras desse fragmento de texto, nesse rpido momento em que a personagem teme a chegada do animal que lhe tortura diariamente, aproveitei para encaixar esse arqutipo durante essa transio. Essa escolha foi feita com o intuito de que, apesar ser um deus e de compreender a sua pena, considero que, neste momento, Prometeu pudesse mostrar sua fragilidade e o quanto sofria tambm pelas dores fsicas causadas pelo corvo. Nesse sentido, ao longo do processo, o ressonador associado ao Arqutipo da Criana parecia ser o mais adequado para potencializar estas sensaes neste momento da fala.

 

Chegada do corvo[14]

 

Esse era o ltimo momento da partitura corporal-vocal criada para o experimento potico-teatral. Na verdade, esse momento se referia a uma ltima experimentao feita para o trabalho dos ressonadores associados a arqutipos na voz com essa personagem. Porm, neste fragmento da fala, resolvi pontuar o final da partitura. Quando o corvo chega para comer o fgado do Prometeu, ao invs de buscar um som relacionado a algum dos ressonadores associados aos arqutipos trabalhados, optei por criar uma espcie de fermata para o silncio. Entretanto, apesar de no estar emitindo som, a conduo do movimento se deu pelo acionamento energtico a partir do Arqutipo da Criana, associado sensao de medo, temor e dor. Essa opo surgiu aps alguns improvisos durante os treinamentos, conforme descrito abaixo:

Hoje, eu queria definir o final da partitura, mas no sabia que som deixar para o momento em que o corvo come o fgado do Prometeu pela ltima vez nessa fala. Deixar um grito sair, poderia ser uma opo. Tentei faz-lo vindo da regio do corpo associada a cada um dos arqutipos vocais, mas eles no coincidiam com o movimento que o meu corpo estava fazendo. Ento, ao tentar experimentar o Arqutipo da Criana para esse final, em uma das repeties, no consegui emitir som, s uma vibrao do ar, senti como se fosse s um fluxo energtico e, da, surgiu o final da minha sequncia, com todas as emoes que o silncio precisava gritar nesse instante (VARGAS, 2018, p. 108).

A experincia do final dessa partitura permitiu explorar outra possibilidade de acesso aos arqutipos associados aos ressonadores vocais: a no emisso sonora. Contudo, percebi que esse indcio vinha apenas a ressaltar que existem ainda muitos caminhos para se descobrir no trabalho por meio de arqutipos na voz, inclusive, para a utilizao de exerccios que permitam a explorao de no-sons, de sons no-oralizados, de um habitat de sentidos que se libertam dos sons, mas que podem se fazer sentir por quem esteja convivenciando esse momento. A percepo de que o ato de no emitir um som tambm poderia ser acionado nesses ressonadores, associando essa informao aos arqutipos ali trabalhados, tambm me propiciou evidenciar a possibilidade de expressar textos no-oralizados, mas vivos em latncia energtica de sensaes, imagens, vontades, emoes, sinestesias, subtextos. Esse fato tambm chamou a ateno para a existncia de uma vida pulsante em um entre-espao no expresso por sons, o que me instigou mais a investigar sobre como seriam essas potencialidades presentes em no-sons, nos silncios. Ainda h que se adentrar aos entre-espaos por onde as relaes de/entre corporeidades se expandem para alm do som, mas, ainda assim, potentes em vibraes em corporeidade. Investigaes estas que ficaram para trabalhos futuros, j que no so o foco dos procedimentos descritos no texto deste artigo. Entretanto, no que tange reflexo da tese desenvolvida por Vargas (2018), h um denso aprofundamento sobre aspectos relacionados ao subtexto, inconsciente e o silncio como instncias vivas relacionadas a aspectos intrnsecos corporeidade. Porm, estes sero assuntos para serem ampliados em artigos futuros e que foram densamente desenvolvidos na tese de doutorado de Vargas (2018).

 

Consideraes finais

 

A breve descrio feita neste artigo sobre o experimento potico-teatral efetuado por Vargas (2018) ilustra uma perspectiva possvel para um tipo de etapa de trabalho de campo na pesquisa acadmico-artstica em artes performativas. Esta perspectiva elucida a possibilidade de profissionais destes campos do conhecimento desenvolverem processos criativos como fontes de matrizes que lhes fornecero subsdios para avanarem s etapas seguintes de suas pesquisas. Desse modo, sem se ater necessariamente s metodologias tradicionais de pesquisa acadmica em artes performativas, os artistas destas reas podem legitimar e constituir meios outros efetivao de suas investigaes, partindo de seu prprio contexto de trabalho em arte, como artistas, em seus processos de criao.

Este tipo de prtica como investigao em artes requer um robusto arcabouo terico-prtico, com o intuito de estabelecer parmetros, criar pontes, borrar possibilidades e abrir caminhos coerentes proposio metodolgica de maneira diferenciada das tradicionalmente empregadas no meio acadmico. Conforme dito anteriormente, este artigo no visa trazer tona uma inovao metodolgica no campo das artes performativas, tampouco deslegitimar outras metodologias de pesquisa. H uma grande diversidade de possibilidades metodolgicas para a realizao de pesquisas nesta especificidade de rea. O trabalho desenvolvido por Vargas (2018) vislumbra uma possibilidade outra para este campo do conhecimento, como tambm, ilustra uma perspectiva sobre como um ator mergulha em seu processo criativo, com o intuito de buscar disparadores reflexivos a elementos que extrapolam a etapa emprica em si.

Alm disso, a reafirmao de pesquisas acadmico-artsticas que se desenvolvam a partir de abordagens metodolgicas que se distinguem de alguma maneira das tradicionais, assim como tambm de sua publicao e divulgao, corroboram para o fortalecimento e estabelecimento de possibilidades outras s pesquisas no contexto contemporneo. Mas, para que isso seja possvel, avaliadores e consultores de peridicos especficos de rea, assim como acadmicos que orientam e conduzem pesquisas nas universidades e centros de investigao/criao artstica, necessitam estar abertos e disponveis a estas possibilidades outras, distintas das tradicionalmente realizadas e publicadas. Desse modo, alm de se estar consolidando outras perspectivas e caractersticas destas especificidades de reas do conhecimento, se est contribuindo para ressaltar suas singularidades, sem que isso signifique minimizar critrios de qualidade cientficos, acadmicos e artsticos.

No que tange aos aspectos relacionados corporeidade vocal, neste artigo fica evidenciada uma proposta singular em se experienciar possibilidades vocais por meio de uma perspectiva esttica que se prope a desenvolver prticas corporais e vocais de maneira indissociada. Alm disso, neste texto, a partir do trabalho de Vargas (2018), tambm fica evidenciada uma maneira particular para artistas dessa rea descreverem seus percursos de pesquisa, metodologias, pedagogias e reflexes ao longo dos processos criativos. Com isso, tambm considero possvel vislumbrar esta abordagem como um tipo de proposta diferenciada ao trabalho criativo dos profissionais das artes performativas.

Trabalhar poticas relacionadas corporeidade vocal suscita que as(os) artistas se entreguem a experienciar e vivenciar situaes criativas para alm das tcnicas previamente adquiridas e/ou desenvolvidas. Desenvolver investigaes na perspectiva da corporeidade vocal propicia englobar as reflexes de maneira a no desvincular as pedagogias, processos de significao e matrizes reflexivas oriundas das percepes e vivncias integradas entre corpo e voz. Esta abordagem requer uma genuna e sincera disponibilidade aos processos inerentes ao ato criativo. Produzir conhecimento a partir dos contextos dos processos criativos de artistas, contribui para o espraiamento, progresso, desenvolvimento e divulgao de peculiaridades caractersticas a este ofcio. Alm disso, este tipo de abordagem tambm expe maneiras diferenciadas de se operacionalizar o conhecimento e suas reverberaes possveis no campo da pesquisa acadmico-artstica.

 

 

Referncias

 

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[Recebido em  17 out 2020 – Aceito em 17 set 2020]

 


 


O Saci centenrio: uma anlise mitocrtica de Saci Perer – resultado de um inqurito

 

 

The 100-year-old Saci: a mythocrytic analyses on Saci Perer – result of an inquiry

 

 

Andriolli Costa [15]

https://orcid.org/0000-0002-8589-27

 

 

Resumo: Este trabalho revisita o livro O Saci Perer – Resultado de um Inqurito, organizado por Monteiro Lobato em 1918. O Inqurito conta com mais de 70 depoimentos que do a ver verses plurais do mais brasileiro dos mitos: o saci – duende negro, com herana europeia e indgena. Partindo do levantamento da Narrativa Cannica e do reconhecimento do lastro simblico do Nome do mito, o trabalho d incio a uma anlise mitocrtica fundamentada na vertente arquetipolgica da Teoria Geral do Imaginrio, buscando evidenciar as constelaes simblicas que emergem da obra. Tensionando leituras de que o texto evocaria imagens racistas e demonizadas, a partir da anlise encontramos agrupamentos referentes aos mitologemas do Indgena, do Pssaro, do Escravo, do Transgressor, do Demnio e do Heri, que evidenciam uma complexidade inata no mito enquanto aquele que hesita entre aliado e castigador, entre aparentado do diabo e eleito de Deus, entre desvio mantenedor do status quo e inspirao para a liberdade.

Palavras-chave: Saci; Imaginrio; Folclore; Mito; Monteiro Lobato.

 

Abstract: This article revisits the book O Saci Perer – resulto of an inquiry, organized by Monteiro Lobato in 1918. The Inquiry counts on more than 70 testimonials that gives us plural versions of the most Brazilian of the myths; the saci - a black and legless imp with a red cap inherited from the European gnomes and with indigenous origin. Starting with the identification of the Canonical Narrative and the recognition of the symbolic coverage of the Name of the myth, this works develops a mythocritic analysis based on the archetypological aspect of the General Theory of the Imaginary, seeking to highlight the symbolic constellations that emerge from the ouvre. Tensioning readings that the text would evoke racist and demonized images, through the analysis weve found the following mythologems: the Indigenous, the Bird, the Slave, the Transgressor, the Demon and the Hero, which show an innate complexity in the myth as that who hesitates between ally and punisher, between the devil and the elect of God, between the deviation used to maintain the status quo and the inspiration for freedom.

Keywords: Saci; Imaginary; Folklore; Myth;  Monteiro; Lobato.

 

 

Introduo

 

O ano era 1917 quando Monteiro Lobato usou das pginas que dispunha no Estadinho, suplemento do jornal O Estado de S. Paulo, para fazer uma convocatria. O escritor j ganhara notoriedade anos antes com a publicao de artigos que consolidavam a imagem do caipira enquanto um parasita da terra e eptome do atraso, seja devido a prticas de cultivo antiquadas (como a coivara), pela suposta preguia ou pelo modo de vida pacato. Afeito a polmicas e sempre de dedo em riste, entretanto, Lobato retornava desta vez temtica interiorana para encontrar nela no mais o bode expiatrio da conjuntura brasileira, mas sua panaceia. Buscava, para tanto, realizar um inqurito. Sobre o futuro presidente da Repblica? No. Sobre o saci (LOBATO, 2008, p. 36). Ambos, a obra e o mito que a inspirou, sero objeto deste estudo.

Muitos compreendem a campanha lobatiana, que trouxe o duende perneta como estandarte, mero reflexo de seus arroubos nacionalistas. E h motivos para isso. No mais puro deboche, o autor dedica o Inqurito, por um lado, saudosa Tia Esmria e a todas as pretas velhas contadoras de histrias; por outro, ao bairro do Trianon, regio que elegeu como substrato da goma europeia na capital paulista. No mesmo perodo, o autor j se demonstrava desgostoso com o estrangeirismo que invadia o Brasil nos modos, no vocabulrio, e especialmente na arte. Revolta-se especialmente com esttuas de duendes barbaudos, encapotados para o frio sob o sol tupiniquim – reflexo do que julgava ser uma covarde esttica nacional. Para Lobato, deveramos assumir nossos motivos, com imagens no de anes nibelungos, mas de curupiras, papagaios, macacos ou, claro, de sacis (LOBATO, 2008, p. 29).

Seria uma incorreo, entretanto, limitar o lanamento do Inqurito busca pela valorizao do nacional – especialmente tendo em vista a pesada crtica lobatiana ao caipira e sua admirao modernidade, indstria e aos Estados Unidos. O que a explica, portanto? Uma resposta possvel pode ser encontrada nas razes simblicas do imaginrio. de se lembrar que estvamos no pice da Grande Guerra, a primeira at ento. As promessas de progresso permanente da tecnologia, que nos levaria ao apogeu da evoluo humana, se concretizavam em forma de carnificina. O mito de Prometeu, que trazia as promessas do fogo e da Tcnica para o homem, se convertia na desumanidade fustica daquele que perdeu sua alma na busca pelo sucesso (DURAND, 1998, p. 256).

Essa relao de descrdito momentneo com o progresso maquinstico est manifesta na abertura do Inqurito, j publicado na forma de livro. Nela, percebemos que, brutalidade cometida pelas naes ditas civilizadas, Lobato buscou um contraponto no saci e em tudo o que derivava a partir dele (o interior, a natureza, a pilhria e, claro, a liberdade).

Quem se afoutasse a abrir uma folha sorvia sangue dos telegramas seo livre. Um engulho. Foi quando surgiu o Saci, e veio com suas diabruras aliviar-nos do pesadelo. Por vrias semanas alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa ateno para quadro mais ameno que o trucidar dos povos. Bendito sejas! Ests perdoado de muitas travessuras por haveres interrompido, por um momento, em nossa imaginao, a hedionda sesso permanente de horror, aberta pelo sinistro 2 de agosto de 1914, de execrabilssima memria (LOBATO, 2008, p. 27).

No total, foram mais de 70 depoimentos recebidos para o projeto que se tornaria publicao. Certas cartas traziam um incontido deboche, outras poucas uma crena velada. A maioria recordava com nostalgia as lembranas da meninice encantada pelas histrias do mito. O mtodo do Inqurito coletivo, diferente do ensaio individual, favoreceu a pluralidade de imagens. Por certo que h um recorte de classe imediato entre os informantes – no mnimo na questo da alfabetizao, j que os relatos foram enviados por escrito – s que ainda assim abre-se espao para imagens que independem da viso de mundo de um nico autor. Assim, por certo que o racismo e a eugenia manifestam abertamente nas correspondncias de Lobato e de modo latente na sua fico (HABIB, 2003) no devem ser ignorados. No entanto, a fora simblica que d forma ao saci antecede e muito as elocubraes do autor sobre raa.

Neste trabalho, filiado Teoria Geral do Imaginrio, revisitamos Saci Perer – Resultado de um Inqurito pouco aps o centenrio de sua publicao para buscar na obra cultural as respostas que apenas a mitocrtica pode oferecer: quais imagens simblicas constelam a partir do saci no Inqurito? Como elas so dinamizadas por uma sociedade marcadamente racista e que saa h apenas trs dcadas da abolio da escravatura? E, acima de tudo, possvel a partir da obra compreender o porqu, mesmo um sculo depois, o saci permanece sendo um dos mais mitos mais famosos do pas?

A mitodologia durandiana, como ele mesmo a batiza, se centra no estudo do mito enquanto imaginrio manifesto e busca analisar as redundncias da imagem em uma obra cultural, que se repete para melhor impregnar e persuadir (DURAND, 1998). Compreendendo o mito como a narrativa, o mitologema como seu esqueleto e os mitemas como as menores partes narrativas que constituem o mito (DURAND, 2012), o percurso consiste em identificar e organizar os mitologemas e mitemas para a partir deles orientar a anlise. Assim, perseguiremos a presa mtica no texto do Inqurito para tirar suas consequncias em uma anlise que, embora no ignore as controvrsias envolvendo a biografia do autor, a tensione para encontrar no prprio texto seus sentidos epifnicos.

 

 

O Inqurito

 

J consolidado na imprensa paulista, com quem colaborava frequentemente com artigos provocantes que movimentavam a audincia, Lobato passou a insistir na temtica do saci em um artigo publicado no dia 24 de janeiro de 1917. O gancho para o assunto foi trazido por um companheiro de redao: Manuel Lopes de Oliveira Filho, o Manequinho Lopes. O bilogo, hoje considerado pai do Parque Ibirapuera, era tambm articulista do jornal e, segundo Lobato, um grande investigador da lngua Tupi e das culturas populares. Lopes buscou plasmar a figura do duende brasileiro em barro do Po[16], oferecendo o motivo perfeito para o texto lobatiano: a falta de representaes artsticas dos mitos brasileiros.

Figura 1 – Saci de Manequinho Lopes

Fonte: ESTADO, 1917, p. 4.

 

Se o medo e a escurido, reflete Lobato, foram capazes de gerar tanto os deuses gregos imortalizados pelos aedos quanto a corte das fadas em sonhos preservados pela dramaturgia de Shakespeare; no Brasil, que em nada lhes devia no quesito da fantstica popular, faltava ainda o envolvimento dos artistas para abraar de vez essa cultura. No apenas por desinteresse, mas por falta de acesso. Afinal, justifica o autor, se era comum encontrar tomos dos mais variados dedicados mitologia celta nas bibliotecas pblicas, o mesmo no pode ser dito dos livros sobre nosso folclore que raramente conspurcavam o nobre ambiente livresco. Para manter a honestidade do registro, Lobato recomendava ir ao povo. Afundar na roa para uma consulta ao grande livro no escrito da crendice popular (LOBATO, 2008, p. 32).

Talvez aos olhos de hoje a assertiva de Lobato possa parecer banal. No entanto, preciso lembrar que na poca, especialmente nos peridicos dominados por uma elite intelectual altamente excludente, tudo aquilo ligado ao folclrico era abordado pela perspectiva do extico, pouco mais que um folhetim de curiosidades. Basta ver, por exemplo, aquele que considerado um dos primeiros artigos de jornal no qual o mito do Saci Perer mencionado. Publicado em 1859 no Correio Paulistano, o texto j se coloca na defensiva, justificando-se o tempo todo. O pedido de desculpas ao mesmo tempo em que apascenta o pblico, menospreza de incio todo o contedo das narrativas que investiga

Respeitvel leitor, venervel crtico de testa enrugada e olhar inspirado, no vos revoltais contra as histrias populares que vou comear a escrever. So crenas errneas e muitas vezes cmicas as do povo, mas nem por isso destitudas de interesse; recreiam a imaginao, acalmam por vezes os cuidados do esprito e so para muitos recordao doce do passado (CORREIO PAULISTANO, 1859, p. 2).

Se o Correio j antecipava crticas, Lobato no esperava menos polmica quando trouxe a temtica ao Estado meio sculo depois. E se alguns leitores se mostraram ultrajados com um jornal srio gastar tinta e papel com to grosseira superstio popular, dessas que depe contra os nossos crditos de civilizados perante as naes estrangeiras (LOBATO, 2008, p. 35), muitos outros se envolveram com a narrativa j nostlgica. O interesse havia sido despertado.

Lobato (2008, p. 37) encontrou no Perer – tido por ele como a mais original de nossas criaes populares – o protagonista perfeito para sua campanha. Encantado resultante do imaginrio do indgena, do negro e do europeu, defendia Lobato, o saci era a sntese da cultura brasileira. O mito, explica ele, vem do autctone que lhe deu o nome atual, corruptela de aa cy perereg[17]. Sofreu o influxo do africano, passando de caboclinho a molecote. Modificou-se por injuno da psquica portuguesa. O mestio meteu nele muita coisa de seu (LOBATO, 2008, p. 38). Estudar o saci, desta forma, era estudar o Brasil

O inqurito se consolidou a partir de cartas dos leitores que deveriam responder a uma trinca de perguntas orientadoras.

a) Sobre a sua concepo pessoal do Saci; como a recebeu na sua infncia; de quem a recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida, etc.;

b) Qual a forma atual da crendice na zona em que reside;

c) Que histrias e casos interessantes, passados ou ouvidos sabe a respeito do Saci.

Nem todos se valeram deste expediente, chegando a enviar msicas, poemas ou relatos de memria – em histrias escutadas na infncia pela voz de mucamas, amas de leite, ex-escravos ou funcionrios da fazenda. Outros abraaram o empreendimento e foram a campo conversar com caboclos, boiadeiros, parentes mais velhos. Retratos de distino de classes entre quem contava e quem ouvia, por um lado, mas por outro um resumo da dinmica do folclore – transmitido pela oralidade, mas fixado por lastros simblicos ainda mais poderosos mobilizados pelo imaginrio.

A participao foi considervel e gerou um livro publicado em 1918. No total, a publicao contou com 73 depoimentos, incluindo um assinado pelo prprio Saci e redigido por Lobato. O grosso das correspondncias vinha de So Paulo e interior, mas tambm houve depoimentos enviados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Outros, em seus relatos, mencionavam tambm os estados de Gois, Mato Grosso e Paran, e um leitor, de maneira ampla, a regio Nordeste. Uma amostragem concentrada – focada nos leitores do jornal paulista – mas que j demonstrava a fora do mito pelo territrio nacional.

O envolvimento do pblico no foi obra do acaso. O saci movimenta emoes que vo muito alm da nostalgia, e remete a imagens ancestrais que nos ligam nacionalmente enquanto brasileiros e, em sentido amplo, enquanto gnero humano. isso que percebemos em nossa Mitocrtica.

 

 

Primeiros passos

 

Nos estudos do mito importante ter como ponto de partida dois elementos distintos: o reconhecimento da narrativa cannica e a identificao do nome verdadeiro que o mito assume. Nomear conhecer. So esses elementos que sero tensionados pela mitocrtica – por meio da identificao dos mitologemas e organizao de mitemas redundantes – para que enfim o mito ento se revele.

A narrativa cannica, como sugere Eunice Gomes, no um resumo de textos sobre o mito, mas aquilo que o sistematiza (GOMES, 2011). Seria algo como um modelo padro, um tipo ideal weberiano, que forma sua representao hegemnica. Esta imagem construda tendo por base no apenas o senso comum, mas tambm a influncia miditica, em um processo de retroalimentao no qual o texto cultural se torna mais coerente, menos arracional, e de mais fcil compartilhamento.

No caso do mito do saci, o cnone fala de um moleque negrinho, de uma perna s, que pratica todo o tipo de diabruras, mas sem nunca ser verdadeiramente mal. O saci carrega por vezes um cachimbo, veste carapua vermelha – a fonte dos seus poderes mgicos – e se desloca por meio de um redemoinho. Interessante notar que falar de saci , imediatamente, falar em modos de sua captura. Mesmo hoje a grande atividade escolar de celebrao do folclore costuma ser uma caa ao saci.

O Stio do Picapau Amarelo, srie infantil escrita por Lobato entre 1920 e 1947 – e que contou com inmeras adaptaes audiovisuais – institucionalizou um desses mtodos: o uso da peneira para cont-lo e o roubo da carapua para desempoder-lo. Aquele que toma a carapua do saci ganha poder sobre ele, e, tendo-o preso, pode chantage-lo para que realize os desejos de seu captor. A fora dele est na carapua, como a fora de Sanso estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapua de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo (LOBATO, 2005, p. 18, grifo nosso).

Com o tempo, a narrativa cannica vai sofrendo tamanho influxo cultural que pode paulatinamente se afastar dos mitologemas originais, perdendo mitemas em um processo de esvaziamento e desbastamento. No nvel mximo da estereotipia, temos apenas a casca do mito, um nome que nada mais diz, uma imagtica sem lastro de sentido. Num momento anterior a este, quando apenas um mitema valorado enquanto os demais so suprimidos, diz-se que o mito sofreu heresia – termo usado em seu sentido etimolgico, como a escolha de uma nica viso (DURAND, 2010, p. 144).

A fora da mdia na construo desta narrativa cannica desbastada se mostra quando o prprio lastro da adaptao original vai se perdendo nos vrios nveis de massificao da mensagem. Monteiro Lobato evidentemente se inspirou no material colhido em seu Inqurito para compor sua verso literria do Saci no Picapau Amarelo, publicado trs anos depois. Ainda assim, precisou fazer escolhas. Na obra infantil, o saci tem costume de chupar sangue dos cavalos. Traz as mos furadas como duendes portugueses e carrega ainda muito de demonaco, marcadamente pelo temor a objetos religiosos e ao cheiro de enxofre. Nas subsequentes adaptaes televisivas, o duende brasileiro perdeu muito de sua referncia religiosa, deixou o cachimbo de lado, foi destitudo do furo nas mos e tornou-se mais moleque do que diabrete.

Por vezes, um mito est mobilizando mitemas to distintos – ou ordenados em constelaes to diferentes – que pode carregar falsamente um nome, enquanto escamoteia outro (DURAND, 1998, p. 247). No Inqurito encontramos uma srie de variaes alm do tradicional Perer, atribudas a onomatopeias do canto de pssaros: Saci Ceper, Saci Cerer, Saci Trique, Saci Siriri, Saci Serumperer, Saci Perereca, Saci Sater, Saci Mofera, Saci Saper, Saci Sader, Saci Patar, Saci Sia-Teresa.

Lobato (2008), todavia, aceita mais a sugesto de Manequinho Lopes: viria do Tupi aa cy perereg, olho mau saltitante, mas salienta que a etimologia no ficou comprovada. O nome, no caso, indicaria que o duende possui olhos doentes e, portanto, sempre vermelhos. Curioso perceber que a viso, sempre ligada percepo e a capacidade de discernir falha nesta interpretao do saci, fazendo com que as fronteiras entre certo e errado no fossem facilmente distinguveis para ele.

A miopia, por outro lado, tambm prejudica a agncia. Algo que no percebemos na etimologia proposta por Teodoro Sampaio. Negrinho irrequieto e malfico, tendo um dos olhos doente (a-y) e outro muito vivo e bulioso (a-perer) (SAMPAIO, 1901, p. 311.) Diferente do Perer de Lopes, o Saperer carregaria em si a dualidade do olho bom e do mau. Como as lnguas indgenas so baseadas na oralidade, no na escrita, isso quer dizer que o texto escrito exige forma fixa, enquanto o oral permite que os vrios entendimentos coexistam ao mesmo tempo e na mesma histria.

H ainda outra sugesto de origem autctone: derivao do mito Guarani do Yasy Yater que, conforme Juan Ambrosetti, significa fragmento da lua. No a lua romntica e acalentadora, mas masculina, enganosa e sedutora. Os primeiros registros tanto de Saci, quanto de Yasy so contemporneos; datam da segunda metade do sculo XIX. Impossvel afirmar com certeza qual mito antecedeu o outro, ainda que o consenso indique a origem indgena. No entanto, apesar da proximidade dos nomes, o processo de derivao – com supresso de mitemas e acrscimo de outros – gerou mitos completamente distintos. Ambrosetti (1894, p. 135), ao descrever o mito do Yater, o faz com os seguintes termos:

Um ano loiro, bonito, que anda coberto por um sombreiro de palha e levando um basto de ouro em sua mo. Seu ofcio o de roubar os meninos de colo, que leva para o monte, lambe, brinca com eles e logo os abandona envoltos em trepadeiras. [...]. No falta quem assegure que ele rouba tambm as mulheres bonitas, que so igualmente abandonadas, e que o filho que nasce desta unio, com o tempo, tambm ser um Yasy Yater.

            No se pode ignorar que o duende Guarani ser descrito como loiro rende, de imediato, o qualificativo de bonito, enquanto a feiura frequentemente atribuda ao saci. Neste relato, em especfico, no se fala da cor de sua pele; mas frequentemente descrita como plida feito o satlite terrestre. J no prprio Inqurito, beleza um atributo mencionado apenas uma vez quando atribuda ao saci, enquanto que feio ou horrvel – de maneira explcita e implcita – so recorrentes. No depoimento 59 temos um exemplo desta feiura para o informante: cara quadrada de preto velho, nariz chato, olhos vermelhos e embriagados, orelhas enormes, lbios grossos, boca torta de fumante (LOBATO, 2008, p. 298). So as mobilizaes do mitologema do Escravo – onde constelam imagens ligadas raa, captura, servido forada quando a carapua tomada.

Em um trabalho pioneiro, Renato Queiroz comparou todos os adjetivos e qualificadores ligados ao saci no texto fonte organizado por Lobato com uma pesquisa de campo que desenvolveu no interior de So Paulo cerca de 70 anos aps a publicao do Inqurito. Levanta com isso o argumento para sua crtica introdutria: o Inqurito, enquanto campanha organizada por um veculo de imprensa, oferece um recorte elitista dos depoimentos. Para ele, o mito se ajustava perfeitamente aos interesses ideolgicos de setores da classe dirigente da poca no sentido de discriminar simultaneamente negros e caipiras. As referncias ao Saci e suas aes reproduziriam a maior parte dos esteretipos depreciativos com os quais so definidos os negros na sociedade brasileira. A prpria falta de perna indicaria essa deficincia como mais um elemento de desaforo (QUEIROZ, 1987, p. 70).

Por outro lado, em seu trabalho de campo que buscava um recorte caipira, Queiroz encontra variaes que julga considerveis nas descries do mito. O duende continua negro, mas menos demonaco e animalesco. E no contm qualquer referncia ao fartum peculiar aos negros e muito menos ao odor de enxofre, que tanto incomodavam os olfatos sensveis dos informantes de Monteiro Lobato (QUEIROZ, 1987, p. 75).

O antroplogo se questiona como foi possvel que um diabrete preto, perneta e migrante rural acolhesse tanta simpatia em uma sociedade to profundamente marcada pelo preconceito racial, seguidora de princpios cristos e vida pela urbanizao (QUEIROZ, 1995, p. 142). Para ele, a resposta foi uma paulatina domesticao do saci, que se tornou mais moleque, perdendo traos assustadores e diablicos, num processo que exploramos ao refletir sobre a narrativa cannica. Em seu raciocnio, entre imagens de bandido, malandro e bufo, o saci continua refletindo o mesmo lugar destinado aos negros nas narrativas. A dignidade e respeitabilidade permaneceriam, assim, exclusivas aos brancos (QUEIROZ, 1995, p. 147).

Outro ponto de interesse na pesquisa de Queiroz est na forma como sugere a relao do mito do saci com a populao negra. Esta ligao se daria fundamentalmente por uma perspectiva utilitarista. Presume ele que os escravos tivessem grande interesse em manipular a figura do moleque travesso, atribuindo s suas peraltagens uma srie de ocorrncias – pequenos furtos, quebra de utenslios etc. – pelas quais, no fosse o Saci, acabariam sendo mais seriamente responsabilizados e punidos (QUEIROZ, 1987, p. 92).

A anlise materialista de Queiroz certamente vlida, mas cabem ressalvas. Primeiramente, por ignorar o valor simblico das narrativas, como se as aes concretas estivessem descoladas de uma movimentao do mito no imaginrio – ou como se o imaginrio no tivesse consequncias concretas. Para alm disso, esteve ausente tambm na sua leitura o fato de que o mito no esttico, mas dinmico. Ao analisar qualquer mito dcadas aps um primeiro estudo, a degradao ou incorporao de mitemas inerente ao objeto. Quem se domesticou foi o saci ou a sociedade? O racismo no desapareceu, claro, mas escamoteia seu rosto.

Vale apontar: o depoimento que abre o Inqurito assinado por uma mulher de famlia negra e proletria, que incorpora no texto referncias raciais que hoje percebemos racistas (LOBATO, 2008, p. 41). Em diversos depoimentos, os depoentes entrevistam informantes de classes pobres, vrios negros, e incorporam o relato em linguagem direta, mimetizando a oralidade e a prosdia dos informantes. E mesmo esse grupo atribui descries recorrentes no que diz respeito ao mito: feiura, fedor, aparncia animalesca, etc. Um exemplo ilustrador de uma realidade da poca: o racismo no era um pecado da elite que assinava o Estado, mas uma condio de tal maneira imbricada no pensamento que emergia em todas as instncias do social, nas cincias, na elite branca e no proletariado negro.

O racismo d forma ao registro, mas ser que tambm afeta os mitologemas, as estruturas que fundamentam o mito? No seria essa uma reduo ao mitologema do Escravo? Veremos a seguir.

 

 

A mitocrtica

 

Na investigao dos relatos do Inqurito, relacionamos os seguintes mitologemas: o Indgena, o Pssaro, o Demnio, o Heri, o Transgressor e o j abordado Escravo. A referncia ao saci indgena, cuja origem Tupi-Guarani exploramos acima, aparece no texto apenas nos textos introdutrios escritos por Lobato ou nos introitos de Manequinho Lopes, ambas tentativas de racionalizar o mito. Entretanto, encontramos alguns entrecruzamentos espaados com os mitemas evocados pelo Yasy: em especial o do Sequestro e da Seduo. O depoimento 10 o nico que fala de um saci mais sexualizado, tentador de moas, mas sem referncias a gravidez (LOBATO, 2008, p. 75). Por outro lado, os verbos atrair, sumir e arrastar para o mato repetem-se ao longo do texto, sendo aquele que sofre a ao um grupo de crianas, animais e, em uma nica meno, as crioulas (LOBATO, 2008, p. 354). Atravessamentos entre Saci e Yasy se mostram claramente no depoimento 53, em que o duende descrito como negro, mas com cabelos cor de ouro e portando um pedao de pau.

No mitologema do Pssaro, encontramos a fora da origem ornitloga. Oito depoimentos falam sobre o saci se transformar em pssaro, numa forma frequentemente ligada tristeza e melancolia, a um castigo ou ao envelhecimento. Ao observar os sons atribudos ao saci, curioso perceber que, com exceo do depoimento 70, o cantar do pssaro sempre descrito como lamentoso, transmitindo toda sua dor, enquanto o assovio do duende, em nove das dez vezes em que mencionado, descrito como zombeteiro, estridente e desafiador.

            Enquanto o saci ave chora de tristeza, o saci Transgressor diverte-se s gargalhadas e assovios. Mais do que um bufo, um profanador, e concentra aes vinculadas ao rompimento de proibies e de interditos. Seu habitat so as encruzilhadas, ou as estradas que percorre sempre nos horrios de transio – tabus frequentes no imaginrio popular. Saci circula s desoras, nas horas mortas ou nas horas de ave Maria[18], alm de perseguir quem trabalha em dias santos. O rompimento da interdio sua norma, mas tambm sua maldio. filho de Jabiru com mulher que casa trs vezes ou afilhado de mulher separada (depoimento 24) – reflexo das imagens que um casamento desquitado gerava sobre a figura feminina. Gluto, devora canjica rapidamente apenas para regurgit-la na panela dos homens (LOBATO, 2008, p. 235). Beberro incorrigvel, seca as adegas de vinho e depois as preenche novamente com urina (LOBATO, 2008, p. 43). Uma mobilizao tpica do arqutipo do Trickster.

Para Queiroz, o trickster assume muitas vezes o papel do bobo da corte. Um personagem a quem institudo o direito de romper a norma, quebrando aparncias e ultrapassando barreiras que ningum da sociedade ousaria cruzar. Entretanto, por meio desse processo catrtico que o trickster representa, a ordem seria na verdade reforada. E ainda com o mrito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas, os cdigos e os interditos viessem a se dissolver (QUEIROZ, 1991, p. 98). Seria este o caso do saci?

John Roberts, em um livro dedicado a compreender a distino entre o trickster divino dos nativos africanos para o trickster profano dos negros da dispora, indica que o trajeto antropolgico do contexto da escravido gerou transformaes na forma como o arqutipo mobilizado (ROBERTS, 1993). Sua chave de leitura a escassez: na frica, escassos eram os recursos, fazendo que ali se proliferassem histrias em que a astcia era o caminho para atingir a sobrevivncia e a bonana. J nos Estados Unidos escravagista, a falta era de liberdade. A astcia, ento, era a arma para resistir opresso. Nesse contexto, o trickster assumiria um outro papel arquetpico para as populaes em restrio de liberdade: o de Heri.

Quatro vezes o saci chamado de heri pelos depoentes, sendo um deles o Heri das capoeiras – no sentido de matas (LOBATO, 2008, p. 274) e em outro como o Heri da sexta-feira, indicando a relao com os perodos de transio (LOBATO, 2008, p. 348). Mas isso pouco diz. Quando olhamos para as funes estabelecidas pelo saci nas narrativas do Inqurito, percebemos uma relao bem mais complexa. Saci o guardio dos segredos, o protetor da Flor de Samambaia – capaz de realizar o desejo de quem a encontrar (LOBATO, 2008, p. 250). ainda um doador de riquezas, um ente que auxilia no casamento e na resoluo de causas perdidas com muito mais facilidade que os santos, ocupados demais com assuntos celestes (LOBATO, 2008, p. 295). Saci profano saci prximo, terrestre, capaz de agir por ns.

            especialmente exemplar o relato em que uma ex-mucama relembra quando era obrigada a fazer cafun na cabea de sua ama enquanto esta rezava o tero. Acarinhada na cabea, a mulher acabava sempre dormindo no meio do processo, e a escrava era obrigada a aguardar que ela acordasse para continuar velando sua orao. Certa vez, em meio a um cochilo, a ama foi visitada em sonho por um saci que pregou nela uma solene bofetada. Desde ento, conta, a mulher nunca mais dormiu no tero. Tempos depois, a negra assumiu: o saci foi essa mo que est aqui! (LOBATO, 2008, p. 187). Respiros de liberdade em um contexto de restrio, soprados pelos ventos de mudana do duende.

O imaginrio da noite faz concentrar no saci vrios elementos que transparecem no Inqurito: orelhas de morcego; olhos como dos bichos noturnos; dentes pontiagudos e unhas enormes como fera. Em algumas verses, seu p termina em uma garra de corvo, recuperando o aspecto da ave de mau agouro. Em outras, ps, chifres e barbas de bode faro eco aos demnios europeus. Por outro lado, no apenas aos seres da noite que o saci comparado. Os leitores descrevem o saci como sendo esperto como caxinguel, mais rpido que veado, e com viso mais precisa que da coruja. So metforas comparativas, claro, no descries fsicas, mas com isso percebemos traos positivos tambm presentes no relato.

A peneira, que na narrativa cannica se tornou o grande objeto da captura do saci, quase no mencionada no Inqurito. Quem faz as vezes de artefato um rosrio bento – tanto de contas quanto um improvisado, feito de capim. A peneira s captura se for de cruzeta, ou seja, se trouxer uma cruz segurando as tramas da palha. Enfim, percebemos, o que capaz de tirar a liberdade do saci no nada alm do componente religioso.

            Essa averso, que mobiliza o mitologema do Demnio, traz contradies curiosas. Vrios relatos o descrevem como filho do demnio, parente do diabo, alcoviteiro do demnio ou como satans regenerado. No entanto, igualmente comum dizer que o mito incapaz de qualquer maldade grande. Mais ainda, um dos depoimentos mais conhecidas diz que o saci era um demnio que fugiu do inferno e que recebeu do prprio Deus uma carapua capaz de torn-lo invisvel para que possa continuar mantendo distncia das hostes infernais (LOBATO, 2008, p. 129). O fato inquieta um depoente, que manifesta: Como dindinha conciliava sua f catlica e suas relaes com o capetinha? (LOBATO, 2008, p. 295).

Ocorre que o caboclo sempre teve uma relao dual com o demnio na narrativa oral. Era este o grande pai da maldade, mas era ao mesmo tempo um inimigo trgico cuja derrota sempre estava assinalada. H todo um ciclo de histrias do Diabo Logrado na literatura oral (CASCUDO, 2012). O demnio, pai da mentira e senhor da astcia, acabava enganado pelo heri. Era o povo que atestava assim sua prpria capacidade e inteligncia – desde que, claro, conhecedor da tradio.

 

 

Consideraes finais

 

Ao reintegrar os mitemas que circundam o mito do saci, percebemos que, nos termos de Gilbert Durand, a anlise feita por Renato Queiroz leva o mito heresia. Amputa-o no da perna, mas de todos os outros mitemas que no os ligados negritude e escravido. O saci descrito no livro como feio, insidioso, bestial, mas tambm como inteligente, veloz, amigo, protetor. Amaldioado e aparentado do demnio, tambm abenoado pelo altssimo. Castiga os negros, mas tambm os vinga. Com sua magia, capaz de invadir qualquer buraco de fechadura, imune s regras. Rompe suas correntes e a dos que enxergam nele imagens de seus prprios anseios de libertao.

Quando a luta difcil, disfara-se de pssaro e vai chorar suas dores nas brenhas. Mas logo volta, recupera o riso e faz ecoar bem alto seu deboche aos poderosos. Quem pode derrot-lo somente o povo, dotado de astcia e tradio. Ainda assim, ele sempre volta.

Elemento importante tambm a perna que falta. Nunca descrita como deficincia, mas como peculiaridade. Verbos ligados ao saltar, pular, correr so dos mais populares aos ligados ao saci. O nico p gera uma relao de homologia com o redemoinho e o furaco, que tambm tocam o solo em um nico ponto. Sua ausncia tambm seu poder.

Cascudo (2012) nos lembra que a carapua do saci smbolo de liberdade no Ocidente desde a Roma antiga, quando o pilu vermelho – artefato sagrado da deusa Libertas – era oferecido aos escravos que ganhavam libertao. Tempos depois, o objeto seria apropriado pelos grandes movimentos libertrios, como a Revoluo Francesa e a Guerra Civil Americana. No entanto, muito antes disso, os duendes, gnomos e trasgos j vestiam o gorro encarnado. So, afinal, livres enquanto foras da natureza. No por acaso que para escravizar um saci preciso tomar sua carapua. Sua grande fonte de magia a liberdade.

Por que o saci permanece atual? Por que ainda hoje comunica com tantos brasileiros? Ora, os poderes estabelecidos podem ser outros, mas as dinmicas de dominao e subordinao permanecem evidentes. As classes proletrias e os grupos negros e marginalizados continuam merc de uma elite cientificista, economicista e racista. Os ventos que o saci comanda sopram hoje por todo o Brasil. ele, afinal, este heri trapaceiro que chora por ns, mas tambm sabe rir. Que rompe com o estabelecido e que pode at trazer o caos, mas com a certeza de que com ele tambm vem a mudana.

 

 

Referncias

 

AMBROSETTI, Juan B. Materiales para el estudio del folk-lore misionero. Revista del Jardin Zoologico, 1894.

 

CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 12. ed. So Paulo: Global, 2012.

 

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio: introduo arquetipologia geral. 4. ed. So Paulo, Martins Fontes, 2012.

 

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LOBATO, Monteiro. O Saci-Perer - Resultado de um inqurito. So Paulo: Globo, 2008.

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QUEIROZ, Renato. Um mito bem brasileiro: estudo antropolgico sobre o Saci. So Paulo: Polis, 1987.

 

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ROBERTS, John W. From trickster to badman - The black folk hero in slavery and freedom. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993.

 

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geographia Nacional. So Paulo: Typ. da Casa Eclectica, 1901.

[Recebido: 30 dez 2020 – Aceito: 18 mar 2021]


 

 

A Literatura de Cordel como reivindicao do direito Literatura

 

 

Cordel Literature as a claim to the right to Literature

 


Letcia Fernanda da Silva Oliveira[19]

https://orcid.org/0000-0003-1821-37

 

 

Resumo: O presente artigo prope a discusso de dois clebres ensaios do socilogo Antonio Candido analisando a Literatura de Cordel e a funo social que esta desempenha. As reflexes propostas pelo crtico literrio abordam importantes questes como as desigualdades sociais e a literatura como forma de humanizar o homem. Sendo sempre associada s belas artes, a literatura foi constantemente reafirmada como uma espcie de saber elevado e forma de edificao do homem, mas o que pretendemos demonstrar que mesmo nas culturas populares, como a Literatura de Cordel, quando os poetas tomam a voz e reivindicam a literatura como forma de fruio para as camadas mais populares, este direito acessado por todos e no apenas pelas classes mais elevadas. Abordando especificamente o contexto em que esta literatura surge no Brasil, o comeo do sculo XX, demonstramos como os poetas foram fundamentais para que o seu pblico de leitores/ouvintes pudesse desfrutar da arte e usufru-la como um bem.

Palavras-chave: Literatura de Cordel; Antonio Candido; Direito literatura; Fruio; Humanizao.

 

Abstract: This article proposes the discussion of two renowned essays written by the sociologist Antonio Candido in contraposition to Cordel Literature and the social role that it performs. The thoughts proposed by the literary critic address important questions such as social inequities and the literature as a way to humanize men. Always associated with the fine arts, literature was constantly reaffirmed as a type of superior knowledge and a form of edifying men, but what we intend to demonstrate is that even in popular cultures, such as Cordel Literature, when poets own the voice and reclaim literature as a method of enjoyment for the most popular classes, than this right is accessed by everyone and not just by the upper classes. Addressing specifically the context in which this literature emerges in Brazil, the beginning of the 20th century, we intend to demonstrate how the poets were fundamental so that their audience of readers/listeners could enjoy art and consume it as a good.

Keywords: Cordel Literature; Antonio Candido; Right to literature; Enjoyment; Humanization.

 

 

A literatura como parte dos direitos humanos

 

Em seu famoso ensaio O direito literatura, publicado em 2004, Antonio Candido trabalha a importante questo dos direitos humanos, elencando entre estes o direito literatura. Vivendo em tempos de reflexo acerca das injustias sociais e a insensibilidade demonstrada frente a essa questo, no parece uma desconexo com a realidade pensar sobre como a literatura pode tambm fazer parte dos direitos humanos. Se acreditamos que precisamos transformar a realidade e romper com o antigo estado das coisas, seria um debate profcuo este que reflete sobre como a fruio literria tambm um direito. Conceder o acesso literatura seria, portanto, mais uma forma de diminuir as desigualdades sociais.

Como afirma o autor, pensar nos direitos humanos faz com que consideremos indispensvel ao outro aquilo que tambm indispensvel para ns. E ao considerarmos esse pensamento, a literatura mais um bem a ser reivindicado entre tantos outros tidos como indispensveis, ou incompreensveis, pois esses so aqueles que no podem ser negados a ningum. So os bens capazes de garantir a sobrevivncia, no apenas fsica, mas tambm mental, espiritual. Para Candido (2004, p. 173),

O fato que cada poca e cada cultura fixam os critrios da incompressibilidade, que esto ligados diviso da sociedade em classes, pois inclusive a educao pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que indispensvel para uma camada social no o para outra.

Esse pargrafo evidencia que o debate sobre o acesso literatura no pode ser desvencilhado da reflexo sobre direitos humanos, pois seriam as classes altas que definiriam o acesso das classes menos favorecidas s artes, fazendo, ento, com que os direitos humanos fossem desrespeitados em mais uma de suas vertentes. importante relembrar e reafirmar que as elites so sempre vistas como detentoras do saber, em que esto inseridos os indivduos que podem criar conhecimentos e, dessa forma, aumentar ainda mais o prprio poder.

            importante ressaltar ainda que o ensaio de Candido no aborda especificamente a literatura popular, apresentando exemplos referentes apenas ao mbito cannico, mas, ao descrever a sua viso do que a literatura, perceptvel que a sua definio abrange textos antes desprezados pelo cnone. Para o socilogo, seriam textos literrios todas as formas de criaes de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade (CANDIDO, 2004, p. 174). Ento, o autor parte para um debate fundamental de seu ensaio: o fato de que no h qualquer homem ou povo que consiga viver sem a literatura, responsvel por confirmar a humanidade do homem.

            A literatura seria capaz de humanizar e de ser responsvel por enriquecer tanto o indivduo como o grupo. Essa humanizao definida por Candido (2004, p. 180) como o exerccio da reflexo, a aquisio do saber, a boa disposio para com o prximo, [...] a percepo da complexidade do mundo e dos seres. Ela um meio eficaz de transmitir conhecimentos, mas tambm uma forma de trazer a sensibilidade tona, fazendo com que o indivduo seja capaz de refletir e ser emptico com o outro. Muitas vezes a literatura ser capaz de mostrar uma realidade diferente daquela em que o leitor vive e, portanto, ser capaz de transport-lo, ainda que momentaneamente, para outro universo.

Candido apresenta, ento, outra importante reflexo e que se faz necessria para os propsitos deste artigo. O autor aponta que a relao da literatura com os direitos humanos pode ser vista sob dois vieses: o primeiro, em que a literatura seria uma necessidade universal que deve ser satisfeita, pois neg-la seria mutilar a nossa humanidade (CANDIDO, 2004, p. 186); o segundo, a literatura atua como um instrumento de desmascaramento, pelo fato de permitir que haja foco na restrio dos direitos ou na falta deles. O autor conclui, ento, que nesses dois vieses ela se encaixaria na luta pelos direitos humanos.

            A diviso social brasileira seria responsvel por impedir que as classes sociais mais baixas no possam ter acesso s obras cannicas da mesma maneira que as classes dominantes. A literatura escrita acaba sendo um privilgio de pequenos grupos, por diversos motivos, cabendo s classes mais baixas apenas as formas consideradas populares.

Outro importante ensaio do socilogo Antonio Candido, e complementar discusso deste primeiro que citamos, A literatura e a formao do homem, publicado em 2002, em que o autor discute a funo da obra literria dentro de uma sociedade e aborda mais uma vez como se d a humanizao do homem por meio da literatura.

A literatura, principalmente quando enxergada de maneira purista, muitas vezes, foi retratada como um meio de edificao do homem, mas no esse o sentido que Candido buscou apontar em suas reflexes, pelo contrrio. A edificao seria responsvel por afastar o homem de uma humanidade verossmil, criando a ideia de um funcionamento literrio prximo aos manuais de virtude e boa conduta. A literatura, ento, seria necessria para mostrar que existe uma complexidade em torno de si prpria.

Paradoxos, portanto, de todo lado, mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padres oficiais) e a sua poderosa fora indiscriminada de iniciao na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela no corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver (CANDIDO, 2002, p. 84-85).

Para Candido, a necessidade universal da fantasia se manifestaria em todos os instantes possveis da vida humana, haja vista que praticamente impossvel pensar em qualquer indivduo que passe muito tempo sem ter qualquer tipo de alegoria em sua mente, ou fora dela. E, sendo assim, a literatura uma resposta a essa imaginao inesgotvel:

A literatura propriamente dita uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas formas mais humildes e espontneas de satisfao talvez sejam coisas como a anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifo. Em nvel complexo surgem as narrativas populares, os cantos folclricos, as lendas, os mitos. No nosso ciclo de civilizao, tudo isto culminou de certo modo nas formas impressas, divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance, narrativa romanceada (CANDIDO, 2002, p. 80).

possvel ento refletir e concluir que a literatura traz em si muitas possibilidades, sendo capaz de tanto humanizar quanto desumanizar. O mais importante de todos esses questionamentos sobre a possibilidade de humanizar de fato, que sendo a literatura indissocivel da formao do homem no haveria como ela no causar nenhum tipo de afetao na formao da personalidade de qualquer indivduo. Somos afetados pelos textos literrios de diversas formas, no apenas quando falamos dos textos mais eruditos. A literatura e a arte esto nas pequenas coisas que nos rodeiam, possibilitam a fruio da realidade de uma maneira necessria em qualquer civilizao.

 

 

Um breve retrospecto sobre o surgimento da Literatura de Cordel

 

Refletindo especificamente sobre a Literatura de Cordel e o seu advento, no absurdo afirmar que o fazer potico dos poetas vai de encontro ao pensamento que Candido defende nestes ensaios. Enquanto o romance moderno foi construdo sobre bases que priorizam a leitura individual e o isolamento do leitor, gerado tambm a partir da segregao do romancista, como afirma Walter Benjamin em O narrador, quando se trata de narrativas populares, como o cordel, espera-se que o pblico receptor faa o oposto, haja vista que o consumo dos folhetos esteve sempre estritamente ligado oralidade e s leituras pblicas. O que comprova tambm que o autor se equivocou ao afirmar que a arte de narrar estava em vias de extino, pois, se para Benjamin (1994) tais narradores no seriam relevantes dentro da literatura cannica, a Literatura de Cordel comprova que os narradores orais sobrevivem e se reinventam na cultura popular.

tambm importante salientar que no apenas a cultura popular que influenciada pela literatura cannica, pois o inverso tambm acontece. A literatura escrita tambm se apropria e se alimenta da literatura popular, o que promove toda uma circularidade de influncias. Ou seja, os narradores orais continuam sendo indispensveis para todo o sistema literrio.

Pensar e pesquisar a Literatura de Cordel , de certa forma, revisitar alguns conceitos da teoria literria, como autoria[20] e originalidade[21], e at mesmo repensar o prprio termo literatura. pertinente considerar que as narrativas populares foram marginalizadas, sendo at mesmo consideradas como uma espcie de paraliteratura, uma viso bastante preconceituosa, que marginalizava e rebaixava essas existncias culturais divergentes. Obviamente esse tipo de postura consistia numa reafirmao da superioridade da literatura considerada cannica, ocorrendo isso inclusive dentro do meio acadmico.

A Literatura de Cordel brasileira se configura como uma expresso cultural popular, que traz em si diversos tipos de sapincias e utilidades. Faz parte de sua estrutura, ento, o resultado de trocas culturais entre os imaginrios das culturas que formaram o Brasil, fazendo assim com que histrias tradicionais vindas do contexto ibrico fossem remodeladas e ganhassem novos contornos especificamente brasileiros. Era comum que os folhetos fossem usados para retratar fatos que ocorriam exatamente naquele momento histrico. impossvel, portanto, pensar a existncia dessa tradio cultural sem pensarmos tambm na transmisso oral e na memria coletiva, pois ambas so de fundamental importncia para que muitas narrativas ibricas no tenham se apagado no decorrer de sculos. Pelo contrrio, permaneceram to fortes e ecoando nas mentes nordestinas, que quando so transpostas pelos cordelistas ganham ainda mais fora.

Os versos dos cordelistas buscavam aproximar o pblico leitor/ouvinte de suas criaes, e, por isso, ocorre tambm a identificao desse pblico com o que estava ali sendo retratado. Os folhetos so capazes tanto de trazer histrias maravilhosas, em que se vencia a fome e a seca, ou ento mostravam como fazer o pobre, amarelinho[22], vencer os ricos. Traziam tambm em si os preceitos catlicos, muito respeitados e seguidos na poca, responsveis por causar uma impossibilidade eterna s mulheres, pois elas jamais seriam to virtuosas como a Virgem Maria.

As penas ferozes de autores como Leandro Gomes de Barros[23], o mais importante cordelista pioneiro, traziam tambm em si muitas crticas ao momento social e histrico em que viviam. No se conformavam com a Proclamao da Repblica, com os novos impostos, e tambm no viam com bons olhos os pequenos progressos femininos da poca, assim como algumas mudanas trazidas pela Belle poque.

Os poetas pioneiros eram descendentes dos cantadores que os precediam, haja vista que essa uma tradio secular. Muitos deles sendo apenas semiletrados, faziam da memorizao uma grande aliada do fazer potico, pois diferentemente do que muitas vezes se pensa, no apenas por inveno que criam seus versos, h um extenso trabalho com a memria na prtica dos cordelistas. Alm disso, traduziam para os versos os anseios populares, pois tinham contato direto com seu pblico. No escreviam de maneira afastada, como o romancista moderno.

[...] o cantador nordestino, herdeiro e depositrio do fluxo lentssimo da tradio como memria convertida em descoberta, representa um ponto de chegada de materiais errticos que tm atravessado como meteoritos o firmamento de sistemas culturais inclusive muito distantes, para depois serem reutilizados por uma vontade artstica em que a coletividade se realiza com gosto e frmulas prprias. (PELOSO, 1996, p. 78).

A escolha pela anlise desse perodo em especfico, as primeiras dcadas do sculo XX, se fez oportuna por ser o momento em que a importncia dos cordelistas era ainda maior. Convm relembrar que era um momento em que ainda no existia fcil acesso ao rdio, e a TV ainda estava longe de existir. Sendo assim, as nicas formas de entretenimento e informao que existiam de maneira escrita eram, respectivamente, os livros e os jornais. Cabia aos poetas transpor esses textos para versos, pois somente assim a populao poderia ter acesso a tais conhecimentos.

O fato de os folhetos serem feitos com um material barato, para serem estendidos nas feiras, fez tambm com que fosse uma literatura menos afastada do seu pblico leitor/ouvinte do que a literatura cannica, que tem como caracterstica o leitor solitrio. Alm disso, ainda que a maior parte da populao fosse analfabeta, por se tratar de uma literatura oral, feita para ser lida em voz alta, todos podiam ter acesso a essas histrias, no mais apenas aqueles que eram os detentores do saber, os que sabiam ler.

 

 

O cordel luz de Candido

 

possvel pensar a problemtica que envolve as reflexes propostas por Antonio Candido no contexto da Literatura de Cordel interpretando, ento, os cordelistas como verdadeiros protagonistas de uma extensa reivindicao do direito literatura. Cumpriam, no contexto em que estavam inseridos, o papel de atores sociais, sendo de fundamental importncia para garantir que a populao pudesse alcanar a literatura e a fruio, direitos que antes lhes eram negados, por diversos motivos.

Ento, se a literatura cannica no pode ser aproveitada plenamente por todas as camadas da populao, por meio dos processos criativos dos poetas e as suas habilidades de transposio de histrias que a fruio ser alcanada. Sendo o acesso a livros difcil, seja pela linguagem ou pelo valor financeiro, ento seria por meio de folhetos de cordel que a imensa maioria da populao nordestina conseguiria conhecer muitas narrativas e preencher a sua prpria necessidade de fantasia. Mais do que nunca a literatura passa a ser uma forma de conhecimento e no apenas de divertimento, pois os versos dos cordelistas so capazes de levar o pblico leitor/ouvinte a lugares inimaginveis, bem como trazer notcias do que acontecia no Brasil e no mundo. Preenche, ento, o que Antonio Candido assinala como a necessidade universal de fantasia.

No ltimo tpico de O direito literatura, Candido (2004, p. 191) conclui que

a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes nveis da cultura. A distino entre cultura popular e cultura erudita no deve servir para justificar e manter uma separao inqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicveis, dando lugar a dois tipos incomunicveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupe o respeito aos direitos humanos, e a fruio da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os nveis um direito inalienvel.

Baseando-nos neste pargrafo, possvel estabelecer que, ainda que ao elaborarem seus versos e que isso faa parte de uma ampla reivindicao do que aqui chamamos de direito literatura, essa reivindicao no poderia se encerrar apenas na Literatura de Cordel. possvel afirmar que, dentro do contexto em que escolhemos analisar aqui, a excluso era inevitvel, justamente por se tratar de um contexto em que a populao nordestina estava extremamente desfavorecida frente ao Sul do pas, que abrigava a capital do Brasil.

Ao trazer o debate sobre o Regionalismo, em A literatura e a formao do homem, Candido (2002) demonstra que a literatura pode ser usada tanto para humanizar quanto para desumanizar, e com a Literatura de Cordel isso no seria diferente. Um grande exemplo que as mulheres muitas vezes foram grandes vtimas das crticas dos cordelistas, pois o que se cobrava delas eram posturas inatingveis. Uma mulher digna deveria se espelhar em Maria, a virgem me de Jesus, Cristo, a mulher reconhecida por Deus como perfeita. Isso pode ser visto em Os martrios de Genoveva (ATADE, s. d., p. 2-3):

Genoveva era dotada

De inteligncia e engenho

Nas feies dela se lia

O mais perfeito desenho

A natureza em orn-la

Se esmerou e fez empenho

 

Alm dessas qualidades

Em tudo era preciosa

Modesta e trabalhadora

Corts e religiosa

Graas a educao

De sua me extremosa

 

Quando estava em oraes

Ajoelhada entre os pais

Parecia ser um anjo

Das regies divinais

Que tinha baixado a terra

Para exemplo dos mortais.

Se ela no figura nos versos como modelo para todas as mulheres, ir lhes caber a representao oposta a essa. Muitas vezes utilizando esteretipos existentes naquela sociedade, os poetas retratavam as mulheres com comportamento destoante do que era socialmente aceito: eram perversas e capazes de desonrar o homem. Em se tratando da mulher negra, esse quadro era ainda mais violento, pois dentro do contexto literrio do cordel, ali no caberia qualquer representao positiva. Em O Bataclan moderno, Atade tece crticas s mudanas sociais vividas pelas mulheres:

Mundo velho desgraado

Teu povo precisa de um freio,

Para ver se assim melhora

Este costume to feio

De uma moa seminua

Andar mostrando na rua

O sovaco a perna o seio.

 

De primeiro uma donzela

Andava bem prevenida,

Se acaso ia um passeio

Se encontrava ela vestida

Hoje essa mesma donzela

A moda obrigou a ela,

Sair pra rua despida (ATADE, 1953, p. 1)[24].

por meio das crticas dos poetas que ocorre tambm o que Candido chamou de desmascaramento, pois quando tecem crticas ao governo, como faz Leandro Gomes de Barros, por exemplo, seu pblico leitor/ouvinte consegue perceber que esto sendo vtimas de enganaes e abusos. Para Marques (2014, p. 55), Era, portanto, atravs das lentes satricas do(s) poeta(s) popular(es) que o sertanejo via e entendia aquele mundo prenhe de novidades e mudanas inusitadas. O exemplo pode ser visto nas seguintes estrofes, em que Barros busca denunciar a realidade em que os nordestinos estavam vivendo. Em Um pau com formigas, o poeta tece uma de suas denncias acerca das mudanas vivenciadas no novo sculo:

Chamam este sculo das luzes

Eu chamo o sculo das brigas

A poca das ambies

O planeta das intrigas

Muitos cachorros num osso

Um pau com muitas formigas.

 

Ento depois da repblica

Tudo nos causa terror

Cacete no faz estudo

Mas tem carta de doutor

A cartucheira a lei

O rifle governador (BARROS, 1912, p. 1).

            As crticas tambm podem ser vistas em O imposto e a fome:

Disse o imposto – isso nada,

O Brasil est todo exposto,

Enquanto existir governo

Reina a fome e o imposto,

Os presidentes de Estados

Dizem – morram os desgraados

Ficando ns tudo gosto.

[...]

Justia em ti no h mais

Creio que morreu de desgosto,

A lei ficou como rfo

Sem pai, sem me, sem encosto,

O carter foi embora

S conhecemos agora

Poltica, fome e imposto (BARROS, 1909, p. 2-3).

possvel perceber como Leandro Gomes de Barros se empenhava em fazer suas denncias, ultrajado pelos impostos excessivos, pela fome e pela misria. Em consonncia com o que afirmou Candido, seus versos eram capazes de despertar a reflexo em seu pblico, fazendo com que pudessem perceber a complexidade do mundo em que viviam, de uma maneira ainda mais pungente. Era por meio da stira que seus versos se mostravam ainda mais ferinos.

 

 

Concluso

 

            Neste artigo, buscamos justapor os ensaios de Antonio Candido Literatura de Cordel, mostrando como a necessidade de literatura e fantasia universal e atinge todas as camadas sociais. No comeo do sculo XX, a literatura cannica era negada ao povo nordestino, assim como o direito fruio, algo to desejado pelas classes sociais mais elevadas. Negar esse direito seria negar tambm a humanidade daquelas pessoas.

            Ao tomar para si a voz, fazendo com que um integrante do povo pudesse finalmente ser ouvido, o cordelista passa a representar tambm os anseios de seu pblico leitor/ouvinte, haja vista que seu sucesso tambm dependia desse dilogo direto com seu pblico. O poeta de cordel uma figura muito sensvel, pois lhe cabe perceber muitas nuances da realidade em que habita.

Sendo assim, sob essas novas lentes, criadas pelos versos dos poetas, o nordestino passava a perceber a prpria realidade de uma outra forma, pois o poeta era capaz de fazer com que, ao finalmente se enxergarem de alguma forma representadas na literatura, essas pessoas pudessem tambm resistir e reexistir, frente a todas as agruras cotidianas que as cercavam.

 

 

Referncias

 

ATADE, Joo Martins de. (A Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista, considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema) O Bataclan moderno, Juazeiro do Norte, Editor Jos Bernardo da Silva, 1953.

 

_________. Os martrios de Genoveva. S. l.: s. n., s. d.

 

BARROS, Leandro Gomes de. O imposto e a fome/O homem que come vidro/O reino da Pedra Fina. Recife, PE: s.n., 1909.

 

_________. Um Pau com Formigas/ Concluso de Riacho com Turbana. Recife, PE: s.n., 1912.

 

BENJAMIN, Walter. O narrador: Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _________. Mgica e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. Obras escolhidas. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1. p. 197-221.

 

CANDIDO, Antonio. A literatura e formao do homem. In: CANDIDO, Antonio. Textos de Interveno. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. p. 81-90.

 

_________. O direito literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vrios Escritos. So Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 171-193.

 

MARQUES, Francisco C. A. Um pau com formigas ou O mundo s avessas: a stira na poesia popular de Leandro Gomes de Barros. So Paulo: Edusp/Fapesp, 2014.

 

OLIVEIRA, Letcia Fernanda da Silva. De mrtir a meretriz: figuraes da mulher na Literatura de Cordel (1900-1930). Dissertao de Mestrado. Assis-SP: UNESP, 2017.

 

PELOSO, Silvano. O canto e a memria: Histria e utopia no imaginrio popular brasileiro. So Paulo: tica, 1996.

 

 

[Recebido: 15 ago 2020 – 19 set 2020]


 

 

O  RAP indgena dos Br Mcs: a construo argumentativa da polmica

 

 

The Br Mcs indigenous RAP: the argumentative construction of polemics

 

 

Rubens Damasceno-Morais[25]

https://orcid.org/0000-0001-6245-6394

 

Vanessa Martins Leo[26]

https://orcid.org/0000-0002-8486-5735

 

 

Resumo: Neste artigo, diante de um exemplo da modalidade argumentativa polmica (AMOSSY, 2017), e pela perspectiva da argumentao em contexto de interao (PLANTIN, 2008, 2011; GRCIO, 2013) mostramos, por meio de uma pesquisa de cunho qualitativo, as funcionalidades das desqualificaes da tese adversria e da pessoa ou do grupo que representa o Oponente, bem como da impolidez verbal, materializada em palavres, ironia e ameaas (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM, HARDAKEKER, 2017; DECLERCQ, 2003). Para tanto, analisamos um comentrio e algumas respostas a esse comentrio, postados na mdia social Youtube, os quais dialogam com os discursos e os recursos semiticos que circulam pelo clipe de Eju Orendive, do grupo de rap de (re)existncia indgena Br MCs. A partir desses excertos, percebemos que, de um lado, aqueles que se posicionam contra a demarcao de terras indgenas, velando o racismo, e, do outro lado, os que defendem os direitos dos povos originrios se debruam sobre um debate polarizado e violento voltado no para um acordo, mas, sim, com a inteno de provocar a adeso de um Terceiro, segundo a perspectiva dialogal da argumentao (PLANTIN, 2016).

Palavras-chave: Polmica; Rap Indgena; Resistncia; Racismo.

 

Abstract: In the face of an example of the controversial argumentative modality (AMOSSY, 2017), and using the argumentation perspective in the interaction context (PLANTIN, 2008, 2011; GRCIO, 2013), by means of a qualitative research, we show the disqualifications of the opposing thesis and the person or group that represents the Opponent, as well as verbal impoliteness, materialized in swearing, irony and threats functionalities (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM and HARDAKEKER, 2017; DECLERCQ, 2003). Therefore, we analyze a comment and responses, posted on the Youtube, which dialogue with the speeches and semiotic resources circulating in the videoclipe Eju Orendive, by the indigenous rap group Br MC's. From these excerpts, we realize that, on the one hand, those who stand against the demarcation of indigenous lands, guarding racism and, on the other hand, those who defend the rights of indigenous peoples focus on a polarized and violent debate aimed at for an agreement, but, with the intention of provoking the adhesion of an audience, according to the dialogical perspective of the argumentation (PLANTIN, 2016).

Keywords: Polemics; Indigenous Rap; Resistance ; Racism.

 

 

 

 

Rap compromisso. No viagem.

(Sabotage, 2000)

 

O Br MCs o primeiro grupo de rap indgena do Brasil. Seus integrantes so da etnia Guarani-Kaiow e habitam as aldeias Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. O videoclipe do rap Eju Orendive[27], composio do grupo, postado no YouTube, mobilizou opinies de internautas, que expressaram seus posicionamentos em comentrios. Tais comentrios trazem tona discursos de dois grupos politicamente polarizados[28]. De um lado, encontram-se os usurios identificados como de esquerda, que se alinham com as causas dos povos indgenas e, ento, legitimam discursivamente a arte musical de (re)existncia por eles produzida. Do outro lado, encontram-se aqueles denominados de direita, os quais, apoiando-se em esteretipos, materializam discursos racistas e, portanto, tomam o rap dos jovens de Dourados como apropriao e como perda de cultura. Diante desse cenrio, este artigo se empenha em analisar as estratgias lingusticas e argumentativas que esses usurios utilizam para construir seus posicionamentos na plataforma virtual. Nesse sentido, busca-se responder aos seguintes questionamentos: como se constri a modalidade argumentativa polmica (a dicotomizao, polarizao e desqualificao), nos comentrios dos internautas? Destaca-se, nesse contexto, alguma estratgia argumentativa na construo dos discursos e contradiscursos (im)polidos? Para tanto, utilizamos a teoria da argumentao do discurso, com foco na polmica, de Amossy (2011, 2017), bem como os estudos sobre (im)polidez de Culpeper (2011) e Kerbrat-Orecchioni (2006) e a teoria dialogal da argumentao, com foco nos papis de atuao de Plantin (2008, 2016) e Grcio (2013). Alm disso, em funo do vis interdisciplinar dessa pesquisa, utilizamos os apontamentos de Chang (2005) para falar sobre o rap e do decolonialista Quijano (2005) para falar sobre assuntos histricos que atravessam e constituem as identidades indgenas.

Charaudeau (2014) destaca que as mdias sociais so uma das principais esferas da atividade social, em que os discursos polticos vm tona. Ademais, Cabral e Lima (2017) afirmam que o advento e a massificao dessas plataformas provocaram mudanas comportamentais nas pessoas, sendo que uma dessas mudanas diz respeito ao modo de elas se organizarem em grupos, com usurios que possuem interesses em comum, e ao modo de enxergarem o outro, ou seja, de enxergarem aqueles que se posicionam de modo antagnico. Seguindo esse caminho, Cabral, Marqiesi e Seara (2015) apontam que esse contexto, que possibilita a livre participao em discusses bem como a criao de identidades, de perfis fakes, chancela s pessoas a exposio mais espontnea e, at mesmo, agressiva de suas opinies. Assim, um vdeo de rap indgena, publicado no Youtube, com comentrios abertos para todos os usurios, pode se converter em terreno frtil para a materializao de discursos polmicos.

De acordo com Amossy (2017), a polmica um debate em torno de uma questo da atualidade, de interesse pblico, que comporta os anseios das sociedades mais ou menos importantes numa dada cultura. As marcas dessa modalidade argumentativa, de acordo com a autora, so: a dicotomizao e a polarizao. A dicotomizao emerge quando posies antitticas se constroem e se excluem mutuamente. A polarizao, por sua vez, est interligada ao plano da estrutura actancial – adiante, explicado com apoio em Grcio (2013) –, que envolve a atuao do Proponente, do Oponente e do Terceiro. De acordo com Plantin (2008, 2016) so esses papis que sustentam o debate que ope duas posies dicotmicas. Dessa forma, a polarizao se compe de um defensor da posio proposta (Proponente), de um opositor dessa posio (Opositor) e de um ouvinte-espectador da confrontao (Terceiro). Surge, ento, um ns diante de um eles e, nessa relao, os procedimentos mais atenuados consistem em desqualificar a palavra do outro e, geralmente, em desqualificar a pessoa ou o grupo que ele representa, por meio da violncia verbal e da manifestao das emoes (pathos).

Este estudo se divide, ento, em cinco partes. A primeira, na qual desvelamos nossos objetivos iniciais. A segunda, em que falamos sobre a relao existente entre o rap e grupos identitrios marginalizados (de forma breve, dado o espao limitado de que dispomos neste artigo), tais como, os negros e os indgenas. Na terceira, por sua vez, nos empenhamos em mostrar os aspectos da modalidade argumentativa polmica, a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao, proposta por Amossy (2017), bem como apontamos como esse ltimo aspecto, ou seja, a desqualificao, se desdobra em (im)polidez ou agressividade verbal, conforme Culpeper (2011). Na seo seguinte, apresentamos o corpus e empreendemos a anlise dos dados mostrando como a polmica se constri em torno de um comentrio e de respostas a esse comentrio do vdeo Eju Orendive, dos Br MCs. Por fim, tecemos nossas consideraes finais relacionando-as com a nossa proposta inicial.

 

(Re)existir e lutar contra o racismo: a aliana entre o rap e grupos marginalizados

 

De acordo com Chang (2005), a cultura do hip hop nasceu no bairro do Bronx, em Nova Iorque, em meados da dcada de 1960, em meio a implantao de polticas recessivas que prejudicaram, principalmente, dois grupos marginalizados: os negros e os mestios dos EUA. Diante desse cenrio, emergiu o movimento Zulu Nation, encabeado pelos DJs Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash e Kool Herc, responsveis por reunir jovens desses grupos identitrios em torno de eventos de msica, de dana e de artes visuais. Souza (2005) aponta que esse movimento resultou na cultura hip hop, composta pelo rap (sigla para rhythm and poetry), pelo break (dana) e pelo grafitte (artes visuais). O rap, pela juno de um MC (mestre de cerimnias) e de um DJ (disk jokey), se constitui como um gnero potico-musical que, por meio de seus enunciados, traz tona o cotidiano dos moradores das favelas e das periferias, denunciando as situaes de desigualdade e de preconceito que lhes interpelam.

O rap emergiu no Brasil, na dcada de 1980, na cidade de So Paulo. Nesse perodo, So Paulo, de modo semelhante Nova Iorque, era tomada por construes de moradias irregulares, habitadas, em maioria, pela populao negra. Em meio a um contexto de pobreza e de abandono, os ndices de criminalidade e as taxas de homicdio inflaram (SILVA, 2013). Diante desse cenrio conturbado, em meados de 1980, o rap consciente emergiu a partir de nomes como Thaide e DJ Hum. No entanto, foi com o grupo Racionais MCs que o raio-X do Brasil veio tona.

O primeiro grupo de rap indgena brasileiro, por sua vez, surgiu em 2009, quando os jovens Bruno Veron, Clemersom Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto, da etnia Guarani-Kaiow, se uniram para formar o Br MCs. Seus versos denunciam o cotidiano das aldeias Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul, onde a pobreza, a violncia, os vcios e o preconceito atravessam seus moradores. De acordo com dados do site G1[29], em junho de 2019, as reservas indgenas de Dourados registraram em mdia um assassinato a cada dois dias e meio. A reportagem aponta ainda que, segundo o MPF, no somente essas reservas, mas tambm as comunidades indgenas do sul do estado esto vivenciando uma escalada sem precedentes nos ndices de criminalidade, muito em funo do consumo exagerado de drogas e lcool, ao passo em que o policiamento ostensivo e repressivo no acompanha esse cenrio.

A partir dessa exposio, possvel perceber que os contextos de gnese do rap estadunidense, brasileiro e indgena brasileiro apresentam entrecruzamentos. Nos trs casos, o

gnero potico-musical emergiu em periferias e favelas, espaos permeados por situaes de pobreza e de violncia. Ademais, entrecruzamentos, tambm, podem ser apontados entre as histrias dos grupos identitrios que do voz a esses versos, uma vez que a sociedade brasileira se ergueu com o sangue dos negros e dos indgenas. Desde a trajetria de colonizao, indgenas e negros foram violentados, fsica e psicologicamente, sob a justificativa da civilizao, da modernizao e da salvao, uma vez que foram considerados selvagens, rudes e pagos e deveriam, portanto, ser domados. Diante desse cenrio, o racismo e a situao de pobreza, aos quais esses grupos so submetidos, desvelam-se como condies scio-histrica e discursivamente construdas (QUIJANO, 2005; MOURA, 2004).

 

A modalidade de argumentao polmica e os aspectos da (im)polidez lingustica

 

Para embasar a anlise do corpus em questo, uma vez que estamos diante de uma pesquisa qualitativa, seguimos a teoria da argumentao no discurso de Ruth Amossy (2011, 2017), com nfase na modalidade polmica. De acordo com a autora, a argumentao tecida na materialidade lingustica em uma situao concreta de comunicao. Desse modo, o locutor, projetando a imagem de seu alocutrio e adequando-se s normas do gnero do discurso em questo, lana mo de recursos lingusticos e de estratgias discursivas a fim de tecer sua teia argumentativa. Nesse sentido, a autora destaca que Ҏ na espessura da lngua que se forma e se transmite a argumentao (AMOSSY, 2011, p. 131-132), apontando que o discurso, com a inteno de persuadir, segue uma ou mais modalidades argumentativas. Dentre as possibilidades de estratgias argumentativas, a autora destaca: a modalidade demonstrativa, segundo a qual o locutor apresenta uma tese fundamentada, por meio de discurso monologal ou dialogal, a um auditrio a fim de conquistar sua adeso; a modalidade negociada, em que os parceiros, com diferentes opinies, se empenham para encontrar uma soluo comum para o problema que lhes apetece; e a modalidade polmica, caracterizada pela presena de participantes com posicionamentos antitticos, em total desacordo, no qual um ataca a tese do outro e, at mesmo, a prpria figura do outro a fim de provocar a adeso de um terceiro. No tocante polmica, a autora destaca ainda que, apesar de julgamentos precipitados que a ela atribuem valores negativos, para o analista do discurso, a polmica se mostra rica de ensinamentos na medida em que ela revela muitas coisas sobre a sociedade e a poca na qual o discurso polmico circula (AMOSSY, 2017, p. 49). Isso acontece porque a modalidade polmica gira em torno de temas atuais[30], que circulam pelo espao pblico.

Amossy (2017, p. 49) afirma ainda que a primeira marca da polmica como debate da atualidade uma oposio de discurso, de modo que a existncia de posicionamentos antitticos essencial para a emergncia dessa modalidade argumentativa. Assim, de acordo com a autora, o que modaliza a polmica a atividade de materializar argumentos a favor de sua tese e contra a tese oposta, ou seja, diante desse cenrio, cabe a ambas as partes da interao construir a fundamentao de suas proposies bem como a justificativa de suas contraposies. Nesse sentido, Amossy (2017), baseando-se em Marc Angenot, traz tona a dupla estratgia que tangencia a polmica que seria a demonstrao da tese e a refutao e desqualificao da tese antagnica. A partir de ento, Amossy afirma que a especificidade da polmica dentro do campo da argumentao retrica definida pela dicotomizao, pela polarizao e pela desqualificao e, de forma secundria, no obrigatria, pela violncia verbal e pelo pathos.

A dicotomizao, portanto, como aponta Dascal (2008), leva o debate a nveis extremos, uma vez que, nesse caso, as partes no se empenham em desenvolver um acordo, ou estabelecer um meio termo, para o problema em questo. Amossy (2017, p. 55) coloca, ento, que a polmica se diferencia das interaes argumentativas ordinrias porque ela tende sistematicamente para uma dicotomizao que dificulta a busca de acordo entre as partes adversrias. No caso deste trabalho, por exemplo, os participantes que apontam argumentos a favor dos direitos dos povos indgenas e os participantes que, embasados em esteretipos, argumentam a favor do desenvolvimento econmico do pas, velando o racismo, no se empenham nessa discusso para balancear os posicionamentos, e, assim, ao final, atingir um consenso, pois, eles tm, aqui, objetivos outros.

Para melhor explicar o processo de polarizao, Amossy (2017) prope a diferenciao entre actantes e atores. Segundo Plantin (2008), os atores so os sujeitos concretos da enunciao e os actantes, por sua vez, esto interligados a modalidades discursivas especficas que envolvem um Proponente e um Oponente em face de um Terceiro. Esses papis argumentativos, de acordo com o autor, se definem a partir de trs atos: propor, opor-se e duvidar. Cabe, aqui, ento ressaltar que o campo do Proponente se compe de diferentes atores, de diferentes grupos sociais, ou seja, se compe de diferentes vozes, e o mesmo se d com o campo do Proponente; a juno de participantes to diversos que faz a polarizao difcil de ser solucionada. Nesse sentido, Grcio (2013), retomando os pressupostos de Plantin, traz tona a noo de perspectivao de pontos de vista, que se d quando proponentes e oponentes verticalizam suas divergncias em uma interao argumentativa. Tal verticalizao notria, por exemplo, em um ambiente virtual, em que uma polmica se constitui. Isto posto, Amossy (2017, p. 56) destaca que a diviso actancial entre adversrios tomados numa relao antittica de tipo conflitual explica que a polmica instaura uma operao de polarizao, ou seja, a polmica instaura um ns diante de um eles.

Em outras palavras, em contextos polarizados, o Proponente para se autoafirmar, diante de um auditrio (Terceiro), desqualifica seu Oponente, atribuindo-lhe valores negativos. Uma das estratgias utilizadas para tal consiste no ataque da palavra do outro, seja pela reformulao orientada, seja pela ironia, seja pela modificao dos propsitos (AMOSSY, 2017, p. 59). Alm disso, outras estratgias utilizadas para desqualificao da pessoa dizem respeito ao silenciamento, excluso e, em casos extremos, diabolizao do outro. Declerq (2003, p. 18) assinala que a polmica nos confronta com essa fora incontrolvel que estimula a ter razo sobre o outro, a assegurar sua autoridade sobre ele, a submet-lo, a elimin-lo, se necessrio. Enquanto isso, a demonizao, que divide os grupos entre o bem e o mal, resulta na reprovao total e na desumanizao do adversrio. A partir de ento, possvel perceber que, para se posicionar de modo veemente, o locutor deixa transparecer, em seu discurso, marcas de subjetividade. A emoo um resultado da implicao do locutor no seu discurso. O engajamento emocional se faz acompanhar de uma tentativa de tocar o corao dos leitores/espectadores (AMOSSY, 2017, p. 62) e apresenta, inexoravelmente, um funcionamento discursivo (PLANTIN, 2011). Em suma, possvel afirmar que a violncia verbal e outras formas de emoo, marcadas linguisticamente nos discursos, so estratgias que visam, por meio da eliminao e do descrdito lanado ao Oponente e a sua tese, provocar a adeso de um Terceiro.

Culpeper (2011, p. 23) concebe a violncia ou impolidez lingustica como uma atitude negativa para comportamentos especcos ocorrendo em contextos especcos. Desse modo, Cunha (2019) aponta que a impolidez envolve a violao de normas sociais de comportamento, e o interactante que avalia o comportamento do outro como impolido v-se na posio de algum cuja face – imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados (GOFFMAN, 1967, p. 5) – foi ofendida. Cabral e Lima (2017) observam que as manifestaes de violncia parecem ser mais veementes nos contextos das mdias sociais. Nessa esteira, Cabral, Marquesi e Seara (2015) afirmam que, nesses contextos, os interactantes se escondem por detrs da mquina e de perfis fakes, o que lhes assegura a preservao da identidade e a ausncia de risco de agresso fsica. Segundo essas autoras, as redes sociais do aos usurios maior liberdade para expor pontos de vista polmicos e, at mesmo, para agredir outros. Na mesma direo, Graham e Hardaker (2017) observam que o anonimato pode garantir a muitos usurios a possibilidade de serem mais sinceros e, por vezes, mais agressivos.

Como j apresentado acima, objetivo deste artigo estudar a polmica em comentrios do vdeo Eju Orendive, do grupo de rap indgena Br MCs, postados no Youtube. Dentre os comentrios realizados e as respostas a ele direcionadas, escolhemos, para anlise, o comentrio com mais engajamento, ou seja, o comentrio que obteve maior nmero de respostas. Esse corpus, por sua vez, compe o corpo deste artigo, por meio de imagens, de prints da tela do Youtube. A partir dessa materialidade, buscamos, ento, desvelar como se constroem, nesse contexto, os aspectos da modalidade argumentativa polmica, isto , a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao. Ademais, nos empenhamos em mostrar como, nesse caso, a desqualificao do discurso e da figura ou do grupo que representa o Oponente se desdobra em discursos (im)polidos e atravessados por violncia verbal. Em outras palavras, a seguir, debruamos esforos sobre as estratgias argumentativas e lingusticas, a desqualificao materializada em (im)polidez e violncia/agressividade verbal (xingamentos, ironia e ameaa), utilizadas pelos usurios durante essa interao virtual.

 

A polmica em comentrios do videoclipe Eju Orendive

 

O Youtube uma mdia social, fundada em 2005, que tem como funcionalidade principal o compartilhamento de vdeos gratuitos entre os usurios da rede. Os vdeos ali postados podem ser compartilhados em outras mdias sociais, bem como podem receber likes ou dislikes; essa mesma funo, tambm, est disponvel para os comentrios. Os comentrios[31], por sua vez, dependendo dos temas que circulam pelo vdeo em questo, se tornam um espao aberto para o debate em que os usurios expem livremente seus posicionamentos. A partir do momento em que um comentrio postado, outras pessoas tm a opo de respond-lo refutando ou defendendo a opinio que foi exposta. Nessa esteira, Amossy (2017) destaca que as redes sociais constituem a praa pblica do sculo XXI. No entanto, nessa praa, de acordo com Cabral e Lima (2017), o que pauta as interaes mais o conflito do que a harmonia. Dessa forma, o Youtube, apesar de no ter como foco principal a discusso, tornou-se uma arena propcia argumentao polmica, em que um Proponente prope uma tese que atacada por um Oponente, diante de um auditrio.

O Youtube se destaca por ter se tornado uma plataforma requisitada para o lanamento e para a divulgao de videoclipes de grandes nomes e de nomes em ascenso (KLICKPAGES, 2019). O videoclipe da msica Eju Orendive, do grupo de rap indgena Br MCs, foi postado na mdia no dia 28 de setembro de 2010, no canal Cufatvddos. A produo (Captura de Tela 1 e Captura de Tela 2) composta por imagens dos integrantes do Br (Bruno Veron, Clemersom Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto), da etnia Guarani-Kaiow, vestidos moda dos rappers americanos (com bons, calas largas e camisetas), bebendo cerveja, pintando os rostos com urucum e cantando seus versos rimados sobre o cotidiano das aldeias que habitam, Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. As aldeias Jaguapir e Boror constituem um espao interpelado por milcias, formadas pelos prprios indgenas, ataques de diversas ordens devido a questes de demarcao de terras e pela ausncia da segurana pblica. De acordo com levantamento da Procuradoria[32] da Repblica de Dourados, nessas terras, a taxa de homicdios foi de 101,1 por 100 mil habitantes, entre os anos de 2012 a 2014. No Brasil, a taxa mdia de 29,2 homicdios por 100 mil habitantes

                        Captura de Tela 1                                       Captura de Tela 2

 

      Fonte: Youtube, 2020.                                             Fonte: Youtube, 2020.

Isto posto, buscamos, a seguir, desvelar como a polmica e os componentes que a constituem (polarizao, dicotomizao e desqualificao), em consonncia com Amossy (2017), se constroem pelo comentrio e pelas respostas escolhidas para a anlise. Dessa forma, nosso objetivo mostrar, tomando como ponto de partida essa materialidade lingustica, a partir do conceito da dicotomizao, como duas opinies divergentes se excluem mutuamente. Enquanto isso, no tocante polarizao, trazendo tona o funcionamento dos papis da argumentao (PLANTIN, 2008), buscamos esboar como se posicionam o Proponente e o Oponente, ou seja, delimitamos quais discursos o Proponente defende e o Oponente refuta. Seguindo esse caminho, esmiuamos o motivo pelo qual os interactantes utilizam a desqualificao do discurso do adversrio e da figura ou do grupo que o representa. Nesse sentido, mostramos como a (im)polidez e a violncia verbal, em consonncia com Culpeper (2008), por meio de ironia, palavres, xingamentos e ameaa, so utilizadas, nesse contexto polmico, como estratgias argumentativas e lingusticas, diante de um Terceiro.

Dito isso, analisando a materialidade lingustica de Eju Orendive[33], possvel detectar discursos relacionados a religies crists: [...] Sempre peo a Deus / Que ilumine o seu caminho / E o meu caminho; ao racismo: [...] Voc no consegue me olhar / E se me olha no consegue me ver / [...] Aquele boy passou por mim / Me olhando diferente; violncia: [...] Por que ns matamos e morremos? / Em cima desse fato a gente canta / ndio e ndio se matando / Os brancos dando risada; a um desejo por mudana e por equidade: [...] Vamos mostrar para os brancos / Que no h diferena e podemos ser iguais; e ao rap como experincia artstica de resistncia: Aqui o meu rap no acabou / Aqui o meu rap est apenas comeando / Eu fao por amor / Escute, faz favor.

Os comentrios que so aqui analisados foram publicados h 5 anos. Para desvelar como a modalidade argumentativa polmica sobre eles se desdobra, utilizamos prints da tela do Youtube, e, por questes ticas da pesquisa, omitimos a identidade dos usurios. O comentrio abaixo recebeu 17 likes, nenhum dislike e 56 respostas:

Print de Tela 1 (Excerto 1)

Fonte: Youtube, 2020.

A partir de ento, mostramos como os usurios materializam suas opinies caminhando para um cenrio de dicotomizao e de polarizao, ou seja, para uma situao em que os pontos de vista se excluem e apontam para um eu diante de um ns. Dessa forma, para iniciar a anlise, apontamos como o posicionamento do Proponente, aqui, tambm chamado de Usurio 1, construdo. Traando esse caminho, a partir do comentrio ndios, querendo sempre mais terras demarcadas para viver como pessoas que no so ndios. Faz um rap com esse tema bomba, fica evidente que o Usurio 1 se posiciona, explicitamente, contra uma das questes centrais para os povos indgenas, que a demarcao. Nesse sentido, ao afirmar que os indgenas querem terras para viver como pessoas que no so ndios, o Usurio 1 desvela que sua opinio, extremamente racista, est atrelada a uma imagem cristalizada, estereotipada, acerca dessas identidades e, dessa forma, ele desconsidera as trajetrias de violncia outras que levaram, quase sempre de forma compulsria, as sociedades e os povos indgenas s suas formas de vida atuais (NASCIMENTO, 2018, p. 1421).

As primeiras respostas, direcionadas ao Usurio 1 j confirmam, por sua vez, a insurgncia de uma situao de oposio, ou seja, de dicotomizao, caracterstica imprescindvel, de acordo com Amossy (2017), para a modalidade argumentativa polmica. A dicotomizao, aqui, por sua vez, aparece atrelada desqualificao do discurso e da figura do outro, por meio da (im)polidez ou violncia verbal, como mostramos a seguir, a partir do Excerto 2.

Print de Tela 2 (Excerto 2)

 

Fonte: Youtube, 2020

Na primeira resposta, fica caladinho, o conflito comea a ser delineado por meio da desqualificao, caracterstica tambm essencial para a polmica de acordo com Amossy (2017), direcionada ao Usurio 1 e ao seu argumento. O fato de o Usurio 1 ter respondido no to afim mostra, no entanto, que ele mantm a inteno de no aderir ao posicionamento do outro e, dessa forma, a dicotomizao, ou seja, a presena de ideias antitticas, comea a se constituir. Na resposta seguinte, a desqualificao delineada pela (im)polidez, a partir de estratgias lingusticas, ou seja, a partir das escolhas lexicais pelos termos babaca e otrio, por parte do Usurio 3, que imprimem interao um carter violento. Nesse momento, cabe aqui ressaltar que a (im)polidez verbal uma estratgia utilizada pelo locutor para angariar a adeso do auditrio, no entanto, ela no obrigatria para a qualificao de dada modalidade argumentativa como polmica (CULPEPER, 2011; AMOSSY, 2017). Esse movimento de adeso, porm, pode ser, inicialmente, desvelado a partir dos likes que a resposta recebeu, sendo que 19 usurios clicaram nessa opo. Ademais, considerando o que j foi exposto acerca da interao, possvel observar a transparncia de uma situao polarizada, uma vez que o Usurio 1 compe o campo Proponente, pois, diante dos discursos que circulam no vdeo, ele expe sua tese e os Usurio 2 e Usurio 3 compe o campo Oponente, pois responderam ao Usurio 1, apresentando uma posio contrria (PLANTIN, 2008).

At esse momento, no entanto, o posicionamento do Oponente fora demonstrado de modo implcito por meio da desqualificao materializada em violncia verbal. A tese oposta, que se apoia no fato de as terras indgenas serem deles um direito adquirido, comea a ser, efetivamente, discursivamente construda, a partir dos comentrios a seguir:

Print de Tela 3 (Excerto 3)

 

Fonte: Youtube, 2020.

No excerto 3, o Usurio 4, do campo Oponente, inicia a construo de uma tese contrria do Usurio 1, ao apontar que a demarcao um ato de reparao histrica, uma vez que os povos indgenas so os donos originrios dessas terras (A terra deles por direitos! Eles estavam aqui antes). O Usurio 1, por sua vez, destaca que a defesa de uma posio se d em funo da falta de informao, assim, desqualificando e descreditando a tese oposta (O que mais chama a ateno a falta de informao dos que me criticam porque falei a verdade). Nesse momento, ao afirmar que as ONGs gringas se filiam luta pela demarcao, porque tm interesses econmicos relacionados explorao das terras indgenas, ele lana mo de um discurso alinhado ao discurso da extrema direita, embasado em fake news, que comeava a se inflamar pelo pas (As demarcaes esto criando um outro pas dentro do Brasil, comandado por ONGs gringas que s querem explorar nosso pas). Esses comentrios foram realizados h 5 anos, em 2015, ano em que o pedido de impeachment da presidente Dilma Rouseff, filiada ao PT (Partido dos Trabalhadores), partido considerado de esquerda/centro-esquerda, foi acolhido pela Cmara dos Deputados. A partir de ento, como assinalado por Amossy (2017), possvel perceber como a polmica nos revela fatos sobre o contexto scio-histrico de um momento especfico em dado espao fsico.

O confronto direita vs. esquerda, tambm, veio superfcie nesse espao discursivo, como possvel perceber nos comentrios a seguir:

 

Print de Tela 4 (Excerto 4)

Fonte: Youtube, 2020

 

No Excerto 4, os Usurio 1 e Usurio 6 se posicionam imprimindo descrdito opinio alheia, sendo que, para tanto, se utilizam do recurso argumentativo da desqualificao que, nesse caso, adquire as faces da (im)polidez e agressividade verbal que se materializa por meio dos recursos lingusticos do palavro e da ironia. O Usurio 6, do campo Oponente, na tentativa desqualificar o Usurio 1, chama-o de cria bolsonarista, dando a entender que, de acordo com sua perspectiva, ser esse um motivo de desdm (Perder tempo com cria bolsonarista? Nem fodendo). Aqui, a opo pelo recurso lingustico do palavro (nem fodendo) imprime o tom de (im)polidez comunicao.

O Usurio 1, em resposta, elabora um argumento, debruando-se no recurso da ironia, tambm muito empregado pela direita conservadora, que diz respeito ao fato de as pessoas de esquerda serem contraditrias por fazerem o uso da tecnologia (Falou o usurio de internet que tem conta no Google e falam mal dos capitalistas...). O raciocnio, por eles utilizado, de que as pessoas de esquerda so socialistas e no devem usufruir da tecnologia que uma ferramenta criada pelo capitalismo. Isto posto, o Usurio 7, do campo Oponente, surge no espao discursivo e utiliza como estratgia argumentativa a desqualificao da tese adversria por meio apresentao de fontes externas, apresentando um link do site Pragmatismo Poltico. Nesse caso, a ironia d o tom de (im)polidez e evidencia que essa interao no pacfica, mas, sim, agressiva, intolerante. Um no quer convencer o outro. Os interactantes virtuais buscam vencer uma batalha, diante de um Terceiro.

 

 

 

 

Print de Tela 5 (Excerto 5)

Fonte: Youtube, 2020.

 

No excerto 5, possvel observar mais uma vez a desqualificao materializada em (im)polidez em ao. O Usurio 8, no incio de sua exposio, se refere ao seu opositor chamando-o de ancefalo e, dessa forma, alm de atingir o outro, ele atinge tambm a tese adversria, dando a entender que somente uma pessoa sem crebro defenderia esse posicionamento. O Usurio 1, em resposta, caminha pelas mesmas trilhas e desqualifica a imagem do Oponente ao se expressar de maneira (im)polida e agressiva, utilizando uma expresso pejorativa: burro ignorante de merda. Ademais, ainda nessa seara, ele acusa o Oponente de se esconder por trs de um perfil fake. Dito isso, ele faz o uso da estratgia da correo gramatical/ortogrfica para desqualificar a tese oposta e, para endossar o descrdito, ele finaliza a resposta fazendo uma ameaa velada ao adversrio (O correto acfalo seu burro ignorante de merda, fake de araque que nem coragem de colocar o nome tem! [...] Um nick de merda desses... Onde vc mora? Quem sabe eu possa ter a oportunidade de te mostrar minha mao macia).

O Usurio 8, diante desse cenrio de impolidez lingustica e ameaa, revela que a violncia verbal inerente a pessoas fracas que precisam atacar as outras, diante da escassez de argumentos. (Tpico Perde o argumento, apela para a fraqueza da ameaa. Mostra bem a que veio. Fraco). Isto posto, o Usurio 1, irredutvel diante de seu posicionamento, se empenha mais uma vez em desqualificar o usurio por meio de palavras com sentido pejorativo e palavro como burro e merdinha e da expresso macho da internet.

A partir de ento, possvel perceber que os dois grupos polarizados – de um lado, aqueles que legitimam o rap indgena como uma arte de resistncia, os considerados de esquerda, e, do outro, os usurios de direita, que, por meio de discursos preconceituosos e baseados em esteretipos, deslegitimam os direitos desses povos – se empenham na construo de argumentos opostos, interpelados por (im)polidez lingustica, aqui, materializada em palavres, ironias e ameaa, porm no chegam a um consenso, pois a preferncia por esses recursos tem como alvo a adeso do auditrio.

 

 

Consideraes finais

 

A modalidade polmica, proposta por Amossy (2017), se caracteriza pela presena da dicotomizao, da polarizao e da desqualificao, diante de uma situao conflitual de debate. Nessa situao, a exposio de argumentos e de contra argumentos, por parte dos interactantes, no tem como objetivo final um acordo, mas, sim, a adeso de um Terceiro, ou seja, a adeso de um auditrio (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). A partir da materialidade lingustica analisada, ou seja, do corpus em questo, percebemos que os participantes dessa interao, na construo de seus posicionamentos, diante de um Terceiro, lanam mo de estratgias argumentativas e lingusticas como a desqualificao por meio da (im)polidez ou da agressividade verbal, que ganham forma por meio de palavres, xingamentos, ironia e ameaa, como tentamos mostrar na anlise apresentada.

Tendo em vista as caractersticas da modalidade argumentativa polmica, Cunha (2019, p. 7) ressalta que, nesse caso, o comportamento violento ou impolido exerce funes importantes, no devendo ser entendido como uma degenerescncia da interao ou como uma ruptura irracional de acordos, contratos ou quadros que subjazem interao (COSER, 1982; LOCHER; BOUSFIELD, 2008). Ademais, para Cabral e Lima (2017), a violncia constitui uma estratgia eficaz quando a inteno do locutor desqualificar o interlocutor. Essas autoras destacam, apoiando-se em Culpeper (2011), a importncia de palavras de sentido pejorativo, palavras de baixo calo, entre outras aparecerem de forma marcada no discurso dos interactantes. A violncia se d, portanto, pela linguagem, o que endossa o posicionamento de Culpeper (2011) e de Cabral e Lima (2017) a respeito da marcao lingustica da impolidez, principalmente, nas redes sociais, onde as interaes se do, em maioria, por meio da linguagem verbal.

 

 

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[Recebido: 22 jul 2020 – Aceito: 19 set 2020]


 

Tamo junto, Favela! A arte perifrica como um mtodo educacional

 

 

Were in together, Favela! Peripheral art as an educational method


 

 

Ana Carolina de Souza Silva

https://orcid.org/0000-0001-5099-1058

 


Resumo: Neste trabalho, apresentamos alguns resultados de uma pesquisa realizada no[34] Centro de Estudos Lexicais e Terminolgicos (Centro LexTerm) da Universidade de Braslia. Tambm divulgamos alguns relatos de experimentaes vivenciadas em instituies educacionais e em casas de cultura do Distrito Federal. A primeira prtica trata de uma experincia educacional e de carter mais cientfico-especulativo; a segunda envolve, fundamentalmente, a poesia e a performance. Nosso objetivo , a partir da esttica artstica das periferias, verificar estratgias eficazes que buscam resgatar uma populao marginalizada e em condio de vulnerabilidade, alm de tornar acessveis contedos fundamentais em busca de conscientizao e justia social. Dessa forma, constatamos que, mesmo em condio de subalternidade, o povo perifrico no passivo, uma vez que rejeita os saberes do opressor, assim como resgata e forja saberes prprios. Pelo exposto, podemos observar a importncia de trabalhar a arte com narrativas e linguagem que contemplem a realidade de falas perifricas.

Palavras-chave: Periferia; Linguagem; Arte;  Poltica;  Educao.

 

Abstract: In this work, we present some results of a research carried out at the Center for Lexical and Terminological Studies (LexTerm Center) of the University of Braslia. We also publish some reports of experiments experienced in educational institutions and in cultural houses in the Federal District. The first practice deals with an educational experience and has a more scientific-speculative character; the second fundamentally involves poetry and performance. Our objective is, based on the artistic aesthetics of the peripheries, to verify effective strategies that seek to rescue a marginalized and vulnerable population, in addition to making fundamental content accessible in search of awareness and social justice. Thus, we find that, even in a condition of subordination, the peripheral people are not passive, since they reject the knowledge of the oppressor, as well as rescue and forge their own knowledge. From the above, we can observe the importance of working art with narratives and language that contemplate the reality of peripheral speech.

Keywords: Periphery;  Language;  Art;  Politics; Education.

 

 

 

 

 

 

 

Consideraes iniciais

Minha gerao av comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo de novo (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).

 

Dona Julita, minha v, nascida no serto da Ema, no municpio de Pianc (PB), uma mulher sisuda de 93 anos. Ela casou-se aos 18 anos para poder sair de casa. Minha bisa, Aurora, foi uma mulher abandonada pelo biso em 1983. Essas mulheres muito tm a contar, mas trarei foco especial a Dona Julita, pois minha maior inspirao nessa trajetria educacional, acadmica, poltica, artstica, ativista e existencial.

Vov, a mando de bisa Aurora, teve de abandonar os estudos logo cedo para poder cuidar dos irmos mais novos. Mas no s. As mozinhas pequenas que sonhavam decodificar as letrinhas tiveram que catar bolas de algodo para garantir a subsistncia da famlia. Hoje, vov conta essa histria com muito rancor e lgrimas nos olhos. Era 1967 quando ela e o v Joo chegam ao Distrito Federal – depois de tentar a vida em So Paulo − e, achando espao para existir na capital, se juntam a tantas e tantos outras (os) Severinas (os) nas vilas operacionais em busca do sustento. Foi sustentao capitalizada. Vov limpou casas e vov ergueu muros.

A maioria dos trabalhadores optou por continuar na regio, mesmo que o plano fosse de que todos retornassem aos seus estados aps a construo de Braslia. Nas vilas operacionais, um novo termo foi criado para designar esses trabalhadores: candangos. Segundo Tavares (2009), essa terminologia de natureza pejorativa. O termo candango africano (quimbundo[35]); ele foi usado pelos portugueses para se referir aos negros no perodo colonial. No contexto da construo de Braslia, uma das hipteses levantadas por Tavares, a partir de sua investigao, a de que o termo fora inspirado no nome de um cachorro que habitava o Palcio do Catetinho. Tendo Kubitschek sabido disso, chamava os operrios – em especial os nordestinos – de tal forma. Outra hiptese a de que o termo operrio era designado aos trabalhadores de maior prestgio (como arquitetos e engenheiros) e candango mo de obra explorada nas jornadas de trabalho (TAVARES, 2009).

Depois da construo, nordestinas (os), mineiras (os) e goianas (os) foram erradicados do lar a partir da campanha da senhora Vera Prates[36] e realocados a cerca de 30km de distncia do centro. Como diria o rapper X, a Ceilndia resultado de sangue, suor e lgrimas[37]; essa fala confirma a dificuldade dos moradores em se estabelecerem na Regio Administrativa – doravante RA. Isso ocorre no somente por serem despejados, contra a prpria vontade, de seus lares que ficavam prximos a Braslia, mas tambm por terem diversas limitaes que impediam sua dignidade enquanto pessoas. A luta dos candangos que construram a capital foi em prol da garantia de um pedao de cho, como afirma o cantor X.

Pau que nasce torno, nunca se endireita, o que dizem. Com o destino manco, vov seguia sua travessia s cegas. Como possvel uma pessoa analfabeta sobreviver diante de uma cidade urbanizada, diante de uma capital nacional, diante de uma complexa burrocracia? Sem ao menos assinar o prprio nome?

Dos destinos que a vida tem, eu, calanga, nasci no cerrado. Vejo a histria de Dona Julita como o ponto inicial para mostrar que pau que nasce torno pode ser modificado e que cada passo dessa peregrina foi essencial para construir uma narrativa diferenciada. No se trata da regra, mas da exceo. No entanto, foram necessrias apenas duas geraes frente das de Dona Julita para que o pau fosse forjado em caneta. E caneta ativa.

 

Comunidade e polticas autnomas

 

Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas

(MENDES, 2005).

 

Dona Julita e Seu Joo chegaram ao Distrito Federal com seus cinco filhos ainda pequenos. Eles estavam em um territrio desconhecido e diante de uma complexa configurao de culturas. O natural que, a tudo que nos parea estranho, haja repulso. Mas, mesmo diante da misria comum a todos, estava tambm um forte instinto de sobrevivncia entre esses seres gregrios.

Vivemos resqucios da colonizao. Uma das estratgias de dominao est em controlar e distribuir de forma desigual os direitos bsicos. gua, alimentao, sade, lazer, transporte e educao so apenas alguns dos direitos garantidos a qualquer cidado em territrio nacional, mas essa garantia torna-se ironia quando observamos a realidade. Como bem afirma a poeta Meimei Bastos (2017),

mas, mais ensino mdio pra qu?

se no fundamental os menor j to se perdendo

na falta do professor.

o corre na esquina

o plano de extermnio,

manuteno da opresso

E como as comunidades sobrevivem diante da negligncia do Estado? Podemos pensar na Ceilndia e na campanha de erradicao que ocorreu em 1970. Ao chegarem ao novo territrio, no havia sequer gua encanada disponvel para a comunidade, de forma que as famlias recorriam a poos e nascentes, tendo de caminhar alguns quilmetros carregando baldes de gua na cabea. A Caixa dgua, monumento da cidade, um marco histrico para a RA, pois foi sinalizada como um direito cidadania.

A nossa sociedade no igualitria. Os direitos so escolhidos a alguns e pincelados nos jogos de privilgios. Como afirma a intelectual Sueli Carneiro (2005), essa estrutura social hierarquizada baseada em parmetros raciais e de classe. Nessa conjuntura, negar a educao aos marginalizados o trato de manuteno das desigualdades. A educao a chave de acesso a cidadania, a igualdade, ao mercado de trabalho. Esse plano de excluses um plano genocida.

Vov sobreviveu, mame tambm, assim como tantas e tantos outros que no tiveram o direito de estudar. Mame saiu precocemente da escola para poder ajudar financeiramente em casa. Essa histria plural. A maioria na Ceilndia (34,1%) tem o primeiro grau incompleto. Estou na exceo. Se o desejo foi de mudar a histria desse ciclo peregrino, ele no foi consciente, mas, por ironia ou no, formei-me professora. Pensava eu, desde o trabalho de concluso de curso da graduao, desde a produo de minhas poesias para publicao, em cortar o problema pela raiz. E, nessa constituio, compreendo-me comunicadora. Arte-educadora. Gri.

na concluso de curso que decido trabalhar com um grupo pouco explorado no Instituto de Letras da Universidade de Braslia: os quilombos. Mas no relatava os quilombos rurais, tradicionalmente conhecidos pelas prticas ancestrais, a cultura de subsistncia e o modo alternativo de viver uma economia em comunidade. Tratava do quilombo em um espao urbano, com maioria negra vivendo, tambm, a partir do esprito de comunidade. Esse territrio chamado favela, periferia, quebrada, gueto. Nesse nterim, eu escolhi meu quilombo, a Ceilndia.

Chamar a periferia de quilombo resgatar uma simbologia de resistncia e luta. Nesses espaos, alguns dispositivos so utilizados a fim de garantir a resistncia e sobrevivncia diante da condio de despejados. O que na periferia representa fortemente essa luta a cultura Hip Hop[38]. Para nossa pesquisa, focamos em um elemento: o rap. Ao longo da investigao, percebia que os cantores traziam analogias da Ceilndia enquanto um espao de resistncia, tendo como referncia o quilombo. Esse aquilombamento ocorre quando a periferia se identifica como um corpo negro escravizado em busca de libertao. A exemplo, vejamos a letra do grupo ceilandense Sobrevivente de Rua:

Pois somos um desde a Revolta dos Mals

A unio do povo em um povo s

Quando existir o que vai reduzir o opressor a p

Um salve a todos os levantes, insurgentes, populares

Ns somos um desde o Quilombo dos Palmares[39]

Esse material precioso foi utilizado como mtodo de educao lingustica em minha experincia acadmica. Escolhi uma escola[40] de Ensino Fundamental II para pensar o contexto urbano de Ceilndia em uma perspectiva quilombista[41], uma vez que essa tomada de conscincia contribui para apropriao do termo dentro de uma nova concepo, uma transformao na lngua. Isso porque, com a transformao lingustica, h expressamente uma modificao nas prticas e cultura do povo. Levar materiais como letras de rap que valorizam a cultura, os saberes, a realidade e a particularidade lingustica de uma comunidade, ento, contribui para a conscientizao e emancipao de um povo.

Quando os saberes de um povo so negados, desmoralizados e inferiorizados, culturas so mortas. Em contraposio, quem est no lugar de dominao tem seus saberes supervalorizados, e quem quer que queira sobreviver diante do caos social deve seguir as regras de quem posto como senhor. Vov no estudou, como consequncia, muito pelejou. Mame no concluiu a educao bsica e teve srias consequncias no mercado de trabalho. Minha gerao (filha) precisou de cada passo das ancestrais para segurar um diploma de educao superior. Muito foi superado, mas impossvel seguir essa trajetria sozinha.

A noo de comunidade dentro das favelas faz com que ns, os moradores, a partir do que temos, contribuamos uns com os outros. Seja o po, uma roupa em desuso, um dinheirinho para a passagem, um conhecimento e ombro amigo, essa dana coletiva fundamental para a existncia de nossos territrios marginalizados. O que eu tinha em mos era o conhecimento formal, uma veia artstica latejante e a necessidade de distribuir a conscincia pelas esquinas de meu quilombo. Felizmente, na Ceilndia, a cultura pulsante. Espaos como o Jovem de Expresso, a Casa Akotirene e o Sarau VA so ambientes que disponibilizam atividades culturais para nossa comunidade. Em todos esses locais, h o momento do palco aberto, ocasio em que o microfone e o palco esto disponveis para que pessoas compartilhem sua arte, seja ela a poesia, a msica, a dana, ou mesmo uma fala de conscincia.

Foi no palco aberto que permiti que minha arte fosse publicada. At ento, no me entendia como artista, mas era bom ver a reao das pessoas ao ouvirem minha palavra que, a princpio, muito tmida, queria dizer algo. Muitos artistas relatam que a oportunidade de compartilhar sua arte cura. Comigo no foi diferente. Mas quanto mais eu pegava no microfone, mais sentia o peso da responsabilidade em minha fala. Como costumamos dizer, o microfone como uma arma. Com essa conscincia, procurava e ainda procuro elaborar poesias e performances que estejam de acordo com a justia social, que denunciem as mazelas cometidas, sobretudo, contra a populao negra e que elevem nosso povo no sentido de contribuir com nossa autoestima.

Dessa forma, a poesia uma arma sutil de combate, um livro, conscincia. no microfone que quebro o silncio de geraes. Digo o que as minhas de antes no puderam dizer e desafio o opressor a refletir sobre seu lugar. O silncio adoecedor. Ele imposto em qualquer relao hierarquizada, seja chefe e empregado, professor e aluno, pobre e rico, branco e preto, homem e mulher. Quem quebra o silncio cura a si e aos ouvintes que se identificam com o contedo da fala. Quanto mais representativas forem a forma e contedo da fala, mais poltica e comunitria se torna a ao do verso.

A linguagem perifrica, o contedo desalienante. Portanto, busco relatar um mundo que no corresponda aos padres capitalistas, patriarcais e cristos, para quebrar com a hegemonia colonial europeia. preciso contar a histria por outra perspectiva. Chimamanda Ngozi Adichie j nos chama a ateno do perigo da histria nica. Como ela afirma, mostre um povo como uma coisa, uma coisa s, sem parar, e isso que esse povo se torna (ADICHIE, 2009, p. 12).

A histria do Brasil contada de forma que o povo pindormico[42] e o povo africano so carregados de preconceitos. Para Adichie (2009), os esteretipos so problemticos por serem concepes incompletas que tomam nossa dignidade, nossa humanidade. Os rtulos que carregamos so de selvagens, inferiores, desumanizados, bestiais, ignorantes, coitados, tutelados, sditos. Quanto a isso, j nos chama a ateno o mestre quilombola Antnio Bispo dos Santos:

No plano individual, as pessoas afro-pindormicas foram e continuam sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas, intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como feias, sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem costumes e culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva se constitui em dilogo com as identidades individuais e respectivamente pelos seus valores, no preciso muita genialidade para compreender como as identidades coletivas desses povos foram historicamente atacadas (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 37).

O argumento do colonizador, ao atacar a cultura de povos afro-pindormicos, o de que ramos (e ainda somos) um povo sem histria, sem civilizao. preciso questionar quo equivocado o conceito de civilizao pode ser. Ser mesmo que uma relao de explorao com a terra e seus recursos naturais, assim como uma relao violenta com povos e animais que habitam a terra pode ser constituda como civilizao? O desequilbrio na produo e no consumo configura civilizao? Escrever configura civilizao?

Ao que diz respeito histria, s tem direito sua quem tem o domnio da escrita. No senso comum, a histria do Brasil comea em 1500, quando o colonizador comea a escrev-la com uma tica vampiresca e distorcida. A escrita ser o saber que legitima a concepo de desenvolvimento. Por traz desse quiproqu est uma estratgia perfeita que autoriza a dominao de uns sobre outros. No basta que os saberes legtimos sejam brancos, masculinos e cristos (ou seja, eurocentrados), tambm devem ser escritos? O grafocentrismo nada mais do que uma poltica genocida de lnguas e culturas de povos que no correspondem ao povo europeu.

A linguagem que utilizamos na periferia diversa. Gosto de como a intelectual Llia Gonzalez a categorizava, colocando-a como o pretogus, que esse portugus da gente, sincretizado, modificado, a marca de africanizao do portugus falado no Brasil (GONZALEZ, 1988, p. 70). O signo latino, mas a essncia carregada de pindoramas e africanidades. Essa linguagem o nosso pretogus e nos representa. Ela est viva. Concluo este tpico com a sabedoria de Bispo, quando diz:

Muitos so os autores que escreveram sobre a trajetria dos povos afro-pindormicos e sobre a sua importncia para a histria do Brasil. Portanto, o que vamos falar pode ser encontrado em vrias bibliografias. Poderamos aqui fazer referncias a vrias delas, mas no ser necessrio, porque a trajetria desses povos transpe qualquer texto cientfico ou literrio. Ela visvel e palpvel materialmente e pode ser sentida imaterialmente, tanto quando olhamos para o passado e fazemos referncia aos nossos ancestrais, como hoje quando visitamos as comunidades da atualidade e dialogamos com as suas organizaes e manifestaes culturais (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 38).

 

A arte perifrica engajada

 

Misso cumprida ento palmas pra nis mesmo
Periferia a palmas pra nis mesmo
A todos os maloqueiros palmas pra nis mesmo
[43].

A cano acima do grupo de rap Viela 17. Trata-se de rap da Ceilndia, rap de quebrada, rap que salva vidas. O rap, o funk, o samba, so sons que ecoam em periferias como a Ceilndia; so educadores de um povo. Como diriam Cidinha e Doca, O povo tem a fora, precisa descobrir / Se eles no fazem nada, faremos tudo daqui[44]. Mas qual a importncia de considerar tal discurso dentro das periferias? possvel que essas narrativas contribuam na educao formal?

A arte da periferia engajada. A tomada de conscincia dos moradores vivida na prtica ao sentirmos, no cotidiano, a ausncia do Estado. A representatividade nos espaos de poder mnima, se pensarmos em termos estatsticos. Maioria negros, maioria mulheres, maioria pobres, e essa maioria continua a ocupar os espaos minorizados. No entanto, como j mencionado anteriormente, a periferia se mantm pela coletividade e esprito de luta. Como bem j declarava o professor Abdias do Nascimento:

A continuidade dessa conscincia de luta poltico-social se estende por todos os Estados onde existe significativa populao de origem africana. O modelo quilombista vem atuando como ideia-fora, energia que inspira modelos de organizao dinmica desde o sculo XV. Nessa dinmica quase sempre heroica, o quilombismo est em constante reatualizao, atendendo exigncias do tempo histrico e situaes do meio geogrfico (NASCIMENTO, 2019, p. 282).

Um exemplo muito evidente disso a escritora negra Carolina Maria de Jesus e suas denncias dentro de um minsculo quarto de despejo. Os quartos de despejo so mltiplos, as denncias mais ainda, plurais e singulares, pois, como diria Gog, periferia periferia em qualquer lugar[45]. Os males daqui so como os de l. Nas dores nos encontramos, traamos estratgias e sobrevivemos. Tambm nos encontramos nos amores de sermos verdadeiramente coletivos, sociveis.

Nas periferias do Distrito Federal, h diversas vozes, sobretudo de mulheres negras, que so muito inspiradoras. Essas vozes so estmulos para a luta de emancipao de um grupo to marginalizado. Apesar dos recortes de cor e gnero, possvel crer que, com o empoderamento da base, toda uma estrutura pode ser melhor equilibrada. Isso porque o modelo triangular hierrquico social pressiona os que esto no topo (homens brancos, hteros, catlicos, ricos) a ceder, voluntariamente ou no, espao s (aos) que esto chegando. Estamos chegando e, como diz a cano de BK, Rael, Emicida, Rincon Sapincia, Djonga e Mano Brown, o cu o limite:

Melhor irem se acostumando
Vo ter que se adaptar
Os pretos com o din gastando
Sem se preocupar
E pra contrariar seus planos
Nas grades no vamos ficar
Unidos, se fortificando
Ei, quem vem l[46]

Consideramos didtica essa arte que se manifesta como instrumento de luta e discurso ideolgico: a arte dos ocultos. Um bom exemplo de missionria nas periferias do Distrito Federal Meimei Bastos. Ela poeta, atriz e arte-educadora, idealizadora do Slam[47] Quebrada. O trabalho de Meimei se estende a todos os cantos da capital. Das periferias aos espaos de poder, tive a oportunidade de acompanhar esse encargo enquanto poeta em locais como o Imaginrio Cultural (Samambaia), o Complexo Cultural (Samambaia), o CCBB (Plano Piloto), a Universidade de Braslia (Plano Piloto) e o Jovem de Expresso (Ceilndia).

O Slam Quebrada me deu a oportunidade de competir no campeonato nacional (Slam BR) em dezembro de 2018. Essa foi uma porta aberta para que eu me lanasse enquanto poeta e performer. Na disputa nacional, percebo que a multiplicidade discursiva no Slam BR impressionante e o esprito de luta quase uma regra. A maioria dos participantes so negros e negras de periferias de 18 estados brasileiros. Vejo nesse evento uma forma de disseminar a literatura da quebrada que ecoa em vozes desocultadas.

Esse movimento poltico e autntico. A linguagem representativa e busca o reconhecimento, a alteridade. Em meu trabalho enquanto poeta e arte-educadora, procuro levar comigo mulheres como Meimei Bastos e Thabata Lorena, para citar alguns exemplos. Abaixo, segue um trecho do poema de Meimei Bastos (2017, p. 19) que utilizei no projeto Parada Sociocultural[48]:

aqui, no cumprimentar

ns olha nos i,

d bom dia pra tia,

pro menor na quina,

pra mina da padaria,

pro tio do verduro.

no tem bisu errado,

no tem de querer ser,

pois ns

j

Outro projeto o qual tive a oportunidade de participar foi o bip – bRASLIA iNSPIRA pOESIA[49]. Foram selecionados poemas de artistas do/no Distrito Federal que falassem, em suas narrativas, sobre como viver nessa regio; como resultado, foi publicada uma antologia potica. Para alm da publicao, foram idealizados saraus para que artistas e seus poemas fossem apresentadas (os) s escolas pblicas nas regies administrativas Cruzeiro, Candangolndia e Ncleo Bandeirante. Paralelamente, trabalhei como poeta e mestre de cerimnias, o que me deu a oportunidade de uma interao mais ntima com as (os) alunas (os). Sempre que as (os) questionava se gostavam de poesia, elas (es) diziam que no. Essa resposta automtica o reflexo da ideologia que se tem de que poesia literatura de elite, difcil de ser compreendida, chata, entre outros esteretipos. Mas bastava que eu perguntasse se as (os) alunas (os) gostavam de rap e a grande maioria levantava as mos em alegria.

A palavra rap advm da sigla em ingls rhythm and poetry[50] (ritmo e poesia), ou seja, a poesia est nos emaranhados do rap. Recursos como mtrica, rima e linguagem figurada podem ser facilmente encontrados nas canes. A exemplo, a cantora e compositora Thabata Lorena:

Eu no sou a tal, nem sou aquela

Sou mais uma menina que sobe a favela

S pago um pau pra ela

Minha ama de leite

Favela[51]

Enquanto educadora, so essas as narrativas que considero primordiais no processo de ensino e aprendizagem nas periferias. Dentro da cultura das quebradas, a lngua carregada de particularidades e as expresses utilizadas pelos falantes so, cotidianamente, aceitas nos contextos de fala.

A forma altamente violenta e impositiva do colonizador, ao chegar nesse territrio nacional, desconsiderou todo o saber ancestral e cultural de povos pindormicos e africanos. Essas marcas se apresentam na contemporaneidade. Afro-pindormicos so sempre colocados margem e so inferiorizados dentro das relaes verticais na sociedade. Sobretudo, s mulheres negras, foram atribudas as funes maternas. Somos as mes de toda uma populao, cuidamos de nossos filhos e dos filhos alheios nas casas de luxo. Temos um papel primordial de base e, por sermos base, somos desqualificadas.

Eu, mulher negra e perifrica, me, procuro quebrar esse ciclo. De vov analfabeta, de me domstica: filha educadora. Eu educo a favela com poesia e denncia. De qualquer forma, reconheo que trabalhar com jovens de escola pblica de periferia desafiador e extremamente delicado. Reflito sobre os dados da Infopen[52] divulgados em 2014, que destacam que o perfil da populao carcerria constitudo por 31% de cativos entre 18 e 24 anos, sendo 67% de cor negra; e 53% tm o Ensino Fundamental incompleto. A maioria dos crimes cometidos por trfico (27%) e roubo (21%), sendo o tempo total das penas da populao prisional condenada entre 4 e 8 anos (26% dos casos). Por isso, em meu processo de concluso na graduao, a escolha por uma instituio de Ensino Fundamental na Ceilndia no foi ocasional.

A escola selecionada fez parte de meu histrico escolar. Enquanto ceilandense e negra, pude vivenciar prticas de excluso na instituio quando cursara o Ensino Fundamental II. Compreender a experincia vivida nessa pesquisa, no caso, dependeu da combinao com experincias passadas. Diante da profisso que tive possibilidades de exercer, posso perceber a responsabilidade social que carrego. Voltar Ceilndia, agora em condio de professora, retribuir todo o conhecimento adquirido em minha caminhada.

Observo o material didtico disponvel, que decepcionante. A gramtica tradicional ainda a mais utilizada na instituio. Essa gramtica de carter preconceituoso em relao s variantes que fogem do padro do portugus e tem a necessidade de estabelecer parmetros em busca de um uso idealizado da lngua, ocorrncia arcaica que se inicia desde os gregos antigos (MARTELOTTA, 2016, p. 45).

Esse atributo se reflete at hoje em nossa lngua. Sempre que se aponta um portugus errado por estar fora dos padres de um portugus idealizado e elitizado, chamado portugus culto. Se observarmos mais criticamente, averiguvel que a questo da erudio da lngua est ligada s relaes de poder. Efetivamente as classes altas so as que tm mais contato com estruturas corretas (MARTELOTTA, 2016, p. 47) e, portanto, so tambm as classes com mais oportunidades e privilgios.

Para compreender o funcionamento da lngua, preciso assimil-la ao contexto com o todo (MARTELOTTA, 2016, p. 63). Trata-se de uma anlise mais aprofundada que a gramtica faz; trata-se da prxis e, por isso, considero a linguagem perifrica essencial e significativa nessa pesquisa.

E onde esto, nas escolas, materiais didticos que se relacionam com a realidade dos alunos? Onde esto os materiais que acompanham o movimento, a mudana, a dinmica na linguagem deles? Onde esto, ao menos, as prticas que contemplam o universo dos jovens perifricos?

Professor, me refiro a voc: se parar para repensar na sala de aula, perceber o quo desprendido est o material disponibilizado para os aprendizes. E no preciso refletir muito profundamente para compreender que suas prticas tambm esto. vulgar e desumano culpar apenas a instituio de ensino, assim como o material didtico. O juzo comea olhando para si mesmo, no quo compromissado socialmente est ao entrar em uma sala de aula para comear esse culto, que o ensinamento.

 

Consideraes finais

 

a real que eles tm medo

do formigueiro se atiar,

da gente se armar de conhecimento.

eles to ligado que quando ns

respirar ns,

eles morrem sem ar

(BASTOS, 2017, p. 47).

 

A voz da periferia som que ecoa e cura. Ns falamos, e a tradio da oralidade vem dos de antes, de ontem. Dandara falou, Carolina Maria de Jesus falou, minha av falou. Hoje eu falo. As prximas falaro. sentando no cho e ouvindo que aprendemos. A minha arte a palavra. Atravs dela me curo, curo os de antes, curo quem vir. E a partir dessa cura, procuro ser uma referncia de ancestral curada.

O corpo que se move na favela um corpo poltico. Mover-se um ato poltico em si. Se pensarmos sobre as estratgias genocidas, quando nos movimentamos, estamos agindo contra a colonialidade exterminadora. Cada corpo um arquivo, pois contm memria, contm histria, contm narrativas.

Como a palavra por si s no d conta, a performance vai ecoar na vibrao de cordas vocais. no grito, no rito, no canto, nas louvaes. A performance mostrar o potencial de toda essa oralidade que carregamos em nossa memria, em nosso DNA, em nossos costumes que o colonizador foi incapaz de exterminar. Se estamos vivos, algo deve ser aprendido conosco. E o lixo fala, e numa boa, fala muito bem[53]. Todo mundo se entende, e com isso estamos sobrevivendo, vivendo, mantendo nossa histria.

Como diriam Bernadino-Costa e Grosfoguel (2016), mesmo em condio de subalternidade, no somos sujeitos passivos, uma vez que podemos rejeitar os saberes do opressor, assim como resgatar e forjar nossos prprios saberes. Que busquemos, ns, os favelados, enaltecer nossos conhecimentos, produzir e compartilhar saberes, elevar nossa autoestima.

Vov minha escola. Mame minha escola. Homens e mulheres educadores que passaram em minha trajetria so minha escola. A terra minha escola. A msica minha escola. A periferia minha escola. Nossa fala ancestral, tem poder, objetivos e coletiva, orgnica[54]. Nosso saber vivo. Sigamos juntos. Subamos juntos. Tamo junto, favela!

 

Referncias

 

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma histria nica. So Paulo: Editora Schwarcz, 2009.

 

BASTOS, Meimei. Um verso e Mei. Rio de Janeiro: Mal, 2017.

BERNARDINO-COSTA, Joaze, GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n 1, pp. 15-24, janeiro/abril 2016.

 

BISPO DOS SANTOS, Antnio. As fronteiras entre o saber orgnico e o saber sinttico. In. Tecendo redes antirracistas: fricas, Brasis, Portugal / organizao Anderson Ribeiro Oliva. 1 ed. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2019.

 

BISPO DOS SANTOS, Antnio. Invaso e colonizao. In: _________. Colonizao, quilombos: modos e significados. Braslia: Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia de Incluso no Ensino Superior e na Pesquisa – INCTI, 2015, p. 25-46

 

CARNEIRO, A. Sueli. A construo do outro como no-ser como fundamento do ser. 2005. 339 p. Tese de doutorado (Doutorado em Educao). Universidade de So Paulo. So Paulo.

 

GONZALEZ, Llia. A Categoria Poltico-Cultural de Amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, 1988.

_________. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Cincias Sociais Hoje. Anpocs, 1984, p. 223-244.

 

MARTELOTTA, Mrio Eduardo. Conceitos de gramtica. In: _________. Manual de lingustica. So Paulo: Contexto, 2016, p. 43-70.

MENDES, Roberto. Massemba. So Paulo: Atrao, 2005. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=RQFQXhJJmKU. Acesso em 11 de outubro de 2019.

 

NASCIMENTO, Abdias. Documento 7. In: _________. O quilombismo: documentos de uma militncia pan-africanista. So Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

TAVARES, B. Na quebrada a parceria mais forte: Juventude hip-hop: relacionamentos e estratgias contra a discriminao na periferia do Distrito Federal. Braslia, 2009. Disponvel em < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/3833/1/2009_BreitnerLuizTavares1.pdf> Acesso: 12 out.2019.

 

TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformaes do rap no Brasil. Enigma: So Paulo, 2015.

 

 

[Recebido: 23 jul 2020 – Aceito: 24 set 2020]


 

A pintura um silncio? Ou qual a voz da pintura?

 

 

Is a painting silence? Or whats the voice of a painting?

 

 

Vanessa Tavares da Silva[55]

https://orcid.org/0000-0003-4943-6166

 

 

Resumo: Neste trabalho, examinaremos o processo pictrico e a pintura a partir da perspectiva que relaciona literatura e oralidade. Para tanto, apresentaremos os procedimentos do artista visual brasileiro Eduardo Berliner em uma de suas pinturas, Leda e o Cisne, com a qual o artista retoma um dos mitos gregos. De modo amplo, tomam-se os estudos da oralidade como o resgate de um ponto fundamental do estabelecimento das relaes entre os seres e o mundo, que, embora invisvel, vigente. Assim, verificar-se-, por meio dos desvios estabelecidos nas anlises, os procedimentos e a pintura de Berliner como locus de vigncia de aspectos primrios da oralidade, assim como questes da performance e do mito, trazendo tona mais uma via de compreenso da pintura, sendo ela tambm possibilidade de espao de resistncia relao com o mundo somente pela via da razo. Tomamos como base o pensamento de Walter Ong (1998), Paul Zumthor (1993) e Michele Simonsen (1987), entre outros autores, cujas vises nos auxiliaram na perspectiva de uma compreenso mais ampla sobre a pintura e os procedimentos que a envolvem, dando-nos a perceber a presena da oralidade, tambm nessa esfera, de modo a ampliar a apreenso sobre as relaes entre a humanidade e o mundo.

Palavras-chave: Pintura; Oralidade; Desvio; Processo criativo.

 

Abstract: We will examine the pictorial process and painting relating literature and orality. We will address the procedures of the Brazilian visual artist Eduardo Berliner (1978) and one of his paintings, Leda and the Swan (2015), in which the artist takes up one of the Greek myths. Broadly speaking, the studies of orality are seen as the retrieval of a fundamental feature in the establishment of relations between human beings and the world, which, although invisible, is in force. Thus, through the deviations established in the analyses, we will establish Berliner's procedures and painting as the validity locus of primary aspects of orality, as well as issues of performance and myth, bringing to light yet another way of understanding a painting, which is also the possibility of a space of resistance to the relationship with the world only through reason. We draw from the thoughts of Walter Ong, Paul Zumthor and Michele Sominsen, among other authors, whose visions have helped us build a broader understanding of painting and its procedures, giving us insight into the presence of orality, also in this sphere, in order to broaden our perception of the relationship between humanity and the world.

Keywords: Painting; Orality; Deviation; Creative process.

 

 

 

 

Introduo

 

Os objetos, hoje, objetam. No futuro, objetos e gestos revestir-se-o porventura da dignidade perdida. A palavra amor, um pedao de po, a letra A, deixaro assim de ser acidentes mortais da vida quotidiana. Dessacralizados, voltaro a ser to decisivos como a mais nfima pincelada que o pintor realizou no quadro. E cada uma destas pinceladas revelar a estrutura do mundo.

Ernesto Sousa

O que, no jogo de tenso provocado por formas e cores, possvel ser ouvido? No presente estudo, desenvolver-se- a tentativa de estabelecer e/ou reconhecer elementos com os quais possamos compreender e apreender a produo pictrica do artista brasileiro Eduardo Berliner na esfera do que as perguntas que aqui orbitam permitem como possibilidade de resposta.

O que h como pano de fundo, alm das deteces dos traos de oralidade, a compreenso ou o desvelamento do papel da arte (seja ela literria ou pictrica) de superar os achatamentos e simplificaes advindos do projeto moderno de civilizao, que privilegia a razo como medida de compreenso e definio de mundo.

A partir da pergunta feita por Ernesto Sousa, que intitula um de seus textos publicado em 1968, Oralidade, futuro da arte?, o autor lana, para o futuro, uma perspectiva da totalidade das coisas, de ns mesmos e dos outros, na qual as relaes no mais se dariam a partir de suas funcionalidades e essa possibilidade residiria, possivelmente, na retomada daquilo que foi abandonado ou simplesmente esquecido (SOUSA, 2011 p. 41-42). Foi a partir da pergunta do autor que surgiram as duas indagaes que intitulam este texto num aparente paradoxo. O prprio estudo se dar como possibilidade de resposta, ao evidenciar o existente que no percebido pela via do visvel: a oralidade.

 

 

Eduardo Berliner e os pontos disparadores para a investigao

 

O artista tem uma produo que passa a figurar no cenrio nacional e internacional desde meados de 2008, ano da aquisio do Prmio CSI Marcantonio Vilaa. Depois disso, foi convidado para expor na 29 Bienal Internacional de So Paulo, em 2010, e tem mantido uma produo constante, participando de importantes mostras e exposies individuais e coletivas, dentro e fora do pas.

A perspectiva adotada para o engendramento das questes levantadas se d, tambm, a partir do carter processual, algo evidente na pintura do artista em questo. Embora o carter processual seja inerente a toda e qualquer produo, no necessariamente artstica, referimo-nos aqui sua evidncia como mais uma das pistas que reiteram o sentido de determinadas obras. Num breve retrospecto, notamos no Romantismo, que negava fatores como a racionalidade e a representao, o aparecimento do carter processual e tomamos como exemplo as pinturas de Turner (1775-1851). No Impressionismo, o carter processual passa a ganhar mais evidncia e no nos faltam exemplos, como as pinturas de Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919) e Morisot (1841-1895). Seguimos nos deparando com a evidncia da processualidade nas obras ao longo de outros movimentos artsticos, assim como nas Vanguardas Artsticas Europeias do incio do sculo XX e, do mesmo modo, seguimos com esta deteco para momentos importantes como a Action Painting norte-americana na dcada de 1950, movimento que nos direciona para a ideia de performatividade como um dado do aspecto processual na pintura.

O ponto de partida para este estudo envolve o que o prprio artista diz sobre seu processo em vdeos recentes sobre sua produo. Neste ponto, estabeleceremos relaes entre algumas de suas falas e aspectos da oralidade, advindos do pensamento de Walter Ong e de Paul Zumthor. Em seguida, faremos o paralelo entre a pintura, em linhas gerais, desde o processo e a evidncia da processualidade em sua materialidade, at as possibilidades de fruio e a performatividade, segundo Zumthor, estabelecendo a ideia de jogo como uma estrutura ampla. Por fim, a partir da pintura Leda e o Cisne, organizaremos, em princpio, uma leitura formal para, a partir dela, seguirmos evidenciando, com mais amplitude, suas possibilidades de sentido.

 

 

Pintura como gnero: desvio

 

A pintura um silncio? O modo mais comum e restrito de resposta, ou seja, a partir de um olhar meramente funcional, seria: sim, a pintura no fala. Ela nasce como pintura, para ser pintura e, portanto, atua nessa esfera da linguagem, a da visualidade. A essa possibilidade de explicao, necessria a abertura da superfcie de compreenso, sendo a pintura, tambm, algo que compe o mundo, faz parte do campo gerador de sentidos numa dinmica que pode nos levar totalidade das coisas, na qual os sentidos se interpenetram, so atravessados uns pelos outros e se complementam. Neste estudo, ser restituda pintura a face que a compreenso de mundo, apenas pela via da razo, abrevia.

Para tanto, a ideia de desvio ser dada pela tomada de emprstimo da concepo de romance de Bakhtin (1998) para ento encontrarmos na pintura de Berliner, por essa mesma via, as marcas da oralidade primria a partir do pensamento de Walter Ong (1998). Para Bakhtin: o romance o nico gnero por se constituir, e ainda inacabado. [...]. A ossatura do romance enquanto gnero ainda est longe de ser consolidada, e no podemos ainda prever todas as suas possibilidades plsticas (BAKHTIN, 1998, p. 397). A ideia a de nos atermos a um tipo de pintura qual essa definio caiba, salientando a prematuridade de tom-la como definitiva, j que a presente pesquisa no toma como base um amplo aspecto investigativo. Por ora, com base na extenso deste estudo, a convergncia entre a concepo de romance de Bakhtin e uma possvel definio pictrica, se dar a partir do que Nicolas Bourriaud indica como um dos pontos de conquista da pintura moderna e que, na concepo do autor, fundamental para a compreenso das relaes entre arte e vida na contemporaneidade; segundo ele,

A primeira luta da pintura moderna consistiu, evidentemente, em conquistar sua autonomia expressiva, mas tal reivindicao no passava do preldio de uma luta de morte contra a nova ideologia do trabalho: a arte moderna se d pelo objetivo de constituir um espao dentro do qual o indivduo possa finalmente manifestar a totalidade de sua experincia e inverter o processo desencadeado pela produo industrial, a qual reduz o trabalho humano repetio de gestos imutveis numa linha de montagem controlada por um cronmetro (BOURRIAUD, 2011, p. 13).

O que nos leva a compreender a pintura como espao de acontecimentos que no so previamente calculados, como uma atividade no submetida a uma lgica decorrente de operaes correlatas a outros tipos de trabalho e que, no limite, converge com um modo de conceber a vida, ligado aos movimentos nela engendrados, prximo das experincias vividas. neste ponto que se inicia a possibilidade de deslocamento daquilo que Walter Ong evidencia como prprio do modo como se d a formulao do conhecimento na cultura oral, pois

Na ausncia de categorias analticas aperfeioadas, que dependem da escrita para organizar o conhecimento distante da experincia vivida, as culturas orais conceituam e verbalizam todo o seu conhecimento como uma referncia mais ou menos prxima ao cotidiano da vida humana, assimilando o mundo estranho, objetivo, interao imediata, conhecida de seres humanos (ONG, 1988, p. 53).

Esse aspecto mais direto nos aproxima da concepo de totalidade, distanciando-nos de designaes e, portanto, do modo, apenas, funcional das coisas. Ainda assim, tudo pode funcionar, mas a diferena, nesse sentido, reside na interao com a amplitude de possibilidades que ns, os outros, as coisas e toda a sorte acontecimentos, portanto, oferecem cotidianamente de modo direto e no previamente calculados. Num movimento de maior amplitude, podemos nos reencontrar com a dignidade perdida, conforme Souza (2011) aponta.

 

 

Silncio

 

No caso de Berliner a conscincia da intransponibilidade entre o dizvel e o visvel (entre a compreenso oral e a coisa em si) que far que ele busque outra sintaxe visual, cuja narrativa vai impregnar a imagem no mais pela ideia da forma como frma, mas atravs da forma que se transmuta constantemente pela metamorfose.

Marcio Doctors

 

Em um vdeo, Eduardo Berliner fala sobre o tempo em seu processo de preparao para o trabalho. Para ele, a pintura tem incio antes mesmo que algo passe a figurar em suas telas, que, em geral, so de grandes dimenses. Nessa extenso de tempo, o artista fala sobre o cessar gradativo dos dilogos internos e do rudo do mundo, que passam a dar lugar ao processo como agente e, assim, segue na constituio pictrica. Segundo o artista: a partir de um ponto o processo age como coautor; o processo conta uma histria em paralelo, que no linear [...] uma pintura. Sobre parte de seu repertrio, ele comenta: costumo trabalhar coletando, registrando minhas percepes do mundo: coisas que eu vejo, coisas que eu ouo[56].

Dado esse estgio, o que se instaura em suas pinturas so elementos do mundo, os que o artista coleta no transcorrer dos dias, assim como os que residem em sua memria. A partir da movimentao processual e do silncio no ato criativo, esses elementos se reorganizam na tela, seguindo a ordem constitutiva da linguagem. Estabelecem-se, ento, novos jogos de sentido.

As vozes cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz potica os rene num instante nico – o da performance –, to cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma presena fugidia mas total. [...]. A voz potica , ao mesmo tempo, profecia e memria [...]. A memria, por sua vez, dupla: coletivamente, fonte de saber; para o indivduo, aptido de esgot-la e enriquec-la. Dessas duas maneiras, a voz potica memria (ZUMTHOR, 1993, p. 139).

Em comentrios sobre seu processo de criao, notamos que a memria tambm um dos grandes agentes e possvel observar o paralelo acerca do que Ong (1998, p. 50) nos diz sobre o carter das formulaes nas tradies orais, j que

No h nada para retroceder fora da mente, pois a manifestao oral desapareceu to logo foi pronunciada. Por conseguinte, a mente deve avanar mais lentamente, mantendo perto do foco de ateno muito daquilo com que j se deparou. A redundncia, a repetio do j dito, mantm tanto o falante quanto o ouvinte na pista certa.

Nesse sentido, poder-se-ia pensar na pintura como um modo de fixar o aspecto fugidio da mente; entretanto, trata-se de uma compreenso apressada. Embora estejamos falando sobre aspectos processuais, ou seja, os que antecedem a imagem final, possvel tambm compreender o carter indeterminado e incerto daquilo que se apresenta na prpria pintura. Segundo Blanchot (1987, p. 84), Cada obra, cada momento da obra, volta a pr tudo em questo, e aquele que deve apenas ater-se-lhe, no se atm, portanto, a nada. Seja o que for que ele faa, a obra retira-o do que ele faz e do que pode. Ou seja, uma pintura pode ser um tipo de experincia diversa a cada vez que com ela nos defrontamos. Assim, conectamo-nos com seu aspecto de totalidade, pois j no nos veramos mais, em relao a ela, a partir de trajetos pr-definidos, tendo o aspecto fugidio como uma constante, desde o que antecede o prprio processo, atua na processualidade e se faz presente na obra finalizada.

 

 

Pintura e performatividade

 

Como dito inicialmente, a processualidade passou a figurar no campo dos sentidos e nos interessa pens-la como um aspecto que guarda em si um dado performativo. De modo bastante elementar, pensaremos no dado performativo como o conjunto dos gestos que geram determinada obra, aqui, no caso, a pintura. Para tanto, tomaremos de emprstimo o sentido de performance como jogo de Zumthor. Em suas palavras: A performance jogo, no sentido mais grave, seno no mais sacral, deste termo (ZUMTHOR, 1993, p. 240), e esta definio implica uma estrutura de compreenso mais complexa, que abrange o conjunto de gestos ora mencionados, perceptveis, tambm, a partir de uma visualidade.

Em A letra e a Voz, livro publicado em 1993, Zumthor apresenta questes relativas ao texto e imagem, referindo-se s iluminuras, atestando a correspondncia e a complementariedade entre as dimenses visuais e auditivas e, novamente, tomamos tal perspectiva para vislumbrarmos as possibilidades relacionais com a pintura, compreendendo aspectos da recepo na estrutura complexa de jogo mencionada anteriormente:

O dilogo visualizado, por oposio ao texto que constitui materialidade em seu lugar, volta-se para a ordem sensorial. Restitui o olho as condies empricas, concretas, das percepes naturais. O artista no dispe de meios para fazer escutar a voz; mas pelo menos cita a intencionalidade naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de sugerir ao ouvido a realidade sonora (ZUMTHOR, 1993, p. 125).

A respeito das pinturas no modo como hoje as concebemos, Zumthor (1993, p. 125) afirma que a diferena de procedimentos entre elas e as imagens medievais reside na ausncia da narrativa explcita. Em outra passagem, o autor relaciona a pintura oralidade, retomando as palavras de um trovador medieval:

A pintura – explica no sculo XIII Richart de Fournival para justificar a ilustrao de seu Bestiaire damour – tem por virtude tornar presentes as coisas comemoradas... como o faz a palavra pronunciada, no momento em que se escuta; o texto de Richart claro e no faz referncia escritura, mas somente percepo auditiva. No tringulo da expresso, a imagem tem sua parte ligada com a voz. A imagem tambm s se comunica na performance (ZUMTHOR, 1993, p. 127, grifos do autor).

Retomando a noo de desvio, seguimos com o autor no caminho que sugere sua frase: A imagem tambm s se comunica na performance, a partir de suas consideraes em Performance, recepo e leitura, publicado em 2007, ao nos dizer sobre o olhar versus ler:

O olhar no pra de escapar ao controle, registra, sem distinguir sempre, os elementos de uma situao global, a cuja percepo se associam estreitamente os outros sentidos. A vista direta gera assim uma semitica selvagem, cuja eficcia provm mais da acumulao das interpretaes do que de sua justeza intrnseca. O latim medieval designava pelo termo signatura o resultado dessa atividade do olho humano. Signatura implica que o olhar transforma em signum o que ele percebeu. O objeto dessa percepo speculum, palavra-chave das culturas medievais: um reflexo emana disto e, como reflexo, exige a interpretao (ZUMTHOR, 2007, p. 72, grifos do autor).

Embora descreva tal ciclo para falar do que se perdeu em potncia na leitura de um texto simplesmente decodificando-o, saltando a etapa do olhar e indo diretamente para a noo a que corresponde aquele conjunto de caracteres, talvez seja possvel, ainda, verificar tal circularidade diante de uma pintura, experienciando-a em sua completude.

A compreenso da arte, literria ou pictrica, como evento, um acontecimento em meio vida que nos atravessa em sua complexidade sinestsica, que nos recobra sobre as coisas em sua totalidade e no em suas finalidades, como apregoou Ernesto Souza, parece ser inevitvel. Faz sentido, ento, recuperar a abertura da definio bakhtiniana de romance, cujas razes se encontram no modo de vida do medievo (BAKHTIN, 1998) para pensar a pintura, assim como as noes zumthorianas medievalistas e pr-textuais, recuperando assim o que a autoridade do poder pela racionalidade nos fez esquecer.

 

 

Leda e o Cisne na tradio da pintura: mito, lenda e tradio oral

 

Na tradio oral, haver tantas variantes menores de um mito quantas forem as repeties dele, e a quantidade de repeties pode aumentar indefinidamente.

Walter Ong

Leda e o Cisne foi um tema repercutido com intensidade e possvel vislumbrarmos a fora dessa reverberao no salto desde a sua origem na oralidade at seus desdobramentos contemporneos. Entretanto, este no o modo mais adequado de se perceber a produo acerca de tal lenda, como um ponto que repercute, sendo ela o originrio de tantas produes em diversos meios, no tempo e no espao.

O modo mais adequado reside em, ao percebermos tal produo como repetio, voltarmo-nos ao seu princpio, ou seja, quilo que, da prpria lenda, ressoa na frequncia da vida. Segundo Simonsen (1987, p. 5, grifos da autora), O mito est entre os principais gneros narrativos populares representados na Europa, juntamente com a gesta ou saga, o conto, a lenda e a anedota.

O mito, ligado a um ritual, tem um contedo cosmognico ou religioso. Simboliza as crenas de uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos que ele narra so tidos como verdicos. [...]. A lenda, relato de acontecimentos tidos como verdicos pelo locutor e seu auditrio, localizada: as definies de tempo e de lugar integram o relato (SIMONSEN, 1987, p. 6, grifo da autora).

Assim, vemos que a longevidade do tema se deve constatao da presena da cultura oral, em concomitncia cultura quirogrfica, como uma constante, ainda que seja possvel notarmos os diferentes nveis de influncia de uma sobre a outra. E essa constncia, ou seja, a prpria vida, que mantm ativo o que reside na lenda. Segue abaixo uma breve verso:

OS AMORES DE ZEUS

O rei dos deuses no se dedicava apenas a desgraar os homens. Tambm procurava fazer as mortais felizes, sobretudo aquelas que lhe agradavam... e foram muitas. Embora fosse casado com a deusa Hera, Zeus teve inmeras aventuras amorosas. Sua legtima esposa era ciumentssima e no gostava nem um pouco das escapulidas do marido. Quando vinha a saber que ele tinha ido visitar uma mortal, ficava louca de raiva. Sua clera s se aplacava quando ela se vingava da mortal ou dos filhos que essa mulher tivera com o deus. Hera estava sempre de olho em Zeus, que fazia de tudo para escapar sua vigilncia.

Zeus gostava de assumir a aparncia de algum bicho a fim de evitar a desconfiana de suas bonitas vtimas. Usou dessa artimanha para se aproximar da bela Leda. A jovem acabara de se casar com Tndaro, rei da Lacedemnia. Zeus se transformou em cisne e, fingindo-se perseguido por uma guia, refugiou-se junto da jovem rainha, que o acolheu em seus braos. Aproveitando-se dessa terna proteo, ele se uniu a ela e lhe deixou dois ovos de tamanho incomum. De um nasceram dois gmeos, Castor e Plux; do outro, duas irms, Clitemnestra e Helena. Essa unio permaneceu secreta, e Tndaro acreditou que tinha dado quatro filhos sua jovem esposa (POUZADOUX, 2001, p. 16).

Foram muitos os artistas que retrataram Leda e o Cisne, como Leonardo da Vinci, Tintoretto, Giovanni Boldini, Matisse, Czanne e tantos outros. Apesar da pluralidade iconogrfica suscitada pelo tema, atravs do tempo e de diferentes momentos artsticos, o destaque para trs obras, a partir das quais – Figuras 1, 2 e 3, todas de mesmo ttulo: Leda e o cisnesero salientados apenas alguns aspectos para, a partir deles, observarmos, no item subsequente, a pintura feita por Eduardo Berliner. Na obra do francs Albert-Ernest Carrier-Belleuse (1824 -1887), escultor francs – Figura 1 – temos ainda muito da gestualidade e dos padres clssicos da representao. Na tela de Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), pintor brasileiro – Figura 2 – a dinmica intensa tanto na espacialidade, quanto nos aspectos pictricos, e nos revela, em sua figurao, o carter ertico da lenda. Em A Leda e o Cisne de Cy Twombly (1928-2011), artista norte-americano – Figura 3 –, nos deparamos com a pura intensidade com que se apresentam os aspectos grficos, entremeados por delicadas passagens cromticas.

 

Figura 1 – Leda e o Cisne (1870)

Albert-Ernest Carrier-Belleuse, terracota fundida, Altura (sem base): 14 1/2 pol. (36,8 cm), Metropolitan Museum of Art, NY.

 

 

Figura 2 Leda e o Cisne (1947)

Vicente do Rego Monteiro, leo sobre tela, 50 x 65 cm.

 

Figura 3 – Leda and the Swan (1962)

Cy Twombly, leo, lpis e crayon sobre tela, 190,5 x 200 cm. MoMA, NY.

 

Leda e o Cisne de Berliner

O erotismo um dos aspectos da vida interior do homem.

Georges Bataille

Figura 4 – Leda e o Cisne (2015)

Eduardo Berliner, leo sobre mdf, 170 x 170 cm.

 

 

Na pintura de fundo escuro, nota-se a vibrao de uma cena. As pinceladas so marcadas e vigorosas, geram movimento. As figuras, em tons mais claros, saltam em primeiro plano e tal contraste tambm gera certa movimentao. So ao todo – em princpio – quatro elementos que brotam do fundo escuro: uma figura humana feminina e trs cisnes; um deles de corpo inteiro, cujo bico invade a boca da figura humana, ao mesmo tempo em que segurado por ela pelo pescoo. Dos outros dois cisnes s se v a cabea no canto direito e inferior da tela, ambas surgindo de uma massa mais escura e densa. Na figura feminina, h o movimento compositivo das pinceladas, mas, ao mesmo tempo, nota-se a rigidez que beira figurao de um boneco. Na parte dos cabelos dessa figura, possvel enxergar tambm a cabea de mais um cisne, que, no caso, seria o quarto. Seguindo em observao por este ponto pelo fundo da tela, d para perceber a continuidade de seu corpo, sugerida pelas nuances disformes do plano escuro. Observando a parte inferior da pintura, na saia de Leda, possvel perceber as duas mos da figura se tocando pelas extremidades dos dedos, sendo a da direita uma espcie de rastro do processo pictrico, atestando o carter dbio, j que seria esta a mesma mo a segurar a figura de um dos cisnes pelo pescoo. O carter de dubiedade aparece, pelo menos, duas vezes em toda a pintura.

Um dos aspectos principais da lenda, intensamente explorado nos exemplos anteriores, o ertico. primeira vista, possvel atestar a ausncia de tal aspecto na verso de Berliner. Quando o artista fala sobre suas produes, recorrente a afirmao de que, ao sobrepor uma coisa outra, a pintura no mais sobre nenhuma delas, mas sobre uma terceira coisa.

Ainda assim, ao manter o ttulo, invariavelmente somos levados lenda e ao seu teor. Esse o ponto em que somos colocados num jogo com os sentidos, compreendendo e percebendo a pintura para alm de seu carter representativo, tal como diz Marcio Doctors ao compreender a produo do artista: Quando percebi que a questo de Eduardo Berliner na pintura era a radicalidade do visvel, entendi, ento, o que me atraa na sua obra: diante da realidade e do real no h recuo possvel. [...] a arte em potncia; no representa nada [...] (DOCTORS, 2015, s. p).

Retomando Ernesto Sousa, pelo menos nessa situao, como se o objeto no objetasse. No h aqui a representao do carter ertico, mas seu prprio teor. Na pintura de Berliner, Leda est vestida e de branco, mas, na face escura que percorre o fundo de toda a rea pictrica, constituda por pinceladas densas, vigorosas e agitadas, ela o prprio cisne, o cisne, por sua vez, Leda. Eles fundem-se na escurido da tela, no espao interdito da pintura. Nessa repetio do mito, na cena aparecem as crenas de uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos que ele narra so tidos como verdico (SIMONSEN, 1987, p. 6). Retornamos, ento, a um ponto do que j foi dito acerca da lenda e do mito, redimensionando-o para o que pulsa no caso de Leda e o Cisne, agora, segundo Bataille:

O erotismo , de forma geral, infrao regra dos interditos: uma atividade humana. Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade no deixa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia com horror, mas ao mesmo tempo o conserva (BATAILLE, 1987, p. 62).

Desse modo, o teor ertico no est representado, como no caso das verses da lenda de Monteiro e Carrier-Belleuse; ele o que se apresenta na vertigem e radicalidade dos gestos, na massa densa de tinta espalhada pela tela, na sensualidade de cada pincelada. Apresenta-se, ento, cada elemento, tomando de emprstimo o termo de Derrida (apud Deleuze), em seu aspecto figuralquando, mesmo no abrindo mo da figurao, como foi o caso na verso de Cy Twombly, ope-se ao figurativo (DELEUZE, 2007). Nesse sentido, a escassez de vida da figura humana, e do mesmo modo no cisne negro, revela o ponto mximo do ertico, segundo Bataille, a prpria morte na fuso com o outro, j que O sentido ltimo do erotismo a fuso, a supresso do limite (BATAILLE, 1987, p. 85).

 

 

 

Consideraes finais

 

Qual a voz da pintura? Tudo o que nos atravessa, depreendendo de seu campo e, simultaneamente, convergindo para ele. Esta a sua voz e ela, entre outras nuances, compe a esfera da linguagem de uma cultura, ainda que esta se perceba como sendo da escrita, nos movimentos mais e menos sutis da vida. O fato que os aspectos da oralidade e da escrita coabitam e, em nveis distintos, alteram-se mutuamente, num processo contnuo de transformao nas qualidades de ambos. Isso tudo pode ser invisvel.

Neste estudo, ainda que de modo incipiente, tratou-se de compreender aspectos da oralidade pela via da pintura e isso nos indica a possibilidade de ampliao do campo desses estudos. Ao mesmo tempo, ampliaram-se tambm as possibilidades de recepo, compreenso e anlise do campo pictrico.

Embora tenhamos considerado uma pintura de Berliner em especfico, notamos que, em sua produo como todo, o artista retrata situaes aparentemente banais; no entanto, suas configuraes – paleta cromtica, aspectos gestuais, espacialidade, sobreposies e justaposies – apresentam a radicalidade com que seus temas nos so apresentados, desvelando o aspecto vertiginoso e limtrofe. Em suas pinturas possvel observar estruturas que se repetem, que se sobrepem, numa formulao visual mais agregrativa do que analtica (ONG, 1998). como se aquilo que sabemos se intensificasse (ou entrasse em xeque) na contundncia que ganha ao tornar-se pintura, seja com golpes sutis ou no de presena, jogando com o que pensvamos ter apreendido do mundo at ento.

Nas pginas finais de A letra e a voz, Paul Zumthor fala sobre a necessidade da quebra do ciclo hegemnico que a literatura passa a exercer na era clssica, primeiro na Europa e depois na Amrica, servindo ao Estado. Contrape essa situao ao papel do texto potico medieval como tendo sido til (ZUMTHOR, 1993). Finalizo com suas palavras, compreendendo a equivalncia da expresso discurso literrio como correspondente pintura, assim como as demais formas de arte, quando diz que nada impedir o discurso literrio, ainda que contra os sujeitos que o proferem, de visar a uma totalidade, e esta, o mais das vezes, de ser recuperada e identificada a uma Ordem (ZUMTHOR, 1993, p. 284).

 

Referncias

 

BATAILLE, Georges. O erotismo. Traduo Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&M Editores, 1987.

 

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In: Questes de literatura e de esttica: a teoria do romance. Traduo Aurora Farnoni Bernadini et al. So Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 397-428.

 

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a reinveno de si. Traduo Dorothe Bruchard. So Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Traduo lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.

DELEUZE, Gilles. Lgica da sensao. Traduo Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

 

DOCTORS, Marcio. Eduardo Berliner | A presena da ausncia. Rio de Janeiro: Site da Galeria Casa Tringulo, 2015. Disponvel em: https://www.casatriangulo.com/pt/artista/9/eduardo-berliner/texto/137/a-presenca-da-ausencia-marcio-doctors/ Acesso em: 13 ago. 2020.

 

ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologizao da palavra. Traduo Enid Abreu Dobrnszky. Campinas: Papirus, 1998.

 

POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

SIMONSEN, Michele. O conto popular. Traduo Lus Claudio de Castro e Costa. So Paulo: Martins Fontes, 1987.

 

SOUSA, Ernesto de. Oralidade, futuro da arte? e outros textos. So Paulo: Escrituras Editora, 2011. p. 23-42.

 

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Traduo Amlio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

_________. Performance, recepo, leitura. Traduo Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Nayf, 2007.

 

 

Vdeos

 

ARTE! Brasileiros - Eduardo Berliner fala sobre Corpo em Muda. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=6DFgwbCWBZc Acesso em: 9 ago. 2020.

 

Trecho do programa de tv sobre arte contempornea, CATLOGO, de Marcos Ribeiro, disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 9 ago. 2020.

 

 

Imagens

 

Figura 1 Leda e o Cisne - escultura da coleo do Metropolitan Museum of Art NY. Disponvel em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/206819 . Acesso em: 8 ago. 2020.

 

Figura 2 LEDA e o Cisne. In: ENCICLOPDIA Ita Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. So Paulo: Ita Cultural, 2020. Disponvel em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2506/leda-e-o-cisne. Acesso em: 8 ago. 2020. Verbete da Enciclopdia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

 

Figura 3 Leda e o Cisne de Cy Twombly. Disponvel em: https://www.moma.org/collection/works/80083 Acesso em: 10 ago. 2020.

 

Figura 4 A imagem da pintura do artista Eduardo Berliner est em seu portflio, publicizado pela Casa Tringulo, galeria de arte que o representa. O material est disponvel em: https://www.casatriangulo.com/media/pdf/EB_portfolio2019.pdf Acesso em: 10 ago. 2020.

 

 

[Recebido: 15 ago 2020 – Aceito: 15 out 2020]

 

 


 

Midiartivismo em Tempos de pipa: msica, poesia e arte a favor do ativismos social

 

 

Mediartivism in Tempo de pipa: music, poetry and art as social activism

 

 

Ricardo Oliveira de Freitas[57]

 

 

Resumo: O texto apresenta discusso terica e conceitual acerca do fenmeno do midiartivismo, um neologismo formado pelas palavras mdia, arte e ativismo, que pode ser traduzido como qualquer ao ou iniciativa que faz uso de expresses em arte e recursos de mdia a favor de uma causa, sempre social e poltica, quando expe problemas e prioridades de determinado grupo ou comunidade. Para tanto, realiza uma leitura crtica da narrativa audiovisual e potica, Tempo de Pipa, de Breno Silva, integrante de coletivos de arte e mdia atuantes na periferia de Salvador, Bahia. O videoclipe ilustrativo das aes midiartivistas e insurgentes que eclodem nas muitas periferias pelo Brasil afora, resultantes da participao de diversos artistas intimamente ligados a coletivos artsticos criados nos ltimos anos, alm de ser fruto do trabalho colaborativo e do associativismo que integra artistas, eles prprios, marcados por traos e recortes de minoridade e pelo comprometimento com produes contra-hegemnicas que inspiram resistncia, dissidncia e transformao.

Palavras-chave: Midiartivismo; Coletivos; Tempo de Pipa.

 

 

Abstract: This paper aims to present a theoretical and conceptual discussion about the phenomenon of midiartivism, a neologism formed by the words media, art and activism, which can be translated as any action or initiative that uses expressions in art and media resources in favor of a cause, always social and political, when it exposes problems and priorities of a certain group or community. For this reason, the paper performs a critical reading of the audiovisual and poetic narrative, Tempo de Pipa, by Breno Silva, a member of art and media collectives working on the outskirts of Salvador, Bahia. The video is illustrative of a midiartivist action, since it is a product resulting from the participation of several artists closely linked to artistic collectives created in recent years in the most diverse peripheries throughout Brazil, in addition to being the result of the collaborative work and the associativism that integrates artists, themselves, marked by minority traces and by their commitment to against hegemonic productions that inspire resistance, insurgence, dissent and transformation.

Keywords: Midiartivism; Collectivs; Tempo de Pipa.

 

 

 

Introduo

 

da boca pra fora reproduzo minha viso

de fora pra dentro nem sempre quem bate esquece

a morte aqui viva

e o otimismo a ltima coisa que aparece[58]

(SILVA, 2020).

 

Em julho de 2020, foi lanado o videoclipe do rap msica-poesia Tempo de Pipa, de Breno Silva[59]. Seria mais uma das muitas novas produes que alimentam o panorama musical baiano, no fosse o fato de tanto a msica como o videoclipe terem sido produzidos atravs daquilo que tem tomado corpo entre integrantes de grupos e comunidades desprivilegiadas no Brasil nos ltimos anos: o trabalho colaborativo, o associativismo, a arte e a mdia a favor da causa social e poltica feitas pelas mos de muitos sujeitos.

Tempo de Pipa resultado da participao de diversos artistas intimamente ligados a coletivos artsticos, tais como o selo Balanagulha, o Coletivo P Descalo e o Corvo Vermelho Produes, que fazem a produo executiva e a distribuio do trabalho. A prpria constituio do produto caracterstica da ao de coletivos. Tempo de Pipa composto pelas vozes de Breno Silva e Sued Nunes; pela poesia de Breno Silva; pela fotografia de Gabriel Moreno, Jomar Fonseca e Thiancle Carvalho; pela montagem de Thiancle Carvalho e pela produo do mesmo Breno Silva e Marvin Pereira.

Meu interesse pelo videoclipe deve-se ao fato de ser produto resultante do trabalho coletivo, isto , ser fruto do fenmeno de proliferao de coletivos, de grupos de artistas ou de artistas individuais que utilizam recursos de mdia e expresses em arte para exporem suas causas, tornando pblicas suas demandas, seus problemas e suas prioridades, quando constroem narrativas contra-hegemnicas sobre si.

Tempo de Pipa tambm ilustrativo da importncia dos coletivos, do trabalho colaborativo, dentro de um projeto de produzir midiartivismo, que vem criando frutos a partir de 2010, em Sussuarana, bairro da periferia de Salvador; num primeiro momento, com a criao do coletivo Mdia tnica, e, logo depois, com o surgimento do coletivo Sarau da Ona, desfocando a ateno sobre o lcus tradicional de produo de cultura e arte na cidade (Orla e Centro) para a regio da Pennsula, periferia de Salvador.

O texto ora apresentado, fruto da pesquisa que venho desenvolvendo desde 2017 sobre midiartivismo, presta-se a contribuir para uma discusso terica e conceitual acerca do fenmeno, a partir da leitura crtica da narrativa audiovisual e potica de Tempo de Pipa. Para tanto, sigo o que foi estabelecido por Penafria (2009), ao assumir que, aqui, no fao uma anlise audiovisual, mesmo que esse tipo de metodologia aparea como elemento de apoio leitura crtica e discusso terica e conceitual, que o que realmente veremos.

 

 

Midiartivismo: arte e a mdia a favor do ativismo social

 

Midiartivismo qualquer ao ou iniciativa que faz uso de expresses em arte e recursos de mdia a favor de uma causa. O termo um neologismo formado pelas palavras mdia, arte e ativismo, que, de modo geral, traduz toda produo em arte que utiliza recursos de mdia, a fim de tornar pblica uma ou muitas questes de interesse de determinado grupo ou comunidade – quando fala sociedade e aos seus dirigentes. Por isso, o midiartivismo tambm pode ser entendido como uma expresso poltica que toma formas artsticas e miditicas; ou, ainda, uma expresso artstica e miditica que toma forma como ao poltica.

Para Rui Mouro, arte e o ativismo possuem caractersticas distintas. Ao passo que arte da ordem do simblico, o ativismo da ordem da realidade – j que intervm, mesmo que atravs de aes simblicas, diretamente, na vida, na existncia. Ao passo que a arte se constri atravs de aes individuais, devido preocupao com as questes relativas aos aspectos da autoria, o ativismo sempre uma ao coletiva, feita por muitas mos, mentes, corpos e vozes – pois, se a arte reinterpreta o mundo, o ativismo existe para transform-lo. Entretanto, como lembra o autor, h muitas zonas de convergncia, elos e traos de comunho entre uma e outra esfera, como quando tanto a arte como o ativismo se posicionam no mundo sonhando com outros mundos (MOURO, 2015, p. 54).

Isto , ambos se afirmam segundo uma prxis to idealista quanto idealizada, criando representaes que na sua exposio pblica pretendem reverberaes exteriores ao que efetivamente criam. Algumas dessas reverberaes, pela assumida interseo artstica/ativista, so j chamadas de artivistas (MOURO, 2005, p. 54).

A mdia, o terceiro elemento no trip do midiartivismo, participa, nesse jogo comparativo e dicotmico, como o elemento aglutinador das disparidades, ao romper e subverter com os limites entre um domnio e outro. Afinal, como lembra o mesmo Mouro (2015, p. 54):

Comeando por uma perspectiva alargada, do tipo holstico, que entre inclusive em aspetos semiolgicos, podemos desde logo desestruturar os argumentos categricos que separam as guas entre o domnio da arte e o domnio do ativismo, colocando questes como: Operando arte e ativismo com simbolismos, que fronteira separa o simblico que permanece apenas no simblico – se tal possvel – do simblico que intervm no real? No ser sempre a partir de intersubjetividades simblicas – via conceitos, imagens, palavras, objetos ou atos – que tanto procedemos compreenso e representao (incluindo artstica), como atuamos no real (incluindo o ativismo)? At que ponto as diferenas ao nvel das categorizaes culturais do simblico no derivam de meras convenes de posicionamento assumido e permitido em cada enquadramento definido num determinado momento e contexto? Enquadramento que sendo definido simultaneamente ao nvel individual e coletivo – categorias psicoculturais parte e resultado uma da outra –, consequentemente problematiza o que na criao artstica produo individual ou no ativismo se faz apenas pelo coletivo.

O artivismo tem sido, corriqueiramente, traduzido como as expresses que fazem uso do corpo como suporte para expressar ou comunicar, a depender da interpretao que se faz de determinada ao ativista. Como se concretiza atravs de performances, quase sempre efmeras e momentneas, o uso de recursos de mdia tem sido recorrente. Essas tecnologias (de informao e comunicao) servem tanto ao registro da iniciativa, ao manterem a imortalidade da ao e performance, como se prestam a elemento da obra em seus termos tcnicos, propriamente.

Apesar de tomar como objeto uma obra videogrfica, produzida a partir de uma poesia cantada, musicada e interpretada, considero que, Tempo de Pipa no menos uma ode ao corpo e performance; sendo, ele prprio, o vdeo, o corpo que performa e, por isso, mdia e multiarte.

que ns t sem sorte desde quando inventaram o termo,

ns inventa arte enquanto vive pra suportar o medo

que minha escrita desabafa, eu no minto

mas no diz tudo que penso, meu dio resumido

(SILVA, 2020).

O midiartivismo pode ser entendido como um conjunto de prticas que se afastam de modos clssicos do fazer poltico institucionalizado. No so coletivos formados a partir da comunho de ideologias, mas, to somente, das articulaes, negociaes, compartilhamentos, afinidades, do amor pela arte e por determinada causa. Ao produzirem arte crtica s clssicas representaes divulgadas pela poltica institucional, os coletivos e artistas midiartivistas redesenham as noes de poltica e de mercado.

um novo mercado que surge no bojo da ascenso dos grupos e comunidades subalternizadas e do fortalecimento dos novssimos movimentos sociais, expresso que tem sido utilizado para nomear recentes mobilizaes sociais e polticas com forte repercusso na mdia[60].

Tanto como os coletivos de arte, os novssimos movimentos sociais caracterizam-se pelas manifestaes autnomas e apartidrias e, por isso, assemelham-se experincia dos coletivos, no que confere autonomia a seus militantes (PEREZ; SOUZA, 2017).

Esse novo mercado tambm considera a efemeridade da obra e sua perpetuao atravs de uma obra de segunda mo, no mais das vezes, atravs do registro da ao ou performance.

No caso de Tempo de Pipa, como ocorre com a poesia e com a msica, de modo geral, a obra se perpetua atravs do videoclipe que compe uma outra obra – agora, acrescida de elementos visuais que participam do conjunto esttico e semitico constituintes da pauta tema central da obra basilar.

No caso especfico da ao poltica, o midiartivismo se afasta das formas institucionalizadas do fazer poltico ao promover encontros regidos menos por razes ideolgicas e mais pelo compartilhamento de emoes, sentimentos e prazeres estticos. A noo de nova forma de se fazer poltica, novos usos de novas e velhas mdias, novas expresses em arte e um novo mercado artstico e miditico aponta para a importncia do midiartivismo ao construir novos rumos para as experincias do sensvel.

Como arte interessada, o midiartivismo produz tticas conceituais, simblicas e estticas, numa perfeita combinao entre arte e pensamento[61]. Alm disso, o midiartivismo tem como qualidade o fato de agir no mbito da cultura. Por isso, correto afirmar que as prticas midiartivistas so sempre intervenes culturais, assim como prticas sociais comunicativas, elaboradas por artistas-ativistas[62].

 

 

Coletivos: o associativismo no uso das mdias radicais alternativas

 

Coletivos so grupos de pessoas que se renem, produzem e elaboram aes e pensamento em torno de um tema, criando um tipo de associativismo. O termo sempre autodesignativo e se caracteriza pelo fato de traduzir as novas formas de mobilizao, distantes das organizaes burocrticas e hierrquicas (PEREZ; SOUZA, 2017, p. 3). Essas mobilizaes so tanto sociais como culturais e artsticas e prezam pela multiplicidade de pautas, pela horizontalidade e pela participao antiautoritria, liberal, igualitria e progressista.

A presena em mdia outra caracterstica importante nas aes organizadas pelos coletivos. Como precisam expor suas causas junto esfera pblica poltica, a esfera de visibilidade miditica surge como importante, seno a principal, aliada.

Por isso, correto afirmar que o uso e abuso dos recursos de mdia uma ao ttica para ocupao da esfera pblica poltica a partir da participao em sua base ampliada, a mdia.

A criao de coletivos no um fenmeno novo, como veremos adiante. Entretanto, a emergncia desses grupos no atual cenrio brasileiro e, por que no dizer, global, tem uma particularidade: ela surge no bojo do debate sobre as identidades dissidentes e minoritrias, trazido na esteira da alavancada dos estudos tnico-raciais, de gnero, dos estudos da interseccionalidade como sistema de opresso, dos estudos queer, dos estudos culturais, dos estudos decoloniais, da ampliao do acesso s TICs (Tecnologias de Informao e Comunicao), do uso e abuso das mdias digitais, do expressivo mergulho das sociedades globais na rede mundial de computadores, do fortalecimento dos movimentos sociais, da ampliao do debate LGBTQIA+ na mdia, da ascenso das identidades no binrias, do combate ao racismo como condio elementar, da positivao dos guetos, das favelas, morros, cortios e terreiros, da criao dos novos e novssimos movimentos sociais. Como afirma Arturo Escobar (2005), esses estudos criam um espao enunciativo cujo ponto de coincidncia a problematizao da colonialidade em suas diferentes formas.

John Downing, em entrevista a Patrcia Cavalli, define mdia radical alternativa como caracterizada por tipos de mdias no convencionais. O autor credita s mdias no convencionais e alternativas o poder de transformar realidades polticas, econmicas e sociais. A mdia radical, ainda segundo ele, uma forma de democracia, j que a dignidade do cidado no s ter direito educao e sade, mas, tambm, arte e comunicao ou, ainda, mdia (CAVALLI, 2009). Nesses termos, Downing apresenta uma definio muito valiosa do que poder ser considerado uma mdia – definio essa que perpassa uma amplitude de suportes, veculos, expresses, sensibilidades e experincias estticas.

Mdia , entretanto, um conceito bastante amplo para Downing. No apenas o rdio, a televiso, o jornal e o cinema constituem o universo das mdias, mas tambm as canes populares, incluindo a a vitalidade da msica negra de vrios pases; a dana afro-americana; o grafite praticado pelas gangues de jovens, principalmente na cultura hip-hop norte-americana, na antiga Unio Sovitica e na Nigria; o vesturio (que ele chama de mdias txteis), sobretudo os trajes mais na Guatemala durante a ditadura militar, as arpilleras das mulheres chilenas durante o regime militar, as colchas sul-americanas usadas como comunicao clandestina, os broches e buttons de lapela; os adesivos de para-choques; o rock de garagem; o teatro popular, incluindo o teatro de rua de nosso Augasto Boal; [...] os filmes e vdeos populares e/ou polticos, incluindo a experincia da TV Maxabomba do Rio de Janeiro; a Internet radical; a tev comunitria e de acesso pblico; a culture-jamming (utilizao desviante dos smbolos culturais oficiais como oposio finalidade a que se destinam), etc. (MACHADO, 2002, p. 13).

Downing (2002) lembra que muitas mdias so alternativas. Sobretudo, no que no so controladas por blocos monolticos criados por grandes organizaes comprometidas com os interesses do capitalismo. Mas, para ser radical, preciso que se manifeste contra as foras de opresso, que permitam que seus usurios possam vislumbrar a liberdade e expressar suas ideias. Ela deve ser, sobretudo, combativa, no que se ope a um modelo hegemnico de produo. Por isso, a mdia radical alternativa sempre se diferir da mdia alternativa, pura e simplesmente, j que uma expresso de subverso, dissidncia, disseno, de questionamento e crtica ao status quo, s presses e construes hegemnicas. A mdia radical , pois, sempre contra-hegemnica.

Por hegemonia, entendo o proposto por Antonio Gramsci, quando penso o midiartivismo como expresso de arte e mdia a favor de causas contra-hegemnicas. Para Gramsci (2004), a hegemonia pode ser definida por um movimento poltico majoritrio, que preza pela manuteno do sistema capitalista e que organiza a sociedade em torno do domnio cultural e da liderana mantida atravs de rgos de informao e da cultura. A contra-hegemonia, por sua vez, seria a perspectiva oposta de futuro, que defende o engajamento das massas e a contestao pelas massas, ao invs da subordinao pura e simplesmente.

Nesses termos, o midiartivismo seria um conjunto de aes e iniciativas a favor das causas dos grupos e das comunidades no hegemnicas, minoritrias, subalternizadas, desprestigiadas, desprivilegiadas, desfavorecidas – o que nos remete, mais uma vez, ideia da alternatividade como proposta por Downing (2002).

A ideia de tornar pblicas causas, problemas e prioridades de determinado grupo ou comunidade coloca em cena a noo de esfera pblica poltica e de visibilidade miditica. Esfera pblica, como conceito proposto por Habermas (1984), o espao social da representao (pblica), que deve ser gerido pela argumentao, discurso, publicidade e privacidade e que funciona como mediador e lugar de conversa e influncia entre o Estado e a esfera privada. A definio do conceito ilustrativa da importncia da ocupao dessa esfera, que sempre poltica, j que lugar de visibilidade de demandas, da exposio de problemas e de prioridades. A esfera de visibilidade miditica assume, assim, o importante papel de tornar acessvel o debate pblico, funcionando como uma ponte entre sociedade civil, sistema poltico, cultura e poltica (MAIA, 2002).

 

 

A arte engajada e arte desinteressada

 

A participao de coletivos de arte e artistas na esfera pblica e de visibilidade miditica nos afasta da ideia da arte contemplativa, daquela arte que transmite emoes, mas que nada diz. Tambm permite questionar se h, de fato, uma arte que nada diz, que puramente contemplativa, mas, no necessariamente comunicativa, interpretativa. Nesse sentido, pode-se afirmar que toda arte, no que fala para fora de quem a produz, do artista, do autor, sempre marcada por traos de intencionalidade. Por isso, ouso mesmo dizer que todo fazer esttico, toda arte , por excelncia, poltica, j que est em constante dilogo com o mundo fora da obra. Por isso, sempre uma arte atuante (MOURO, 2015).

Ento sigo no contra-ataque dividindo

com quem soma

multiplicando os versos sem subtrair o que amo

fao jus aos que se foram e me inspiro em quem t chegando

(SILVA, 2020).

Essas produes no so inditas no cenrio brasileiro da arte e da mdia. Artistas e grupos de artistas integrantes de grupos e comunidades subalternizadas falam das suas prioridades desde h muito tempo, sem considerarmos a cultura popular como a cristalizao das manifestaes do povo sobre a totalidade das instncias que regem suas vidas. O samba, os grupos de escolas de samba, os nordestinos, o teatro popular etc. so exemplos. Na dcada de 1970, expresses mais conceituais de arte, com experincias mais incisivas de grupos de artistas produzindo artivismo com uso do corpo como suporte para a performance, vo dando forma ao que hoje reconhecemos como coletivos, ao ocuparem a cena miditica, o mainstream do espetculo, o showbusiness, a indstria cultural, mesmo quando eram alternativos, underground[63]. Mas, a peculiaridade dessas produes e iniciativas que elas ocorrem na esteira do fortalecimento dos movimentos sociais e identitrios e da paradoxal ameaa s democracias com a ascenso do conservadorismo promovido pela extrema-direita. Por isso, aliadas ao uso de expresses artsticas nas prticas polticas contemporneas, essas expresses, aes, iniciativas revelam-se crticas, questionadoras, expressivas, potentes, revoltosas e insurgentes.

Ao ser utilizada como recurso para promover o ativismo sempre social e, por isso, poltico, a arte alcana o patamar de arte interessada em oposio ideia de arte desinteressada, da arte que no quer dizer nada, da arte que fala por si, da arte pela arte. Por isso, mais uma vez, se transforma em arte engajada, em arte a favor de uma causa, por isso, uma arte poltica.

Parte dessas causas no diz respeito apenas ao que est fora da obra, fora da arte. Muitas vezes, a prpria expresso ou linguagem artstica a merecedora de reconhecimento. Afinal, muitas das expresses que emergem com os coletivos e artistas militantes so expresses, at ento, invisibilizadas. So artistas e coletivos que problematizam as prprias linguagens artsticas, muitas vezes, tradicionais, assim como as normas sobre ser e estar no mundo.

A utilizao de inmeras linguagens e plataformas para explicitar, comentar e expressar vises do mundo e de produzir pensamento crtico, multiplica o espectro do artivismo a partir do qual possvel intervir potica e performativamente e construir espaos de comunicao e de opinio no campo poltico – arte de rua, aes diretas, performances, vdeo-art, rdio, culture jamming, hacktivism, subvertising, arte urbana, manifestos e manifestaes ou desobedincia civil, entre outras. [...] Que conexes se buscam entre poticas e performances no espao pblico e no ciberespao? E de que modo o artivismo encontra no mundo digital um territrio amigvel para se tornar viral e simultaneamente para se construir como um arquivo de documentao performativa poltica? (RAPOSO, 2015, p. 5).

So expresses que falam das coisas das minorias, dos grupos e comunidades minoritrias, desprestigiados, desfavorecidas, desprivilegiadas, subalternizadas, que questionam as foras hegemnicas e tudo o que est includo dentro dessas foras: binarismos, naturalizaes, normatizaes relativas ao gnero, s sexualidades, raa, classe, s religiosidades, aos regionalismos. Por isso, sempre um movimento dissidente, insurgente, j que rompe, quebra com as normas, at ento, vigentes.

A incerteza a aliada mais sincera de quem luta pra viver do prprio sonho

O brao armado do Estado corrompe

Eles se alimentam do nosso sangue

(SILVA, 2020).

 

 

A arte e a mdia que educam

 

A prticas de midiartivismo tambm esto a favor do ensino e da aprendizagem, da transformao pela educao, pela arte educadora. A exposio de uma causa tambm pode ser interpretada com uma aula, como um compartilhamento de informao, mas, sobretudo, como processo de aprendizagem no qual competncias, habilidades, vises de mundo, comportamentos, crenas, conhecimentos ou valores so transmitidos. Por isso, o midiartivismo sempre uma militncia formativa e pedaggica, uma ao e uma prtica educativa.

O midiartivismo reorganiza as noes at ento concebidas de arte, das possibilidades de usos da mdia e, sobretudo, de mercado e poltica.

O artivismo se transforma em midiartivismo quando a ao e performance que, na maioria das vezes, somente existem enquanto esto sendo realizadas, passam a se materializar atravs do registro, quando passam a ser mediadas pelo uso de tecnologias de mdia (vdeos, fotografias, textos, udio). Nesse sentido, importante chamar a ateno para a importncia da legendagem das performances como orientadoras da fruio, do sensvel e da experincia esttica, fenmeno muito parecido com o que foi pensado por Walter Benjamin (2018) em relao legenda das fotografias.

Em Tempo de Pipa, a transformao da poesia e da msica em videoclipe tambm chama a ateno para o poder do vdeo de possibilitar a perenidade da obra e para as discusses em torno da traduo da obra como obra de segunda monta – momento em que o debate sobre o registro como elemento de interferncia na obra vem tona, questionando o status do registro nas performances como recurso de uma metalinguagem ou de uma arte de segunda ordem.

 

 

Tempo de Pipa: poesia musical videografada

 

No caso da msica, como em Tempo de Pipa, a letra a norteadora semiolgica do que se quer dizer, falar para o mundo. No diferentemente de outras expresses, para o caso da msica, as imagens, estticas ou em movimento, registros dos shows ou divulgadoras do trabalho, como no caso dos videoclipes e dos lbuns visuais, servem como construo semitica do que se quer anunciar. A favela e sua juventude com tudo o que tm de negativo e positivo: mazelas, tristezas, alegrias e criatividade.

H uma linguagem favelstica em Tempo de Pipa que, de certo modo, une a favela daqui, da Bahia, com as favelas de l, do Brasil. Faz parecer que favela uma coisa s, seja no Rio de Janeiro, seja em So Paulo, seja no Recife, seja em Salvador ou, ouso mesmo dizer, seja no mundo. Afinal, os mecanismos de excluso reservados aos grupos e comunidades desfavorecidas, no por caso, moradores de reas empobrecidas, so parte de um projeto poltico nacional, construdo no seio da cultura fundante do processo civilizatrio brasileiro. Mas, s faz parecer, j que, mesmo que haja uma comunho em termos dos problemas e prioridades e, por extenso, das causas, h especificidades mnimas e particulares na favela daqui que s dizem respeito favela daqui. Os traos de regionalismos tambm contribuem para dizer que essa favela que fala para o mundo a favela de c, da Bahia. Bota ta, faz mais falta do que baba[64]. Mas, na universalidade particular, traduzida pela escuta dos Racionais, e na recusa Bblia, tida como universalidade totalizadora, que o poeta diz ter entendido o que divino e humanidade.

minha quebrada foi batizada por nome de bicho

bicho esse que ns num v desde o prprio batismo

sussuarana veloz por instinto

mas os menino aprendeu a correr ouvindo zuada de tiro

ou da me que t gritando preocupada com o filho

e se cachorro latir de madrugada

tambm aviso

(SILVA, 2020).

Tempo de Pipa rap, msica-poesia-vdeo para ser ouvido, lido e visto[65].

O vdeo tem incio com uma cena em que a pipa est no cho, ou melhor, na laje, no cho da laje. Afinal, pra ser pipa, tem que subir na laje.

O vdeo tem quatro minutos e quarenta e oito segundos de durao.

A pipa costura o que est sendo cantado, declamado, dito. Ela somente subir no quarto e ltimo minuto do vdeo, quando fecha o videoclipe num enquadramento que toma o rolo de linha, a linha estendida pro cu e a pipa solta no ar no meio do casario de alvenaria sem reboco, com tijolos expostos e, ao longe, os conjuntos de apartamentos. A permanncia da pipa na laje , assim, o fio condutor da poesia.

Enquanto Breno vai preparando a sua subida, botanu a sua pipa no ar, o enredo vai se desenrolando. Ora na laje, ora nos becos, escadas e vielas.

O cenrio sempre Sussuarana. Breno fala de dentro da comunidade, a partir da comunidade. Ao fundo, ora floresta (morada da ona que deu nome ao bairro), ora casas de alvenaria, ora os conjuntos habitacionais, tipo os b ne ag – BNH, as cobi – COHAB e os conjuntos habitacionais das caixas e previdncias dos sindicatos de trabalhadores, os famosos ap – apartamentos, que se espalharam pelo Brasil nos anos de 1960 e 1970.

O cenrio do vdeo crtica social que combina imagem e poesia. Ouso dizer que mesmo a msica d um tom melanclico s rimas, fazendo parte dessa combinao. A pipa, nesse sentido, conduz a narrativa no somente atravs da imagem, mas, tambm, atravs da palavra.

Nesse sentido, Tempo de Pipa ilustrativo da iniciativa midiartivista, pois congrega as mais variadas formas e manifestaes e expresses artsticas em articulao com um produto audiovisual, portanto, miditico, promovendo aes absolutamente distanciadas das formas institucionalizadas do fazer poltico.

mdia e arte, midiarte, a favor das causas e das crticas sociais. arte protesto, no necessariamente panfletria, j que no instrumento de mera propagao de uma de uma ideologia, mas, sobretudo, manifestao.

A transformao da msica em videoclipe tambm chama a ateno para o poder do vdeo de possibilitar a perenidade da obra e a traduo da obra como obra de segunda monta – momento em que as discusses sobre o registro como elemento de interferncia na obra vm tona, questionando o status do registro nas performances como recurso de uma metalinguagem ou de uma arte de segunda ordem.

A distopia retratada tanto na letra como na msica (atravs da batida e do andamento lentos) e no vdeo (na conjuno entre cenrios, tomadas e planos) projeta um futuro descrente em bvia referncia ao afropessimismo como elemento conceitual marcador e interventor (SEXTON, 2016), recorrncia nos discursos sobre a condio de ser negro e negra no mundo. A rima em que Breno diz: bala perdida virou mais, mais que amigo, agora quase, quase, um ente querido, ilustrativa disso que parece apontar para a desesperana. Mas, a pipa que sobe no final do vdeo mostra outra atitude.

Sobre a pipa [...] quando a gente tem a pipa... tem aquela coisa mtica da infncia que poder voar. A gente deposita na pipa o que a gente no pode. A pipa pode fazer uma coisa que.... isso d uma ideia de liberdade, n? Poder subir e fazer o que a gente gosta, o que a gente deseja, o que a gente quer, o que a gente merece, entende? Ento, esse lance, n, essa coisa de subir muito mais ligada a isso, entendeu? Por que eu falo: e os pivete sabe que pra ser pipa, tem que subir na laje, sem esforo no tem dom, tem que ter coragem, entendeu? ento, nesse sentido, n? Sem esforo no te dom, sem fora de vontade, voc no vai pra lugar nenhum. a mesma coisa para colocar uma pipa no ar. Se voc no fizer esforo dela subir, ento... voc tambm no consegue colocar ela no ar (SILVA, 2020)[66].

            Tempo de Pipa, ao combinar cenas em preto e branco com cenas coloridas, d o tom do discurso que marcar produo audiovisual como oscilando entre a luta a favor da mudana e a constatao de que nada mudar. Parece pessimista, mas, no . Exemplo disso o fato de apresentar as lajes, os espaos acima e sobre os telhados. A cmera quase nunca est dentro de algum lugar. Seu lugar o espao aberto, o ar livre. As lajes e os espaos acima do telhado muito se assemelham ao desgnio da pipa: subir. No, necessariamente, para escapar do algo ou algum. Mas, to somente, para chegar ao alto, ao lugar de poder, de prestgio. A cmera, ao optar por tomadas de baixo para cima, refora a fora grandiosa de Breno e Sued, representantes da juventude negra e perifrica, que tomam a cena e que mesmo quando parecem cair, sobem. quase como o trecho da poesia que fala da tia que queria alho para temperar o dio, mas, acabou cortando cebola e transbordou em lgrima.

Tempo de Pipa faz isso bem, j que, como ao midiartivista, o vdeo-poesia-musical confere poder e visibilidade causa da coletividade organizada. Por isso, Tempo de Pipa funciona como mdia radical alternativa, aos moldes do defendido por Downing (2002) j que informa, comunica e constri discursos contra-hegemnicos.

 

O artista ativista Breno Silva (1) e a cantora Sued Nunes (2) em cenas do vdeo Tempo de Pipa

 

 

 

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xZlWWOmHwFw

 

 

Concluso

 

Grupos contra-hegemnicos, atravs das mais diversas estratgias discursivas e suportes, como as mdias, com poesia, msica e vdeo, promovem um tipo de mdia geral de pequena escala e sob muitas formas diferentes – que expressa uma viso alternativa s polticas, prioridades e perspectivas hegemnicas (DOWNING, 2002, p. 21).

Ao realizar produes que utilizam poesias, vozes, msicas, vdeos e vivncias para comunicar pautas, num tipo de esttica ativista e insurgente, os coletivos e artistas subvertem normas e iderios cristalizados sobre o que movimento social, arte e mdia.

A esttica da dissenso tambm a tica da resistncia, para usar termos caros a Rui Mouro (2015). uma esttica ativista e poltica. Por isso, o artivismo no se limita apenas s questes do mbito da poltica, mas, sobretudo, tica e s estticas.

Tempo de Pipa, por exemplo, ao fazer midiartivismo, produz, atravs do audiovisual e de toda a sorte de expresses de criatividade, esttica voltada tanto para o prazer da fruio e entretenimento como para o fazer poltico.

necessria ateno especial a esses novos movimentos e tipos de produo, frutos da contra conduta e da subverso dos que se munem de armas estticas para fazer ecoar suas vozes [...]. O advento da Internet intensifica essas novas configuraes polticas, mais libertrias e no menos eficientes, permitindo o surgimento de novas vozes, que incidem sobre a liberdade de novos corpos e subjetividades. Essa nova forma de fazer poltica [...] quase sempre considerada estranha e deslegitimada por quem somente acredita na maneira autoritria e burocrtica do fazer poltico (FREITAS, 2019, p. 258).

O midiartivismo quebra paradigmas e contribui para o aniquilamento dos discursos excludentes. mdia e arte que vm das quebradas para quebrar paradigmas e revelar a beleza do que foi considerado inspito por muito tempo, a partir da reiterao e perpetuao de discursos que encontravam respaldo nos meios de comunicao hegemnicos e nos sistemas institucionalizados clssicos da educao. o levante das dissidncias que no permitem que sejam silenciadas e se nutrem de estratgias para vencer o apagamento, a marginalizao e o alijamento. a arte que extrapola os limites do quadro, da moldura e at mesmo das paredes do museu [...] para se instalar na realidade absoluta, na vida cotidiana (FREITAS, 2007, p. 86). o artivismo que se conecta com seus pblicos. o midiartivismo a favor da transformao, que reestrutura relaes de poder e reorganiza as esferas de poder, privilgio e prestgio.

esse poema no tem fim

eterno, eu digo

(SILVA, 2020)

 

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[Recebido: 11 ago 2020 – Aceito: 19 set 2020]


 

Pontes sobre o rio Capiberibe e o mar

 

 

Brigdes over the Capiberibe river and the sea

 

 

Ana Cristina Marinho[67]

https://orcid.org/0000-0003-2645-6113

 

 

 

Resumo: O artigo busca construir uma cartografia de duas editoras/livrarias que publicavam/comercializavam colees de livros populares em finais do sculo XIX e incio do XX: a Livraria Portugueza, localizada na cidade do Porto, e a Livraria Contempornea, localizada na cidade de Recife, Pernambuco. Nesse mapa, encontramos dois comerciantes portugueses e um terceiro personagem, o poeta, editor e comerciante de livros Leandro Gomes de Barros, que viveu na cidade de Recife e manteve, nas duas primeiras dcadas do XX, uma intensa atividade ligada ao livro e leitura, caracterizando-se como um agente literrio. O encontro desses trs personagens possibilita discusses sobre a escrita, a leitura e a comercializao de livros no incio do sculo XX, no Brasil e em Portugal. O percurso terico foi norteado por discusses sobre a histria do livro e da leitura encontradas em Abreu (1999), Chartier (1997), Anselmo (1991) e Vencio (2005), alm de estudos sobre cartografias literrias de Fernandes (2012), Cury (2007), Harley (1990) e Martin-Barbero (2004).

Palavras-chave: Leandro Gomes de Barros; Livraria Contemporanea; Livraria Portugueza; Edies populares.

 

 

Abstract: The article seeks to build a cartography of two publishers/bookstores that published/marketed collections of popular books in the late 19th and early 20th centuries: Livraria Portugueza, located in the city of Porto, and Livraria Contempornea, located in the city of Recife - Pernambuco. On this map, we find two Portuguese traders and a third character, the poet, editor, and book trader Leandro Gomes de Barros, who lived in the city of Recife and maintained, in the first two decades of the 20th, an intense activity linked to books and reading, being characterized as a literary agent. The meeting of these three characters allows discussions about writing, reading, and selling books in the early 20th century, in Brazil and Portugal. The journey was guided by discussions about the history of books and reading (Abreu, 1999; Chartier, 1997; Anselmo, 1991; Vencio, 2005), in addition to studies on literary cartography (Fernandes, 2012; Maria Zilda Cury, 2007; Harley, 1990; Martin-Barbero, 2004).

Key-Words: Leandro Gomes de Barros; Livraria Contemporanea; Livraria Portugueza; Popular Editions.

 

 

 

 

 

Neste texto, busco refazer os caminhos de uma editora do Porto, a Livraria Portugueza, que publicava livros de cordel e os enviava para o Brasil, j em finais do sculo XIX e incio do sculo XX. Nessa mesma poca, criava-se e consolidava-se no Brasil a literatura de folhetos, diferente em vrios aspectos da literatura de cordel portuguesa. As obras impressas pelo editor portugus Joaquim Maria da Costa, e enviadas a Pernambuco, eram vendidas na Livraria Contemporanea, de Ramiro Moreira da Costa, casa frequentada pela elite pernambucana e tambm pelo poeta Leandro Gomes de Barros. Seguirei os passos de dois editores de livros populares e um proprietrio de livraria que exerciam suas atividades no perodo que vai de 1883 (data mais antiga de publicao de obras pela Livraria Portugueza a que tive acesso) a 1918 (ano da morte de Leandro Gomes de Barros).

Quando iniciei a pesquisa nos arquivos da Biblioteca Nacional do Porto, no esperava me encontrar com o poeta Leandro Gomes de Barros, antigo conhecido dos estudos sobre tradies orais e populares que fazem parte da minha trajetria como pesquisadora e professora de literatura na Universidade Federal da Paraba.[68] Inquietavam-me, naquele ano de 2013, as discusses veiculadas em jornais e revistas, e tambm em ambientes de discusso acadmica (congressos, seminrios) sobre os novos escritores de literatura brasileira que circulavam em diferentes espaos, participavam de feiras literrias e estabeleciam relaes diferenciadas com as editoras, o mercado, o pblico e a crtica.

Para Maria Zilda Cury, possvel falar em novas cartografias literrias, nesses primeiros anos do sculo XXI, pois os escritores assumem a postura de agentes culturais, transitando por espaos que no o estritamente literrio, o que, inevitavelmente, interfere na escrita de seus textos (CURY, 2007, p. 7). Pensando na literatura de folhetos no Brasil, chamada por Mrcia Abreu de um gnero editorial e no apenas um gnero literrio (ABREU, 1999), essas novas geografias narrativas no me pareciam to novas assim. Os poetas populares, nas primeiras dcadas do sculo XX, eram agentes culturais, viajantes performticos, sobreviventes do verso e da lira.

No estudo sobre a Tipografia So Francisco (1940-1972), em Juazeiro do Norte- CE, Rosilene Melo evidencia o quanto a histria das tipografias populares est ligada s estratgias de sobrevivncia criadas pelos poetas e editores, em um mercado que sofre tanto influncias econmicas quanto religiosas, familiares e afetivas (MELO, 2010). A literatura de folhetos no Brasil acompanhou os caminhos da estrada de ferro, do algodo e da borracha, mas tambm os caminhos da f, do misticismo, do encantamento pelo verso que transformaram pequenas cidades, como Juazeiro do Norte, em grandes centros de distribuio de folhetos de cordel.

No Nordeste brasileiro surgiram, ainda nas quatro primeiras dcadas do sculo XX, tipografias em cidades como Areia, Itabaiana, Guarabira e Catol do Rocha-PB, Novas Russas-CE e Currais Novos-RN. Em Juazeiro do Norte, a Tipografia So Francisco, posteriormente Lira Nordestina, se configurou como a maior editora popular, sobrevivendo durante 30 anos e agregando em torno da produo e venda de folhetos poetas, cantadores, danadores de coco e reisado, praticantes de umbanda e candombl, astrlogos, curandeiros, rezadores, artistas da madeira, da palha, do barro.

Se fosse possvel desenhar novos mapas culturais no Brasil, a partir da trajetria de poetas e vendedores de folhetos, as cidades de Belm (Editora Guajarina), Juazeiro do Norte (Tipografia So Francisco), Campina Grande (Tipografia Estrela da poesia) e So Paulo (Editora Preldio) estariam muito mais prximas da cidade de Recife, lugar escolhido por Leandro Gomes de Barros para editar seus folhetos, do que os estados vizinhos do Rio Grande do Norte e Alagoas.

            A construo de territrios se d a partir de interesses comerciais, polticos, mas tambm simblicos, afetivos, emocionais. As fronteiras geogrficas ou polticas no podem ser referncias para a delimitao de territrios culturais. Hoffman (1999) considera a desterritorializao como marca dominante nas produes literrias da ltima dcada do sculo XX. Personagens em trnsito, poetas transformados em agentes culturais, configuram o que a autora chama de novos nmades. Pensando na experincia dos poetas e editores da literatura de folhetos no Brasil, essas vivncias nmades no representam nenhuma novidade, como pudemos perceber ao longo da pesquisa.

A abordagem cartogrfica, que aqui busco seguir, toma a historiografia no como uma sucesso de fatos, eventos, e sim como uma justaposio de textos, mapas, enfatizando o processo de construo das relaes de poder presente nos textos (FERNANDES, 2012). Para Frederico Fernandes,

Enquanto a abordagem sincrnica culturalista guia-se pela tenso dicotmica, na qual os vetores ideolgicos de formao cultural so intensificados, a abordagem cartogrfica uma anlise descritiva e interventiva que considera os efeitos de subjetividade dos agentes envolvidos na performance (FERNANDES, 2012, p. 151).

Essa anlise descritiva e interventiva busca interligar sujeitos e objetos, na tentativa de construir novos mapas da cultura pois, segundo Martin-Barbero (2004), a cartografia no precisa representar apenas fronteiras, pode representar encontros, relaes, intercmbios. E nesse sentido do encontro e dos intercmbios que caminha a minha escrita, numa tentativa de ligar a cidade do Porto cidade do Recife, a vida de livreiros, editores e tipgrafos dessas duas cidades, ao percurso de poetas populares. Trs sujeitos se cruzam nessa histria: Joaquim Maria da Costa, editor da Livraria Portugueza, na cidade do Porto; Ramiro Moreira da Costa, portugus emigrado para Recife, proprietrio da Livraria Contempornea e Leandro Gomes de Barros, poeta e editor de folhetos, um dos responsveis pela criao do gnero literatura de cordel no Brasil.

 

 

Um Costa de l e outro de c

           

A Editora de Joaquim Maria da Costa, sucessor dos Machado & Costa, estava localizada no Largo dos Loyos, 55-56, Porto. A Livraria Portugueza vendia colees de entremezes, fados, contos populares, lindos livrinhos em versos amorosos e cartas amorosas em prosa e verso. Em um folheto de 1902 aparece o seguinte anncio: Linda Colleco de livrinhos amorosos; Linda Colleco de Oraculos; Livrinhos de Canticos Religiosos; Colleco de contos modernos; Linda Colleco de testamentos. Em 1903, a editora passou a vender tambm Almanachs e Reportorios Saragoanos para o anno e Histrias e contos recreativos para o povo. Publicava ainda a Coleco de fados modernos (1893 a 1897) que teve em torno de 16 nmeros. Na quarta-capa do folheto Brados de Comiserao a favor das almas do purgatrio (s/d) encontramos a seguinte indicao das atividades desenvolvidas pela Livraria Portugueza:

Neste estabelecimento h um variadssimo sortimento de compndios adoptados em todos os lyceus, collegios, aulas e escolas oficiais e particulares do reino; livros de missa e semana santa, desde o preo de 160 reis at 9$000 reis; obras msticas aprovadas pelas autoridades eclesisticas; literatura histrica e clssica, de direito e medicina; uma abundante colleco de romances dos melhores autores e a preos reduzidos; bom sortido de obras recreativas e populares; obras theatraes; dramas, comedias, scenas e poesias cmicas; livros em branco, cartilhas, pautas, traslados, almanachs e reportrios de todos os autores, histrias e contos em prosa e verso para o povo; Alphabetos, taboadas, methodo faclimo, catecismo, Manual Enciclophedico; impressos para as escolas e professores de instruo primaria. Grande desconto para revender. Pedidos a Joaquim Maria da Costa, com direo acima mencionada.

Alm dos cordis publicados pela Livraria Portugueza, tive acesso a textos e colees de histrias populares publicados por outros casas como a Typographia de Antonio Alvarez Ribeiro (Officina de Antonio Alvarez Ribeiro; Tipografia da viva Alvarez Ribeiro & Filhos); o Bazar Feniano - Livraria de Antonio da Silva Santos & C, que depois passa para Diamantino da Silva Cardoso, j no sculo XX; a Livraria Chardron de Lello & Irmo; a Livraria Lello e irmo; a Typographia Gandra e Filhos; a Livraria de J. E. da Cruz Coutinho e a Livraria Civilizao, de Eduardo da Costa Santos. O pesquisador Arnaldo Saraiva tambm menciona, no seu livro Folhetos de cordel e outros da minha coleo, outras 16 livrarias/tipografias/oficinas da cidade do Porto que editavam cordis (SARAIVA, 2006).

Selecionei uma coleo editada por Ramiro Moreira da Costa para acompanhar o percurso desses livros: a Coleo de Histria Populares. Os livros dessa coleo eram impressos na Typographia a vapor de Arthur Jos de Souza & Irmo, Largo de S. Domingos, 66-67 (ou 74-76). Cada ttulo da coleo era vendido, em 1904, por 60, 80 ou 100 reis. Segundo Giselle Martins Venncio,

As colees criadas pelas casas editoriais europeias podem ser consideradas o principal instrumento de afirmao do poder dos editores marcando uma verdadeira ruptura no processo de publicao de livros desenvolvido at ento. A criao de colees populares foi, justamente, o que permitiu aos editores o estabelecimento de um comando editorial atravs do qual eles passaram a estabelecer as normas do mercado (VENNCIO, 2005, p. 5).

No percurso feito pela pesquisadora, trilhando os caminhos da coleo Biblioteca do Povo e das Escolas, e que envolve trs livreiros/editores – David Corazzi, Lisboa; Francisco Alves, Rio de Janeiro e Gualter Rodrigues, Cear –, possvel conhecer aspectos da histria dos livros, desvendando, pelo menos em parte, a dinmica cultural que se estabelecia entre a Europa e as diversas regies do Brasil no sculo XIX (VENNCIO, 2005, p. 5). Seguindo esse mesmo caminho, tento traar uma cartografia da produo e comercializao de folhetos de cordel, de finais do sculo XIX at as primeiras duas dcadas do sculo XX, levada pela mo do poeta Leandro Gomes de Barros. Mas, antes, sigo a refazer o percurso que me trouxe de volta para o Brasil.

Tive acesso a 29 ttulos da Coleo de Histrias Populares, o mais antigo deles datado de 1891. Ttulos como as verdadeiras histrias da Princesa Magalona, da Imperatriz Porcina, de Joo de Calais, do infante D. Pedro de Portugal, do Imperador Carlos Magno, passando pela Verdadeira Malicia e maldade das mulheres e a malicia dos homens (1901) e chegando Histria curiosa e engraada do Preto e o Bugio Ambos no Matto, discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil e acrescentado com o engraado Tango Americano e O velho, o rapaz e o burro e as canonetas – o sonho (1897).

A editora tambm publicava a Bibliotheca de Leituras Populares, que reunia obras mais voltadas para histrias de crimes, venturas e desventuras amorosas, milagres de santos, monlogos para amadores dramticos, entre outros ttulos. E ainda, segundo informaes de Arnaldo Saraiva, a coleo de contos populares portugueses – 16 ttulos publicados desde o ano de 1885.

Joaquim Maria da Costa, no folheto Breves noes de Histria Ingleza, escreve a seguinte advertncia:

Advertncia do editor aos leitores dos livrinhos

Quando me resolvi publicar a Bibliotheca da Histria de todos os povos no tive em mira lucros a auferir de tal publicao, mas to somente divulgar o mais possvel pelas classes menos abastadas, que no conhecem as lnguas estrangeiras umas breves noes, ou pequeno resumo da Histria das grandes naes do mundo para instruo no s dos portugueses, mas dos filhos da outras naes que desejem aperfeioar-se no nosso idioma. Os portuguezes encontraro nesta amena leitura o conhecimento dos principaes factos dos povos que at hoje mal conheciam, e aos estrangeiros servir-lhe- de estmulo ao estudo quando desejem dedicarse lngua portuguesa, pois que ao mesmo tempo que se habilitam, pelo estudo, a uma lngua estranha, utilizam e recordam os feitos heroicos dos seus antepassados. Se o Editor desta interessante colleco de livrinhos uteis, poder conseguir o que intenta, julgar-se- bem pago do pequeno servio que julga prestar quelles que desejam instruir-se, preenchendo com esta publicao uma lacuna que desde h muito se sentia na literatura portuguesa. Porto, 1 de maro de 1903. O editor, Joaquim Maria da Costa.

Foi a partir dos anos 1845 que comearam a surgir as sries e colees populares em Portugal, destinadas ҈ vulgarizao de um modelo massificado da boa literatura, de conhecimentos teis ou de formas de comportamento social e moral (PINTO; MONTEIRO, 2013, p. 206). A abertura do mercado e a possibilidade de os editores ganharem dinheiro com a comercializao de obras parecia desagradar aos intelectuais e literatos, mas garantiu o sustento de muitas famlias e contribuiu para a profissionalizao desses mesmos trabalhadores.

Os livrinhos uteis que chegavam s classes menos abastadas atravessaram o mar e chegaram s mos de outro livreiro portugus. Nesse mesmo folheto de 1903 aparece a informao de venda das obras editadas na Livraria Portugueza para a ndia, frica, EUA (Califrnia) e Brasil. No Brasil o depsito geral de livros era a livraria do snr. Ramiro Moreira Costa & C, em Pernambuco.

E chego ao nosso segundo viajante, atraco no cais do porto, em Recife, e caminho at a rua 1 de Maro, onde estava localizada a Livraria Contemporanea de Ramiro Moreira da Costa. Em 1890, j aparecem notcias sobre caixas enviadas a Ramiro Costa em vapores que chegavam de Lisboa ao porto do Recife (Jornal A provncia, 21 de janeiro de 1890). A livraria vendia materiais para escritrio, instrumentos musicais, tinta e typos, brinquedos, impressos, ferragens, papel, livros, pratos de porcelana, pinturas de artistas franceses, charutos, imagens sacras, fotografias, mveis, bolsas escolares...

Sobre a vida movimentada do estabelecimento, do conta as seguintes notcias publicadas tambm no jornal A provncia:

- Exposio do retrato do grande chefe abolicionista e republicano cearence Joo Cordeiro, feito por Libanio Amaral (15 de maio de 1890);

- Exposio Peitoral de Cambar – quadro com a fotografia do suntuoso estabelecimento Agrico Industrial do Parque Pelotense [...] onde funciona a importante fbrica do precioso medicamento denominado Peitoral de Cambar (18 de janeiro de 1891);

- Exposio de um grande quadro das fotografias do atelier Frederico Ramosa (2 de junho de 1891);

- Anncio procura de professor para atuar no engenho da Gamelleira, tendo a livraria como local de contato (21 de janeiro de 1900).

            Chama a ateno uma exposio de um quadro de suntuoso estabelecimento que poderia funcionar para atrair compradores para um remdio que seria vendido, futuramente, no mesmo estabelecimento loja. A presena de anncios para a contratao de professores tambm evidencia o importante papel desempenhado pela livraria no campo da instruo e formao de novos leitores e leitoras.

Ramiro Moreira da Costa viveu 76 anos, entre idas e vinda a Portugal para cuidar da sade e dos negcios. Chegou ao Brasil em 1878, desembarcando no Maranho, onde foi comerciante durante algum tempo. Depois, em 1888, instalou a Livraria Contemporanea na cidade do Recife que passa, a partir de 1905, a aparecer nas notcias de jornal com o nome de Ramiro Moreira da Costa & Filho. Nesse perodo, o local, mais do que um ponto de venda, era um ponto de encontro de intelectuais, a exemplo do que acontecia no Rio de Janeiro, como demostram os estudos sobre livrarias, tipografias e editoras de Hallewell (1985), Abreu e Schapochnik (2005) e Venncio (2005), para citar apenas alguns nomes.

Ramiro Costa participou da vida cultural e de negcios da cidade do Recife. Foi suplente da comisso fiscal do Banco Popular, eleito em 1891; em 1900 possua 20 aes da Companhia Tethys de seguros martimos e terrestres; foi procurador do senhor Jos Gonalves Dias, proprietrio de fbrica de surragem, compra e venda de solla, sita a rua da Palma, n. 97 (A provncia, 16 de maio de 1900); fez parte da comisso de rbitros da Alfndega de Pernambuco para o fim de resolver sobre as questes que forem suscitadas acerca da classificao de mercadorias, na Classe 19 – Papel e suas aplicaes (A provncia, 14 de maro de 1901); juiz por devoo da tradicional festa do senhor Bom-Jesus do Bom-Fim a realizar-se no dia 01 de janeiro de 1906 na cidade de Olinda; acionista da Companhia Industrial Fiao e Tecidos de Goyanna, em 1906, negcio que passa a ser de um dos seus filhos; membro da Junta administrativa da Santa Casa de Misericrdia do Recife, 1916, e, por fim, integrante da Comisso Pro-Ptria criada em funo da situao melindrosa de Portugal diante da declarao de guerra feita pela Alemanha (A provncia, 20 de maro de 1916). Temos aqui apenas alguns exemplos da atuao de Ramiro Costa na cidade de Recife e tambm em Goyanna (atual Goiana-PE), nas duas primeiras dcadas do sculo XX.

Durante o velrio do seu filho, Eugenio de Almeida Costa, morto aos 36 anos, compareceram associaes religiosas, membros de associaes manicas, alto comercio, funcionrios pblicos estaduais e federais (A provncia, 09 de agosto de 1921). Talvez esse seja um bom resumo dos espaos ocupados pelo comerciante e da atuao do Costa de c, durante as cinco dcadas em que viveu na cidade do Recife.

 

E eis que surge o poeta

 

Construir uma cartografia de editores, impressores e livreiros das cidades do Porto e do Recife me levou a um encontro inusitado com o poeta Leandro Gomes de Barros, encontro este que terminou por me trazer de volta s questes que me inquietavam, naquele ano de 2013: sobre os novos escritores que circulavam em feiras e exposies, recebiam cachs para participarem de eventos culturais e acadmicos, chamados de verdadeiros agentes culturais. Seguindo os passos de Ramiro da Costa, atravs dos jornais disponveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, como descrito anteriormente, eis que me deparo com a seguinte notcia: Enviado pelo seu autor o sr. Leandro Gomes de Barros, recebemos ontem um exemplar de sua edio de versos sobre A Morte do dr. Jos Marianno. Gratos. (Jornal de Recife, 20 de junho de 1912).

Leandro Gomes Barros, assim como o Ramiro Moreira da Costa que comunicava ao Jornal as novidades que chegavam sua livraria, tambm anunciava suas novas produes. Em 16 de novembro de 1915, o mesmo jornal noticia um opsculo do poeta, tomando por tema a morte do D. Luiz Raymundo da Silva Brito, arcebispo de Olinda. No dia 31 de maio de 1916, temos a seguinte notcia:

 

Um protesto

Veio ontem ao nosso escritrio o sr. Leandro Gomes de Barros, autor de numerosos versos populares, tais como A vassourinha e tantos outros e declarou-nos protestar contra o sistema de alguns indivduos venderem livros de versos com o seu nome. Entre outros citou o nome do Sr. Simo Francisco Marques, que assim procedeu no Amazonas.

 

            Protestos semelhantes tambm foram feitos pelo poeta Gonalves Dias, como comprovam os estudos de Marisa Lajolo: o poeta se queixava na imprensa sobre a distribuio no Brasil de exemplares da edio de seus poemas intitulados Contos, publicados em 1857 pelo tipografo/editor alemo Brockhaus, pois o contrato com a editora s permitia a distribuio do livro na Europa (LAJOLO, 2005).

            A participao de Leandro no mundo das editoras e livrarias no se restringia edio e venda de folhetos. possvel afirmar que ele administrava, com a ajuda da filha Rachel, que assinava muitos dos seus folhetos como uma forma de garantir a originalidade da cpia, um completo sistema de produo e comercializao. O poeta se inseria nas brechas do sistema (capitalista, globalizado) que envolvia, alm da escrita, a edio, publicao e venda de livros; a participao nas redes de socializao da cidade de Recife e de outras cidades; o envio de notas para os jornais e as viagens constantes s cidades de Juazeiro do Norte-CE, Paraba e Rio Grande do Norte, alm de cidades do interior dos estados de Pernambuco. A imagem do poeta popular com sua mala de livros debaixo do brao, vendendo em feiras de pequenas cidades do serto, no parece compor, por completo, a figura do Leandro Gomes de Barros que venho tentando desenhar.

            Em 23 de agosto de 1917, o poeta enviou ao jornal A provncia o folheto O po e a batata. Essa primeira notcia que encontrei me conduziu a uma srie de outras notas publicadas em jornais de Pernambuco e do Cear. No jornal O rebate (Juazeiro do Norte), de 28 de novembro de 1909, publica o cordel Lucta do diabo com Antonio Silvino. A partir dessa publicao, localizei outros 6 poemas, todos publicados numa seo intitulada Lyra Popular:

 

- A creao do mundo, em 19 de dezembro de 1909;

- As capas de uma viva, em 16 de janeiro de 1910;

- Ciume de duas noivas, em 23 de janeiro de 1910;

- O padre de Joazeiro, em 06 de fevereiro de 1910;

- A proclamao dos banhos, em 20 de fevereiro de 1910;

- As lagrimas de Antonio Silvino por Tempestade, em 6 de maro de 1910.

 

            O folheto Lucta do diabo com Antonio Silvino, publicado no jornal com um total de 26 estrofes, est disponvel na Coleo Cordel, da Fundao Casa de Rui Barbosa, numa verso com 40 estrofes. Nesse folheto tambm consta o poema Vingana dum filho. Foi publicado ainda nessa coleo o folheto As lagrimas de Antonio Silvino por Tempestade.

            Sobre o jornal O Rebate sabemos que foi impresso em Juazeiro do Norte-CE entre os anos de 1909 e 1911, com edies semanais, geralmente aos domingos. Fundado pelo padre Joaquim de Alencar Peixoto, tambm diretor e redator-chefe do jornal, tinha como propsitos contribuir para a autonomia poltica de Juazeiro, naquela poca subordinado ao Crato, e defender o Padre Ccero, um dos principais motivadores e apoiadores do peridico. Assis Daniel Gomes analisa os poemas publicados na seo Lyra Popular, nos anos de 1909 e 1910, e enumera os principais temas e poetas que ocuparam as pginas do jornal (GOMES, 2013). Leandro Gomes de Barros estava entre os primeiros, com 48% das citaes.

A publicao do folheto O padre de Joazeiro, em 06 de fevereiro de 1910, evidencia um trao do poeta que difere dos muitos outros folhetos nos quais a defesa do clero jamais aparecia. Talvez como parte das estratgias do poeta para se inserir na cultura letrada, o tom bastante ameno e h mesmo uma defesa do padre contra todos que o acusavam de se aproveitar da f e devoo dos pobres com fins polticos:

No serto do Cear

Apareceu um pastor

E qual outro Christo, nosso

Adorvel Salvador,

um anjo de bondade

Enviado do Senhor.

 

um pastor exemplar

O padre do Joazeiro

Do-lhe esmola e d esmola

E no interesseiro

Tudo que faz de graa

No aprecia dinheiro.

[...]

A uns quinze dias passados

Disse-me um velho romeiro

Que est suspenso de ordem

Por no ser interesseiro

Os padres detestam elle

Por no gostar de dinheiro.

[...]

Elle desses que detestam

A maldita corrupo

Julga que a graa de Deus

o verdadeiro po

E o homem lucra tudo

Se ganhar a salvao.

            As notcias veiculadas nos peridicos chamam a ateno para uma rede de sociabilidade que coloca o poeta em contato com as chamadas elites intelectuais da cidade de Recife e tambm do Juazeiro do Norte, alm de profissionais liberais e comerciantes em geral. Vejamos os que dizem os estudos mais recentes sobre a obra do poeta e sobre a literatura de folhetos do Nordeste.

Sobre o campo literrio que envolve a literatura de cordel, evidencio os estudos da pesquisadora Bruna Paiva de Lucena que vem discutindo, desde a sua dissertao de mestrado, defendida em 2010, esses lugares de disputa. No seu livro Poticas a cu aberto: o cordel e a crtica literria, Lucena (2018) tece crticas concepo escriptocntrica da literatura brasileira e a forma como a crtica literria, em especial as obras de Silvio Romero, Jos Verssimo, Afrnio Coutinho e Antonio Candido, lida com a presena/ausncia das literaturas de tradio oral na vida cultural do pas.

            Lucena (2018), no captulo I – Fora do Prumo, discorre ainda sobre as estratgias de resistncia utilizadas pelos/as escritores/as no mbito das poticas perifricas e populares. Menciona, a partir dos questionamentos de Judith Butler (posicionalidade estratgica) e James C. Scott (resistncia cotidiana), formas de resistncia presentes nas prticas dos/as escritores/as da literatura de cordel, que, para alguns setores do meio erudito, podem parecer formas de submisso.

Acredito que as prticas de Leandro Gomes de Barros, as estratgias utilizadas pelo poeta para conseguir viver de poesia, no adquiram esse carter de submisso, mesmo quando aparecem em meios eruditos. O trnsito entre os locais da cultura (BHABHA, 2005) por onde transitava revela, talvez, muito mais uma insero pelas bordas, com a inteno de fazer parte do centro, do que uma submisso, mesmo que estratgica. Leandro ocupa os jornais, as livrarias, os locais de prestgio, ao mesmo tempo que vende seus folhetos nas feiras, viaja pelos interiores com sua mala e compra briga na rua com aqueles que vendem seus poemas por debaixo do balco.

Um escritor que vive da venda de seus folhetos, que circula por vrias cidades do Nordeste, que publica versos em um jornal de Juazeiro do Norte-CE, no parece se encaixar no perfil traado por alguns pesquisadores e repetido infinitas vezes nos estudos sobre a chamada poesia popular. Vejamos a biografia presente no site da Fundao Casa de Rui Barbosa:

Sua atividade potica o obriga a viajar bastante por aqueles sertes para divulgar e vender seus poemas e tal fato comentado por seus contemporneos, Joo Martins de Atade e Francisco das Chagas Baptista [...]. Foi um dos poucos poetas populares a viver unicamente de suas histrias rimadas, que foram centenas. Leandro versejou sobre todos os temas, sempre com muito senso de humor.[69]

            Nascido na cidade de Pombal-Parahyba, em 1865, mas criado at os quinze anos na cidade de Teixeira, possvel afirmar que a formao de escritor passa pela mo de padres da Igreja Catlica (era sobrinho do Padre Vicente Xavier de Farias), de poetas/cantadores da cidade, como Francisco Romano, Germano da Lagoa e Silvino Pirau, de frequentadores das livrarias, tipografias e redaes de jornais e do mercado So Jos, na cidade de Recife, sem falar nos trilhos do trem. Como sabemos, a Rede Ferroviria do Nordeste (antiga Great Western of Brazil Ry) unia os estados do Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco e Alagoas. Nesse mapa esto interligadas as cidades de Recife, Fortaleza, Teresina e depois Belm, que passou a ser um centro de produo e distribuio de folhetos no Brasil.

As andanas de Leandro Gomes pelos sertes sempre aparecem nas notas biogrficas. O que nunca aparece a sua atuao no meio intelectual da cidade de Recife, o convvio entre os homens de letras, as conversas na Livraria Contemporanea, visitas s bibliotecas e gabinetes de leitura (disso no tenho notcia, mas quero poder imaginar que, de fato, aconteciam).

possvel desenhar um mapa de percurso do poeta na cidade do Recife: da rua 1 de Maro, onde se localizava a Livraria Contemporanea, para o Mercado So Jos eram 7 minutos a p; o Gabinete Portugus de Leitura ficava a 2 minutos da Livraria e a Cmara Municipal, onde funcionou a Biblioteca Provincial (no perodo de 1875 a 1930), a 14 minutos, com uma passagem pela ponte Santa Isabel, ltima ponte sobre o rio Capibaribe.

Leandro Gomes de Barros, que escrevia, imprimia e vendia seus folhetos, tambm fazia suas performances nos mercados e estaes de trem, conversava com intelectuais da cidade, pagava anncios de suas produes nos jornais e denunciava alguns indivduos [por] venderem livros de versos com o seu nome, como pudemos acompanhar nesse estudo. Ruth Terra informa que o poeta vendia seus folhetos nas ruas de Recife, nos bares do largo das Cinco Pontas, nas estaes de trem e dentro dos trens (TERRA, 1983). Essa informao parece ter contaminado todas as outras aes do poeta, como se vender folhetos na rua e nas estaes de trem o impossibilitasse de tambm publicar seus versos em jornais e participar de ciclos de conversa e trocas de experincias de leitura em locais frequentados pela elite intelectual da cidade. Um pblico urbano, com prticas de sociabilidade que envolvem os gabinetes de leitura, as bibliotecas, as livrarias, parece no fazer parte da histria da literatura de cordel. E essa imagem vai se propagando nos vrios estudos sobre o gnero.

Por fim, retomo a discusso sobre cartografias e mapas na tentativa de imprimir mais alguns versos a essa narrativa. Para Harley (1990), a cartografia nunca apenas o desenho de mapas – ela a fabricao de mundos. E j que eu posso fabricar mundos, mas no sem muito esforo e apoiada em alguma documentao, imagino um mundo separado por um oceano, mas unido por poetas e cantadores, tipgrafos e homens de negcio.[70] Conversas na Livraria Contemporanea, visitas aos jornais e tipografias, calorosos debates em praas pblicas. As trocas culturais, nesse mundo globalizado do sculo XIX, como afirma Jean-Yves Mollier (2008), desafiam as fronteiras que ns mesmos, pesquisadores desse sculo XXI, insistimos em levantar. E se, no gnero editorial cordel, Belm fica bem mais perto de Recife do que a Parahyba, o Porto fica logo ali.

 

 

Referncias

 

ABREU, Mrcia. Histrias de cordis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de Letras; Associao de Leitura do Brasil, 1999.

 

ANSELMO, Artur. Histria da edio em Portugal, vol. 1, [s.l], Lello & Irmo, 1991.

 

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

 

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[Recebido: 29/12/2020 – Aceito: 29/12/2020]


 

Movimento cult do Rio de Janeiro e os discurso sobre o coco de Pernambuco

 

 

Movimento cult  in Rio de Janeiro and discourses about coco de Pernambuco

 

 

Genilson Leite da Silva [71]

https;//orcid.org/0000-0002-7098-7125

 

Bruno Rodolfo Martins [72]

https;//orcid.org/0000-0002-6480-3676

 

 

Resumo: Este artigo trata das tenses, prticas, discursos, entre pessoas, lugares e disputas de narrativas, em torno do que chamado genericamente de cultura popular. Como recorte, identificamos o circuito de rodas culturais existente na cidade do Rio de Janeiro – chamado aqui de Movimento cult – como expresso tpica dessas tenses, e que, de alguma forma, reatualiza as relaes de poder j demarcadas pelos folcloristas do pas desde o incio da Repblica. Como exemplo, analisamos uma dessas tenses relacionada ao Coco realizado nessas rodas, que fez emergir embates demarcados por questes de cultura, raa, origem nativa e tradio. Caracteriza-se por pesquisa etnogrfica e tem como procedimento de coleta de dados a netnografia e observao participante, como tticas para dar conta das questes relacionadas contemporaneidade. A partir disso, identificou-se relatos de como esse Movimento reproduz o projeto colonial implcito das dinmicas prprias das elites dominantes diante dos grupos dominados. Por fim, transforma essa cultura popular em produto de consumo da elite para si prpria, em que se extingui, a cada dia, sua fora poltica, seus aspectos de resistncia cultural e a participao de populares, visto o preo de mensalidade das aulas e dos ingressos para os shows, deixando seus criadores fora da roda.

Palavras-chaves: Movimento Cult; Rodas Culturais; Coco; Projeto colonial; Indstria Cultural.

 

Abstract: This article deals with tensions, practices, discourses, between people, places and narrative disputes, around what is generically called popular culture. As an excerpt, we identified the circuit of cultural circles existing in the city of Rio de Janeiro - here called Movimento Cult - as a typical expression of these tensions, and that, in some way, refreshes the power relations already demarcated by the country's folklorists since the beginning of the Republic. As an example, we analyzed one of these tensions related to Coco carried out on these wheels, which caused clashes deriving due to issues of culture, race, native origin and tradition. It is characterized by ethnographic research and its data collection procedure is netnography and participant observation, as tactics to deal with issues related to contemporaneity. Based on that, reports were identified of how this Movimento reproduces the colonial project implicit in the dynamics of dominant elites in the face of dominated groups. Finally, it transforms this popular culture into an elite consumer product for itself, where its political strength, its aspects of cultural resistance and the participation of the people are extinguished every day, given the price of tuition for classes and tickets for school. the shows, leaving their creators out of the roda.

Keywords: Movimento Cult; Cultural Rodas; Coco; Colonial project; Cultural Industry.

 

 

Reflexes iniciais sobre Movimento Cult e o circuito das rodas culturais

 

Ritualisticamente, alguns grupos culturais se alternam em dias previamente marcados todos os meses do ano para a realizao de rodas em espaos pblicos: uns fazem rodas de Coco, outros de Jongo ou Samba de Roda, entre outros brinquedos populares. Ou, como dito em 2014, por um integrante de um desses grupos: fazemos tudo, mas, nossa especialidade jongo. Seus integrantes se conhecem e se revezam muitas vezes participando da roda de outros grupos, para fortalecer essa rede.

Para o pblico desavisado, essas rodas so expresses mximas de uma suposta cultura brasileira que podem ser contempladas, apreciadas, participadas e em alguma medida, consumidas. So oportunidades nicas para se ter acesso a elas no modo delivery: sem sair de casa. Nesse sentido, (1) sendo brinquedos populares locais da cidade ou do estado, no seria preciso se deslocar para as periferias de onde so nativas, nem ter contato com as comunidades locais e tradicionais que as praticam e mantm seus sentidos polticos de resistncia cultural vivos; e (2) sendo brinquedos de outros estados, no seria preciso viajar para poder curtir, comentar ou compartilhar.

A existncia e a estruturao do Circuito de Rodas Culturais pela cidade do Rio de Janeiro (e em algumas cidades prximas), o que satiricamente chamamos aqui de Movimento Cult, exemplifica algumas tenses tpicas e histricas fomentadas pela academia e por folcloristas pelo pas, diante das culturas populares, tradicionais, folclricas, enfim, pelas culturas dos outros, das pessoas excludas e marginalizadas pelo sistema social vigente. Sobretudo, pela forma como se colocam habilitados a desenvolver/realizar prticas que fazem parte da memria de um povo, apropriando-se do que foi/ ferramenta de resistncia e usando como simples atividade de lazer ou produto a ser vendido no mercado do extico. Em alguma medida, traz elementos novos, em especial, as questes conjunturais, como as escassas polticas pblicas de editais, ou o que chamamos de modinha pelo que popular e afro-indgena das regies Norte e Nordeste[73] do Brasil.

No incio dos anos 2000, surgem alguns grupos que poderamos chamar de parafolclricos, considerados aqui como grupos que trabalham com propagao, divulgao e/ou a comercializao das ditas manifestaes folclricas ou cultura popular brasileira. Esses grupos, ainda vale destacar, so independentes de instituies, pois, apesar de terem estudantes universitrios, no esto vinculados a nenhuma universidade.

Nesse sentido, importante para esta anlise a existncia da Cia Folclrica do Rio[74], vinculada Escola de Educao Fsica e Desportos – EEFD da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em atuao na cidade bem antes dos anos 2000, e que influenciou e influencia ainda a formao desses outros grupos, mesmo que indiretamente: uns seguindo o modelo de ao da mesma, alguns outros se contrapondo ou se descobrindo nesse processo de construo de um coletivo. Mas algo em comum pode demonstrar uma certa unidade nesses grupos: a maioria de seus integrantes estudaram na UFRJ, e alguns, com mais nfase, passaram pelos cursos da EEFD, tiveram contato com a Cia. (seja por aulas, eventos ou apresentaes), e outros compuseram durante algum tempo (ou ainda compem) o corpo da mesma.

Podemos supor que, antes dos anos 2000, a conjuntura no favorecia a criao desse tipo de grupo parafolclrico independente; afinal, se desde a dcada de 1980 j havia a Cia Folclrica, por que s na virada do milnio haveria esse gosto pelo extico e essa vontade de montar e compor um grupo? Em outro caminho mais contundente, por que a ausncia de gosto pelo extico natural da regio prpria do Sudeste? Seguimos com a provocao: cad a Folia de Reis, Clvis, Bate-bolas, Mineiro-pau, Congada, Batuque de umbigada? No, os universitrios do Sudeste nunca pensaram na extino dessas manifestaes prprias dos estados do Sudeste, discursos vazios e sem ao efetiva e que s servem as manifestaes do Norte ou Nordeste do pas, tpico da academia para ter acesso direto ao objeto de pesquisa.

bem mais que um gosto do extico ou uma preocupao com a suposta extino de um brinquedo popular qualquer. Trata-se, uma vez mais, como dizem Simas e Rufino (2020), do projeto colonial em curso, que preza a mortandade e todos os seus caminhos. Pensar que essas aes so mortais no nenhum exagero. Os mesmos autores insistem na necessidade de encantamento do mundo, no retorno aos modos de viver que se direcionam para a vida.

E, aqui, se trata da vida das populaes negra, indgena, perifrica, favelada, escolhidas para serem marginalizadas pelo sistema social que vivemos, e que sempre foi alvo desse projeto, tanto no sentido do genocdio, como no sentido do semiocdio, que silencia modos de comunicar, vises de mundo, linguagens e palavras, como diz Sodr (2005, p. 4). Mas essas culturas de que tanto se quer vivenciar so produzidas por essas populaes, e sempre o fizeram enquanto ttica de resistncia, enquanto poltica de vida, em busca de manter o encantamento do mundo e de si mesmas. Justamente, por essas e outras questes, Simas e Rufino (2020, p. 15) escrevem que o extermnio e a subalternizao secular de princpios comunitrios e de prticas rituais contrrias ao padro dominante so um dos componentes da poltica de mortandade e do desencantamento do mundo.

No basta(ria) a apreciao esttica do outro, tampouco a avaliao etnocntrica e arrogante de uma salvaguarda emergencial de um brinquedo igualmente avaliado como em perigo de deixar de existir, exigindo uma ao supostamente consciente do povo do sul[75] em cuidar dessas manifestaes culturais afro-indgenas do Norte e do Nordeste. E, aqui, esse cuidado nada menos que ocupar espaos culturais, polticos e pedaggicos que devem/deveriam estar ocupados pelas populaes tradicionais que mantm esses brinquedos de resistncia desde a criao dos mesmos.

A tese recorrente e que traduz essa situao a premissa de que a cultura popular do povo, logo, para qualquer pessoa se servir dela, desconsiderando as desigualdades sociais e raciais que estruturam a sociedade, permitindo o acesso, o estudo e, como vemos, a reproduo vontade e descompromissada com as autorias tradicionais por pessoas de classe mdia e com oportunidades de classe correspondentes; enquanto os agentes culturais de raiz continuam desfavorecidos – como antes, e agora, somando-se a tais concorrncias nas disputas por seus prprios lugares (usurpados) de direito.

Carlos Brando percorre uma linha similar e denuncia as desigualdades das relaes de poder nessa expanso do popular, e v como engano a ideia de circularidades proposta por pesquisadores como Nstor Garca Canclini, Peter Burke ou Renato Ortiz.

Em tempos em que convivemos com conceitos como culturas hbridas, hibridizao de culturas ou circularidade de/entre culturas, um provvel engano poderia ocorrer ao estabelecermos como uma panfolclorizao todo o complexo trabalho de criao cultural dos diferentes sujeitos e povos negros ao longo de nossa histria, esquecendo que uma parte importante do que consideramos erudito em nossas realizaes artsticas mais diversas tambm, e em boa medida, resultado do trabalho de suas mos e mentes (BRANDO, 2009, p. 725).

Para o autor, esse engano desconsidera a forma como a cultura popular capturada pelas elites, que a ressignifica, e retiram seu pertencimento aos populares. Nesse processo, so expropriadas pela elite, passando a receber um rtulo de erudito ou clssico como forma de desvalorizao e desqualificao do popular. Entre os jarges que poderiam resumir essa questo est o que diz: a cultura negra boa, desde que no praticada por pessoas negras.

Waldenyr Caldas comenta sobre um processo de fetichizao da cultura do outro e nos diz que

uma das formas de a classe dominante manter seu poder sobre as demais classes sociais por meio da produo e do consumo da cultura diferenciados. Ela no deve, segundo sua prpria ideologia de classe dominante, consumir os mesmos produtos das classes subalternas. E realmente no os consome (CALDAS, 2008, p. 82).

No toa esse crescimento oportuno de grupos e de ocupaes de espaos pblicos, assim como a vontade de viver da/s cultura/s apresentada/s por seus componentes, e as adaptaes realizadas pelos mesmos diante dos brinquedos para conseguir isso.

Continuamos enfticos no tratamento dessa questo: o circuito do Movimento Cult vem ocasionando para as manifestaes tradicionais/culturais intensas transformaes que as descaracterizam e deformam suas prticas, no s por romper com seus processos ritualsticos, mas por criar novos processos que buscam sofistic-las a ponto de descaracteriz-las. Vemos a imposio de uma esttica que expropria as prticas a ponto de criar grau de valor, em que se legitimada pela uniformizao e no pela capacidade de improvisao, criatividade, espontaneidade, individualidade, coletividade, cooperatividade ou pertencimento.

Afinal, para que sofistic-la? Esse termo indica que essas culturas precisariam se tornar acessveis sensibilidade das elites, e que seus produtores originais deveriam adaptar-se para que as mesmas sejam dignas de serem consumidas. Nesse sentido, o que trazemos para pauta o reconhecimento de que o circuito do Movimento Cult no seria apenas um espao de manipulao do popular, espao de uma vontade ingnua e um desejo utpico, mas tambm um espao de comercializao da cultura.

Essa concorrncia, tpica da estrutura comercial, se mostra desleal, pois nivela agentes culturais que esto desigualmente posicionados na estrutura social, diante das disputas de editais e suas correspondncias burocrticas, complexas para esses prprios universitrios, quanto mais para os grupos tradicionais que tiveram pouco acesso a um ensino de qualidade, ou ainda em condies desfavorveis para se organizarem para tais empreitadas, ou mesmo estarem sujeitos a vulnerabilidade social. Proporcionalmente a isso, tambm surgem pessoas entre esses grupos parafolclricos se autointitulando mestres e mestras dessa ou de outra tradio, ou de vrias(!).

Importa salientar que essa sofisticao est a servio desse projeto colonial e de base capitalista que, logo, busca retirar dessas manifestaes seu poder libertrio e sua autonomia, com o intuito de manter os privilgios e as hierarquias sociais baseadas nas desigualdades de raa, cultura e origem produzidas pelos herdeiros da colnia. Com isso, elevar as culturas populares categoria de eruditas est mais relacionado com o processo de esfoliao, que vem despir essas culturas de seu carter poltico, eliminando assim qualquer possibilidade de emancipao e independncia de seus produtores originais, transformando-a por fim em mero produto a ser consumido, domesticando-as.

Zezito de Arajo demonstra que, para serem reconhecidas ou simplesmente apresentadas para a sociedade, essas culturas so estigmatizadas e estereotipadas. Em termos gerais, destaca que

ao se folclorizar a cultura, folcloriza-se com ela, o indivduo e o grupo racial. [Isso faz] parte de um mecanismo histrico de produo do homem-espetculo ou espetaculoso, do ser extico e leviano, e, como tal incorporado dimenso no-sria (ARAJO, 2011, p. 4).

Transforma-se numa cultura sem valor, mas com preo. Algo que pode ser comprado, usado e descartado. Quando traduzimos isso para seus praticantes tradicionais, a morte que se estabelece, seja simblica ou fsica. No seria uma preocupao urgente a vida dessas pessoas?

A reflexo pertinente de Michel Nicolau (2005, p.141-142) demonstra trs modos de se matar a cultura, e ambas se retroalimentam muitas vezes: um modo exotizar a cultura, no qual se perde a herana, por no conseguir se reproduzir; outro modo desprezar a cultura, provocando esquecimento e isolamento, devido a sua no incluso no sistema social; e uma outra padronizar, passando pela perda de identidade, se adequando ao sistema, mas perdendo suas caractersticas prprias de criao. Em suma, sob essa mesma lgica, as culturas podem ser coisificadas e mortas, e as pessoas que a produzem, tambm.

Esse escrnio ocorre na mesma dinmica escancarada que tornou o mito da democracia racial como uma verdade tanto para negros, quanto para brancos. Muitas vezes, grupos e mestres populares, assim como povos e comunidades tradicionais, de forma paradoxal, so em certo ponto gratos a esses praticantes que levantam a bandeira da cultura popular, no a deixando acabar(!?).

 

 

O espetculo das ruas no caminho de uma indstria cultural (?)

 

A busca por insero numa sociedade na qual tudo espetacularizado, em que transformaes impostas de fora para dentro dessas tradies culturais, em que as mesmas so praticadas com outros propsitos por pessoas tambm de fora das tradies, atribuindo valores aliengenas s mesmas, se torna o fundamento desse tipo de Movimento.

Essa sociedade se torna um local onde o irreal assume o topo de uma hierarquia a servio de uma sociedade do espetculo, onde o espelho reflete imagens turvas e essas imagens devem ser reproduzidas em grande escala (ADORNO, 2002). Problematizamos essa reproduo pelo fator da hierarquizao e as normas de conduta pr-determinada.

O fato de oferecer ao pblico uma hierarquia de qualidades em srie serve somente qualificao mais completa. Cada um deve-se portar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nvel, determinado a priori por ndices estatsticos, e dirigir-se categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo (ADORNO, 2002, p. 172).

Essa busca por uma padronizao (seja de uma dana, msica, figurinos etc.) nada mais que uma tentativa de se encaixar como um produto aos olhos da indstria cultural. Para alcanar tal status, perde-se e abre-se mo de prticas antigas, rituais, cdigos e identidades. Silencia-se as subjetividades, a criatividade, a espontaneidade e a capacidade de improvisao dos indivduos envolvidos. Cria-se um espao onde a tcnica sistemtica, espao onde o improviso no permitido, e por fim, a diversidade tem um exemplar a seguir.

Fica ntida a violncia simblica, uma vez que os smbolos e cdigos de povos e comunidades tradicionais sucumbem diante dessas demandas; tm a forma de violncias psicolgicas, uma vez que essas referncias tradicionais, frente s suas necessidades, veem suas prticas cotidianas gerando renda a terceiros, enquanto as mesmas sub-existem financeiramente.

A violncia da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indstria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distrao. Mas cada um destes um modelo do gigantesco mecanismo econmico que desde o incio mantm tudo sob presso, tanto no trabalho quanto no lazer que lhe semelhante (ADORNO, 2002, p. 175).

Acreditamos na capacidade transformadora da cultura popular e reduzi-la a um produto nesse contexto o mesmo que desvalorizar toda histria de vida e resistncia de praticantes da mesma como matriz geradora; transformar a cultura em algo descartvel como todo e qualquer produto desenvolvido atualmente pelo sistema capitalista, conforme a obsolescncia programada.

 

 

O Coco dos cariocas (?)

 

Ater-se s questes pura e simplesmente esttica apenas mais uma forma de alienar os dominados para que esses no percebam o que realmente ocorre. Seguindo uma linha reflexiva objetivada pelo projeto colonial, podemos observar que alguns aspectos que caracterizam as rodas e eventos de Coco do Rio de Janeiro apresentam ou buscam apresentar caractersticas que, de certa forma, tentam manter uma (suposta) esttica similar ao que ocorre no Nordeste. O que ao nosso olhar soa como uma estereotipao: uma construo de personagens que se fazem presentes no imaginrio do sudestino.

H nesses movimentos, a dinmica de trazer referncias tradicionais (na pessoa de mestres e mestras, ou outras pessoas envolvidas com tradies do Coco) para o Rio e promover com essas uma turn onde essas referncias so levadas a vrios lugares ou a grupos, para passar seus conhecimentos aos sudestinos aventureiros desbravadores da cultura, que colaboram com contribuies simblicas, voluntrias ou conscientes, em que, depois de arcar com algumas despesas, tal montante dessas contribuies ser entregue a essa referncia mestra. Podemos questionar ainda por que o valor da aula ou oficina oferecida por essas referncias, via de regra, sempre um valor inferior ao pago pela pessoa participante? H nessas prticas os resqucios do que Taussig (2010, p. 15) denomina de fetichismo da mercadoria, que para ele pode ser interpretado como o que transforma pessoas em coisas e coisas em pessoas.

Avaliamos nesse sentido que, para alm da prpria cultura tradicional ser adaptada e servida como produto, as referncias tradicionais so tambm coisificadas, colocadas num contexto de prestao de servios, perdendo poder de negociao, sendo intermediadas por terceiros, como que empresrios ou produtores de artistas de elite, que tomam para si boa parte do montante – sem, contudo, a premissa de um acordo que formalizasse isso. Mestres e mestras so tratados quase como uma propriedade desse ou daquele grupo, que se coloca como intermedirio entre outros grupos, pessoas interessadas e instituies com potncia de realizar algum contrato.

Outra questo que chama a nossa ateno a prepotente capacidade – ou seria tpico exerccio de poder – desses grupos em legitimar qual nordestino pode ou no falar sobre, ou questionar essa dinmica. A exemplo disso, apresentamos a anlise de dados recolhidos nas redes sociais. Neles, observamos a tenso criada entre esses grupos parafolclricos do Rio de Janeiro e um nordestino, que, de passagem pela cidade no ano de 2018, questiona as dinmicas e o modo do fazer Coco dos grupos cariocas.

Visamos captar essas tenses como resultado da mercantilizao da cultura e como retrato do projeto colonial, atravs do processo de deslegitimao ou desqualificao de seu discurso. Um tpico exemplo que transforma as tradies populares em coisa produto, como tambm seus praticantes tradicionais – que podem at ter voz, mas no sero escutados.

A partir desse recorte, observamos que os grupos do Rio de Janeiro foram taxativos em desqualificar o discurso desse nordestino pernambucano, Ednaldo, hoje assumindo o nome social Caetana da Silva devido ao processo de transio de gnero a qual est passando. Ela reivindicava questes relacionadas aos fundamentos presentes na estrutura e nos rituais existentes na manifestao. Acredita-se que essas reivindicaes expressariam uma disputa de territrio e nicho de mercado, uma vez que a mesma era uma potente concorrente do grupo parafolclrico Zanzar[76], que ministra suas aulas e oficinas de cultura popular no Circo Voador, ao lado da Fundio Progresso, local onde Caetana ministra suas oficinas de danas e ritmos pernambucanos.

Caetana se autolegitima atravs do discurso de ter vivncia com mestres e mestras de Coco e Maracatu de Pernambuco, alm de ser nativa do mesmo estado. Segundo ela, nos eventos dos grupos do Rio h uma descaracterizao da manifestao no que diz respeito aos rituais, estrutura e funo. J os grupos do Rio apontam um essencialismo na argumentao de Caetana, junto ao desejo de se autodenominar mestra e dona da cultura nordestina. Como em todas as tenses, h um pouco de verdade em cada um dos lados. Por um lado, vemos uma pessoa nordestina que vem para o Sudeste na esperana de sobreviver de apresentaes, aulas e oficinas de dana popular, porm a mesma fora alertada sobre a importncia de fechar com esses grupos para poder transitar de forma harmnica entre os mesmos e ainda fazer uma grana. Por outro, temos os grupos criativos que inventam movimentos, toques e rituais estranhos ao Coco, descaracterizando-o.

Os Cocos no Nordeste, mais precisamente de Pernambuco, mesmo s vezes denominados Coco de roda, tm uma estrutura aberta, na qual quem brinca livre para transitar pelo espao e essa mesma liberdade dada a tocadores, diluindo a rigidez de papel fixo para os mesmos. Outro aspecto importante na brincadeira a falta de uma coreografia ou de movimentos muito elaborados, o que estimula a criatividade dos brincantes, assim como tambm se torna algo mais convidativo e envolvente. A insistente batida dos ps no cho, o trup, dialoga com o ritmo dos tambores e nos remete a uma relao com a natureza e as ancestralidades afro-indgena. A dana marcada por pisadas firmes no cho que reverbera por todo o corpo que se posiciona projetado para terra como um tipo de reverncia e conexo com a terra.

J no Rio de Janeiro, a manifestao acontece em um espao restrito com delimitao do mesmo em formato de crculo e com casal solista. Observamos nessas rodas de Coco uma dinmica de compra semelhante da capoeira, na qual os participantes que pretendem substituir uma das pessoas no centro, ou o casal, precisa, ritualisticamente, saldar os instrumentos ou os tocadores, e posteriormente aquele a quem se deseja substituir. Os movimentos so construdos tendo como influncia os movimentos dos Cocos nortistas e nordestinos. Observa-se uma abordagem genrica dos gestos, uma vez que esses mesclam as diferentes expresses da manifestao existente no Norte e Nordeste.

Nos grupos do Rio, os movimentos so amplos com grandes deslocamentos dentro do crculo, e percebe-se tambm uma coreografia complexa que exige grande habilidade de seus participantes, fatores esses que projetam na roda uma perspectiva de palco, onde o casal solista protagonista de um espetculo e cada integrante tem um papel definido que pode ser revezado. Logo, a conexo com a terra, espiritualidades e ancestralidades afro-indgenas passam a ser secundrias em relao questo esttica ali posta, h uma preocupao esttica sobre o melhor figurino, o melhor posicionamento dos braos, o melhor trup, a performance atltica. Os saltos e uma horizontalidade do corpo que desvirtuam a relao do contato e conexo com a terra, interferindo assim no fluxo de energia. H tambm pouco dilogo com o ritmo: no se dana para e nem com a msica.

Os aspectos que distinguem uma manifestao da outra as colocam em relao de contraponto ou conflito entre ancestralidade e show, entre o encantamento e a performance atltica, que se faz presente nos objetivos daqueles que os praticam. No Rio, a delimitao espacial, a construo cnica e a incluso de roupas estereotipadas do tipo roupas de ir para roda, onde as mulheres vestem saias de chita, cada vez mais coloridas e rodadas e os homens ficam mais vontade denotam uma performance que sofre grandes influncias das dinmicas vivenciadas nas aulas de outros estilos de dana e de teatro, extraindo das manifestaes populares, no caso do Coco, sua dimenso poltica e social em nome de um suposto resgate, que no passa de um desservio. Um des-encantamento.

 

 

Consideraes nem to finais

 

O relato aqui apresentado foi construdo a partir de observaes dos eventos nas rodas e de conversas e tenses que se passaram nas redes sociais e de nossa experincia enquanto pesquisadores, mas tambm como brincadores no tradicionais preocupados com as tradies e seus brincadores. Durante esse perodo, percebemos o grande fluxo de pessoas que se interessam pelas culturas populares nordestinas e logo procuram desvirtuar suas potencialidades polticas e sociais por interesse prprio ou por modinha. Criam grupos que disputam os poucos editais ofertados pelas Secretarias de Cultura, tomando na mo grande as poucas chances de grupos e mestres tradicionais em ter acesso a algum recurso que minimamente permitiria aos mesmos desfrutar de transporte e alimentao para participaes em eventos.

Durante esse perodo de experincia visitando mestres e grupos tradicionais, o que foi percebido aqui no Rio de Janeiro que esses universitrios guardies da cultura popular raramente esto dispostos para as manifestaes do sudeste, exceto samba, carnaval e jongo; to escassa quanto sua disposio para se deslocar para regies mais distantes da cidade, como tambm Baixada Fluminense. Comumente, esses se limitam a percorrer o circuito de roda que tem sua variao entre o Centro do Rio e a Zona Porturia (Lapa, Rua do Lavradio, Praa XV, Cais do Valongo, Largo da Prainha, Pedra do Sal, Praa Mau) e o subrbio (limitado entre Mier e Madureira), ou alguns eventos espordicos em datas comemorativas como no caso da festa tradicional do Boi Brilho de Lucas, em Parada de Lucas, ou do Quilombo de So Jos no Vale da Serra, em Valena, no interior do estado. Em relao a esses dois ltimos, o primeiro disponibiliza nibus saindo da Lapa para o transporte ida e volta, gratuitamente, para quem desejar ir para a festa, que tambm espao de apresentao desses mesmos grupos. O segundo virou um evento anual que tem at empresa de turismo oferecendo pacotes de viagem para apreciao da festa, onde esses grupos de universitrios se digladiam para fazer parte da festa com a finalidade de expor seu trabalho para a comunidade do Movimento Cult e ganhar notoriedade que posteriormente render alunos e apresentaes financiadas.

Para ns, ficam ainda algumas questes renitentes: ser que esse modelo de grupo parafolclrico serve resistncia cultural, enquanto colaboradores potentes dos grupos, mestres e mestras tradicionais, ou sero aqueles que padronizam, folclorizam e enquadram as tradies s regras sociais dominantes, aos fetiches da elite, ao comrcio do extico?

Seria mais cmodo a esses grupos se organizarem para brincar, do que para apoiar grupos tradicionais? Ou seria, na verdade, mais conveniente?

Ou continuam se vangloriando de supostas influncias salvacionistas que os mesmos estariam promovendo com suas aes (de pesquisa e montagem de espetculos[77]) entre os grupos tradicionais?

O circuito de rodas culturais do Movimento Cult promove algum encantamento, no sentido que Simas e Rufino (2020) indicam? Aplicam uma poltica de vida para, com ou pelos grupos tradicionais, ou participam construindo ainda mais invisibilizao, padronizao e morte, ocupando os lugares daqueles outros que as criaram e as mantiveram desde sempre?

 

 

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[Recebido: 31 dez 2020 – Aceito :18 mar 2021]

 


 

Testemunhos da catstrofe: memrias do trauma em Vozes de Tchernbbil

 

 

Catastrophy testimonies: memories of trauma in Voices from Chernobyl

 

 

Joyce Rodrigues Silva Gonalves[78]

https://orcid.org/0000-0003-4643-1810

 

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo realizar uma breve anlise da obra de Svetlana Aleksivitch, Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a partir da perspectiva dos estudos memorialsticos. O livro rene relatos orais de pessoas que vivenciaram, direta ou indiretamente, a maior catstrofe tecnolgica do sculo XX, ocorrida na usina de Tchernbil, na ento Unio das Repblicas Socialistas Soviticas em abril de 1986. O gnero testemunho permite que sejam ouvidas as memrias traumticas de pessoas comuns, como camponeses, residentes das aldeias no entorno da usina nuclear, donas de casa, mes e pais de famlias, bem como de profissionais ligados produo de energia em Tchernbil, como engenheiros, fsicos nucleares, professores, bombeiros e militares soviticos.

Palavras-chave: Histria; Oralidade; Catstrofe; Testemunho; Tchernbil.

 

Abstract: This article aims to conduct a brief analysis of the book of Svetlana Aleksivitch, Voices from Chernobyl: the oral history of a nuclear disaster, from the perspective of memorialistic studies. The work gathers accounts of oral speech from people who experienced, directly or indirectly, the greatest technological catastrophe of the 20th century, that occurred at the Chernobyl nuclear power plant, in the Union of Soviet Socialist Republics, in April 1987. The testimony genre allows the memories of ordinary people, such as peasants, residents of the villages around the nuclear power plant, housewives, mothers and fathers of families, as well as professionals related to energy production in Chernobyl, as engineers, nuclear physicists, teachers, firefighters and Soviet military.

Key-words: History; Orality; Catastrophe; Testimony; Chernobyl.

 

 

Escolhi o gnero das vozes das pessoas espreito e ausculto meus livros nas ruas, atrs das janelas. Nelas, pessoas reais contam os principais acontecimentos de seu tempo: a guerra, a queda do imprio socialista, Tchernbil, e todos eles conservam na palavra a histria do pas, a histria comum. Tanto a antiga, como a mais recente. E cada um guarda a histria de seu pequeno destino humano.

Svetlana Aleksivitch, autora bielorrussa, se dedicou escrita de testemunhos traumticos, registrando em suas obras as memrias de centenas de pessoas que vivenciaram as guerras e as demais tragdias soviticas. Aleksivitch afirma, em seu discurso proferido na Academia Sueca, Estocolmo, na ocasio do recebimento do prmio Nobel de literatura em 2015, que a memria do povo sovitico uma memria sempre traumtica, que a histria da (s) nao (es) soviete (s) nunca foi tranquila, e que a isso essas pessoas esto familiarizadas: A memria nos inspira. Ns sempre vivemos no terror, somos capazes de viver no terror; o nosso habitat. E nisso, o nosso povo no tem rivais... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 227).

Na obra Histria, Memria, Literatura: o testemunho na era das catstrofes, Mrcio Seligmann-Silva (2003) avalia que o sculo XX considerado um perodo catastrfico, uma vez que ocorreram vrias revolues, duas guerras mundiais, tragdias humanas, polticas e tecnolgicas. Em Catstrofe e representao, Seligmann-Silva e Nestrovski (2000) renem ensaios que tecem consideraes a propsito dos limites da linguagem, do pensamento e da imaginao na representao da catstrofe nas artes. A tica da representao um ponto crucial, principalmente na esttica da recepo, uma vez que a crtica das artes, e aqui privilegiamos a literatura, exerce seu papel tambm em relao s escritas de si, em que a voz narrativa se coloca em primeira pessoa, como nos gneros autobiogrficos, memorialsticos. A obra de Svetlana Aleksivitch constituda por testemunhos, em que os lembradores se colocam a rememorar suas experincias traumticas. A despeito de esses sujeitos no escreverem suas prprias memrias, concederam entrevistas autora para que ela o fizesse.

Embora a pequena cidade de Tchernbil seja localizada na Ucrnia, as consequncias da exploso do reator nmero quatro de sua usina nuclear se estenderam por grande parte da Europa, particularmente e de modo mais intenso pela Bielorrssia, j que a cidade se localiza muito prximo fronteira com esse pas. Os impactos do desastre na populao vulnervel vo desde os danos fsicos, psicolgicos, sociais, at o desamparo dos direitos humanos, que foram, de modo geral, negligenciados.

Svetlana Aleksivitch utiliza em suas obras a tcnica da metodologia oral, do discurso falado atravs dos testemunhos que recolhe de pessoas comuns. Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, os relatos nos permitem ter uma noo do que essas pessoas sentiram ao vivenciar tamanha tragdia e os impactos dela desde sua deflagrao at os dias atuais, j que a zona de excluso, extenso territorial no entorno da usina, est permanentemente condenada. sua terra envenenada. Sendo a autora uma das pessoas atingidas pelo desastre de Tchernbil, ainda que indiretamente, no captulo inicial da obra em anlise ela tece suas prprias consideraes acerca do que significou o incidente e como suas vidas foram definitivamente mudadas a partir de ento. A primeira reao foi um emudecimento diante do fato trgico: Entre o momento em que aconteceu a catstrofe e o momento em que comearam a falar dela, houve uma pausa. Um momento de mudez. E todos se lembram dele... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 41).

O silncio que se instaurou perfeitamente compreensvel, considerando que em situaes traumticas normal que as pessoas fiquem em estado de choque, que no saibam nem mesmo como reagir. Ademais, aquelas que, mesmo perplexas, poderiam vislumbrar alguma explicao, que poderiam de algum modo elaborar o trauma, no encontravam meios para tal. A cincia, a literatura, a filosofia tambm no as possibilitavam uma sistematizao racional da catstrofe, o que explica o porqu

[C]alaram-se os filsofos e escritores, expulsos de seus canais habituais da cultura e da tradio. Naqueles primeiros dias, era mais interessante conversar no com cientistas, funcionrios ou militares com muitas medalhas, e sim com os velhos camponeses. Gente que vivia sem Tolsti e Dostoiviski, sem internet, mas cuja conscincia de algum modo continha uma nova imagem de mundo. E ela no se destruiu (ALEKSIVITCH, 2016, p. 42).

Os camponeses, pessoas simples em sua maioria, tambm no sabiam ao certo o que havia ocorrido, mas o impacto em suas vidas foi tamanho que alterou seus destinos. A maioria foi evacuada dois, trs dias depois, umas e outras acabaram retornando revelia das orientaes do Estado. Mesmo as que emigraram tiveram a sade seriamente comprometida, famlias destrudas, planos arruinados. esse o principal enfoque da obra de Svetlana: Eu quero narrar a histria de forma a no perder de vista o destino de nenhum homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 50).

Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a autora privilegia memrias que so, simultaneamente, individuais e coletivas. Do ponto de vista do coletivo, importa dizer que as reflexes de Maurice Halbwachs (2004) em seu livro A memria coletiva contriburam imensamente para a compreenso das questes sociais que compem a memria. Para o terico francs, a memria aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivduo carrega em si a lembrana, mas est sempre em interao com a sociedade, seus grupos e instituies. no contexto dessas relaes que nossas lembranas so construdas. Como nao, o pensamento coletivo predominou durante muito tempo entre os soviticos: [M]as isso tambm a imagem da barbrie, essa falta de medo pela prpria vida. Ns sempre falamos ns e no eu: ns mostraremos o herosmo sovitico, ns revelaremos o carter sovitico para o mundo todo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 333).

Do ponto de vista individual, Svetlana Aleksivitch permite que histrias particulares sejam conhecidas, que sejam contados destinos conduzidos pela catstrofe. O pensamento individual surge mesmo nas amarras do coletivo: [D]epois de Tchernbil, sente-se isso. Ns temos aprendido a dizer eu. Eu no quero morrer! Eu tenho medo! [Natlia Roslova, presidenta do Comit Mulheres de Moguilov] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 334).

O primeiro dos relatos na obra de Svetlana de Liudmila Igntienko, esposa grvida de um dos primeiros bombeiros que foram enviados ao reator para tentar apagar o incndio aps a exploso. A mulher descreve como tudo aconteceu e como se deram as duas semanas seguintes, em que viu o esposo se esvanecer rapidamente em um hospital de Moscou em consequncia da sndrome aguda radiativa. A descrio chocante, carregada de horror. Aps a morte do marido, a esposa encontra nos sonhos uma alternativa para sobreviver, neles ela se encontra novamente com seu amado e com a filha que nascera morta em razo da radiao a que esteve exposta enquanto acompanhava e cuidava do homem. Liudmila confessa: Assim vou vivendo. Vivo ao mesmo tempo num mundo real e irreal. No sei onde me sinto melhor, e completa: As pessoas no querem ouvir falar da morte. Dos horrores [...] Mas eu falei do amor, como eu amei (ALEKSIVITCH, 2016, p. 37-38).

A fuga da realidade bastante recorrente ao longo do livro e se mostra de diversos modos. A prpria autora reconhece: A realidade resvala, no cabe no homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 49). H um relato interessante que exemplifica esse resvalamento do real, em que a voz que testemunha o desastre se coloca alm da realidade, que parece viver uma vida imaginria, surreal:

E eu me lembro do duende. Ele vive h muito tempo aqui comigo, no sei exatamente onde, saiu do forno. De capuz preto e roupa preta com botes brilhantes. No tem corpo, mas se move. Durante um tempo eu pensei que fosse meu marido que vinha me ver. Veja s... Mas no. um duendezinho... Vivo sozinha e no tenho com quem falar, de modo que noite eu conto para mim mesma o dia que passou. [Maria Fedtovna Veltchko, cantora popular e contadora de histrias] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 210).

A alucinao surge, nesse caso, como consequncia do trauma vivido e da solido ps-catstrofe. Alis, muitas pessoas vivenciaram/vivenciam a solido ps-Tchernbil, pois vrias perderam suas famlias ou acabaram se isolando de algum modo.

Aps o perodo inicial em silncio, os atingidos pela catstrofe comearam a retomar o fato e elaborar suas memrias traumticas. Mas, afinal,

[P]ara que as pessoas recordam? Para restabelecer a verdade? A justia? Para se libertar e esquecer? Ou por que compreendem que participaram de um evento grandioso? Por que buscam no passado alguma proteo? E, alm disso, a recordao uma coisa muito frgil, efmera, no um conhecimento exato, uma suposio do homem sobre si mesmo. Isso ainda no conhecimento, apenas sentimento. [...]. Para que as pessoas recordam? a minha pergunta. Mas eu falei com voc, pronunciei algumas palavras. E compreendi alguma coisa... Agora no sinto to sozinho. Mas o que acontece com os outros? [Piotr S., psiclogo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 55-57).

O relato acima bastante consciente da dificuldade da assimilao dos fatos; considerando-se que foi proferido por um psiclogo, perfeitamente compreensvel. Mas, como a testemunha j sinalizara em sua fala, como as pessoas lidam com suas prprias lembranas, de modo geral, algo problemtico a ponto de se questionarem: [E]nto, o que melhor: lembrar ou esquecer? [Evguni Aleksndrovitch Brvkin, professor da Universidade Estatal de Gmel] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 131).

H uma relao intrnseca entre lembrana e esquecimento. O sujeito que rememora est sempre colocando em evidncia uma memria selecionada, consciente ou inconscientemente, enquanto rechaa outras partes das experincias vividas. Quando o lembrador no se d conta desse movimento, como se houvesse uma amnsia decorrente do trauma vivenciado. O relato abaixo exemplifica essa falha da memria, uma lacuna que pode ser considerada em termos neurolgicos e tambm psicolgicos/psicanalticos:

[E]u me esqueci de tudo. S lembro que estive ali, mas no me recordo de mais nada. Eu me esqueci de tudo. No terceiro ano depois da desmobilizao, aconteceu uma coisa na minha memria... Nem os mdicos entendem... No consigo sequer contar dinheiro, me perco. Perambulo de um hospital a outro... J contei isso, ou no? [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 104).

Trauma e amnsia esto, portanto, frequentemente e intimamente relacionados, assim como as lembranas encobridoras, sinalizadas por Sigmund Freud et al. (1969) como uma forma de escamotear memrias traumticas ao se rememorar fatos mais triviais do passado.

Algumas pessoas tinham a noo da contribuio que seria prestar seus testemunhos para a histria oficial: [L]embrar? Eu quero e no quero lembrar. Se os cientistas no sabem nada, se os escritores no sabem nada, ento os ajudaremos com a nossa vida e a nossa morte [Ktia P.] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 147). Outras precisavam contribuir consigo mesmas: No me pergunte. No vou dizer. No vou falar nada sobre isso... No, eu posso conversar com voc para tentar entender, se for possvel [Nina Kovaliova, esposa de um liquidador] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 269).

Por outro lado, houve aqueles que sentiam necessidade de testemunhar suas experincias traumticas, como Nikolai Kalguin (ALEKSIVITCH, 2016, p. 65): [E]u quero testemunhar. Isso aconteceu h dez anos e todo dia se repete comigo. Agora mesmo. Carrego isso sempre comigo. No sou escritor, no saberia como contar... Mas sou testemunha. Observamos nessa fala que o trauma se repete na memria, que no foi elaborado nem superado. No caso desse personagem, a fatalidade maior se concretizou na morte da filha, motivo pelo qual o homem se revolta e reitera: [E]u quero testemunhar, a minha filha morreu por culpa de Tchernbil. E ainda querem nos calar (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Percebemos nesse discurso que houve um silenciamento imposto pelos responsveis pela tragdia e pelo prprio Estado, por isso a importncia da histria oral para preencher as lacunas da histria oficial.

Um motivo muito comum que leva algum a testemunhar sobre determinado acontecimento a conscincia da finitude da vida. medida que o tempo passa, sente-se a necessidade de revelar algo importante, principalmente quando se trata de um fato histrico, como o caso do acidente em questo. Os documentos com registros sobre o desastre de Tchernbil foram destrudos por vrias razes: primeiro porque, burocraticamente, os papis oficiais na Unio Sovitica s eram arquivados durante trs anos, depois porque eram radiativos, e, por ltimo, porque houve a reestruturao do exrcito e a dissoluo das unidades administrativas e militares depois da Perestroika. Porm, alguns conjecturavam uma circunstncia muito plausvel: [] possvel que tenham sido destrudos para que ningum soubesse a verdade. E ns somos testemunhas. Mas em breve morreremos [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 117).

Alm da omisso de documentos, houve tambm omisso de verdades. As autoridades diziam que estava tudo sob controle, enquanto os habitantes de aldeias ao redor de Tchernbil recebiam altssimas dosagens de radiao. Algumas comunidades foram evacuadas, outras no. Os camponeses continuaram a cultivar, colher e consumir normalmente os alimentos que plantavam. Muitos deles foram persuadidos a permanecerem em suas casas, pois eram tambm mo de obra para o Estado.

No apenas pessoas comuns, que viviam no campo e em pequenas aldeias foram enganadas, tambm militares tiveram informaes omitidas enquanto serviam ao Estado, alguns foram enviados para o trabalho em Tchernbil aps o acidente sem ao menos terem conhecimento disso, apenas foram convocados e encaminhados. Um dos militares que testemunha na obra de Svetlana afirma que no os informavam sequer os valores das doses radiativas que estavam recebendo durante o trabalho: [o]s roentgen que nos tocavam eram segredo militar. [...]. Nem sequer ao partirmos disseram quanto... Cachorros! Filhos da puta [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Vrias denncias da mesma natureza so encontradas ao longo das narrativas na obra em anlise.

Havia ainda controvrsias entre cientistas sobre os riscos que corriam os militares em servio. Alguns afirmavam que no havia problema nenhum, outros alertavam para o mal que faria a exposio radiao. Uns acreditavam que estavam seguros, outros sabiam do perigo e das provveis consequncias.

De fato, era plenamente compreensvel que as pessoas fossem facilmente ludibriadas pelas autoridades, e at mesmo que no acreditassem, quando eram advertidas, no perigo a que estavam sujeitas com a alta radiao, uma vez que estavam lidando com um inimigo invisvel:

A culpa da radiao ou de quem? Como ela ? Vai ver, mostraram-na em algum filme. Voc viu? Ela branca ou o qu? De que cor? Uns contam que ela no tem cor nem cheiro, outros contam que negra. Como a terra! Se no tem cor, como Deus: est em todo lugar, mas ningum v. Querem nos assustar. As mas esto penduradas nas rvores e as folhas tambm, as batatas esto crescendo no campo... O que eu penso que no houve nenhum Tchernbil, que inventaram isso tudo. Enganaram as pessoas [Anna Petrvna Badieva, residente na zona contaminada] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 83).

Podemos observar no trecho acima a descrena naquilo que no materializado, no que no visto a olhos nus, o que acentuou o perigo das partculas radiativas. Para a personagem, se a vida continua seguindo seu curso normalmente, ento no houve catstrofe, est tudo certo. Em outro relato percebemos tambm essa necessidade de materializao do perigo. Duas idosas garantem ter visto o monstro da radiao:

Pois olhe: est vendo aquela casa ali meio construda? Os moradores a abandonaram e foram embora. Por medo. Uma noite dessas fomos ver por dentro. Olhamos pela janela. E ali estava, debaixo de uma viga, a radiao. Com uma cara ruim e olhos de fogo! Negra, negra! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 317).

Tal fala soa como uma alucinao, uma neurose traumtica, como descrita pela psicanlise de Freud et al. (1969) em seu texto O mecanismo psquico do esquecimento. Esse mesmo mecanismo pode ser observado no caso do relato da mulher que v um duende em casa. Enfim, cada um encontra uma forma para conduzir suas experincias traumticas, seja para lembr-las ou para esquec-las, ainda que atravs de uma pulso de morte, que seria uma soluo e, para uns, at mesmo uma bno: [D]e alguns Deus se apieda, mas a mim ainda no concedeu a morte. Continuo viva [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 71).

A morte, alis, um tema predominante nos relatos reunidos na obra de Aleksivitch e estava presente entre indivduos de todas as faixas-etrias, inclusive os natimortos. Como consequncia do desastre aumentaram os ndices de abortos, tanto espontneos quanto induzidos, e houve um grande desequilbrio entre as taxas de natalidade e mortalidade na regio no perodo ps-catstrofe.

Alguns soldados que estiveram nas guerras em que a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas lutou afirmam que a tragdia de Tchernbil se equipara situao blica. medida que as pessoas iam morrendo em decorrncia de doenas desencadeadas pela radiatividade, os enfermos j imaginavam seus momentos finais: [N]o est claro como vou morrer. Se eu pudesse escolher a minha morte, seria uma morte comum. No como as de Tchernbil. A nica coisa que sei que com o meu diagnstico no se dura muito. [...]. Estive no Afeganisto. Ali a coisa era mais fcil. Com uma bala... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120).

A iminncia da morte pairava sobre todo o povo de Tchernbil, at mesmo as crianas tinham conscincia disso. Uma das testemunhas relata uma cena que presenciou em um nibus, em que um menino no cedeu seu lugar a um idoso, que o repreendeu dizendo: Quando voc for velho, tambm no vo te ceder o lugar. Eu nunca vou ficar velho, respondeu o menino. E por qu?. Todos ns vamos morrer logo [Llia Kuzmenkova, professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 299).

Um dos captulos finais de Vozes de Tchernbil dedicado ao coro de crianas e adolescentes que a autora entrevistou em um hospital, e os relatos so profundamente tristes, trgicos. Um adolescente conta como vrios de seus amigos e colegas de tratamento j se foram e se mostra resignado com a morte iminente:

Mas como me aborrecem essas paredes cinza do hospital. Como estou fraco ainda. [...]. E a minha chega. Ontem ela (a me) pendurou um cone na enfermaria. Cochicha alguma coisa naquele canto, se pe de joelhos. Todos se calam: professores, mdicos, enfermeiras. Acham que eu no suspeito de nada. Que no sei que vou morrer em breve (ALEKSIVITCH, 2016, p. 348-349).

Em vrios dos testemunhos orais podemos observar a perspectiva infantil da morte, como uma criana que sabia que o av estava morrendo e queria ver como que sua alma sairia voando. As brincadeiras frequentemente giravam em torno da catstrofe da usina: [E]u tenho um irmozinho pequeno. Ele adora brincar de Tchernbil. Constri um abrigo, cobre de areia o reator. Ou ento se veste de espantalho e corre atrs de todo mundo: Uh-uh-uh! Eu sou a radiao! ALEKSIVITCH, 2016, p. 348). Na escola desenhavam a Tchernbil submersa no caos do acidente nuclear, ainda que pouco ou nada fosse dito sobre a questo. O silncio sobre a catstrofe nas escolas era uma realidade, uma vez que havia falta de informaes para repasse, censura do Estado e at mesmo um bloqueio psicolgico que impedia que as pessoas em Tchernbil conversassem entre si sobre o desastre. Geralmente falavam sobre o fato com estrangeiros, jornalistas e parentes que no residiam na zona contaminada.

As memrias de crianas so realmente impactantes, das mais singelas s mais trgicas e desoladoras. Viam tudo que possuam ser enterrado em grandes buracos, suas casas com todos os seus pertences, livros, brinquedos:

[E]enterram tudo com areia e barro e comprimem. No lugar da aldeia fica um campo liso. A nossa casa est enterrada l. E a escola, o soviete local. E tambm o meu herbrio e dois lbuns de selos, que eu sonhava em buscar. Eu tinha uma bicicleta. Tinham acabado de comprar para mim (ALEKSIVITCH, 2016, p. 346).

O desastre significou uma guerra atmica, desde a movimentao de pessoas na regio at a luta pela vida. Alguns utilizavam a expresso campo de concentrao, campo de Tchernbil para se referirem ao territrio contaminado pelos elementos qumicos radiativos. [...] hoje a guerra outra. No dia 26 de abril de 1986, ns sobrevivemos a uma guerra. Uma guerra que no terminou (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120). Os militares e todos os que serviram em Tchernbil foram considerados por muitos como heris:

Eu os considero heris, e no vtimas de guerra, de uma guerra que como se no tivesse acontecido. Chamam de acidente, de catstrofe. Mas foi uma guerra. At os nossos monumentos de Tchernbil parecem militares [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).

Assim como acontece em um cenrio de guerra, as pessoas serviam, muitas voluntariamente, outras por presso. Contudo, no recusavam a misso, at mesmo cientistas se dispuseram ao trabalho braal, como conta uma testemunha Svetlana:

[S]ou engenheiro qumico, doutor em cincias qumicas, e me obrigaram a abandonar o emprego de responsvel por um laboratrio qumico num importante complexo industrial. E como me utilizaram? Pem nas minhas mos uma p. Esse foi praticamente o meu nico instrumento. Foi aqui que nasceu o aforismo: contra o tomo, a p [Ivan Jmkhov] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 247).

Aqueles que sobreviveram catstrofe tiveram que lidar, como se no bastasse o trauma imensurvel do desastre e as condutas de guerra, com o preconceito e a discriminao. [A]s pessoas tm medo de ns. Dizem que somos contagiosos. Por que Deus nos castigou? [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 74). O fato de terem sido altamente expostos radiao os tornou um povo txico:

Podamos ter ido embora daqui mas considerei com meu marido e decidimos ficar. Temos medo das outras pessoas. Aqui ao menos so todos de Tchernbil. No assustamos um ao outro; se algum oferece mas ou pepinos do seu jardim, da sua horta, ns pegamos e comemos. No escondemos os alimentos com vergonha no bolso para depois jog-los fora. Todos ns temos a mesma lembrana, a mesma sorte. Em qualquer outro lugar, em qualquer parte ns somos estranhos. Apestados. Olham para a gente de rabo de olho. Com receio. As pessoas nos chamam gente de Tchernbil, crianas de Tchernbil, evacuados de Tchernbil. J estamos acostumados [Nadijda Burakova, habitante do povoado urbano de Jiniki] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 290).

Podemos observar no relato supracitado que os danos foram muito alm de fsicos, psicolgicos e materiais, mas tambm foram morais, afetaram a vida humana, social, e at ntima. Sabendo da impotncia sexual masculina como uma das sequelas da alta radiao, um jornalista tentou tratar do assunto com alguns militares que atuaram no acidente; entretanto, nenhum deles se abriu para falar sobre a questo; conseguiu somente confidncias de algumas mulheres que os conheciam:

[O]lhe, agora mesmo estavam sentados aqui com vocs uns rapazes (elas riem), pilotos. Uns caras de dois metros. Cheios de medalhas. Para os sovietes eles so bons, mas para a cama no prestam [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).

O fantasma da consequncia ntima, sexual, cercava os homens que trabalharam diretamente no acidente nuclear, pois as mulheres, tendo conhecimento disso, no desejavam se unir a eles para namorar nem casar:

[G]ostei de uma garota: Vamos namorar?. Para qu? Voc agora um dos de Tchernbil. Quem vai querer casar com voc?. Conheci outra garota. Nos beijamos, namoramos. A coisa estava ficando sria. Vamos nos casar, eu propus. E ela me perguntou algo mais ou menos assim: Ser que voc pode? Est em condies?. Eu iria embora daqui, e certamente ainda vou. Mas tenho pena dos meus pais... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 115).

Tchernbil passou a ser considerada como doena:

[U]m dia, morreu inesperadamente uma jovem grvida. Sem diagnstico algum, nem sequer o patologista deu o diagnstico. Uma menina se enforcou. Do quinto ano. Assim, sem mais nem menos. Os pais ficaram loucos. O diagnstico era o mesmo para todos: Tchernbil, quando acontecia algo, todos diziam: Tchernbil... [Nina Konstantnovna, filloga, professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 165).

Alm de diagnstico mdico, Tchernbil passou a servir tambm como justificativa para os problemas da nao, assim como as guerras. A catstrofe trouxe novamente as medidas extremas por parte do governo, redistribuio e racionamento: [a]gora surgia a possibilidade de jogar tudo na conta de Tchernbil. Se no fosse Tchernbil... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 335).

A catstrofe criou um povo, surgiu um novo grupo: [o] mundo se dividiu: h os de Tchernbil, ns; e h vocs. O resto dos homens [Nikolai Jrkovi, professor] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 172).

A metodologia de coleta de informaes e testemunhos utilizada por Svetlana Aleksivitch proporciona a exposio de vrios casos, crendices e supersties, o que comum na histria oral. Essas vozes reunidas formam um coro, como denominado pela prpria autora em alguns captulos do livro. Muitas ressoam a religio e a f, um suporte comum e efetivo para a sobrevivncia daqueles que recorrem crena e se apegam a ela.

O humor, apesar de contraditrio, s vezes, se tornava tambm um modo de escapismo, uma espcie de fuga da realidade cruel em que o povo de Tchernbil estava inserido. H certo estranhamento quando refletimos sobre um fato trgico ser ou no risvel, mas anedotas eram comuns entre a populao da regio. H um episdio cmico que exemplifica a possibilidade de rir para no chorar:

[C]hora quem no labora... Veja uma ucraniana que vende no mercado umas mas grandes e vermelhas. Ela grita: Comprem mas! Mas de Tchernbil!. Algum a aconselhou: No diga, moa, que de Tchernbil. Assim ningum vai comprar. Que nada! Compram sim, e como! Uns levam para a sogra, outros para o chefe [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 78).

Ao mesmo tempo, as pessoas enxergavam a beleza e o horror que as rodeava. As terras soviticas no entorno de Tchernbil so descritas no livro como paisagens belas: [E] essa mesma beleza era o que fazia daquele horror algo ainda mais pavoroso. O homem tinha que abandonar aqueles lugares (ALEKSIVITCH, 2016, p. 136). Alguns dos testemunhos registrados pela autora lamentam que as pessoas no puderam mais desfrutar dos prazeres cotidianos, como nadar nas guas lmpidas de seus rios, ou colher flores e frutos dos seus bosques.

O que percebemos nos registros de Svetlana Aleksivitch que houve muita negligncia e desordem por parte das autoridades e dos responsveis pela conduo do caso: [N]o escreva sobre as maravilhas do herosmo sovitico. Tambm houve, verdade. Mas primeiro voc deve falar da negligncia e da desordem, depois das proezas [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 111), e que, apesar da disposio ao sacrifcio que o povo demonstrou, o descaso do governo o que tiveram em troca:

[S]omos pobres, sobrevivemos de donativos. O comportamento do Estado, por outro lado, de pura vigarice, abandonou essa gente por completo. Depois que morrem, inscrevero o nome delas em ruas, escolas ou alguma unidade militar, mas s depois que morrerem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 216).

[E] nas sesses da comisso governamental, informava-se de maneira simples e habitual que: para tal coisa deve-se perder duas ou trs vidas; para outra, uma vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 220).

Nem mesmo beira da morte era comum o arrependimento por ter servido a ptria em Tchernbil: [U]ma vez eu lhe perguntei: Voc agora se arrepende de ter ido?. E ele moveu a cabea, dizendo: no (ALEKSIVITCH, 2016, p. 359).

A censura era uma constante em relao ao acidente nuclear. Jornalistas, cinegrafistas, fotgrafos eram rechaados durante sua atuao, tinham seus instrumentos de trabalho confiscados: [E]ra proibido filmar a tragdia, s se podia filmar o herosmo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 219). Assim como todas as instncias sociais eram controladas pelo governo, tambm a medicina e outras cincias eram submissas poltica, por isso geralmente se omitiam as informaes mais polmicas e a verdade sobre os ndices de radiatividade na regio.

Mesmo em meio catstrofe, a cultura de privilgios continuava reinando. Um relato de Vozes de Tchernbil denuncia um caso de desamparo de uns em favor de outros, que tinham prioridade por serem ricos:

[V]m minha memria alguns fragmentos. Cenas. Um presidente de colcoz retira em dois caminhes todas as suas coisas, a sua famlia, os mveis; e o responsvel do Partido exige um carro para eles. Exige justia. Eu sou testemunha de que por vrios dias no conseguiam sequer retirar de l as crianas da creche. No havia transporte (ALEKSIVITCH, 2016, p. 159-160).

Houve em torno do desastre nuclear muitos mitos. As consequncias da tragdia eram difundidas entre as pessoas locais e as que no residiam na regio. O imaginrio sempre um espao frtil, e, diante de um fato como esse, a mitologia passou a fazer parte do cotidiano popular:

[O]s jornais e as revistas competem entre si para ver quem escreve as coisas mais terrveis, e esses horrores agradam, sobretudo queles que no os viveram. Todo mundo leu algo sobre os cogumelos do tamanho de uma cabea humana, mas ningum os encontrou. Como os pssaros de duas cabeas (ALEKSIVITCH, 2016, p. 173).

Mitologias parte, mudanas de fato aconteceram tanto na paisagem, quanto no carter nacional:

[N]o apenas a paisagem mudou, pois onde antes se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas tambm o carter nacional mudou. Todos esto depressivos. O sentimento de estarem irremediavelmente condenados. Para uns, Tchernbil uma metfora, um smbolo. Para ns, a nossa vida. Simplesmente a vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 291).

A catstrofe de Tchernbil gerou um trauma mais amplo, alm dos aspectos fsicos, psicolgicos e sociais, surgiu um trauma da cultura:

Por que se escreve to pouco sobre Tchernbil? Os nossos escritores continuam a escrever sobre a guerra, sobre os campos de trabalho stalinistas, mas calam sobre Tchernbil. H um, dois livros e acabou-se. Voc acha que mera casualidade? O acontecimento ainda est margem da cultura. um trauma da cultura. E a nica resposta o silncio. Fechamos os olhos como crianas pequenas e acreditamos que assim nos escondemos, que o horror no nos alcanar [Evguni Brvkin, professor universitrio] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 130).

Como j sinalizado por Svetlana em seu discurso na Academia sueca na cerimnia do prmio Nobel de literatura, a cultura da tragdia inerente ao povo sovitico. Outro relato de uma testemunha tambm chama a ateno para a questo quando reflete [s]obre o destino da cultura russa, sobre a sua inclinao para o trgico. Sem a sombra da morte, no se podia entender nada. S sobre a base da cultura russa seria possvel entender a catstrofe. S a nossa cultura estava preparada para entende-la (ALEKSIVITCH, 2016, p. 296).

Embora o povo sovitico estivesse sempre acostumado cultura da tragdia, houve um estado de choque decorrente do desastre de Tchernbil, uma impotncia coletiva diante do trauma: [M]e incomoda a minha experincia como professora. [...] Eu me sinto impotente. H cultura antes de Tchernbil, e nenhuma cultura depois de Tchernbil. [...] onde esto os nossos escritores, os nossos filsofos? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 283).

Quando lidamos com testemunhos de violncia, com lembranas traumticas, comum nos depararmos com o discurso do indizvel. Faltavam palavras para descrever as experincias, a lngua no d conta de traduzir a memria, como afirma Giorgio Agamben sobre a tragdia da Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Em sua obra O que resta de Auschwitz, Agamben (2008, p. 11) observa as dificuldades dos testemunhos de guerra em que trata-se de narrar o que aconteceu e de afirmar que o que aconteceu no faz parte do narrvel. Algumas testemunhas encontram outras formas de expresso quando o discurso no possvel ou suficiente: [P]or que me tornei fotgrafo? Porque me faltam as palavras (ALEKSIVITCH, 2016, p. 298).

Apesar das experincias do horror e do trauma, houve um aprendizado da humanidade depois do desastre. Na concepo de uma testemunha entrevistada por Svetlana Aleksivitch: [N]o s ns, mas toda a humanidade se tornou mais sbia depois de Tchernbil. Amadureceu, entrou em outra idade [Guendi Gruchevi, deputado bielorrusso] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 185).

As pessoas, geralmente, passam a refletir mais sobre sua existncia quando ocorrem desastres como em Tchernbil. possvel reconhecer em situaes extremas a efemeridade da vida e a importncia do registro dos fatos histricos, pois esses normalmente se consolidam como verdades do mundo e entram para a Histria oficial, como exemplifica o excerto abaixo:

[E]u sonhava! Lamentava no estar l em 1917 ou em 1941. Hoje penso de outra forma: eu no quero viver a histria, no tempo histrico. A minha pequena vida ficaria imediatamente sem defesa. Os grandes acontecimentos a esmagariam sem sequer not-la. Sem se deter. Depois de ns, restar apenas a histria. Restar Tchernbil. E onde est a minha vida? O meu amor? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 270).

Apesar da conscincia da finitude de suas vidas annimas, alguns se apegam crena na histria, de modo que esperam a justia com o passar do tempo: [E]u creio na histria. No julgamento da histria. Tchernbil no terminou, apenas comea [Vassli Nesternko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Cincias da Belars] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 328).

As imagens apocalpticas de Tchernbil so como uma verso tecnolgica de fim do mundo. No obstante, Svetlana Aleksivitch pondera sobre a possibilidade de incidentes catastrficos como esse se repetirem:

Antes de tudo, em Tchernbil se recorda a vida depois de tudo: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Voc se pergunta o que isso: passado ou futuro? Algumas vezes parece que estou escrevendo o futuro (ALEKSIVITCH, 2016, p. 51).

Podemos concluir que a contribuio da tcnica de coleta de testemunhos orais fundamental para preencher as lacunas da histria oficial, que frequentemente no privilegia alguns discursos populares importantes. A tentativa de silenciamento e excluso das vozes que denunciam os horrores e as injustias de uma nao encontra resistncia quando esses sujeitos marginalizados social e culturalmente encontram um lugar de fala como o que oferece a obra de Svetlana Aleksivitch.

 

Referncias

 

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2008.

 

ALEKSIVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear. Trad. Sonia Branco. So Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

FREUD, Sigmund; STRACHEY, James; FREUD, Anna, STRACHEY, Alix; TYSON, Alan; SALOMO, Jayme. Edio Standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 24v.

 

HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Trad. Beatriz Sidou. So Paulo: Centauro, 2004.

 

SELIGMANN-SILVA, Mrcio (org.). Histria, memria, literatura: o testemunho na era das catstrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

 

SELIGMANN-SILVA, Mrcio; NESTROVSKI, Arthur (org.). Catstrofe e representao. So Paulo: Escuta, 2000.

 

 

[Recebido: 21 jul 2020 – Aceito: 25 set 2020]


 

Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm

 

 

Rap and Resistance: Necropolitics and Scale in Os meninos correm

 

 

Everton Santos de Brito[79]

https://0000-0002-2182-1700

 

Karina Figueredo Souza[80]

https://0000-0002-5704-9767

 

Lucas Santos Caf[81]

https://0000-0003-2654-0788

 

Maria Thereza de Oliveira Azevedo[82]

https://0000-0003-2912-2346

 

Resumo: Este artigo se prope a um exerccio de anlise do poema oral Os meninos correm da rapper Pacha Ana, para refletir sobre o mal-estar do tempo presente e as possibilidades de resistncia pela oralidade. O conceito de escala foi desenvolvido pela sociolingustica e, neste artigo, nos baseamos na coletnea organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema. A noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando compreender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade como elementos dinmicos. Na discusso, um dilogo com as epistemes decoloniais e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.

Palavras chave: Resistncia; Escala; Necropoltica; Rap; Os meninos correm.

 

Abstract: Exercise in the analysis of the oral poem Os meninos correm from Pacha Ana, to reflect on the discomfort of the present time and the possibilities of resistance, that's what it proposes this article. The concept of scale developed by sociolinguistics, based on the collection organized by E. SummersonCarr and Michael Lempert on the topic, is the reference for the analysis. The notion of scale contributes to the understanding that reality is not static, seeking to understand things, processes, events, history, society as dynamic elements. In the discussion, a dialogue with the decolonial and afro-diasporic epistemes, above all, based on the reflections of Professor Achille Mbembe and the concept of necropolitics.

Key words: Resistance; Scale; Necropolitics; Rap; Os meninos correm.

 

 

Os meninos correm da bala, da vala, da farda

Pacha Ana

 

 

Ela apruma o corpo, levanta a cabea com altivez, ergue o brao direito para o alto, em posio de luta, como se estivesse se preparando para uma guerra. Os cabelos com um volumoso dread agigantam a sua figura no palco. No antigo pelourinho da cidade, na Praa da Mandioca, centro histrico de Cuiab, capital do estado de Mato Grosso, Ana Gabriela Santana, a rapper Pacha Ana evoca seus ancestrais para falar/batalhar do/no tempo presente. A palavra sua arma. Sua voz ecoa na praa: Os meninos correm da bala, da vala, da farda. a competio de poesia falada, o Slam[83] do Capim Cheiroso que entrecruza periferias e centro redesenhando novas linhas de comunicao com a cidade. A artista mato-grossense, mulher, negra, MC, rapper, poeta, cantora e compositora, tem se destacado no cenrio nacional e h tempos se debrua nesta temtica da denncia/resistncia, buscando inspiraes e aprendizagem na prpria experincia histrica do povo negro, sobretudo, das mulheres pretas.

Neste artigo,[84] optamos por trazer o poema Os meninos correm de Pacha Ana[85] para propor um exerccio de anlise a partir da noo de escala, desenvolvida pela sociolingustica, tendo como referncia a coletnea organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema, em dilogo com epistemes decoloniais[86] e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.

 

 

 

O rap e as oralidades urbanas

 

Muitas so as prticas da oralidade, da performance, da palavra, seja escrita nos muros ou falada/cantada em forma de rap, que ocupam os espaos da cidade para discutir/escancarar a poltica de extermnio de algumas populaes. No Brasil, essas expresses nos alertam principalmente sobre as polticas de morte e os genocdios enfrentados pelas populaes negras. O rap, por exemplo, reverbera nos coletivos que se organizam de vrias maneiras, seja em forma de batalhas ou slams ou mesmo em apresentaes nas ruas, em shows. O RAP (rhythm and poetry) tem ressonncia das narrativas orais africanas e remete tradio dos griots[87]. A fora da palavra oral da dispora africana funciona como um mecanismo depositrio de conhecimentos preservados que os colonizadores interditam no discurso oficial (CARVALHO, 2014, p. 325). Retomando a tradio africana da oralidade, o rap surgiu nos bairros jamaicanos na dcada de 1960 e foi levado para os bairros pobres de Nova Iorque, no comeo da dcada de 1970. No Brasil, o rap foi disseminado em So Paulo, na dcada de 1980, nas danas de break entre os integrantes do movimento hip-hop.

As narrativas do rap normalmente so relatos de violncia, discriminao, excluso e injustia social contra grupos historicamente subrepresentados e postos em situao de marginalidade. Essa manifestao da literatura oral urbana considerada pelo historiador Robin Kelley como uma arma poderosa na luta pela libertao negra (KELLEY, 2002, p. 11). Est fundamentado em uma potica da luta e da experincia vivida (KELLEY, 2002, p. 9), uma forma de resistncia cultural para lidar com as condies da vida diria, das opresses quotidianas, da sobrevivncia (KELLEY, 2002, p. 11). O rap ganhou fora nos espaos perifricos das cidades brasileiras e acabou por criar especificidades, poticas singulares a partir do lugar onde se manifesta.

 

 

O mal-estar do tempo presente

 

No tempo presente, o que qualificamos como um mal-estar pode ser percebido a partir da intensificao de certo repertrio afetivo: discursos-afetivos de dio, xenofobia, racismos, misoginia, homofobia, incivilidade, intolerncias, violncias e tantas outras atrocidades naturalizadas, que segregam, ceifam vidas, todavia, so elevadas condio de normalidade. Boa parte desse mal-estar causada pela disseminao das ideias neoliberais de desempenho, competio, hiperconcorrncia, sucesso e hiperindividualismo que produzem discursos de dio e buscam destruir possveis prticas de solidariedade.

Os discursos fascistas vm recheados de clichs que se amparam em fundamentalismos religiosos, apagamento e silenciamento histrico, memoricdio, epistemicdio da diversidade de saberes, gneros e sexualidades que divergem do conceito de famlia tradicional, na qual, o pilar o homem branco, produzindo assim, ideologias e prticas txicas que no so defensveis eticamente. Apoiam-se na inveno de um passado mtico para legitimar um ideal de pureza de raa e crena, ligado tambm ao ideal de fronteiras, que so ao mesmo tempo fronteiras geogrficas e simblicas, revelando uma sociedade atrelada a uma srie de dicotomias classificatrias, sendo a classificao racial a mais importante delas, pois, como afirma Anbal Quijano, a racializao das relaes de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o sustento e a referncia legitimadora fundamental do carter eurocentrado do padro de poder, material e intersubjetivo (QUIJANO, 2009, p. 107).

A diversidade de ideias, a manifestao da pluralidade de epistemes assusta os indivduos dessa sociedade causadora do mal-estar, justamente, porque desestabiliza discursos hegemnicos e hierarquias estabelecidas nos processos de dominao. Na tentativa de perceber possibilidades e desvios diante da sensao de incapacidade, de paralisia que este cenrio impe, nos propomos ao exerccio de observar um modo de resistncia que se d pela oralidade do rap. Assim, buscamos construir uma reflexo a partir de uma narrativa que pode ser uma alternativa para alertar sobre esses tempos no como o fim do mundo, o fim dos caminhos e a perda das esperanas, mas como denncia e resistncia na busca de uma sociedade mais humana, diversa e plural. Ao observarmos o poema oral Os meninos correm, escrito para ser falado, nos detivemos na sua forma, utilizando o conceito de escala, para perceber uma potica de resistncia.

 

 

Escala e a construo de sentidos na forma

 

               A escala um conceito que veio da geografia e foi desenvolvido na antropologia lingustica e na sociolingustica, na tentativa de buscar outras formas de observao dos objetos. Para o sociolinguista Jan Blommaert: Teorizar envolve a explorao de novas imagens e metforas, capazes de nos ajudar a imaginar objetos de forma distinta, a v-los como diferentes, objetos que exigem abordagens analticas diferentes (BLOMMAERT, 2007, p. 1).

               Assim, a partir da compreenso do conceito de escala, apresentado na obra Scale – Dicourse and Dimensions of Social of Social Life[88] pelos organizadores E. Summerson Carr e Michael Lempert, podemos dizer que se trata da formao do sentido que possumos de real e de concretude, pois a noo de escala no possui um carter hegemnico. Os autores salientam que o mundo material no pr-configurado, h na materialidade do mundo um complexo trabalho de construo semitica, envolvendo signos lingusticos e no lingusticos. (CARR; LEMPERT, 2016). Entre outras acepes, a noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando entender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade como elementos dinmicos. Esta construo no-esttica amplia a possibilidade de nos relacionarmos com o objeto de anlise. (CARR; LEMPERT, 2016). A compreenso de escala sugere movimento e anlise – ampliar os referenciais e se manter aberto se torna uma necessidade de um trabalho escalar. Movimento escalar um movimento produtor de sentidos, sendo que o nosso processo de significao sempre escalar, uma vez que para atribuir significados daquilo que real ou material sempre fazemos projees (CARR; LEMPERT, 2016). As metforas, por exemplo, so uma projeo escalar. Produo de narrativas so sempre projees escalares. Fenmenos escalares so sempre fenmenos relacionais, assim toda empreitada relacional comparativa. Analogias, totalizaes, sistemas classificatrios e esteretipos so relacionais, portanto escalares. O sentido no definitivo, assim, ao nos lanarmos ao exerccio de propormos novas projees, obteremos resultados completamente diferentes. Para os autores no h escalas ideologicamente neutras, e pessoas e instituies que se destacam nos exerccios escalares geralmente reforam as distines que os ordenaram (CARR; LEMPERT, 2016, p. 3. Traduo nossa).[89]

Pensando, ento, na relao entre as imagens disparadas pelo poema Os meninos correm de Pacha Ana e as que construmos a partir do contato com a obra de Achile Mbembe, realizamos um exerccio de anlise da estrutura do poema, dentro de uma perspectiva escalar. Como defendem Carr e Lempert (2016, p. 3. Traduo nossa):

as escalas nas quais os atores sociais se baseiam para organizar, interpretar, orientar e agir em seus mundos no so dadas, mas so construdas – e um tanto trabalhosas. Escalar no simplesmente assumir ou afirmar grandeza ou pequenez por meio de clculo. Pelo contrrio, [...] as pessoas usam a linguagem para dimensionar o mundo ao seu redor. [...]. Embora as coisas possam ser grandes, por analogia, a criao de escala sempre implica em distines, entre a grandeza da costela de uma baleia e a pequenez de um mrmore, por exemplo. Como um esforo inerentemente relacional e comparativo, o dimensionamento pode assim conectar e at confinar o que geograficamente, geopoliticamente, temporalmente ou moralmente prximo, ao mesmo tempo em que distingue essa proximidade da que est distante. Da mesma forma, hierarquias em escala so os efeitos dos esforos para classificar, agrupar e categorizar muitas coisas, pessoas e qualidades em termos de graus relativos de elevao ou centralidade. Por exemplo, pense em como uma entidade ou domnio parece abranger outro, como em mapas que subordinam localidades de ordem superior, unidades administrativas ou do modo como se pensa os estados-nao, as comunidades acima.[90]

 

 

Os meninos correm – escala e necropoltica – um dilogo possvel.

 

Os meninos correm

Os meninos correm,

Os meninos correm almejando tudo,

almejando o mundo,

pensando que a pressa a soluo pra tudo,

mas no no.

Eles correm por medo,

correm em segredo,

correm na contramo.

Os meninos correm por causa do atraso, correm pra no ser um fardo, e isso nem um caso isolado.

Os meninos correm,

alguns porque gostam,

outros s porque precisam mesmo.

Inclusive, os meninos correm mas nem todos chegam mais cedo.

Alis, alguns nem chegam.

Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm

e todo dia quando ele sai, a me pede amm

pra que nada, nem ningum

tire o seu maior bem.

Ela reza:

Oromima, oromimayor, oromimayor, iabadoaiio

Oromima, oromimayor, oromimayor, iabadoai, io

Ai, ai oxum, ora i

Ai, ai oxum, ora i

Isso porque os meninos correm,

mas se for de madrugada e ele for preto

j suspeito!

Parece que ser escuro defeito.

Os meninos correm da bala, da vala, da farda,

COMO SE AINDA EXISTISSE SENZALA!

Se vive at os 21, lucro.

Isso culpa de um sistema fajuto,

onde alguns meninos correm e chegam,

outros, deixam mes em luto.

(Pacha Ana, fevereiro de 2017)

 

Pacha Ana, fazendo uso do seu lugar de fala – entendendo que lugar de fala tambm a fala de lugar –, por meio da oralidade, olha para uma populao que se situa margem, para atravs do afeto nos aproximar de corpos silenciados, identificados como suspeitos por um estado de exceo permanente. Os meninos correm traz uma possibilidade de reflexo sobre os processos de retirada de direitos, extermnios de populaes racializadas[91] o poder sobre a vida, para construir, assim, um contra discurso. Mbembe (2016, p. 123) afirma que: matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantao e manifestao de poder. E ainda diz que a soberania a capacidade de definir quem importa e quem no importa, quem descartvel e quem no (MBEMBE, 2016, p. 135), sendo que tm se caracterizado como descartveis os seres humanos do sul global, ou seja, os no europeus, que foram classificados como inferiores a partir de um processo de naturalizao de relaes sociais que visavam atender os poderosos interesses articulados com a consolidao do capitalismo/colonialismo/patriarcado.

No poema, a utilizao da palavra correm, numa escala de repetio, sugere distintas imagens, que percorrem desde a leveza do simples ato de correr, do imaginrio de meninos que flertam com a infncia e a liberdade, at o peso da realidade de alguns corpos que precisam correr para no morrer ou que so mortos enquanto esto correndo. Pacha Ana, ao trazer uma orao/saudao de matriz africana, construindo uma aluso a vozes das mes pretas, utiliza projees escalares de ancestralidade, racialidade, temporalidade, espiritualidade. Demarca um lugar, sugere um ritmo, uma sonoridade, invoca corpos portadores de saberes ancestrais, tradies orais, propondo olhares para uma cultura que vem sendo historicamente perseguida, constantemente desvalorizada e violentamente silenciada. Grosfoguel (2014) afirma que a expanso colonial europeia significou o genocdio e o epistemicdio de indgenas, africanos e de mulheres. Alm disso, o colonialismo realizou um enorme memoricdio, sendo que a estrutura de conhecimento que domina as universidades de todo o mundo est atrelada estrutura imperialista colonial de poder. O homem ocidental, europeu, branco, heterossexual, cristo, quem decide o que o melhor para as demais populaes de todo mundo. Nesses processos, ele despreza, invisibiliza, destri e assassina sociedades inteiras, suas culturas e seus saberes. Segundo Grosfoguel, autores homens, brancos, de cinco pases formam os cnones da cincia desenvolvida em qualquer universidade do mundo. Isso revela um racismo e um sexismo epistemolgico iniciado com a modernidade e o colonialismo. Dessa forma, para descolonizar o pensamento necessrio dialogar com uma diversidade epistmica, buscando enriquecer a maneira de ver o mundo. Ouvir a voz dos colonizados, estabelecer dilogos com saberes e epistemes ancestrais constituem caminhos possveis para a descolonizao do conhecimento. O pensamento e os saberes compartilhados por Pacha Ana, uma mulher negra, por meio do poema Os meninos correm, se colocam na contramo da colonizao e da permanente colonialidade. A ancestralidade evocada pela poetisa nos faz dialogar com mltiplas epistemes, mltiplos saberes, sobretudo saberes que foram esmagados pela modernidade. Pacha Ana se coloca na contramo da sociedade do mal-estar no por dar voz ancestralidade, mas por aprender com ela e, assim, tornar-se/ser tambm essa ancestralidade.

No trecho em que, optando por destacar o verso com letras maisculas, sugere um grito, uma ateno maior: COMO SE AINDA EXISTISSE SENZALA! observamos uma escala emocional-irnica e histrica, que expe uma indignao pulsante, descrevendo o cenrio que questiona. Em outro fragmento identificamos escalas classificatrias e de ironia: mas se for de madrugada e ele for preto / j suspeito! / Parece que ser escuro defeito, que evidencia a poltica de extermnio de corpos negros. Numa escala crtica, o trecho Se vive at os 21, lucro, situa a realidade destes corpos que esto margem, sinalizados, marcados para morrer. Pudemos identificar ainda outras projees escalares dentro do poema, como por exemplo: escalas de indignao, como no trecho Isso culpa de um sistema fajuto, onde alguns meninos correm e chegam, outros, deixam mes em luto; metafricas, como em correm na contramo e correm para no ser um fardo; bem como poltico-crticas, em Eles correm por medo, correm em segredo e Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm.

A cada vinte e trs minutos um jovem negro assassinado no Brasil[92]. Exrcito dispara 80 tiros em carro de famlia no Rio e mata msico[93]. 75% das vtimas de homicdio no Pas so negras[94]. Assassinatos de jovens negros no Brasil aumentam 429% em 20 anos[95]. Quando nos deparamos com alguns dados sobre a violncia e a criminalidade no Brasil, colocamo-nos diante de informaes alarmantes, tanto pelo contedo, quanto pela dimenso miditica a qual esse contedo submetido. Que corpos merecem viver? Que corpos merecem morrer? Quem tem o poder de deciso? O poema Os meninos correm discute essas questes e expe possveis respostas, ainda que numa perspectiva irnica, a essas perguntas.

            Na obra Discurso sobre o Colonialismo, Aim Csaire reflete sobre os diversos nazismos cometidos contra povos no europeus, sobretudo os que existiram durante todo o perodo de colonizao e escravizao das populaes negras, apontando que esses nazismos sempre foram aceitos pela populao europeia:

no fundo o que no perdovel em Hitler no o crime em si, o crime contra o homem, no a humilhao em si, seno o crime contra o homem branco, a humilhao do homem branco, e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que at agora s concerniam aos rabes da Arglia, aos coolies da ndia e aos negros da frica (CSAIRE, 2010, p. 21).

Dialogando com Csaire e Frantz Fanon, Mbembe (2016) observa que o estado de exceo no foi fundado com o nazismo, pois ele existiu anteriormente para as populaes negras. A escravido moderna seria um exemplo de estado de exceo, ou melhor, um estado de terror duradouro. E esse terror duradouro, identificado por Mbembe, simboliza a realidade de boa parte dos negros e das negras brasileiras. Atravs do cruzamento dos dados do IBGE sobre a populao negra no Brasil e o poema de Pacha Ana, podemos afirmar que os negros vivem em um estado de exceo contnuo, um mundo de morte, de mortos-vivos, que, segundo o autor, no pode ser explicado seno pela perspectiva da necropoltica. As novas formas de matar, de fazer de vivos mortos-vivos, no podem ser elucidados pelo biopoder, uma vez que, esta questo uma poltica de morte, um ideal de extermnio que acompanha as populaes negras desde a colonizao.

A necessidade de olharmos para os corpos negros ressaltada quando olhamos os dados, por exemplo, divulgados pelo Atlas da Violncia 2019, produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada), e que publica estudos e dados relacionados ao ndice de violncia no Brasil. Segundo este estudo:

Em 2017, 75,5% das vtimas de homicdios foram indivduos negros (definidos aqui como a soma de indivduos pretos ou pardos, segundo a classificao do IBGE, utilizada tambm pelo SIM), sendo que a taxa de homicdios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de no negros (brancos, amarelos e indgenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente s respectivas populaes, para cada indivduo no negro que sofreu homicdio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos (IPEA, 2019, p. 49).

Correr brincando, correr para chegar escola, correr para pegar o nibus, correr por esporte, correr para no morrer, correr para no ser eliminado. Pacha Ana nos conecta com O Genocdio do negro no Brasil, uma das primeiras obras escritas por um intelectual negro brasileiro, visando o combate ao racismo e discriminao racial em nosso pas. Abdias do Nascimento (2016) detalha como, historicamente, no Brasil, foi se formando e se construindo um processo de um racismo mascarado. Segundo ele, o processo comea com a rejeio da histria dos africanos e seus descendentes, passando pelo mito da benevolncia do branco portugus para com o negro e das possveis contribuies do branco civilizado para com o negro incivilizado. Para Abdias, na construo desse racismo mascarado, houve at quem dissesse que a escravido e outras atrocidades cometidas contra o negro, seria um mal necessrio para o processo de civilizao dos mesmos. Neste ponto, voltamos reflexo proposta por Csarie (2010), de que ao longo do processo de colonizao sempre foi permitido e aceito assassinar no europeus, sobretudo, negros.

Influenciado por Frantz Fanon, Nascimento (2016) denuncia a existncia do racismo no Brasil, enfatizando a desvalorizao da mulher e do homem negro em nosso pas, o branqueamento racial e cultural, a perseguio cultura africana, a bastardizao da cultura afro-brasileira e todas as estratgias de genocdio do negro e sua cultura em terras tupiniquins. Segundo o autor, o racismo camuflado existente no Brasil muito mais nocivo que o racismo declarado existente na sociedade estadunidense, pois sustentado pelo mito da democracia racial; o racismo brasileira se esconde, se camufla, finge no existir. O que dificulta a criao de mecanismos para combat-lo, contribuindo para um estado de terror duradouro para as populaes negras.

Walter Mignolo afirma que a colonialidade era a pauta oculta ou o lado escuro da modernidade. Segundo o autor, pensar o conceito de colonialidade j um ato descolonizador, pois preciso partir de um olhar decolonial para observar a barbrie existente por trs do discurso civilizatrio. Assim, ocultadas por trs da retrica da modernidade, prticas econmicas dispensavam vidas humanas, e o conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram naturalmente consideradas dispensveis (MIGNOLO, 2017, p. 1). Dessa forma, a partir da viso de Mignolo, podemos pensar que por trs do discurso de progresso e de desenvolvimento, esto prticas discursivas e representaes que tiram vidas, dizimam memrias e exterminam culturas. Autores decoloniais como Ramn Grosfoguel, Anbal Quijano e Walter Mignolo vo concordar que a principal tarefa dos tericos decoloniais quebrar com a colonialidade existente no mundo, a colonialidade est travestida de globalizao/modernidade:

H um fato na cultura de toda a Amrica, e na da Amrica Latina em particular, que envolve o mundo inteiro hoje em sua globalidade e que precisa ser reconhecido, questionado, debatido e evacuado: a colonialidade do poder. Esse o primeiro passo para a democratizao da sociedade e do Estado; da reconstituio epistemolgica da modernidade; da busca por uma racionalidade alternativa (QUIJANO, 2014, p. 767. Traduo nossa)[96]

Quebrar com a colonialidade significa utilizar a diversidade epistmica.

Em ambos os casos, a geopoltica e a corpo-poltica (entendidas como a configurao biogrfica de gnero, religio, classe, etnia e lngua) da configurao de conhecimento e dos desejos epistmicos foram ocultadas, e a nfase foi colocada na mente em relao ao Deus e em relao razo. Assim foi configurada a enunciao da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da enunciao que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ao descoloniais focam na enunciao, se engajando na desobedincia epistmica e se desvinculando da matriz colonial para possibilitar opes descoloniais – uma viso da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais, conhecimentos descoloniais e instituies descoloniais (MIGNOLO, 2017, p. 6).

 

 

Concluindo: os meninos ainda correm

 

Utilizando o conceito de escala para realizar um exerccio de anlise do rapper poema oral Os meninos correm, em dilogo com os conceitos de necropoltica e decolonialidade, acreditamos que o poema se apresenta como uma resistncia ao mal-estar que atravessa a nossa sociedade. Como, por exemplo, as possibilidades apresentadas de diferentes imagens para uma mesma palavra correm ampliam o nosso olhar, nossa forma de nos relacionarmos com a obra e, principalmente, ao que ela convoca, possibilitando questionamentos, propondo uma desestabilizao de sentidos pr-concebidos.

A poetisa rapper Pacha Ana prope um esforo de denunciar essa necropoltica que atravessa o tempo presente, apresentando uma forma de poema falado que questiona as normas criadas ou construdas culturalmente para excluir, subalternizar e dar prosseguimento lgica colonial que sustenta o atual padro de poder mundial. A partir de Os meninos correm, entendemos que possvel ressignificar as normas e os discursos que qualificam o mal-estar, revelando que nada eterno, absoluto e universal.

Se a colonialidade, as ideias neoliberais, o machismo, o racismo, a heterossexualidade compulsria nos obriga a ter determinados comportamentos, se as categorias de dominao construdas pelo homem branco (ocidental, htero, cristo) nos faz conviver com esse mal-estar, o poema tal como novas/outras epistemes pode apoiar na construo de questionamentos aos discursos e as prticas de dominao hegemnicas. Se as categorias de dominao foram socialmente construdas, se narrativas contam e constroem narrativas, podemos construir contranarrativas, outros discursos que tragam problemas que nos apiem em nossos processos de resistncia. No se trata de dar voz aos corpos oprimidos e sim de pluralizar nossas referncias e dialogar com diferentes epistemologias, no apenas como fonte de pesquisa, mas como produtora de saberes que historicamente foram desconsiderados. Descolonizar aprender e falar com o outro subalternizado. As tenses propostas aqui tiveram como inteno sulear a inquietao de pensarmos outros cenrios possveis e criar possibilidades de desestabilizar o pensamento hegemnico que insiste em se manter como verdade nica e curso natural da histria. Criar resistncia tambm desestabilizar o olhar colonial que assola o Brasil, determinando os espaos que as populaes negras devem ocupar na sociedade.

Deste modo, o exerccio de anlise do poema Os meninos correm, combinando o conceito de necropoltica de Achile Mbembe com a noo de escala para observar estas obras que povoam a oralidade urbana, podem trazer tona a construo de uma contra narrativa. Neste caso, a resistncia est contida tambm na forma do poema reforando a possibilidade de criao de outros modos de existncia.

 

 

Referncias

 

Blommaert, Jan. 2007. Sociolinguistic Scales. Intercultural Pragmatics 4 (1): 1-19.

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GROSFOGUEL, Ramn. De la crtica poscolonialala crtica descolonial. MAEID – MaestraenEstudiosInterdisciplinariosdelDesarrollo. UniversidaddelCauca. Popayn – Colmbia. Youtube: 16/10/2014. 100 min, cor. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=IpIfyoLE_ek&t=4337s>. Acesso em: 22 abr. 2019.

 

IPEA; FBSP. Atlas da violncia 2019. Organizadores: Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada; Frum Brasileiro de Segurana Pblica. Braslia: Rio de Janeiro: So Paulo: Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada; Frum Brasileiro de Segurana Pblica. 2019. Disponvel em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 1 nov. 2019.

 

KELLEY, Robin. Freedom dreams. The Black Radical Imagination. Boston: Beacon Press, 2002.

 

MBEMBE, Achile. Necropoltica. Biopoder, Soberania e Estado de Exceo. 2016. Disponvel em: < https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169 > Acesso em: jul. 2019.

 

MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. So Paulo: Revista Brasileira de Cincias Sociais. RBCS, Vol. 32, n. 94, junho/2017.

 

NASCIMENTO, Abdias. O genocdio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. So Paulo: Perspectiva, 2016.

 

QUIJANO, Anbal. Raza, Etnia y Nacin em Maritegui. In: _________. Cuestiones y horizontes: de La dependencia histrico-estructural a lacolonialidad/descolonialidaddel poder. Buenos Aires: Clacso, 2014.

 

QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder e classificao social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edies Almedina SA, 2009.

 

 

[Recebido: 14 out 2020 – Aceito: 19 set 2020]

 

 


Poticas Orais, corpo-memria e o ritmo das narrativas de mestres e mestras contadores de histrias tradicionais

 

 

Oral Poetics, memory-body and the rhythm from narratives of masters storytellers of traditional stories

 

 

Luciene Souza Santos[97]

https://orcid.org/0000-0002-6751-1070

 

Margarida da Silveira Corsi[98]

https://orcid.org/0000-0002-5216-8660

 

Lana Lula Amorim[99]

https://orcid.org/0000-0003-3784-4357

 

 

Resumo: O presente artigo versa sobre a literatura oral e a sua relao com a memria, por meio da voz de mestres e mestras da tradio, guardies da arte de contar histrias. A memria aqui apresentada nasce das vivncias e necessidades de comunidades que tambm as transmitem entre geraes. Uma memria passvel de sofrer mudanas geradas pelo tempo e pelas mltiplas vozes que a transmitem de um ouvido a outro, de um espao-tempo a outro. O texto reflete ainda sobre a importncia do corpo enquanto lugar de memria, engendrado em seus ritos, rituais e narrativas e compreende a literatura oral sob novas perspectivas paradigmticas e epistemolgicas. Por fim, esse trabalho tem seu foco tambm na compreenso de que escutando os contadores de histrias, com suas narrativas de vida e contos de tradio que a leitura da palavra, compreendida aqui como palavra no mundo e com o mundo, que a transmisso de saberes pelas vias da oralidade acontece. Esses mestres e mestras carregam consigo o papel de salvaguardar e dar movimento s memrias histricas e saberes coletivos, construindo as culturas e rompendo as lacunas, que ainda existem, entre o passado e o presente, entre a escrita e a oralidade.

Palavras-chave: Poticas orais. Corpo-memria. Contadores de histrias tradicionais.

 

 

Abstract: This article argues about oral literature and its relation with memory through the voice of tradition masters, guardians of the storytelling art. The memory presented here arises from the experiences and needs of communities that also transmit them among generations. A memory liable to undergo changes generated by time and by the multiple voices that transmit it from one ear to another, from one space-time to another. The text also reflects about the importance of the body as a place of memory, engendered in its rites, rituals and narratives and comprises oral literature under new paradigmatic and epistemological perspectives. Finally, this work also focuses on understanding that it is listening to storytellers with their life narratives and traditional talesthat the reading word, understood here as the word in the world and with the world, that the knowledge transmission through oral routes happens. These masters has the important role of safeguarding and movementing historical memories and collective knowledge, building cultures and bridging the gaps that still exists, between the past and the present, between writing and orality.

Keywords: Oral Poetics; Memory-body; Traditional storytellers.

 

 

O papel da memria enquanto resultado do entrelaamento das experincias cotidianas e o seu lugar nas prticas dos contadores de histrias

 

Era uma vez uma mulher que, ao amamentar, entoou a primeira cano de ninar, plantando, no pequeno recm-nascido, a semente do desejo de ouvir a voz que traz conhecimentos, vivncias, medos e prazeres. No muito distante dali, um velho paj narrava aos curumins lendas sobre Tup, Jaci e Guaraci. Do outro lado da montanha, um ancio africano contava, aos mais jovens, histrias da me-frica. O que eles tm em comum? Esses trs contadores – de modo semelhante aos repentistas, cantadores, griots, rakugokas, ancies de tribos indgenas ou avs urbanas – guardam na memria vivncias, tradies, mitos, crenas e, de modos singulares, transmitem seus conhecimentos e lies aos ouvintes, como se lhes entregassem um tesouro precioso que deve ser guardado, mas tambm dividido.

A literatura oral est ligada voz e memria. Ela nasce das vivncias e necessidades de comunidades que tambm as transmitem de boca em boca para ouvidos atentos e sedentos de conhecimento e fantasia. Narrada ou cantada oralmente, ela torna-se susceptvel s mudanas impostas pelo tempo e pelas mltiplas vozes que a transmitem de um ouvido a outro, de um espao a outro, de uma comunidade a outra.

Muitos gneros da oralidade so compostos em versos, como as narrativas cordelizadas, estruturadas em sextilhas, septilhas ou dcimas, que comprovam a afirmao de que o ritmo das frases, as partes finais ou iniciais semelhantes facilitam tremendamente a memorizao (LUYTEN, 1992, p. 8). A memorizao depende de muitos aspectos da narrao. A escolha das palavras, a musicalidade e a conciso dos elementos contribuem para que o narrador/contador guarde e transmita as lies e os encantamentos das narrativas.

Silva (2009) argumenta que as histrias orais so formadas na base da memria popular, sem determinar autoria, tempo, espao, sem atribuir nomes prprios. na voz murmurante da oralidade que os contos populares, romances sertanejos, cantigas, xcaras ganham vida e so transmitidos de boca em boca, atravs dos tempos e espaos. Assim tambm argumenta Oliveira (2012, p. 52), ao afirmar que as narrativas populares

conectam o homem com o seu mundo concreto, descrevem as vicissitudes e os caminhos seguidos ou por trilhar, mostram claramente a possibilidade de interveno no real, na medida em que a palavra voa de boca a ouvido, perpetuando a voz de um povo.

Depositrios de um tesouro imenso, os contadores de histrias transmitem aos ouvintes um conjunto de ideias, fatos e sonhos, atravs de contos, lendas, provrbios, ditados populares, canes e fbulas, provenientes do passado longnquo, quando a memria era o modo primordial de preservar e transmitir histrias, crenas e valores. Passadas de gerao em gerao, essas narrativas vo ganhando contornos prprios, de acordo com as necessidades das geraes, comunidades e estilos dos contadores de histrias. Assim,

as tradies populares como bens culturais imateriais so fludos e dinmicos, transformam-se continuamente, absorvendo elementos de outras culturas atravs dos mais variados meios. A prpria palavra tradio, do latim traditio, tradere, implica uma ao de entregar, de transmitir, de levar e de trazer de um lugar a outro (OLIVEIRA, 2012, p. 50).

Esse levar de um espao a outro ou de um ouvido a outro majestosamente exercido por contadores de histrias, cantadores de repente, recitadores de poesias orais. Narradores que transmitem as tradies e histrias de suas naes, e tambm de terras longnquas, associando vivncias, crenas e culturas, que servem de exemplo para as vivncias dos ouvintes. So estas vivncias, saberes e sonhos que tornam possveis histrias de peixes mgicos, mquinas voadoras, bois misteriosos, moas transformadas em touros, pedras em moas, curumins em pssaros, assim como de vaqueiros, cangaceiros ou beatos imbudos de imensa coragem.

Alm da importncia da memria, que permite ao contador de histrias transmitir oralmente fatos e mitos, o tempo da narrao tambm um elemento primordial da tradio oral. H um complexo fio da memria que perpassa por diferentes modalidades de tempo. Por exemplo, as expresses Era uma vez, Certa vez, remetem ao tempo mtico, da imaginao, um passado indefinido que permite ao narrador contar histrias inimaginveis. H o tempo histrico, que pode relatar oralmente fatos vivenciados pelo narrador, que, confiante em sua memria e em suas vivncias, relata-as aos seus descendentes.

Outro tempo possvel o tempo familiar que permite aos descendentes contarem a seus filhos e netos histrias de seus antepassados, como aquelas que o pracinha da Segunda Guerra trouxe na sua bagagem de experincias. possvel tambm falar em tempo pessoal, que diz respeito ao tempo dos nossos pais ou dos pais de nossos pais, que frequentemente afirmam No meu tempo... para enfatizar todo gnero de mudanas ocorridas desde suas infncias. Todas estas modalidades de tempo remetem a narraes orais que transmitem experincias vividas, ouvidas ou histrias ficcionais.

Nas narrativas orais tambm percebemos um espao voltil que marcado em expresses como Num lugar muito distante, Num certo reino, que permitem ao ouvinte a experincia catrtica de criar o lugar ideal ou relacion-lo ao seu espao particular. Assim tambm ocorre com relao composio dos perfis das personagens que, atravs de expresses como Havia uma mulher, nos liberta da obrigatoriedade de um perfil fixo de mulher e nos permite cri-lo em nossa imaginao, a partir de nossas vivncias, crenas e desejos.

Na acepo de Zumthor (2018), a narrao de uma histria comporta muito mais que aspectos verbais. A enunciao oral associa-se voz, entonao, aos gestos, s pausas, s expresses faciais, aos movimentos do corpo de quem narra, os quais chegam a quem ouve como elementos da trama, contribuindo para a significao do texto narrado ou cantado. Tudo isso est implicado na performance da narrao, Ҝnico modo vivo de comunicao potica (ZUMTHOR, 2018, p. 33), que nos permite experimentar a vida enquanto contamos ou ouvimos uma histria. Lembremos ainda que, para Zumthor (2018, p. 18),

Nas poticas transmitidas pela voz [...], a autonomia relativa do texto, em relao obra, diminui muito: [...] todo lugar da obra se investiria dos elementos performticos, no textuais, como a pessoa e o jogo do intrprete, o auditrio, as circunstncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relaes intersubjetivas, as relaes entre a representao e o vivido.

Para definir o conceito de performance, o medievalista recorre a suas leituras e pesquisas e conclui que precisamos considerar diversos aspectos, dentre os quais, destacamos: a necessidade de um acontecimento oral e gestual; a ideia de presena de um corpo; a energia propriamente potica marcada nas sensaes de contadores e ouvintes; a noo de espao que se torna possvel atravs do corpo (ZUMTHOR, 2018, p. 36-38).

Conforme Oliveira (2012, p. 48), preciso considerar as fases produo, transmisso (comunicao), recepo, conservao e repetio de histrias para encontrar as vozes sibilantes deste processo que vai da oralidade escrita. Estgios trabalhados por Zumthor (2018, p. 60), respectivamente, acerca da oralidade, como: formao, transmisso, recepo, conservao e reiterao. De acordo com Zumthor (2018), se a formao se opera pela voz, a transmisso se d quando um personagem, usando voz e gesto, recorre a palavra, que ser recebida por outro personagem por meio da audio e da viso, processos unidos pela performance do discurso, copresena geradora do prazer. A conservao est a cargo da memria, mas a memria implica, na reiterao, incessantes variaes recriadoras (ZUMTHOR, 2018, p. 61), o que o autor chama de movncia.

Contadores so nmades por excelncia – ou porque viajam de um pas a outro, de uma cidade a outra, de uma fazenda a outra, enfim, de um espao a outro; ou porque cruzam a linha do imaginrio, buscando outra atmosfera possvel que lhes permita e nos permita segui-los de um mundo a outro. Muitas histrias chegam atravs de homens e mulheres que vo de fazenda em fazenda, de cidade em cidade, narrando suas histrias maravilhosas que nos convidam a abrir nossas portas e almas. Essas narrativas nos incitam e nos levam a acolher essas palavras como um tesouro precioso e a aprender com elas que o estrangeiro/desconhecido pode ser um amigo que ainda no encontramos. Elas nos ensinam que preciso abrir nossos coraes para novas aventuras, novos conhecimentos, novas culturas (BRICOUT, s.d).

Aceitar o convite da voz narrativa funciona como entrar num mundo desconhecido, pertencente a outro, imergindo em outra atmosfera, como dos mitos e histrias indgenas ou africanos, do mundo maravilhoso de cavaleiros de prata, paves misteriosos, moas invisveis, melancias encantadas, mulheres douradas, prncipes valentes, homens lobos, curupiras, caiporas, mapinguaris, mulas sem cabea, botos que se transformam em homens, sereias com cantos hipnticos.

Silva (2009, p. 233) afirma que o folclore e a literatura oral esto na base da literatura de muitos lugares, confirmando o ideal de que a oralidade fornece s narrativas orais populares, assim como aos gneros consagrados pela crtica, um repertrio precioso de histrias. De acordo com Cascudo (1984, p. 24),

Todos os autos populares, danas dramticas, as jornadas dos pastoris, as louvaes das lapinhas, Cheganas, Bumba-meu-boi, Fandango, Congos, o mundo sonoro e policolor dos reisados, aglutinando saltos de outras representaes apagadas da memria coletiva, resistindo numa figura, num verso, num desenho coreogrfico, so elementos vivos da literatura oral.

Foi tambm no imaginrio popular que surgiram as primeiras histrias narradas pela voz de contadores e transmitidas de gerao em gerao at um dia serem recolhidas por algum, passando a serem transmitidas de forma impressa, possibilitando o contexto da leitura silenciosa. A partir da, o narrador passa a ser essa voz que, representada na brancura da pgina, aspira a concretude na interao com o leitor (PORTELA, 2009, p. 748). Entretanto, este narrador carrega, frequentemente, traos da enunciao oral, assegurando elementos da performance de vozes ancestrais. Zumthor (2018, p. 70-71), ao tratar da leitura, afirma que a compreenso das palavras necessita de uma interveno corporal, sob forma de uma operao vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada ou ouvida ou de uma voz inaudvel, de uma articulao interiorizada.

De acordo com Oliveira (2012), na oralidade que a prpria literatura cannica tem sua origem. Toda fico e toda poesia podem ter origem na voz de um contador de histrias, que criou, ouviu ou presenciou um acontecimento, contou e aumentou fatos (ficcionais, mitolgicos, histricos) e os transmitiu a outro algum que fez o mesmo e assim por diante, ad aeternum. Isso prova que a literatura impressa serviu-se e serve-se ainda da fico oral, especialmente no que tange aos mitos e lendas reescritos em diversos gneros e suportes da literatura. Mas a literatura oral est viva entre ns. As manifestaes orais de diversos gneros fazem parte de nossa existncia. Nas tribos, nas pequenas cidades ou nos grandes centros, testemunhamos inmeros exemplos e contadores e contadoras de histrias, que possibilitam diversas formas de corpo-a-corpo com o mundo e de rupturas da clausura do corpo (ZUMTHOR, 2018, p. 71.77).

Os aspectos artsticos e etnogrficos do texto oral reafirmam seu valor esttico e cultural. So narrativas que comportam imagens semnticas relacionadas a determinadas culturas, comprovando o valor da memria e da voz como elementos imprescindveis na transmisso de conhecimentos culturais, histricos, sociais e artsticos. Todos estes aspectos fortalecem a importncia de contar e ouvir histrias, nos dias de hoje e antigamente, e reiteram a necessidade de recuperar e recolher histrias que so ou foram contadas por homens e mulheres cheios de palavras, gestos e cultura.

 

 

Corpo-memria e a performance dos narradores orais

 

Certa tarde, na vida que dana ou na dana que vive, ouvi um tambor, segui seu chamado e fui encantada. O encanto veio das letras que brotam das pedrinhas miudinhas, que constituem o cho de um viver atento, vibrante, agradecido, que sabe ouvir o que e o que j foi, que sabe agradecer os que j viveram e que, por isso, ainda vivem (Lara Sayo).

Enquanto grupos sociais, os indivduos buscaram seus meios de se organizar e de construir ou reconstruir os modos de ser e estar no mundo. Os lugares, as histrias, os saberes e fazeres do o tom e o sabor a tudo aquilo que vai se constituindo e dando sentido ao que h no mundo. Atravs das formas como os indivduos interferem e tambm transformam esses espaos, sejam eles fsicos ou simblicos, que vai se inscrevendo a histria da humanidade. Nesse locus da historicidade onde se aloca a fundamental importncia da palavra, seja ela escrita ou falada para a transmisso, compreenso e apreenso dos saberes sociais.

No entanto, fundamental compreender que os estudos da palavra, aqui referidos, assumem uma natureza representativa para alm das compreenses do que epistemologicamente se disps os estudos da literatura tradicionalmente. Somente na compreenso da leitura em dilogo com outras linguagens e da elaborao do sentido dela no mundo, que se torna possvel adentrar no campo das poticas orais. E nesse sentido, entram as questes da palavra escrita, mas tambm sua relao com os cantos, as danas, os ritmos, os gestos e, sobretudo, a voz.

O estudo da voz nas poticas orais amplifica a certeza de um reconhecimento duplo para as questes da literatura oral: primeiro a elucidao de que essas poticas no estavam centradas especificamente nos estudos literrios, mas na sua interseco e dilogo entre vrias reas, interligando e compreendendo sua dimenso esttica, enquanto norteadora da existncia de uma noo a respeito do performativo-literrio que ali surge. E a segunda trata especificamente sobre a importncia do corpo inscrito na literatura. Um corpo que tem historicidade, que se move e movimenta, criando uma espcie de rito de si, composto de uma escritura e permitindo-se ler, medida que transmite saberes oriundos de suas vivncias, memrias e saberes.

A noo de corpo como lugar de memria, representa o reconhecimento das dimenses estticas e performticas da palavra, uma vez que os aspectos artsticos dos movimentos fsicos e das expresses corporais vo se agregando e entrelaando em diferentes nuances aos aspectos semnticos da palavra escrita, at se perpetrarem numa nova compreenso do corpo como lugar de memria. Isso, para os contadores de histrias orais, se evidencia na expressividade latente de suas narrativas. Sobre essa semntica potica, Zumthor (2007, p. 78) elucida:

Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso potico valoriza e explora um fato central, no qual se fundamenta, sem o qual inconcebvel: em uma semntica que abarca o mundo ( eminentemente o caso da semntica potica), o corpo ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo d a medida e as dimenses do mundo; o que verdade na ordem lingustica, na qual, segundo o uso universal das lnguas, os eixos espaciais direita/esquerda, alto/baixo e outros so apenas projeo do corpo sobre o cosmo. por isso que o texto potico significa o mundo. pelo corpo que o sentido a percebido.

O lugar da potica inscrita no corpo o ponto de partida para se compreender um universo que se abre no campo epistmico dos estudos das poticas orais, e, adentrar nos seus signos e significados, inicialmente repensar o poder da palavra potica. Alm disso, fundamental analisar nesse jogo, a relao ldica do corpo-poesia com as formas narrativas que deles se extraem. Isso porque, atravs da performance em si, os narradores ou contadores de histrias vo transmitindo suas leituras, suas histrias e seus saberes, transmutando em memrias coletivas, o que antes era compreendido apenas como experincias individuais ou de um determinado grupo.

O texto potico , portanto, ressignificado, medida que a fuso corpo-palavra-leitura se estabelece na compreenso de que o texto est em todas as coisas e lugares e que ele dialoga com o corpo e sua corporeidade, estabelecendo essa relao da palavra escrita com a palavra falada. Expressa nos ritos e rituais, a palavra escrita est, portanto, atrelada a seus significados, mas para alm deles, se agrega tambm s mltiplas linguagens do corpo e dos seus ritmos. Sobre isso, Derrida (2008, p. 14) discute a respeito da necessidade de uma ruptura do logocentrismo na escrita, e enfatiza:

Em todos os casos, a voz o que est mais prximo do significado, tanto quando este determinado rigorosamente como sentido (pensado ou vivido) como quando o , com menos preciso, como coisa. Com respeito ao que uniria indissoluvelmente a voz alma ou ao pensamento do sentido significado, e mesmo coisa mesma [...], todos significantes, e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado. Seria sempre tcnico e representativo. No teria nenhum sentido constituinte. Esta derivao a prpria origem da noo de significante. A noo de signo implica sempre, nela mesma, a distino do significado e do significante, nem que fossem no limite, como diz Saussure, como as duas faces de uma nica folha. Tal noo permanece, portanto, na descendncia deste logocentrismo que tambm um fonocentrismo: proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da voz e da idealidade do sentido.

Alm de uma proposta de disruptura com a supremacia do texto escrito, essa concepo vem reivindicar a necessidade de um questionamento que a literatura necessita e prescreve a respeito do lugar da palavra no mbito das poticas orais e isso subverte e transcende a prpria noo de literatura, alm de abrir as portas para o fortalecimento dos estudos da literatura oral na contemporaneidade. Nesse prisma, encontra-se a noo de corpo como rito, uma vez que a palavra pode ser lida para alm do texto escrito, atravs da gestualidade e da performance que o narrador das literaturas orais representa, a partir de suas narrativas. Se para Derrida (2008) no existe o fora do texto, a leitura do texto nunca se encerra em si mesma e est sempre aberta leitura do outro e de outros textos.

A questo do texto, nesse sentido, se resolve no dilogo com o corpo enquanto palavra, pleno de toda a sua historicidade. iluminada a noo do corpo como performance da palavra, uma vez que, partindo da premissa de que, se no existe nada fora do texto, no existe tambm nada fora do corpo. Nesse sentido, a gestualidade assume sua importncia na compreenso dos textos das poticas orais, j que atravs da voz, dos cantos, dos ritmos, das expresses que se encontra o tom da literatura oral. Sobre isso, Zumthor (2007, p. 77), explica:

E nesse sentido que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que algum me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele; ao dupla, reversvel, igualmente vlida nos dois sentidos. Essa ideia, eclipsada durante um certo tempo, renasce hoje, em uma espcie de volta ao rechaado, e, sem dvida, ligado ao conjunto de fenmenos contemporneos que se embrulham sob o termo duvidoso de ps-modernidade. A generalizao, hoje, da ideia de performance uma das consequncias.

Sobre esse conjunto de fenmenos contemporneos a que se refere Zumthor, debrua-se a importncia dos estudos da memria e sua relao com a literatura oral. Legar histria da literatura a importncia das narrativas enquanto compreenso de mundo ao redor se faz necessrio nos estudos contemporneos, uma vez que a presena do narrador e suas histrias esteve, vez por outra, envolvida com a noo de tradio, como sinnimo daquilo que passado, obsolescente ou, como prope a concepo benjaminiana de narrador, um conhecimento acabado em si e que deve ser transmitido s futuras geraes em suas formas mais puras, fixas e imveis.

Ao contrrio, ouvir as histrias dos narradores na contemporaneidade, buscando os sentidos de sua historicidade latente, mas em consonncia com sua movncia, o legado que as literaturas orais na ps-modernidade deixam para os estudos literrios. E nessa compreenso, se forem agregadas as questes das literaturas orais de origem africana, possvel enriquecer ainda mais essa perspectiva de valor de sua historicidade e valorao de memrias histricas e sociais. Sobre a dimenso esttica da criao literria africana, Risrio (1996, p. 24) assertivamente destaca que

A riqueza da criao textual na frica um fato indisputvel. A menos que uma inteno ideolgica explcita tente rasurar programaticamente a existncia milenar do texto criativo naquele continente, como na poca em que fantasias racistas de calibre variado se esforaram para expurgar o negro da esfera da espcie humana. Alis, aqueles que um dia pretenderam expulsar o negro do crculo da humanidade, ou quando nada, confin-lo a um compartimento subterrneo desta, tipo dernier chelon da espcie, tiveram diante de si, como obstculo intransponvel, a fora e a finura das produes estticas africanas.

Com essa crtica assertiva em relao recepo do texto literrio e ao reconhecimento da riqueza cultural que os estudos literrios legaram do continente africano, Risrio corrobora a importncia da valorizao das narrativas transmitidas pelos contadores de histria orais de origem africana. Esses sbios transmissores das suas origens, atravs de prticas performticas da contao de histrias, atravs das literaturas, danas, cantos e ritmo, encontram-se ainda hoje por todo o mundo, exercendo a misso de transmisso dos saberes seculares to fundamentais, mas incipientemente valorizados e reconhecidos para a humanidade.

De fato, no se pretende aqui adentrar a conceituao das temticas dos gris, especificamente, no sentido de ampliar a conceituao do termo, nem tampouco problematizar a fundo tais atribuies e funes, apesar de to importantes e fundamentais para a histria da humanidade, porm a inteno de traz-los discusso lanar luz importncia da palavra – escrita e falada – africana, na compreenso dos estudos da literatura oral, uma vez que os povos de origem africana so identificados e definidos como os mestres e mestras da palavra oral, portanto esto sempre associados ao reconhecimento da importncia das poticas orais.

Enfim, a partir dessas reflexes, apreende-se a importncia do corpo enquanto lugar de memria, engendrado em seus ritos, rituais e narrativas, uma vez que sendo compreendida a literatura oral sob novas perspectivas paradigmticas e epistemolgicas, se compreende tambm a importncia da ressignificao do corpo como rito, corpo enquanto leitor do mundo, uma vez que a palavra, seja ela escrita ou falada, est no mundo e que antes de tudo, a partir do corpo que se chega a ela. Nesse sentido, se refaz a compreenso da leitura da palavra, a leitura da escrita e a consonncia de ambas com a leitura da palavra-corpo-escrita.

 

 

Um estudo da memria a partir das narrativas orais: os mestres contadores de histrias da tradio e seu papel na transmisso da cultura

 

Os pequenos sonhos, dizem os habitantes da floresta de Elgon, na frica Central, no tm grande importncia. Mas, se uma pessoa tiver um sonho grande, toda a comunidade deve ser reunida para ouvi-lo. Ento, como um elgoni sabe que foi um sonho grande? Ao acordar, h um sentimento instintivo sobre a sua significao para o grupo – mant-lo em segredo um pensamento que nunca ocorre (Clyde W. Ford[100]).

Os sentidos onricos dos povos elgoni descrevem claramente um cenrio permeado de memrias. Dessas memrias que vo se recriando, medida que so contadas, que so trocadas, que so repassadas, como num conto, como num canto, como num sonho. No amplo sentido terico, os estudos de memria abarcam o campo cientfico global que envolve e intersecciona os estudos da psicologia, da histria, das linguagens, do corpo e suas relaes com o tempo-espao em que esto inseridos. Reconhecer, o que aqui interessa a respeito desses estudos, os da memria social dos povos, a partir de uma perspectiva problemtica da histria, explicam de certo modo, as concepes do que vem a ser a memria coletiva e quais so os seus lugares simblicos e espaciais. Sobre isso, Candau (2019, p. 157) elucida:

A funo identitria desses lugares fica explcita na definio que dada a eles pelo historiador: toda unidade significativa de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um elemento simblico do patrimnio memorial de uma comunidade qualquer. Um lugar de memria um lugar onde a memria trabalha.

Essa premissa vem complementar a noo de que se existem lugares de memria, sejam eles fsicos ou simblicos e imagticos-afetivos, a tradio potica nos remeteria a esses lugares, a partir de seus mitos, narrativas lendrias, ritos e rituais. No entanto, Candau (2019, p. 164) traz luz a discusso de que as memrias esto sempre em movimento em relao sua historicidade e para que no recaia no equvoco de querer mant-la em conservao, elas devem obedecer um princpio de afirmao de si mesma, mas sendo compreendidas como um projeto inacabado, sem a ideia onrica de conservar os fatos tais quais aconteceram, nem de se refazer o passado, uma vez que a memria coletiva s se constitui a partir de uma movncia ativa, permeada de historicidade, estabelecendo as fronteiras, mas perfazendo as lacunas entre passado e presente.

Le Goff (1990) entende a narrao ou o ato narrativo como um ato mnemnico fundamental, ou seja, narrar histrias , em si, uma maneira de dialogar, gerir e experimentar as memrias, sejam elas individuais ou coletivas. Imergido pelas noes do tempo, cabe estabelecer a que distncia temporal essas memrias se constituem na dialtica distino entre o tempo presente e os acontecimentos do passado. dinmica, pois essa distino se refaz medida da reciprocidade existente nesses dilogos dos tempos. Sobre isso, Le Goff (1990, p. 205) define:

A distino passado/presente que aqui nos ocupa a que existe na conscincia coletiva, em especial na conscincia social histrica. Mas torna-se necessrio, antes de mais nada, chamar a ateno para a pertinncia desta posio e evocar o par passado/presente em outras perspectivas, que ultrapassam as da memria coletiva e da Histria.

A importncia da memria, a partir das perspectivas da transmisso dos saberes do passado, a de que os narradores e mestres da oralidade definidos como seus principais difusores refazem e salvaguardam um passado ancestral, permeado de saberes tradicionais em consonncia com as concepes dos estudos da memria, da literatura oral e todas as suas possibilidades de dilogo. Sobre isso, Abib (2017, p. 89) explica:

Talvez, uma das caractersticas mais marcantes das manifestaes oriundas do universo da cultura popular, em qualquer parte do mundo, e que nos remetem a essa lgica diferenciada que busquei analisar, sejam justamente as formas de transmisso de seu passado – que carrega a mitologia ancestral e os saberes tradicionais do grupo – atravs de trs elementos fundamentais presentes nesse universo: a memria, a oralidade e a ritualidade.

Isso quer dizer das memrias individuais e da maneira como elas vo se configurando como coletivas e partilhadas, atravs dos processos como a oralidade e os rituais dos narradores, fortalecendo a importncia das tradies, oriundas do passado, mas no perdendo de vista a noo de cultura em movimento e tradio no-esttica, como propem Lopes e Simas (2020, p.75), que, ao explicarem o mito da vida, morte e ressurreio, trazem claramente essa noo de tradio em movimento. Uma vez que a prpria vida se reinventa, reinventam-se tambm as tradies, os saberes e as histrias que se contam delas. Nesse sentido, fica translcida a noo de que atravs de mitos como esse que a

poderosa sntese da ideia de morte como condio necessria para que exista a vida, comporta uma fabulosa variante de leitura e mostra como os saberes africanos normalmente se referem a uma ideia de tradio que no esttica. Nas culturas orais, o conhecimento se fundamenta no ato de se transmitir ou entregar algo para que o receptor tenha condies de colocar mais um elo em uma corrente dinmica e mutvel (LOPES; SIMAS, 2020, p. 75).

Passado e presente se fundem nessa dinmica. Ainda assim, substancial a representao das tradies para a construo de uma compreenso maior, que abarque rigorosamente os conceitos das culturas, essas sendo compreendidas no plural, tal e qual mandam as questes dos tempos contemporneos, uma vez que as identidades so representadas como mltiplas (HALL, 2006), tambm as culturas pertencentes delas so pluralizadas. Mas a importncia da tradio, como herana, como legado, como estrato e ponto de partida dessas culturas, no pode ser negada, esquecida e perdida na dana do tempo. Por esses caminhos, os da tradio, que se explicam a importncia das narrativas e principalmente dos narradores na tarefa de transformar os saberes individuais em experincias de memrias coletivas. Sobre isso, entende-se que,

De fato, cada vez que no interior de um grupo restrito as memrias individuais querem e podem se abrir facilmente umas s outras, como nos casos em que existe uma escuta compartilhada visando os mesmos objetos (por exemplo, monumentos, comemoraes, lugares que tero o papel de ponto de apoio, de sementes da recordao), percebe-se ento uma focalizao cultural e homogeneizao parcial das representaes do passado (CANDAU, 2019, p. 46).

Retoma-se assim, a questo das poticas orais e a sua interrelao com a perspectiva da memria, como se amarrasse o fio de uma colcha de retalhos, na interseco entre as poticas orais com a memria e a tradio cultural e suas nuances existentes em concrdia com a palavra escrita e inscrita no corpo. na importncia ambivalente na elaborao das memrias, dentro do espao ldico do tempo, que se estabelece a relao entre memria e as poticas orais. Desse encantamento entre ambas, percebe-se que Memria e poesia se encontram no jogo de criao do mundo. Jogo do tempo: do que , do que foi e do que ser, que ao se mostrar no canto do poeta, instaura uma poca histrica (ABIB, 2014, p. 94).

Assim, e por fim, na escuta das histrias dos narradores, das histrias da vida, da leitura da palavra, compreendida aqui como palavra no mundo e com o mundo, que nasce e cresce a importncia do contador de histrias e de todos os mestres da tradio que tm a misso da transmisso de saberes pelas vias da oralidade. Esses que esto certamente a servio de algo maior, o de salvaguardar e dar movimento s memrias histricas e saberes coletivos, construindo as culturas e rompendo as lacunas, que ainda existem, entre o passado e o presente, entre a escrita e a oralidade, num bonito jogo simblico de vida, morte e ressurreio.

 

 

Referncias

 

ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2017.

 

BRICOUT, Bernadette. EPISODE 1: La Cl des contes (58min). LA COMPAGNIE DES AUTEURS, par Matthieu Garrigou-Lagrange. France Culture. s.d. Disponvel em: https://www.franceculture.fr/emissions/la-compagnie-des-auteurs/contes-14-la-cle-des-contes. Acesso em: 13 jul. 2020.

 

CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1984.

 

CANDAU, Jol. Memria e identidade. Trad. Maria Letcia Ferreira. So Paulo: Contexto, 2019.

 

DERRIDA, Jaques. Gramatologia. Trad. Mriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. So Paulo: Ed. Perspectiva, 2008.

 

_________. Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato J. Ribeiro. So Paulo: Perspectiva, 1973.

 

HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

 

LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. Trad. Bernardo Leito. Campinas: Ed. UNICAMPI, 1990.

 

LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antnio. Filosofias Africanas: uma introduo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2020.

 

LUYTEN, Joseph M. O que Literatura popular. 5. edio. So Paulo: Brasiliense, 1992.

 

OLIVEIRA, Carlos Jorge Dantas de. A Formao da Literatura de Cordel Brasileira, Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela (USC), 2012. 381f. Tese de Doutorado (Programa de Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada – Faculdade de Filologia, Universidade de Santiago de Compostela – 2012).

 

PORTELLA, Mirtes Maria de Oliveira. Entre a letra e a voz: o espao do leitor no conto de tradio oral. In: CELLI – Colquio de Estudos Lingusticos e Literrios 3, 2007, Maring. Anais... Maring, 2009, p. 749-760.

 

RISRIO, Antnio. Oriki Orix. So Paulo: Perspectiva, 1996.

 

SILVA, Celso Cisto. A literatura popular: silncios e murmrios na histria da literatura brasileira. Letrnica. v. 2, n. 2, p. 233-248, dezembro 2009.

 

ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepo, Leitura. (1990). Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: UBU Editora, 2018.

 

_________. Performance, Recepo, Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. rev. e ampl. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

 

[Recebido:16 fev 2021– Aceito: 16 mar 2021]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONVIDADO

 


A potica do retalho

 

 

The poetic of retail

 

 

Joo Evangelista do Nascimento Neto[101]

https://orcid.org/0000-0003-4937-7311

 

 

Resumo: Neste artigo, discute-se a construo de leituras tendo como analogia uma colcha de retalhos. A partir de cada retalho – constelao, rizoma, intertextualidade, arquivo e semiologia –, possvel traar os percursos de compreenso do texto, tendo como exemplo o Auto da Compadecida, obra que alinhava traos da cultura popular e seu dilogo interartes. Essa potica da leitura aqui apresentada constitui-se somente enquanto uma das mltiplas possiblidades de interao com o texto literrio. Cada leitor, certamente, costurar seu cobertor de leituras.

Palavras-chave: Potica; Leitura; Popular.

 

 

Abstract: In this article, the construction of readings is discussed using a patchwork quilt as an analogy. From each patch: constellation, rhizome, intertextuality, archive and semiology, it is possible to trace the paths of understanding the text, taking, as an example, the Auto da Compadecida, a work that aligned traits of popular culture, and its interart dialogue. This poetics of reading presented here constitutes only one of the multiple possibilities of interaction with the literary text. Every reader will, of course, sew their blanket of readings.
Keywords: Poetics; Reading; Popular.

 

 

Como fazer uma coberta de taco (ou colcha de retalhos)

 

Material necessrio:

 

- Pedaos de panos os mais variados possveis;

- Linha de costura;

- Agulha;

- Tesoura.

 

Instrues:

 

Aps ter mo todos os materiais, separa os retalhos de pano e, com a tesoura, acerta os pedaos para que fiquem com tamanhos semelhantes. Depois, com linha e agulha, costura um pedao a outro para materializar-se, enfim, a coberta. O tamanho dela depende de sua escolha em ser ela para cobrir uma cama de casal ou de solteiro, o que pode ser medido no prprio leito. O toque final feito costurando-se as extremidades do cobertor, a fim de no desfiar ou rasgar. A est pronta a coberta, muito usada no vero por ser leve, alm de deixar o ambiente agradvel por suas multicores.

 

 

De como uma coberta de taco pode ter relao com as leituras

 

Ler um processo contnuo e de carter somatrio. A leitura, termo genericamente usado no singular, na verdade, feita de leituras. Se um homem resultado de suas leituras, essas surgem em decorrncia das mltiplas escritas, de inmeros textos que se assomam s leituras da vida, s leituras do Outro e de Si.

Para se fazer uma coberta de taco, necessrio adquirir uma srie de retalhos. Do mesmo modo, para se estabelecer um homem, preciso ver o mosaico de leituras que o construram.

Esse artigo constitui-se em um processo de costura, dia aps dia, quando da apropriao de cada retalho, de cada texto, unido a outro artesanalmente, com linha e agulha, como o raciocnio humano. Este texto representa as semelhanas afetivas do leitor com suas referncias de vida, suas escolhas literrias, assim como a costureira estabelece uma relao afetuosa com a colcha que elabora com o esforo de suas mos.

Cada taco, cada retalho somado a outro representa a multiplicidade de eus que permeiam o leitor, que habitam o escritor. O resultado final da coberta, bela por sua variedade, a analogia ao leque de leituras de um ser humano.

O homem contemporneo o ser detentor de uma identidade mltipla, lquida, ps-moderna. Esse homem fragmentado, esse ser estilhaado, ao contrrio do que os mais tradicionais podem supor, no deve ser visto com desvantagem; ao contrrio, a vida humana um sucessivo catar de fragmentos, um constante trabalho de alfaiataria. O que est rasgado pode ser novamente costurado. Se o retalho est desgastado, pode ser cerzido. O homem um ser inacabado, em construo. Cada retalho que adquire em sua vida pode ser acrescido a seu cobertor. Essa manta no precisa ter tamanho exato, determinado. sempre possvel adicionar mais um taco a ela.

O narrador, nesse instante, pede licena ao leitor para usar a 1 pessoa do singular, j que ele falar de si prprio. Assim, o ele deve ceder espao ao eu, para particularizar aquilo que relata pela sua memria, o instrumento de que dispe, para descrever o que sente, quem , mesmo, felizmente, sendo um produtor inacabado, ainda h mais para trilhar, e pretende, com xito, acrescentar mais tacos colcha da sua vida.

 

 

1 retalho: a constelao

 

Eu inicio o relato, em primeira pessoa, citando O menino que carregava gua na peneira, de Manoel de Barros:

Tenho um livro sobre guas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava gua na peneira.
A me disse que carregar gua na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmos.
A me disse que era o mesmo que catar espinhos na gua
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropsitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

 

[...]

 

A me reparava o menino com ternura.
A me falou: Meu filho voc vai ser poeta.
Voc vai carregar gua na peneira a vida toda.
Voc vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vo te amar por seus despropsitos.[102]

Carregar gua na peneira, criar peixe no bolso, costurar pedaos de panos. A priori, atividades vs, sem fins prticos ou de pouca valia. Mas pensa dessa forma quem nunca sentiu o prazer de levar a gua na peneira e molhar-se com ela, refrescando-se num dia quente de vero. Quem considera um ato insano criar um peixe no bolso, no experimentou a satisfao de peg-lo e senti-lo perto, sempre junto, como um amigo que est ali mo para todo intento. Aquele que pondera ser loucura costurar tacos de panos sem fim, no pressente que de meros pedaos de restos de tecidos pode surgir uma colcha capaz de aquecer algum numa noite mais fria.

Eu persigo os despropsitos da literatura, encanto-me com eles, seduzo-me por eles. Pela literatura, possvel olhar alm, porque se pode enxergar para dentro. Atravs do texto literrio, eu tambm cato os espinhos na gua que levo em minha peneira (creio que todos os seres humanos possuem suas peneiras com gua para levar por sua vida, mas alguns a abandonam no meio do caminho). Eu sei que o mundo contemporneo, com sua velocidade, seu tempo reduzido, exige, de cada um, praticidade, mas eu insisto em parar, muitas vezes, para recolher tais espinhos, mesmo furando os dedos, da peneira que levo, em meio gua que dela escorre e que torno a encher. No me esquivo da tarefa de pegar os espinhos, nem do trabalho de buscar remdio para sarar as feridas, paradoxalmente, na mesma peneira e com a mesma gua.

Esses despropsitos enchem a alma, conduzem a vida, e do olhos de lince. Olhar para o interior o mais difcil tipo de viso que existe. Olhar para dentro enxergar a si prprio, com todas as suas idiossincrasias, reconhecendo os seus eus. Ao ver intrinsecamente, eu aprendo a ver melhor o Outro.

Da, com agulha e linha, eu costuro a minha coberta. Todo dia, eu junto a ela um retalho diferente do outro que juntei anteriormente. Diferentemente de Penlope, ao esperar seu amado, a coberta no desfeita, mas acrescida, complementada. O cobertor um emaranhado de tecidos, como o cu uma profuso de estrelas. Ao olhar a abbada celeste, no sei quando uma estrela est viva, ou ali apenas o seu brilho que chega at mim, mas ela, a estrela, aproxima-se, lana sua luz, deixa seu rastro.

Olhar estrelas no cu tem relao com fazer uma coberta de taco. Perceber as inmeras estrelas que habitam o firmamento, observar sua luz, determinar cada origem, to despropsito quanto procurar a origem de cada retalho. por isso que a literatura se prope aos despropsitos. A cincia esquiva-se daquilo que, para ela, irracional, procura provar e comprovar suas teorias, seus tratados. A literatura busca o ser, aposta no sentir. Nesses despropsitos, eu me lano, eu me perco no meio das estrelas, eu me absorvo por entre os pedaos de pano. Ao perder-me, encontro-me, para perder-me novamente, a fim de conhecer outras facetas de mim mesmo.

Para Maurice Blanchot, a Constelao nasce daquilo que no conhecido, do espao da prpria obra. E falo de estrelas e assemelho-as literatura. Esse vazio deixado por toda obra o espao a ser preenchido pelo leitor. Sou eu, leitor, que preciso seguir os rastros de luz deixados pelos textos, que so fachos no lineares, so luzes que fazem ziguezagues, que se entrelaam com outras fascas, como os textos fazem relaes a outros textos, como leituras da contemporaneidade dizem sobre textos medievais, assim como as pginas escritas podem falar tanto do homem, dialogar comigo, sobre mim. Para o autor,

a essncia da literatura escapa a toda determinao essencial, a toda afirmao que a estabilize ou mesmo que a realize; ela nunca est ali previamente, deve ser sempre reencontrada ou reinventada. (BLANCHOT, 2005, p. 294).

Como os pedaos de pano precisam ser reinventados para tornarem-se, juntos, mas sem ordem a ser seguida, sem estabelecimento de comeo ou fim, apenas uma combinao aleatria, uma colcha; as estrelas so reinventadas pelo rastro que deixa no cu. A literatura deixa seus rastros. O leitor segue-os, refazendo os caminhos, abrindo picadas, forjando estradas. Muitos desses caminhos no so abertos pelo escritor, mas pelo prprio leitor, ao seguir os rastros que ficam, ao sair procura dos retalhos, mas tambm seguindo sua intuio, seus anseios, enxergando-se atravs dos rastros, materializando-se na juno de cada taco de pano, no processo de coautoria do texto: A leitura operao, obra que se cumpre suprimindo-se, que se prova confrontando-se com ela mesma e se suspende ao mesmo tempo que se afirma (BLANCHOT, 2005, p. 357-358).

A leitura um estar em movimento ao permanecer esttico. Um devir interior, que promove a transformao do mundo. Meu mundo se suprime, comprime-se diante do texto, mas expande-se, num processo contrrio, como o universo o faz (ou fez um dia, segundo alguns cientistas). o inverso do reverso de mim, abenoado pelos deuses da literatura, plainando sobre mim, a sussurrar em meus ouvidos cantos poticos de amor, louvores inquietude de meu ser, mas tambm amaldioado pelos demnios que habitam em mim, que voam sob minhalma, defenestrando meus sonhos, enxertando novos ideais. Ler um texto sentir as palavras com o corao divino ressoarem na pele com prazer diablico.

Segundo Roland Barthes,

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, d euforia; aquele que vem da cultura, no rompe com ela, est ligado a uma prtica confortvel da leitura. Texto de fruio: aquele que pe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez at um certo enfado), faz vacilar as bases histricas, culturais, psicolgicas do leitor, a consistncia de seus gestos, de seus valores e de suas lembranas, faz entrar em crise sua relao com a linguagem (BARTHES, 2010, p. 20-21).

Para o terico, a Babel literria benquista, bem-vinda, recebida com festa, com glrias. O texto de prazer abre espao para o texto de fruio. Um deixa o leitor acomodado, o outro cutuca, incomoda, tira o sono. O primeiro nina o leitor em suas pginas, o segundo tira-lhe o sono. H textos que exercem as duas funes: eles apresentam-me os meus deuses e diabos cotidianos. Esses textos no podem ser classificados genericamente, dependem do olhar pessoal de cada leitor. E assim, vai-se fazendo a literatura, com linha de algodo mercerizado ou linha mista (mais usadas em costuras) e uma agulha para acolchoar (que costura com mais preciso e rapidez), ideologias so questionadas, novos pensamentos costurados, entrelaados a tantas outras ideias, alegrias somadas a tristezas vividas. Assim sou eu, assim o ser humano, assim a literatura, a mais perfeita criao do imperfeito homem.

 

 

2 retalho: o rizoma

 

O manguezal um ecossistema costeiro, que transita entre os ambientes terrestre e marinho. Existe nas regies tropicais e subtropicais, possvel encontr-lo em foz de rios. No mangue, encontram-se vegetao tpica e vida animal em abundncia, aves, peixes, mamferos, rpteis e invertebrados, como os apreciados siris e caranguejos. Seu solo rico em nutrientes, por isso as rvores desenvolvem-se com facilidade, mas, com solo lodoso, as plantas precisam adaptar-se, para tal, utilizam-se de razes areas, para facilitar a oxigenao, mas bem fincadas no cho.

Na botnica, as razes que se fasciculam so chamadas de rizomas. Os rizomas funcionam como rgos de reproduo dos vegetais. Da raiz principal, surgem outras razes em diferentes direes, fazendo brotar outras plantas. Em um momento, ao leigo, difcil perceber qual a raiz principal, j que outras germinam dela. Assim a raiz da vegetao do manguezal. Ela um emaranhado de razes, que se confundem umas as outras. Num mangue, no h, primeira vista, como estabelecer uma separao. O mangue resiste pela unio de sua vegetao, pela fora de suas razes que, juntas, so mais fortes. O mangue resiste gua e ao solo arenoso, fluido. O manguezal um local de reproduo de vrias espcies animais e vegetais, atuando como manuteno do equilbrio da natureza. O mangue fora vital, seus rizomas, com mltiplas entradas, geram outras vidas, sustentam existncias. A rvore o que se v, aquilo que se contempla majestosa, mas ela nada seria sem a sua raiz, principalmente numa regio de manguezal.

Uma colcha de retalhos como um manguezal. Cada pedao de pano, rizomtico, une-se a outro, tambm rizomtico, formando um todo onde cada parte ainda perceptvel, mas indissocivel. Numa coberta de taco, os elementos, de tamanhos diferentes, de cores peculiares, de estampas especficas, simbolizam aquilo que o mangue evidencia: a unio das diferenas. Conforme Jlia Kristeva, todo texto um mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de outro texto (KRISTEVA, 1974, p. 64). Todo texto , portanto, como as razes de um manguezal, ou como uma colcha de retalhos.

Uma coberta de taco um texto, mltiplo em sua unidade, formada por rizomas, seguindo o conceito de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Para os autores,

uma das caractersticas mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre mltiplas entradas [...]. Ele no feito de unidades, mas de dimenses, ou antes de direes movedias.

[...]

Um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22. 37).

Um texto rizomtico remete o leitor a outros textos que o direcionam a demais leituras, numa estrutura fascicular interminvel. Meu contato com um rizoma se deu por intermdio da microssrie O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, que foi ao ar em 1999, pela Rede Globo. Com quatro captulos, a adaptao do texto teatral, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado pela primeira vez em Recife no ano de 1957, acenou para mim como um intertexto que pulsava vida, que possua fora e falava aos meus ouvidos, tocava na minha alma.

Percebi, durante os quatro captulos da srie, a Literatura de Cordel emergindo das vozes de cada personagem. Em cada situao narrada, o cheiro do serto nordestino passeava por meu corpo, subia as minhas narinas, chegava ao meu crebro. Mas cada texto de cordel usado por Suassuna, em sua pea, tambm evoca outros textos. O prprio autor paraibano deixa-se tomar, em sua pena, por obras portuguesas, como as do autor Gil Vicente, ou de resqucios cavalheirescos de Miguel de Cervantes, ou ainda do humor social de Molire. adaptao, para a televiso e posteriormente para o cinema, ainda se acresce William Shakespeare. Enfim, o rizoma se faz com o dilogo sem comeo estabelecido, sem fim aparente, como as razes de um manguezal, como os tecidos que formam uma colcha de retalhos.

 

 

3 retalho: a intertextualidade

 

Se fosse possvel resumir o Auto da Compadecida em uma s palavra, esta seria, certamente, a intertextualidade. Os textos de cordis, fonte primeira de inspirao do autor, ajudam na temtica de cada ato da pea.

O folheto O dinheiro (O testamento do cachorro), de Leandro Gomes de Barros, possui, como enredo, as peripcias de um dono para sepultar seu co com um ritual fnebre. O texto, de cunho religioso e moralizante, esfora-se por associar a imagem da avareza e da ganncia como os males da humanidade:

O dinheiro neste mundo

No h fora que o debande,

Nem perigo que o enfrente,

Nem senhoria que o mande.

Tudo est abaixo dele

S ele quem grande.

[...]

Eu j vi narrar um fato

Quer fiquei admirado,

Um sertanejo me disse

Que nesse sculo passado

Viu enterrar um cachorro

Com honras de um potentado.

(BARROS, 2005, p. 1. 5).

Por dinheiro, que constava no testamento deixado pelo co, o Vigrio da parquia e o Bispo concordam com a celebrao estapafrdia. O enterro teve ladainha e encomendao do corpo. Segundo o narrador, nem todo ser humano tinha o privilgio de tantas honrarias em seu sepultamento. Aqui, a Igreja condenada por seus desvios. Embora no haja um desejo de destruir a instituio, seus membros so expostos ao ridculo, a fim de haver um conserto desses que deveriam ser os guias espirituais do povo.

            Ariano Suassuna adapta o folheto de Leandro Gomes de Barros acrescendo a ele a celebrao do fretro em latim, como exigncia da esposa do padeiro:

JOO GRILO: Chic, o padre tem razo. Quem vai ficar engraado ele e uma coisa benzer o motor do Major Antnio Moraes e outra benzer o cachorro do Major Antnio Moraes.

PADRE (mo em concha no ouvido): Como? [...]. E o dono do cachorro de quem vocs esto falando Antnio Moraes? [...]. No vejo mal nenhum em se abenoar as criaturas de Deus (SUASSUNA, 2004, p. 23-24).

Suassuna intensifica a denncia contra o clero, pois, para o autor, a religio um meio de reforma social. Protestante convertido ao catolicismo, o teatrlogo condena os vcios humanos, atribuindo-lhes as causas da degenerescncia tica e moral humana.

Em A histria do cavalo que defecava dinheiro, tambm de Leandro Gomes de Barros, a histria se passa entre dois compadres, de situao financeira bastante distinta. O pobre vinga-se do rico por sua sovinice, vendendo-lhe um cavalo que defeca moedas:

Na cidade de Maca

Antigamente existia

Um duque velho invejoso

Que nada o satisfazia

Desejava possuir

Todo objeto que via

Esse duque era compadre

De um pobre muito atrasado

Que morava em sua terra

Num rancho todo estragado

Sustentava seus filhinhos

Na vida de alugado

[...]

Foi na venda de l trouxe

Trs moedas de cruzado

Sem dizer nada a ningum

Para no ser censurado

No fiof do cavalo

Foi o dinheiro guardado.

(BARROS, 2006, p. 1-2).

Como forma de punio pela sovinice, o compadre pobre atia a cobia do amigo, vendendo-lhe o animal que descome dinheiro, em seguida, uma rabeca que ressuscita mortos. Desse modo, obtm sua vingana e livra-se do vizinho avaro.

No Auto da Compadecida, o cavalo foi trocado, por questes de montagem teatral, por um gato. A rabeca transforma-se em gaita e utilizada na cena em que Severino de Aracaju intenta matar Grilo e seu companheiro Chic:

GRILO: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chic.

CHIC: Na minha, no!

GRILO: Deixe de moleza, Chic. Depois eu toco na gaita e voc fica vivo de novo! [Murmurando, a Chic.] A bexiga, a bexiga! (SUASSUNA, 2004, p. 113).

A artimanha para enganar Severino no d certo. Embora iludido em ver o Padre Ccero, e retornar vida, o cabra do Capito mata Grilo, dando origem ao ltimo ato da pea, o julgamento das personagens.

No texto O Castigo da soberba, annimo, o baro e sua esposa so julgados por sua avareza, tendo seus atos expostos no julgamento celestial. Os dois personagens, no folheto, encarnam os sete pecados capitais, sendo defendidos por Nossa Senhora:

(Alma) – Rainha, Me Amorosa,

Esperana dos mortais,

Quem recorre a vosso nome

Sei que no desamparais,

Eu, pegando em vossos ps

Sei que no largo eles mais.

 

(Maria) – Pois, alma, demora a,

Enquanto eu vou consultar,

Fazer pedido a meu Filho,

Ver se eu posso te salvar,

Ver se teus grandes pecados

Tem grau de se perdoar.

(Co) – Como esta tal Maria

Eu mesmo nem nunca vi:

Uns pedem por interesse,

Pedem porque pra si,

Mas ela pede pros outros,

No se enjoa de pedir...

(MOTA, 1955, p. 175).

A alma consegue a justificao atravs da sua advogada de defesa, Nossa Senhora, que intercede junto ao juiz, Jesus Cristo, a fim de obter a redeno de seu cliente, o homem. O Co, promotor nesse julgamento, envergonhado e no logra xito em seus intentos.

No texto suassuniano, a cena do julgamento dura todo o terceiro (e ltimo) ato da pea. Todos os personagens ficam diante do juiz Manuel que, negro, ainda encontra espao para discutir questes de discriminao racial:

 

De repente, Joo ajoelha-se, como que levado por uma fora irresistvel e fica com os olhos fixos fora. Todos vo-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para no ver o Cristo que vem entrando. um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura. Todos esto de joelhos, com o rosto entre as mos.

ENCOURADO: [de costas, grande grito, com o brao ocultando os olhos] Quem ? Manuel?

MANUEL: Sim, Manuel, o Leo de Jud, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vo ser julgados (SUASSUNA, 2004, p. 136-137).

O ato do julgamento conta com Joo Grilo intermediando a ponderao feita pelo Encourado para cada ru, a saber: o Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa. Severino livra-se do inferno por seu passado de sofrimento. E Grilo consegue retornar ao serto, angariando uma segunda oportunidade de remisso.

A personagem da pea fora retirada do folheto Proezas de Joo Grilo, de Joo Ferreira de Lima. Retratado como um garoto sem atributos fsicos, mas dotado de uma grande inteligncia. Grilo doutora-se em realizar golpes, transformando-se no mais famoso pcaro do Nordeste:

Joo grilo foi um ente

Que nasceu antes do dia

Criou-se sem formosura

Mas tinha sabedoria

E morreu depois das horas

Pela arte que fazia.

[...]

Joo Grilo tinha um costume

Pra toda parte que ia

Era alegre e satisfeito

No convvio da alegria

Joo Grilo fazia graa

Que todo mundo sorria.

(LIMA, 1979, p. 1. 5).

O Grilo, de Suassuna, aps sair de Portugal, integrou-se ao Nordeste do Brasil, povoando o imaginrio brasileiro. Suas histrias so contadas, seus feitos repassados por jovens e velhos, por ricos e pobres. O riso que surge do rosto de quem ouve concorre com a alegria que nasce do semblante do contador. O cmico existente nos contos, diversos folhetos, histrias infantis, pea de teatro, mantm vivo, no leitor/espectador, o desejo de uma vida mais justa.

H, no serto brasileiro, uma relao ntima com o medievo. As histrias relatadas, os causos vivenciados, ainda exercem uma intimidade com costumes cristalizados na cultura local. Essa manuteno de um pensamento, de certos costumes pode ser vista no texto de Suassuna:

A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, atravs da tcnica do teatro pico cristo, com suas modalidades especficas e seus personagens estereotipados. [...] sendo a cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca atua como uma espcie de fonte para o prprio romanceiro, onde o aspecto religioso se refora no s por causa da religiosidade popular da regio como tambm pela opo pessoal da crena do autor, convertido ao catolicismo na maturidade (VASSALLO, 1993, p. 29-30).

 

Esse tom moralizante proporciona um discurso, muitas vezes, maniquesta. H o certo e o errado, o bem e o mal. Esse discurso, muito recorrente no medievo, encontra altos ecos ainda em vrios lugares do Nordeste.

O texto de Suassuna, suas fontes no cordel e sua influncia do catolicismo popular remetem discusso empreendia por Deleuze e Guattari (1977, p. 25. 28) ao defenderem que

Uma literatura menor no a de uma lngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior.

[...]

As trs caractersticas da literatura menor so de desterritorializao da lngua, a ramificao do individual no imediato-poltico, o agenciamento coletivo de enunciao. Vale dizer que menor no qualifica mais certas literaturas, mas as condies revolucionrias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).

O Auto da Compadecida faz parte de uma discusso sobre literatura universal e literatura regional. A concepo de literatura menor atribuda levando-se em considerao, como afirmaram Deleuze e Guattari, questes ideolgicas, polticas e lingusticas. O lugar de onde se fala importante para o estabelecimento de uma classificao. O Nordeste um lugar ideologicamente de subalternidades. Mesmo Suassuna, um erudito, um escritor regional, segundo o cnone, por ter cedido literatura popular.

Politicamente, o serto ainda visto como um lugar de coronis, cujo povo segue dominado, no pensa, no produz cultura. Todas as expresses feitas pelo sertanejo surgem como subcultura, reinando no campo do folclore, de uma tradio esttica, portanto, morta.

Toda classificao arbitrria. Todo hermetismo revela uma incompletude, uma insatisfao. Um texto no cabe em uma caixa, no se sente cmodo em um cofre. Os folhetos de cordel ou a pea Auto da Compadecida so textos regionais, mas no somente isso, tambm se constituem obras nacionais, mas tambm no so apenas isso. Um texto o tudo e o nada:

a obra somente obra quando ela se converte na intimidade aberta de algum que a escreveu e de algum que a leu, o espao violentamente desvendado pela contestao mtua do poder de dizer e do poder de ouvir (BLANCHOT, 1987, p. 29).

Uma obra um compndio com lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Esse que no respeita, necessariamente, as nomeaes e classificaes oficiais. Literatura menor, universal, nacional, homoertica, de gnero, tnica. Talvez nomenclaturas que defendam um espao de fala, mas tambm que excluem tantas outras. Para o leitor, para mim, leitor, o texto um mundo a ser descoberto, um espao que precisa ser nomeado. Sou eu, leitor, quem o fao. As palavras esto ali, mas preciso penetrar surdamente nesse ambiente espera do que h por vir. imprescindvel entregar-se a este mundo, a este tempo. Nesse instante, no importam cnones, classificaes so indiferentes. a obra, sou eu e o mundo a desvendar.

 

 

4 retalho: o arquivo

 

O mundo processa uma srie de informaes, produz conhecimentos que precisam ser guardados. Existe armazenamento para tudo na contemporaneidade. Em uma empresa, a vida de cada funcionrio arquivada. Na Igreja, h o rol de membros de seus fiis. No clube, existe a relao de associados com suas informaes pessoais. Para cada livro publicado no Brasil, uma cpia envida para a Biblioteca Nacional. Enfim, o arquivo lugar de lembrana e de esquecimento. Representa o esttico, o imutvel. a memria e a tradio, o espao do tempo perdido.

Cada retalho um arquivo em potencial. Cada taco fez parte de uma pea especfica de pano, que foi utilizado para a confeco de uma roupa, cujas sobras foram relegadas a segundo plano. Mas at chegar ao abandono, teve impressa em si a ideia de tecido, o prottipo de uma roupa. Ao ser utilizado em uma colcha de retalhos, adiciona a si mais uma impresso, somada a tantas outras de diversos tacos.

Por isso, no compreendo o arquivo como algo morto, inerte. H, certamente, a possibilidade de um conhecimento estar engavetado, abandonado, esquecido, mas o arquivo , alm disso, e talvez o mais importante, o lugar de onde se pode dispor de saberes.

Eu recorro memria, enquanto arquivo individual ou coletivo, para ativar conhecimentos. Ao faz-lo, tal conhecimento re-elaborado, re-visto. O carter de passividade no se sustenta. O prprio livro pode ser compreendido como um arquivo: Um texto s um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composio e a regra de seu jogo. Um texto permanece, alis, sempre imperceptvel. (DERRIDA, 2005, p. 7).

Enquanto arquivo que, talvez nunca se mostre, o livro precisa ser tocado por mim, leitor, e vice-versa, no para dissec-lo, mas para que eu, enquanto leitor, busque o meu saber, encontre as respostas para os meus questionamentos e, inclusive, suscite outras dvidas sobre mim e sobre o mundo.

            Os arquivos so um depsito em estado de latncia. O arquivista quem lhe d sentido. O livro um ser espera do encontro. O domnio do arquivo est nas mos de quem o ordena, daquele que o consulta. O livro foge do poder de seu autor, escapa por entre seus dedos. Ao autor, cabe o escrever, o finalizar a escrita. Sou eu, leitor, quem a continuo:

O domnio do escritor no est na mo que escreve [...]. O domnio sempre obra da outra mo, daquela que no escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lpis e de o afastar. Portanto, o domnio consiste no poder de parar de escrever, de interromper o que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade decisiva no instante (BLANCHOT, 1987, p. 15-16).

Crendo nessa concepo de arquivo, como algo que exerce duas foras concomitantes, de um lado, a fora intrnseca, que mantm a tradio, do outro, a extrnseca, que promove o novo, que percebo no Auto da Compadecida um arquivo vivo, impregnado da presena de textos diversos, de pocas diferentes, que dialogam com a pea teatral do autor paraibano.

Ler o texto de Suassuna deparar-me com a influncia do texto vicentino. Assim como o autor lusitano, Ariano Suassuna apoia seu texto na rgida moral crist medieval. H uma relao entre a trilogia da Barca com o Auto, quando do julgamento dos personagens por seus atos cometidos por toda a vida. Em Gil Vicente, no entanto, reina um cristianismo oficial, no cedendo espao para inseres de crenas populares, como no texto brasileiro.

O onzeneiro, a alcoviteira, o fidalgo, o sapateiro so exemplos de classes sociais representadas nO Auto da Barca do Inferno. NO Auto da Barca do Purgatrio, tem-se personagens da classe popular, como um pastor, uma mexeriqueira, um blasfemador. Aqui, o purgatrio, espao intermedirio entre o cu o inferno, o caminho do meio, a via alternativa para a sentena divina. J nO Auto da Barca da Glria, as personagens pertencentes aristocracia, Papa, Bispo, Duque, so perdoadas mediante arrependimento.

Nesses textos, cada personagem personifica um pecado capital. Tais falhas precisam ser expurgadas do seio da sociedade, como meio de reeducar o ser humano. A religio como forma de ensino, elemento de represso do mal que habita o ntimo do homem. H toda uma construo, em Gil Vicente, para amedrontar os espectadores de suas peas. Diabos, inferno e purgatrio, seres e espaos mticos que povoam o imaginrio medieval e que se materializam na vida cotidiana daquele perodo:

Comena a declarao e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per fora havemos de passar em um de dous batis que naquele porto esto, scilicet, um deles passa pera o paraso e o outro pera o inferno: os quais batis tem cada um seu arrais na proa: o do paraso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro (VICENTE, 1965, p. 27).

O cu, o inferno e o purgatrio tambm so evocados no Auto da Compadecida. Mas em Suassuna, tais espaos j foram impregnados pelo catolicismo popular, permeados de influncias do espiritismo, bem como das culturas negra e indgena:

O catolicismo popular se exprime mediante elementos culturais, e as culturas populares, por meio de elementos religiosos. A simbiose, em alguns casos, to forte que no fcil distinguir o que pertence religio do que pertence cultura (GOIS, 2004, p. 11).

No Auto, durante o julgamento que Joo Grilo exercita toda sua retrica. Convence Manuel a enviar os rus para o Purgatrio, Severino direcionado ao cu e ele, autor de todas as mentiras e trapaas de Tapero, usa de um discurso de autopunio para garantir a misericrdia da Compadecida:

A COMPADECIDA: Joo foi um pobre como ns, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre com a nossa. No o condene.

[...]

Peo-lhe ento, muito simplesmente, que no condene Joo. [...]. D-lhe ento outra oportunidade.

MANUEL: Como?

A COMPADECIDA: Deixe Joo voltar.

MANUEL: Voc se d por satisfeito?

JOO GRILO: Demais. [...] (SUASSUNA, 2004, p. 170. 172).

O Amarelo ludibria as divindades, e seu retorno ao serto promete mais picardias, j que justificava seus atos pela m distribuio de renda no pas, pela no efetivao de uma vida crist, quando ele, o prximo, era esquecido, humilhado por uma sociedade excludente.

A construo da personagem Joo Grilo segue o prottipo do heri picaresco, ou anti-heri, que sobrevive s custas de seus pequenos golpes. O pcaro no pensa em um futuro distante, preocupa-se com o hoje, pois carece alimentar-se. Como est s margens da sociedade, o anti-heri vinga-se de quem o exclui trapaceando, mentindo. No segue uma moral especfica, nem regras rgidas, o pcaro a tudo subverte em nome de uma sobrevida diria. O Lazarillo de Tormes, texto annimo espanhol do sculo XVI, traz ao mundo o prottipo de pcaros que se seguem ao longo da literatura burlesca mundial:

Vuestra Merced debe saber primero que todos me llaman Lzaro de Tormes, hijo de Tom y de Antona Prez, de Tejares, pueblo de Salamanca. Mi nacimiento fue dentro del ro Tormes y por esta razn tom mi apellido. Mi padre trabajaba en el molino de agua que haba en aquel ro, desde haca ms de quince aos. Y ocurri que all le lleg a mi madre una noche la hora de traerme al mundo, y naci yo. De manera que con verdad me puedo decir nacido en el ro (LAZARILHO DE TORMES, 1994, p. 09).

Lzaro no possui fora bruta, nem autonomia financeira. S pode usar a inteligncia e a perspiccia. O intrigante ter que alimentar uma mentira com outra mentira. Ao ser descoberto, resta-lhe fugir e recomear seu ciclo de picardias.

No texto teatral de Suassuna, Grilo o pcaro que habita o serto nordestino. V a vida como um palco, onde precisa atuar para sobreviver. Conforme Derrida (2005, p. 12), a escritura j, , portanto, encenao, por isso mesmo, a vida, que imita a arte em diversos momentos, deve adaptar-se s mais diferentes situaes. Grilo o resultado do meio em que vive:

JOO GRILO: Muito pelo contrrio, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Trs dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dՇgua me mandaram. [...] a qualquer hora acerto com o patro! Eu conheo o ponto fraco do homem, Chic! (SUASSUNA, 2004, p. 26).

A vingana o nico caminho a trilhar, visto que o nico que conhece. Ao conviver com avaros, egostas, hipcritas, torna-se tambm um, por meio de um reforo negativo. O Amarelo age, no fim das contas, como um daqueles que trapaceia, pois v nisso a nica forma de viver e suportar as agruras do mundo em que vive.

De todas as formas, a avareza o pecado capital mais combatido em textos com pcaros. Pela avareza, os homens perdem as suas almas, afastam-se da divindade, separam-se da religio. Pela sovinice, Harpago, da obra O Avarento, de Molire, promove casamentos arranjados para seus filhos, comanda um regime de conteno de despesas em casa, racionando a comida, escondendo seu tesouro. conhecido por todos pela sua mesquinhez, como afirma seu servo:

MESTRE TIAGO: Senhor, j que assim quereis, dir-vos-ei francamente que troam de vs por toda a parte; que vos lanam, de todos os lados, mil zombarias e que s ficaro satisfeitos quando vos derem um pontap; e inventam, constantemente, histrias sobre a vossa mesquinhice. [...]. Enfim, quereis saber? No se vai a lado nenhum que no se oua dizer de vs o pior possvel. Sois o motivo de troa e de risos de todos, e s vos tratam por avarento, mesquinho, desprezvel usurrio (MOLIRE, 1971, p. 62).

O Padeiro e sua Esposa so os maiores sovinas que Tapero j viu. Exploram seus empregados, Grilo e Chic, que, por sua vez, buscam explorar a quem encontram. Mas h avareza em outros personagens do Auto da Compadecida. O Padre e o Bispo guerreiam pelo testamento do cachorro. Severino invade a vila e saqueia a todos. Pela avareza, o autor observa os outros pecados aproximarem-se do homem e tomarem conta de seu esprito. Da avareza do casal de patres, surge o sentimento de vingana de Grilo, que s possui sua mente e sua voz como armas para combater os mais fortes:

JOO GRILO: homem sem vergonha! [Chic][103] Inda pergunta? Est esquecido que ela [A mulher do padeiro][104] deixou voc? Est esquecido da explorao que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que so o co s porque enriqueceram, mas um dia ho de me pagar. E a raiva que eu tenho porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. At carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, Joo Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo (SUASSUNA, 2004, p. 39).

O final do texto de Ariano Suassuna aponta para uma possvel remisso de Joo Grilo, mas ele retorna mais pobre do cu do que quando fora julgado. Na verdade, nesse instante, o autor est, atravs do Palhao, o narrador e condutor da pea, chamando a ateno do expectador, para que este possvel Grilo que esteja no recinto afaste-se de uma vida de picardias.

Esses retalhos, acrescidos colcha do Auto da Compadecida, so exemplos de um arquivo que se pretende mvel, dialogando com outros tacos, conversando com o leitor.

Em cada retalho montado, um rastro estelar me chega aos olhos. Em cada imbricamento de textos, uma nova raiz fasciculada gera outras conexes textuais, musicais, visuais, enfim, prazerosamente, abro o arquivo e retiro dele a coberta de taco do Auto da Compadecida, com ela, tantos outros ecos de tantas outras histrias em despropsitos sem fim.

 

 

5 retalho: a semiologia

 

Segundo Blanchot (1987, p. 12),

A obra literria solitria: isso no significa que ela seja incomunicvel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l entra nessa afirmao da solido da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solido.

O texto literrio, solitrio por natureza, pode aproximar-se de outras linguagens. Dentre essas, a cinematogrfica. Pelo olhar do cinema, a literatura ganha outros olhares, novas sensaes, outros pblicos. O Auto da Compadecida um dos textos do sculo XX mais recorridos grande tela. Pelas lentes das cmeras, Grilo e seus companheiros recebem interpretaes pela caneta dos roteiristas e adquirem semblantes conhecidos em todo o pas e tambm fora dele.

A primeira adaptao flmica, A Compadecida, foi dirigida por George Jonas e estrelada por Regina Duarte, Antonio Fagundes e Armando Bogus. a adaptao mais parecida com o texto literrio e seu roteiro foi escrito pelo prprio Suassuna, que acompanhou toda a filmagem, aprovando-a.

Mas de todas as trs adaptaes, essa, de 1969, a que possui o enredo mais arrastado, j que h uma tentativa clara de fazer teatro no cinema. Todas as aes da pea so transpostas para a pelcula, mas o time do humor no teatro no segue o mesmo tempo na frente das cmeras.

A segunda adaptao, de 1987, foi dirigida por Roberto Farias. Intitulada Os Trapalhes no Auto da Compadecida, foi protagonizada pelo quarteto de humoristas famoso na televiso e no cinema com seus filmes leves e de riso frouxo.

Com a inteno de agradar a crtica, Ariano Suassuna foi convidado por Renato Arago para coassinar o roteiro da adaptao, que mantm a figura do Palhao, como o narrador que unifica os trs enredos: a morte do cachorro, o gato que descome dinheiro e o Julgamento Final. Contudo, o pblico no assimilou o filme estar associado a um texto srio. Apesar de ter sido exibido, inclusive em Portugal, foi uma das menores bilheterias dos Trapalhes, embora tenha recebido boas crticas.

O texto de Suassuna foi adaptado para a televiso em parte, inserido em novelas, montado para o teatro incontveis vezes. Tem trechos de seu texto utilizado em livros didticos como exemplo de literatura dramtica. Sua linguagem leve assimilada com facilidade pelos leitores e espectadores.

Em 2000, por meio de uma reduo da microssrie exibida um ano antes, estreou nos cinemas brasileiros O Auto da Compadecida[105], dirigida por Guel Arraes. Protagonizada por Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Melo, Marco Nanini e outros, a pelcula foi uma das mais vistas naquele ano.

Guel Arraes e os roteiristas Adriana Falco e Joo Falco acrescentam ao texto de Suassuna trechos de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, alm de personagens de outras peas do autor paraibano, como Torturas de um corao. O roteiro gil e prende o espectador atravs do riso gerado pelas astcias de Grilo e pela covardia de Chic.

Essa ltima adaptao a mais popular de todas. Embora suavize o discurso maniquesta do texto literrio, mantm com este um dilogo constante, respeitando as diferenas de signos que os constituem.

Tais filmes tambm contribuem para formar a colcha de retalhos com suas especificidades. Cada roteiro, cada leitura do diretor, cada interpretao dos autores no reduz, como muitos crticos pensam, a obra literria ou por que o filme no mantm uma pretensa fidelidade, sendo devedor da literatura. Ao contrrio, conversa com esta. No h o superior e o inferior, h os diferentes, e o sero sempre, como cada retalho de pano um do outro. Para Robert Stam,

Ns ainda podemos falar em adaptaes bem feitas ou mal feitas, mas desta vez orientados no por noes rudimentares de fidelidade mas sim, pela ateno transferncia de energia criativa, ou s respostas dialgicas especficas, a leituras e crticas e interpretaes e re-elaborao do romance original, em anlises que sempre levam em considerao a lacuna entre meios e materiais de expresso bem diferentes (STAM, 2006, p. 51).

Retomo agora a coberta de taco que venho cosendo diligentemente. Escolho cada retalho, os mais variados, somo-o a outros. Nessa colcha, somam-se livros, peas de teatro, contos, msicas, filmes. Nessa profuso de cores, escritas e sons, todos coexistem unidos entre si, sem a pretenso de estabelecer hierarquias.

 

 

6 retalho: o retalho por vir

 

Em Edward W. Said, encontro a afirmao:

Longe de serem algo unitrio, monoltico ou autnomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos estrangeiros, alteridades e diferenas do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).

Todo retalho que li, seja o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, sejam O Avarento, de Molire, ou O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, ou ainda as Barcas de Gil Vicente, ou O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro, O castigo da soberba, folhetos de cordis, sejam A Compadecida, Os Trapalhes no Auto da Compadecida, O Auto da Compadecida, filmes brasileiros. Sejam Derrida, Foucault, Blanchot, em tudo que leio, vejo uma manifestao cultural. O homem um ser que produz cultura em tudo que faz.

Se creio nisso, abomino a ideia de cultura superior dominando as outras, mas acredito no embate cultural, numa nsia constante de tomada de lugar entre os expoentes culturais.

Defendo um maior espao para as culturais subalternizadas, ditas populares, mas tambm visualizo as constantes trocas culturais. Vejo que o Eu quer estabelecer-se, mas observo que isso se d em consonncia com o Outro, para formar, muitas vezes o Ns, o Tu, o Eles.

A semelhana se d por meio da diferena, porque cada homem um ser que se conhece, outro que se d a conhecer e muitos seres estranhos povoando os espaos vazios da existncia. Espaos muitas vezes ocupados pela literatura, que a materializao desses seus que vagueiam por a procura da plenitude do Nada.

Cresci em meio aos livros, mas a maior lio que aprendi que os livros que esto dentro de mim. Eu sou uma colcha de retalhos, eu sou um homem feito de pedaos, belos tacos que, unidos, formam o que sou. No me sinto formado, no pretendo ser o dono da verdade, j que as creio mltiplas, e persigo-as e as uso, uma hoje, outra amanh. E disponho de cada retalho, e retomo meus retalhos, e me leio, procura daquilo que sou e tambm do que nunca virei a ser.

Estou aqui, eu, espera dos prximos retalhos, dos textos de fruio, das leituras de prazer. Espero fazer minhas conexes constelatrias, meus enxertos rizomticos. Eu, assim como o menino de Manuel de Barros, levo gua na peneira, molhando-me nela, sentindo-a, sentindo-me.

Encontro-me aqui, nesse instante, com um pedao de colcha, inacabada, uma srie de retalhos, agulha e linha nas mos.

 

 

Referncias

 

BARROS, Leandro Gomes de. O cavalo que defecava dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.

 

_________. O dinheiro (O testamento do cachorro). Fortaleza: Tupynanquim, 2005.

 

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 5. ed. So Paulo: Perspectiva, 2010.

 

BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

 

_________. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

MOTA, Leonardo. Castigo da soberba. In: _________. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1955.

 

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DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Kafka – por uma literatura menor. Trad. Julio Guimares. Rio de Janeiro: imago, 1977.

 

DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Trad. Rogrio da Costa. So Paulo: Iluminuras, 2005.

 

_________. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Trad. Cludia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001.

 

GOIS, Joo de Deus. Religiosidade popular. So Paulo: Edies Loyola, 2004.

 

KRISTEVA, Julia. Introduo semanlise. So Paulo: Perspectiva, 1974.

 

LAZARILLO de Tormes. Madrid: Santillana/Universidad de la salamanca, 1994.

 

LIMA, Joo Ferreira de. Proezas de Joo Grilo. So Paulo: Luzeiro, 1979.

 

MOLIRE. O Avarento. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

 

STAM, Robert. Teoria e prtica da adaptao: da fidelidade intertextualidade. Ilha do Desterro, Florianpolis, n. 51, jul./dez. 2006, p. 19-53.

 

SAID, Edward. W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. comemorativa de 50 anos. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

 

VASSALO, Lgia. O serto medieval: origens europias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

 

VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irmo, 1965.

 

 

[Recebido: 23 ago 2021]

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ENTREVISTA


Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria do homem que levou os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a cantoria

 

 

Brief prose with Ariano Suassuna or The story of the man who took singers to the theater and showed other directions for singing

 

 

Andra Betnia da Silva (Pesquisadora)

https://orcid.org/0000-0003-3316-0812

 

Ariano Suassuna (Colaborador/em memria)

 

 

Ariano Suassuna, poeta, romancista e dramaturgo, segundo sua prpria definio, no apenas era um homem do serto como fez desse espao seu lugar escolhido como representao do povo brasileiro. Essa entrevista, realizada em sua casa, em Recife, Pernambuco, no dia 24 de maio de 2013, apenas 1 ano antes de sua partida, como parte da pesquisa desenvolvida sobre a cantoria de improviso, revela como atuava junto aos poetas populares alm das fronteiras do campo literrio, ficcional, e em que medida (embora imensurvel) sua proximidade desde criana, ainda em Tapero, na Paraba, com as prticas populares o motivou a agir como um estandarte, cuja flmula atraa ateno de pblicos to distintos, ecoando pelos quatro cantos sua escrita que bebia em fontes orais.

A conversa que ora se apresenta resultado do desafio de entrevistar um homem paradoxal, em vrios sentidos, com conhecimento to vasto e tempo to diminutivo para o que no lhe despertava paixes. Se tive acesso ao senhor Ariano, vi em seus olhos o menino Ariano, caminhando com seus sonhos, inquieto e inquietante desde sempre.

 

 

Andra – Boa tarde. Agradeo a disponibilidade e a gentileza para a cesso dessa entrevista. Fao um doutorado no qual pesquiso os Festivais de Violeiros e estudo a partir do p de parede quais so as transformaes que vo surgindo at que a gente chegue nos Festivais de Violeiros. Todas as pessoas que eu entrevistei at agora apontam o senhor como uma das primeiras pessoas a ter promovido um evento de violeiros no teatro, no Teatro Santa Isabel.

 

Ariano – Eu acho que uma das primeiras no. Eu acho que foi a primeira [risos], no ? Pra promover cantador assim, no teatro, eu acho que fui o primeiro.

 

Andra* – Ento, eu estou aqui justamente hoje para a gente conversar sobre isso.

 

Ariano – Pode ser.

 

Andra – Eu queria que o senhor me falasse sobre a sua relao com a cantoria, sobre o que lhe motivou.

 

Ariano – Minha filha, para comear, j que voc fez referncia a essa primeira mostra dos cantadores aqui, eu vou comear por a. Eu tive uma surpresa porque eu j conhecia a tradio do romanceiro, principalmente por causa Primeiro porque como sertanejo eu vi um desafio de viola com um dos maiores cantadores que o Brasil, o Nordeste e o Brasil tiveram, que foi Antnio Marinho, que era um grande, um grande cantador. E ele escrevia tambm folhetos, era um poeta popular. E eu vi, eu vi, tive a sorte de ver aos sete ou oito anos de idade, por a, eu vi um desafio de violeiros com Antnio Marinho, l na minha terra, em Tapero, no serto da Paraba. Mas depois eu peguei l na biblioteca de meu pai livros sobre cantadores. Papai, meu pai era um grande admirador da poesia popular nordestina. Ele tinha uma memria muito boa, sabia de cor vrios, muitos versos. E por isso ele se tornou amigo de um pesquisador, hoje meio esquecido, mas que eu tenho feito tudo para restaurar, trazer nova luz sobre o trabalho dele, ele se chamava Leonardo Mota, era cearense e ele era muito amigo de meu pai. Ele dedicou um dos livros dele, Serto Alegre, ele dedicou a cinco pessoas, entre as quais foi meu pai. E ele, no corpo do livro, ele cita meu pai como uma das fontes em que ele se baseava, ele diz, ele fala da memria do meu pai, ele disse que o meu pai forneceu a ele muitos versos. Ento, eu atravs dos livros de meu pai eu tinha tomado conhecimento dessa tradio do romanceiro popular do Nordeste. Depois eu vim muito menino estudar no Recife, fiquei por aqui, fui ficando, vim morar aqui aos 15 anos. Eu vim estudar aos 10, mas depois, quando estava com 15 anos, a minha famlia toda se mudou para c. Ento, eu no tive mais contato nenhum e eu pensava que a tradio tinha se extinguido. A, quando foi em 1946, eu fiz uma viagem ao serto do Cear e l tive a oportunidade de conhecer um grande cantador pernambucano, de So Jos do Egito, chamado Dimas Batista. Ele era um dos trs irmos Batista que eram cantadores. Eram trs irmos, todos os trs cantadores: Lourival, que era o mais velho, Dimas e Otaclio, que era o mais moo. A eu fiz amizade com Dimas, fiquei deslumbrado com o talento extraordinrio de Dimas e alm do mais com a pessoa, que ele era uma pessoa extraordinria, acima do comum, um camarada tranquilo, calmo, gigante, alto, ele era alto e forte, com esse jeito manso de gigante manso. Ento, eu me impressionei com a rapidez do improviso de Dimas, fiquei encantado. Ele cantou sozinho, no cantou em dupla. Mas a eu, por intermdio dele, eu tive conhecimento desses dois irmos dele que existiam e outros cantadores, ele me falou de muita gente e eu fiquei impressionado. A, nesse tempo eu era do primeiro ano na Faculdade de Direito do Recife. A, quando eu cheguei aqui, de volta, eu pertencia ao diretrio, a falei com o pessoal do diretrio e resolvemos trazer, fazer essa cantoria no Santa Isabel. Ento, eu trouxe trs poetas, que eram os trs irmos Batista e mais um, um poeta popular que no improvisava, mas escrevia folhetos, ele se chamava Manoel de Lira Flores. Ento, fizemos essa cantoria e teve uma repercusso enorme no municpio, o Teatro Santa Isabel ficou lotado. Ento, um cantador que tinha muito senso de organizao, ele se chamava Rogaciano Leite, era de So Jos do Egito, ele a, animado com essa cantoria que eu fiz, resolveu fazer o primeiro Congresso, o primeiro Festival de Violeiros daqui, foi dois anos depois dessa cantoria. Eu fiz essa cantoria em setembro de 1946 e Rogaciano Leite organizou o primeiro Festival no Santa Isabel, onde eu tinha feito, s que, a princpio, causou uma estranheza muito grande. O diretor quase no permite, t entendendo? Quase no permite, mas a depois do sucesso com a cantoria e coisa etc., abriu o caminho e a ainda tivemos outra sorte porque Dr. Arraes, que era um sertanejo como eu e gostava de cantoria, era Secretrio da Fazenda do governo aqui de Pernambuco. A, Dr. Arraes bancou o festival, a Secretaria da Fazenda pagou as despesas e fez o I Congresso, que foi extraordinrio! Foi um sucesso enorme tambm. E ento, da em diante, depois ele organizou o segundo, dois anos depois, eu no tenho certeza, depois a... A espalhou-se. Depois desse primeiro congresso, inclusive, ele, Rogaciano Leite, viajou com Dimas, Dimas e Otaclio. Acho que Lourival no foi, no. No tenho certeza, mas foram para o Rio de Janeiro e foram recebidos na Academia Brasileira de Letras, e Manuel Bandeira escreveu um pequeno poema sobre os dois, tanto que t publicado nos livros dele hoje. Eu me lembro que ele disse: Sa de l convencido Ento, voc v por a que teve uma repercusso imediata. E outra coisa, outra coisa que foi muito importante do ponto de vista do prestgio do cantador nos meios intelectuais foi o fato curioso. No sei se voc sabe, mas na poca parnasiana tinha-se o costume de eleger o prncipe dos poetas brasileiros. O primeiro, se eu no me engano, foi Olavo Bilac, que foi escolhido como prncipe dos poetas brasileiros. Quando ele morreu, parece que se escolheu Alberto de Oliveira. Quando Alberto de Oliveira morreu, escolheram um paulista chamado Guilherme de Almeida. A, quando Guilherme de Almeida morreu, comeou a haver um movimento para se eleger Drummond, a Drummond escreveu um artigo dizendo que ele no merecia, no, que quem merecia era Leandro Gomes de Barros, n? E isso deu uma... Ele saltou de mais de mil folhetos e disse: Esse um poeta do povo brasileiro mesmo. A ele fez essa citao que eu achei muito boa.

 

Andra – Quais as motivaes que o senhor tinha naquela poca, quando participava do Movimento Estudantil, para promover esse Encontro de Cantadores? Porque at ento no era algo frequente. At ento, levar os cantadores para o teatro no era possvel.

 

Ariano – No, no, isso no havia, no. E eu lhe no contei isso, mas j tenho contado a, em outras ocasies, o diretor do teatro a princpio recusou. Ele disse para mim: Mas voc quer trazer pro palco do Teatro Isabel, onde j foram recitar seus versos Castro Alves, Tobias Barreto, onde Joaquim Nabuco fez seu discurso, voc quer trazer cantador de viola? A eu disse: Doutor, eu gostaria de ouvir a opinio, eu no digo de Joaquim Nabuco, eu no sei, no [riso]. Mas Castro Alves e Tobias Barreto, eu tenho certeza de que eles iriam gostar, est certo? A, ele fez assim porque metade da renda ia ser dada aos cantadores e a outra metade ia ser dada ao abrigo dos cegos que tinha aqui. Ele ento disse: Eu vou ressalvar a minha responsabilidade. Veja como era considerado um ato nocivo, vergonhoso, ele ia se envergonhar. A, ele botou assim: Deferido, tendo em vista a destinao filantrpica de metade da renda. Quer dizer, ele achou que podia sem se manchar, ele podia deferir, mas por causa da destinao filantrpica do abrigo dos cegos.

 

Andra – Influenciou o fato de seu pai, h muitos anos, ter levado os cantadores para o Palcio do Governo da Paraba?

 

Ariano – Sim, sim, eu tinha conhecimento desse fato, n? E foi uma das coisas que me abriu o caminho.

 

Andra – Mas eu fico imaginando se naquela poca havia uma proximidade entre os estudantes da universidade e a cultura popular.

 

Ariano – Sim.

 

Andra – O senhor se lembra quais eram os objetivos daquele perodo?

 

Ariano – Olha, isso a, o que eu posso dizer, inclusive sem vangloria, porque no fui eu, para mim no era assim, no. Isso, isso para mim foi decorrente do trabalho de Hermnio Borba Filho, que era o diretor do Teatro de Estudantes. Ele era mais velho do que ns, ele era dez anos mais velho do que eu, Hermnio. Entrou na faculdade de Direito para a gente organizar, reorganizar o Teatro do Estudante de Pernambuco. Pois bem, Hermnio, eu digo sempre, voc veja, essa diferena de dez anos hoje no nada porque um homem de 80 anos e um homem de 70, eles conversam de igual para igual. Mas no tempo eu tinha 18 anos e ele tinha 28, era uma diferena enorme, est entendendo? Ele j era casado, j tinha um emprego, j tinha uma estrada longa e tinha uma bela biblioteca em casa e ele era um grande leitor. Era um grande leitor e era hermenutico, quer dizer, foi a primeira pessoa que eu encontrei assim, um escritor, um autor, um diretor de teatro que eu encontrei que dava literatura popular uma importncia muito grande, cultura popular, poesia popular, uma importncia muito grande, e ele, por sua vez, j se mirava no exemplo de Garcia Lorca, no ? Que era um altssimo poeta, como voc sabe.

 

Andra – Claro!

 

Ariano – E ele era muito interessado em teatro. Organizou um teatro ambulante, l na Espanha, tanto que a gente organizou um tambm, seguindo o exemplo de Lorca e a gente colocou o mesmo nome, o nome do grupo dele era La Barraca, porque ele andava com uma barraca ambulante. Ento, a gente conseguiu uma barraca aqui, fizemos o grupo com o nome de A Barraca em homenagem a ele. Estreamos no dia do aniversrio da morte dele, do Lorca, n? Para protestar contra a morte dele, j era tarde, mas protestamos e para prestar uma homenagem de gratido a ele por essa inspirao que ele tinha nos dado. E voc sabe que Lorca tem um livro de poemas chamado Romanceiro Cigano, quer dizer, onde ele fez com o Romanceiro Cigano o mesmo que a gente pretendia fazer aqui com o Romanceiro Popular, est certo?

 

Andra – Que interessante!

 

Ariano – Ento, foi nesse exemplo que ns nos baseamos e que ns comeamos essa jornada. Termino como comandante e alguma saudade.

 

Andra – E, a partir disso, o senhor vai influenciando algumas pessoas.

 

Ariano – sim.

 

Andra – Conversei com o Brulio Tavares e ele disse que s passou de fato a valorizar a cultura popular quando ele teve acesso s suas obras.

 

Ariano – . Ele tem dito isso em outras ocasies e eu acho muito engraado. Eu no sei se lhe mostrei isso, Samarone[106]. Ele disse que aos 18 anos, ele foi para...

 

Andra – Para Belo Horizonte.

 

Ariano – Para Belo Horizonte estudar Cinema, no ?

 

Andra – Isso.

 

Ariano – No incio, ele no ligava pra nada. Depois, a ele s ligava pro cinema de Godard, essas coisas. Bom, a ele disse que ficava chateado de ter nascido em Campina Grande. Ele diz: Mas, meu Deus, com tanto lugar interessante [riso] para eu nascer, ele disse Tinha tanto lugar interessante para eu nascer, eu fui nascer em Campina Grande. Ele dizia que olhava jumento na feira ou um matuto com chapu de couro, carregadores carregando um balaio de ovos l, a ele a disse que foi quando ele leu A Pedra do Reino e disse que era o pai dele que estava aqui no Recife comeou a escrever para ele: Olha que coisa interessante!

 

Andra – Isso mesmo que ele conta!

 

Ariano – A comeou a mandar entrevistas minhas e outras coisas, a ele disse que comprou o romance dA Pedra do Reino, a ele disse: Quando eu comprei, que abri, eu voltei para a Paraba e ele disse: Eu descobri, por causa dA Pedra do Reino que a Paraba era a Grcia antiga, eu achei timo! Que a Paraba, ela tinha tudo, tinha uma mitologia, tinha tudo aquilo l. Foi uma das declaraes que me deixaram mais orgulhoso, foi essa de Brulio.

 

Andra – E ele fala isso extremamente emocionado, n?

 

Ariano – .

 

Andra – Ele diz A obra de Ariano foi a obra que mudou a minha vida. At ento, ser nordestino para mim era um peso. Eu fugia disso. E por isso eu procurava Cinema, eu procurava as influncias que eram estrangeiras e negava tudo que tinha. E a, a partir disso, ele comea a se envolver tambm com os Festivais de Violeiros de Campina Grande. E ele comea a fazer um trabalho muito parecido com o seu, inclusive. O Movimento Estudantil de l da poca se aproxima, os cantadores convocam os estudantes e eles comeam a organizar.

 

Ariano – Muito bom.

 

Andra – Ento, de 1974 at 1980, mais ou menos, eles ficam frente juntamente com os cantadores. S que tem uma entrevista com Jos Alves Sobrinho.

 

Ariano – Sim.

 

Andra – Tem uma entrevista com ele, nos anos 80, na qual ele aponta o seu evento de 1946, mas a ele diz que Rogaciano teria feito um Congresso em 1946, em Fortaleza.

 

Ariano – Ah, eu no sei. No sabia.

 

Andra – E depois ele teria feito um aqui.

 

Ariano – Ah, no sabia, no. No sabia, no. Eu s tomei conhecimento de Rogaciano em 1948.

 

Andra – Do daqui, no ?

 

Ariano – . Ele trouxe, inclusive, uma coisa que me comoveu muito. Ele trouxe o Cego Aderaldo e eu conheci o Cego Aderaldo pessoalmente, que para mim era uma figura mtica, no ? A, eu estive no Cear agora, h pouco tempo, ns estamos fazendo um documentrio nos estados do Nordeste, promovido pelo SESC e eu comprei essa histria que, inclusive, o cego Aderaldo, alm do grande cantador que era, o Cego Aderaldo, ele era o que eu sonhei ser, est entendendo? Ele era o dono, ele tinha um circo. Tinha um circo e ele, alm de cantador, ele era um ator, ele tinha o domnio do palco que eu nunca vi uma coisa daquela. E ele cantava uma msica tocando viola ou violo, eu no lembro bem porque ele tocava viola, violo e rabeca. A, chamava-se A gargalhada. A, ele cantava uma quadra, e a ele, no ritmo do acompanhamento do baio com o qual ele acompanhava cada quadra, ele comeava a rir, uma risada propositadamente artificial, est entendendo? E, pois bem, no dava vinte segundos, ningum no teatro se aguentava, todo mundo estava rindo com ele. Era uma coisa extraordinria! Ele dizia assim [canta] Minha comadre borboleta/ Meu compadre gafanhoto/ Venha ver compadre grilo/ T dando com os ps nos outros. Vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora, vai. E ele, a, dava uma gargalhada Hahaha!, mas, olhe, era engraadssimo isso. Ele tinha uma garganta forte, no tinha essa besteira com ele, no. Muito bom! E eu tive a alegria de conhecer o Cego Aderaldo apresentado por Rogaciano Leite.

 

Andra – Nesse evento que aconteceu no Santa Isabel havia uma disputa entre os cantadores ou eles eram apenas convidados?

 

Ariano – No, no. Eu no gosto muito disso no, est entendendo?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Eu gosto mais de ver cantoria, ento, eu no fiz... Num Congresso que se faz isso, cada dupla tem que ser assim, porque tem que mostrar muito, cada dupla tem tantos minutos. Todo mundo que j ouviu uma cantoria sabe, a cantoria tem altos e baixos. Vai esquentando e a fraca aproveita incidentes, o que uma coisa muito boa. Severino Pinto, por exemplo, tava cantando um dia e ele disse: Eu sou Severino Pinto/ Grande cantador do espao, na hora em que ele disse isso, o galo cantou [riso] no poleiro da fazenda. E ele disse Meu galo, no cante agora/ Me deixe eu cantar sossegado/ Que o pai que arremeda o filho/ muito mal-educado [risos]. Como o nome dele era Pinto, no ? A, quer dizer, ento, a cantoria tem isso. E se voc estabelece um horrio, voc pode pegar 20, 10 minutos de cantoria ruim. Por acaso os nossos cantadores no estavam muito bem e pode ser um grande cantador e se sair mal, compreendeu? Ento, eu no fiz isso, no, eu fiz uma cantoria. L o cantador cantava vontade, est entendendo? O cantador cantava vontade e eram trs irmos, ento, no tinha isso, no. E todos os dois, Dimas e Otaclio, tinham uma admirao muito grande pelo Lourival, que era o mais velho, eles consideravam Lourival o maior. Eu, pessoalmente, gostava mais do Dimas, eu achava Dimas... Lourival tinha um improviso bom, extraordinrio, mas o Dimas era um cantador mais seguro e eu achava mais igual, t me entendendo? E ele era mais, no sei, mais profundo, talvez, do que Lourival. Pois bem, ento, eles cantaram. Agora, inclusive teve uma coisa muito interessante porque aquilo que eu digo do aproveitamento do momento. Porque apareceram trs ou quatro estudantes paulistas l, e eu no sei se eles ficaram se sentindo diminudos pelo sucesso que os cantadores estavam fazendo l e eles tinham bebido tambm e resolveram entrar no palco para fazer isso que hoje se chamaria uma performance.

 

Andra – Nossa!

 

Ariano – Est entendendo?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Ento, a entraram os dois no palco. E eu no sei se voc j viu essa porcaria, eu j vi mais de uma vez. Aconteceu o seguinte: entrava um assim, em p, e ficava em p assim, com as mos no bolso, est entendendo? O outro vinha por trs, abraava ele assim, passava os braos aqui por baixo assim, ento, ficava ele pra frente e os braos do que estava atrs. E a graa era a gesticulao no ter nada a ver com o que a boca estava dizendo. Bom, quando eles terminaram l, a a plateia ficou assim meio fria, mas aplaudiu assim educadamente e friamente. Isso a foi que eles no sabiam com quem tavam mexendo. Lourival, que era o sujeito mais sem vergonha do mundo, a eles comearam a cantar um estilo que chamam Gemedeira porque entre o sexto e o stimo verso a pessoa faz ai, ai, ui, ui ou ento, ai, ai meu Deus. Pois bem, a ele fez um verso, at achei que estava numa posio meio estranha, a disse... Eles cantaram vrios, eu me lembro dessa Sextilha em que ele disse assim... Sim, porque teve um momento em que os estudantes l viram que no estava fazendo sucesso e eles resolveram apelar, a deram uma banana assim, deram uma banana para o pblico. O pblico a ficou acanhado. Ento, Lourival disse assim: O de trs dava banana/ O da frente discursava/ Quanto mais um se enxeria/ Mais o outro se encostava/Atrs ainda tinha um jeito/Ai, ai, meu Deus/ Na frente que eu no ficava [risos]. Rapaz, foi umO teatro quase veio abaixo na hora. Quer dizer, esse era um momento que, esse era um grande momento da cantoria, n? Quando aproveita-se o que aconteceu ali e a o pessoal v que improvisado mesmo.

 

Andra – Claro! Muitos cantadores tm apontado a presena do balaio, que o senhor deve conhecer.

 

Ariano – Hein?

 

Andra – O senhor conhece o balaio? A estrutura que os cantadores levam escrita, que no improvisada, decorada, e apresentam como se fosse cantoria?

 

Ariano – Sim, sim, sim. No sabia que chamava-se balaio, no.

 

Andra – , eles chamam de balaio. E os cantadores tm apontado isso como possibilidade de enfraquecimento da cantoria porque iria para um Festival ou para um p de parede sem o improviso, que o que caracteriza esse tipo de produo. Ento, medida que o balaio vai sendo introduzido, voc vai colocando uma produo escrita no lugar de uma produo oral.

 

Ariano – No da improvisao, no ?

 

Andra – . Isso de fato tem mudado muito. Eu tenho visto que a cantoria tem mudado muito de uns tempos para c, tanto no formato quanto na performance.

 

Ariano – Eu no vou, eu no vou a congresso de cantadores, no, que eu no gosto. Eu no gosto. Inclusive por isso, pelo artificialismo e depois tem outra coisa que eles fazem que eu tenho horror, uma tal de uma Poesia Matuta, compreende? Que no era uma tradio do cantador nem da poesia popular. Pelo contrrio. Isso foi introduo de poeta de classe mdia que Olha, eu acho isso uma falta de respeito ao povo, est entendendo? Voc repare bem. Em primeiro lugar, a linguagem, e eu estou falando aqui de teatro de modo geral. A linguagem escrita no corresponde linguagem falada, outra coisa, est certo? Nem a pronncia. A linguagem escrita tem muita coisa de conveno, no ?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Tem muita coisa que conveno. Pois bem, se eu entrar com um personagem de uma pea de teatro, eu digo, eu pronuncio como todo nordestino, eu no digo Ns. Eu digo Nis, no verdade? Pois bem, se ele me bota como personagem apesar de eu dizer Nis, eles colocam l N--s e acento. E quando um homem do povo eles querem botar N-o-i-s com acento, Nis, Nis vai, entendeu? Isso uma falta de respeito, uma discriminao contra o povo, porque eu no conheo ningum no Nordeste que diga Ns a no ser padre e pastor protestante [risos]. No ? Padre e pastor protestante dizem Jesus na cruz cercado de luz [risos]. No ? Mas gente normal, no. No ? Diz Jesuis na cruiz cercado de luiz. Mas quando um homem do povo eles botam o i, est entendendo? Pois bem, na poesia matuta que eles fazem assim. Aqui tem um rapaz talentoso, muito talentoso, mas eu no gosto do que ele faz. Eu t dizendo isso porque ele sabe, ele at j declarou isso. Ele se chama Jessier Quirino. Eu no gosto, no. Pois bem, nos congressos de cantadores deram para botar essa tal poesia matuta. Quem inventou isso foi um pernicioso, um maranhense pernicioso chamado Catulo da Paixo Cearense. Apesar de se chamar Catulo da Paixo Cearense, ele era maranhense [risos]. Pois bem, esse camarada foi quem inventou isso. Agora voc veja, ns tnhamos aqui um grande poeta popular, Idelette[107] deve conhecer, no ? Ele paraibano como eu e mora em Pernambuco como eu. Ele se chama Jos Costa Leite. Pois bem, ele um grande poeta e um grande gravador. Ele faz as gravuras dos prprios folhetos, ele que faz. Pois bem, Jos Costa Leite, ele fez um folheto baseado em um poema de Catulo da Paixo Cearense. E ele corrigiu os erros todinhos de Catulo. Que lio, no ? Est vendo? O poeta popular de verdade, ele escreve da maneira que ele acha mais correta, no pode sair melhor a coisa porque ele no sabe, mas procurar deliberadamente o erro...

 

Andra – . O que a gente acaba aprendendo que a oralidade feia, no ?

 

Ariano – .

 

Andra – E que a escrita que bonita porque polida, recortada.

 

Ariano – , , exatamente. Agora o que pior deturpar a escrita partindo de uma falsa interpretao da linguagem falada. Quando eu encenei o Auto da Compadecida, eu chamava ateno para isso, procure um erro de Portugus e no tem. Eu acho que errado a pessoa mudar a letra da linguagem popular. A pessoa tem que atingir o esprito, mas tambm de uma forma que aquilo ali se esconda e ningum note, que ningum saiba.

 

Andra – Compreendo. Naquela poca, no teatro, qual era o pblico que foi ver essa cantoria? O senhor lembra?

 

Ariano – No, no sei, no. Porque inclusive eu pedi, como eu disse, a ajuda do diretrio e fizemos. Ns combinamos isso e fizemos com entrada paga, que era pra dar pros cantadores. Mas ns mesmos, os estudantes, samos vendendo. Eu me lembro bem, vendi para toda gente da minha famlia, a era o normal, mas vendi para os vizinhos todos, compraram e foi muita gente de vrios tipos. Agora tinha muito estudante.

 

Andra – Nessa poca, os cantadores cantavam muito com a bandeja, no ?

 

Ariano – . No. A cantoria normal era com a bandeja.

 

Andra – O p de parede?

 

Ariano – . L no. L no foi, no. Porque fizemos com entrada paga na bilheteria do teatro mesmo. E encheu o teatro, encheu literalmente. Sobrou gente. Foi muito bom!

 

Andra – A partir disso, o senhor continuou tendo iniciativas deste tipo?

 

Ariano – No. Eu fiz isso por entusiasmo, est certo? Mas quando apareceu Rogaciano, eu fiquei muito aliviado e eu disse: Voc agora v em frente. E eu no organizei mais, no.

 

Andra – Mas o senhor se d conta de como isso foi importante para mudanas dentro do sistema da cantoria?

 

Ariano – Hoje estou mais ou menos consciente, na poca no tive medida, no. Eu fiquei muito feliz de ver aquele povo que foi naquele dia gostar, comprar entrada e aplaudir os cantadores.

 

Andra – Mas foi realmente uma atitude muito desafiadora.

 

Ariano – Foi.

 

Andra – Tirar os cantadores do lugar onde eles costumavam se apresentar e mudar para um lugar de elite, que era o teatro.

 

Ariano – Foi. Mas sempre sou assim. Ainda hoje, no sou mais aquele estudante, no, mas eu ainda hoje tomo essa deciso. Olha, essa deciso, que eu tive de sair com o meu circo, que eu fundei um circo, ligado secretaria, sa pelo serto. Foi uma deciso corajosa, na verdade, porque eu no sabia. Primeiro diziam que o jovem no ia me ligar por estar viciado pela cultura de massas. E eu queria que voc visse como , assim de gente.

 

Andra – Eu vi sua apresentao em Vitria da Conquista.

 

Ariano – Ah, voc viu.

 

Andra – Eu vi o entusiasmo dos meninos.

 

Ariano – sempre assim.

 

Andra – Sempre lotado.

 

Ariano – E isso foi uma deciso desafiadora do mesmo jeito que foi a do Festival em 1946.

 

Andra – Como que essa cantoria tem influenciado diretamente a sua obra? Eu no digo a cantoria em si, mas esses elementos da cultura popular.

 

Ariano – Olha, voc veja, por exemplo, eu uso, ainda hoje, eu tenho grande admirao pelo ritmo do Martelo agalopado. Ainda hoje eu uso. Eu escrevi a por 1900 e quanto? No sei. 1958 ou 1960, eu escrevi um Martelo agalopado em homenagem a Cames, est certo? Em homenagem a Cames. E ento, eu uso, eu sou poeta, alm de romancista e dramaturgo, eu sou poeta e como poeta eu uso muito, eu uso Soneto, que uma forma italianizante, mas que foi introduzida na literatura de lngua portuguesa por Cames, n? Ele tinha grande admirao por Petrarca. Ento, na minha poesia mais lrica, eu uso o Soneto. Mas eu gosto muito da forma fixa, coisa que depois da Semana de Arte Moderna considerado arcaico, mas eu gosto muito, est certo? Eu gosto muito. Eu gosto muito do verso musical, nisso sou o oposto de meu amigo e grande poeta, que era Joo Cabral de Mello Neto. Ele tinha horror musicalidade na poesia. E eu, eu s gosto de poesia musical. Quer dizer, tenho grande admirao por Lorca, e Lorca era um poeta de uma musicalidade, inclusive tocava piano e compunha, no ? Era amigo do maior compositor espanhol do sculo XX, que foi Leonel de Faglia, ele era amicssimo, os dois fizeram juntos o trabalho de pesquisa do Cancioneiro Espanhol, no ? Pois bem, e eu ento, peguei Veja bem, eu acho a forma, a forma pica, o gnero pico da poesia. Isso na poesia de lngua portuguesa no sculo de Cames a oitava, que ele herdou da poesia italiana tambm, Cames. Ento, voc v aquela forma usada nOs Lusadas era a oitava. Eu acho o Martelo, como ritmo, como gnero e como forma muito mais bonito do que a oitava, est certo? bonito. E eu uma vez, eu peguei os versos de Dante e traduzi. Em vez de usar o terceto, a Divina Comdia escrita em tercetos. Eu, em vez de usar o terceto, eu peguei mais de um terceto e juntei e fiz um Martelo. No meu entender, ficou mais bonito [riso]. No que eu seja melhor poeta do que Dante, no, que o ritmo do Martelo mais bonito. E ento, eu passei Ainda hoje eu uso. Eu sustento sempre que Olha, para mim tem uma coisa que o pessoal diz que eu sou arcaico e diz que o serto uma coisa localizada e eu sou um localista. E sou. Agora, acontece que eu acho que, aquilo que Paulo diz, eu acho que o ser humano o mesmo aqui, na China, nos idos do sculo XIII, ou agora, ou no futuro. Outro dia um camarada me disse: Ariano disse ele, disse a, por a: Ariano precisa tomar conhecimento do fato de que o homem sertanejo no anda mais a cavalo, no. Anda de moto. A, eu disse: E ele precisa tomar conhecimento de que ande de moto ou ande a cavalo o mesmo. Me diga uma coisa, o homem que anda de moto sofre? Sofre. Tem cime? Tem. Se apaixona? Se apaixona. Ele o mesmo homem. O fato de andar de moto ou a cavalo no interessa, no. Isso somente um veculo de se andar, n?

 

Andra – Inclusive, o vaqueiro tem feito o aboio hoje com moto, no usa mais o cavalo em todos os lugares, mas ele continua fazendo o aboio.

 

Ariano – Ele continua fazendo o aboio e continua sendo o mesmo ser humano. Se eu pinto o vaqueiro Pois bem, baseado nisso, eu acho que o Brasil o serto do mundo, t certo? O nordeste o serto do Brasil e o serto o osso do Nordeste. T certo? Ento, eu fiz um... Eu vou dizer para voc ouvir o ritmo do Martelo. Vou ver se eu sei decorado, se eu digo decorado: O Galope sem freio dos cavalos/ Os punhais reluzentes do cangao/ As primas e bordes no seu transpasso/ O pipoco do rifle e seus estralos/ O sino com seus toques de badalo/ E as onas com seus olhos amarelos/ O lajedo que trono e que castelo/ O ressono do mundo / O vento sai, o sol e a madrugada/ E eu tiro no galope do Martelo. T vendo? No um ritmo bonito?

 

Andra – sim.

 

Ariano – Eu acho. E um ritmo pico.

 

Andra – Os cantadores dizem que o Martelo agalopado o vestibular do cantador.

 

Ariano – E .

 

Andra – Que o gnero mais difcil.

 

Ariano – mais do que isso, o doutorado.

 

Andra – um doutorado [risos]. verdade.

 

Ariano – [risos]

 

Andra – J estamos terminando, eu queria aproveitar para lhe agradecer e falar da importncia da sua contribuio para o meu trabalho e para os estudos sobre cultura popular. E s para finalizar: o senhor possui material dessa poca? Alguma fotografia, qualquer coisa que remeta a esse perodo que eu poderia ver?

 

Ariano – Eu no tenho, no. Agora, um jornal aqui chamado Jornal Pequeno, voc pode encontrar na biblioteca, eu levei os cantadores, porque eu queria fazer propaganda da cantoria. Ento, uns dois dias antes ou um antes, eu no me lembro bem, eu acho que foi uns dois dias antes, eu no me lembro bem, eu levei os cantadores ao Jornal Pequeno na redao e eles tiraram fotografia dos cantadores e deram notcia da cantoria. E tem palavras minhas l, no me lembro se tem...

 

Andra – Muitssimo obrigada!

 

Ariano – Certo. Obrigado. Eu fico muito contente tambm.

 

 

[Recebida 21 dez 2021]

 



[1] Doutor em Educao, Ator, Licenciado em Teatro. E-mail: vagnervarg@gmail.com

[2] Ao longo deste texto, as palavras outro(s), outra(s), em alguns momentos, sero utilizadas em itlico com o intuito de ressaltar uma nfase a algum aspecto diferenciado e amplo sobre o que se est abordando na discusso em determinado momento do texto. Esse recurso tambm utilizado para ressaltar que estas palavras no sero utilizadas somente como pronomes indefinidos. Quando forem indicadas em itlico, estas palavras representaro um convite a quem l este texto para refletir sobre possibilidades distintas das at ento desenvolvidas sobre o aspecto exposto naquele momento da discusso desse artigo. O emprego deste recurso em itlico a essas palavras tambm foi feito com o intuito de que quem esteja a ler este artigo, as considere em itlico como um tipo de provocao reflexo desapegada das maneiras habituais como se depara com a leitura de um texto.

[3] Como a discusso deste artigo se dar a partir da pesquisa realizada por um ator, apenas por uma questo de simplificao de escrita, ao longo deste texto, quando forem mencionadas questes que possam ser extrapoladas e relacionadas s(aos) profissionais das artes performativas, sero referidos os termos ator ou atores. Entretanto, as discusses aqui propostas no se limitam somente a designaes de gnero para profissionais desta rea que se identifiquem com o gnero masculino. Sempre que for indicado ator ou atores, o texto tambm estar fluindo as reflexes para o gnero feminino, no-binrie, etc. Neste sentido, convido a quem leia este texto que o faa substituindo as terminologias relacionadas a gnero para maneira como melhor se identificar.

[4] Este outro modus ser explicado adiante neste texto, quando forem mencionados os procedimentos relacionados ao Experimento Potico-Teatral, realizado por Vargas (2018).

[5] Sempre que o termo corporeidade for referido neste texto, ele estar em acordo com as premissas defendidas no trabalho de Vargas (2018), dentre as quais, de maneira geral, se pode dizer que a corporeidade evoca um modus particular em se relacionar com suas percepes sinestsicas, estando atento aos processos significativos advindos ao longo deste processo no qual o corpo se apresenta com o campo emprico catalisador de reflexes em por vir.

[6] VARGAS, Vagner. Demonstrao tcnica da partitura corporal-vocal, referente ao experimento potico-teatral, baseado no texto Prometeu Acorrentado, de squilo, j com a organizao dos arqutipos vocais associados aos ressonadores corporais. Disponvel em: <https://youtu.be/dWLD-mCpBB4>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[7] VARGAS, Vagner. A subida ao penedo. Experimento potico-teatral. Disponvel em: < https://youtu.be/GAaEOquU_Kc>. Acesso em:15 jun. 2020.

[8] Quando me referir neste texto ao termo sinestesia e suas variantes, estarei concebendo-o de acordo com o que Vargas (2018, p. 151) refere ao dizer que sinestesia compreende um conjunto geral de percepes e sensaes interligadas por todos processos sensoriais. [...] oportunizando uma viso mais ampla ao leitor sobre como o sistema sensorial/afetivo/emocional/volitivo influi no processo de significao.

[9] Segundo Aristteles (2007, p. 35-36), A melopeia ou composio a parte da arte musical que, entre os gregos, referia-se composio meldica. Esta parte, pela falta de documentos, a que menos conhecemos; nela a msica estava subordinada poesia. A melodia uma sequncia de sons musicais dispostos por ordem tal que logram criar um sentido satisfatrio ao ouvido e ao esprito.

[10]VARGAS, Vagner. Preso s correntes. Experimento potico-teatral. Disponvel em: <https://youtu.be/crDbkXcmQh0>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[11] VARGAS, Vagner. Lamento. Experimento potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/CkEyIZedQR4>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[12]VARGAS, Vagner. Revolta contra Zeus. Experimento potico-teatral. Disponvel em: <https://youtu.be/3yXJm372J7s>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[13]VARGAS, Vagner. Medo do trmino da noite. Experimento potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/B7lmnbh4z6k>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[14]VARGAS, Vagner. Chegada do corvo. Experimento potico-teatral. Disponvel em:<https://youtu.be/tGQl66EacuY>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[15] Doutor em Comunicao e Informao pela UFRGS, mestre em Jornalismo pela UFSC. Pesquisador de ps-doutorado da UNEB. Contato: andriolli_costa@hotmail.com.

 

[16] Cidade da regio metropolitana de So Paulo de onde veio o barro.

[17] Quem sugere a etimologia a Lobato Manequinho Lopes, possivelmente influencia por O Tupi na Geografia Nacional, de Theodoro Sampaio, cuja segunda edio foi lanada em 1914.

[18] Conforme a tradio portuguesa, o arcanjo apareceu para Nossa Senhora s 18h. Por isso sempre nesse horrio o sino soava e os trabalhos eram interrompidos.

[19] Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP

[20] Diferentemente da viso cannica do termo e da maneira como concebemos o plgio atualmente, a autoria dentro do Cordel enxergada de uma maneira intrinsicamente diversa, ao menos no comeo do sculo XX. Em um contexto em que a repetio de histrias tradicionais era algo no apenas natural, como tambm desejado pelo pblico leitor/ouvinte, cabia aos poetas e editores revisitarem essas narrativas. Impondo-lhes, por vezes, pequenas modificaes. Podemos concluir que um conceito muito mais flexvel na literatura popular do que nos romances, por exemplo, em que uma atitude como essa poderia gerar disputas judiciais.

[21] Pensar a originalidade tambm envolve a questo de revisitao de textos antigos, portanto a verdadeira originalidade no contexto do cordel estaria em conseguir produzir uma obra com linguagem prxima a de seus leitores/ouvintes e da realidade em que viviam. Dessa forma, seria possvel que o pblico se identificasse com suas criaes e se sentisse parte de suas narrativas (cf. OLIVEIRA, 2017, p. 52).

[22] Seria o personagem arquetpico Pedro Malasartes, que pode tambm figurar no Cordel sob outras alcunhas. A sua arma secreta o quengo, a inteligncia, e aparece denominado como amarelinho, por causa do fsico disforme e comprometido pelo ancilstomo, pela sfilis e pela deficincia alimentar do trabalhador das usinas e das plantaes (MARQUES, 2014, p. 248).

[23] Nascido em Pombal-PB. Viveu a maior parte de sua vida morando em Recife, cidade em que se fixou e iniciou a sua produo de cordis. Barros conseguiu o feito de viver exclusivamente da venda de seus cordis, o que justifica tambm a sua vastssima produo. Suas obras permanecem no imaginrio coletivo nordestino at os dias de hoje (OLIVEIRA, 2017).

[24] Apesar de o folheto ser referenciado como de autoria de Joo Martins de Atade, a Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema. Essa mudana de autoria ocorreu a partir do momento em que Atade comprou todo o esplio de Barros, a partir de ento Atade passa a assinar os folhetos do autor como se fossem de sua autoria.

[25] Professor doutor e pesquisador da Universidade Federal de Gois – UFG.

[26] Mestra em Estudos lingusticos pela Universidade Federal de Gois – UFG.

[27] O videoclipe foi publicado em 28 de setembro de 2010, no Youtube, no canal Cufatvddos. At a produo deste artigo, o vdeo trazia 416.452 visualizaes e 889 comentrios. O acesso foi em 30 de junho de 2020.

[28] Bobbio (1995) apresenta instigante estudos sobre as diferenas entre esquerda e direita.

[29] Disponvel em: <https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2019/06/16/em-junho-reserva-indigena-de-dourados-registra-media-de-um-assassinato-a-cada-dois-dias-e-meio.ghtml> Acesso em: 30 jun. 2020.

[30] Vide trabalhos de Cabral e Lima (2018).

[31] Por se tratar de um videoclipe de domnio pblico, essa pesquisa no foi submetida ao Comit de tica.

[32] Referncia processual na Justia Federal de Dourados: 5000780-70.2017.4.03.6002.

[33] Devido limitao de espao, no incluiremos o anexo, com a letra integral da msica.

[34] Doutoranda no Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Mestre em Lingustica pelo Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Graduada em Letras Portugus do Brasil como Segunda Lngua pela Universidade de Braslia. Professora na rede de ensino privado do Distrito Federal. Poeta, performer e atriz.

[35] Lngua de origem banto falada em Angola pelos ambundos.

[36] Campanha de Erradicao de Invases – C.E.I. (1970).

[37] Fala do documentrio Rap, o canto da Ceilndia de Adirley Queirs, 2005.

[38] Os principais elementos que compem o Hip Hop so o DJ (msico), o break (dana), o grafite (arte visual), o rap (poesia), o MC (mestre de cerimnias) e a conscincia.

[39] Todos somos um, faixa 5 do CD Aqui vamos ns (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.

[40] Por questes ticas, no ser citado neste trabalho o nome da instituio de ensino, assim como a identidade dos alunos, por motivos de resguardo. Cito que, para a realizao deste trabalho, foi concedida a autorizao por parte do diretor e vice-diretor da escola.

[41] O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difcil acesso, o que facilitava sua defesa e organizao econmico-social prpria, como tambm assumiram modelos de organizao permitidos ou tolerados, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (catlicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxlio mtuo [...] rede de associaes, irmandades, confrarias, clubes, grmios, terreiros, centros, tendas, afoxs, escolas de samba, gafieiras foram e so os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei, erguem-se os quilombos revelados que conhecemos. [...]. A este complexo de significaes, a esta prxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo (NASCIMENTO, 2019, p. 281-282).

[42] Pindorama (Terra das Palmeiras) uma expresso tupi-guarani para designar todas as regies e territrios da hoje chamada Amrica do Sul (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 20).

[43] Msica S curto o que bom, produzida no ano de 2004 em parceria com Look e VadiosLocus.

[44] Msica Rap da felicidade (Eu s quero ser feliz), produzida em 1995.

[45] Msica Braslia Periferia produzida em 1994 do CD Dia a Dia da Periferia.

[46] Single O cu o limite, lanada em 2018 no canal YouTube da Devasto Prod.

[47] Campeonato de poesia falada.

[48] Projeto financiado pelo Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal que visibilizava levar a arte a paradas de nibus de periferias como o Recanto das Emas e o Riacho Fundo II. Poesia, msica, grafite e dana foram algumas das manifestaes que se aproximaram do perifrico que enfrenta o transporte coletivo precrio do Distrito Federal diariamente.

[49] Projeto apresentado ao Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal em 2017 e contemplado no edital macrorregional.

[50] Esse movimento surge no distrito do Bronx (Nova Iorque). uma iniciativa de negros, descendentes de africanos escravizados que foram trazidos s Amricas, e de latinos que migraram para os Estados Unidos no ps-Segunda Guerra em busca de melhores condies de vida (TEPERMAN, 2015).

[51] Msica Favela do CD Novidades Ancestrais.

[52] O Infopen responsvel pelo levantamento de informaes estatsticas do sistema penitencirio brasileiro.

[53] Referncia intelectual Llia Gonzalez ao criticar a lgica de dominao em que negros e negras so considerados (as) domesticveis, impossveis de falarem por si, por carregarem atributos de infantilidade, isso tudo por estarmos no lixo da sociedade brasileira. Assim, a autora conclui que preciso assumir a prpria fala e afirma: o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).

[54] Esses saberes esto muito relacionados aos saberes ancestrais que dizem respeito a ser, em contraposio aos saberes sintticos, que envolvem ter. Como o prprio mestre quilombola Bispo dos Santos afirma: Eu no preciso de Karl Marx e de outros acadmicos: preciso de minha gerao av, aquela que veio antes de mim e que me move. Essa lgica organizada em comeo, meio e comeo. Minha gerao av comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo, de novo (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).

[55] Doutoranda do PPG em Letras da Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Cultura Visual pela FAV/Universidade Federal de Gois. Professora do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina.

[56] Trecho do programa de TV sobre arte contempornea, CATLOGO, criao do diretor Marcos Ribeiro. Produzido pela TV Imaginria Produes, uma realizao do canal de TV a cabo CANAL BRASIL. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 8 ago. 2020.

[57] Doutor em Comunicao e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Titular Pleno da UNEB/Campus I, Professor Permanente do Programa de Ps-graduao em Estudos das Linguagens – PPGEL/UNEB.

[58] Todos textos que aparecem alinhados direita so trechos da poesia Tempo de Pipa, de Breno Silva (2020). Mantive a escrita do texto como encontrada no vdeo disponibilizado no Youtube.

[59] Agradeo ao Breno Silva, autor da poesia e idealizador do vdeo, pelas contribuies compartilhadas na pequena e rpida entrevista bate-papo concedida atravs da rede social Instagram, em agosto de 2020.

[60] Cf. Day (2005); Gohn (2008).

[61] Cf. Rosas (2005).

[62] Segundo Gonalves (2012, p. 181), o termo foi criado pelo coletivo norte-americano Critical Art Ensemble, em 1996.

[63] Viajou Sem Passaporte, 3Ns3 e Tupi No D so alguns desses grupos.

[64] Partida de futebol informal entre jogadores amadores em campo improvisado.

[65] Mesmo que se reconhea que o videoclipe possui traos de produes convencionais, em seus termos tcnicos, vale ressaltar que o interesse pela produo reside no fato de essa ter sido produzida na lgica do associativismo, por muitos coletivos, e de ser assinada por diretores e artistas com larga experincia na atuao em coletivos. Considero que a singularidade desse tipo de produo no reside, necessariamente, no uso dos seus recursos tcnicos, mas, sobretudo, nas suas possibilidades de narrar histrias, apresentar paisagens e empregar corpos muitas vezes excludos disso que aqui estamos a tratar como produes convencionais, produtos da grande mdia. Para quem tem interesse na discusso acerca da presena das foras e dos fluxos hegemnicos em produtos e produes tidas como contra-hegemnicas, indico a leitura de Freitas (2009).

[66] Entrevista a mim concedida em agosto de 2020.

[67] Professora do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas e do Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPB.

[68] A pesquisa aqui apresentada foi feita durante o estgio de ps-doutorado, realizado sob a superviso do professor Francisco Topa, na Universidade do Porto, entre setembro de 2013 e agosto de 2014.

[69] Coleo Cordel. Disponvel em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/. Acesso em: 29 dez. 2020.

[70] No tive acesso a pesquisas que tratem da atuao das mulheres nesse campo, mas fica aqui o convite para futuras investigaes.

[71] Mestre em Arte, Cultura e Cognio (UERJ). Bacharel em Dana (UFRJ) e Licenciando em Educao Fsica pela mesma. Contato: genilson.leite@hotmail.com

[72] Mestre em Relaes Etnicorraciais (CEFET-Maracan), Especialista em Histria da frica e da Dispora Africana no Brasil (FIS) e em Gnero e Sexualidade (UERJ). Bacharel e Licenciado Pleno em Educao Fsica (UFRJ). Atualmente professor da SME-PCRJ. Contato: capoeiranomade@yahoo.com.br

[73] Destaca-se que h uma preferncia pelas manifestaes populares da cultura afro-indgenas do Norte e Nordeste brasileiro com exceo do jongo, que o ritmo mais pedido e nico de origem no Sudeste, e que isso pode ter relao com o trabalho disseminador do Mestre Darcy do jongo, que com seu grupo Jongo da Serrinha levou o jongo para o centro do Rio e para os palcos do Brasil e do exterior, assim como tambm gravou CDs, CD-livro, produziu material audiovisual. A mais, somos agraciados por grupos de Samba de roda e Afox (BA), Coco (PE, AL), Maracatu (PE), Tambor de crioula, Bumba-meu-boi e Cacuri (MA) e os grupos mistos que como o j citado faz tudo.

[74] Conforme consta na pgina da EEFD, no item Histrico da Cia Folclrica, ela foi fundada em 1987 pela professora Eleonora Gabriel, na Escola de Educao Fsica e Desportos (EEFD). Este projeto originou-se do Grupo de Danas Folclricas da UFRJ, fundado pela professora Snia Chemale na dcada de 70 (COMPANHIA FOLCLRICA RIO-UFRJ, 2020, p. 1).

[75] Expresso utilizada por nordestinos para se referirem s pessoas das regies Sudeste e Sul do pas, com um tom de tratamento igualmente genrico dado por esses ao povo nordestino.

[76] Em sua pgina do facebook, o Grupo Zanzar (2020, p. 1) descreve o seguinte: Com quatorze anos de existncia, o Zanzar um grupo de msica e danas populares brasileiras que trabalha as linguagens das culturas populares tradicionais (coco, jongo, carimb, cavalo-marinho, maracatu, cirandas e frevo, entre outros), sendo formado por msicos e brincantes [] e promove mensalmente, na ltima quinta feira, s 20h, uma Roda de Coco aberta e gratuita nos Arcos da Lapa. E finaliza exaltando que recria estas manifestaes dentro de uma linguagem prpria e original que valoriza e se inspira nesta rica brasilidade.

[77]A Cia. Folclrica (2020, p. 1), ao ir a campo para montar um espetculo, relata que atravs dessa iniciativa surgiu a oportunidade de conhecer e incentivar vrios grupos tradicionais como o grupo de Cirandeiros de Tarituba (Paraty), e que aps o incentivo e o intenso trabalho realizado pela Companhia junto comunidade, os taritubenses reativaram o grupo de danas e, mais tarde, lanaram um CD–livro sobre sua cultura. Defende ainda essa ao como uma contribuio essencial de um projeto acadmico realizado dentro de uma universidade pblica.

[78] Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, doutoranda em Letras/Estudos literrios, rea de concentrao Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

[79] Graduado em Artes Cnicas (UNESPAR-FAP). Mestrando em Estudos de Cultura Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPGECCO-UFMT). Membro da Solta Cia de Teatro de Cuiab – MT, do Coletivo Deriva e do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades. Professor colaborador da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.

[80] Graduada em Comunicao Social – Rdio e TV (UFMT). Mestranda em Estudos de Cultura Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPG-ECCO/UFMT), Membro do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades, do In-Prprio Coletivo e Coordenadora das reas Tcnicas da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.

[81] Graduado em Histria pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Mestre em Histria pela Universidade Federal da Bahia. Cursa doutorado em Histria na UFMT. Professor EBTT de Histria no Instituto Federal do Mato Grosso.

[82] Pesquisadora Associada do Programa  de Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea da UFMT. Doutora em Artes Cincias pela USP.

[83] Slams ou poetry slams so encontros de poesia falada (spoken word) e performtica, geralmente em forma de competio, em que um jri popular, escolhido espontaneamente entre o pblico, d nota aos slammers (os poetas), levando em considerao principalmente dois critrios: a poesia e o desempenho.

[84] Este artigo teve incio na disciplina Performatividades discursivo-afetivas do mal-estar na contemporaneidade, ofertada pela professora doutora Branca Falabella Fabrcio, no Programa de Ps-graduao em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGEL-UFMT).

[85] Nasceu em Rondonpolis (MT). Seu nome artstico (Pacha) derivado do Quechua, a lngua antiga dos povos incas e pr-incas, significa mundo ou universo. Pacha tem uma grande atuao no segmento da poesia, tricampe do slam estadual mato-grossense, foi semifinalista na Copa Brasileira de Poesia – SlamBR em 2017 e finalista em 2018. Atualmente, em turn pelo Sesc no projeto A Arte da Palavra, viajando por 7 estados e 14 cidades brasileiras, com o espetculo Faces: A Poesia Negra Em Mim, Em Ns. Em suas letras, aborda o empoderamento da mulher, do povo preto, a espiritualidade no Ax e suas vivncias dirias. Em 2017, foi contemplada no edital da SEC de Cultura de Cuiab que viabilizou seu primeiro disco Omo Oy, lanado em setembro de 2018 (Texto fornecido pela prpria artista).

[86]A crtica ou o pensamento decolonial ou descolonial uma tentativa de incluir a Amrica no pensamento ps-colonial, uma vez que os autores ps-coloniais no estudavam ou no se interessavam pelos estudos dos processos de colonizao e dominao espanhola e portuguesa na Amrica. A ateno da crtica ps-colonial se restringia aos pases de lngua inglesa, mais especificamente a ndia e alguns pases do Oriente Mdio que foram colonizados pela Inglaterra. Diferente do pensamento ps-colonial, a crtica decolonial vai levar em considerao o dilogo com mltiplas epistemes, buscando o pluralismo de ideias e a diversidade epistemolgica. A proposta decolonial que se insira a Amrica Latina nas discusses ps-coloniais, mas, mais do que isso, que se parta da prpria Amrica Latina e de sua diversidade epistemolgica para entender suas questes. Para Grosfoguel (2014), existe uma pluralidade de vises e diversas formas de pensar no interior da crtica decolonial, afirmando que se fosse nica ou se existisse uma nica forma de pensar, seria mais uma reproduo do pensamento colonial, como em certa medida, foi a crtica ps-colonial. Sendo assim, no existe um modelo nico na crtica decolonial, muito menos a negao ou o desmerecimento de algumas epistemologias europeias importantes para compreender a questo da dominao e da subalternidade.

[87] Os griots so considerados guardies da histria e da memria que por meio da oralidade transmitem suas histrias e seus conhecimentos. Muitos so cantadores.

[88] Escala – Discurso e Dimenses do Social da Vida Social (Traduo nossa).

[89] there are no ideologically neutral scales, and people and institutions that come out on top of scalar exercises ofen reinforce the distinctions that so ordained them.

[90] that the scales that social actors rely upon to organize, interpret, orient, and act in their worlds are not given but made—and rather laboriously so. For to scale is not simply to assume or assert bigness or smallness by way of a ready-made calculus. Rather, [...] people use language to scale the world around them. [...]. Although things can be made big though analogy, scale-making always also entails drawing distinctions, between the bigness of a whales rib and the smallness of a marble, for instance. As an inherently relational and comparative endeavor, scaling may thus connect and even confate what is geographically, geopolitically, temporally, or morally near while simultaneously distinguishing that nearness from that which is far. Similarly, scaled hierarchies are the efects of eforts to sort, group, and categorize many things, people, and qualities in terms of relative degrees of elevation or centrality. Tink, for example, of the way one entity or domain seems to encompass another, as with maps that subordinate localities within higher order administrative units, or of the way nation-states are commonly thought to hover above communities.

[91] Termo usado por Quijano (2009) ao denunciar a classificao social a partir da ideia de raa como principal motor do atual padro de poder mundial.

[92] Disponvel em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295. Acesso em: 10 nov. 2019.

 [93]Disponvel em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml. Acesso em: 10 nov. 2019.

[94] Disponvel em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Publicada dia 05/06/2019. Acesso em: 10 nov. 2019.

[95] Disponvel em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/assassinatos-de-jovens-negros-no-brasil-aumentam-429-em-20-anos/. Publicada dia 17/04/2019. Acesso: 10 nov. 2019.

[96] Hay um hecho en la cultura de Amrica toda, y enla de Amrica Latina en particular, que implica a todo el mundo de hoy em suglobalidad y que precisa ser reconocido, puesto en cuestin, debatido y evacuado: la colonialidad del poder. Ese es el primer paso endireccin de la democratizacin de la sociedad y del Estado; de la reconstitucin epistemolgica de la modernidad; de la bsqueda de una racionalidad alternativa.

[97] Possui graduao em Licenciatura em Letras Vernculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1999), Mestrado em Educao pela Universidade Federal da Bahia (2005) e Doutorado em Programa de Ps-Graduao em Educao pela Universidade Federal da Bahia (2013). Atualmente professora adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana e Contadora de Histrias. Coordena o Programa de Ps-graduao Mestrado Profissional em Letras /PROFLETRAS/UEFS e lder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Poticas Orais/UEFS. Tem experincia na rea de Educao, com nfase em Poltica Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Contao de Histrias, Leitura, Literatura Infantil e Juvenil, Formao do Leitor e EaD. 

[98] Possuo graduao em Letras pela Universidade Estadual de Maring (1996), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (2001) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (2007). Sou professora ASSOCIADO C e fao parte do quadro permanente da Universidade Estadual de Maring. Tenho experincia na rea de Letras, com nfase em Literatura e Cinema e ensino de Lnguas, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura comparada, literatura e outras artes, ensino de literatura, leitura e letramento texto literrio, interao verbal, lnguas estrangeiras modernas. Atuo na Ps-graduao do Profletras, Mestrado profissional em Letras, ministrando a disciplina Leitura do texto literrio. Participo do grupo de pesquisa Ressignificaes do passado na Amrica: processos de leitura, escrita e traduo de gneros hbridos de histria e fico – vias para a descolonizao. Com Ps-doutorado intitulado La dame aux Camlias – romance, drama, pera, filme, cordel: releituras comparadas do perfil de uma cortes, na UNIOESTE/Cascavel, sob tutoria do Professor doutor Gilmei Francisco Fleck; em parceria com a Universit Lyon 2, sob tutoria da Professora Doutora Maria da Conceiao Coelho Ferreira.

[99] Mestranda em Estudos Literrios pela UEFS (Bolsista Capes). Pedagoga pela Universidade Federal da Bahia (2007). Trabalhou como arte-educadora no Espao Cultural Pierre Verger entre os anos de 2010-2016, nas reas de Cultura Digital e incentivo leitura, tendo recebido o Prmio Pontos de Leitura (2012). Ministra oficinas de escrita e leitura, tendo participado da exposio "As aventura de Pierre Verger" (2015). Trabalhou como pedagoga no Programa de Informtica na Educao Especial da OSID, orientando projetos de pessoas com deficincia, durante os anos de 2005 a 2007. Durante dois anos foi bolsista de Iniciao cientfica PIBIC, nas reas de gesto educacional e educao e diversidade. Atua como pesquisadora e professora, principalmente nos seguintes temas: educao e diversidade - informtica educativa - arte-educao - educao e cultura.

 

[100] FORD, W. Clyde. O heri com rosto africano: mitos da frica. So Paulo: Summus, 1999.

[101] Possui graduao em Licenciatura em Letras Vernculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1998), mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2006) e doutorado em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente professor Titular A da Universidade do Estado da Bahia e professor do Mestrado Profissional em Letras da Universidade do Estado da Bahia, atuando, ainda como Diretor do Departamento de Cincias Humanas, Campus V, da UNEB. Tem experincia na rea de Letras, com nfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura e outras artes, identidade, afrodescendncia e cultura. 

 

[102] Disponvel em: www.poetriz.wordpress.com/2006/01/11/0-menino-que-carregava-agua-na-peneira/ Acesso em: 3 jan. 2012, s 15h.

[103] Acrscimo nosso.

[104] Acrscimo nosso.

[105] Disponvel em: www.atualfilmes.onsugar.com/Download-O-Auto-da-Compadecida-6193160. Acesso em: 15 nov. 2010, s 16h.

[106] Dirige-se ao jornalista e escritor Samarone Lima, seu assessor de imprensa, presente em sua casa no momento da entrevista.

[107] Referncia pesquisadora Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.