BOITATÁ, Londrina, n. 29, jan.- jun. 2020

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504















REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitatá é uma publicação semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL)


GT LITERATURA ORAL E POPULAR

BIÊNIO 2018/2020

COORDENADOR

Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

Secretaria Estadual de Educação do Pará

alexandre_ranieri@hotmail.com

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Délcia Pombo

PPGL-UFPA

delciauab@gmail.com

SECRETÁRIA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com







IDADE MÉDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE






Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecário: Marcos Moraes – CRB: 9/1701





Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL [recurso eletrônico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 29 (jan. /jun. 2020). – Londrina: UEL; Brasília: ANPOLL, 2020.



Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

ISSN: 1980-4504



1. Literatura oral e popular 2. Oralidade - Documentação I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Universidade Estadual de Londrina. III. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística. IV. Título: Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL


CDU 82


Índice para o catálogo sistemático:

1.

Literatura oral e popular

82.085

2.

Oralidade – Documentação

82:025


EXPEDIENTE


EDIÇÃO


Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (SEDUC-PA)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)



EDITORIA ASSISTENTE


Dra. Andréa Betânia da Silva (UNEB)



ORGANIZAÇÃO


Dra. Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)

Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez (UNAM)

Dra. Marline Araújo Santos (IFBaiano)



COMISSÃO EDITORIAL


Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez

Universidad Nacional Autónoma de México


Dra. Cláudia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense


Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia


Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados


Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina


Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)


Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)


Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Pará


Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Pará


Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul


Dra. Maria do Socorro Galvão Simões

Universidade Federal do Pará


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso


Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paraná


Dr. Sílvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense


Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina


Dra. Vera Lúcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa



PARECERISTAS DESTE NÚMERO


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez

Universidad Nacional Autónoma de México


Dra. Cláudia Freitas Pantoja

Faculdade do Vale do Ivaí


Dr. João Evangelista do Nascimento Neto

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Janaína Marques Ferreira Rocha
Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Laura Regina dos Santos Dela Valle

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Lênia Márcia Mongelli

Universidade de São Paulo 


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dra. Maria Isabel Morán Cabanas

Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal

Instituto Federal Baiano


Dr. Nerivaldo Alves Araújo

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Yara Frateschi Vieira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo



PROJETO E ENSAIO VISUAL


Dr. Alberto Ricardo Pessoa

Universidade Federal da Paraíba


Jéssica Araújo

Universidade Federal da Paraíba



REVISÃO

Maria Nazaré Mota de Lima



SUMÁRIO



APRESENTAÇÃO

Mauren Pavão Przybylski, Berenice Araceli Granados Vásquez...............................................................................6



DOSSIÊ

A pedagogia artesã de Maragogipinho: experiências de autoria poética

Joseane Costa Santana, Cynthia de Cássia Santos Barra ...............................................................12



El Laboratorio Nacional de Materiales Orales, conceptos, antecedentes, código de ética y protocolo de documentación

Santiago Cortés Hernández, Berenice Araceli Granados Vázquez................................................31



Da oralidade à voz hipermédia

Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal, Jenifer Paola Pisso Concha..........................................56



SEÇÃO LIVRE

A história do "Buraco Fundo" contada por diferentes gerações da cidade de Restinga Seca, RS
Emanuelle Tronco Bueno, Sylvie Dion.....................................................................................75



A romaria no Círio de Nazaré: interação social, reciprocidade e um olhar etnográfico sobre a peregrinação

Luiz dos Santos Guilherme, Danieli dos Santos Pimentel...........................................................93



As representações da literatura oral nas esculturas de Mestre Nêgo

Carolina Reichert do Nascimento....................................................................................................108



Por campos da Península Ibérica e do sertão tocantinense, cavaleiros e jagunços tecem narrativas

Maria de Fátima Rocha Medina..................................................................................................123



Quelle est votre tribu?” Identidade, diferença e modernização na República Democrática do Congo

Ari Lima Lima.............................................................................................................................138





Refletindo sobre as articulações da literatura e cultura popular presentes na tradição oral caxiense: a lenda da Veneza como viés de abordagem

Odilene Silva do Nascimento Almeida, Algemira de Macêdo Mendes........................................160



Voz e gesto na actio retórica

Manuel Francisco Ramos..............................................................................................................172








Apresentação


Os materiais orais podem ser definidos como “ todas aquelas produções de discurso que geram atos comunicativos, em que estão presentes o emissor e o receptor em um mesmo espaço-tempo, as quais têm como suporte a voz, o corpo e a memória. O significado  destes materiais, de natureza efêmera, depende não só das emissões linguísticas, mas também da interação entre o verbal, o não-verbal e os fatores contextuais” (www.lanmo.unam.mx).  Muitas áreas do conhecimento têm utilizado esta fonte complexa de informação como matéria prima para suas investigações. Em nossas conversas cotidianas, no que contamos, no que cantamos e na maneira como fazemos estão codificadas as chaves culturais para entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas e, inclusive, uma boa parte do modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica. Devido à sua natureza efêmera e dispersa, as investigações que os utilizam sempre enfrentaram limitações importantes para seu registro e manuseio. 

Tendo tido como abordagem formas  metodológicas de tratamento de materiais orais em sua documentação, processamento ou análise, textos que versassem sobre o processo de gestão e registro de informação no trabalho de campo, sistematização e resguardo de materiais orais, apresentação de repositórios,  catálogos e coleções de materiais orais, assim como modelos analíticos que procurem explicar uma realidade a partir destes, o artigo que abre este número e a sessão “Materiais orais: metodologias” é de co-autoria de uma de suas organizadoras, Berenice Araceli Granados Vázquez, juntamente com Santiago Cortés Hernandez. Isso não foi escolhido à toa, ou simplesmente por querer privilegiar-nos. Nosso intuito foi o de começarmos pela reflexão que impulsionou o número 29 e a criação dessa equipe de organização: a metodologia para tratamento de materiais orais.

Em reflexão intitulada El Laboratorio Nacional de Materiales Orales, conceptos, antecedentes, código de ética y protocolo de documentación, os pesquisadores, que também são coordenadores do laboratório, apresentam alguns resultados do trabalho de sistematização que vêm realizando. Fazem um percurso histórico do LANMO e suas bases teóricas, para depois apresentar os dois instrumentos originados dele: um código de ética e um protocolo para documentação de materiais orais em trabalho de campo.

O segundo artigo da sessão, Da oralidade à voz hipermedia, em que Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal, também à frente deste número, colabora com a autora principal, Jennifer Paola Pisso Concha, objetiva focar-se em uma comunidade indígena (os Misak no departamento de Cauca, Colômbia) e em um sujeito periférico (Marco Almeida, o Maragato, na Restinga, Porto Alegre, Brasil), com o intuito de não só contribuir no processamento de materiais orais na documentação e análises da informação, mas também refletir acerca das diversas formas de narrar o mundo. As autoras esperam “ estimular diversos olhares frente as novas narrativas contemporâneas: cibernarrativas e aproximar-se de narradores/força modalizante que possam fornecer e amadurecer o trabalho de campo e o processamento de materiais orais para os pesquisadores ou interessados no assunto”.

Passando a uma perspectiva mais tradicional da cultura popular, a seção Questões épicas e ibéricas em narrativas orais contará com dois artigos de grande relevância para o tema:

Por campos da Península Ibérica e do Sertão Tocantinense, cavaleiros e jagunços tecem narrativas , de autoria de Maria de Fátima Medina, apresenta El cantar de Mío Cid, cuja cópia mais recente de que se tem notícia é do copista Per Abbat e a Serra dos Pilões (1995), romance de Moura Lima, analisando suas personagens desde a perspectiva bakthniana do cronotopo. A autora conclui que “ No percurso de caminhos desconhecidos, ao ocuparem o lugar social de quem se preocupava com a justiça, sob leis régias ou na ausência do Estado, personagens de ambas as narrativas agiram, passaram por transformações e revelaram seres humanos singularizados. E, no grande tempo, são construídos novos significados”.

Já Manuel Francisco Ramos, em Voz na Actio Retórica, analisa o surgimento da figura do ator no teatro grego, e a actio/pronuntiatio (representação), que foi separada da composição teatral. Explora, assim, a partir de ensinamentos dos Padres, como S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Gregório; a teoria da voz, os gestos e rosto com grande inovação, a qual completa e dá plenitude à teoria retórica antiga.

A última sessão, intitulada Narrativas orais: perspectivas etnográficas, apresenta artigos que passeiam entre as lendas e a perspectiva do pesquisador participante, flâneur, que divide suas vivências e experiências.

Em “Quelle est votre tribu?”, Identidade, diferença e modernização na República Democrática do Congo, Ari Lima, pautado em inquietações e desejos pessoais, embarca em uma viagem autofinanciada que se torna objeto de estudo, ao observar as construções e desconstruções identitárias na República Democrática do Congo. Dividindo o artigo em três tópicos, traz algumas questões sobre como o continente africano é visto e interpretado a partir do território geopolítico brasileiro. Neste primeiro tópico, nos vemos imersos em um relato de viagem, um diário de bordo cheio de cores, com uma leitura fluida que nos abraça e envolve. No segundo tópico, ao traçar o percurso histórico-político da RDC, descreve os impactos da colonização e da luta pela independência da RDC e como a crueldade capitalista tem contribuído para a crescente invasão de igrejas evangélicas neopentecostais, com o discurso de progresso e salvação para uma população que sofre, há décadas, com a exploração de seus corpos e territórios. Ao concluir, descrevendo situações da realidade atual observadas nas cidades de Lubumbashi e Kamina, o autor faz uma crítica sóbria e pertinente sobre como a identidade dos africano-congoleses se constrói a partir de perspectivas distintas do afro-brasileiro, embora ambos sejam constantes em situações opressivas impostas pela colonialidade do poder capitalista.

Joseane Costa Santana e Cyntia de Cássia Santos Barra, em A pedagogia artesã de Maragogipinho: experiências de autoria poética, abordam, a partir da experiência em Maragogipinho (BA), relações entre artesanato, repetição-recriação e ensino, tomando o primeiro como um ato de resistência que se constitui em patrimônio cultural material e imaterial e tendo, no/a artesão/ã, o sujeito constituído na e constituinte da tradição. As autoras destacam que, “ao relatar encontros com Mestres e Mestras da Tradição Artesanal de Maragogipinho, por meio de uma experiência de autoria com estudantes do Curso integrado em Agroecologia e Agropecuária do Instituto Federal Baiano (campus Valença), buscou-se refletir sobre potências de repetição-criação-recriação, de modos de ensino e de pesquisa na Educação Básica e no Ensino Superior. As olarias e os vários labirintos das peças (artefatos) da arte do barro e da memória narrativa dos/as Mestres e Mestras de Maragogipinho são espaços abertos ao encontro e à educação dialógica.”

As representações da literatura oral nas esculturas de Mestre Nêgo, de Carolina Reichert do Nascimento, apresenta-nos uma abordagem de pesquisa que reflete sobre a vida e a obra do escultor Mestre Nêgo, residente em Barreiras, Bahia. A autora analisa a relação entre a produção artística escultórica e a literatura oral. Investiga três esculturas de lendas brasileiras do artista, apoiadas nos enredos das memórias relatadas ao longo de entrevistas realizadas na Casa das Artes, atelier do artista.

Por fim, A peregrinação de romeiros para o Círio de Nazaré, na cidade de Belém-PA, se torna objeto de estudo para os pesquisadores Luiz Guilherme dos Santos Júnior e Daniele dos Santos Pimentel, em “A romaria no Círio de Nazaré: interação social, reciprocidade e um olhar etnográfico sobre a peregrinação”, ao analisarem as interações sociais entre pessoas de diferentes visões e credos. Na voz e no caminhar dos peregrinos são encontrados os percursos desse trabalho etnográfico. Entrevistando os sujeitos da pesquisa em plena caminhada, pesquisadores, peregrinos e romeiros participam das interações e trocas simbólicas que a festa religiosa oferece. Tendo a reciprocidade como elemento marcante desse período na cidade de Belém, a pesquisa revela como as pessoas se envolvem direta ou indiretamente na culminação do Círio de Nazaré. Em uma celebração não restrita a um credo, mas de fé, amor e alegria como aspectos da humanidade, bem como elemento constitutivo da tradição local e da cultura popular, a pesquisa olha para o fenômeno social religioso como marco de uma sociedade e representativo de uma cultura.

A sessão livre, que encerra o número 29, nos apresenta dois artigos que enfocam narrativas a partir de seus aspectos históricos e lendários.

Em “Refletindo sobre as articulações da literatura e cultura popular presentes na tradição oral caxiense: a lenda da Veneza como viés de abordagem”, ao examinarem sobre literatura e cultura popular na tradição oral de Caxias-MA, Odilene Silva do Nascimento Almeida e Algemira de Macêdo Mendes trazem à tona a Lenda da Veneza, uma história perpetuada nas narrativas orais e memória coletiva da cidade. A partir de um local físico que se configura como cartão postal da cidade, o Balneário Veneza, sendo ponto turístico e recebendo inúmeros visitantes em busca de sua lama medicinal, os moradores de Caxias contam e recontam a história da cidade bem como seus encantos e particularidades. A menina Veneza, cujo corpo negro é transformado em lama com poder curativo, é simbólico na luta e resistência de um povo. Marco da história local, a Lenda da Veneza representa a memória coletiva de um grupo social, fazendo da oralidade parte da sua tradição cultural.

Finalmente, Emanuelle Tronco Bueno e Sylvie Dion, na reflexão intitulada A história do “Buraco Fundo” contada por diferentes gerações da cidade de Restinga Sêca, RS fazem um aprofundamento dos relatos históricos e lendários de uma comunidade situada em Restinga Sêca (RS). As pesquisadoras se valeram da leitura de referenciais teóricos, pesquisa documental e aplicação da entrevista semidirigida. Ao final, concluíram que é possível, a partir de tal abordagem, disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo. As pesquisadoras concluem, com seu estudo, a possibilidade de se disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo.

Assim, os 10 artigos desse número, divididos em 3 sessões, nos apresentam a pluralidade da voz e da literatura. Para além disso, percebe-se a importância dos sujeitos pesquisados, do respeito que se deve a eles e ao tratamento dos materiais. As narrativas, tendo elas sido contadas por narradores vivos ou registradas por etnógrafos e/ou autores da literatura tradicional, são capazes, através da voz, do corpo, da performance de retirar da invisibilidade diversos indivíduos e a nós, pesquisadores da área dos estudos literários, cabe sensibilidade, seriedade e ética, sobretudo – e principalmente – quando estamos em contato com sujeitos advindos de espaços periféricos (sejam eles indígenas, de comunidades de favela, tradicionais).

Esperamos que este número, nos moldes do que pensa o LANMO, nos auxilie a entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas mas, principalmente, o modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica.



Boa leitura!




Berenice Araceli Granados Vázquez

Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal

Marline Araújo Santos
















DOSSIÊ

A PEDAGOGIA ARTESÃ DE MARAGOGIPINHO: EXPERIÊNCIAS DE AUTORIA POÉTICA



THE ARTISAN PEDAGOGY IN MARAGOGIPINHO: EXPERIENCES OF POETIC OUTHORSHIP




Joseane Costa Santana

http://orcid.org/0000-0001-6468-9589



Cynthia de Cássia Santos Barra

https://orcid.org/0000-0002-4308-0421



RESUMO


O presente ensaio propõe abordar relações entre artesanato, repetição-recriação e ensino. Nesta abordagem, tomamos o artesanato como ato de resistência, constituindo-se em patrimônio cultural material e imaterial e o/a artesão/ã como sujeito constituído na, e constituinte da, tradição. Há, no distrito de Maragogipinho/BA, um modo de ensino artesanal, fundado na ancestralidade indígena-luso-africana, na repetição secular e inventiva, do fazer cerâmica; assim como há Mestres e Mestras de Saberes e Fazeres, em convergência com o conceito de Notório Saber (CARVALHO, 2016). Nesse contexto, a discussão teórica que apresentamos compreende o artesanato a partir da perspectiva das pedagogias culturais, que preservam e ressignificam culturas e comunidades, e dialoga com a dimensão epistêmica e pedagógica do Encontro de Saberes (CARVALHO, 2016; 2019). Ao relatar encontros com Mestres e Mestras da Tradição Artesanal de Maragogipinho, por meio de uma experiência de autoria com estudantes do Curso integrado em Agroecologia e Agropecuária do Instituto Federal Baiano (campus Valença), buscou-se refletir sobre potências de repetição-criação-recriação, de modos de ensino e de pesquisa na Educação Básica e no Ensino Superior. As olarias e os vários labirintos das peças (artefatos) da arte do barro e da memória narrativa dos/as Mestres e Mestras de Maragogipinho são espaços abertos ao encontro e à educação dialógica.


Palavras-chave: Artesanato de Maragogipinho. Pedagogia Artesã. Ensino e Aprendizagem. Encontro de Saberes. Mestres de Oralidade Plena.


ABSTRACT


This article offers to approach the relationship between crafts, creation-recreation and teaching. In this approach, we acknowledge handicraft as na act of resistance, constituting in cultural heritage material and immaterial and the artisan as a constituted subject in and a constituent of tradition. In the district of Maragogipinho/BA there is a way of teaching artisanal, founded on Afro-indigenous ancestry, on the inventive repetition of making pottery; as well as there are Masters of Knowledge and Practice, in convergence with the concept of Notorious Knowledge (CARVALHO, 2016). In this context, the theoretical discussion that we present comprises crafts from the perspective of cultural pedagogies, which preserve and transform cultures and communities and dialogues with the epistemic and pedagogical dimension of knowledge connection (CARVALHO, 2016; 2019). When reporting meetings with masters of the Maragogipinho craft tradition, through an experience of authorship with students of the Integrated Course in Agroecology and Agriculture at Instituto Federal Baiano (campus Valença), we sought to reflect on the powers of repetition-creation-recreation, of teaching and research modes in Basic Education and Higher Education. The workshops and the diverse labyrinths of clay art objects and the narrative memory of the Masters of Maragogipinho are open to specially connect with the art and the artisan but it’s also open to encounter the dialogical education.


Keywords: Craft. Artisan Pedagogy. Teaching and learning. Knowledge connection. Masters of Full Orality.



INTRODUÇÃO


Como trajetória argumentativa, este ensaio traz, no primeiro momento, uma apresentação que versa sobre a comunidade artesã de Maragogipinho/BA e discorre sobre o artesanato como resistência; em seguida, é apresentado o que sejam pedagogias culturais e, especificamente, os estudos sobre pedagogia artesã, feitos em diálogo com essa comunidade; depois, há breve descrição de uma atividade pedagógica realizada com os alunos do Instituto Federal Baiano, campus Valença, que resultou em um livro, intitulado Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações (2018); e, por fim, tenta-se perspectivar alcances pedagógicos e epistêmicos de uma proposta de produção, via pesquisa-criação-ensino, de livro co-autoral com os Mestras e Mestres de Maragogipinho (desenho do projeto de mestrado profissional de uma das autoras deste artigo, iniciado em 2019 e ainda em curso).


COMUNIDADE ARTESÃ


Do contato das mãos de homens e mulheres com o barro, surge a arte da cerâmica, que é umas das formas de expressão cultural mais antigas da humanidade e que, por séculos, representa o cotidiano da comunidade de Maragogipinho/BA, distrito de Aratuípe, localizado a 220km de Salvador. Maragogipinho é, hoje, o maior produtor de cerâmica da América Latina, com aproximadamente 150 olarias.

Habitam esse universo do barro algumas centenas de mulheres e homens, muitos nascidos na região e outros que vieram e tomaram para si o ato ceramista, de modo artesanal/manual, como meio de expressão e de atualização da memória e como artefato de referência das vivências cotidianas na comunidade, bem como de aspectos relacionados ao aprendizado do ofício, à produção das peças de barro e a sua comercialização. Esse círculo produtivo e formativo, em sua totalidade e cotidianidade, forja marcas identitárias específicas e consolida-se como oficio tradicional, sobrevivente em meio à sociedade moderna, com práticas de ensino sistematizadas pelo tempo da Tradição, mas não legitimadas pelas Culturas hegemônicas (ÁLVARES, 2015).

O artesanato de barro que se conserva e que se transforma, herança cultural milenar dos indígenas Tupinambá que habitavam a região antes da chegada dos europeus, é tido como uma das principais formas de testemunho da existência secular da arte de Maragogipinho. Urânia Mota (2011) relata:


[...] tupinambás, vale dizer, foram os primeiros índios (sic) a conviver com os colonos portugueses e sua contribuição nos legou a sabedoria de dormir em redes e utilizar as talhas, moringas e portes em barro, além do uso de gamelas em madeira e canoas, dentre outros utensílios de madeira. É corrente a versão de que esta nação indígena foi a mãe do mundialmente famoso artesanato de Maragogipinho. (MOTA, 2011, p. 148-149)


Retratar a trajetória contemporânea de artesãos e artesãs ceramistas é ato complexo. É primordial perceber o processo de construção de cada ceramista, carregado de valores e sentidos a serem identificados caso a caso. Na pesquisa desenvolvida por Álvares (2015) sobre o trabalho artesanal em Maragogipinho, é destacado um dos processos que todo artesão ceramista vive cotidianamente: o processo de repetição. Mas a repetição é ressignificada pelo ceramista Vitorino, um dos oleiros do lugar, como ato de fazer de novo para se chegar ao novo:


O oleiro Vitorino, de 95 anos, me explicou que o fato de repetir formas não o impedia de inventar coisas novas como moringas com formato de frutas, azulejos com texturas. Foi ele quem criou o reconhecido boi-bilha, adaptando a tradicional bilha portuguesa à forma de boi (ÁLVARES, 2015, p. 273).


Ao mesmo tempo, a identidade de artesão parece estar “estremecida”, pois as gerações mais novas não desejam dar continuidade ao oficio, mesmo sabendo da importância da tradição familiar secular na qual se inserem, dentro da comunidade, em função do pouco reconhecimento financeiro deste trabalho com o barro. De todo modo, a mestria de seu Vitorino permite-nos compreender que conhecimentos da cerâmica compõem o patrimônio cultural material e imaterial de Maragogipinho. Os mestres artesãos compreendem o universo do qual fazem parte e também ensinam, posto que cotidianamente reinventam e fazem dialogar saberes de uma arte secular, se tomada como referência a chegada dos portugueses, e milenar, quando se evidencia a presença das marcas da nação indígena Tupinambá nos artefatos.

Ao refletir sobre a identidade dos ceramistas, Álvares (2019) afirma que

a atividade manual fortalece as relações sociais, engendrando princípios de solidariedade. Do esteio na família, da cooperação na vizinhança ao pertencimento à comunidade como um todo, a constituição da vida é tecida nas práticas do fazer artesanal. (ÁLVARES, 2019, p.3)


Garantindo lembranças dos que vieram antes e pulsação viva do passado no presente, nas ruas labirínticas da vila, podem ser encontrados potes, talhas, travessas, bonecas, imagens sacras, animais, sandálias, cofres em formato de porco, panelas, abajures, caxixis, adornos florais e diversos outros utensílios domésticos fabricados à base de barro. Esses objetos testemunham antigos modos de fazer e técnicas de criação de peças que são socializados e retransmitidos, de geração a geração, por meio do ensino da arte ceramista e da sua aprendizagem. Os processos de preservação e de atualização de um legado sócio-histórico-cultural faz de Maragogipinho um lugar geográfico e poético, estruturado pelos saberes sobre o barro, tornado arte ceramista; um lugar em que sujeitos, saberes e práticas se reformulam incessantemente, por vezes, de modo agonístico.



MARAGOGIPINHO


O distrito de Maragogipinho, pertencente ao município de Aratuípe-BA, é, como já assinalado anteriormente, considerado o maior polo cerâmico da América Latina. Tem seu surgimento datado no século XVI, como um lugarejo inicialmente organizado para fins de catequização indígena, tendo ficado conhecido no período colonial como “Aldeamento de Santo Antônio” (MOTA, 2011).

Com o passar do tempo, em que pese o agressivo processo de colonização que perpassa toda a história do Bahia e do Brasil e, como indicado, a própria conformação original do local, o que se observa é que muitos costumes afro-indígenas-lusitanos foram incorporados na organização da comunidade ao longo dos séculos, sobretudo nos hábitos cotidianos, culturais e linguísticos, bem como no desenvolvimento da atividade artesã com a argila, que veio a se tornar o principal meio de subsistência dos moradores da localidade.

Maragogipinho é uma comunidade tradicional, um lugar representativo do trabalho ceramista. Um distrito com cerca de 3 mil habitantes, e uma média de 150 olarias. Uma produção artesanal constituída pela colaboração múltipla de quatro mãos (masculinas e femininas): os extratores do barro, os amassadores, os que constroem as peças nos tornos seculares (movidos com os pés) e, por fim, as mulheres, que são responsáveis pelo brunir das peças (polimento) e pela pintura.

As olarias, oficinas em que a referida atividade artesanal ocorre e as peças de barro são produzidas, manifestam sua origem indígena, notadamente na organização tradicional da construção das mesmas, que se assemelha ao de ocas, estando distribuídas de modo circular, como em aldeias indígenas, em torno de um referencial que, no caso dessa comunidade hoje, é a Igreja Matriz.



FIGURA 1: Olaria Santo Antônio

Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 2: Igreja Matriz de Maragogipinho


Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



Ademais, os referidos espaços estão organizados em corredores estreitos, tendo como plano de fundo um manguezal e as águas do rio Maragogipinho, um afluente do rio Jaguaripe, importante rio que banha cidades do Recôncavo Baiano e do Baixo Sul. As olarias são galpões erguidos em estrutura de madeira, com paredes de barro e cobertas de palha de piaçava, o que facilita a iluminação e a circulação de ar, importante para o processo de secagem das peças.





FIGURA 3: Secagem das peças


Fonte: Fotografias de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 4: Um forno dentre da olaria

Fonte: Fotografias de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



À beira deste rio é que os moradores se estabeleceram e compuseram a referida comunidade, oficialmente reconhecida como tradicional pelo governo federal. As peças produzidas são comercializadas em feiras e mercados populares em todo o país e também marcam presença na Feira de Caxixi, a maior feira de cerâmica da América Latina, que ocorre há mais de um século na cidade vizinha de Nazaré, no Recôncavo Baiano, durante a Semana Santa. Em 2004, Maragogipinho conquistou o reconhecimento internacional, quando ganhou, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Menção Honrosa de “maior centro cerâmico da América Latina”, tendo concorrido ao prêmio na categoria “Artesanato para América Latina e Caribe”.


FIGURA 5:

Peças expostas para venda



Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 6:

Pequenos bonecos



Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

,2018 (acervo da pesquisa).


F
IGURA 7
: Oleiro na produção de jarro

Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

,2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 8: Imagem Sacra


















Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa)



Entende-se que não há como pensar em novas formas de resistência e de significação no processo de criação de cada peça, sem considerar as questões pertinentes à tradição e à memória, bem como a importância de elementos identitários que possibilitam a construção social, política, cultural e epistemológica da comunidade de Maragogipinho. Conforme Jacques D'Adesky (2001, p. 76), não há identidade construída no princípio do isolamento; para se constituir como realidade, a identidade provém da interação dos indivíduos, e essa relação dialógica na construção artística das peças é prática cotidiana entre os artesãos dessa comunidade.

De acordo com Amorim (2016, p.16), “a localidade é habitada por pescadores e família de oleiros, os filhos seguem o ofício dos pais, motivo de a cerâmica se perpetuar ao longo do tempo”. Essa educação artístico-identitária persiste justamente por meio de processos tradicionais de ensino e aprendizagem. O ofício desses artistas da cerâmica carrega um legado histórico, artístico e epistêmico que se reinventa, se atualiza e se pereniza dia após dia. Evidencia-se, em cada artefato cerâmico, uma herança composta de saberes, símbolos, valores, invenções, ícones, criações, formas, continuidades, rupturas e resistências, remetendo-nos a conflitos e embates agônicos, por vezes tão violentos e dessubjetivadores, alicerçados na tríplice formação étnica brasileira, tendo como pano de fundo o ruído ensurdecedor do mito da democracia racial no Brasil (MUNANGA, 2004).

Como um lugar geopolítico e poético, lugar em que os objetos têm vozes, dissonantes e divergentes, o legado de Maragogipinho não se restringe à tradição de transformar barro em arte, o que já seria imenso, mas nos objetos produzidos é possível ver (e ler) processos formativos, marcas identitárias, presença histórica e saberes dinamizados de diversos povos (indígenas, europeus e africanos). A prática artesã na região mantém viva a tradição de atividades ceramistas que, segundo as histórias orais correntes, se iniciou na vila por volta de 1649 e não parou até os dias atuais.


A terra dos Caxixis

Tudo muito simples,

Conhecida mundialmente,

Artesãos de primeira.

Moldam os oleiros,

Todos têm sua função,

Na terra dos Caxixis.

(Gianluca Renato Couto Rocha. Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações, 2018, p. 29)



ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE PEDAGOGIAS CULTURAIS

A conceituação de pedagogias culturais surgiu da necessidade de discutir a relação entre materiais da cultura e métodos educativos. A incorporação da pedagogia dentro de uma teia de significações concatenada com cultura, política e poder oportunizou fundamentação teórica que ampliou a discussão sobre os modos como as relações de ensino e aprendizagem estão presentes e marcam múltiplas e diversas dimensões da vida (ANDRADE; COSTA, 2015, p.02).

Segundo Prates (2008), o conceito de pedagogias culturais é uma ferramenta que permite apresentar quais e como outros ambientes, para além da escola, realizam ações do sujeito, o motivam e o guiam; um processo também entendido como educativo, mas cujos propósitos são diferentes daqueles da educação oportunizada através do desenvolvimento de experiências curriculares na escola.

Sob o ponto de vista de Andrade e Costa (2015), as pedagogias culturais propõem-se a uma aprendizagem contínua, sem delimitação de espaço e tempo da instituição escolar, mantendo-se ativos em muitos contextos ao longo da vida. Conceitualmente, evidenciam novas maneiras de visualizar, apontam a necessidade de se refletir sobre a própria Pedagogia, universalizante, para enunciar saberes outros, sobre essas outras experiências e os variados meios (modos) que nos qualificam e nos constituem como sujeitos, em meio à diversidade étnica, epistêmica, estética, na aldeia global, tal como o mundo se tornou no século XXI.

De acordo com Andrade (2014), para Steinberg (1997), as pedagogias culturais deduzem que a educação aconteça em vários locais sociais, no qual a escola está inserida, mas não se limita a ela. Os locais pedagógicos são todos e quaisquer espaços em que o poder se organiza e se exercita. Na mesma perspectiva de Steinberg (1997), Giroux e McLaren (1995) afirmam que há pedagogia em qualquer ambiente que o saber seja produzido, em qualquer lugar que haja a oportunidade de manifestar a experiência e produzir conhecimentos.

Na percepção de Costa (2010-2012), atualmente há inúmeros lugares e ferramentas culturais comprometidas tanto com as formas de pensar dos indivíduos sobre si mesmos e sobre o universo que os cerca, como com suas escolhas e suas maneiras de organizar suas vidas. Nesse entendimento, as pedagogias culturais têm um papel relevante.

Conforme Álvares (2019), a pedagogia artesã reporta-se à era neolítica, sendo esta tão antiga quanto os artesãos primevos, vigendo em um período anterior à invenção da escrita pela humanidade. Seu ápice histórico, contudo, deu-se dentro do avanço das corporações medievais de ofícios, o que entusiasmou pensadores e educadores a pesquisarem e restabelecerem, nas bases do trabalho artesanal, os princípios de uma educação por meio da prática da observação e repetição inventiva.

Ainda sob a perspectiva de Álvares:


Na pedagogia artesã, a relação de ensino e aprendizagem estabelecida entre mestre e aprendiz suplanta a mera transmissão de técnicas. Para além da assimilação de conceitos, procedimentos relativos às possibilidades expressivas dos materiais ou manuseio das ferramentas, o discípulo aprende a relacionar-se com a peça artesanal por meio da posse de um repertório cuja partilha de saber implica na tomada de consciência de seu modo de ser e de estar no mundo. O aprender a fazer bem feito, o conquistar um estilo próprio depende, especialmente, do grau de aproximação e de afinidade entre mestre e aprendiz (ÁLVARES, 2019, p.13).


Desse modo, podemos afirmar que o artesanato é uma expressão cultural, poética e epistêmica, desde a sua criação, justamente porque ele se caracteriza como um meio de comunicação não verbal, em que a comunicação é possível por meio das vozes que emanam dos objetos, alavancando inúmeros estímulos e sensações, por meio de combinações particulares, a uma só vez singulares e coletivas.

Assim sendo, o artesanato exige destrezas e habilidades específicas, outorgando às peças um ambiente no qual a criatividade integra o processo de repetição, colocando nelas um valor comercial, mas também valores imateriais e identidades culturais. As peças resistem e se adaptam às renovações impostas pelo tempo e pelas dinâmicas econômicas e socioculturais.

Em Maragogipinho, por longo tempo, as peças confeccionadas foram produzidas a partir do torno, e suas decorações seguiam os moldes da louça portuguesa. No século XVII, as olarias confeccionavam tijolos, telhas e louças tanto para os engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano quanto para os Colégios dos Jesuítas (PEREIRA, 1957, p. 12). Os métodos de fabricação da região ainda conservam práticas de arquitetura afro-indígenas, fundantes de construção das olarias; muitas tem as suas paredes formadas por meio de estacas e, na cobertura do telhado, utilizam as palhas de pindobeiras (encontradas em abundância na região) ou telhas.

Muitas peças ceramistas também preservam características das louças portuguesas, do período colonial. Mas o artesanato de Maragogipinho, além da marca artesanal da mão portuguesa, também traz consigo costumes, tradições e usos, com signos e significados indígenas, por exemplo, quando são usados pigmentos naturais. De acordo com Álvares:

A cerâmica de Maragogipinho é tradicionalmente pintada com pigmentos feitos do próprio barro. São utilizadas como tintas a tabatinga e o tauá. A tabatinga é um engobe branco e o tauá um engobe vermelho. Essa minuciosa técnica de pintura com o fundo vermelho e os grafismos em branco, ou vice-versa, remete a representações indígenas, assim como os motivos florais a representações portuguesas. Os pincéis utilizados pelas pintoras mais idosas são ainda confeccionados com pelo do lombo de gato, amarrados a um talo fino de palmeira. Constituem verdadeiros instrumentos de precisão, em que o caimento do pelo se atenua, gradativamente, até a ponta, para garantir uma pincelada fina e meticulosa (ALVARES, 2019, p.06).


Em Maragogipinho, é possível adquirir peças artesanais, por meio das quais artesãos e artesãs se reconhecem estilisticamente e são reconhecidos pela comunidade. Objetos que foram feitos à mão e carregam consigo a presença da mão do mestre, do fazer formativo. Um modo de ensino artesanal, fundado na ancestralidade indígena-afro-lusitana, na repetição secular inventiva do fazer cerâmica. Mattar afirma que:


A pedagogia artesã envolve princípios e valores éticos e humanos que ultrapassam a produção em larga escala da sociedade industrial, bem como a reiteração de técnicas e procedimentos didáticos e artísticos ainda muito observados nas propostas de ensino-aprendizagem da arte desenvolvidas em espaços escolares e não escolares, e mesmo na formação de artistas e professores, oferecendo elementos fundamentais para o reencontro da dimensão humana do ensinar e aprender arte. Permeada pelo fazer conjunto e o diálogo, a condução da aprendizagem de um ofício por um mestre-artesão é capaz de desencadear a práxis criadora nos aprendizes, que, além de sentirem alegria e prazer com o trabalho, desenvolvem um processo produtivo próprio, em que a experimentação dirigida à busca de novas possibilidades construtivas e ao encontro de um caminho poético particular convive harmoniosamente com a preservação de saberes fundamentais transmitidos de geração a geração. (MATTAR, 2017, p. 01)


Nesse sentido, a pedagogia artesã acontece, em Maragogipinho, quando o aprendiz muitas vezes entra em contato com o barro desde a infância, levado por seus pais (ou demais familiares) para a olaria. A olaria passa a ser uma extensão de sua casa, de suas relações familiares. Inicialmente um espaço de brincadeira, depois de contato, depois de tentativas criativas, que com o tempo se concretizam diariamente, com a finalização de uma peça. Um lugar repleto de metodologias didático-pedagógicas que possibilitam a quem quer aprender a arte ceramista uma prática de observar e desenvolver peças. Além da produção de peças, princípios e valores éticos são transmitidos e compartilhados.

A transmissão de geração em geração do patrimônio cultural (material e imaterial) de Maragogipinho é continuamente recriado dentro dessa comunidade, por meio de histórias de lutas e resistências. Apesar de terem seus direitos limitados, com políticas públicas que não cumprem plenamente a função de permitir a manutenção do modo de viver de artesão e artesãs do barro, o sentimento de identidade e continuidade cultural sobrevêm nas olarias, contribuindo para promover, em algum medida, o respeito à diversidade cultural e à inventividade humana, a partir do lugar de existência dos artesãos e artesãs do barro.



RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA EM MARAGOGIPINHO



Entre os anos de 2017 e 2018, foram realizadas cerca de 05 visitas técnicas à comunidade de Maragogipinho, com todos os estudantes da 1ª série do ensino médio, do curso técnico integrado em Agropecuária e Agroecologia, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF Baiano/Campus Valença). Sob a orientação das docentes de Língua Portuguesa Ionã Carqueijo Scarante e Joseane Costa Santana, os estudantes fizeram trabalho de campo e, em seguida, passaram por atividades de sensibilização para o processo criativo e artístico verbovisual que resultou no livro intitulado Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações, lançado em 2018. Este livro é fruto do Projeto de Extensão Semana de Linguagens e Culturas, Edital/Chamada Interna n. 02/2017/PROEX/CGDTCC/IF BAIANO, de natureza interdisciplinar.

A coletânea é composta por 25 poemas e 10 imagens (incluindo o desenho da capa), de autoria dos estudantes, que retrataram (recriaram) elementos observados por eles durante as visitas à comunidade, tais como: herança negra e indígena expressas no cotidiano das olarias visitadas, diversidade de peças produzidas, as singularidades do local, as histórias de vida dos moradores, os apelidos de oleiros, o labor dentro das olarias, o virtuoso exercício feito pelos poucos santeiros que moram na comunidade; o ofício das mulheres (brunideiras) na construção das peças, a presença das crianças que, desde cedo, frequentam as olarias, que também são espaços de aprendizagem do ofício, o sistema de transporte das peças para a comercialização, a participação na Feira de Caxixis, dentre outros.

Trata-se de uma obra cujas propostas de atividades primaram pela reflexão, pela retratação e registro das experiências particulares e, em grupo, construídas a partir do desenvolvimento da prática de leitura em suas distintas formas e linguagens (pintura, fotografia, documentário, carta do papa, dentre outras), incentivando a expressão oral, estimulando a criatividade, através do que vivenciaram na comunidade, dentro das olarias, em conversas com os artesãos e as artesãs, em dúvidas esclarecidas e escurecidas, nas curiosidades descobertas, no contato com pessoas de várias nacionalidades, religiões e culturas que visitam o mesmo espaço-lugar e que respeitam o universo-tempo do barro.

Conforme Scarante (2018), a experiência com a comunidade de Maragogipinho veio para


possibilitar aos alunos vivenciar práticas de observação, troca de informação, investigação, experimentações, pesquisa que os ajude a construir textos literários e informativos; compreender que a literatura se define como um permanente diálogo entre autores e obras de diferen­tes épocas e culturas; promover um diálogo entre os textos não verbais (fotografias, desenhos, esculturas) e verbais (texto literário), estabelecendo relações entre as formas artísticas distintas. Os objetivos elencados foram alcançados ao longo do trabalho. Com o êxito das atividades realizadas, o produto final, o livro, composto por poemas e desenhos de discentes foi construído em conjunto (SCARANTE, 2018, p.13).


No período das visitas estavam sendo trabalhados com os estudantes os gêneros textuais e o gênero lírico foi o que mais se aproveitou nas aulas, que aconteceram dentro de sala de aula e no jardim da instituição. Essas aulas na área verde eram as mais produtivas e, nelas, os alunos podiam observar, produzir, apresentar os frutos dos momentos criativos. A maioria deles se identificou e optou pelos versos livres, já outros se aventuraram com a escrita das quadras e alguns poucos com as do soneto.

Escritores da Academia de Letras de Valença (AVELA) e a poetisa Ana Carol Cruz foram convidados a palestrar no Centro de Cultura Olívia Barradas. Eles tinham a missão de partilhar as suas experiências como escritores, a ponto de incentivar a produção literária dos estudantes. Nesse encontro, os estudantes desmistificaram a ideia de que escrever era um dom e levaram consigo a certeza de que para escrever era necessário exercitar a leitura e praticar a escrita e a reescrita.

Deuses de Barro


Deus fez homens do barro...

Os levantou e os fez santos!

Santeiros fazem nobres imagens...

Estão imitando, ou da criação tirando sarro?

Como deuses, dão vida ao barro.

Vejo um oleiro com barro na mão,

estaria ele fazendo outro Adão?


(Davi da Silva Brito, Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações, 2018, p. 60)

O livro Louça de Deus, de autoria da professora Urânia Mota, filha de um oleiro do distrito de Maragogipinho, foi trabalhado em sala de aula, antes das visitas técnicas. As questões elaboradas pelos grupos de alunos vieram a partir da leitura dessa obra, que apresenta ao leitor muitas histórias vivenciadas no universo ceramista.

Outro recurso utilizado como suporte, para complementar o referencial dos estudantes, foi o filme do cineasta baiano, da cidade de Nazaré, Eudaldo Moção, o documentário Louça de Deus, que conta um pouco da história da comunidade. A proposta inicial era a produção também de um documentário pelos discentes, mas acabou não sendo possível, porque as fotografias e as filmagens coletadas (todas com autorização) foram feitas com aparelhos de celular de baixa tecnologia e com poucos recursos, o que resultou em áudios demasiadamente baixos, inviabilizando, desse modo, a montagem do material.

Por fim, decidiu-se pelo livro como mídia de registro-síntese da experiência. A proposta da obra final, Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações (2018), pode ser tomada como uma prática pedagógica, realizada no campo da Educação Básica, por meio do encontro com Mestras e Mestres Ceramistas, tendo os estudantes de uma instituição federal de ensino tecnológico fincado os pés no chão das pedagogias artesãs.



CONSIDERAÇÕES FINAIS, REINÍCIO: A UNIVERSIDADE EM DIÁLOGO COM MESTRES/AS DE OFÍCIOS?



Quais os alcances pedagógicos e epistêmicos de uma proposta de pesquisa cujo resultado seja a produção de um livro, em co-autoria, transcriativa e poética, com Mestras e Mestres de Ofício de Maragogipinho? Ainda estamos explorando e analisando as possibilidades político-educacionais da publicação de um livro de palavras-objeto e narrativas-artesã, elaborado a partir do encontro com as peças de barro e as memórias vivas de artistas ceramistas, com a perspectiva de conseguirmos avançar em processos de superação de colonialidades pedagógicas.

José Jorge de Carvalho (2016; 2019) é um dos estudiosos que nos ajudam a fundamentar esta perspectiva de decolonialidade de saberes. De acordo com o que ele defende,

os professores capacitados para transmiti-los (os saberes e práticas da Tradição) com maior autoridade e legitimidade intelectual são justamente os mestres e mestras que os reproduzem, recriam e transmitem para os demais membros das suas comunidades, seguindo tradições seculares (que são, na maioria das vezes, mais antigas que a própria tradição universitária brasileira).(CARVALHO, 2016, p.06)


Por meio de uma pesquisa de mestrado, dando continuidade a nossa ação docente na Educação Básica, vinculado ao campo do Ensino e das Relações Étnico-Raciais, pretendemos contribuir com a valorização do patrimônio cultural e imaterial de Maragogipinho, pela via do reconhecimento dos Mestres e Mestras dessa comunidade artesã como Mestres e Mestras de Notório Saber.

O artesanato é uma das manifestações de identidade de uma cultura, posto que é a arte do saber fazer, alicerçado pelo lugar, pelas tradições do local e pela cultura que ali se recria. A arte ceramista de Maragogipinho foi aprendida pelos seus artesãos/artesãs através do contato e aprendizagem partilhada com seus familiares e ancestres. Os filhos e filhas dessa comunidade milenar e que agora são reconhecidos na comunidade como mestres ceramistas, tais como Vitorino, Seu Nené, Almerentino, Emanoel, Josias, Miro, Tutuna, Padre, Toddy, Rosalvo e tantos outros e as brunideiras Dona Santa, Zelita, Neusa, Nailse, Joneide, Olga e tantas outras, que dominam os saberes tradicionais do barro, aprenderam observando e praticando com as pessoas mais próximas e que contribuem para que esta tradição permaneça viva.

As peças produzidas, manejadas e comercializadas, dentro e fora das olarias desse distrito, são exemplos materiais de representações e influências imemoriais, atualizadas em cada peça produzida pelas mãos artesãs. As peças, independente do tamanho e/ou do formato, carregam em si o valor cultural de todo o saber, construído a partir da educação dialógica existente dentro das olarias, mas que não se limitam a um único espaço geográfico. Elas, de uma só vez, se enraízam no lugar e transcendem o lugar, tornando-se patrimônio material e imaterial, produção de artefato e de saberes, arte e epistemologia da comunidade.

Nesse artigo, buscamos abordar as relações entre artesanato, repetição-criação-recriação e ensino, firmando que o artesanato de Maragogipinho é resistência, que se constitui em patrimônio cultural material e imaterial e o/a artesão/ã, como sujeito constituído na, e constituinte, da tradição, pode se tornar mestre/a de notório saber:


a) os mestres e mestras são aqueles sabedores cuja senioridade é inequívoca, confirmada pela sua biografia, reveladora das evidências de seu reconhecimento, dentro e fora da sua comunidade; b) assumem a missão de ensinar o que sabem e têm discípulos: neófitos, assistentes e seguidores, estes plenamente formados e em condições de assumir futuramente o papel de novos mestres; c) são pesquisadores, na maioria das vezes transdisciplinares, e ampliam constantemente os saberes que dominam, identificados pelas áreas de conhecimento definidas segundo o padrão epistêmico ocidental, como, por exemplo, em ciência, tecnologia, arte ou espiritualidade; d) dada a profundidade do seu saber, os mestres podem ser comparados aos nossos catedráticos ou professores eméritos.” (CARVALHO, 2016, p.8)


[...] o parecer para o Notório Saber de um mestre tradicional não deve basear-se nos parâmetros acadêmicos de corte eurocêntrico, posto que muitos dos mestres sequer contam com letramento pleno, sendo pessoas que acumularam um vasto saber baseado na tradição exclusivamente oral; neste sentido, são mestres formados na oralidade e que atuarão como docentes orais. Dado o fato de que necessariamente adaptarão sua forma de transmitir conhecimento, do seu contexto comunitário de origem para o ambiente da sala de aula de uma universidade, podemos conceber esse título como uma espécie de Notório Saber, não do letramento acadêmico completo, mas, como anunciamos acima, da oralidade acadêmica plena.”(...) A outorga do Notório Saber, tanto na situação dos docentes de diploma básico de corte eurocêntrico como na dos mestres tradicionais de saberes não-ocidentais, deve ser entendida também como uma afirmação do valor maior do mundo acadêmico, qual seja, o saber, que não pode ser ofuscado pela hierarquia dos títulos, os quais nem sempre o representam na sua inteireza. E se a hierarquia dos títulos não pode substituir a hierarquia essencial da instituição universitária, o divisor de águas para avaliar o saber superior deixa de ser a posse de um diploma, seja de ensino fundamental ou de graduação. Mais ainda, se a hierarquia do saber não está fundamentada exclusivamente na escrita, mas também na oralidade, nem sequer a ausência de diploma pode desqualificar o grande saber, razão pela qual também os mestres iletrados são candidatos legítimos ao Notório Saber. (CARVALHO, 2016, p.12)


E tudo isso pode ser visto – pode ser lido – por meio do contato, do estar em relação com práticas da oralidade, na resistência e na preservação da cultura, nos modos de transmissão do tornar-se ceramista: a memória de um povo-comunidade fundada na ancestralidade indígena-afro-brasileira e nas memórias da colonialidade portuguesa. Como trajetória argumentativa, para a produção deste ensaio, optou-se em falar sobre a pedagogia artesã, apresentada e defendida por Andrade (2015; 2019), em seus estudos de doutorado, com a comunidade de Maragogipinho, assim como o trabalho de mestrado desenvolvido por Simões (2016), em que dissertou sobre a cerâmica tradicional desse distrito. Buscou-se, ainda, descrever, de forma breve, uma experiência realizada, em 2017 e 2018, com os estudantes do 1º ano do curso de Agroecologia e Agropecuária do IF Baiano.

Interpretamos a nossa experiência pedagógica em Maragogipinho como exemplo de uma pesquisa-ensino-criação, na qual os artesãos e as artesãs assumiram seu papel de Mestres e Mestras de Notório Saber, e os estudantes se fizeram autores, ilustradores, produtores singulares de discursividades. Dessa experiência, surgiu um livro de poesias. Os/as estudantes repetiram, portanto, com inventividade, seus/suas mestres e mestras artesãos? A discussão teórica apresentada nesse ensaio partiu da perspectiva das pedagogias culturais, que preservam e ressignificam culturas e comunidades, mas caminham na direção da proposta de decolonialidade do Encontro de Saberes e das Pedagogias Artesãs. Concluímos que, para haver encontro, é preciso a preservação das diferenças e, na experiência formativa, na experiência educativa, do diverso, da diversidade, é preciso que haja lugar para a repetição e a inventividade, misturadamente.


REFERÊNCIAS


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_______. Maragogipinho - as vozes do barro: práxis educativa em culturas populares. 2015. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.


AMORIM, Crislane Ribeiro de. Impactos ambientais e sustentabilidade da atividade oleira no distrito de Maragogipinho, município de Aratuípe, Bahia. 2016. Monografia (Graduação em Engenharia Sanitária e Ambiental) - Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas.


ANDRADE, Paula Deporte de; COSTA, Marisa Vorraber. Usos e possibilidades do conceito pedagogias culturais nas pesquisas em estudos culturais em educação. 2015.Revista Textura. Canoas, v.17, n. 34, p. 48-63.


BRASIL. Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm. Acesso em: 28 Abr. 2020.


CARVALHO, José Jorge de. Sobre o notório saber dos mestres tradicionais nas instituições de ensino superior e de pesquisa. Cadernos de inclusão publicação do instituto nacional de ciência e tecnologia de inclusão no ensino superior e na pesquisa - INCTI/UNB/CNPq, Brasília, jun. 2016.


__________ Encontro de saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). 2. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.


COSTA, Marisa Vorraber. Culturas e Pedagogia na Modernidade Líquida. Projeto de pesquisa ULBRA e UFRGS (2010-2012).


D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.


GIROUX, Henry A., MCLAREN, Peter. Por uma pedagogia crítica da representação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antônio Flávio (Org.). Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 144-158.


MATTAR, Sumaya. Pedagogia artesã e ensino da arte no universo da cerâmica. Disponível em: https://www2.unesp.br/portal#/noticia/27349/pedagogia-artesa-e-ensino-da-arte-no-universo-da-ceramica/. Acesso em: 08 de Maio 2020.


MOTA, Urânia Teixeira. Louça de Deus: O Caxixi em Maragogipinho. Salvador: Fast Design, 2011.


MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, A. (Org.). Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói: Ed. UFF, 2004.


PRATES, Camille Jacques. O complexo W.I.T.C.H. acionando a magia para formar garotinhas nas redes do consumo. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2008.


SCARANTE, Ionã Carqueijo; SANTANA, Joseane Costa (Orgs.). Mãos que inspiram a poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações. Valença: IF Baiano, 2018.


SCARANTE, Ionã Carqueijo. As mãos que lapidaram os textos. In: SCARANTE, Ionã Carqueijo; SANTANA, Joseane Costa (org.). Mãos que inspiram a poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações.Valença: IF Baiano, 2018.


SIMÕES, Iaçanã Costa. A cerâmica tradicional de Maragogipinho. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes, Escola de Belas Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador.


STEINBERG, Shirley R. Kindecultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: ANDRADE, Paula Deporte de; COSTA, Marisa Vorraber. Usos e possibilidades do conceito pedagogias culturais nas pesquisas em estudos culturais em educação. Revista Textura. Canoas, v.17, n. 34, 2015, p. 48-63.


[Enviado 14 mai 2020 – Aceito 14 mai 2020]


EL LABORATORIO NACIONAL DE MATERIALES ORALES,

CONCEPTOS, ANTECEDENTES, CÓDIGO DE ÉTICA Y PROTOCOLO DE DOCUMENTACIÓN



THE NATIONAL LABORATORY OF ORAL MATERIALS, CONCEPTS, ANTECEDENTS, CODE OF ETHICS AND DOCUMENTATION PROTOCOL



Santiago Cortés Hernández1
https://orcid.org/0000-0003-1552-5734


Berenice Araceli Granados Vázquez2



RESUMEN


Este artículo presenta algunos resultados del trabajo de sistematización que ha hecho el Laboratorio Nacional de Materiales Orales (México). Se expone primero una breve historia del LANMO y de sus bases teóricas, para después presentar dos de los instrumentos que ha generado: un código de ética y un protocolo para la documentación de materiales orales en trabajo de campo.


Palabras clave: LANMO. Oralidad. Documentación. Trabajo de campo. Protocolos.


ABSTRACT


This paper presents some results of the systematization work that the National Laboratory of Oral Materials (Mexico) has done. A brief history of LANMO and its theoretical bases is first presented, and then two of the instruments it has generated: a code of ethics and a protocol for the documentation of oral materials in field work.


Keywords: LANMO. Orality. Documentation. Field work. Protocols.


Este texto presenta una descripción del Laboratorio Nacional de Materiales Orales (LANMO), su origen y fundación, los conceptos teóricos que le dan sustento, así como una descripción de uno de los ejes básicos de su trabajo: los protocolos para la documentación de materiales orales. Con este texto –que forma parte de una serie de artículos sobre los procedimientos del LANMO– queremos poner a disposición del público los resultados de varios años de trabajo para sistematizar la investigación en torno de los discursos orales y las diversas posibilidades para su estudio en contexto. Varios de los procedimientos técnicos desarrollados por el LANMO tienen un certificado de calidad bajo la norma ISO 9001-2015, por lo que pensamos que tanto la descripción de sus bases teóricas como la narración de cómo se generaron pueden constituirse como referentes importantes de trabajo a nivel internacional. En otras publicaciones se describirán los protocolos para las otras dos fases del trabajo del LANMO: el procesamiento y el análisis de los materiales.




INTRODUCCIÓN



Uno de los contactos primarios de una persona con el mundo es a través del oído. La voz de la madre introduce al niño, incluso antes de su nacimiento, en un universo sonoro de lenguaje y ruido. Antes de que las palabras tengan algún significado para él, el volumen, el timbre, el tono y la entonación de lo que escucha son capaces ya de comunicarle cosas y de provocarle distintos estados de ánimo. También será un grito, el sonido del llanto, nuestro primer indicio de que hemos atravesado el umbral hacia la vida social.

En ese universo sonoro se irán definiendo después significados y complejidades: es a través de la voz que se van asimilando las normas de convivencia; el desarrollo de un lenguaje propio delinea nítidamente nuestra identidad; aprendemos a usar el silencio para trazar las fronteras con el otro, y la muerte puede ser vista como el momento en el que nuestra voz desaparece del mundo. Ese universo sonoro funciona, pues, como una de las bases para la cultura del hombre.

Muchas áreas del conocimiento han utilizado esa fuente complejísima de información como materia prima para sus investigaciones: en nuestras conversaciones cotidianas, en lo que contamos, en lo que cantamos y en la manera en la que lo hacemos están codificadas las claves culturales para entender dinámicas sociales, formas de comunicación, estructuras de pensamiento, conformación de saberes locales, prácticas tradicionales, manifestaciones artísticas, e incluso una buena parte de la manera en la que percibimos el mundo desde la perspectiva científica.

A pesar de ser materiales de estudio tan trascendentes, debido a su naturaleza efímera y dispersa, las investigaciones que los utilizan han enfrentado siempre limitaciones importantes para su registro y manejo. Por un lado, al tratar de documentar procesos comunicativos orales mediante la escritura y la edición en papel, se obtiene un tipo de registro lineal y fijo en el que se pierde la mayor parte de lo que constituye una ejecución verbal y se conserva solo un texto que equivale a la “disección” de la voz. La pérdida de elementos gestuales y contextuales produce análisis incompletos y documentos con poco valor para ser estudiados. Por otro lado, los registros sonoros y videográficos que se obtienen en campo, aunque son mucho más ricos, se encuentran por lo general dispersos en archivos que no permiten su consulta comparativa y que no tienen protocolos estandarizados para su almacenamiento. De ahí la importancia de crear infraestructuras, metodologías e instrumentos adecuados para estudiar este material transversal, al que hemos querido denominar “materiales orales”. Queremos abarcar con ello no solo las palabras sino también la comunicación no verbal, los procesos de memoria que detonan, y los contextos en los que se producen.



BASES TEÓRICAS: ARTES VERBALES Y MATERIALES ORALES


Para el quehacer del LANMO han sido particularmente relevantes las aportaciones de la escuela norteamericana de folclor, pues esta desarrolló el enfoque de las producciones de discurso como parte de un acto comunicativo, en el que el mensaje emitido, el contexto de producción y la performance son igualmente importantes. Además, a partir de sus distintas vertientes, es esta escuela la que ha puesto más énfasis en la interdisciplina como una herramienta de trabajo. La definición de materiales orales retoma muchos de los elementos de esas propuestas teóricas, por lo que vale la pena hacer un brevísimo recorrido por sus líneas principales.

El concepto de artes verbales fue introducido en los estudios sobre folclor por el antropólogo William Bascom. En un artículo publicado en los años cincuenta en The Journal of American Folklore, Bascom (1955) utiliza el concepto de artes verbales para referirse a formas específicas del folclore tales como cuentos, leyendas, mitos, proverbios, adivinanzas y las diferencia de otras manifestaciones culturales como costumbres, creencias y rituales, ambas abordadas en este campo de estudio. El término resultaba útil porque salvaba algunos obstáculos que presentaban otros términos que se usaban para referirse a los mismos materiales tales como literatura no escrita, literatura popular, literatura folk, literatura primitiva y literatura oral.3 Además, según Bascom, el término “artes verbales” enfatiza el carácter excepcional de estos materiales y su función poética, diferenciándolos del habla cotidiana y de sus funciones básicas referenciales.

Fue durante la segunda mitad del siglo XX que este tipo de enfoques comenzaron a tener una verdadera trascendencia en el estudio de la cultura y la comunicación. Específicamente en el Instituto de Folclor de la Universidad de Indiana, fundado en 1963 con Richard Dorson como director, se comenzó a explorar una nueva manera de trabajar con la documentación y el estudio de los discursos hablados. A partir del trabajo de un grupo nombrado por Dorson como los “jóvenes turcos”, entre los que se econtraban Dan Ben-Amos, Roger Abrahams y Alan Dundes, la disciplina del folclor comenzó a considerar los materiales de la tradición oral no como textos, sino como actos comunicativos que debían interpretarse en contexto para poder explicar tanto su contenido como su uso y función social.4

Tras las propuestas de los jóvenes turcos, hay otros dos grandes hitos de referencia que transformaron el estudio del discurso oral desde perspectivas literarias, lingüísticas, antropológicas y foclóricas. El primero está constituido por el trabajo teórico y práctico de Dell Hymes, quien propuso todo un nuevo campo de estudio con el nombre de “etnografía del habla”. Las propuestas de Hymes consisten en gran medida en sistematizar los objetivos y métodos de un ámbito de investigación que se interesa por el estudio del habla en el contexto de la vida social. Los modelos de análisis planteados por Hymes buscan definir las estructuras y patrones que emergen cuando aquello que la lingüística define como variación y desviación se estudia desde la economía y práctica de un grupo de hablantes. Hymes llegó a proponer incluso una serie de aspectos que debían estudiarse dentro de los actos comunicativos para poder entender las relaciones entre sus componentes: el lugar de la comunicación, los participantes, los fines, las características de forma y contenido de lo que se dice, las claves de la enunciación, el canal y el código, las normas de interacción y de interpretación y las categorías de género a las que se afilia el tipo de habla y el tipo de acto comunicativo.5

El segundo hito está constituido por el trabajo de Richard Bauman, quien retomó el término de artes verbales y lo equiparó al de performance para ofrecer también toda una propuesta teórica. En su obra Verbal Art as Performance plantea que la performance y en sí las artes verbales son un modo de hablar que crea marcos de interpretación en los que los mensajes son entendidos y decodificados por los miembros de una comunidad, quienes poseen los referentes culturales para hacerlo. Así, las artes verbales como un conocimiento cultural transmitido por vía oral, deben ser estudiadas a partir de su performance, de su ejecución y su transmisión en actos comunicativos.



Fundamentally, performance as a mode of spoken verbal communication consists in the assumption of responsibility to an audience for display of communicative competence. This competence rests on the knowledge and ability to speak in socially appropriate ways. Performance involves on the part of the performer an assumption of accountability to an audience for the way in which communication is carried out, above and beyond its referential content (Bauman, 1984: 11).



Todo marco interpretativo en el que se desarrollan estas formas de habla está constituido por convenciones culturales que pertenecen al campo de la metacomunicación. Según Bauman, estas convenciones se formulan apelando a la función poética del lenguaje, pues se trata de códigos especiales, desviaciones del código usual de comunicación, constituidos por lenguajes figurativos, fórmulas, apelaciones a la tradición, etcétera. Dichos códigos siempre estarán acotados a su performance, es decir, tanto al momento de su ejecución como al contexto histórico-cultural que los posibilita.

Estos no son, por supuesto, ni los últimos ni los únicos autores con quienes hemos dialogado para generar las propuestas teóricas del LANMO. La escuela norteamericana de folclor derivó hacia una teorización que consideraba sobre todo los discursos orales producidos con intenciones estéticas, y dado que nuestro interés a menudo recaía en discursos con otros fines comunicativos, fue necesario también echar mano de muchos otros estudios de corte antropológico, comparatista, filológico y filosófico. De especial importancia han sido los trabajos y las enseñanzas de John Miles Foley (1995, 2002) sobre las poéticas orales y el arte inmanente, las ideas de John D. Niles (1999) sobre el Homo Narrans y la literatura del tercer dominio, así como de una serie de autores como Margit Frenk (1997), Luis Díaz Viana (1999), y José Manuel Pedrosa (1995, 2002 y 2004) que han escrito textos muy ricos sobre literatura popular y con quienes hemos tenido la oportunidad de discutir nuestras propuestas.

Derivado de estas revisiones y discusiones teóricas, con el afán de trabajar desde un ámbito acotado pero diverso, en el Laboratorio propusimos el concepto de materiales orales como la base de nuestra labor. Los materiales orales pueden definirse como todas aquellas producciones de discurso que se generan en actos comunicativos en los que están presentes el emisor y el receptor en un mismo tiempo-espacio y que tienen como soporte la voz, el cuerpo y la memoria. El significado de estos materiales de naturaleza efímera depende no solo de las emisiones lingüísticas, sino también de la interacción entre lo verbal, lo no verbal y los factores contextuales. Consideramos que se trata de un término flexible que nos permite abordar un objeto de estudio concreto desde la multidisciplina. Partimos de la idea, ya probada, de que una buena documentación en campo y un procesamiento riguroso de los materiales orales son la base para generar análisis desde distintas perspectivas, que tienen después salida como productos en formatos diversos, según el público al que estén destinados.


EL SURGIMIENTO DEL LANMO


Desde hace más de 17 años, con el afán de acercarnos al estudio de manifestaciones culturales, nos hemos dado a la tarea de documentar materiales orales mediante trabajo de campo y de desarrollar metodologías para estudiarlos convenientemente. En este sentido, la Escuela Nacional Estudios Superiores Unidad Morelia de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) abrió una nueva posibilidad: la Licenciatura en Literatura Intercultural, que recibió su primera generación en el campus Morelia en agosto de 2012, incorporó por primera vez en México los estudios de manifestaciones orales como estudios literarios: la licenciatura cuenta con un área de profundización en Artes Verbales. En este marco, mediante el apoyo de los proyectos financiados por la UNAM, PAPIME “Taller de recopilación de tradición oral en la zona lacustre michoacana. Recolección, transcripción, edición y almacenamiento de expresiones literarias” coordinado por Berenice Granados, y PAPIIT “Desarrollo de una plataforma electrónica para el estudio de la narrativa oral en México”, coordinado por Santiago Cortés, propusimos la creación de un laboratorio dedicado al trabajo con materiales orales. El Laboratorio, llamado en aquel momento, “de Recopilación de Materiales Orales”, fue inaugurado el 30 de agosto de 2013 y buscó crear un equipo de investigación que propusiera una metodología adecuada para realizar trabajo de campo y generar propuestas interdisciplinarias para el estudio de los discursos orales como fenómenos culturales.


En marzo de 2015, gracias a una convocatoria del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONACYT, México) para desarrollar laboratorios de gran alcance, fundamos el Laboratorio Nacional de Materiales Orales (LANMO), con sede en la misma escuela. Se trató del primer laboratorio nacional con apoyo del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología en el área de las humanidades. Para situar un poco el trabajo del LANMO conviene decir algunas cosas sobre el programa del CONACYT que sustentó su funcionamiento. El programa de Laboratorios Nacionales fue hasta 2018 uno de los proyectos más ambiciosos del Consejo para el desarrollo de infraestructura tecnológica en México. Tenía el objetivo de proporcionar apoyo económico complementario a instituciones que desarrollaran laboratorios específicos, es decir, unidades especializadas en la investigación de determinados temas fundamentales e innovadores. Estas unidades especializadas, además de generar y agrupar proyectos de investigación en torno a una línea bien definida, debían incidir en la formación de recursos humanos de calidad, brindar servicios a sectores externos y ser capaces en el mediano plazo de ser autofinanciables. Con el fin de optimizar recursos y generar sinergias, el CONACYT exigía que, aunque hubiera una institución sede para el laboratorio nacional, estos se establecieran en asociación entre instituciones de diferentes regiones del país, lo que permitiría expandir las capacidades científicotecnológicas de los diferentes grupos de investigación. A partir del 2019 este programa desapareció. La última convocatoria tuvo una clara dirección hacia laboratorios científicos con rubros financiables tales como reactivos, polizas de garantía de equipos y otros, por lo que el LANMO funcionó a partir de ese año solo con presupuesto de la UNAM.




Con la financiación obtenida el LANMO desarrolló una infraestructura especializada que, distribuida en 320 metros cuadrados, incluye una sala de trabajo, un site con un servidor de última generación, una bodega de almacenamiento, un estudio de grabación, una cabina vocal, una cabina de control, cuatro cubículos, un aula teórica con capacidad para treinta personas, una sala de visualización y una cabina de edición de video. Cada uno de esos espacios se equipó con acondicionamiento acústico y todos los instrumentos necesarios para su operación. Además se diseñó y construyó un laboratorio móvil: una cabina de grabación montada sobre un vehículo 4x4 que permite, por un lado, hacer rutas de documentación y procesamiento de datos en campo, y por otro, desplegar en las comunidades el trabajo que llevamos a cabo en el Laboratorio. Todo esto ha implicado una inversión de más de un millón seiscientos mil dólares.


El equipo de investigación del LANMO está conformado por profesores-investigadores, técnicos y alumnos. La coordinación está a cargo de sus fundadores, Berenice Granados y Santiago Cortés, y hemos trabajado a los largo de estos años con colegas de varias instituciones, con puntos de vista muy diversos y muy valiosos. Entre las instituciones participantes están la Universidad Autónoma de Querétaro, El Colegio de San Luis y el Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social. En las dos primeras se han desarrollado y equipado sedes alternas del Laboratorio. Además el LANMO cuenta con un enlace para asuntos de gestión y vinculación académica en Brasil, la Dra. Mauren Pavão Przybylski. El núcleo básico de investigación en la institución sede incluye a cuatro técnicos académicos: Diego Romero en el área de audio, Andrés Arroyo en la de video, Juan Carlos Villa en sistemas y Quetzal Mata en el área editorial. En la base de nuestro trabajo está también un nutrido grupo de estudiantes que han sido técnicos, becarios, auxiliares de investigación, voluntarios y prestadores de servicio social. Nuestras ideas, propuestas y avances tienen el apoyo de dos grandes investigadores que funcionan como un grupo asesor: Margit Frenk y Alfredo López Austin, ambos de la UNAM.


Desde el 2017 hemos entrado en contacto y trabajado con otros grupos de investigación que tienen como objeto de estudio los materiales orales. Generamos un flujo de intercambio académico internacional que ha derivado en la creación de dos espacios homónimos, el Laboratorio de Materiales Orales de la Universidad Nacional del Litoral en Santa Fe, Argentina, a cargo de Adriana Crolla6 y el Laboratorio de Materiales Orales, en proceso de creación en la Universidad Autónoma de Chiriquí, Panamá, a cargo de Leydis Estela Torres Zamudio.


En el Laboratorio se desarrollan múltiples proyectos de investigación que tienen como línea común la documentación en campo de materiales orales. Se da salida a sus productos a través de tres sellos, uno editorial, uno discográfico y uno videográfico. Tres de nuestros libros fueron reconocidos en 2018 y 2019 con el premio Antonio García Cubas del Instituto Nacional de Antropología e Historia.7 También contamos con un órgano de difusión: la revista académica Diálogos de Campo.


Uno de los proyectos centrales del LANMO desde su fundación ha sido establecer los mecanismos adecuados para el almacenamiento, clasificación y preservación de los archivos que se generan con la documentación de materiales en trabajo de campo. Para este propósito se ha creado el Repositorio Nacional de Materiales Orales, que consiste en una base de datos electrónica y una serie de interfases de caputra y consulta de información en línea. El sistema de registro de información que hemos construido está basado, por un lado, en las necesidades de almacenamiento de este tipo de materiales y, por otro, en una revisión bastante detallada de los archivos de lengua oral que existen hasta ahora y de las normas nacionales e internacionales para la catalogación y preservación de materiales sonoros y videográficos. Además, todas las características de este repositorio han sido ampliamente discutidas y acordadas en diferentes etapas de su desarrollo con los investigadores participantes del Laboratorio.


Actualmente, después de más de diez años de desarrollo, el Repositorio Nacional de Materiales Orales es una herramienta electrónica que permite el almacenamiento de documentación de campo generada desde distintas disciplinas. Se buscó que el sistema y su base de datos fueran lo suficientemente flexibles como para albergar materiales con metadatos básicos, pero también lo suficientemente capaz como para agregar tantos niveles de clasificación y especificidad como fuera necesario. Para esto, partiendo del concepto de materiales orales, se determinó que los registros documentales en audio, video o texto pudieran ingresarse a la base de datos con cuatro metadatos básicos que conforman sus coordenadas espacio-temporales y contextuales de documentación: dónde y cuándo se grabó, quién habla y quién documenta. La base de datos permite almacenar tanto materiales íntegros de grabación, como segmentos seleccionados por los documentadores. Para el primer caso, existe una herramienta que permite clasificar segmentos dentro de ellos. Una vez ingresados, la base de datos tiene la capacidad de agregar series de metadatos dependiendo de las necesidades de los materiales. Un ejemplo de esto es la clasificación de instrumentos musicales que se ha agregado recientemente para poder etiquetar de manera más específica las grabaciones de música tradicional. El repositorio se apoya en la información generada por el Instuto Nacional de Estadística y Geografía (México) y al catálogo de lenguas indígenas del Instituto Nacional de Lenguas Indígenas (México) para lo concerniente a la clasificación geográfica y lingüística de los materiales. Entre sus últimos desarrollos de programación (todos generados por el equipo de trabajo del Laboratorio) podemos mencionar una interfase tipo mapa que permite la consulta de materiales documentados en una localidad o en un área específica definida por el usuario.

El repositorio, además de ser una herramienta de investigación, también funciona como un servicio de almacenamiento y preservación de materiales para otras instituciones e investigadores. Quien así lo desee, puede almacenar aquí sus materiales y decidir si quiere que sean de consulta pública o privada, mantener su derecho de propiedad sobre ellos y mantenerlos ordenados y disponibles mediante esta plataforma en línea. El procedimiento técnico para ingresar materiales en este repositorio está a punto de obtener, además, una certificación dentro de la norma internacional ISO 9001-2015, por lo que puede asegurar la consistencia de sus mecanismos.8


Desde la fundación del Laboratorio hemos tenido una intensa vida académica con actividades en las que podemos discutir formas de trabajo y propuestas teóricas y metodológicas, además de consolidarnos como equipo de investigación y de formar, a la vez, recursos humanos. Una de nuestras actividades permanentes es el seminario mensual Experiencia en Trabajo de Campo, que ha sido la columna vertebral para reunir al grupo de investigadores que ahora conformamos el Laboratorio. Se trata de un espacio académico multidisciplinario de proyección internacional; a la fecha hemos organizado sesenta sesiones en las que han participado antropólogos, literatos, historiadores, cineastas, reporteros, arqueólogos, musicólogos, biólogos, etc. Todas las sesiones del seminario se videotransmiten, se han grabado y están disponibles en nuestro archivo en línea.9

El Laboratorio ha organizado, entre otros eventos, la primera y segunda emisión del Congreso Internacional Poéticas de la Oralidad, que congrega a importantes especialistas de diversas disciplinas en esta materia. Durante el segundo congreso, celebrado en 2017, se creó un borrador de un estatuto para conformar una red sobre poéticas orales. Actualmente existe un grupo de investigación que reúne tanto a los académicos de las distintas instituciones que participan en el Laboratorio como a algunos de nuestros invitados al Seminario, y tiene amplias posibilidades de concretarse como una red, la Red Iberoamericana de Estudios sobre Materiales Orales.10


PROTOCOLOS DE TRABAJO


A lo largo de estos años de trabajo, en el Laboratorio hemos producido un código de ética y una serie de protocolos interdisciplinarios para el estudio de materiales orales, los cuales funcionan como modelos probados para sistematizar información recopilada en trabajo de campo. Tanto el código como los protocolos resultan de interés general, pues su seguimiento garantiza que los materiales orales sean documentados y procesados con estándares de calidad adecuados para ser aprovechados por investigadores de distintas áreas. Dada la extensión y especialización de los protocolos, en este artículo abordaremos únicamente el código de ética y la descripción general del protocolo de documentación, dejando para otras publicaciones las fases siguientes del trabajo con materiales orales: el procesamiento y el análisis. Pensamos, además, que la fase de documentación es de mayor interés para su publicación, pues plantea una manera de sistematizar el trabajo de campo, organizar y nombrar los archivos resultantes y almacenar sus metadatos, que puede ser útil para todo aquel que documente discurso oral.


CÓDIGO DE ÉTICA DEL LANMO


El Laboratorio ha creado y promueve un código de ética que rige el actuar de sus miembros en trabajo de campo y durante el procesamiento de la información obtenida. Aunque podría parecer una obviedad, con más frecuencia de la que sería deseable es necesario recordar que el trabajo de documentación de materiales orales está basado en la interacción entre dos o más personas y la relación de confianza que se establece entre ellas. Los materiales resultantes son siempre de autoría compartida y a menudos consisten en información delicada, por lo que resulta indispensable disponer de una normativa ética para el manejo tanto de las relaciones como de la información. El código de ética propuesto por el LANMO presenta un articulado con ocho puntos clave que se exponen a continuación.


1. Todos los miembros del LANMO dedicados a la documentación, procesamiento y análisis de materiales orales en cualquier contexto de producción nos comprometemos a conocer este Código de Ética y a apegarnos a sus principios.

2. Todos los miembros del LANMO procurarán, en su quehacer académico, generar relaciones interpersonales donde realizan su trabajo, en un marco de respeto, sinceridad y ética profesional.

3. Todos los miembros del LANMO serán conscientes de que el hacer trabajo de campo y sus actividades sucedáneas abre canales de comunicación para conocer la forma de pensar y concebir el mundo de las personas que viven en el sitio donde se realiza. Ese canal de comunicación se sustenta en la escucha activa y la construcción de diálogos.

4. En la medida de lo posible, antes de comenzar el trabajo de campo en cada sitio, los miembros del LANMO contactarán a las autoridades para explicar su presencia, qué tipo de documentación realizarán durante su estancia, así como los productos que emanarán de esa investigación. Así también solicitarán una reunión amplia, de ser posible, con los miembros de la comunidad para presentarse y dar a conocer su trabajo.

5. Previo al inicio de toda documentación, el documentador informará a su interlocutor lo que está haciendo (el objetivo de la investigación, la manera en la que se llevará a cabo y el uso que se le dará al material recopilado), de manera clara y en un lenguaje sencillo. En caso de ser necesario, esta explicación será traducida.

6. Toda documentación implicará el consentimiento verbal del interlocutor. Este tendrá en todo momento la potestad de su discurso, por tal razón su consentimiento puede ser revocado. El consentimiento se registrará en audio o en video.

7. El Laboratorio Nacional de Materiales Orales se compromete a conceder el crédito correspondiente a las personas que participan en la documentación de materiales orales: interlocutores, recopiladores, operadores técnicos, etc. Así también, el LANMO concederá su crédito a todos aquellos que participen del procesamiento de los materiales: transcriptores, editores, catalogadores y alimentadores del Repositorio.

8. Todo producto derivado de la documentación en campo deberá entregarse a las personas de las comunidades que participaron en su realización. El LANMO se compromete a entregar una copia de la documentación, así como de cualquier producto emanado de su investigación en el sitio. 

Conocer y seguir estas sencillas normas de acción garantizan que la documentación se dé en un ámbito de respeto y sirven como base para que los materiales puedan ser utilizados posteriormente en distintos procesos y productos de investigación y difusión.


PROTOCOLO DE DOCUMENTACIÓN


Los materiales orales existen en la realidad como actos comunicativos efímeros que es necesario documentar para poder estudiar. Mientras más rica y sistemática sea la documentación, más útiles y perdurables resultarán los materiales. Entendemos por documentación al proceso de gestión y registro de información en trabajo de campo que lleva a cabo un individuo por cuenta propia o como parte de una institución, ya sea en ámbitos rurales y/o urbanos. Este tipo de información siempre se genera a partir de interacciones humanas en las que el documentador puede tener una participación directa o indirecta. En el LANMO hemos sistematizado nuestros procesos de documentación mediante la creación de un procedimiento técnico que cuenta con una certificación ISO 9001-2015 y que se puede solicitar como un servicio. Sus formatos de apoyo y el procedimiento en extenso pueden consultarse en la página web del laboratorio.11 Más allá de esos documentos, que se están redactados en el lenguaje técnico de los sistemas de gestión de la calidad, nos interesa aquí describir cómo se desarrolla ese proceso de documentación en cinco momentos: planificación, estrategia de entrada, gestión, registro y respaldo de la información. Cabe aclarar que este procedimiento describe el caso de un equipo de documentación poniendo en práctica una metodología muy abierta, en la que se busca hacer un sondeo de materiales, y que puede ser adaptado para casos específicos en los que incluso un solo investigador busque registrar manifestaciones orales muy concretas.



PLANIFICACIÓN



Es el momento en el que se realiza un plan detallado para llevar a cabo trabajo de campo en un sitio con el fin de documentar materiales orales. El primer paso de la planificación consiste en identificar el objetivo o fin de la documentación y el sitio en el que se hará trabajo de campo. Posteriormente es necesario desarrollar un plan que incluya el número de participantes y el rol de cada uno de ellos en trabajo de campo: ¿quién entrevistará?, ¿quién estará a cargo de manejar qué equipo?, ¿quién se encargará de tomar notas? En función de los objetivos del trabajo, se elabora una lista con los requerimiento técnicos de la estancia, es decir, se enlistan todas las herramientas que se utilizarán en campo: cámara de video, micrófono, GPS, cámara fotográfica, etcétera. También se planean las actividades a realizar durante el trabajo de campo haciendo un itinerario detallado por día y por hora: reuniones con autoridades, visitas, entrevistas, recorridos de superficie, grabaciones sueltas y actividades lúdico recreativas, todas las actividades que contribuyan a la realización del objetivo deben incluirse de forma tentativa. Además se elabora un presupuesto detallado de la estancia en campo. Durante esta etapa se realizan una serie de cartas de presentación que deberá portar el equipo de documentación en todo momento. Se debe nombrar un responsable de la salida, encargado de coordinar las actividades, aunque todos los miembros del equipo deberán participar y conocer la planeación.

En esta fase se revisa el código de ética y se repasa el reglamento de trabajo de campo, que entre otras cosas, indica que debe realizarse un directorio del equipo que participará y que cada miembro del equipo deberá portar, además de una identificación oficial, un teléfono móvil. Se hace también un grupo de contacto mediante aplicaciones como WhatsApp, en el que se incluyen, además de los números de los miembros del equipo que irá a campo, un enlace del Laboratorio en la ciudad, al que el coordinador le estará reportando, por seguridad, las llegadas y salidas.


ESTRATEGIA DE ENTRADA


Se denomina estrategia de entrada al proceso en el que el investigador, conociendo las condiciones de un sitio, proyecta y dirige una serie de acciones para asegurar una estancia de campo adecuada que permita la documentación de información en trabajo de campo. Para hacer esto se debe revisar primero la factibilidad para realizar trabajo de campo en el sitio elegido y si existen trabajos de campo previos realizados ahí. Se averiguan algunos datos sobre el espacio, qué tan grande es, cómo es, qué condiciones climatológicas tiene, etc. Durante esta etapa se debe hacer una breve búsqueda entre las notas de prensa locales. Si el sitio elegido reporta peligrosidad, deberá elegirse uno nuevo que sea más seguro para desarrollar trabajo de campo. En el caso de México esto es particularmente importante, pues es un país sumamente peligroso, y siempre hay que anteponer la vida y la seguridad de los miembros del Laboratorio.

Dependiendo del tamaño del sitio, se contactará vía telefónica a las autoridades civiles para informar que se hará trabajo de documentación y solicitar una reunión durante la estancia en campo para informar a detalle y solicitar apoyo. En caso de que en el sitio se tenga un contacto, se le solicitará apoyo para ingresar al lugar, enterándolo del plan de trabajo y pidiéndole asesoría.

Si es posible, el responsable de la documentación realizará una visita previa al sitio, antes de la estancia en campo del equipo completo, pues es deseable buscar espacios para alojarse. Si se trata de una comunidad pequeña, incluso se puede solicitar el apoyo de las autoridades. Es recomendable buscar siempre un espacio adecuado para resguardar las herramientas de campo y una base de trabajo para poder hacer el vaciado y el respaldo de la información al final de las jornadas de documentación. Así también se buscan los lugares para realizar las comidas.


GESTIÓN


Se trata del proceso en el que el documentador intercambia información y compromisos con los miembros de una comunidad para poder acceder al registro de materiales orales. La gestión sucede como un diálogo y se trata de una especie de negociación. Es el momento en el que la empatía del documentador tiene un papel fundamental.


a. Presentación con las autoridades civiles y eclesiásticas

Al estar en el sitio elegido se lleva a cabo una presentación ante las autoridades civiles de la comunidad, en dicha presentación se muestra el plan de trabajo a realizar. También se les informa sobre la realización de un recorrido de superficie para conocer el terreno y para ubicar los sitios que la comunidad considere más importantes, y con este fin se les pide que guíen el recorrido o que nombren a alguna persona de la comunidad que pueda auxiliar al equipo. Al final, también se les solicita que convoquen a una reunión con los miembros de la comunidad para enterarlos de los fines de la estancia.


b. Reunión con los miembros de la comunidad

Esta reunión tiene como fin informar sobre la estancia en el sitio, mostrar el plan de trabajo y solicitar apoyo a la comunidad para que recomiende personas a quienes les guste conversar. Generalmente la comunidad reconoce a los conversadores competentes, los buenos narradores o contadores de historias, aquellos que tienen una mayor competencia comunicativa: un dominio del léxico, de la expresión corporal, del manejo de la voz, de la tradición (del sistema de valores comunitario y del repertorio de lo que se cuenta) y de los recursos discursivos. Con estos datos se elabora una lista de las personas recomendadas.

Es necesario apuntar que todo miembro de la comunidad es un comunicador potencial, pues el acto de comunicar, de narrar, de contar cosas, es una actividad muy humana, producida por todos de manera colectiva y cotidiana, generada para satisfacer necesidades dentro del grupo social al que pertenecemos. Reconocer que existen personas con una competencia comunicativa mayor no significa que se menosprecie la información proporcionada por otras personas.


c. Citas con los conversadores competentes reconocidos por la comunidad

Se visita a cada una de las personas nombradas durante la reunión con autoridades y con los miembros de la comunidad, se les explica el por qué se está haciendo trabajo de campo y se les invita a participar como conversadores. Si aceptan participar, se les solicita una cita para conversar. Con las citas se realiza un programa y una agenda de trabajo.


REGISTRO


Consiste en la grabación en audio o en video de una serie de eventos dirigidos o no por el investigador, con el fin de documentar cierta información (materiales orales) para su posterior procesamiento. El registro puede incluir recorridos de superficie, sesiones de conversación y escucha activa, ejecuciones musicales, fiestas o rituales, tomas del paisaje, etcétera.


a. Recorrido de superficie

Nos referimos con recorrido de superficie o prospección a una forma de exploración del terreno del sitio elegido para hacer trabajo de campo, con el fin de conocerlo y de poder identificar los lugares mencionados en las distintas conversaciones con la gente de la comunidad. Se trata de una herramienta tomada de la arqueología y es muy recomendable hacerlo con un GPS en mano para poder marcar sitios con coordenadas. Se realizan dos tipos de recorrido:

Recorrido general. Se trata de un ejercicio de reconomiento del terreno en el que se verifica la organización espacial de la comunidad: se distinguen los barrios, manzanas, colonias y calles. Se localizan sitios e instituciones sociales que resultan trascendentes para la vida en una comunidad: plaza principal, iglesia, camposanto, escuelas, clínicas, tiendas de abarrotes, canchas deportivas, pozos, ojos de agua, manantiales, ríos y espacios de trabajo. Con esta información se realiza un mapa en el que se georreferencian estos espacios comunitarios.

Recorrido significativo. Se trata de un ejercicio que se realiza con apoyo de uno o varios miembros de la comunidad; con ellos se recorre el terreno para ubicar los sitios que la comunidad considera más importantes.


b. Sesiones de conversación y escucha activa

Denominamos sesiones de conversación y escucha activa al espacio de tiempo en el que tiene lugar el encuentro entre el equipo de documentación y una persona de la comunidad con el fin de grabar entrevistas o conversaciones. Se trata de una actividad dirigida por el documentador.


Una de las metodologías más empleadas en el Laboratorio para sondear materiales consiste en que durante las grabaciones se intenta deliberadamente dar las menos pautas posibles para dirigir la conversación y obtener así un registro de cuáles son los temas que interesan a un grupo de entrevistados. Las sesiones regularmente se realizan en la casa de conversador.12

Las conversaciones comienzan con una breve presentación sobre lo que se quiere hacer en campo y una explicación sobre lo que se hace con los materiales grabados. Se trata de un par de minutos en los que el documentador busca generar empatía con el conversador. Solo cuando se ha creado el nivel de confianza necesario, se procede al registro del acto comunicativo. Es importante tomar en cuenta el contexto de producción en el que se genera la documentación, pues finalmente este también determina la información que se obtiene. Si se está registrando video, es necesario verificar que las grabaciones tengan un encuadre adecuado, a una distancia suficiente para que la cámara registre los miembros superiores e inferiores del conversador, pues recordemos que cuando se trabaja desde la perspectiva de las artes verbales es necesario que también queden documentados los movimientos corporales.

Se pregunta primero el nombre, la edad, el oficio, si el conversador asistió a la escuela, si es originario del sitio y si sus padres también lo son. Estas preguntas pueden desencadenar una larga conversación que deberá ser guiada por el documentador. Cuando la conversación no fluye, entonces es necesario preguntar sobre situaciones asociadas al pasado: ¿su familia entonces lleva mucho tiempo aquí? O si no es de ahí: ¿ha cambiado el pueblo desde que usted lo conoció?, etc. Al final, después de escuchar al entrevistado se realiza la pregunta detonante: Oiga, ¿usted recuerda o se sabe alguna historia que le hayan contado sobre el pueblo?

Este método, aunque genera un tipo de material complejo y de difícil manejo, suele propiciar la narración de eventos significativos para la persona entrevistada y, aplicado a mayor escala, suele dar una noción de los temas que son importantes para una comunidad. En estas sesiones generalmente se detectan dos tipos de temáticas:


-Temas de preocupación inmediata, es decir, preocupaciones cotidianas sobre trabajo, problemas personales, cuestiones políticas, conflictos vecinales, que surgen como una forma de desahogo del conversador.

-Temas colectivos nucleares. Tras el desahogo incial, el conversador habla de ciertas temáticas que resultan trascendentales para la comunidad. Estos temas se repiten entre los distintos conversadores. Conforme avanza el trabajo de campo, se suele hace visible un conjunto de temas recurrentes que permiten identificar lo que resulta significativo para la vida en comunidad, aquello que permanece como un sustrato y que guía gran parte de las actividades colectivas simbólicas.


Al final de la conversación se le pregunta al conversador por personas a quienes les gustaría platicar. Los nombres se anotan en la libreta de campo. Durante la sesión también se toman fotografías, siempre con autorización de la persona que será grabada.

Se recomienda no escribir durante la conversación, pues al ser una plática abierta, las preguntas en gran medida surgen de la misma; a este proceso se le denomina escucha activa. Al concluir la sesión, si el interlocutor lo permite, se toma una fotografía al conversador. Es importante también registrar quién o quiénes estuvieron presentes durante la documentación, pues a veces la presencia de otras personas condiciona la conversación, la refuerza, o la obstaculiza.

En estancias posteriores se deberá entregar una copia de las grabaciones realizadas, en soportes de audio o de video, a las personas que participaron, así como una impresión de todas las fotografías registradas. En esas estancias posteriores es factible trabajar más de cerca con una sola familia, a veces extensa, a veces nuclear. Durante este proceso de acoplamiento e interacción se indaga y se provoca el encuentro con conversadores competentes dentro de las mismas familias. Una vez que se obtuvieron los materiales que permiten apreciar los temas nucleares para la comunidad, en esta segunda estancia se realizan entrevistas dirigidas a la profundización de estos temas. Junto con las entrevistas, es recomendable realizar paseos por los sitios aludidos en las conversaciones, para reforzar los recuerdos del entrevistado, y se pueden provocar encuentros entre personas que la comunidad considera conocedores de la información. Todo esto es sujeto de registro y georrefenciación.


c. Registros no dirigidos

Además de las conversaciones provocadas por el investigador, suele registrarse un tipo de información generada en contextos naturales de producción, que el documentador no propicia, y que con autorización de los implicados o de las autoridades de la comunidad, puede registrar. Por ejemplo, algunos momentos familiares cotidianos o festivos, la preparación de comida, discursos rituales, algunas ejecuciones musicales, danzas, etcétera. Estos materiales suelen ser de gran utilidad como complemento para contextualizar y explicar el material central del trabajo de campo.


RESPALDO DE LA INFORMACIÓN


La última etapa del trabajo de documentación de los materiales orales consiste en la organización y respaldo de los archivos obtenidos. De este proceso depende en gran medida la productividad del trabajo de campo, pues los archivos mal respaldados o sin los metadatos correctos suelen tener escasa utilidad. Es recomendable que los materiales que se documentan en campo sean descargados de sus medios de registro en un periodo no mayor de 24 horas contadas a partir de su grabación, para generar un respaldo y consignar sus metadatos. Para su correcto almacenamiento y codificación, el responsable de la documentación deberá generar una estructura de almacenamiento, nombrar los archivos del registro documental y generar un archivo de texto con los metadatos de cada acto comunicativo registrado.


a. Crear una estructura de almacenamiento

La estructura de almacenamiento de archivos debe tener las siguientes características:

Nivel 1: carpeta nombrada por el estado de la República en el que sucede la documentación.

Nivel 2: carpeta nombrada por la localidad en la que sucede la documentación.

Nivel 3: carpeta nombrada por la fecha en la que sucede la documentación, en el formato: “aaaa.mm.dd”.

Nivel 4: carpeta nombrada por el instrumento técnico que se utilizó para realizar el registro, indicando su marca y modelo tal como aparece en el cuerpo del instrumento.

Nivel 5: Nombre completo del operador del equipo técnico con el que se hizo el registro, en el formato: Apellidos, Nombre(s).

Por ejemplo: la estructura correcta para almacenar un archivo de video que registró Santiago Cortés Hernández en Ihuatzio, Michoacán, el 15 de junio de 2018, con una cámara Sony HDR-XF40 sería la siguiente:







b. Nombrar los archivos del registro documental

Una vez generada esta estructura, para colocar los nombres de los archivos de registro documental, que se guardarán en el nivel 5 de las carpetas, hay que especificar los siguientes datos, en el siguiente orden:



fecha.localidad.palabraclave.extensión



Se describe a continuación cómo generar estas etiquetas para el nombre de los archivos.



Fecha: la fecha en la que sucede la documentación en el formato: “aaaa.mm.dd”.

Localidad: localidad en la que sucede la documentación.

Palabras clave: palabra o frase breve descriptiva que ponga en foco al emisor principal del discurso, la fuente sonora predominante o el carácter del evento registrado.

1. Conversaciones: incluir el nombre del entrevistado “nombre.apellidos”.

2. Piezas musicales: incluir los nombres de la pieza y de la agrupación o intérprete “pieza.interprete”.

3. Fiesta o ritual: incluir el nombre del evento.

4. Paisaje: incluir la etiqueta paisaje y el nombre del lugar específico: “paisaje.nombredellugar”.

5. Toma suelta: en caso de que el registo no entre en ninguna de las categorías anteriores se utilizará la etiqueta toma suelta y una palabra clave: “tomasuelta.entradaiglesia”.

Extensión: se conservarán los caractéres que el instrumento (cámara, grabadora, etc..) asigne automáticamente a los archivos.





c. Generar archivos de texto con los metadatos

Adicionalmente, para cada acto comunicativo registrado se generará un archivo de texto en el que se consignen sus metadatos. Para cada caso, los metadatos a consignar son los siguientes:



Del acto comunicativo

Fecha:

Hora:

Duración:

Lugar (estado/municipio/localidad):

Lugar (espacio concreto) en el que se llevó a cabo el registro:

Personas presentes (se refiere a las que no forman parte del equipo de documentación):

Documentadores:

Modo (dirigido/no dirigido):

Tipo (arte verbal/conversacional/arte verbal y conversacional):

Contexto (cotidiano/festivo):

Carácter (profano/sagrado):

Método de registro (video/audio/dictado):

Medio(s) de grabación:

Operador(es) del medio de grabación:

Coordenadas del registro:

Palabras clave:

Resumen:

Notas:



Datos de los hablantes

Nombre:

Apellidos:

Sexo:

Ocupación / oficio:

Año de nacimiento:

Lugar de nacimiento:

Lengua(s) materna(s):

Otras lenguas:

Escolaridad:

¿Sabe leer y escribir?:

Estado civil:

Notas:

Nombre del archivo de imagen:

Descripción del archivo de imagen:



Para el caso de los hablantes, debe llenarse una ficha por cada uno de los participantes en el acto comunicativo. Los archivos de texto con metadatos deben guardarse en la misma carpeta que los archivos de documentación a los que correspondan. Frecuentemente no es posible recabar todos estos metadatos para los actos comunicativos. El responsable de la documentación debe poner especial atención en registrar aquellos que se refieren a su contexto espacio-temporal mínimo y a su(s) productor(es).

Para llenar la ficha del acto comunicativo se deben conocer las etiquetas de modo, tipo y contexto, por lo que conviene describirlas. Por modo entendemos la forma en la que se produjo el material documentado, si fue a través de un acto dirigido o surgió de forma espontánea en un acto no dirigido. En tipo se clasifica si se trata de una toma explícita que trata sobre el material producido por una persona, en caso de que así sea se le coloca la palabra entrevista, en caso de que no, será una toma suelta. El contexto se refiere a si el acto comunicativo sucedió en una ambiente festivo o cotidiano.



CONCLUSIÓN


Los conceptos, historia y protocolos descritos en este artículo forman parte de una serie de textos que el Laboratorio Nacional de Materiales Orales irá publicando en distintos medios académicos, para dar cuenta de la sistematización de procedimientos que ha generado. Este primer texto ha abordado los fundamentos teóricos del Laboratorio y del concepto de materiales orales, así como la descripción de los procesos de documentación en trabajo de campo. Los siguentes artículos de la serie abordarán las fases de procesamiento y análisis de materiales, en los cuales se deberán discutir las maneras en las que se puede afrontar la trascripción y segmentación de materiales, y se desarrollará el concepto de montaje interpretativo para describir cómo los archivos de registro se convierten en distintos productos para su difusión y comunicación. Esperamos que los datos aquí reunidos puedan servir para dar cohesión y coherencia a la actividad de investigación en torno a la documentación de discurso oral en trabajo de campo. Todos aquellos que trabajamos con este tipo de documentación sabemos que reunimos y estudiamos fragmentos de una realidad muy diversa y compleja: tener una manera común y sistemática para hacerlo nos permitirá construir archivos que podamos compartir, para generar modelos más adecuados de estudio.













REFERÉNCIAS



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BAUMAN, Richard (1984). Verbal Art as Performance. Illinois: Waveland Press.


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______, José Manuel y Sebastián Moratalla, ed. (2002). La ciudad oral. Literatura tradicional urbana del sur de Madrid. Teoría, Métodos, Textos. Madrid: Comunidad de Madrid.


[Enviado 12 mar 2020 – Aceito 12 mar 2020]


DA ORALIDADE À VOZ HIPERMEDIA



FROM ORALITY TO HYPERMEDIA VOICE



Jennifer Paola Pisso Concha13

https://orcid.org/0000-0003-3389-2044


Mauren Pavão Przybylski Da Hora Vidal14

https://orcid.org/0000-0003-3238-8049



RESUMO


Da oralidade à voz hipermedia’, através de um estudo de caso intitulado ‘Força M’, enxerga para aqueles narradores que, ao longo dos anos, têm sido marginalizados ou considerados subalternos. Portanto, a pesquisa foca em uma comunidade indígena (os Misak no departamento de Cauca, Colômbia) e o indivíduo da periferia (Marcos Almeida, o Maragato, na Restinga, Porto Alegre, Brasil), com o intuito de não só contribuir no processamento de materiais orais na documentação e análises da informação, mas também refletir nas diversas formas de narrar o mundo. Desse modo, a[s] voz[es] hipermedia com as Novas Tecnologias e os novos media, legitimam, do mesmo modo, a sua posição de fala. Neste artigo, sem pretender ser “uma receita metodológica”, oferecem-se ferramentas para sistematizar, categorizar e analisar nossos materiais orais. Trata-se de uma pesquisa netnográfica baseada em novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Com efeito, esse texto espera estimular diversos olhares frente às novas narrativas contemporâneas: cibernarrativas e aproximar-se de narradores/força modalizante que possam fornecer e amadurecer o trabalho de campo e o processamento de materiais orais para os pesquisadores e/ou interessados no assunto.

Palavras chave: Voz hipermedia. Processamento de materiais orais. Cibernarrativas. Novas tecnologias. Netnografía.



ABSTRACT

From orality to hypermedia voice’ through a case study called 'Força M', it focuses on narrators who over the years were marginalized or considered subordinate, therefore, the research has as reference the Misak indigenous community (located in the department of Cauca, Colombia) and Marcos Almeida, "Maragato", a resident of the periphery (from Restinga, Porto Alegre, Brazil). The objective is to contribute to the processing of oral materials in the documentation and analysis of information, including, reflecting on the different ways of narrating the world. For that reason, the hypermedia voice with the New Technologies and the new media, also legitimize its speech position. This article, without pretending to be “a methodological recipe”, it offers tools to systematize, categorize and analyze oral materials. The methodology is netnographic supported by the New Information and Communication Technologies (ICTs). It´s hoped to encourage different perspectives on the new contemporary narratives: cybernarratives. Finally, it´s important to understand the narrators / modalizing force that strengthen fieldwork and the processing of oral materials for researchers and people interested in the subject.


Keywords: hypermedia voice. Processing of oral materials. Cyberarratives. New technologies. Netnograph




INTRODUÇÃO



Da oralidade à voz hipermedia permite contribuir no processamento de materiais orais na documentação e análises da informação, mas também refletir nas formas de comunicação e saberes tanto da comunidade indígena Misak quanto de Maragato diante as Novas Tecnologias (NT) y Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Isso acontece visto que se percebe o fato de eles permitirem o uso da memória e da sua voz nas dinâmicas tecnológicas-socioculturais e na forma como ambos concebem e se movimentam no mundo. Nesse sentido, o material oral empregado, as cibernarrativas, está imerso em processos de legitimação e de uma memória que se expande para um novo território: o ciberespaço, permitindo uma hipermemória e a construção de uma voz hipermedia dos Misak e o Maragato: Força “M”.

Antes de mais nada, é necessário contextualizar tanto a comunidade Misak quanto Maragato e esclarecer que ambos os casos são relevantes e significativos para a pesquisa, já que olhar para os excluídos, marginalizados e/ou silenciados, ao longo dos anos, permite enxergar suas potencialidades como narradores digitais e legitimar a sua própria voz[es], ou seja, suas próprias representações e saberes, cristalizados no ato de narrar.

Vale a pena mencionar que as autoras, em uma primeira fase, desenvolveram as investigações com cada um dos sujeitos de forma independente, com o intuito de compreender as suas próprias narrativas no ciberespaço. Posteriormente, na segunda fase, se faz destaque na voz hipermedia e se foca nessa narração oral para o digital; o cerne desse estudo.

No caso do povo indígena Misak está localizado no sul da Colômbia no município de Silvia, Causa. Segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE, 2005), as áreas de maior densidade populacional Misak são as de Guambía e Quisgó (Resguardos em Silvia), embora outros indígenas tenham migrado para os departamentos de Valle del Cauca e Huila (especificamente, para os municípios de “La Plata” e “La Argentina”) como pode ser visto na figura 1.



Figura 1 – Localização Geográfica da Comunidade Indígena Misak.

).

Fonte: NETNOGRAFÍA, 2019 em parceria com ZUÑIGA, Marcelo (2019) desde ArcGIS, a partir do DANE (2005)



Além disso, o povo Misak relatou 13.715 falantes da língua Namtrik, dos quais 6.857 são mulheres e 6.858 homens, que representam 50% dos falantes. Outrossim, a língua foi classificada na família linguística chibcha, no entanto, estudos sugerem que é uma língua isolada, de classificação incerta (DANE, 2005).

O grupo indígena, ao longo do tempo, tem sido reconhecido visualmente por seu anaco pretinho, Tampalkuari (chapéu), “Lusi pal” (manto), vestimenta que representa as cores do arco-íris e reconhece o ser Misak como parte fundamental do “Povo da água”, apelativo que leva em consideração a sua origem no território da “Mãe das florestas”, como eles chamam o departamento de Cauca. A seguir, na figura 2, se pode ver sua vestimenta tradicional e motivo de orgulho Misak.










Figura 2 – Vestimenta tradicional Misak










Fonte: Fotocrônica GARCÉS, D.,2015, a partir de NETNOGRAFÍA, 2019.

.




Desse modo, a região de Silvia, Cauca, cheia de verdes que se espalham pelos paramos de “Las Delicias e Moras”, e o “Alto de Guanacas”; de zonas encantadas e sagradas, como a “Lagoa de Nupisu” ou de “Nupirrapu”, e lugares comunais para desenvolver sua atividade agrícola e de psicultura, tornam o território natural território de sabedoria ancestral; uma terra de lutas e resistência por seu reconhecimento como povo indígena na sociedade contemporânea na Colômbia.

Por outro lado, “Maragato” é um sujeito periférico, que se inscreve como narrador a partir do uso das tecnologias digitais. Segundo Przybylski:


Marco Almeida, o Maragato, é um “nômade cibernético”. Essa categorização de nômade cibernético foi dada pela professora Ana Lúcia Tettamanzy, considerando o fato de que tanto Maragato está criando blogs, ministrando cursos na comunidade, como vendendo algodão doce ou puxando ferro (como ele mesmo diz, para se referir ao ofício de catar lixo) quando não há outras formas de sobrevivência. Cria programas de rádio, histórias em quadrinhos e ferramentas
pedagógicas em ambiente digital. (PRZYBYLSKI, 2014, p.78)


Maragato é este sujeito errante, que tanto está em contato, quanto some. Isso, obviamente, deve-se ao fato de a sobrevivência, para ele, ser perpassada por luta: para conseguir dinheiro, espaço, trabalho, ter sua produção aceita. Mesmo em relação ao ambiente digital, este narrador oral urbano-digital (PRZYBYLSKI, 2018) tem na sua presença ausências, já que a própria pesquisadora destaca que o acesso do narrador à internet, na época em que sua pesquisa foi realizada (2014-2018), era limitado. Muitos sites, diferentes blogs e programas eram, por ele, encontrados e serviam como base de publicação de sua produção digital.

Pelo exposto, deve-se considerar que essas vozes hipermedia (comunidade Misak e Maragato) convergem. aleatoriamente e flutuante no ciberespaço, talvez sem chegar-se a conhecer no emaranhado digital, causa das inumeráveis informações circulando neste. Porém, Força “M” permite verificar que o ciberespaço é o ventre que armazena uma “rede de elementos simbólicos interconectados interativamente” (BOLTER, 2011:114), ainda que estejam espalhados pelo mundo virtual sem ordem sequencial estabelecida. Ou seja, constroem sentido de unidade que se desprega em variadas e novas linguagens (cibernarrativas, narrativas digitais, narrativas virtuais ou voz hipermedia, introduzida e proposta nesta pesquisa porque marca o pensamento e posição do narrador no mundo; não só é a história e os elementos que a compõem, mas também o indivíduo que narra com alguma finalidade de maneira explicita ou tácita). Isto até porque “fora de nós e independentemente de nós, constitui uma parte da realidade que conhecemos (SCHAFT, 1974: 213).

Então, entre “terras movediças” no ciberespaço e “as novas órbitas de circulação das linguagens agora inexoravelmente atreladas aos corpos em movimento" (SANTAELLA, 2007: 26), se criam novas formas de comunicar interligadas aos processos tecnológicos que também permitem fornecer a oralidade dos sujeitos parte da pesquisa, incluso, advertir que a sua oralidade se prolonga pela internet em uma amálgama de cibernarrativas que se ligam à existência em que vivenciam o mundo, aproveitando as vantagens de circulação e divulgação na rede.

Por conseguinte, essa voz no território digital, que chamamos de “voz hipermedia”, traz uma potencialidade para a articulação das linguagens sonora, visual e verbal de modo não hierárquico; pois “os sistemas devem ser compreendidos como um todo que se articula e que só existe como tal. Assim, conceber a hipermedia é compreender que “não existe um centro único, mas sim um conjunto dinâmico composto pelos links, sites, páginas, máquinas, homens, instituições, etc.” (LEÃO,1999: 73). Desse modo, a “voz hipermedia” também fornece a hipermemória15 dos Misak e o Maragato.


METODOLOGIA[S]

Retomando que a primeira fase de pesquisa, chamada de “fase A”, se precisou analisar cada um dos sujeitos de forma independente com o intuito de compreender as suas próprias narrativas no ciberespaço, a seguir, é apresentado um resumo sobre a metodologia[s] usada na fase A.

Tabela 1 – Caso Misak e Maragato, metodologia[s] fase A.


Comunidade indígena Misak

Maragato

Metodologia: netnográfica baseada na mineração de dados (Data Mining).

Metodologia: observação participante.

Construção coletiva em conversas;

Objetivo da pesquisa: Análises de cibernarrativas sobre o capital simbólico Misak.

Objetivo da pesquisa: estabelecimento do conceito de narrador oral urbano-digital a partir do contato com narradores da Restinga, bairro periférico de Porto Alegre.

Suporte metodológico adicional: Entrevista online a três produtores culturais e três indígenas.

Suporte metodológico adicional: encontros semanais na casa do morador Beleza. (in memoriam)

Resultados: As cibernarrativas sobre o capital simbólico Misak16 percorrem tanto o território físico (Resguardo) quanto território digital (ciberespaço), a partir de quatro elementos: cosmovisão, artes, tradições-costumes e as iniciativas digitais (TICs) em parceria com os indígenas Misak no seu território.

O narrador oral urbano-digital é esse sujeito que produz, a partir do ambiente digital, suas narrativas. Ele utiliza essa ferramenta como forma de trazer à tona suas produções. 17


Fonte: AUTORAS, 2020.


Em correlação com a tabela 1, ambos os estudos de caso enxergam naquelas outras formas de narrar-valorizar e como os indivíduos envolvidos legitimam as suas produções hipermedia, a partir de vozes marcantes que desvelam sua posição de fala no mundo. Segundo vários autores, como Yin (1993 e 2005), Stake (1999), Rodríguez et al. (1999), trazer esse estudo de caso vai permitir compreender a sua aplicabilidade a situações humanas e a contextos contemporâneos de vida real, nessa oportunidade, da oralidade à voz hipermedia. Cabe, ainda, destacar que

Investigadores de várias disciplinas usam o método de investigação do estudo de caso para desenvolver teoria, para produzir nova teoria, para contestar ou desafiar teoria, para explicar uma situação, para estabelecer uma base de aplicação de soluções para situações, para explorar, ou para descrever um objeto ou fenómeno (DOOLEY, 2002: 343-344).


Por consequência, para compreender e analisar o estudo de caso Força “M” no processamento de materiais orais na documentação, processamento e análises da informação, se usa a metodologia netnográfica18, [re]-construindo – sem pretender ser uma “receita metodológica” -, ferramentas na sistematização, registro e análise de materiais orais, a partir de duas experiências de pesquisa. Vejamos.



FORÇA “M” NO PROCESSAMENTO DE MATERIAIS ORAIS


Lembrando que força “M” inclui a voz hipermedia dos Misak e o Maragato, ainda que estejam localizados em regiões distantes e pertençam a culturas diferentes, eles são referentes no processamento de materiais orais, especificamente, na relação narração oral para o digital, fornecendo a sua hipermemória que se prologa na internet.

Por conseguinte, tanto Misak quanto o Marco Almeida “Maragato” permitem conhecer seus territórios a partir de suas cibernarrativas, no caso da comunidade indígena jogando para o ciberespaço conteúdos sobre a sua cosmovisão, tradições, costumes, educação própria e luta política; e, no caso de Maragato, ‘nômade cibernético’19, publicando as suas tirinhas, e-mails, seus programas de rádio e blogs; portanto, ambas as práticas de intervenção e interação com as NT e TICs permitem ficar mais próximos ao território de Guambía, Cauca, Colômbia e ao bairro Restinga, na periferia de Porto Alegre, Brasil.

Dito isso, as cibernarrativas deles no processamento de materiais orais se refletem naquela transição narrativa do território para o ciberespaço e vice-versa, ou acontecendo ao mesmo tempo (espaços híbridos)20, já que iniciam com experiências vivenciadas no espaço físico e logo, mediante remediação, os media antigos se remodelam para responder aos desafios dos novos media (GRUSIN e BOLTER, 2000), permitindo experimentar e/ou verificar a sua prolongação no espaço digital, portanto, cabe o questionamento: como fazer o processamento de dito material oral desde o ciberespaço? Força “M” permite responder à questão e recuperar algumas ferramentas no processamento de materiais orais como se descreve a seguir.

Com efeito, é importante definir quem é o narrador oral e quais as ferramentas digitais para tornar a oralidade voz hipermedia, levando em conta que a narrativa tradicional pode ir além do território e os rasgos característicos nas suas narrações, bem como transmitir rasgos identitários. Os Misak, nessa voz hipermídia, impregnam suas cibernarrativas de azul, preto e rosado, a leitura simples: só cores, mas são elementos que guardam dentro de si “o resultado da prevalência de signos que possuem uma ligação existencial com seu objeto” (ANDACHT, 2015: 80), ou seja, essas cores têm uma relação com a Terra (preto), a água (azul) e a pureza (branco) no território indígena. Já Maragato tem como marca registrada os olhos de gato nas suas produções, e se identifica naquele ditado popular “tem sete vidas de gato”.



Figura 3 - Marcas de identificação (voz hipermedia) nas cibernarrativas.


.

Fonte. Acervo das autoras, NETNOGRAFÍA, 2020



Em consequência, a figura 3 é a representação de rasgos identitários que se fixam nas produções. No caso dos Misak a sua voz hipermedia prevalece nas cores de sua vestimenta tradicional “anaco” e nos símbolos que aludem a sua relação próxima com o tecido; desse modo, apresentam dados sobre o seu território, língua e hino da comunidade, usando, dentro de sua cibernarrativas: texto digital, fotografia, áudio e mapa de Cauca. No caso de Maragato, a sua voz hipermedia faz ato de presença em suas histórias de caráter social, político e econômico, cujo cenário é a urbanidade, registrando em cada narração a sua marca “olhos de gato” (a sua identidade); assim, se encontram dentro de sua cibernarrativa: histórias em quadrinhos, vídeos, áudios e blogs.

Pelo exposto, é relevante perceber, na voz hipermídia, seus rasgos identitários que fornecem a sua razão de existir. Ora, como compreender esta[s] voz[es] no emaranhado digital? A netnografía pode ser a opção nesse tempo (2020) pois, com os avanços tecnológicos e as dinâmicas criadas na rede, o pesquisador também vai se reinventando. Assim, deve-se ter em conta que mergulhar na busca de narrativas digitais requer tempo, critérios de busca e bom arsenal de ferramentas como netnógrafo(a) para não se perder entre as inúmeras informações.

Assim, é importante ficar de olho nos processos de remediação que acontecem do território para o digital, pois a oralidade ainda prolongada no ciberespaço (voz hipermedia), vai atravessar corpos-emoções; vai transitar pelos contextos sociais, políticos, culturais etc. nos quais se inserir, ao mesmo tempo que nós (leitor digital/cibernauta21/produtor digital) interagimos a partir da máquina (dispositivos eletrônicos). Portanto, nessa interação-transição persiste um desdobramento dos sentidos, tanto para o[s] narrador[es] enquanto ouvinte[s], leitor[es], de diversas cibernarrativas.

Deste modo, força “M”, naquela representação de um meio em outro, acontece nessa produção hipermedia feita pela comunidade Misak e o Maragato, no primeiro momento desde a sua presença/oralidade no território físico e, no segundo momento, quando eles se tornam narradores digitais e sob critérios próprios de produção, constroem e narram representações sobre seu ser e estar no mundo através da internet. Igualmente, no processo de mediação da mediação, consideramos um terceiro elemento: nós, como netnógrafas e pesquisadoras que olham para a voz hipermedia de força “M” no ciberespaço, como dizem Grusin e Bolter “os media precisam um dos outros para funcionarem com tal” (2000: 55, tradução nossa).

Além disso, o arsenal metodológico no processamento de materiais orais na documentação, processamento e análises da informação, desde o emaranhado digital, permite readaptar ferramentas que geralmente se usam em ato de presença e, logo, apropriar-se no ciberespaço, para exemplificar, o método etnográfico passa a ser netnográfico; a verificação de fontes pode ser melhorada através de ‘Alertas Google’ e software noticioso para ficar atualizados nas produções de nossos narradores digitais e, através da apropriação de TICs, se podem fazer entrevistas online, quando nossos narradores estiverem longe.

Por consequência, deve ficar claro que conceber as entrevistas online é um percurso quando os sujeitos envolvidos, ainda ficando na distância, têm facilidade, conhecem ou aceitam orientação para usar aplicativos digitais, tais como, Hangouts, Skype, Meet, Whatsapp ou Zoom, para levar a cabo a conversa. Assim, nessa ideia de “democratização na rede”, a entrevista online se torna instrumento metodológico que permite acrescentar as análises do tema de pesquisa. Porém, seja entrevista ‘face to face’ ou online, permitem “chamar atenção para a possiblidade de ela documentar as ações de constituição das memórias – as ações que tanto o entrevistado quanto o entrevistador pretendem estar desencadeando, ao construir o passado de uma forma e não de outra” (ALBERTI, 2004:35). Embaixo, o exemplo de algumas ferramentas no processamento de materiais orais.


Figura 4 - Ferramentas no processamento de materiais orais.

entada”


Fonte. Acervo das autoras, NETNOGRAFÍA, 2020



No caso das narrativas digitais Misak se precisou de Researching (rastrear na web) e ‘Alertas Google’, posteriormente, a partir de datamining e uso de software Copernic, se encontraram as cibernarrativas sobre a comunidade para obter informações mais atuais sobre o assunto pesquisado. No caso de Maragato, começou-se com oficinas da Restinga para, logo, considerar o esboço do site “A vida reinventada” 22 e os conteúdos das narrativas digitais.

Além disso, é importante, no processamento de materiais orais: sistematizar, categorizar e interpretar o conjunto de cibernarrativas encontradas, além da materialidade dos produtos, para chegar ao cerne das vozes hipermedia, pois constituem um fragmento da realidade, mas também fazem sentido sob olhar crítico e aprofundado.

Por isso, na sistematização das cibernarrativas, é preciso categorização sobre aquilo que falam os protagonistas, o meio de circulação da oralidade para o emaranhado digital, inclusive, é valido jogar um espaço de experiências e sentimentos para os pesquisadores frente às vozes hipermedia que nos seduzir, encantar, levar a duvidar, questionar, desejar conhecer mais, e tudo aquilo que cabe no mundo das possibilidades. Para exemplificar, vejamos.


Tabela 2 – Mostra de sistematização e categorização no processamento de materiais orais na documentação, processamento e análises da informação.



Categoria 1. Identidade do narrador digital

Meio de circulação

Voz hipermedia

Anotação de netnógrafas

História em quadrinho “Ana no país das calas beges”. Disponível em:

<https://images.app.goo.gl/1kRszbTJ8xRiomEG9>. Último Acesso 12/04/2020







Na tirinha “Ana no país das calas beges”, o Maragato expressa a sua visão de mundo, a partir de diálogo provocativo que evidencia a prisão, a pobreza, a reação violenta e a rejeição entre as personagens, previamente criadas, tanto no visual quanto na descrição de sua fala e emoções, ou seja, eles representam um fragmento da realidade percebida pelo narrador a ser retratada.

- Mauren: Maragato é representado a cada novo curso que ele ministra nas escolas. Por exemplo, ao ensinar, as crianças a criarem histórias em quadrinho em internet e justificar que se trata de uma forma de incentivo à leitura. É a visão da arte verbal como aquela que organiza socialmente a linguagem).

Fotorreportagem “Sinais de identidade”. Disponível em:

<https://elpais.com/elpais/2015/12/10/album/1449767318_718936.html#foto_gal_1>. Último Acesso 12/04/2020













Na fotorreportagem do tecido Misak como arte: ‘Sinais de identidade’, María Jacinta Cuchillo Tunubalá é uma líder indígena em Silvia (Departamento de Cauca). Aos 39 anos, ela é parte fundamental da EnRedArte, a rede de tecelões de ‘La Casa del Agua’ (Agência para o Desenvolvimento Econômico Local) de cinco municípios da região. Ela controla a qualidade dos produtos produzidos pelos artesãos e o ritmo de entrega. Jacinta diz que cresceu e viveu durante anos como "mestiça", mas num belo dia do final dos anos noventa decidiu seguir o caminho inverso às suas origens étnicas. Agora ela vive de acordo com as tradições da cultura Misak (...)

[...]

- Jenn: fotografias em HQ, bastante próximas das tecedoras Misak retratam um fragmento de seu cotidiano. A narração que acompanha as fotografias marca os rasgos identitários de seu anaco e a conexão com a natureza. Se usa fotos em primeiros planos e se foca na história da Jacinta, a mestiça que vira Misak, tornando-se referência e autoridade na comunidade, em prol de sobreviver a sua identidade cultural.



Categoria 2. Motivações do narrador digital

Blog “Projeto micro histórias”. Disponível em:

<https://exposicao-viacrucis.blogspot.com.br1>. Último Acesso 12/04/2020


O Maragato incentiva os alunos a contar uma história em três palavras, com o intuito de que eles possam resolver as dificuldades que se apresentam quando analisam os textos. Além disso, o Maragato estimula os estudantes a discutir as histórias dos outros.

- Mauren: As histórias em quadrinho são inspiradas em seus alunos, seus parceiros, aquilo que enxerga ao seu redor.


Documentário “entre arraigo y apertura”. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=M8PnaJbA7Cw>. Último Acesso 12/04/2020










O seu Vicente Paja Tombé - Coordenador Acadêmico da Instituição Agropecuária Misak diante das NT na escola, manifesta:

Sabemos que a tecnologia tem vantagens e desvantagens, que a Internet é muito boa, mas os meninos não usam bem e se deparam a espaços e pessoas que podem afetá-los negativamente e afeta também a comunidade internamente (...) Antes dos telefones, as meninas no intervalinho na escola ficavam tecendo, fazendo artesanato, mas agora isso mudou, elas passam ligadas a seus telefones”.

[...]

- Jenn: o Misak, “entre arraigo y apertura”, além de apresentar a sua cultura, crenças, ritos, organização e cosmovisão, também é crítico no uso das NT no território; como a tecnologia é ferramenta ou veículo na educação, também os mais novos ficam seduzidos por ela. De fato, leva a inspirar os estudantes de maneiras diferentes e a reconstruir as práticas próprias, sem perder as suas raízes.


Categoria 3. Percurso de fala

Vídeo “O lixo e o luxo da Restinga”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M8PnaJbA7Cw>. Último Acesso 12/04/2020






Maragato narra a situação do lixo na Restinga e do trabalho com reciclagem. Ele destaca à moradora dona Solange, já que faz arte com o lixo e, desse modo, decora a sua casa com materiais reciclados. No vídeo ele apresenta a “Casinha de boneca” e a “Bruxinha”, feitas por dona Solange.

- Mauren: no vídeo “O lixo e o luxo da Restinga”, o Maragato conversa com os moradores acerca da situação do lixo e do trabalho com reciclagem, adotando posição de narrador em off (o seu percurso de fala).


Grafite “Arte Misak Misak em Bogotá”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JF4t9UtljH4>. Último Acesso 12/04/2020

- Mileidy Domicó, indígena Emberá, fez parte da iniciativa de arte Misak em Bogotá:

- (...) “O indígena é indígena no lugar que fique ou more, se está em seu território é indígena, se está na cidade também. Não desconheço que há circunstâncias que nos podem afastar de nossa raiz, mas também devem existir espaços para reencontrarmos, como isto que fazemos hoje (arte grafitti) ” (...).

- Jenn: Segundo a narração de Mileidy Domicó, o percurso de fala Misak é através da arte e da palavra. Desse modo, os grafites refletem sobre a natureza, seus rituais, costumes e sonhos. Vale a pena pensar que através de suas propostas, os indígenas buscam ganhar mais espaços na sociedade em geral, especificamente, espaços de visibilização: ‘olha para mim, aqui estamos’.

[...]



Fonte: AUTORAS, 2020.


Desse modo, sistematizar a voz hipermedia de força “M”, permite recriar momentos de vida e [re]valorizar quantos saberes e formas de ser e estar no mundo sejam possíveis, especificamente, enxergando aqueles narradores subalternos e marginalizados que, no caso das comunidades indígenas e pessoas da periferia, também nos mostram que através das NT e TICs legitimam por si mesmos a sua posição de fala. Isto ao modo de uma dança-parceria entre a voz hipermedia e os novos media, os quais podem fornecer o material oral contemporâneo.



A VOZ HIPERMEDIA E OS NOVOS MEDIA DENTRO DO MATERIAL ORAL CONTEMPORÂNEO


Como já se viu, os novos media “são compostos por objetos culturais os quais utilizam a tecnologia computacional para distribuição e exibição” (MANOVICH, 2001:16, tradução nossa), ou seja, são a ferramenta de criação de diferentes textos (áudio, som, vídeos, imagens, animações, etc.) inscritos na internet, mas também o meio, a mensagem dos conteúdos produzidos.

Com efeito, força ‘M’ permite compreender a voz hipermedia através de processos de “remediação e de legitimação existente no território que se prolonga no ciberespaço a partir de produções industriais artesanais e da circulação massiva imersa entre o culto e o popular, entre o visual e o literário (CANCLINI, 2008:336), e os narradores orais-digitais legitimam a sua posição de fala.

Além disso, a voz hipermedia assume diferentes corpos para falar ou se manifestar, disponibilizando-a nas mais diversas linguagens, de maneira misturada e de modo simultâneo; esse caráter polissêmico da fala permite para fazer sentido para uma pessoa, coletivo, comunidade ou tantos outros que se ligam a sua razão de ser e estar no mundo.

Por isso, força “M”, na relação voz hipermedia e novos media, carrega em suas cibernarrativas processos históricos, sociais, culturais, de identificação e reflexão, que se manifestam, principalmente, em vídeos e blogs como percursos tecnológicos das histórias, as quais são representações sociais de como eles se vêm mas também de como serão vistos. Daí que, na pesquisa envolvendo materiais orais, na documentação, processamento e análises da informação, os pesquisadores podem dar conta dos ditos processos, mas também observar as metáforas nas suas produções.

Nesse caso, a metáfora enxergada desde o ciberespaço precisa analisar a estruturação das narrativas digitais de força “M”, e os elementos chave nessa relação voz hipermedia e novos media, resultado de um processo de codificação técnica e culturalmente [re]-mediado. Portanto, a metáfora acolhe os objetos na tela, os ícones, funções de copiar e colar, etc., que hoje, cada vez mais são de fácil acesso para os usuários; assim, a metáfora se torna “pasta de documentação do mundo virtual e real. Além de uma forte dose de circulação no fluxo dos conteúdos” (FRANCO, 2005:261, tradução nossa).


Figura 5 - Metáfora força “M” no processamento do material oral.


Fonte. Acervo das autoras, NETNOGRAFÍA, 2020



Em correlação, as metáforas de força “M”, no processamento do material oral, revelam que a navegação nas produções feitas é de fácil acesso e os percursos usados atingem o poder na fala mais que ponderar a estética. Aliás, a sequência na leitura permite [re]-conhecer o contexto vivenciado pelos narradores que geram sentido de pertença, representação, afinidade, recusa ou identificação para outros, “como uma série de eventos conectados, causados ou experimentados pelos autores” (MANOVICH, 2001:201).

Nesse sentido, a voz hipermedia e os novos media estruturam os conteúdos apresentam e jogam as vozes para o ciberespaço, criando outras maneiras de contar histórias e constituindo uma polissemia de narrações que oferecem uma gostosa “autopsia de textos” (PISSO, 2019). Isto “permite um texto bricolagem de multiplex fragmentos que suturam as realidades sociais e culturais por vários meios institucionais e culturais” (SANTAELLA, 2007:60).

Com efeito, força “M” faz uso de metáfora verbal para comunicar as suas cibernarrativas: a metáfora visual através dos percursos hipermedia; a metáfora do mundo real a partir das dinâmicas geradas pelos novos media e os processos de remediação; e a metáfora global, que cristaliza uma memória coletiva, ou seja, a hipermemória que se arquiva no ventre do ciberespaço e dá conta de seus fazeres, ligações e representações latentes nas narrações.

Dessa forma, Misak e Maragato constroem uma relação com os espaços, lugares e pessoas narradas; portanto, é importante analisar a qualidade dessa voz hipermedia e como legitimam a oralidade a partir de novas criações colocadas no mundo virtual, daí a importância no processamento de material oral contemporâneo ter uma atitude de escuta paciente, tanto no território físico quanto no território digital.





CONSIDERAÇÕES FINAIS


A voz hipermedia fornece a oralidade desde o território físico e prolonga as narrativas no emaranhado digital, produzindo olhares diversos, mais também processos de virtualização que visam ao real, à vida transmitida naquela voz hipermedia. Portanto, força “M” ou força modalizante, legitima seus saberes e conhecimentos a partir de processos de remediação e no suporte dos novos media, NT e TICs, o que confere o caráter de cibernarrativas. Porém, a leitura feita pelo cibernauta vai também construir outros modos de produzir narrativa, caso das redes sociais que atuam como ponte de divulgação e espaço para expressar, criticar ou alertar sobre aquilo que se lê ou é narrado.

Desse modo, vídeos, blogs, sites ou redes sociais criam narrativas que, seja no virtual ou no pessoal, vão amadurecer o trabalho dos narradores marginalizados na sociedade contemporânea. Nesse sentido, ainda que aparentemente se possa perceber uma quebra na oralidade tradicional, na verdade se revitaliza a partir de outros modos de falar e contar esse algo para outro[s].

Finalmente, da oralidade, a voz hipermedia no processamento de materiais orais na documentação, processamento e análises da informação, permite descobrir novos métodos/ferramentas de pesquisa em prol de ressignificar a vida mesma e valorizar nossos narradores populares que, ao longo dos anos, foram silenciados, e hoje, podemos enxergar de diversos maneiras, descobrindo um chafariz de vozes, pensamentos, sentimentos e ações que se cruzam, se afastam, se unem, se [re]-constroem, se [re]-produzem para uma oralidade que, mesmo no emaranhado digital, nos liga a nossa existência e razão de ser/estar no mundo.



REFERÊNCIAS

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[Recebido: 14 mai 2020 – Aceito: 14 mai 2020]





SEÇÃO LIVRE


A HISTÓRIA DO “BURACO FUNDO” CONTADA POR DIFERENTES GERAÇÕES DA CIDADE DE RESTINGA SÊCA, RS



THE STORY OF THE “BURACO FUNDO” TOLD BY DIFFERENT GENERATIONS FROM THE CITY OF RESTINGA SÊCA, RS



Emanuelle Tronco Bueno23

https://orcid.org/0000-0002-8074-651X

 

Sylvie Dion24

https://orcid.org/0000-0003-0919-1109



RESUMO


O presente estudo traz um aprofundamento sobre relatos históricos e lendários acerca da localidade conhecida como “Buraco Fundo”, situada no município de Restinga Sêca, Rio Grande do Sul (RS). Trata-se de uma formação geológica, uma paisagem criada a partir da erosão, formada somente por fenômenos da natureza, sem qualquer intervenção humana. Desse modo, objetiva-se registrar a história oral sobre “Buraco Fundo”, através de relatos de pessoas que nasceram e viveram sua infância no município. A metodologia utilizada foi a leitura de referenciais teóricos, pesquisa documental e a aplicação da entrevista semidirigida. O resultado demonstra que a abordagem permite disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo.


Palavras-chave: História oral. Discurso. Restinga Sêca. Buraco Fundo.


ABSTRACT


This study provides na in-depth look at historical and egendar accounts of the location known as “Buraco Fundo”, located in the city of Restinga Sêca, state of Rio Grande do Sul (RS), Brazil. It is a geological formation, a landscape created from erosion, formed only by natural phenomena, without any human intervention. In this way, the objective is to register the oral history about “Buraco Fundo” through reports of people who were born and lived their childhood in the municipality. The methodology used was the reading of theoretical references, documentary research and the application of the semi-directed interview. The result demonstrates that the approach allows the dissemination and maintenance of cultural traces and memories of the city, revealing the importance of orality in representing the history of a people.


Key-words: Oral history. Speech. Restinga Sêca. Buraco Fundo.




INTRODUÇÃO


A palavra texto – que pode ser manifestada na forma oral ou escrita, etimologicamente provém do latim tecere (em português, tecer). Tanto o texto como o tecido são constituídos de linhas – imaginárias ou reais – concatenadas, como uma espécie de colcha de retalhos, em que os retalhos agrupados formam um único objeto, um todo. Ao longo dos séculos, o mais utilizado modo de transmissão desses retalhos (partes), para formar o todo (o texto), é a linguagem. Através dela, os retalhos são originados e posteriormente costurados uns aos outros, seguindo sempre uma lógica própria dos falantes, de cores e estampas, determinados pelas particularidades daqueles que os produzem.

Estudar a linguagem, portanto, possibilita, além da inserção no âmbito social, a reflexão sobre suas representações sociais. É através das práticas linguageiras que, ao longo das gerações, o passado se concatena ao presente, que a tradição toma forma, que os costumes são perpetuados e que as histórias seguem vivas – conquanto ligam-se umas às outras.

A concepção de linguagem como produtora de sentidos é sustentada por Bakhtin (2003, 2006). Para o autor, a linguagem é produto vivo da interação social, das condições materiais e históricas de cada período, ao passo que a propriedade mais marcante da língua é sua característica dialógica. A partir do conceito de dialogismo, o texto possui o potencial de recuperação do passado e projeção do futuro, e não de textos pensados como produtos isolados, ou seja, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 2006, p. 128).

Através da oralidade, do texto oral, a linguagem é tida como significação, como sistema de sinais usados para fins sociais, como um recurso para gerar significado ou mesmo como um sistema para interpretá-lo. O estudo desses elementos evidencia histórias, resgata práticas culturais e registra a trajetória de uma dada comunidade.

Partindo dessas considerações iniciais, este estudo é oriundo de relatos que envolvem o ponto turístico “Buraco Fundo”, localizado em Restinga Sêca, município da Quarta Colônia do Rio Grande do Sul, situado na região central, com cerca de 15.78925 habitantes e distante há cerca de 257km de Porto Alegre, capital do Estado. A relação afetiva da autora com a cidade, associada aos familiares próximos, oportunizou realizar uma pesquisa sobre o tema, até então não explorado sob o viés acadêmico do estudo da oralidade. Assim, a proposição se associou à necessidade do registro das memórias locais sobre o “Buraco Fundo”, um dos marcos da formação cultural da cidade.

Com isso, objetiva-se registrar a história oral sobre o “Buraco Fundo”, localizado no município de Restinga Sêca, Rio Grande do Sul (RS), através de relatos de pessoas que nasceram e tiveram sua infância no município. O “Buraco Fundo”, em restritas pesquisas acadêmicas sobre o fenômeno, está descrito como uma formação geológica, ou seja, uma paisagem criada a partir da erosão, formada somente em decorrência de fenômenos da natureza, sem que houvesse a intervenção humana em sua formação. O geossítio “Buraco Fundo” possui uma extensão de 20.000m² e sua origem ainda é desconhecida pelos estudiosos26.

A pesquisa aborda a relevância da história oral, considerando as forças que constituem o processo dialógico entre gerações. Desse modo, são valoradas as memórias dos interlocutores e seu território.

A metodologia utilizada foi: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevista semidirigida. Após as entrevistas, foram realizadas transcrições sociolinguísticas de maneira integral e minuciosa, além da análise de dados. Dessas entrevistas, foi possível extrair os principais fatos históricos e lendas, que serviram para o resgate das memórias da cidade de Restinga Sêca associadas ao “Buraco Fundo”.

Com isso, o material resultante dessa pesquisa visa a divulgar os aspectos culturais, a agregar valor e a empoderar a voz dos contribuintes dessas narrativas, pois se trata de fatores importantes para a consolidação da história oral. Com isso, mantém-se estes aspectos enquanto se divulga o material como uma proposta de valorização da história local.



A HISTÓRIA ORAL

O vocábulo história, no senso comum, associa-se à narrativa de fatos e acontecimentos que envolvem diferentes formas de imaginação. Nessa perspectiva, Ramos (2010) aponta que esse entendimento de história corresponde à narração elaborada por um sujeito. Essas narrativas, sendo carregadas de subjetividade e de visões particulares, estão ligadas à individualidade e à unicidade. O entendimento da palavra oral, a seu turno, remete a discurso, fala, comunicação, interação. Assim, o desenvolvimento da história oral como campo de estudo está atrelado tanto a questões de narrativa, quanto linguísticas.

Sob o viés da narrativa literária, Todorov (2008, p. 221) defende que se deve avaliar a obra projetada sobre o discurso literário – o qual é colocado em evidência. Para o autor, a obra literária é, ao mesmo tempo, história e discurso. Ou seja, é história porque registra algo que representa certa realidade; é discurso porque esse acontecimento é relatado por alguém a outra pessoa. Nesta interação, o tempo do discurso se dá de forma linear, enquanto o tempo da história é pluridimensional, considerado o único traço do discurso que o distingue da história. Ou seja, o discurso é a narração do vivido a partir da subjetividade do narrador.

A complexidade da história oral consiste em sua característica sequencial de processos e constructos verbais, cuja gênese é oriunda dos encontros pessoais e culturais entre narrados (ou narradores) e o historiador. Tal característica deriva da heteroglossia própria da forma dialógica do discurso (BAKHTIN, 2006).

Ao abordar história oral, principalmente sob o viés indígena, Cruikshank (1998) discute questões epistemológicas sobre o tema, levantando pontos pertinentes para o pesquisador da área: A quem cabe formular e contar as histórias orais? Qual o papel da academia neste registro? Há lugar para quais vozes no trabalho acadêmico? Até que ponto essas representações do acadêmico não acabam se sobrepondo aos legítimos detentores dessa tradição oral? O próprio autor apresenta a noção de que tais questionamentos ocasionam uma gama de reflexões distintas.

A história oral é tida como um procedimento metodológico de pesquisa, em que o pesquisador realiza uma entrevista com pessoas que tiveram experiência e foram testemunhas dos fatos a serem investigados. Esse processo normalmente é registrado por meio de gravação sonora (CRUIKSHANK, 1998). Conforme Cruikshank (Idem, p. 153), a objetificação da história oral foi prosseguindo até o século XX, quando ocorre, por influência estruturalista, uma ruptura neste entendimento. Assim, passou-se ao entendimento de que “narrativas orais podem inverter o comportamento social, porque o propósito de tais narrativas é resolver simbolicamente as questões que não podem necessariamente ser resolvidas na esfera da atividade humana”.

Da mesma forma, Jakobson (2009) também teve relevante contribuição para os estudos de folclore e da cultura popular. O autor traça a fronteira entre o folclore e a literatura a partir da comparação com as noções saussurianas de langue (social) e parole (individual). Essa contraposição, além de outros vieses, serve como ponto de partida para as chamadas “zonas fronteiriças”, que se encontram entre a oralidade e a escrita.

À época27, Jakobson (2009) ainda não pôde avaliar a cultura de massa como fenômeno geneticamente próximo ao folclore, mas as características dadas por ele ao folclore podem ser relacionadas à cultura de massa. Ao longo do século XX, dentro da cultura de massa, além da literatura popular, surgiram vários gêneros, cujas características são determinadas pelo meio de divulgação. Entre eles estão as rádios e as telenovelas, os programas de televisão, alguns filmes, a literatura da internet, os blogs e as redes sociais, entre outros. Essas novas formações surgem a toda hora, mas há algo que une todos eles e, nesse sentido, as conclusões de Jakobson (2009) parecem justas: as exigências do público moldam a sua forma e o conteúdo, desempenhando um papel determinante. Essa é a principal diferença entre a produção popular e a produção individual.

Segundo o referido autor, a literatura oral é marcada pela interação. Ao tratar o folclore como modo de ser, Jakobson (2009) fala de esboço ou molde da tradição. Significa dizer que cada indivíduo possui uma competência para interpretar e preencher este molde, tramar conforme seu capital intelectual, e é a partir dessa estrutura própria que a produção individual ocorre, permeada pelas vicissitudes de cada indivíduo.

Dentro do folclore, estão tanto as artes verbais (a exemplo das lendas), quanto qualquer produção artística popular. A lenda tradicional, portanto, é um gênero narrativo que pertence ao campo da oralidade. A partir de pressuposições múltiplas, incertas ou inconclusivas, advindas do imaginário popular, a lenda, conforme Bergeron (2010, p. 50), “deixa sempre insatisfação, interrogação, meditação, devaneio”. Portanto, segundo o autor, a lenda é caracterizada como uma narrativa que aflui da crença, além de partir do conhecimento prévio e das inclinações do ouvinte em aceitar a premissa do sobrenatural – para receber e complementar as reticências deixadas, necessariamente, pelo narrador. Nesta percepção, identifica-se a lenda do “Buraco Fundo” como uma lenda etiológica, pois esta desvela a existência ou o surgimento de algo, bem como se propõe explicar eventos inexplicáveis da vida ou da natureza desta comunidade.

Conforme Renard (2007), o boato e a lenda urbana, gêneros da literatura oral, possuem aproximação quanto ao conceito. Ao tratar dos elementos constitutivos do boato, o autor conclui que tanto o boato quanto a lenda urbana são “um enunciado ou uma narrativa breve, de criação anônima, que apresenta múltiplas variantes, de conteúdo surpreendente, contada como sendo verdadeira e recente em um meio social que exprime, simbolicamente, medos e aspirações” (RENARD, 2007, p. 98).

Os relatos orais que versam sobre o passado, por sua vez, referem-se explicitamente às vivências subjetivas experimentadas pelos oradores. Tal característica, outrora avaliada como limitadora, atualmente vem sendo enaltecida, conquanto é considerada importante virtude da história oral. Isso ocorre porque os fatos rememorados e apresentados na forma narrada revelam processos de percepção do mundo, construção do passado e a integração de tais fenômenos à vida da pessoa (CRUIKSHANK, 1998).

Precisamente neste sentido é que o autor (CRUIKSHANK, 1998, p. 156) elabora que “Se verificarmos como a tradição oral é utilizada na prática, veremos que, para a maioria das pessoas, ela não é um conjunto de textos formais: é parte viva, vital da vida” (CRUIKSHANK, 1998, p. 156). A referida linha de raciocínio justifica o enaltecimento das características próprias da história oral, especialmente sua estrita vinculação às experiências subjetivas dos protagonistas e contadores de cada história.



PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS


Metodologicamente, este estudo classifica-se como uma pesquisa exploratória qualitativa, desenvolvida a partir das seguintes técnicas: pesquisa bibliográfica; pesquisa documental; e, enquete com informantes (entrevista semidirigida). A flexibilidade própria da pesquisa exploratória se alinha a este estudo, tendo em vista que precisa estar aberta ao surgimento de novos aspectos para o objeto da pesquisa (CERVO, 2007). As três fases da pesquisa aqui descrita, embora se relacionem, possuem características próprias que justificam sua execução e relevância para o estudo (Tabela 1).



Tabela 1 - Etapas metodológicas

PESQUISA EXPLORATÓRIA

Fases


1


Levantamento

bibliográfico

2

Levantamento

Documental

3

Enquete com

informantes

Material


  • Bibliografia relacionada à temática

  • Dados sobre o Buraco Fundo em sites do poder público: Ministério do Turismo e Prefeitura Municipal de Restinga Sêca

  • Documentário “No fundo do buraco”, de Fabrício Koltermann

  • Música “Buraco Fundo”, de Mulita

  • Artigos acadêmicos multidisciplinares sobre o “Buraco Fundo”


Técnicas de coleta e análise


  • Pesquisa bibliográfica: leitura, fichamento e sistematização

  • Pesquisa documental: de setembro de 2019 a fevereiro de 2020 em sites de órgãos oficiais e produções artísticas e acadêmicas sobre a temática

  • Entrevista semidirigida: de setembro de 2019 a fevereiro de 2020, realização com vinte pessoas que nasceram e viveram a infância em Restinga Sêca, sendo utilizado o critério de 5 pessoas por geração, considerando 4 gerações.


Fonte: elaborado pela autora

A pesquisa bibliográfica serve de base e subsídio para as demais etapas, assim como a pesquisa de conteúdo é indispensável para elaboração das perguntas e aproximação com o objeto de estudo.

Na acepção de Létourneau (2011), a enquete com informantes é uma metodologia de pesquisa considerada complexa, que deve ser opção em caso de imprescindibilidade, a exemplo do campo aqui traçado, da cultura oral, em que se inserem os mitos, lendas e contos.

Em relação às etapas de uma enquete com informante, é necessário ter objetivos específicos de pesquisa, prezar pelos aspectos éticos quanto à exposição de motivos da enquete, como será registrada, o local de divulgação e fidedignidade na transcrição. A preparação do entrevistador também é fundamental, sendo indispensável pesquisa prévia sobre a temática:

[...] a qualidade das entrevistas orais depende, em suma, da qualidade de ouvinte do pesquisador e de sua capacidade para manter uma conversação harmoniosa sem controlar o conteúdo das palavras de seu informante. Também depende das qualidades humanas do pesquisador e do profissionalismo de sua operação” (LÉTOURNEAU, 2011, p. 220).


A entrevista semidirigida realizada é o “método mais utilizado para discernir o domínio que um informante tem sobre um campo específico de sua vida cotidiana” (ibidem, p. 223). Para tanto, a enquete foi desenvolvida com três perguntas abertas28, e a entrevistadora (autora deste artigo) elaborou, durante o processo de interação, perguntas complementares ou comentários pertinentes.

A amostragem foi feita em relação aos objetivos buscados com o método, ou seja, aferir a visão de pessoas naturais do município de Restinga Sêca sobre o ponto turístico Buraco Fundo” em diferentes fases de suas vidas. Para tanto, seguiram-se grupos da pirâmide etária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), totalizando quatro grupos: pessoas abaixo de 30 anos; pessoas entre 30 e 59 anos; pessoas entre 60 e 79 anos; pessoas com 80 anos ou mais. Ao todo, foram 20 entrevistados, sendo cinco pertencentes a cada grupo etário pré-definido. As entrevistas foram realizadas durante outubro de 2019 e fevereiro de 2020 sendo estabelecido como critério a pessoa ser natural do município de Restinga Sêca e ter vivido na cidade durante sua infância.



O “BURACO FUNDO”


Esta seção configura a segunda fase da pesquisa realizada, em que se desenvolveu uma pesquisa documental, a qual se “vale de materiais que não recebem ainda um tratamento analítico, ou que podem ser reelaborados de acordo com os objetos de pesquisa” (GIL, 2009, p. 45). Assim, a partir de fontes diversificadas, constituídas por informações publicadas em sites do poder público e em produtos artístico-literários sobre o “Buraco Fundo”, traçou-se um panorama de apresentação deste ponto turístico de Restinga Sêca, RS, que ainda causa divergências e curiosidades nos moradores do município.


Figura 1 - Placa de identificação do "Buraco Fundo"

Fonte: arquivo pessoal


No site oficial da Prefeitura Municipal de Restinga Sêca, o Buraco Fundo está citado dentro da aba de “pontos turísticos”, juntamente com a Praia das Tunas. Na página, o município o apresenta como “turismo ecológico” e expõe uma foto-legenda com a seguinte descrição: “formação geológica proveniente de erosão. Localizado a 6km da cidade”. Já a página do Ministério do Turismo, na internet, detalha um pouco mais o que seja o local turístico, indicando-o como uma formação geológica, ou seja, uma paisagem criada a partir da erosão, formada somente pela ação da natureza, sem que houvesse a intervenção humana em sua formação. O geossítio “Buraco Fundo” possui uma extensão de 20.000m², e sua origem ainda é desconhecida pelos estudiosos29.


Figura 2 e 3 – Visão do “Buraco Fundo”

Fonte: arquivo pessoal


O “Buraco Fundo”, em restritas pesquisas acadêmicas sobre o fenômeno, é citado dentro de uma unidade de colinas com rochas sedimentares em baixa altitude. Segundo (SCHIRMER; ROBAINA, 2018, p. 211), esta unidade é característica exclusiva de Restinga Sêca, “[...] localizando-se na porção sul do município [...] verifica-se a presença significativa de ravinas e voçorocas de grande intensidade. A maior voçoroca [...], denominada buraco fundo, tornou-se um atrativo turístico e ponto para estudos acadêmicos”.

Também foi possível encontrá-lo em pesquisas acadêmicas sobre turismo rural, como é o caso do artigo de Froehlich e Alves (2007, p. 75), que insere o Buraco Fundo no “Roteiro 15 - Roteiro dos Alemães”, no município de Restinga Sêca, um percurso de 60km e 8h de duração, passando pela “Igreja Evangélica, Casa da Família Erahdt, antigo armazém, Salão Rockembach, Casa Prochnow, São Miguel Velho (vila de ex-escravos) e Mirante da Lomba Alta, com vista panorâmica da cidade. Almoço e roteiro urbano com visita ao Buraco Fundo, fenda geológica de 20 mil m² e Cabanha Campo Novo”.

O atrativo foi inspiração para música do comediante local Derli Lemes, o “Mulita”. A letra “Buraco Fundo”, escrita por Derli Lemes, é conhecida pela comunidade, sendo citada, inclusive, nas entrevistas semidirigidas. Misturando humor com informações históricas, o autor relata:


Na minha terra existe, um aborto da natureza, o tal de Buraco Fundo, muitos acham uma beleza, mas ninguém sabe explicar o motivo desta erosão, no alto de uma coxilha, um enorme buracão. Antigamente existia, muitos moradores perto [...]. Pois este Buraco Fundo fica perto da cidade, na minha Restinga Sêca, Terra da Hospitalidade. No acesso para as Tunas, primeira à esquerda se dobra e vai dá lá no buraco, toda a verdade comprova. Porque a estrada geral passa beirando as barrancas e o povo ali admira como este buraco encanta. Mas o tempo foi passando, o pessoal de lá se mudou [...] só o buraco ficou [...]. Quando eu chego lá perto, de medo sinto arrepio, vendo tamanho buraco e a terra de lá sumiu. Pois ali não corre sanga, nenhum arroio nem rio. Só a história não conta como o buraco surgiu. Mas ele está registrado como um ponto turístico. Pois vá lá quem quiser ver, o buraco é um precipício. E aqui vai um convite a todos recantos do mundo. Venha visitar Restinga, conheça o Buraco Fundo [...]30 (LEMES, s.d.).


O curta-metragem “No Fundo do Buraco”, lançado em 2010, teve direção, roteiro, direção de fotografia e montagem de Fabrício Koltermann, cineasta restinguense. O curta recebeu os prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Atriz - Darcila Scheidt e Melhor Júri Popular no 9° Santa Maria Vídeo e Cinema. O curta possui um roteiro de ficção, mas agrega pontos de realidade, como a explicação geográfica do “Buraco Fundo”, feita por um especialista ou pela presença de personalidades reconhecidas no município de Restinga Sêca. Os personagens do curta são médicos, professores, fotógrafos, políticos e pessoas envolvidas com a vivência cultural do município.

O engenheiro florestal Marcos Barros, que realiza uma explicação técnica no curta-metragem sobre o fenômeno do “Buraco Fundo”, inicia sua explicação com elementos geográficos aferíveis do ponto de vista científico:


[...] O Buraco Fundo tenha sido uma grande erosão causada por um conjunto de fatores, sejam eles o esgotamento de um curso d’água subterrâneo, que se deu devido ao desmatamento de uma floresta, conhecida como floresta estacional decidual que vinha desde o rebordo da serra geral até essa região, um pouco mais, seja pela fragilidade do solo, um solo arenoso, e que esses rios subterrâneos que existem tenham se esgotado e ocorreu um afundamento que deu início ao processo de erosão31.


Em uma das falas, o médico e pesquisador Horácio Borges, personalidade conhecida na comunidade restinguense, já traz uma versão fictícia da história, seguindo as orientações do cineasta e interpretando um papel importante para veracidade do enredo ali proposto.


Teve a oportunidade de atender, tratar, medicar com calmantes, tranquilizantes, uma das pessoas que me afirmavam, e os seus familiares que levavam junto, de certeza que o transtorno, aquela preocupação, a modificação no temperamento e no psiquismo daquelas pessoas, foi após ter passado pelo Buraco Fundo. E existem na Restinga, até hoje, em nossos dias, tem pessoas que tem histórias verídicas, que viram fatos sobrenaturais ali no Buraco Fundo. É interessante até que essas pessoas contem especificamente, porque eles narram e afirmam que viram fatos que não têm explicação, coisas de fatos sobrenaturais32.



A HISTÓRIA ORAL DO “BURACO FUNDO”


Acerca da lenda do “Buraco Fundo”, é interessante rememorar algumas narrativas citadas pelos entrevistados: 1) Local destinado aos filhos “malcriados”, que eram jogados ali quando desrespeitavam os pais; 2) Local mal assombrado, pois os fantasmas das pessoas que ali morreram não conseguem deixar o local e quem chegar na beira do Buraco é derrubado como “vingança”; 3) Local com origem não explicada, relacionada a alienígenas ou confrontos armados (bomba atômica); 4) Ocorrência geográfica extraordinária, sendo a única existente no mundo. Vários estudiosos já teriam ido ver o local; 5) Cobras gigantes e de “milhares” de espécies, capazes de engolir um ser humano inteiro, habitam o local e devoram as meninas vivas.

Tais considerações se alinham à perspectiva de Bakhtin (2006, p. 378) de que a palavra não pertence somente ao falante, pois a comunicação se instaura com o olhar do outro: “Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do meu mundo exterior [...] tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros”. Essa visão do autor está associada à crença de que um discurso se constrói a partir de outros discursos, remetendo ao princípio de dialogismo. Assim, Bakhtin (2003; 2006) mostra a necessidade de uma análise histórica da linguagem, não como algo externo, mas a própria linguagem como historicidade, em seu momento dialético de constituição.

O autor refere, assim, que o “mundo interno” das pessoas é povoado por uma legião de vozes, que se somam àquelas do seu contexto social, resultando em vozes consonantes e dissonantes, em acordo e desacordo. Quando tal sujeito faz uso da linguagem oral ou escrita, todas as vozes incorporadas passam a integrar o seu discurso. Cada produção linguística é como um elo na cadeia da comunicação, que liga enunciados e falas num eterno simpósio universal da humanidade.

Os dados verificados durante as entrevistas corroboram essa compreensão. Há uma diferença de visões entre os grupos separados por gerações, considerando que cada época possui seu conjunto cultural de influências sobre a sociedade. A primeira impressão sobre o Buraco Fundo (Gráfico 1) expõe que no grupo mais jovem predomina a associação com o ambiente escolar, lembranças de professores explicando a formação geológica: “A primeira coisa que associo [com o “Buraco Fundo”] é de uma aula de geografia, de uma professora explicando sobre erosão do solo e utilizando o Buraco Fundo como exemplo”33.

Já o segundo e o terceiro grupo associaram a lembranças da infância e levantaram o primeiro elemento da lenda sobre o local: a cobra. O grupo de pessoas com 80 anos associam o local com perigo ou ponto turístico, não levantando outras histórias. Todos os grupos fizeram associação do lugar com ponto turístico inexplorado no município.


Gráfico 1 – Primeira impressão sobre o Buraco Fundo

Fonte: elaborado pela autora


As vozes dos dois grupos intermediários (Pessoas entre 30 e 59 anos e pessoas entre 60 e 79 anos) desvelaram histórias determinadoras de suas percepções de mundo. A entrevistada Neide Helena Brocardo, 76 anos, moradora da localidade em que se encontra o “Buraco Fundo”, recuperou discursivamente as narrativas da infância associadas, principalmente, a temáticas de natureza selvagem e insegurança, as quais tecem fios entre seres perigosos e seres humanos, lugares e acontecimentos, descrevendo-os como ocorreram, num reencontro com o vivido; assim, a realidade se constitui na e pela memória:


Em época de colégio, nós [ela e os irmãos] passávamos no Buraco Fundo para estudar. Tinha meus amigos, a Maria e o Geraldo que moravam perto da nossa casa, passavam na minha casa e nos [ela e os dois irmãos] pegavam. Mais adiante tinha o Renato e a Zélia [amigos], que também iam conosco. Na ida, nunca parávamos para ver o Buraco Fundo..., mas na volta do colégio, tínhamos tempo, os meninos jogando bolita... nós se metendo na briga deles. Quando chegava no Buraco Fundo, nós, as meninas, tinha ordem de não entrarmos no Buraco Fundo porque era muito perigoso e tinha cobras enormes lá embaixo, que nos engoliam vivas, inteiras mesmo. Então, não entrávamos, mas tínhamos muita curiosidade. Nós éramos pequenos, então achávamos que aquilo era imenso, que era metade do mundo ali34.


O sentimento de medo transmitido nas histórias das cobras se preserva por intermédio de narrativas que perpetuam, de modo mágico, fenômenos que, se explicados pela ciência, perderiam sua força moralizadora. Destaca-se que a preservação das lendas circulantes, em uma cidade significa, também, buscar compreender como são construídas estratégias de sobrevivência e inventividade e como as transformações do meio social e cultural provocam (re)significações sobre o tempo e o espaço.

Nesse sentido, o entrevistado José Alvino Dutra da Silva, 65 anos, recorda:


Todo mundo fala desde que sou pequeno que ninguém sabe como surgiu aquilo lá. Acredito que seja algo sobrenatural, ninguém sabe de onde veio. Já ouvi dizer que lá no Buraco Fundo tem muita cobra, de milhares de espécies35.


Assim, a tradição oral em relatar histórias, lendas, causos e contos populares promove o reencontro com o tempo perdido. A memória está inscrita nos espaços, nos objetos, nas paisagens, nas sensações, em múltiplos lugares e, recuperá-la, é associar-se ao coletivo e ao cultural. Essas reconstruções falam de um tempo presente que estabelece limites para as lembranças, gerando novas formas, mas também recuperando o passado.

A entrevistada Gianna Maria Lamana, 52 anos, a seu turno, relata:


Quando éramos criança ouvíamos que era perigoso, que pessoas caíram e morreram, pois era impossível sair de lá, até porque deveria ter animais selvagens lá. Então, sempre nos recomendavam não chegar muito perto do buraco quando íamos visitar, porque as almas das pessoas que caíram poderiam derrubar para baixo36.


Verifica-se, desse modo, que a memória está presente nos discursos, naquilo que cada um interiorizou, que selecionou e que tem significado para si. As lendas, contos e causos recuperados pelas vozes dos entrevistados indicam que a memória cultural e literária da tradição oral está associada às lembranças das pessoas, sem registro escrito. A presença da memória no discurso é perceptível no resultado das entrevistas, de modo que cada indivíduo ou grupo de indivíduos respondeu com particularidades registradas no imaginário, além de que, mesmo aqueles que não reproduziram lendas e mitos, afirmaram que se recordam de ter ouvido relatos sobre o fato.

Estas memórias estão fortemente imbricadas às tradições culturais, narrativas que envolvem forças sobrenaturais. Duas vertentes da lenda do “Buraco Fundo” foram identificadas durante as entrevistas: 1) Associada a espíritos, assombração, medo, morte, perigo, insegurança; 2) Associada a natureza selvagem, cobras gigantes, “ninho com milhares” de espécies.

Outras versões surgiram, como boatos sobre seu surgimento, ou insegurança causada pela profundidade do local:


Quando era pequena, minha mãe sempre falava que quando as crianças incomodavam os pais levavam no buraco fundo e jogavam as crianças no buraco fundo. Ih... Morríamos de medo37.


Já ouvi falar que tem gente que mora no Buraco Fundo, que vive lá no fundo, há anos... Associado a questões sobrenaturais, já ouvi falar que um extraterrestre caiu no local, formando a cratera, ou mesmo uma bomba38.


O silêncio, diferente do esquecimento, pode revelar tensões e contradições que tendem a esconder feridas, o que pode ser lido como uma resistência das pessoas – da sociedade civil – ao discurso oficial. Sobre o surgimento do “Buraco Fundo” estar ligado a alguma história fantástica ou mesmo sobrenatural do município de Restinga Sêca, Neide Helena Brocardo também relata: “((silêncio)) Olha... sempre temos essa dúvida. Como será que ele surgiu? Agora o que eu sei é que sempre está escorrendo algo ali dentro, deve ter alguma vertente ou algo assim”.


Gráfico 2 – O Buraco Fundo é uma história fantástica ou mesmo sobrenatural?

Fonte: elaborado pela autora


Percebe-se, no geral, uma resistência dos entrevistados em reproduzir, com veemência, alguma lenda do “Buraco Fundo”. Todavia, somente na faixa etária mais jovem os entrevistados não acreditam que o fenômeno esteja relacionado a algo sobrenatural ou fantástico. Esse dado reforça a relação da história oral com o contexto de sua criação, podendo ser “esquecida” ou mesmo “perdida” no tempo da oralidade, em que os jovens simplesmente deixaram de reproduzir este tipo de cultura para as futuras gerações.


CONCLUSÃO


À primeira vista, a distinção entre a entrevista semidirigida e uma conversa informal parece parca. Todavia, em um olhar mais atento, percebe-se que a entrevista semidirigida possui um direcionamento dado pelo roteiro, há mediação ou intervenção de algum instrumento (gravador, caderno, caneta etc.) e sempre o esforço de voltar ao objetivo da pesquisa. Os diálogos que se estabelecem no cotidiano possuem forma livre e, muitas vezes, os temas se misturam e o registro feito é apenas o que os sujeitos envolvidos no processo comunicativo captaram da interação. Não há como negar a influência moderadora do pesquisador ou dessas espécies de registros na percepção dos interlocutores. Os elementos técnicos, gravador ou caderno de anotações, podem levar a entrevista para o campo de outros gêneros do discurso. Mas, em um ou em outro, na apresentação pública consciente ou na expressão oral espontânea, é possível ouvir e interagir com a história oral.

De todo modo, é inegável que a fala é mais ativamente estimulada pelos canais diferentes de coleta e transmissão. E daí que surge a relevância desta pesquisa, no que tange ao resgate da história oral da cidade de Restinga Sêca. Assim sendo, é válido salientar que, embora se deseje registrar a história oral do “Buraco Fundo”, é impossível fazê-lo com fidedignidade, pois sua mera reprodução escrita altera a originalidade de seu discurso. É nas intervozes, no múltiplo, nos amontoados de lembranças, no silêncio, nas expressões faciais e corporais, no tom da voz, na eloquência do narrador, que a história oral do “Buraco Fundo” de Restinga Sêca floresce. Nestas páginas, há mera pretensão de retratar essas visões, mas sem limitá-las ou esgotá-las.

É irônico pensar que a história oral se difunda por meio da palavra escrita, por ser uma prática no âmbito da voz. Contudo existem muitas maneiras de traduzir o oral em escrito. Aqui, optou-se por coletá-lo através de entrevista semidirigida, transcrever, editar, escrever, publicar. Não há transcrição de todos os propósitos, mesmo tentando transcrever a “exatidão” da fala, pois em determinados momentos os sons reais da palavra falada podem ser inacessíveis à escrita e, portanto, ao leitor.

Outro ponto que se destaca é que a performance oral também se perde, fica no tempo passado e, a cada reprodução falada, apresenta-se como algo novo. Por exemplo, os entrevistados com 80 anos ou mais confirmaram já terem ouvido ou reproduzido lendas acerca do Buraco Fundo, porém não mais recordavam do seu conteúdo. A ausência de registro exato, inerente à fala, ao mesmo tempo que caracteriza a história oral, pode ser responsável por sua perda.

Espera-se, portanto, que os textos das entrevistas aqui transcritas falem, que sejam lidos no exercício livre da imaginação do dito, do dialógico, da interação. O modo de se perceber a narrativa depende da maneira como se ouve e a forma de ouvi-la e interpretá-la indica como será vislumbrada na página escrita.

Por fim, fecha-se este artigo unindo escrita e oralidade, referindo-se à música “Buraco Fundo”, escrita por Derli Lemes: “aqui vai um convite a todos recantos do mundo. Venha visitar Restinga, conheça o Buraco Fundo”.



REFERÊNCIAS



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[Recebido: 11 mai. 2020 – Aceito: 24 mai. 2020]


A ROMARIA NO CÍRIO DE NAZARÉ: INTERAÇÃO SOCIAL, RECIPROCIDADE E UM OLHAR ETNOGRÁFICO SOBRE A PEREGRINAÇÃO



THE ROMARIA IN CÍRIO DE NAZARÉ: A SOCIAL INTERACTION, RECIPROCITY AND AN ETHNOGRAPHIC VIEW AT PILGRIMAGELOOK AT PILGRIMAGE



Luiz dos Santos Guilherme39

https://orcid.org/0000-0002-5460-7663


Danieli dos Santos Pimentel40

https://orcid.org/0000-0002-9866-2517




RESUMO

O artigo estuda a peregrinação de romeiros, evento que antecede o Círio de Nazaré, festa sagrada e de cunho popular da região Norte. Dentro desse contexto em que diversos saberes transitam na cultura, consideramos que a festa, e tudo o que gira em seu entorno, carrega uma potencialidade de interação social, por meio do catolicismo popular, que une pessoas de diferentes visões e credos, culminando em uma pluralidade de trocas simbólicas, além da socialização, promovendo a reciprocidade entre os envolvidos. Para tanto, na tentativa de entender a romaria como um fato social e a prática do caminhar no território do sagrado, objetivamos estudar a romaria na voz dos peregrinos, observando, ainda, a importância das peregrinações de romeiros que saem de suas casas e viajam dias e dias por estradas com o destino à cidade de Belém-PA; muitos desses romeiros caminham para pagar promessas, enquanto outros fazem o mesmo trajeto no sentido de reafirmar a fé e a crença na padroeira do Círio. Visto dessa maneira, as interações sociais tomam a forma de um importante fenômeno ritualístico, com base na reciprocidade, fruto das ações coletivas dos envolvidos na caminhada.


Palavras-chave: Romaria. Interação social. Reciprocidade. Pesquisa etnográfica.


ABSTRACT

The article studies the pilgrimage of worshipers, an event that precedes the Círio de Nazaré, a sacred festivity from popular attribute of the northern region. Inside of that context where several knowlegdges travel go around in the culture, we considered that the celebration, and everything rotates around it, carrying a social interaction potentiality, be through the popular Catholicism, it unites people of different visions and isms, culminating in a plurality of symbolic changes, besides the socialization, promoting the reciprocity among them involved. Thereforefore, in an endeavor to understand the pilgrimage as social fact and the practice of walking in the territory of the sacred, we aim to study the pilgrimage in the voice of the pilgrims, noting, still, the importance of pilgrimages who leave their homes and travel so many days by roads with destination to Belém-PA city. Many these pilgrims go on foot to pay out promises, while others course the same path in order to ratify the faith and belief in the patroness of Círio. Seen like that, the social interactions take on the form of an important ritualistic phenomenon based in the reciprocity from collective actions of people involved in the walking.


Keywords: Pilgrimage. Social Interation. Reciprocity. Etnographic researching.



O INÍCIO DA CAMINHADA


Esse trabalho surgiu em função de um olhar sensível e atento sobre o caminhar dos romeiros durante a semana do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, na cidade de Belém-PA. Isso nos leva ao mês de outubro, num fim de tarde, quando caminhávamos pela Avenida Almirante Barroso, uma das avenidas principais da cidade, em que surge um grupo de romeiros, em procissão, rumo à Basílica de Nazaré e que, nessa época do ano, chegam em peregrinação para a festa do Círio, enquanto outros desejam apenas pagar suas “promessas”. Nesse âmbito, com o objetivo de tratar do tema da romaria, a pesquisa foi se delineando de forma etnográfica. Inicialmente, pensamos em tratar do tema do Círio como um fato social total, ou seja, como algo que diz respeito especialmente à cultura dos paraenses; todavia, como o Círio já é um tema bastante estudado, partimos para uma delimitação na tentativa de abordar um assunto mais específico desse vasto evento religioso.

Assim, optamos em dar destaque ao caminhar dos romeiros, ou seja, à romaria que, a nosso ver, é mais um dos elementos que compõem a festa religiosa, e não menos importante nesse contexto, já que o Círio é celebrado em várias etapas, sendo a viagem empreendida pelos promesseiros como parte constituinte desse evento41. A partir dessa delimitação, com o foco nos romeiros, iniciamos o trabalho de pesquisa de campo e coleta de dados, de início, fazendo um percurso inverso, começando as primeiras observações no entorno da Basílica, no bairro de Nazaré, observando a festa e seu entorno e coletando depoimento dos romeiros. Dessa forma, seguimos para o centro principal da festa no dia onze de outubro de 2018, às vésperas do “Natal dos Paraenses”42.

Durante o trabalho de campo, conversamos diretamente com uma das coordenadoras do Círio, integrante da Pastoral da Acolhida; essa pessoa nos forneceu as primeiras informações sobre a lógica de acolhimento e de funcionamento da Casa Plácido: essa instituição é responsável por acolher e atender os romeiros no fim de suas jornadas; é nesse local que os romeiros são recebidos e atendidos, e onde têm acesso a alimentação, repouso, cuidados médicos, massagens e lavagem ritual dos pés, sendo este último considerado um ritual sagrado43 muito importante, segundo a tradição católica cristã.

Em seguida, visitamos a Casa Plácido, guiados pela senhora da equipe de acolhida que nos auxiliou no local, explicando-nos as regras de funcionamento do referido espaço. Surpreendemo-nos com o inusitado, pois, como paraenses, nos sentíamos como turistas em nossa própria cidade, já que, até aquele momento, desconhecíamos os fatos que ocorrem antes do Círio de Nazaré; nessa mesma noite tivemos a oportunidade de participar da cerimônia – aberta ao público, na Praça Santuário – de apresentação do Manto Sagrado da imagem peregrina.

Mas, antes da missa, percorremos diversos espaços da Casa Plácido, e presenciamos várias etapas da chegada e do acolhimento dos romeiros. Como todos que adentravam ali, nós fomos bem recebidos e convidados a participar da acolhida. Depois, seguimos com a equipe de alimentação para sentar à mesa e comer o que estava servido a todos que ali chegavam. Foi nesse mesmo local que fizemos o primeiro contato com um de nossos entrevistados, o líder do grupo “Pedaladas da Fé”, do município de Bragança, que faz esse percurso ciclista há 18 anos, segundo as informações que nos foram repassadas por meio da entrevista, da qual trataremos mais adiante.

Saindo do local, realizamos uma caminhada no Parque de diversões ITA para observar outro elemento constituinte da festa: a manifestação do lúdico encenado nos brinquedos onde as famílias se divertem; na manhã seguinte, voltamos para a Avenida Almirante Barroso, na altura do Bairro do Marco, entre as travessas Mauriti e Barão do Triunfo. Escolhemos essa avenida porque ela é considerada a principal rota de acesso à cidade de Belém, e por onde passam todos os romeiros. Podemos dizer que, nesse momento, iniciamos a segunda etapa da pesquisa, dessa vez, entrevistando um número significativo de peregrinos.

A pesquisa é etnográfica e se deu através da observação participante e entrevista aberta. Tida como um importante método da antropologia, a etnografia se funda na observação participante (observação intensiva em campo), que envolve a recolha de dados e materiais. Essa visão surge, principalmente, em seguida aos estudos de Malinowski (1976), em seu clássico livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental, que descreve a experiência e o contato com os “outros” nos seus próprios termos, ou seja, vivendo com os povos distantes com o objetivo de descrever e interpretar a cultura dos chamados povos distantes; sendo assim, o autor legou para a antropologia o método da observação direta e atenta dos acontecimentos da vida cotidiana e que, por sua vez, se converterá em uma descrição pormenorizada de como vivem esses povos, ao mesmo tempo em que, imerso na vida dos “outros”, observa cada detalhe do cotidiano dos nativos: o viver, o habitar, o morar, alimentar etc. Dentro dessa perspectiva, o etnógrafo deveria sair de sua zona de conforto e ir ao encontro do “outro”, respeitando os seus saberes e os seus modos de viver.

Desse modo, realizamos a entrevista em plena caminhada dos peregrinos e romeiros. Nesse trajeto, iniciamos algumas entrevistas durante o trabalho de campo, que foi onde coletamos os dados que serviram de material para análise. No total, entrevistamos cinco pessoas, sendo uma integrante da romaria dos ciclistas; três romeiros (sendo uma mulher e dois rapazes); mais um guarda integrante da guarda do Círio, que resolvemos entrevistar para melhor entender o significado da romaria. Destacamos, ainda, que todas as entrevistas foram realizadas durante a romaria; assim, buscamos acompanhá-los (romeiros) e entrevistá-los durante o percurso. Em meio a tudo isso, além das entrevistas, fizemos registros fotográficos e a gravação de alguns vídeos, tentando, ao máximo, coletar informações que pudessem enriquecer nosso trabalho, após uma vivência in loco, no sentido de realizar uma observação participante, para compreender esse momento considerado pelos romeiros como uma “renovação da fé”.

Alguns autores, como Malinowski (1976), Mauss (2003), Augé (1994), dentre outros, compõem grande parte da reflexão teórica desse artigo. O primeiro autor nos auxiliou a pensar de forma etnográfica o exercício de ir a campo e observar o que se passa; já o segundo, ajudou-nos a entender, com base no conceito de reciprocidade, o fenômeno das trocas simbólicas e das interações sociais; o terceiro autor possibilitou fazer uma leitura dos lugares festivos e de peregrinação como sinônimos de “não-lugares”, espaços que o autor considera como uma espécie de passagem, onde a vida é ressignificada pelas ações e fluxos humanos. Os demais autores, que aparecem ao longo do texto, ajudaram de forma muito significativa a desenvolver um olhar atento paras as diferentes formas de interações sociais.

Nos tópicos que compreendem a análise dos dados, utilizamos os nomes fictícios para cada um dos entrevistados, distribuídos da seguinte maneira: entrevistado 1; entrevistado 2; entrevistado 3; entrevistado 4, e assim por diante, além do depoimento feito por um guarda do Círio, que será feito separadamente; já a seção seguinte será intitulada de Romaria, devido à importância e significado desse evento que antecede o dia do Círio. Alguns materiais de cunho fotográfico foram realizados durante o trabalho de coleta em campo, enquanto outros foram retirados de alguns sites, com indicação da fonte.


A CIDADE EM ROMARIA


Antes de adentrarmos na análise propriamente dita, consideramos oportuno explicar o significado de Romaria. De acordo com Cascudo (1998, p. 790), as romarias “são centros de interesse folclórico pela variedade dos elementos convergentes, danças, cantos, alimentos, indumentárias, sincretismo religioso”. Além disso, sobre suas origens, o autor explica que, historicamente, “os portugueses trouxeram a tradição das romarias para o Brasil”, tendo como um dos centros mais importantes, o Círio de Nazaré, em Belém. Como podemos observar, a romaria corresponde a uma peregrinação, que é encetada por pessoas, e tem a ver diretamente com a questão do sagrado, já que possui um fundamento religioso e, além disso, geralmente o percurso se dá em direção a um lugar considerado sagrado. A peregrinação está intimamente ligada a uma festa religiosa, em que os peregrinos se encaminham para a adoração de um símbolo tido como sagrado, no caso específico, a imagem da Padroeira de Nossa Senhora de Nazaré; um dos “guardas” de Nazaré explicou como essa etapa se organiza:


[...] vim aqui explicar para vocês em relação ao Círio de Nazaré e como acontece em romaria, vamos dizer. Na sexta-feira ela tem a missa de manhã, aí ela sai às oito horas em peregrinação de carro, que se chama romaria rodoviária e ela vai até Marituba, findando dentro da Cidade Nova e ficando lá na Igreja até de manhã, sendo que de manhã ainda tem continuidade até o Círio, até Icoaraci, que vai para o Círio Fluvial, chegando numa faixa de onze horas ou meio dia na escadinha, e, no sábado, se continua com a moto romaria até o Colégio Gentil pra justamente no sábado, cinco horas, começar a missa pra sair já o traslado no sábado à noite, do Colégio Gentil até a Igreja da Sé, que vai chegar numa faixa de onze horas da noite de sábado pra, de manhã cedo, no domingo, ter a missa e após a missa sair em procissão que o Círio é no domingo.


Vimos que há uma sequência lógica que faz parte da organização do Círio, e as coisas vão acontecendo de forma encadeada, precedida sempre pela romaria, até chegar ao Círio fluvial, para culminar na procissão do Círio, que ocorre todos os anos, no segundo domingo de outubro. Dentre outras coisas, observamos que toda cidade se envolve de forma direta e indiretamente na festa do Círio. Trata-se de uma celebração que dura, praticamente, um mês ou mais, a contar desde o momento em que as pessoas começam os preparativos para o mês de outubro, como bem disse a senhora que nos acolheu no primeiro dia de nossa visita ao Santuário de Nazaré, e, especificamente, na Casa Plácido, referindo-se a todos envolvidos que trabalham, coletam, doam, fazem bingos e rifas para levantamento de fundos para garantir as despesas do espaço que recebe os romeiros.

Além disso, observamos também que toda a cidade se modifica, a começar pelo aspecto visual e decorativo de alguns lugares, onde é visível a intervenção, desde o início da cidade, até os bairros mais distante de Nazaré. Desse modo, é possível perceber signos que remetem ao sagrado como, por exemplo, as casas, que ficam enfeitadas para receber a imagem peregrina; é possível ainda observar uma maior mobilização social e religiosa por meio de novenas e rezas de terços, momento em que as pessoas se unem em prol da fé, recriando diversos espaços socializadores, e o imaginário cultural se realimenta, mantendo-se como uma tradição viva. Dentro desse contexto, as fronteiras entre as religiões se solapam, culminando numa espécie de união e respeito entre pessoas de diferentes credos. Então, o Círio é uma força que move as pessoas, fazendo com que haja maior interação entre os católicos e os não católicos. A configuração do espaço citadino já é também outro, desde o trânsito livre entre espaços mais centrais da cidade, bem como os mais periféricos; pessoas de diferentes classes sociais se agregam por um único propósito, a fé, todas exercendo uma troca mútua e uma reciprocidade marcante.

Assim, a cidade recebe um grande percentual de visitantes, ao mesmo tempo em que a sua paisagem sofre profundas transformações, pois as casas e as ruas ficam mais coloridas e festivas, diversos signos do imaginário religioso são expostos nas ruas, os artesãos expõem seus trabalhos. A geografia da cidade se altera com a circulação de pessoas, bens e serviços; aumenta a procura e a oferta de produtos e artefatos religiosos, os brinquedos de miriti enfeitam e colorem muitos espaços; alimentos típicos da culinária local dão um aroma muito marcante e peculiar desse tempo, alguns ambientes urbanos ganham mais cores com signos da cultura e da religiosidade local. É possível observar que um número maior de pessoas circula por esses espaços, principalmente nas proximidades do bairro de Nazaré e no centro histórico da cidade.

Observamos que todas essas mudanças na paisagem local interferem diretamente na maneira como as pessoas se relacionam, se socializam; as casas se enchem de gente, as famílias aproveitam para celebrar a festa e fazer confraternizações. As ruas ganham um novo significado, já não são mais apenas locais de passagem, mas pontos de encontros entre diferentes pessoas, fluxos contínuos, intensificando a vida urbana, algo que não é visto durante todo o ano. Esses lugares transitórios, ainda que de passagem, estabelecem durações e temporalidades, são espaços e cenas de confluências onde muitos aspectos diferentes convivem em harmonia e em que as tensões (as de cunho social e religioso) desaparecem no sentimento sagrado que envolve as pessoas.

Por essa perspectiva de mudança da paisagem, é possível estabelecer uma proximidade com o pensamento de Augé (1994), com o conceito de “não-lugares”, ou “espaço antropológico”, expressões essencialmente criadoras de identidades, “fomentador de relações interpessoais”. Ou, ainda, no sentido de demarcar como determinados espaços da cidade nesse período do Círio se configuram como esses “não-lugares”, já que muitos espaços ganham novas cores, os ambientes urbanos de Belém ficam ainda mais agitados com a circulação de pessoas, de romeiros, ciclistas, lembrando que as romarias são feitas por diversas formas de caminhar e de se chegar à cidade, seja por caminhada a pé, através de bicicletas, motos, carros. Assim, os fluxos urbanos se intensificam ainda mais, um novo tempo e um novo espaço se apresentam no cotidiano, “as transformações espaciais, a mobilidade social, a troca de bens e serviços e um enorme fluxo de informação” (AUGÉ, 1994, p. 111). Esse novo fluxo citadino altera não só a paisagem, mas também a relação com o tempo, ou seja, a duração da festa do Círio, que tem um tempo para começar e para acabar, atravessando algumas semanas e, após isso, a cidade volta a sua dita normalidade. Assim, alguns espaços voltam ao vazio e ao silêncio, como se a cidade vivesse esse ciclo anual de renovação, de nascimento e de morte; é aí que o tempo áureo da festa realça a tradição religiosa, reacende o espírito de trocas simbólicas e renovação da fé cristã, segundo essa tradição.

Mesmo que Augé analise, em especial, o fenômeno da chamada supermodernidade44, preferindo esse termo ao invés de pós-modernidade, o autor acredita que a “produção desses não-lugares”, a exemplo, de aeroportos, vias expressas, salas de espera, centros comerciais, estações de metrô, supermercados etc., engendram novas formas de relação com esses espaços, no caso da cidade de Belém, as reflexões do antropólogo ajudariam a recompor um quadro próximo do que acontece na cidade de Belém nessa época do ano, a exemplo dos aeroportos, terminais, praças, bairros e vias expressas, que servem como espaços de circulação de bens e serviços, espaço de muita gente; por exemplo, as ruas onde a festa acontece, desde a romaria, trasladação até o roteiro final que o Círio percorre, todos esses espaços se interligam (ruas, avenidas, rios), e fronteiras entre centro e periferia se diluem. Durante o trabalho de campo, e nos vários momentos de acompanhamento das romarias, observamos que tudo muda, até mesmo o fluxo de algumas importantes avenidas da cidade, como a Avenida Almirante Barroso, que vira um novo espaço. Em alguns momentos, o trânsito é interrompido; até mesmo a pista do BRT (via de circulação de ônibus) se transforma em espaço de peregrinação.



A ROMARIA E A INTERAÇÃO SOCIAL


Como pressupõe Simmel (1983), a sociedade em si é resultante de “interações sociais”; todavia, não é apenas a interação que garante que se forme o todo social, em outras palavras, a sociedade. Isso significa dizer que parte desse conteúdo precisa ser muito bem “representado”. Para tanto, precisa seguir um conjunto de parâmetros que “orientariam as diferentes formas de interação”. De maneira ampla, vale dizer que a sociedade por si só é uma grande teia da produção humana, das pessoas que dela fazem parte, contribuindo para que determinados valores e regras passem adiante. Dentro dessa teia de produção de sentidos, os indivíduos vivem atrelados uns aos outros e, para muitos sociólogos, é impossível viver isoladamente (em sociedade), pois tudo depende da interferência de outros, ou mesmo de determinados grupos. É nesse sentido que a socialização se estabelece como uma constante troca entre as pessoas, sendo a socialização permanente e por toda a vida.

Dentro dessa visão, outros estudiosos, como Goffman (2011), por exemplo, defendem que a chamada interação social é desempenhada conforme os papéis e ações de determinados grupos sociais; dito de outra forma, a interação social se dá no âmbito do social e nas situações variadas do cotidiano, em espaços historicamente já definidos, e no interior desses mesmos espaços ocorrem diversos eventos, dentre eles, os rituais intrínsecos das relações humanas, permitindo, assim, todo tipo de manifestação da cultura. Tomando como referência essas considerações, e também as ideias de Simmel e Goffman, entendemos que a interação social na romaria é algo que se encontra muito no Círio de Nazaré, e, portanto, a romaria estabelece várias formas de manifestação do humano, seja por meio do sentimento religioso, ou por meio do pertencimento cultural da festa, e tudo o que ela reúne em diferentes práticas sociais, podendo acontecer de diversas formas, como descritas nas entrevistas.

Uma das perguntas que fizemos aos romeiros foi: na estrada, durante essa caminhada, há o apoio de outras pessoas envolvidas? Alguns romeiros afirmaram que sempre “há essa ajuda”, e essa ajuda poderia ser por meio de incentivos, como também de doação de alimentos e água, como também há a presença de voluntários da equipe médica. Um caso muito interessante é a solidariedade de uma das igrejas protestantes conhecida em Belém, em que seus fiéis se disponibilizaram a ajudar, convidando os católicos para entrar, descansar, tomar água e lanchar. Os dois trechos das entrevistas que se seguem pontuam exatamente isso:


É, cada um tem um modo de ajudar, né! É bonito de ver, como eles puderem ajudar eles ajudam, seja com um pacote de água, seja com 10 reais, 20 reais que é para nossa alimentação, para o próprio remédio também, que a gente precisa muito de remédio, é um modo de agradecer, como eles não pode vir com a gente [...] pensam: pelo menos vou ajudar com um pacote de água para eles chegarem lá e beber, forma de apoiar, solidariedade. (ENTREVISTADO 3).


Nós temos muita ajuda, eles ajudam bastante, dão água, café, mingau, e tem muitas paradas a todo momento, tem parada para massagem, e toda assistência médica. [...] Eles colocam tendas brancas em vários pontos da estrada. [...] Apesar da gente ser da mesma cidade e no grupo poucos eu falo, e tipo esse é meu primo, essa eu conheço, e ela é minha prima, sabe, com muitos eu não falava, mas a caminhada em si, ela criou esse vínculo de amizade, fraternidade, de poder fazer massagem um no outro, vai criando aquele dialogo, aquela amizade, e aquela caridade de poder ajudar ao próximo. (ENTREVISTADOS 2 e 4).


O entrevistado 2 comenta que ele resolveu renovar o seu propósito do ano passado que era voltado para a família na sua igreja em Marapanim, sua cidade natal, e colocou algo mais acima, que foi o seu estudo “técnico em enfermagem”, além de seu namoro de 8,5 anos; diz ainda que faz a caminhada muito mais por isso, para que possa fortalecer a cada dia, e que possa seguir em frente, firme e forte, “tocando” sempre a sua fé acima de tudo. Já o entrevistado 4 comenta que é sua primeira caminhada para Belém, que fez uma promessa para sua neta, porque ela tem uma doença nos ossos “síndrome de paget”, e ela estava ficando com uma perna menor do que a outra; além disso, diz que se “apegou” com nossa senhora para curar sua neta. Ainda sobre o efeito da interação social, a solidariedade é algo que aparece muito na fala dos entrevistados, por exemplo, um dos romeiros de Marapanim comentou sobre os preparativos que antecedem a saída da romaria com destino a Belém:


Na alimentação, a gente sai mais de um mês pedindo alimentação em Marapanim, aqueles apoio né! Eles dão todo apoio que deram de comida vem com umas pessoas que, como que posso falar...assim, que organizam né? Para chegar num ponto que é estratégico, para chegarmos e comer, daí a gente come, deita, se tiver que dormir, dorme, se não tiver, a gente anda (ENTREVISTADO 3).


É visível, então, que a romaria estabelece não só convivência dos peregrinos em viagem, mas também estabelece a troca, a partilha e a ajuda mútua durante o trajeto. Ao final do percurso, o grupo não pode chegar desfeito, ou seja, o grupo tem que esperar todos os seus integrantes para poder adentar no ritual de lavagem dos pés. Outro importante exemplo, em que a interação social se apresenta, é durante à lavagem ritual dos pés, que acontece ao final do percurso, no momento em que os grupos chegam e são recebidos por uma equipe especializada em cuidados médicos no Centro Social de Nazaré, a Casa Plácido. Nesse local, as pessoas – os romeiros de diferentes grupos e localidades, assim como visitantes são recebidos pela referida equipe – recebem os devidos cuidados, bem como alimentação e descanso.

O mais curioso é que os visitantes e pesquisadores recebem os mesmos atendimentos (se quiserem) e a alimentação é servida de forma igualitária: “isso aqui é para todos que chegam a esse local”, disse a pessoa da equipe de atendimento. Como bem observamos, esse sentimento de reciprocidade, acolhimento e interação social se concretiza no momento em que as pessoas se voluntariam para lavar os pés dos peregrinos; vale ressaltar que essa ação, segundo o catolicismo, simboliza o exemplo de Jesus Cristo, quando também lavou os pés de seus discípulos.

Essas fotos marcam o momento em que as pessoas se encontram e se reúnem para conversar e vivenciar esse momento; algumas pessoas celebram o fim da caminhada, outros interagem fortalecendo ainda mais o laço de fé que os une todos os anos. O trânsito livre de diferentes pessoas, promesseiros, peregrinos, viajantes e católicos, fundem-se com as diferentes cores e sentimentos da festa, e de tudo que ela proporciona em termos de diferentes trocas físicas e simbólicas.



A ROMARIA E A RECIPROCIDADE


A romaria é um momento de trocas simbólicas entre as pessoas que vêm ao Círio. Nesse aspecto, analisamos como determinados eventos durante o percurso dos romeiros afetam diretamente, não apenas o cotidiano da cidade de Belém, mas também de outros lugares distantes da capital, ou seja, todos os que direta e indiretamente se envolvem nessa prática. Isso se confirma no depoimento de alguns peregrinos que foram entrevistados com destino à Basílica. Foi observado que entre esses peregrinos, quase todos, fazem esse percurso para pagar alguma promessa, em outras palavras, ao mesmo tempo em que são peregrinos em romaria, também são promesseiros. Alguns já fazem o mesmo trajeto há alguns anos, como no caso do primeiro entrevistado – um ciclista de Bragança – que cumpre a promessa de vir com seu grupo em romaria todos os anos, no total, segundo o que relatou é que já faz a romaria por dezoito anos consecutivos:


[...] sou de Bragança, 226 km longe da capital, e a Pedalada da Fé surgiu há 18 anos. Passei por um acidente e eu fui... passei por uma cirurgia da minha perna e segundo os médicos jamais eu ia ter minha atividade normal, e era período de Círio que eu tava no hospital, e eu fiz promessa pra Nossa Senhora, que eu voltasse a minha atividade normal, e eu vinha de bicicleta pagar promessa pelo Círio. Aí foi que passei três anos ainda é..., com problema na perna, como a perna não se movimentava, e depois consegui um simples remédio caseiro e começou a mover a minha perna, eu acredito que foi Nossa Senhora que enviou essa pessoa pra eu conseguir...hoje, minha atividade é normal, eu pedalo, corro e ainda fiquei com sequelas mas, eu andando se calça comprida [...] ninguém sabe que eu tenho essa sequela, que já passei por essa situação, então depois disso, há 18 anos que a gente faz isso, todos os anos a gente vem, primeiro ano que nós saímos de Bragança é... foi no dia de hoje, 11 de outubro de 2001. E hoje, já faz... hoje, são 11 de outubro de 2018, então são 18 anos que a gente faz isso consecutivamente. (ENTREVISTADO 1).

O entrevistado 1 comenta que a ideia de fazer o trajeto de bicicleta, algo que partiu de uma promessa individual, acabou agregando outras pessoas que resolveram participar; algumas outras pessoas, certamente, por motivo de alguma promessa ou apenas com o objetivo de reavivar a fé e a devoção. Assim, relembra que a ideia “começou com três pessoas, e hoje só o nosso grupo vem quarenta e oito, fora as outras pessoas que vem muito de bicicleta, agora vem gente andando”, referindo-se aos outros grupos em caminhada pelas estradas. Ficou evidente que muitos desses romeiros chegam a Belém depois de passar muitos dias em viagem, alguns deixam as suas famílias por vários dias e se juntam em prol da caminhada. Um desses grupos, por exemplo, é um coletivo da cidade de Marapanim, que já está na décima quinta “caminhada da fé”. Segundo depoimento de umas das pessoas que compõem o grupo, no total, foram quase cem pessoas que fazem esse percurso, o grupo já estava a quatro dias na estrada e com o apoio de todos, inclusive de famílias que moram em lugares por onde os romeiros passam os recebem e ajudam com a alimentação, com locais que servem de abrigo onde os grupos pernoitam, descansam e recebem ajuda para depois seguir em viagem.

A reciprocidade é um conceito que, à luz do pensamento de Mauss45, envolve, essencialmente, trocas e, portanto, diz respeito a tudo o que o coletivo desenvolve mutuamente, aquilo que se troca e se contrata, por exemplo, dentro das relações de troca há uma gama de “bens e riquezas” (que podem ser “bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente”), mas também os “banquetes, os “ritos”, as “danças”, as “festas”, as “feiras” e em todos esses exemplos circulam bens físicos e simbólicos que reafirmam as tradições e a permanência dos contratos sociais. Visto por esse ângulo, a festa e a ritualística da festa do Círio envolvem determinados aspectos de troca; as pessoas trocam não somente experiências de vida ao caminhar juntas, ao estabelecer a ajuda mútua nos vários dias de caminhada pelas estradas; ao mesmo tempo, também recebem a ajuda de outros (também de forma voluntária) que não estão envolvidos diretamente no caminhar voluntário, mas que se envolvem na festa e no rito, exercitando a solidariedade; é nesse momento que as pessoas dão e trocam o que têm, mas também reafirmam os laços religiosos e familiares nas reuniões de família para festejar, rezar, comer e beber. Ou no simples ato de passar na “vendinha” do artesão e comprar um regalo (presente), o que chamam de “comprar uma lembrancinha” para quem não veio ao Círio ou está distante, ou mesmo ir ao antigo largo comprar pequenos objetos-signos religiosos que reforçam a religiosidade; ao mesmo tempo estabelecem-se relações de reciprocidade, relações de doação e recebimento.

Teoricamente, dentro daquilo que Mauss chamaria de fenômeno social total se constitui a vida social sempre em movimento (se usarmos a metáfora do próprio caminhar e da mobilidade social envolvida nessa ação física), a prática social e as interações sociais e dentro desse contexto, convivem as mais diversas instituições religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares e, ao mesmo tempo -, econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo [...] sem contar com os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que estas instituições manifestam. De todos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas sociais em movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços, profundo e isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações.

A reciprocidade se torna, então, um dos elementos marcantes desse período, e isso fica evidente tanto nas entrevistas como no trabalho de campo. O que foi observado só demonstra como as pessoas se envolvem direta e indiretamente na festa, reafirmando reciprocidades com base nas interações que ocorrem em diferentes espaços.



O FIM DA PEREGRINAÇÃO


Entendemos que o Círio de Nazaré é uma celebração de fé, amor, alegria, e um campo propenso à interação social; é uma festa religiosa que quebra as barreiras da vida, das religiões, das crenças, do egoísmo humano. É uma realização feita com muita honra como a promessa dos romeiros, em que eles acreditam, e têm a mais pura certeza que Nossa Senhora de Nazaré atende os seus desejos. O Círio é conhecido como a maior festividade de fé católica da América Latina, que ocorre todo segundo domingo do mês de outubro. Fiéis católicos, evangélicos e ateus seguem uma romaria, reafirmando uma tradição que já existe há muitos anos. Além disso, o Círio de Nazaré não é apenas o “natal dos paraenses”, mas sim um evento repleto de reciprocidade, onde peregrinos de toda a região caminham até a Basílica de Nazaré, para agradecer ou pedir por milagres alcançados, ou que ainda serão. E, durante esse caminhar, há ajuda de várias pessoas de diferentes credos. Ou seja, esse momento sagrado é de interação, solidariedade e trocas simbólicas, e fica marcado para sempre na vida dos romeiros, alguns, inclusive, dispostos a continuar a caminhada por muitos e muitos anos.

Fora todo esse sentimento de cooperação e interação entre os envolvidos no Círio, há um sentimento que influencia, de alguma maneira, até mesmo aqueles que não professam o mesmo credo, mas que entendem esse fenômeno como algo maior, como algo que faz parte da identidade e da cultura local, e, portanto, podendo ser visto como um fato social total: o Círio. Esse fator foi demarcado durante grande parte do trabalho de pesquisa de campo realizado para a escrita desse artigo; alguns fatores que, infelizmente, pelo recorte temático, ficaram de fora, serviram de aprendizado e experiência que passam do campo (do trabalho de pesquisa) para a vida. Nesse contexto, vale ressaltar a importância de estudar, pelo viés da sociologia, os fatos que compõem a sociedade, determinados grupos, segmentos religiosos e as mais diferentes formas de manifestações do humano que estão na base da cultura. E a romaria, como um desses signos da cultura religiosa, encetada na prática do caminhar, da viagem peregrina com destino ao local sagrado, representa muito bem o que as pessoas são capazes de fazer em nome de suas crenças. Por outro lado, até mesmo quem não está literalmente ligado, acaba se envolvendo de alguma forma, porque a interação social mexe com muita gente, faz as pessoas interagirem, estabelecendo, ainda, mais trocas e reciprocidades.

A pesquisa de campo nos possibilitou olhar para o fenômeno social religioso de forma atenta, cuidadosa e desprovida de preconceitos, pois não sabíamos o que iríamos encontrar em campo e, em muitos momentos, cada descoberta era também uma surpresa, por exemplo, saber e conhecer mais a fundo o que, de fato, é a romaria e o que ela representa para as pessoas que dela fazem parte; ao mesmo tempo, visitar a Casa de Plácido mostrou que, em muitos aspectos, muitos são estrangeiros na própria cidade de origem.





REFERÊNCIAS


AUGÉ, Marc. Não-lugares: uma introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994.


CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 17.ed. São Paulo: Global, 1998.


ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Trad. Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis: Vozes, 2011.


MALINOWSKI, Bronislaw C. Argonautas do Pacífico Ocidental. Trad. Anton P. Carr. São Paulo: Abril Cultural, 1976.


MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.


SIMMEL, Georg. Sociologia. (Org.). Moraes Filho, Evaristo de. Trad. Pavanelli, Carlos Alberto. São Paulo: Ática, 1983.



[Recebido: 27 fev 2019 – Aceito: 20 abr 2019]


AS REPRESENTAÇÕES DA LITERATURA ORAL NAS ESCULTURAS DE MESTRE NÊGO



THE REPRESENTATIONS OF ORAL LITERATURE IN THE SCULPTURES OF MESTRE NEGO




Carolina Reichert do Nascimento46

https://orcid.org/0000-0003-4522-3569


Rafael Sancho Carvalho da Silva47

https://orcid.org/0000-0002-1332-8959





RESUMO



Expomos, no início do texto, nossa abordagem de pesquisa sobre a vida e a obra do escultor Mestre Nêgo, residente em Barreiras, Bahia, a qual se institui a partir da análise da oralidade do escultor sobre suas vivências. Em seguida, nos debruçamos na relação entre sua produção artística escultórica, a qual possui aspectos intimamente ligados com a literatura oral. Por fim, analisamos três esculturas de lendas brasileiras do artista apoiados nos enredos das memórias relatadas ao longo de entrevistas realizadas na Casa das Artes, atelier do artista.


Palavras-chave: Escultura. História. Arte popular. Cultura. Lendas.



ABSTRACT


We expose, at the beggining of the text, our research approach on the life and work of the sculptor Mestre Nêgo, residing in Barreiras, Bahia, which is established from the analysis of the sculptor’s orality about his experiences. Then, we look at the relationship between his sculptural artistic production which has aspects closely linked to oral literature. Finally, we analyzed three sculptures of Brazilian legends of the artist based on the plots of the memories reported during interviews conducted at Casa das Artes, the artist's atelier.


Keywords: Sculptures. History. Popular Art. Culture. Legends.




INTRODUÇÃO


O texto que aqui apresentamos tem como intenção exibir questões relacionadas aos estudos sobre a vida e obra do escultor Mestre Nêgo48, os quais foram iniciados em 2015. Em princípio, nosso processo investigativo sobre esse artista popular - tido como uma das referências artísticas em Barreiras, Bahia, no Território de Identidade da Bacia do Rio Grande49 - vislumbra compreender sua produção artística, a qual está atrelada às questões da história e da arte. Para além disso, sua produção escultórica em madeira policromada desde sempre nos instigou, pois ela se instaura na diversificação de temas, atingindo aspectos da cultura em seu território de identidade. Com isso, nos direcionamos a uma pesquisa que observasse sua produção escultórica a partir da tríade “história-arte-cultura”, quando, nos propusemos compreender de que maneira tal conjunto possuía relação com a região em que o artista vive.

À medida que nos aproximávamos do escultor, também nos aprofundamos sobre o entendimento histórico e visual de sua produção artística, que se estimulava por meio de sua oralidade. Desse modo, paulatinamente, fomos assimilando a heterogeneidade de temas escultóricos e manifestações artísticas que se destacavam das falas de Mestre Nêgo. Por outro lado, também, havia o interesse do escultor de registrar sua obra. Ao mesmo tempo, em ambos cenários soaram problematizações, para as quais encontramos suporte em alguns autores como Alceu Maynard Araújo (2004), Câmara Cascudo (2012), Joël Candau (2014), entre vários outros que acentuam questões importantes no âmbito deste recorte de nosso estudo.

No entanto, nosso relato, a ser explanado ao longo deste texto, apresenta parte de um processo de investigação mais amplo e que, mesmo atrelado às questões metodológicas do campo de conhecimento da história e das artes visuais, ainda perpassa um caminho profuso de possibilidades de estudo e abordagens possíveis no âmbito da literatura popular.


AS CARRANCAS DO MESTRE CARRANQUEIRO, UM INÍCIO


Adentramos na pesquisa por meio de um recorte na vasta produção escultórica que, naquele momento inicial, foi bastante claro para nós - partiria das esculturas das carrancas elaboradas pelo artista Mestre Nêgo. As carrancas, muito tradicionais na região, são peças em madeira entalhada que pertencem à identidade cultural das populações que margeiam o Rio São Francisco em, praticamente, toda sua extensão. Além disso, a carranca, escultura lendária, utilizada nas proas das barcas que navegavam esse Rio, mesmo passando por algumas modificações com o passar do tempo, permaneceu como figura tradicional e identitária da região que, pelo estímulo de preservar sua feitura, os “escultores-carranqueiros” agregavam à peça suas próprias características formais. De todo modo, tais alterações não deixam de manter seus traços escultóricos, quando são priorizados os caracteres essenciais estabelecidos pela feição vampiresca, popular e lendária do sinônimo de afastamento de mau agouro. (PARDAL, 2006).

Segundo Lorenzo Mammì (2015, p.17), desde que as carrancas perderam a cena nas proas das embarcações, atingiram colecionadores e turistas talvez inebriados pelas misteriosas feições e o enigmático status que as cercam. De todo modo, Mestre Nêgo, com suas carrancas, adentra nesse universo escultórico da antiga figura de proa, assinando sua proposta composicional, a qual é trazida com ele desde os tempos em que residia em Juazeiro - uma das cidades pólo de carranqueiros na Bahia. Em uma das primeiras entrevistas gravadas, o artista nos revela que, ao chegar em Barreiras, em meados de 1970, já havia decidido tornar-se o carranqueiro do Rio Grande. Como havia “Guarany50 em Santa Maria da Vitória, Barreiras teria o véio Nêgo”. A partir dessa fala, nota-se seu desejo de instituir uma produção própria que expressasse a identidade da região do Rio Grande, na qual decidiu residir a partir da década de 1970.

Desse modo, compreender a figura da carranca elaborada pelo escultor nos fez perceber outros aspectos da sua obra. Por intermédio da carranca, Mestre Nêgo se lança no entalhe em madeira e, a partir disso, desdobra essa temática em outras tantas. Em vista disso, a própria carranca renasceu em outras variantes, como a Carranca-leão, Carranca-bode, passando a integrar novos materiais que afinam o estreito laço entre o popular e o erudito. Dessa maneira, pensamos que:

Nada impede, (...), que a arte popular se constitua numa categoria tão válida como a arte erudita ou tradicional, bastando para isso que se lhe busquem e estudem as raízes, as influências, as suas normas peculiares de criação e o seu sistema específico de valores. (SAIA, 2014, p. 231).



Posto isso, tomamos conhecimento de sua forte ligação com a natureza, tendo em vista que não foram raras as vezes em que saía para desbravar a Serra da Bandeira, coletando troncos de madeira, plantas e sementes com intuito de utilizá-los nas suas esculturas. O frequente cotidiano de caminhar nas matas, que carrega desde muito jovem, fez com que se aproximasse, de alguma maneira, da natureza aguçando sua percepção no meio ambiente das florestas do Cerrado baiano.



MESTRE NÊGO: ARTE, MEMÓRIA E LITERATURA ORAL

De qualquer maneira, ao avançarmos com os estudos acerca das esculturas produzidas por Mestre Nêgo, com o intuito de entendê-las, acabamos nos direcionando para uma aproximação com foco na compreensão de seus modos de vida, por intermédio das histórias contadas por ele. Ao mesmo tempo, compreendíamos que o próprio escultor seria um arquivo vivo, bastando sua permissão para desvelar seu amplo e inventivo mundo, a partir de sua autobiografia e, assim, assimilar os processos artísticos que o conduziram à linguagem da escultura. Dadas às questões de não existirem muitas publicações sobre sua biografia e obra, prontamente, elencamos a possibilidade de entrevistá-lo, em áudio, no decorrer das visitas que mantínhamos à Casa das Artes, localizada no Centro Histórico de Barreiras51 - espaço que foi utilizado como seu atelier por diversos anos.

Imagem 1 - Mestre Nêgo, na Casa das Artes.

Foto: Autora.



Ao ouvirmos suas inúmeras histórias, tivemos acesso as suas narrativas quando, várias delas, estavam atreladas às questões vivenciadas em momentos distintos de sua vida, entre juventude e idade adulta. Por consequência disso, revelou seu interesse em materializar tais figuras com intuito de presentificar as lendas que, por meio da habilidade de esculpir a madeira, pudessem ser exibidas aos mais novos. Assim, entre tantas imagens, o artista criou representações da Caipora, do Saci-pererê, do Lobisomem, do Pé de Boi, da Sereia, do Guariba, da Festa no céu, etc e, mais recentemente, do Nêgo D’água.

Desse modo, sua produção escultórica se torna valiosa, por estabelecer vínculos com a literatura oral que, também, contorna questões relacionadas à cultura popular. Segundo Araújo (2004, p. 500), “as lendas nada mais são do que episódios conservados na tradição oral popular, onde o sobre-humano, o maravilhoso estão presentes e sofreram deformações” e o que permanece desses costumes o escultor tenta aliar a elementos novos, porém, tentando manter certa fidedignidade do vivido à escultura da lenda que elabora. Para Alceu Maynard Araújo (2004, p. 497), Donald Pierson define o que ocorre com o “mundo mental” do indivíduo baseado em seu “sistema dinâmico e funcional” que se estabelece como um “reflexo da herança social (cultural)” trazida das “(...) instituições, ideias, atitudes, sentimentos e técnicas”. Com isso,

São representações vivas em sua mente, embora muitas vezes ele viva nos meios urbanóides ou nas grandes cidades; mesmo fora de seu meio original, a crença em mitos e lendas o acompanha, bem como as crendices, pois seu “mundo mental”, reflexo de sua herança social, não cresceu e não mudou muito. As crendices continuam vida afora na órbita de seu imaginário, são um objeto familiar. (ARAÚJO, 2004, p. 498)



Com intuito de se aproximar do conhecimento guardado no “mundo mental” pelo dizível, faz-se necessária uma “boa abordagem” para o melhor “entendimento e compreensão do pesquisado”. Para isso, permanece claro que Araújo designa tal incumbência à “liberdade que provocará até confissões, “destravará a língua” e uma verdadeira torrente de informações jorrará pela palavra - caminho pelo qual se penetrará nos arcanos do “mundo mental”” (ARAÚJO, 2004, p. 498), quando recorremos aos enredos explanados por Mestre Nêgo.

Para Mari Guimarães Sousa, a literatura oral é um caminho para os estudos da mentalidade popular e das formas de comportamento social constituídos culturalmente. Com isso:



(...) a Literatura oral pode contribuir efetivamente para o estudo e entendimento da mentalidade popular de uma localidade, pois a sua força viva e sonora se faz presente na voz anônima do povo. Ao mesmo tempo, denuncia comportamentos que são instituídos culturalmente. (SOUSA, 2006, p. 08)



A literatura oral se torna presente no acervo de Mestre Nêgo e, dessa forma, podemos analisar aspectos culturais da oralidade e memória manifestadas na obra do escultor. Entendendo que a literatura oral e os personagens da cultura popular se fazem presentes na produção escultórica do artista, lançamos, aqui, suas memórias, que possuem estreita relação com as expressões culturais materializadas na sua produção artística. De mais a mais, a partir dessas várias referências, que, por sua vez, estão no bojo da cultura popular, a literatura oral pode ser, assim, considerada como:



O esforço dos estudiosos em recuperar a arte verbal pertencente a culturas não letradas (primitivas ou tradicionais) tem suscitado a aparição de um curioso oxímoro para designar: literatura oral. De modo que o conjunto de mitos, lendas, contos, poemas ou canções tradicionais, etc., recolhidos diretamente de depoimentos orais vem constituir um ramo especial da literatura subalterna e quase sempre mal considerada, a chamada literatura oral. (OSTRIA GONZALEZ, 2001, p. 73)52



A memória de Mestre Nêgo está conectada, portanto, com suas experiências sociais e culturais. Em vários momentos, percebe-se seu anseio em “produzir traços” (CANDAU, 2014, p. 107), exibindo sua preocupação em manter algumas tradições culturais vividas em tempo passado, quando deixa pulsante uma “preocupação propriamente humana: inscrever, deixar traços, assinar, deixar suas iniciais, “fazer memória”” (CANDAU, 2014, p. 107). Por consequência disso, nos descreveu uma série de manifestações culturais com as quais se envolveu. Ao longo dos anos, foi bastante ativo na vida cultural da cidade, tendo organizado blocos de carnaval, criação de times de futebol, apresentações de quadrilhas juninas, festejo do Nazáro53 e, até hoje, mantém apresentações do Bumba meu boi. Quase sempre, em seus grupos culturais, privilegiou a participação de pessoas da comunidade em que vive estreitando, assim, laços de proximidade e amizade com sua vizinhança.

O aspecto individual de sua fala e obra também pode ser observada nessa relação da construção coletiva da memória, que é manifestada pela mão dupla, se considerarmos o que ele concebe de suas vivências. Alia-se a isso, também, a construção coletiva da memória acerca da transmissão de tradições diversas e dos elementos constituintes da literatura oral. Exposto isso, temos por entendimento que a memória também seja um fenômeno coletivo tal qual sublinhou Michael Pollak, ao lembrar do alerta de Maurice Halbwachs nas décadas de 1920 e 1930, sem negar o aspecto individual:



A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis. (POLLAK, 1992, p. 201).



No decorrer das entrevistas, com frequência, notava-se em sua fala a existência de um enredo rebuscado e traçado pelos personagens que povoam sua memória que nos induziam a determinadas obras. Desse modo, percebemos que, no conjunto da obra escultórica do artista, o Lobisomem e a Caipora são duas das figuras recorrentes. Ambos, revelando-se como parte de suas vivências, mas também integrado com uma série de costumes e códigos sociais referentes às características de comportamento dos que são vitimados pelos personagens ou dos que se transformam, como é o caso do Lobisomem.

O Lobisomem é um dos personagens mais populares entre aqueles das narrativas fantásticas. Presente em diversas histórias, sua figura também foi apresentada para além da oralidade, repercutindo em histórias da literatura de cordel e, até mesmo, nas produções hollywoodianas. O Lobisomem seria um ser-humano que se transformaria em uma mistura de homem com o lobo, um ser híbrido coberto de pêlos. De acordo com Luís da Câmara Cascudo, o Lobisomem está para um mito universal presente em diversas narrativas que remontam à antiguidade. Este personagem faria parte de diversas tradições culturais indo-europeias e africanas (CASCUDO, 2012, p. 401).

Mestre Nêgo também apresenta histórias sobre o Lobisomem, e o fato emergiu em suas falas que estipula ênfase ao recordar da narrativa, mesmo ressaltando que não viu a criatura. Por consequência disso, entre tantas esculturas, tal personagem ganhou uma versão pelas mãos do artista:





Era ali no lugar chamado Itapicuru, entre o Juazeiro e o Bonfim. E lá tinha um sujeito que transava com a mãe. Bêbado. Os dois bebia juntos aí acharam que tavam [inaudível – 09:28] junto. Iam pegar ele. [...] Deu três berros. Dentro de uma mata forte que não dava para ninguém sair correndo nos matos, só ele que era encantado. Daqui a pouco a turma: “passou por aqui?” “passou”. “Pega não! Pode desistir que não pega mais não.” (...) Eles estavam esperando porque eles julgavam que era o cara que tava virando. [...]. Foi assim que a gente viu muita inspiração, muita coisa. (ALMEIDA, 2015. (c))



Além da madeira, fez uso de outros materiais que foram doados a ele - como pêlo de animal, casco de boi e sementes de plantas, os quais foram utilizados para a confecção da peça. Com as doações, tornou visível a representação da imagem do Lobisomem, o mais próximo possível daquela gravada na memória da juventude, pelo “berro da criatura”.





Imagem 2 - Lobisomem, versão elaborada pelo escultor Mestre Nêgo.








































Foto: Autora.



Além do Lobisomem, a Caipora também está presente nas narrativas e na obra do Mestre Nêgo. Também muito popular, a Caipora, “como diz seu nome em nheengatu, caá, que significa “mata, mato”, e porá, “habitante, morador” (...), literalmente, torna-se um “bicho do mato”” (ALVES, 2017, p. 90) e é uma das figuras das matas mais conhecidas na literatura oral. A Caipora, no Norte e Nordeste, ainda, segundo Januária Alves, é “descrita como uma índia pequena e forte, coberta de pelos, com uma cabeleira grande, que faz qualquer coisa por fumo ou bebida.” Outro alimento também ofertado a ela pode ser “mingau sem açúcar nem sal”. Câmara Cascudo apresenta a Caipora54, a Curupira e o Saci, como figuras lendárias de origem indígena, contudo, longe de buscarmos suas origens, aqui pretendemos debater suas presenças na memória e na arte de Mestre Nêgo.

Cascudo descreveu a Caipora como uma Curupira com os pés normais (CASCUDO, 2012, p. 159). Na concepção deste autor, a Caipora:



é um pequeno indígena escuro, ágil, nu ou usando tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo fumo reinando sobre todos os animais e fazendo pactos com os caçadores, matando-os quando descobrem o segredo ou batem número maior das peças combinadas. (ibidem: 160).



Para Mauro W. Barbosa de Almeida, na análise sobre a Caipora o autor traz esse personagem como um elemento regulador dos usos que os caçadores e populações tradicionais fazem das matas. A caipora seria responsável por garantir o controle, proteção e o equilíbrio do ecossistema em que ela estivesse inserida (ALMEIDA, 2013). Enquanto que Mestre Nêgo afirma a existência da Caipora nas matas e que é possível ouvir a voz dela na serra da Bandeira ou em outras serras que permeiam a cidade de Barreiras. Ao ser questionado sobre o que é a Caipora e como ela trata as pessoas, ele nos respondeu que ela é como algo encantado apontando sua similaridade com outras figuras lendárias: - “É uma moça do mato. Um encanto. Tem o saci, tem ela, curupira, o lobisomem.” (ALMEIDA, 2015. (b)).









Imagem 3 - Caipora, s.d., versão criada pelo escultor Mestre Nêgo.







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Foto: Autora.



Ao descrever a escultura da Caipora produzida por ele, dá destaque à sucuri, presente na peça. A existência do animal na escultura representa outras lembranças das vivências do artista:

Tem ela ali, mas não tá normal, não. [...] É uma lenda, né. Eu fiz a estátua. Não tá imitando bem, não. Está com uma perna só. Cabelo grande. Alguém dizia assim: “Eu vi. Ela cabelão, uma moça ali do mato.” Na realidade mesmo, eu pra contar assim, eu conto, alguém que me contava e eu ouvia a voz. [...] A sucuri aqui é a história de verdade, né? Ela tem 10 metros, ela tem 08 metros, ela tem 05 metros. Tem, tem. Eu vi mesmo... 06 metros. Esse rapaz que entrou aí, o tio dele tava segurando ela. E mais ou menos umas 05 pessoas. Cada um segurando ela. Mais ou menos 05 metros. Eu não sei onde tá esse retrato. Vou procurar. Aqui na Barreiras. [...] (ALMEIDA, 2015, (b)).

Para Edilberto Trigueiros, a assimilação do formato da Caipora é indefinida. Desse modo, observá-la traz dificuldades pois “é um vulto, dizem, quase indistinto, de forma imprecisa porque o medo, invariavelmente, impede qualquer observação insegura.” (TRIGUEIROS, 1977, p. 63). Na concepção da Caipora construída pelo artista, ela possui uma perna e, apenas, um braço, e segura uma sucuri. Fica claro que o escultor se utiliza de referências visuais que nos levam a crer em uma aproximação com uma figura feminina indígena. No entanto, faz-se necessário compreender que sua obra está repleta de “um impulso expressivo e uma intenção decidida de representar imaginariamente seu próprio mundo”.

Ao ser indagado sobre a escultura do Pé de Boi, o escultor expressa que existe uma relação com sua infância, pois, a partir de um determinado horário, uma estranha criatura perseguia os desavisados nas estradas das imediações da Fazenda Catinguinha, em Senhor do Bonfim. Ainda não sabemos como essa narrativa se perpetuou ou como foi sua duração pela comunidade porém, mais uma vez, ela esteve presente na juventude do Mestre Nêgo, marcando o período em que ele tinha que circular por determinados caminhos, cotidianamente.

O Pé de Boi terminava cobrando certa disciplina daqueles que percorriam a estrada, bem como o cuidado com os horários. Afinal, ele atacava em certos períodos, fazendo com que as pessoas se recolhessem. Assim, a circulação da narrativa em torno da criatura que assustava nas estradas da zona rural de Senhor do Bonfim coloca os indivíduos (os que alegavam ter testemunhado e/ou os que apenas escutaram na infância) numa condição de portador de uma memória comunitária que, por sua vez, era reelaborada, conforme havia sido marcado na vida deles. A transmissão da narrativa, portanto, possui várias estratégias de execução: seja ela através de conversas informais ou depoimentos que, em ambos, remetem a lembranças das histórias da infância até a materialização do imaginário por meio de uma escultura. Sobre a relação entre as narrativas orais e o cotidiano dos indivíduos, Mari Guimarães Sousa explica:

De uma forma geral, essas narrativas orais abordam o cotidiano dessas pessoas; somando-se a isso a liberdade criadora e imaginativa de seus contadores, de tal modo que as situações reais, o simbólico e o imaginário são tecidos conjuntamente como resultado de experiências vividas e/ou inventadas. Nos causos narrados, normalmente, os próprios contadores constituem-se em personagens principais, testemunhas e/ou ouvintes dos episódios narrados. (SOUSA, 2006, p. 04)

O tratamento de depoimento (ou série de depoimentos) do Mestre Nêgo e de suas obras permitem a investigação de uma série de temáticas culturais, artísticas e sociais em campos diversos do saber. Ambos, depoimentos e produção artística, revelam a interpretação do artista de inúmeros casos da literatura oral e da memória de personagens diversos como aqueles que protagonizam histórias de determinadas comunidades, como é o caso do Pé de Boi, que estaria ligado à infância do artista na zona rural de Senhor do Bonfim/BA, até outros bastante difundidos em vários cantos do país, como o Lobisomem, Caipora e o Saci.

No caso da Festa do Céu, Bráulio do Nascimento chama atenção para as variações da história na coleta de folcloristas, como Luís da Câmara Cascudo e Silvio Romero. Enquanto pela coleta de Câmara Cascudo, o sapo vai como intruso, num Urubu, na festa do Céu, no registro de Silvio Romero é o cágado que pega carona com uma garça. Entre as esculturas do Mestre Nêgo temos uma série referente a este conto. No entanto, semelhante ao recolhido por Silvio Romero, quem vai de intruso é o cágado, mas ele foi escondido no Urubu - conforme recolhido por Câmara Cascudo. (NASCIMENTO, 2005, p. 80) As outras peças são vários sapos tocando variados instrumentos e dançando.

Imagem 4 - A festa no céu, s.d., Mestre Nêgo.

Foto: Autora..

Dessa forma, por meio das esculturas, ativamos as memórias de Dilson Dias de Almeida. A vida comunitária na zona rural de Senhor do Bonfim e na zona urbana de Juazeiro e Barreiras estão repletas de elementos materializados na sua obra. Consideramos que tais narrativas, em alguma medida, possuem um caráter afetivo de suas lembranças, a ponto de serem transformadas em peças de arte. Ou seja, a sua produção está relacionada com a memória, parte dela afetiva, do passado e dentro do processo de coleta de entrevistas elas engatilhavam as lembranças dos referenciais que o inspiraram na confecção.

Assim, não cabia ao trabalho de pesquisa filtrar ou comprovar, com elementos diversos, a veracidade das narrativas. O que nos chama atenção são os mecanismos da memória e como sua narrativa estava atrelada, ou resultou, em algumas das imagens confeccionadas. Sobre a preocupação com a veracidade do depoimento, concordamos com Priscila David:

Assim, não se trata de questionar a verdade ou não do depoimento, mas sim de entender que este é construído socialmente pelo entrevistado que, dando sentido à sua vida, arquiteta um ponto de vista, uma representação sobre determinado momento relacionado à sua trajetória. A memória é um processo de racionalização do passado, realizado pelo indivíduo de acordo com as características que o mesmo entende serem possíveis ou almejadas para si. O indivíduo, mesmo que influenciado coletivamente, tem na rememoração o poder de escolher como quer ser lembrado, ou o que ele quer se lembrar de sua trajetória, concretizando suas escolhas no depoimento oral. (DAVID, 2013, p. 160).



Priscila David complementou, chamando atenção para a “densidade histórica” de representações do passado manifestadas em suas lembranças:



E mesmo que estas lembranças indiquem a representação do indivíduo sobre determinado fato ou evento, elas estão carregadas de densidade histórica e demonstram as múltiplas visões do passado, um ponto de vista do indivíduo que demonstra muito de si e do grupo ao qual ele pertencia. (Ibidem)

No caso das esculturas do Mestre Nêgo e de muitas das narrativas da literatura oral, a rememoração do passado e, especialmente, de tais estórias, apontam para uma variabilidade na circulação de enredos, como a Festa do Céu ou como as figuras encantadas das matas. Assim, é perceptível a dinamicidade da literatura oral no processo criativo do artista. Com um repertório construído ao longo de suas vivências, a literatura oral ganha uma interpretação para além da literatura de cordel, desafios de repentistas e narrativas em espaços públicos; afinal, elas são talhadas em troncos que ganham cores, formas e expressões diversas.



CONSIDERAÇÕES FINAIS



O cruzamento entre a literatura oral, memória do artista e as esculturas, em observância às narrativas de Mestre Nêgo, nos lançaram um desafio ainda maior que se apresenta através da perspectiva da trajetória do escultor. Nos vários depoimentos coletados tomamos conhecimento, para além da sua produção artística, da existência de registros de sua vida pessoal, diante do envolvimento com outras expressões culturais e, também, de uma vida comunitária, que mostram um artista multifacetado em diversas linguagens artísticas. Como já mencionado, a escassez de publicações sobre ele ainda é notória e elucida a necessidade de outras abordagens sobre Mestre Nêgo. Além disso, como imaginávamos, a história de vida relatada pelo artista tem trazido várias temáticas a serem desdobradas (DAVID, 2013, p. 164), tanto para o campo da arte como da história, quando nem cogitamos, nesse momento, esmiuçar os aspectos da vida religiosa do escultor. Ao final, nossa expectativa, nesse texto, é poder dar voz e visibilidade ao discurso artístico muito próximo da cultura popular brasileira.





REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Dilson Dias. Entrevista concedida a Carolina Reichert do Nascimento e Rafael Sancho Carvalho da Silva. Barreiras, 11 ago. 2015. (a)


______. Entrevista concedida a Carolina Reichert do Nascimento e Rafael Sancho Carvalho da Silva. Barreiras, 16 ago. 2015. (b)


______. Entrevista concedida a Carolina Reichert do Nascimento e Rafael Sancho Carvalho da Silva. Barreiras, 17 dez. 2015. (c)


]______. Entrevista concedida a Carolina Reichert do Nascimento e Rafael Sancho Carvalho da Silva. Barreiras, 17 fev. 2016. (d)


ALMEIDA, Mauro W. Barbosa. Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28, 2013.


ALVES, Januária Cristina. Abedecário de personagens do folclore brasileiro. São Paulo: FTD: Edições SESC, 2017.


ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore, Nacional I: festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


CANDAU, Joël. Memória de identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2014.


CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12ª edição. São Paulo: Global, 2012.


MAMMÌ, Lorenzo. A viagem das carrancas. São Paulo: Martins Fontes, 2015.


DAVID, Priscila. História oral: metodologia do diálogo. Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 9, n. 1, p. 157-170, janeiro-junho, 2013.


GONÇALVES, Yacy-Ara Froner; PAULA, Arethusa Almeida de. Acervo de artista: a narrativa de uma memória escondida. In.: GERALDO, Sheila Cabo; COSTA, Luiz Cláudio da (Orgs). Anais do Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas [Recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: ANPAP, 2011. Disponível em < http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpcr/arethusa_almeida_de_paula.pdf>, acesso em 24 abr. 2020. P. 3046.


NASCIMENTO, Bráulio do. O sagrado e o profano nos contos populares. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares. vol.2. n. 2, p. 77 – 89, 2005.

OSTRIA GONZALEZ, Mauricio. Literatura oral, oralidad ficticia. Estud. filol.,  Valdivia ,  n. 36, p. 71-80,    2001 .   Disponible en <https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0071-17132001003600005&lng=es&nrm=iso>. Acesso em  23  abr.  2020. 


PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.


POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.


SAIA, Luis. Escultura popular em madeira. In: Risco - Revista de pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. Volume 18/19. [São Paulo], 2013/2014.

SECULT-BA. Divisão Territorial da Bahia. Disponível em < http://www.cultura.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=314>, acesso em 10 maio 2020.


SOUSA, Mari Guimarães. O fictício e o imaginário: tessitura e constituição nas narrativas orais dos ribeirinhos do Banco da Vitória, Ilhéus/BA – o caso do lobisomem cachorrão e da caipora dissimulada. In: X Congresso Internacional ABRALIC, 2006, Rio de Janeiro.


LUGARES DOS DISCURSOS, 2006. Disponível em < http://www.uesc.br/icer/artigos/ficticio_imaginario.pdf>, Acesso em 25 abr. 2020.


TRIGUEIROS, Edilberto. A língua e o folclore da bacia do São Francisco. Rio de Janeiro: Campanha de defesa do folclore brasileiro. 1977.



[Recebido: 14 mai 2020 – Aceito: 04 jun 2020]


POR CAMPOS DA PENÍNSULA IBÉRICA E DO SERTÃO TOCANTINENSE, CAVALEIROS E JAGUNÇOS TECEM NARRATIVAS



THROUGH THE FIELDS OF THE IBERIAN PENINSULA AND THE TOCANTINENSE BACKWOODS, KNIGHTS AND JAGUNÇOS WEAVE NARRATIVES



Maria de Fátima Rocha Medina

http://orcid.org/0000-0001-6858-272X





RESUMO

El cantar de Mío Cid, cuja cópia mais recente de que se tem notícia é do copista Per Abbat, é um texto épico que narra aventuras de Rodrigo Díaz o qual lutou bravamente na reconquista de terras espanholas. Já em Serra dos Pilões: jagunços e tropeiros (1995), romance de Moura Lima, jagunços de grupos rivais se enveredaram pelos sertões tocantinenses para acerto de contas, após tragédia na vila de Pedro Afonso. Em ambas as obras, personagens percorreram espaços abertos, montados em cavalos velozes que atravessavam vales e serras; ou em burros/mulas que trotavam pelo ermo sertão jalapoeiro. Isso remete ao cronotopo (Bakhtin), indissociabilidade entre tempo histórico e espaço social. Entre vários, existe o cronotopo da estrada onde transitam personagens que promovem encontros e desencontros. Em estradas da península ibérica ou trilhas do Jalapão, personagens das obras em foco se organizaram e lutaram para recuperar a honra ou vingar amigos. Coragem e virtude do cavaleiro medieval ou crueldade dos jagunços do século XX foram construídas em movimento. No percurso de caminhos desconhecidos, ao ocuparem o lugar social de quem se preocupava com a justiça, sob leis régias ou na ausência do Estado, personagens de ambas as narrativas agiram, passaram por transformações e revelaram seres humanos singularizados. E no grande tempo são construídos novos significados.

Palavras-chave: Caminhos. Cronotopo. Narrativas.

ABSTRACT

EL CANTAR de Mío Cid, whose the most recent known copy is that of the copyist Per Abbat, is an epic text that tells the adventures of Rodrigo Díaz who fought bravely in the reconquest of Spanish lands. In Serra dos Pilões: jagunços e tropeiros (1995), a novel by Moura Lima, jagunços from rival groups took to the Tocantins' hinterlands for reckoning, after a tragedy in the village of Pedro Afonso. In both works, characters traveled through open spaces, mounted on fast horses that crossed valleys and mountains; or in donkeys/mules that trotted through the wild jalapoeiro backwoods. This refers to the chronotope (Bakhtin), inseparability between historical time and social space. Among several, there is a chronotope of the road where characters who promote encounters and mismatches pass. On roads in the Iberian Peninsula or Jalapão trails, characters from the works in focus organized themselves and fought to regain their honor or avenge their friends. Courage and virtue of the medieval knight or cruelty of twentieth century jagunços were built in motion. During unknown paths, when occupying the social place of those concerned with justice, under royal laws or in the absence of the State, characters from both narratives acted, underwent transformations and revealed singularized human beings. And in the great time new meanings are constructed.

Keywords: Paths. Chronotope. Narratives.



INTRODUÇÃO



El cantar de mío Cid é um poema épico medieval, que foi repetido, oralmente, durante longo período. Há estudos e hipóteses sobre alguns manuscritos. O códice mais recente de que se tem notícia foi copiado de um manuscrito de 1207, por Per Abbat, no século XIV, mas mantém incertezas55. O texto medieval narra façanhas, verdadeiras e lendárias de Rodrigo Díaz, sobre batalhas entre cristãos e mouros. Ele defendeu sua honra pública, diante do rei, Afonso VI, que lhe tirou os bens e o desterrou. O cavaleiro também defendeu sua honra privada ao defender suas filhas dos infantes de Carrión. Após muitos e incansáveis combates, lealdade às leis régias e envio de valiosos presentes ao rei, El Cid conseguiu o perdão do monarca e se tornou personagem lendário da literatura espanhola e mundial. As frequentes declamações e performances dinamizadas pela oralidade (ZUMTHOR, 1989), que atualizavam os versos épicos, moldaram essa que é considerada a primeira obra clássica da Espanha.

Consta que El cantar de mío Cid era lido, às vezes, em voz alta. No entanto, o mais comum deveria ser a recitação de memória e cantado com algum tipo de música, que alguns investigadores modernos supõem, ainda que sem muita convicção, de que era o canto gregoriano. A recitação podia ser feita em público, em rua ou praça, tanto pela vontade dos viajantes como a pedido de órgãos públicos que contratavam para alegrar as festas locais. Mas também era usual que o jogral/cantor apresentasse, por exemplo, em festas de casamento, batismo ou outros eventos familiares56. (FRUTOS, s/d).

Esse texto, que revela os reinos hispânicos na era medieval, ou seja, espaço e tempo singulares, ainda suscita interesse nos leitores. Isso remete à afirmação de que “as obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo e, além disso, levam frequentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais intensa e plena que em sua atualidade”. (BAKHTIN, 2003, p. 362; itálico e parênteses do autor).

Serra dos Pilões: jagunços e tropeiros, publicado em 1995, é um romance do escritor tocantinense Moura Lima e trata sobre a invasão da vila de Pedro Afonso, em 1914, por Abílio Batata e um grupo de jagunços baianos. Além de torturarem e matarem brutalmente, eles roubaram os parcos bens dos moradores e destruíram o lugar. Em seguida, fugiram para o Jalapão, território com baixa densidade populacional e, na época, pouco conhecido. Por causa disso, formou-se o grupo rival, composto por cangaceiros da região e chefiado pelo capitão Labareda e seu braço direito, Cipriano, para vingar as vítimas da tragédia. É um texto relativamente novo e mais conhecido no âmbito regional, que ainda não teve a necessária distância temporal para demonstrar a permanência no grande tempo de que fala o autor russo.

Em versos, ao exaltar os feitos grandiosos do senhor mío Cid57, ou em parágrafos de um romance realista que segue os passos do capitão Labareda, o cronotopo da estrada, complemento do cronotopo do encontro, é um ponto em comum nas duas obras. Bakhtin (1998) defende que é no tempo histórico e no espaço social que as personagens se constituem, agem e se revelam em contínuo movimento. É no espaço que o tempo transcorre. Então, na indissociabilidade temporal e espacial, os sentidos e o discurso são constituídos e se inter-relacionam em obras de épocas e lugares distintos. A partir de determinado tempo histórico e espaço social, ou seja, de um grupo humano geográfica e culturalmente localizado, é que o autor escreve.



No cronotopo do encontro predomina o matiz temporal; ele distingue-se por um forte grau de intensidade do valor emocional. O cronotopo da estrada, que se liga a ele, possui volume mais amplo, porém um pouco menos de intensidade do valor emocional. No romance, os encontros ocorrem frequentemente na estrada. Ela é o lugar preferido dos encontros casuais. (BAKHTIN, 1998, p. 349).



Nosso propósito neste trabalho é mostrar como as personagens das obras El cantar de mío Cid e Serra dos pilões se movimentam e se constituem a partir da indissociabilidade entre tempo histórico e espaço social, por meio do cronotopo da estrada (BAKHTIN,1998). E as narrativas revelam peculiaridades da era medieval ibérica e do regionalismo brasileiro, de forma a evidenciar características da universalidade do ser humano, como sentimentos de coragem, medo e vingança, constituídos a partir de singularidades espaço-temporais em que os personagens atuaram como sujeitos.





CAVALEIROS E JAGUNÇOS SE CONSTITUEM EM ESTRADAS



El Cid foi desterrado pelo rei Alfonso VI, por questões políticas. Dona Jimena, esposa do cavaleiro, confirma ao dizer: “Gracias os pido, Mío Cid el bienhadado. / Por calumnias de malsines del reino vais desterrado” (ANÔNIMO, 1999, p.29)58. E, ao chegar a Burgos, ninguém pôde dar-lhe pousada por ordem do rei. Então, ele precisou acampar fora dos muros da cidade e isso já o colocou diante da nova realidade, em campo aberto. Antes de distanciar-se do reino de Castilla, rumo a terras como Zaragoza, Barcelona e, sobretudo, Valencia, Cid conseguiu formar um pequeno grupo de amigos para segui-lo. Obrigado a sair de sua terra, de maneira injusta, o cavaleiro poderia se revoltar contra o rei. No entanto, preferiu acatar a lei régia, combater em várias frentes e reconquistar a confiança do rei. Com a ajuda do grupo, que cresceu justamente em função dos resultados positivos nas batalhas, o cavaleiro percorreu inúmeros caminhos com o objetivo de lutar por terras cristãs que estavam em poder de muçulmanos, estratégia considerada nobre para recuperar a honra diante do monarca. E, embora soubesse das dificuldades que iria enfrentar, ele, esperançoso, animava os poucos companheiros que o seguiram, inicialmente.

Ánimo, Alvar Fáñez, ánimo, de nuestra tierra nos echan,

Pero cargados de honra hemos de volver a ella” (p. 9).



E assim, nas estradas, eles se preparavam para contínuas aprendizagens e batalhas. El Cid saiu disposto a conquistar novos territórios para ter a chance de retornar à sua terra natal e nela ser honrado. Então, o espaço social hispânico foi fundamental no propósito de realizar as conquistas. O cavaleiro precisou trilhar muitos caminhos, passar por cidades, entrar em castelos e cruzar reinos sem perda de tempo.



Pasaremos la sierra que es escarpada e muy grande;

las tierras del rei Alfonso esta noche podremos ya dejar.

Después quien nos buscare nos podrá encontrar’.

Cruzan la sierra de noche, ya ha llegado la mañana,

y por la loma abajo comienzan a caminar

[…]

Caminaron de noche que no se conceden descanso

En un lugar que llaman Castejón, que está al Henares,

Mío Cid se emboscó con todos los suyos. (p.41)



Nesse trecho, por exemplo, revela que, após a estratégia da emboscada, como faria muitas vezes, o herói invadiu a cidade de Castejón, onde conseguiu seus primeiros despojos de guerra, compostos por metais preciosos e rebanhos. Mas ali não permaneceu. Seguiu pelos caminhos afora que, com o passar do tempo foi, gradativamente, construindo o grupo de homens valentes para a realização das conquistas que estavam por vir. Nas cidades, eles eram transitórios; passavam apenas como transeuntes e levavam o que lhes interessavam. Deixavam para trás os lugares já conquistados e seguiam em frente rumo a novas conquistas.

Aquí se empieza el poema de Mío Cid el de Vivar.

Ya ha poblado Mío Cid aquel puerto de Alucat,

se aleja de Zaragoza y de las tierras de allá,

atrás se ha dejado Huesca y el campo de Montalbán

de cada a la mar salada ahora quiere guerrear. (p.93)



Naquele momento histórico, o mais importante era constituir-se cavaleiros preparados para imprevistos e desafios, na estrada, que se apresentava à frente como espaço de formação, conquistas e disseminação de notícias sobre a ação deles.

-‘Ea, caballeros! Os diré la verdad:

quien siempre se queda en un mismo lugar puede ir /

[perdiendo lo suyo;

mañana por la mañana echaremos a cabalgar,

dejad estos lugares, seguiremos adelante’. (p.79).

Bakhtin (1998, p.350) afirma que “os heróis dos romances de cavalaria da Idade Média saem para a estrada, em torno da qual, frequentemente, todos os acontecimentos do romance se desenrolam ou estão concentrados”. De fato, as buscas pelos mouros e por despojos de guerra ocorreriam enquanto os cavaleiros se deslocavam pelas extensas terras dos reinos da península ibérica. No caminho, se fortaleciam e se animavam, reciprocamente, para alcançarem os propósitos.

Aún era de día, no se había puesto el sol.

Mandó pasar revista a su gente Mío Cid el Campeador;

Sin los soldados de a pie y hombres valientes que son,

Conto trescientas lanzas, todas ellas con pendón. (p.39)


Salieron de Valencia y se disponen a caminar;

Llevan tantas riquezas que han de protegerlas bien.

[…]

Van atravesando sierras, montes y ríos,

Llegan a Valladolid, donde estaba el rey Alfonso. (p.145)



Já no sertão, o capitão Labareda e Cipriano se juntaram a um grupo de jagunços locais para perseguirem e matarem Abílio Batata, Cacheado e seus seguidores, que se encontravam escondidos pela barbárie que haviam praticado na vila de Pedro Afonso. “Vamos pra Serra do Jalapão sepultar Alberto Cacheado. A nossa missão, seu Bocório, é botar de volta pra Bahia os cabras de Abílio Batata, que vêm atormentando esta região” (LIMA, 2001, p.226)59. Então, fugitivos e perseguidores se embrenharam pelo sertão desconhecido no qual e com o qual os dois grupos iriam interagir. Pois sertão é a representação do mundo. É também o lugar em que seres humanos habitam e constroem experiências sociais, culturais e re-significam sentidos. O sertão do Jalapão foi o espaço social por onde transitaram os jagunços dos dois grupos que, no transcurso do tempo histórico, definiram suas próprias leis e decisões, dispostos a matar ou morrer.

O dia vai rompendo com os clarões das barras, pelos cerradões e descampados de agreste do Jalapão. A saracuca quebra o pote pras bandas do riacho Mutuca, anunciando a chegada do verão e dos ventos gerais que sopram da serra da Tabatinga e vão varrendo aquele guanhã imenso de campos, chapadões e matas sombrias nas beiras dos rios e grotões profundos. (p. 218)



Esse socarrão do Cacheado vem, há meses, perturbando o povo desses pés de serra, Capitão. Os seus sabaceiros é um horror! Só deixam os cascos das fazendas. (p.197)



Embora crescidos em terras sem lei, pela ausência do Estado, no percurso da perseguição aos rivais, os cangaceiros demonstravam destemor, mas também disciplina e obediência ao chefe, algo quase incompreensível naqueles homens dispostos às mais cruéis atitudes. E até faziam algazarra. O caminho – a trilha os fazia acreditar na força e poder do grupo e os preparava para as batalhas sangrentas.

O bando de jagunços segue a trilha, armado até os dentes, em completa algazarra. O capitão que comanda aqueles homens, de carabina atravessada nos ombros, com as cananas cheias de bala e com dois punhais na cinta. (p.16)



Na obra épica, a matança de mouros foi suavizada por citar apenas o número de mortos, sem detalhes, para enaltecer a bravura dos cavaleiros. O ritmo veloz da narrativa e dos cavalos não permitia ao narrador pensar nos resultados das batalhas. Cavaleiros prosseguiam, armados com espadas. Não há clima de dor, medo ou sofrimento pelas mortes espalhadas nos 3.730 versos do poema. Ao contrário, junto ao narrador, o leitor vibra pelas conquistas de El Cid, que fora injustiçado pelo rei.

¡Qué aprisa cabalgan hacia los moros! Y se volvieron a armar;

al ruído de los tambores, la tierra parecía temblar;

viérais armarse a los moros y entrar en filas veloces! (p.59)

En muy poco espacio cayeron muertos al menos mil trescientos (p.63)



Em Serra dos Pilões, ao contrário, a descrição detalhada e lenta da história torna o capitão Labareda mais cruel e temido, inclusive para os companheiros de cujo grupo alguns homens também eram vítimas.

Labareda, que se encontra agachado à sombra do jatobazeiro, levanta-se e diz raivoso:

- Me traga esse fio-da-puta, agora!

- Gavião, fure o cachorro bem devagar, no sangradouro. (p. 19).



Os jagunços, contra o inimigo mais desprezado, utilizavam faca, ferramenta que exigia maior proximidade, tempo e crueldade para executar a vítima. A aplicação do castigo ou crime e o desespero da vítima foram descritas pelo narrador nos mínimos detalhes, forçando o leitor a deter-se e sentir compaixão por quem era castigado ou morto; e horror a quem praticava ações tão bárbaras!

O cabra balança na ponta do laço e implora o perdão. Labareda não dá ouvidos e, numa fúria de cascavel, aproxima-se do homem e, com gestos medidos, puxa o facão e, num golpe calculado – zap! E lá vai pro chão, cortado bem na junta, o pé direito, que jorrou aos esguinchos o sangue vermelho (p. 105).



Na épica espanhola, ao revelar o contexto do tempo medieval, a religião justificava as mortes de mouros e vitória dos cristãos. Segundo Jiménez y Cáceres (1997, p. 12), “o sentimento religioso parece impregnar todas as ordens da existência. No entanto o aspecto religioso é, para o homem medieval, uma complexa vivência que comumente se mesclam o sagrado e o profano”60.

Todos oyeron la misa y en seguida cabalgaban (p.125).

Los moros gritan “Mahoma!”, y los cristianos “Santiago!” (p.63)



O próprio cavaleiro recebeu aura divina ao ser referenciado, continuamente, como “El que en buena hora nació” (p. 53), ou seja, para o narrador, ele era predestinado a cumprir a missão de matar e expulsar os mouros de terras ibéricas habitadas por cristãos. Aquele que guerreava em nome de Deus era devoto de Nossa Senhora. Na concepção do sacerdote que copiou o texto, El Cid era um homem modelo para os demais da época: corajoso, humilde, religioso e herói. Também respeitado por representantes da igreja, como o abade Don Sancho, que ofereceu hospedagem ao cavaleiro, no início do desterro, mesmo contra a ordem do rei.

- ‘Te doy gracias, oh Dios, a ti, que guias el cielo y la tierra,

ayúdenme tus virtudes, gloriosa Santa María!’. (p.39)

Gracias a Díos, mío Cid, le dijo el abad don Sancho,

Puesto que os tengo aquí, por mí sereis hospedado’. (p.27)



No sertão brasileiro também predominava a religião católica, praticamente única no país, na época, mas muito ligada à cultura popular, pois não havia presença de representantes da igreja junto ao povo que vivia isolado, ou melhor, abandonado à própria sorte. Então, apesar de tanta violência e crueldade, havia espaço para ritual fúnebre, momento de apreensão e até de medo que, ironicamente, os valentões sentiam. Entretanto, não era por compaixão ou espírito cristão; apenas pela crença popular de que o morto pudesse atrair má sorte para o grupo. No trecho a seguir revela uma mistura de elementos místico-religiosos nos objetos e gestos.

- Corta-Cabeça e Apaga-a-Vela, agora é a vez da execução do ritual fúnebre, para encomendar a alma do infeliz e evitar que a má sorte caia sobre o bando. [...] Tragam-me o cadáver do irmão, para que possamos libertá-lo do mundo. E os homens, petrificados e borrando de medo, colocam o defunto no centro do pentagrama. O mago oficiante daquela cerimônia, em gestos esotéricos, abre o embornal ensebado, de longos anos, e retira do seu conteúdo um cordão preto de São Francisco e o ata à cintura. Com essa providência, fecha as portas do inferno e dos espíritos malignos. Com o simples toque daquela joia mágica (p.18)



Outro aspecto que colabora na constituição dos personagens são os animais utilizados por cavaleiros medievais e jagunços e evidenciam a singularidade do tempo histórico e do espaço social por onde eles transitavam e as artimanhas narrativas das duas obras.

Em El cantar de mío Cid, a história, embora longa, uma vez que narra inúmeras batalhas, sugere rapidez e leveza pelo compasso ritmado dos cavalos. Mío Cid, o cavaleiro invencível, montado em Babieca, parecia transpor de forma mágica o espaço físico, enquanto a história transcende o papel para aproximar o leitor das andanças cavalheirescas. E os demais cavaleiros também recebiam cavalos de grande porte pelo trabalho que faziam.

Al llamarlo por su nombre, Babieca cabalga;

echó una carrera; fue extraordinaria.

Cuando terminó de correr, todos quedaron maravillados;

desde aquel día fue admirado Babieca por toda España. (p. 129)

Les Dan tres palafranes muy bien ensillados

Y buenos vestidos, capas de piel y mantos. (89)



Cavalo robusto e valente, conhecido e valorizado por onde galopava, Babieca reforçava o prestígio e a coragem do destemido cavaleiro, além de determinar o lugar ocupado por ele, que pertencia à aristocracia feudal. Babieca e os outros cavalos, se deslocavam em passos rápidos. Quando o grupo parava em algum acampamento, o processo narrativo também ficava mais lento, mas não por muito tempo, porque havia pressa e, para reiniciar as lutas, a estratégia era esporar o cavalo para que ele corresse.

Aquel Pero Bermúdez no se pudo aguantar,

el estandarte lleva en la mano, comenzó a espolear (p.61)

Tantos caballos de combate, gordos y veloces

Mío Cid los había ganado, que no se lo habían regalado (p.159).



Os cavalos corriam por vales e serras da península ibérica e, do mesmo modo, os cavaleiros se apressavam para conquistar outro povoado ou reino. A narrativa é tão veloz que o próprio tempo parece ‘voar’ ao ritmo das antíteses.

El dia ya pasó y há entrado la noche,

al día siguiente, de mañana, muy claro amaneció (p.161)



Os fiéis vassalos levavam bandeira erguida e espada que resplandeciam não somente no campo de batalha, fazendo tremer o inimigo muçulmano, como também se opunham ao caráter sombrio da época medieval. A luminosidade e elegância promovidas pelos adereços e pela montaria dos cavaleiros tornavam as batalhas, e o longo poema, leves e fluidos.



Salieron unos ciento, que parecen muy valerosos

en buenos caballos enjaezados con cascabeles,

con coberturas de seda y los escudos al cuello;

en las manos llevan lanzas con pendones. (p. 123)



Já no romance tocantinense, ao contrário dos cavalos velozes, prevaleciam burros e mulas que sugerem a preferência do escritor por uma narrativa lenta e bastante detalhada, como o ritmo compassado de tais animais que são resistentes às altas temperaturas do sertão.

Os cascos dos burros batem na areia fofa como se fossem tambores surdos, naquele baticum nervoso da marcha (p.60); [...] o cabra Miguel do Brejo segue no trotar de pilão, como se estivesse sendo socado, no lombo do burro preto (p.53). [...] Para avançar, os animais precisavam de corretivo. A chibata estala com vontade no lombo dos burros; os arreios e cangalhas sacolejam ao ritmo da andadura. (p. 66).



A história, assim, trilha vagarosamente os caminhos da narrativa na qual os jagunços se assemelhavam a animais rastejadores:

[...] os corpos deslizam como cobra, por entre moitas e cipoal (p. 168); [...] o grupo continua a marcha pela trilha, que ora desaparece no capim-agreste, ora surge igual a uma serpente pela imensidão da terra arenosa (p.153); [...] Labareda, naquele olhar peçonhento que derrama veneno”; [...] nas mãos daqueles terríveis cascavéis de chocalhos acesos, prontos para o bote mortífero (p.61).





A trilha, então, aparecia e desaparecia de acordo com a andança e o movimento do grupo. Os homens foram comparados a cobras, que expeliam o veneno da violência e da impiedade pelo espaço por onde transitavam. No sertão, onde não havia a presença do Estado, eles se sentiam em casa. Conforme Olival (2003, p. 34) “a região do Jalapão torna-se, num processo de operação transfiguradora, metonímica, o imenso palco de uma insidiosa saga épica: sertão dos coronéis, do povo ilhado da civilização, de cultura, imagem em viés da história, a filtrar realidades ainda presentes”.

E, contrária à pressa dos versos copiados por Per Abatt (ANÔNIMO, 1999), a narrativa dos jagunços (LIMA, 2001) flui de acordo com o trote ou com a vontade dos animais, como exemplifica uma parada que o bando de Labareda fez num acampamento e, no momento de prosseguir viagem, a mula Puçá, do chefe, “deu nos cascos, abriu o pala no mundo” (p. 47), o que “significa atraso na viagem” (p.48). E, como consequência disso, a obra ganhou um capítulo a mais, para descrever a busca do animal perdido, no qual se acrescenta a história da sucuri que tentou engolir um curraleiro (p. 49-50). Assim, os homens “continuam a marcha, e numa várzea encontram a mula Puçá que pasta, tranquilamente, abanando o rabo pra espantar as mutucas” (p.51). O prolongamento da narrativa ocorre também quando o escritor interrompe a viagem dos jagunços e introduz um conto sobre tropeiros, no capítulo treze (p. 69), e a “lenda do romãozinho”61, no capítulo vinte (p.115).

Outro aspecto que distingue obras, como resultado do espaço social e do tempo histórico em que ocorreram, é a forma como o chefe era visto pelos companheiros e por pessoas externas. Em mío Cid, a reiteração do verso “él que en buena hora nació” (p.175), do início ao fim do poema, funciona como refrão que, além de promover musicalidade, com rimas misturadas e encadeamentos constantes, enaltece o cavaleiro, construindo-o como herói quase divino. Essa afirmação remete a “Gracias al Creador” que aparece, por exemplo, três vezes na p. 71, e justifica a vitória dos cristãos sobre os mouros. E, ainda, as notícias que circulavam na região sobre a coragem, a nobreza e espírito vitorioso de El Cid e seus companheiros. “Corrieron las noticias a todas partes” (p.79).

Vale ressaltar a semelhança sonora entre as palavras “Creador” e “Campeador”, que ratifica a estratégia narrativa de construir um cavaleiro grandioso como era comum nas canções de gesta da Espanha medieval. “El Cid é, também, símbolo de vassalo leal e, através do poema, são vários os testemunhos dessa lealdade ao seu rei, apesar de ter sido desterrado por ele”62 (FRUTOS, s/d). Tal artimanha expressiva caracteriza o ritmo popular da época, no entanto, supera-o pela eloquência e fluidez do modo como é estruturado, a galope ritmado, todo o poema. Também reinava um grande otimismo entre os cavaleiros que, além de pão e vinho ou grandes banquetes, recebiam valiosas recompensas pelos feitos bélicos.

Gran banquete le preparan al buen Campeador. (p.31)

Muy contento que está el Mío Cid, muy grandes son las ganancias.

A Mío Cid don Rodrigo gran comida le preparan. (p. 85)


Salieron de Valencia y se disponen a caminar;

Llevan tantas riquezas que han de protegerlas bien.

Caminan días y noches (que no se dan descanso)

Y ya han cruzado la sierra que separa las dos tierras. (p. 145)



Soma-se, ainda, o reconhecimento de Don Alfonso pela lealdade do cavaleiro Cid de Vivar e pelos bens que, conquistados nas batalhas, foram oferecidos à coroa:

Habló el Rey Alfonso y dijo estas palavras:

-Doy gracias al Creador y al señor San Isidoro de León

por estos doscientos caballos que me envía Mío Cid.

Mejor me podrá servir en adelante mi reino. (p.149)



Gran pesar tuvo ello el Rey don Alfonso:

-‘¡Levantaos, Cid Campeador!

Besadme las manos, los pies, no;

que si no hacéis esto, no tendréis mi afecto’.



Já em Serra dos pilões, os jagunços eram fugitivos da lei, por isso se escondiam da polícia, reforçando que as ações executadas eram ilícitas. Assim, eles precisavam manter-se isolados e sem notícias, como exemplifica um trecho de conversa entre o capitão Labareda e Gavião. - A polícia está no meu piso em Boa Vista e também em Pedro Afonso. [...] – Num vê a lonjura do Jalapão? Me diga, Capitão, quem vai encontrar a gente? (p. 58).

Ao contrário do prestigiado cavaleiro medieval que voltou ao seio da família, à sua terra natal e conseguiu o perdão do rei, os jagunços se distanciavam cada vez mais em direção ao sertão inóspito, até à batalha sangrenta entre os dois grupos. E a jagunçagem, como modo de vida, tornava-os temidos pelas pessoas do lugar. A conversa entre os sertanejos Januário e Tião esclarece:

- Não me conformo, a gente vive nesse mundão, isolados, como bugre, cuidando da nossa obrigação, e essa capetada aparece pra bulir com as nossas coisas. O governo tem de mandar a polícia em riba dessa jagunçada e acabar com os tutanquebas do sertão.

- Concordo com seu palavreado. Mas a lei aqui é outra, é a do punhal e do rifle’. (p. 120).



Algumas vezes, paradoxalmente, eles eram elogiados por promover a morte de outro jagunço que cometera, igualmente, crime atroz contra algum sertanejo. “Mas a providência mandou aqueles homens (de Capitão Labareda) para defendê-la, protegê-la, naquela hora de tanta agonia e desespero” (p. 141), disse a professora de uma vila.

E, assim, enfrentando mouros nos campos de terras hispânicas ou se confrontando com jagunços rivais, homens europeus e brasileiros se constituíram nos caminhos e revelaram que o ser humano é universal, seja na capacidade de encarar desafios, seja na potencialidade de se tornar bárbaro e matar os semelhantes.



CONSIDERAÇÕES FINAIS



Ambas as obras abordam sobre um chefe que, junto a cavaleiros ou jagunços, lutam em campo aberto e se constituem no cronotopo da estrada. Com espadas ou carabinas, montados em cavalos ou em burros, matar era o objetivo dos personagens que, sob a proteção de Deus, lutavam pela honra a ser recuperada ou pela vingança a ser feita. Os caminhos ou trilhas conduziam os combatentes a seus rivais. Ao ritmo ligeiro de versos e de cavalos, a narrativa revela as batalhas dos cavaleiros medievais. E, aos trotes de burros e mulas, mostra a dura realidade de jagunços e de suas vítimas no esquecido sertão tocantinense. O texto de Lima (2001) aponta problemas locais como o abandono, o analfabetismo, o isolamento dos sertanejos que viviam sobressaltados pela jagunçagem e oligarquias regionais.

O tempo histórico e o espaço social são definidores das obras e de seus personagens. Uma, épica, exalta e enobrece não somente o cavaleiro medieval, mas também a própria Espanha, país em formação, na Idade Média. A outra, romance, apresenta de maneira realista e crítica o jagunço que, numa atitude medieval, faz justiça com as próprias mãos, no sertão jalapoeiro, região subdesenvolvida do Brasil. Assim, veloz como os cavalos que conduziam os prestigiados cavaleiros aos campos de batalha na península ibérica. Ou lenta, mas firme, como os burros que conduziam os jagunços temidos pelos sertões, ainda quase inabitados, as narrativas continuam o percurso da literatura a ser tecida pelo mundo afora, em busca de leitores que a cavalguem.







REFERÊNCIAS



ANÔNIMO. El cantar de mío Cid. Madrid: Edimat Libros, 1999.

BAKHTIN, Mikhail. Os estudos literários hoje. In: _______Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução de Paulo Bezerra. Martins Fontes: 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética - a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1998.

CANAVAGGIO, Jean (dir.). Historia de la literatura española. Vol. I. Barcelona: Ariel, 1995.

FRUTOS, Alberto Montaner. El cantar de mío Cid: el gran poema épico hispânico, s/d. Disponível em: https://www.caminodelcid.org/cid-historia-leyenda/cantar-mio-cid/aspectos-litera rios/.

JIMÉNEZ, Felipe B. Pedraza y CÁCERES, Milagros Rodríguez. Las épocas de la literatura española. Barcelona: Ariel, 1997.

LIMA, Moura. Serra dos Pilões. Jagunços e tropeiros. 3. ed. Gurupi: Gráfica e editora Cometa, 2001.

OLIVAL, Moema de Castro e Silva. Moura Lima: a voz pontual da alma tocantinense. Gurupi: Gráfica e Editora Cometa, 2003.

ZUMTHOR, Paul. La letra y la voz. Trad. Julián Presa. Madrid: Cátedra, 1989.



[Recebido: 04 mai 2020 – Aceito: 30 ago 2020]


QUELLE EST VOTRE TRIBU?” IDENTIDADE, DIFERENÇA E MODERNIZAÇÃO NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO



"QUELLE EST VOTRE TRIBU?" IDENTITY, DIFFERENCE AND MODERNIZATION IN THE DEMOCRATIC REPUBLIC OF CONGO



Ari Lima Lima63

https://orcid.org/0000-0001-5557-6160


RESUMO

Neste artigo, pretendo, inicialmente, em um primeiro tópico, chamar atenção para questões ou inquietações sobre o continente africano. Depois disso, em um segundo tópico, pretendo enfatizar os impactos da colonização e da luta pela independência da Bélgica sobre a República Democrática do Congo (RDC). Feito isso, em um terceiro tópico, pretendo descrever situações particulares vivenciadas na realidade atual desta “república democrática”, a partir das cidades de Lubumbashi, capital da Província de Haut Katanga, e Kamina, capital da Província de Haut Lomami. Por fim, apresento o argumento provisório de que os desafios impostos à RDC e ao povo congolês conduzem a um processo de modernização cristã. Esse esforço de modernização é refém da memória do passado e de um “capitalismo europeizado colonial”, de uma ação política predatória e da guerra destrutiva e interminável que atinge o leste da RDC. Este artigo é resultado de uma viagem feita à RDC no ano de 2017. Naquela ocasião, sem dominar qualquer uma das línguas nativas da RDC, interagi com as pessoas, anotei e registrei dados através do francês, herdado da colonização belga, e da observação cotidiana do que via, ouvia e sentia.

Palavras-chave: África. Congo. Diferença. Identidade. Modernização.



ABSTRACT

In this article, I intend, initially, in a first topic, to call attention to questions or concerns about the African continent. After that, in a second topic, I intend to emphasize the impacts of Belgium's colonization and struggle for independence on the Democratic Republic of Congo (DRC). That done, in a third topic, I intend to describe particular situations experienced in the current reality of this "democratic republic" from the cities of Lubumbashi, capital of Haut Katanga Province, and Kamina, capital of Haut Lomami Province. Finally, I present the provisional argument that the challenges imposed on the DRC and the Congolese people lead to a process of Christian modernization. This modernization effort is hostage to the memory of the past and to a “colonial Europeanized capitalism”, to a predatory political action and to the destructive and endless war that strikes east of the DRC. At that time, without mastering any of the DRC's native languages, I interacted with people, wrote down and recorded data through French, inherited from Belgian colonization, and the daily observation of what I saw, heard and felt.

Keywords: Africa. Congo. Difference. Identity. Modernization.



Entre 8 e 22 de março de 2017, autofinanciei a realização de uma viagem sonhada por muitos negros e negras brasileiros que tenho encontrado em espaços de convergência de uma memória afro-brasileira, tal qual o terreiro de candomblé, a roda de capoeira, a roda de samba e, mais recentemente, os grupos de estudo e discussão sobre perspectivas de pensamento afro-centradas e decoloniais que circulam nas redes virtuais nas quais estou inscrito ou nos espaços acadêmicos em que circulo. Inicialmente, tratava-se de um primeiro contato despretensioso com o continente africano. Entretanto, ao chegar e vivenciar o cotidiano das cidades de Lubumbashi e Kamina, no sul da República Democrática do Congo (RDC), me deparei com uma realidade dramática, inspiradora e inquietante. Comecei, então, a fazer anotações diárias em um caderno de campo e de viagem, desdobradas neste artigo que ora apresento. Em um primeiro tópico, vou chamar atenção para questões ou inquietações sobre África64 muito anteriores ao momento de realização desta viagem, suscitadas em território geopolítico brasileiro. Em seguida, em um segundo tópico, pretendo enfatizar os impactos da colonização e da luta pela independência da Bélgica sobre a RDC. Feito isso, em um terceiro tópico, pretendo descrever situações particulares vivenciadas na realidade atual desta “república democrática”, a partir das cidades de Lubumbashi, capital da Província de Haut Katanga, e Kamina, capital da Província de Haut Lomami. Por fim, apresento o argumento provisório de que os desafios impostos à RDC e ao povo congolês conduzem a um processo de modernização cristã. Esse esforço de modernização é refém da memória do passado e de um “capitalismo europeizado colonial”, de uma ação política predatória e da guerra destrutiva e interminável que atinge o leste da RDC.



EM BUSCA DE UM CONTINENTE PERDIDO

De um modo geral, a memória de África e da ancestralidade africana chega até negros, negras e toda a sociedade brasileira de um modo enviesado. A saber, lembro que há alguns anos, num Dia 2 de Julho, quando se comemora a Independência da Bahia do reino de Portugal, ouvi na rua, no bairro dos Barris, curiosamente, em um bar vizinho à maior biblioteca pública da cidade de Salvador, um jovem negro falar, em tom alto e provocativo, que não celebrava o Quilombo dos Palmares nem aceitava Zumbi como herói negro. Ele dizia não fazer sentido ter como referência um líder derrotado e uma sociedade que não pôde permanecer e se afirmar como tal. Essa lembrança alimenta a pergunta que continuo a me colocar sobre a persistência da força inercial de um ódio recíproco entre os negros, fomentado durante a escravidão, por exemplo, pelo Conde dos Arcos, governador da Bahia em 1814. Como governador da Bahia, o Conde dos Arcos propunha aos senhores brancos conceder o dia de domingo para que os escravos negros de origens distintas celebrassem e, dessa forma, cultivassem o ódio recíproco anterior à chegada no Brasil (RODRIGUES, 1988). Do mesmo modo, me pergunto por que todas as experiências africanas e afro-brasileiras de resistência e antietnocídio, especialmente aquela da religião do candomblé, têm sido tão refutadas no Brasil.

Ou seja, no que diz respeito à herança e presença de África e da ancestralidade africana, prevalece a simplificação da história, em vez do conhecimento adequado de fatos históricos controversos, tal qual o Quilombo dos Palmares. Prevalece uma paixão voluntariosa tanto quanto ingênua dos vultos negros africanos ou afro-brasileiros, em vez de uma generosa crítica em relação a suas estratégias de enfrentamento e de sobrevivência ao persistente e hegemônico poder branco. Prevalece o esvaziamento mítico e diabolização de valores existenciais africanos e afro-brasileiros contra-hegemônicos, em vez do seu estudo e disseminação sistemática. Do mesmo modo, prevalece a estereotipação, a celebração exotizante e mercadológica do candomblé, por exemplo, em vez da potencialização das estratégias de agregação, empoderamento individual e coletivo do sujeito negro empreendidas por esta religião ao longo do tempo.

A meu ver, contribuiu para isso o fato de o negro ter sido representado, por tempo excessivamente longo, apenas como escravo, no estudo histórico e no senso comum. Alerta, aliás, já realizado por Beatriz Nascimento no filme Ori. Cabeça e consciência negra (1989). Assim como contribuiu para isso o ouvido sujo e a vista grossa do Estado brasileiro e das elites à reivindicação de integração plena e políticas públicas formulada por ex-escravos e ativistas negros desde o final da abolição no século XIX e, em seguida, nos anos iniciais do século XX (SANTOS, 2007). Do mesmo modo, nos meios de comunicação, nas artes e, sobretudo, na educação formal, do ensino básico ao ensino universitário, o tratamento da história e da cultura africana e afro-brasileira ainda é marcado pela precária informação e discussão de trajetórias individuais e coletivas negras, de dimensões históricas, filosóficas e teológicas de práticas culturais, artísticas e religiosas de africanos e descendentes (SANTOS, 2005; CARVALHO, 2005; SOUZA, 2018).

Desse modo, embora o Estado brasileiro se defina como laico e assegure o direito à livre expressão religiosa, as religiões afro-brasileiras continuam sendo, sistematicamente, desqualificadas e perseguidas, em particular por segmentos cristãos neopentecostais, no espaço público, na mídia e até mesmo no parlamento. Há, ainda, que apontar o descaso e quase completa ignorância do aparato institucional e jurídico brasileiro, no que diz respeito às demandas formuladas em comunidades de referência, especialmente o candomblé. Isso favorece a que os operadores da lei atenuem crimes previstos na Constituição ou absolvam os réus. A propósito, o início, em agosto de 2018, do inusitado julgamento do sacrifício de animais no candomblé pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e o silêncio, em relação a essa pauta, de todas as instâncias religiosas que praticam e não praticam o sacrifício de animais, de políticos, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de intelectuais e artistas que se apropriam do candomblé como referência estética e crítica são uma evidência emblemática do descaso e ignorância a que me referi acima. Ou seja, todo esse processo é resultado e reproduz o que defino como “vazio cognitivo”.

Além disso, é preciso mencionar a fragilidade do povo negro brasileiro, ao renunciar, por contingência cultural, socioeconômica ou por escolha, à memória de África, dos seus ancestrais e às suas proposições de vida e humanidade. A propósito, Carvalho (1987) chama atenção para o fato de que os grandes sábios dos cultos afro-brasileiros nunca transmitiram integralmente seus conhecimentos para novos discípulos. Do mesmo modo, não teriam explicado devidamente a vulnerabilidade do culto e de seus deuses diante do poder do senhor branco sobre a “cabeça”65 e o corpo dos negros escravos e libertos. Logo, cada vez que morreu ou morre um grande sábio candomblecista, desapareceu ou desaparece uma gama enorme de conhecimentos que poderia reter as crises periódicas de perda de memória e os esforços, muitas vezes esdrúxulos, de compensação do que foi perdido. Uma evidência disso é a veiculação, cada vez mais frequente, de depoimentos virtuais de lideranças candomblecistas incomodadas com a perspectiva atual do candomblé brasileiro. Nesse caso, essas lideranças protestam contra o afrouxamento da ortodoxia do candomblé, no que diz respeito à educação espiritual dos novos adeptos, contra a interferência excessiva do mercado e do dinheiro nas relações entre líderes religiosos, iniciados e consulentes ocasionais e, mais grave, protestam contra o desrespeito aos mais velhos, à experiência e sabedoria que teriam adquirido ao longo do tempo. A respeitada líder Makota Valdina Pinto (1943-2019) é uma referência importante nesse sentido.

Mobilizado por todas essas inquietações, cheguei no “continente amaldiçoado”, na “terra de Cam”, também orientado pela possibilidade de levantar equivalências sociais, históricas e ancestrais suscitadas e disseminadas no dia a dia, há quase 500 anos, através de práticas culturais, rituais, mitos e modos de vida. Ou seja, chegar em África favorece o encontro de referências que nos respondam: onde estávamos antes da chegada dos primeiros africanos escravizados ao Brasil? Como se deu o agenciamento da escravidão e da tortura? Quem éramos antes da disseminação do discurso judaico-cristão que levou tantos negros e tantas negras a acreditarem que são originários da Galileia, assim como herdeiros não redimidos do pecado, da descendência e da maldição de Cam? Chegar em África é a busca também por narrativas, experiências e ideias que aplaquem o impacto da lembrança, que descendemos de homens e mulheres submetidos à condição de escravos e coisas. Ir e voltar de África pode ser, também, viver e problematizar como experiência e questão sócio-histórica a saga negra tão bem elaborada como literatura no romance Um defeito de cor66 (GONÇALVES, 2009).

TÃO PERTO E TÃO LONGE DO CONGO E DOS CONGOLESES



Embora já tivesse algumas referências sobre África, as quais, diferente daquelas que obtemos sobre a Europa, não foram transmitidas na escola, aterrei na RDC insuficientemente informado. Voltei com dados novos, porém com um emaranhado de questões e inquietações sobre a chamada “Mãe África”. As cidades de Lubumbashi, capital da Província de Haut Katanga, e Kamina, capital da Província de Haut Lomami, foram meus microterritórios de referência. Em ambas, foi muito curioso perceber, desde o momento de chegada até o momento de partida, que a visita imaginada como uma mera estadia turística ganhou um caráter cerimonioso e oficial determinados pelo agenciamento dos colegas e amigos congoleses, Muleka Ditoka e Mwewa Lumbwe. A interferência de ambos foi fundamental, inclusive no que diz respeito à obtenção do visto de entrada e permanência na RDC. Ou seja, a intervenção deste casal junto à embaixada da RDC em Brasília garantiu que meu passaporte carimbado chegasse às minhas mãos, ao menos, algumas horas antes de embarcar no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, num segundo voo para Johanesburgo, África do Sul, e, em seguida, num terceiro voo para Lubumbashi.

Muleka Ditoka e Mwewa Lumbwe são africanos poliglotas que peregrinam pelo mundo e escolheram o Brasil como país de referência afro-diaspórica há mais de 30 anos. No Brasil, educaram cinco filhos, dos quais dois são nascidos em território nacional. Além de ter atuado como músico no Brasil, Ditoka concluiu um doutorado em Ciências na Universidade de São Paulo (USP), em 1989. Lumbwe também atuou na música, em parceria com Muleka Ditoka, concluiu mestrado em Crítica Cultural na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) em 2014 e é doutoranda em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A referência aos mesmos se faz necessária, uma vez que suas trajetórias pessoais e atuações fora do continente africano como africanos e em nome de África correspondem à trajetória de africanos radicados em outros contextos afro-diaspóricos e pós-coloniais. Nesse caso, ambos se aproximam do perfil de intelectuais africanos descritos e discutidos em contexto francês (GUEYE, 2001). Nesse caso, trata-se de intelectuais africanos expatriados ou repatriados que, desde a primeira metade do século XX, estiveram devotados à crítica ao colonialismo europeu, à apresentação de uma versão africana de África, à busca de integração socioeconômica que favorecesse o enfrentamento dos dramas socioeconômicos de seus países de origem, dos traumas políticos e a afirmação de uma identidade na diáspora que se pretendeu africana, mas se tornou oblíqua, ou seja, não mais exclusivamente africana nem definitivamente francesa ou brasileira, eu diria. Dessa forma, ao longo dos anos, no Brasil, Muleka Ditoka e Mwewa Lumbwe pretenderam construir, reconstruir ou estender alianças sócio-históricas e solidariedade, apresentar África para os brasileiros e o Brasil para os africanos. O retorno de ambos à África, ainda que ocasional, se impõe como esforço pessoal para resgatar o continente, mais propriamente a RDC, da pobreza material, do isolamento cultural e acadêmico-científico assim como do seu destino pós-colonial, errático e trágico. Curioso e solidário, aceitei o convite de ambos para me deslocar do Brasil e conhecer a RDC.

Devidamente instalado em território congolês, certa noite, na cidade de Kamina, eu e meus anfitriões congoleses Muleka e Mwewa, nos demoramos um pouco mais na rua, tomando alguns copos da Simba, a cerveja de fabricação local normalmente bebida em temperatura ambiente. Conversávamos sobre o Congo, sobre a vida de Jolie, mãe solteira, sobrinha de Mwewa, sobre minhas primeiras impressões de viagem. Anoiteceu, e aquela foi também uma noite sem iluminação elétrica. Voltamos para casa já tarde, de modo que, para evitar tropeços ou o caminho errado numa cidade sem placas que indicassem o nome das ruas ou número dos imóveis, nos guiamos pelo rastro das luzes de algumas barulhentas motocicletas e pela luz do celular de Muleka. De repente, numa via completamente escura, parei deslumbrado e chamei atenção para um céu estrelado onde era possível enxergar, nitidamente, diversas constelações. Pensei que há muito, muito tempo enxergara um céu noturno tão extraordinariamente iluminado. Lembrei que na ocasião em que vi um céu tal aquele congolês, eu era uma criança e vivia com meus pais já falecidos, irmãos, irmãs, tios, tias, primos, primas, parentes agregados ou “de consideração” num pequeno povoado baiano, chamado Monte Recôncavo. Aquele céu deslumbrante reforçou a impressão dos primeiros dias desde a chegada quando tive, muitas vezes, a sensação de estar no Monte Recôncavo, tamanha era a semelhança física, de atitudes e gestos entre o povo negro do Recôncavo e os habitantes de Kamina. Os dias seguintes, entretanto, me trouxeram evidências de que sob um céu cósmico aparentemente conhecido, diante de uma paisagem e numa realidade aparentemente próxima à da minha infância no Recôncavo baiano, estavam postas distâncias e deslocamentos quiçá incomensuráveis e intransponíveis.

Trago essa nota do meu diário congolês porque a mesma suscita, de imediato, uma atitude e, em seguida, uma questão que diz respeito aos brasileiros negros e negras que se deparam com África pela primeira vez. Costumamos chegar muito abertos à perspectiva do que seja familiar, em certo sentido déjà vu. Logo, tendemos a identificar semelhanças ou similitudes em situações onde estas não existem ou se constituem como pistas falsas. As práticas religiosas afro-orientadas em um lado e outro do Atlântico suscitam essa atitude, costumeiramente. Do mesmo modo, o vazio provocado pela descontínua, vergonhosa e indigna representação do negro na realidade social brasileira se projeta, como diante de um espelho, em realidades sociais nas quais os negros aparecem em inusitadas situações públicas e privadas de prestígio, obediência e dominação (LIMA, 2006; SANTOS, 2005).

Ou seja, embora haja mais pobreza material em África do que no Brasil, há situações de riqueza, honraria e autoridade determinadas pelo protagonismo de homens e mulheres negros. África contextualizada se torna, num instante, o apagamento do fantasma secular da ideia colonial do negro necessário como coisa, como escravo despossuído materialmente ou como homem liberto sem consciência histórica de sua própria condição. Ao contrário disso, o negro africano parece se apresentar como humano propriamente dito e, curiosamente, a perspectiva de fraternidade parece vir muito menos da ideia e/ou da experiência supostamente comum da raça ou da cor; viria muito mais através de uma experiência demasiadamente humana, transitiva e plena de contradições. Do mesmo modo, diria, ainda, que brasileiros negros e negras de primeira viagem em África costumam projetar, antecipadamente, para o continente a perspectiva do inferno, do paraíso perdido, da fuga ou da redenção. Ora, os africanos sempre foram grandes viajantes dentro, sobretudo, e fora do continente (BAZENGUISSA-GANGA e MBEMBE, 2012). Embora as viagens tenham sido trágicas no passado dos navios negreiros e no presente dos barcos à deriva que se dirigem à Europa, deliberadamente, os africanos fizeram seus corpos “negros”, “estranhos”, viajarem em busca de aventuras, de conhecimento, de autoconhecimento, de uma vida melhor ou foram conduzidos a viagens que submeteram seus corpos à dor da escravidão, da tortura e do exílio. Nesse sentido, África, para os africanos, nem sempre foi ou é “o melhor lugar do mundo [...], aqui [...], agora”, tal como cantou Gilberto Gil (1977). Ou seja, para os africanos

[...]. As modalidades de pertencimento à ordem do mundo que rege as mobilidades transcontinentais podem ser questionadas seja qual for o quadro espaço-temporal: a longa duração, com a escravidão, ou a duração média, com a colonização. Três status estão postos nesse caso: o cidadão, o escravo e/ou o nativo. A colonização e a escravidão alinham, de maneira diferente, estas atribuições estatutárias na dinâmica de desterritorialização do Estado-nação europeu, instituindo assim, à termo e para todos, a experiência particular de ser um cidadão e de ser ao mesmo tempo um estrangeiro em qualquer lugar e até em casa. Pode-se apreender essa experiência específica comparando-se a colonização e a escravidão. O dispositivo de enquadramento colonial distinguia o cidadão, que tinha direitos políticos, do nativo, que nasceu no país, mas não se beneficiava dele. [...]. Em resumo, desde a origem do Estado-nação desterritorializado, o africano já havia deixado seu país antes mesmo de migrar, permanecendo no "seu território". Por comparação, pode-se dizer que o escravo foi aquele que, extraditado de seu continente, perdeu "seu país" sem ter encontrado "terra" nem direito ao "solo". (BAZENGUISSSA-GANGA in BAZENGUISSA-GANGA e MBEMBE, 2006: 47.) 67.

De fato, aos poucos, fui me dando conta de que a extraordinária beleza do céu de Kamina dizia respeito também à memória do terror, da destruição material, da desestruturação social, territorial, moral, política, de suspensões ou vazios cognitivos e da morte provocadas pela colonização belga na RDC. Tratou-se de uma constatação de grande impacto até mesmo para um afro-descendente proveniente de um país ainda esgarçado pelo passado e herança dos arcaísmos da colonização, da escravidão portuguesa, assim como pelas armadilhas do “capitalismo eurocêntrico moderno/colonial” (FERNANDES, 1978; CARVALHO, 2005; QUIJANO, 1991; 2014).



A TRAGÉDIA COLONIAL E PÓS-COLONIAL DA RDC

Antes de se tornar a RDC, esse mesmo território geopolítico foi, entre 1885 e 1908, o “Estado Independente do Congo”, ou seja, uma extensão nominal do poder do rei Leopoldo II da Bélgica, em África. Na segunda metade do século XIX, Leopoldo II convenceu estados-nações e lideranças europeias a partilhar a África e se apoderou do imenso território e das riquezas naturais do antigo Congo. Dessa forma, destituiu o poder político, social e econômico de diversas comunidades nativas. Todas as terras, todas as riquezas – o marfim, a borracha, por exemplo – e todos os corpos ali existentes desde séculos anteriores se tornaram sua propriedade. Os colonos, desde então, foram obrigados a pagar impostos pela ocupação do seu próprio território, assim como passaram a ser mão de obra barata, escrava, submetida ao terror, à mutilação e à tortura física e psicológica.

Segundo Traumann (2015), os nativos eram completamente subjugados pela administração do rei Leopoldo II. As mulheres e crianças eram mantidas como reféns para obrigar os homens a fazerem a colheita penosa do látex, as aldeias eram incendiadas, os massacres eram realizados em massa, a tortura com mutilações era recorrente. Um soldado do rei que perdesse uma bala por falta de disciplina nativa ou não enchesse cestos com marfim e borracha era obrigado a completá-los com a mão direita de cadáveres ou de mutilados. Estima-se que 10 milhões de vidas, metade da população local, tenham sido dizimadas pelo rei Leopoldo II. Em 1908, depois de denúncias na Europa contra tais atrocidades, o rei perdeu seu direito de propriedade e administração do Congo. Em seguida, no período de 1908 a 1960, o antigo “Estado Independente do Congo” passou a se chamar “Congo Belga”, e esteve sob domínio e administração do Estado Belga até 1960. A colonização belga é considerada a mais cruel e a mais brutal de África Negra.

A partir de 1971, a RDC foi rebatizada como Zaïre pelo presidente Joseph Désiré Mobutu, que rebatizou também a si próprio como Mobutu Sese Seko Kuku Ngbendu Wa Za Banga ou rei Leopardo de Gbadolite. Dessa forma, o presidente Mobutu convocou todos os congoleses a readotarem suas identidades e seus nomes africanos originais. Ele governou por 35 anos até ser derrotado, em 1997, por um exército comandado por Laurent Désiré Kabila, aliado às forças armadas dos vizinhos Rwanda e Uganda. Mobutu Sese Seko alimentou o mito do Congo poderoso, pleno de riquezas naturais, habitado por um grande povo que seria espelho de seu chefe majestoso. Protegido por um exército pessoal e pela força armada nacional, Mobutu reprimia, com rigor, seus cidadãos e manifestações organizadas contrárias ao seu governo. Durante 35 anos, toda a riqueza do Congo ou antigo Zaïre foi apropriada pelo rei Leopardo, por seus aliados internos e externos. A promessa do Estado eficaz e democrático não foi cumprida. Ao contrário disso, esse presidente instalou o “mal do Zaïre”, caracterizado pela exploração econômica predatória, pela corrupção em grande escala e generalizada, pela extrema violência do Estado constituído e dos cidadãos ávidos em salvar a própria pele. Em resumo, Mobutu foi responsável pela instalação da pilhagem, da anarquia, do caos político, econômico e administrativo em parceria com agentes do “capitalismo europeizado moderno/colonial” (POURTIER, 2002; QUIRANO, 1991).

O novo governo, instaurado em 1997 por Laurent Désiré Kabila, não restituiu a paz, nem restabeleceu um governo democrático e justo para o povo congolês. Embora tenha sido rebatizado como RDC, a nova democracia instaurada, ao invés de anular os efeitos nefastos do sistema político e econômico anterior, se adaptou a esse mesmo sistema (JACQUEMOT, 2010). Do mesmo modo, dispostos a manter e se beneficiar da exploração predatória das riquezas do Congo, os aliados de ontem, Rwanda e Uganda, se tornaram novos agressores aliados de fragmentados opositores do governo de Laurent Désiré Kabila. De tal modo, tiveram continuidade a chantagem, o abandono e o massacre de milhares de vidas congolesas fronteiriças. Ngonga (2001) observa, a propósito, que desde a invasão e ocupação promovidas por Rwanda e Uganda, o sentimento do povo congolês tem sido de humilhação. Humilhação pela submissão a governos estranhos com povo menos numeroso, vindo de países minúsculos. Humilhação por assistir impassível à pilhagem dos recursos nacionais, ao massacre, ao roubo e à cruel violência sexual contra mulheres idosas, adultas, jovens e crianças. Derrotado, esse povo tem se sentido punido e maldito por Deus. Carente, pouco a pouco vem sendo capturado pelo discurso de igrejas evangélicas independentes que prometem a salvação, milagres e absolvição dos pecados (DEMART, 2008; 2013; MELICE, 2009; MADUKU, 2015).

Traído por aliados próximos, Laurent Désiré Kabila foi assassinado em 2001. No momento da sua derrocada, enfrentava enorme crise financeira, generalizada precariedade infraestrutural, relação política tensa com países vizinhos, milhões de mortos devido às disputas internas pelo poder e outros tantos milhões que não dispunham de mais que um dólar por dia para sobreviver (BRAECKMAN, 2001/2). Morto, Kabila foi transformado e cultuado como herói popular apesar da sua gestão fracassada. Seu filho, Joseph Kabila, assumiu o legado do pai e foi conduzido ao poder com grande aceitação popular. O governo de Joseph Kabyla promulgou uma nova Constituição em 2006 e se propôs a enfrentar os desafios econômicos, sociais e políticos do país herdados da colonização e de governos anteriores. Em todo caso, Jacquemot (2010) afirma que

Na República Democrática do Congo, como em outras partes da África, a corrupção atua por capilaridade e irriga a teia social e política através de circuitos pouco mensuráveis. Seja no mercado público, seja através da recuperação fiscal abusiva, seja na exigência ilegal de comissão, seja em uma empresa pública, o percentual de redistribuição de recursos aumentará, do agente da base, para o chefe de escritório, depois para o diretor, e assim por diante até o agente central do processo. A corrupção tece uma malha de poder em torno de uma rede de cumplicidades, reforça a coesão interna dos grupos em torno da predação e redistribuição de seus produtos. A corrupção permite controlar os aliados e os cortesãos, para reforçar sua lealdade. [...]. A necessidade permanente de recurso, a "necessidade de dinheiro" tão característica do cotidiano dos congoleses, obriga todos a buscar meios e fins de contornar as fronteiras entre o legalmente admissível e o legalmente condenável. Em um contexto de escassez dramática de recursos e disfunção dos serviços do Estado, a manutenção necessária da rede de relações sociais tem suas exigências; elas superam qualquer outra consideração, mesmo que seja moral. E novas obrigações nascem na cidade, como aquelas impostas por igrejas sectárias que jogam com a credulidade de seus fiéis, atraindo-os para seus templos para extrair dinheiro sob o pretexto de lhes trazer uma rápida absolvição ou cura instantânea. A corrupção não pode ser reduzida, portanto, a uma microeconomia do custo (risco de sanção) / benefício (ganho do suborno) na relação mandante-preposto. A redistribuição que a acompanha é essencial para o seu entendimento (Cartier Bresson, 2000). Na vida cotidiana, a administração é revelada como um todo, onde tudo é personalizado, relacional, onde tudo se desenrola em afinidades, compreensão mútua. O espaço da legalidade não difere claramente do espaço do delito. (JACQUEMOT, 2010: 137-138)68.

Aliás, em 2014, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) classificou a RDC na 176ª posição, entre 188 países. Atualmente, a RDC aglutina cerca de 300 etnias e tem uma população total estimada de 80 milhões de habitantes, dispersa em cerca de 2 345 410 km². Tem, ao menos, quatro línguas nacionais – Lingala, Kikongo, Tshiluba e Swahili –, o Francês como língua oficial e cerca de 450 partidos políticos instituídos. Possui uma das maiores riquezas naturais do mundo por conta dos seus recursos minerais, aquíferos, da sua fauna e flora. Está situada no coração de África. Ao norte, faz fronteira com a República Centro-Africana e com o Sudão do Sul. A leste, com Uganda, Ruanda, Burundi e a Tanzânia. A leste e sul, com a Zâmbia. A sul, com Angola, e a oeste, com o Oceano Atlântico, com o enclave de Cabinda e com a República do Congo. Recentemente, em 30 de dezembro de 2018, após 18 anos de um governo considerado autoritário e antidemocrático, o povo da RDC elegeu um novo presidente, Félix Tshisekedi. Apesar da acusação de fraude eleitoral por um dos candidatos derrotados, Martin Fayulu, há esperança de mudança, democratização, avanços sociais e transição política pacífica.



ENTRE POTENCIAIS ALIADOS E INTERLOCUTORES CONGOLESES

Em março de 2017, o Congo se encontrava sob o comando do presidente Joseph Kabyla. Ao desembarcar em Lubumbashi, antes mesmo de ser interpelado pela alfândega, fui abordado por uma senhora, funcionária da imigração, que me perguntou, amistosa e discretamente, em francês, se era o professor brasileiro que estava sendo esperado pelo padre Simon. Respondi afirmativamente e ela tentou antecipar minha passagem pelo serviço de imigração, porém, outro funcionário a advertiu para que me conduzisse à fila onde já estavam diversos estrangeiros de provável origem chinesa. O acolhimento dessa senhora me trouxe algum conforto, porém, acostumado com a automatização e impessoalidade do serviço de imigração do Brasil e de alguns países visitados anteriormente, estranhei o tratamento inicial que tive e, em seguida, o procedimento artesanal dos funcionários da imigração que, em pé, ou sentados em cadeiras de madeira, atrapalhados, registravam dados à mão, com caneta azul, em um grande caderno e variavam o humor e a expressão ao se dirigirem aos recém-chegados. Também estranhei as instalações antigas e improvisadas do aeroporto de Lubumbashi. Na portaria da alfândega, o padre Simon já me aguardava ao lado de uma sobrinha de Mwewa, Patricia. A recepção de ambos foi extremamente gentil e acolhedora. Ao caminharmos em direção ao estacionamento do aeroporto, percebi que alguns funcionários e passageiros cumprimentavam o padre Simon de modo respeitoso e solícito.

De fato, a companhia e a intervenção do padre Simon evitaram que minha bagagem fosse inspecionada desnecessária e demoradamente na chegada. Duas semanas depois, ao retornar para o Brasil, experimentei outros constrangimentos. No embarque de Kamina para Lubumbashi, vários funcionários anotaram os mesmos dados. Não havia troco para o valor cobrado para o serviço prestado. Um funcionário destacou um papel azul de um bilhete de viagem, outro destacou um papel amarelo, um terceiro carimbou. Do início até o final do atendimento, o serviço foi interrompido para atender algum conhecido ou autoridade que se aproximou. A companhia e a intervenção de Mwewa, Muleka e de alguns outros professores da Universidade de Kamina facilitaram meu embarque e me dispensaram do constrangimento de atender ou negar o apelo por gorjeta de uma funcionária da imigração. Alguns dias depois, embarquei de Lubumbashi para Johanesburgo, e a sensação de improviso e tratamento personalizado se agravou. No aeroporto de Lubumbashi, novamente, a intervenção do padre Simon impediu que minha bagagem fosse aberta desnecessariamente por um funcionário da imigração e facilitou o lento processo de verificação de bilhete, documentação e despacho de bagagem.

Os dias que se seguiram em Lubumbashi e Kamina me permitiram compreender melhor o que se passou no aeroporto, na chegada e saída da RDC. Os contatos pessoais na RDC obedecem a uma hierarquia definida por ocupação profissional, prestígio social, gênero e faixa etária. Do mesmo modo, numa sociedade cuja estrutura burocrática está contaminada pela corrupção e por relações estamentais, os sujeitos que estão na base da estrutura social abusam e burlam os princípios hierárquicos ao mesmo tempo em que são submissos diante daqueles que evidenciam importante ocupação profissional, prestígio e posição social destacada. Desconhecido, na condição de estrangeiro, vulnerável, era sempre aconselhável que estivesse acompanhado por um nativo, de modo a evitar abusos e, da minha parte, comportamento em desacordo com os códigos culturais locais ou em desacordo com a atitude autovigilante que os congoleses me pareceram ter. Por exemplo, Patricia, minha guia em Lubumbashi, me desaconselhou fazer fotos de prédios oficiais, sobretudo os prédios que acomodavam órgãos e autoridades do sistema de polícia do país. A mesma observação me foi feita por Mwewa e Muleka em Kamina. Segundo eles, correria o risco de ser interpelado e ter minha câmara ou celular apreendido por algum agente do sistema de vigilância e segurança nacional.

Hierarquia e prestígio social se evidenciam, claramente, diante de um padre, um pastor evangélico, um professor, um homem maduro – “papa” ou “tata” – ou uma mulher madura, casada e com filhos – “maman”. Estas pessoas, a princípio, são tratadas com distinção e costumam ter atenção privilegiada em situações do dia a dia. No caso das mulheres, por um lado, é um fato a subordinação do gênero feminino na RDC, evidenciada no fato de não ter encontrado uma única professora regular na Universidade de Kamina, na submissão que a esposa consagra ao marido, na estigmatização da mãe solteira, no constrangimento causado pela atitude pró-ativa de minha anfitriã Mwewa Lumbwe e pelo protagonismo que lhe atribuía seu esposo, Muleka Ditoka, no ambiente universitário e no cotidiano comunitário. Por outro lado, o senso comum costuma supor que uma “maman” está sob a proteção e a autoridade de um “papa” que talvez não tenha o prestígio e o poder de um padre, de um professor ou de um funcionário da administração do Estado, mas tem poder e prestígio como patriarca de um núcleo familiar. Em cada núcleo familiar, a mulher mãe, esposa e dona de casa exerce um papel importante como mantenedora do status do marido e transmissora de valores patriarcais para a prole numerosa, que costuma estar privilegiadamente sob sua atenção e cuidado. Uma “maman”, portanto, costuma representar e replicar publicamente o patriarca familiar. Proteger e respeitar a “maman” sugere uma proteção e respeito ao patriarcado.

No caso de um padre, pastor evangélico ou professor, poder e prestígio são agregados por conta dos seus vínculos profissionais que lhes destacam de uma massa de congoleses que não têm acesso à escola, que não têm facilidade em circular dentro e fora do país, que não dispõem de um salário fixo e relativamente alto que permita a esses sujeitos transferir recursos e favorecer a pequena economia de cidades empobrecidas, como Lubumbashi ou Kamina. Além disso, a escola e a igreja são um forte símbolo do poder, da memória e da riqueza do homem branco colonial. Não é por acaso que os professores visitantes ou belgas costumam ser hospedados no mais confortável e custoso hotel da cidade de Kamina, embora esse hotel não disponha de serviços básicos, como água encanada para banho, para cozinhar ou para serviços domésticos. Aliás, segundo meu anfitrião Muleka, inicialmente, teria havido resistência de segmentos da Universidade de Kamina, para que tivesse custeada minha hospedagem no referido hotel. Contra mim, operou o fato de não ter sido convidado como professor visitante para ministrar curso semestral e, muito importante, o fato de não ser um professor branco e belga.

Tanto em Lubumbashi quanto em Kamina, encontrei extrema pobreza e precariedade infraestrutural. Em Kamina, o sistema de energia é irregular. Ocorreu, às vezes, passarmos até um dia inteiro sem energia elétrica. Transporte público de massa não existe. A Universidade de Kamina funciona com recursos públicos muito parcos que pagam apenas o salário de professores e funcionários. Nesse caso, tem como grande trunfo a motivação e empenho de alunos que, anualmente, pagam cerca de 100 dólares, enorme quantia, por uma vaga, e de professores que formam enfermeiros, agrônomos, profissionais da informática ou da comunicação sem laboratórios ou com laboratórios precariamente equipados, assim como formam cientistas sociais com bibliografia ultrapassada sem contato com pesquisadores e instituições estrangeiras. O acesso à internet é muito ruim, intermitente e caro, mesmo para um não africano. Na ocasião, a saúde pública sofria com surtos de malária, febre amarela e febre tifoide.

Na Universidade de Kamina, proferi duas conferências. A primeira sobre a religião afro-brasileira do candomblé. A segunda sobre relações raciais e música negra no Brasil. Tanto o primeiro tema abordado, religião afro-brasileira, quanto o segundo, relações e desigualdades raciais, causaram estranheza entre meus ouvintes, fossem eles estudantes e professores universitários ou religiosos católicos, muçulmanos e protestantes. Os congoleses mantêm a memória do branco nefasto e colonizador, reconhecem seu poder no passado sobre suas terras, sobre suas riquezas, sobre seus antepassados. Reconhecem a intervenção colonial sobre as perspectivas da RDC e de suas vidas pessoais, porém, localmente, não experimentam a desigualdade racial, as perturbações psíquicas, a violência física e simbólica do racismo cotidiano nos termos, por exemplo, do racismo em contexto brasileiro. Ou seja, por um lado, o racismo parece não se apresentar na realidade próxima onde todos se equivalem racialmente, embora não sejam equivalentes do ponto de vista étnico. Por exemplo, em 15 dias consecutivos entre Kamina e Lubumbashi, encontrei apenas uma única pessoa branca, um curioso e dedicado padre, Père Philippe, eslavo formado na Bélgica e na Alemanha, fluente em francês, swahili e kiluba, idealizador e mantenedor de um museu dos Baluba e tradutor das escrituras sagradas católicas para o kiluba. Por outro lado, o racismo costuma se apresentar nas relações bilaterais entre RDC e países ocidentais, na negação, pelos próprios congoleses, das tradições culturais, das línguas nativas e de marcas fenotípicas negras. De tal modo, a desigualdade social, as perturbações psíquicas, a violência física e simbólica, cotidianas, são suscitadas muito menos por um racismo local e mais pela pobreza extrema, pela fome, por conflitos étnicos perenizados pela guerra entre o Estado ineficaz e os diversos grupos políticos armados internos e de países inimigos vizinhos, que disputam o poder político e as riquezas do Congo.

Nesse contexto, o candomblé afro-brasileiro, mesmo aquele de versão congo-angola, que cultua divindades nomeadas como nkisis, encontradas no Congo (SOUZA, 2002), que tem a referência de línguas faladas no Congo, como o kikongo e kimbundo, também parece não fazer qualquer sentido para os congoleses, embora façam sentido a memória e o culto aos ancestrais, difusos, muitas vezes, no seio do núcleo familiar ou em zonas rurais mais afastadas de cidades como Lubumbashi e Kamina. A propósito, quatro questões levantadas após minha conferência sobre o candomblé afro-brasileiro me pareceram muito curiosas e merecem ser relatadas aqui. Na primeira, um estudante me perguntou de que modo o candomblé determina o casamento e constituição da família. Na segunda, um professor me perguntou em que medida o candomblé contribui para o desenvolvimento da humanidade. Na terceira, outro estudante me perguntou se o candomblé despreza a palavra do deus cristão e se aceita Jesus; na quarta, a mais intrigante a meu ver, um líder religioso muçulmano me perguntou se o candomblé não tinha um livro sagrado como referência. Caso contrário, disse-me estupefato, o sagrado viria da cabeça de cada pessoa.

As questões que me foram postas e mencionei acima, a meu ver, sugerem a importância e o impacto que a religião parece ter no dia a dia, na constituição social das pessoas ou em suas perspectivas de autossuperação e futuro. Logo após minha conferência sobre o candomblé e até este momento, setembro de 2019, meus anfitriões, Mwewa Lumbwe e Muleka Ditoka, reafirmam o grande impacto dessa conferência sobre meus ouvintes congoleses. Uma suposta razão para isso é o fato de que se os congoleses não conhecem o candomblé, conhecem cultos e práticas religiosas tradicionais e rurais semelhantes, em alguns aspectos. Essas práticas e cultos têm sido reprimidos antes e depois da colonização belga. Têm sido mesmo diabolizados pelo discurso religioso cristão, particularmente aquele de versão neopentecostal, têm sido acusados de promover o atraso social, econômico e uma mentalidade que aprisiona o congolês em sua própria desgraça antimodernização capitalista (DEMART, 2008; 2013; MELICE, 2009; MADUKU, 2015).

A propósito, Demart (2008) argumenta que o neopentecostalismo congolês prega e convence seus fiéis de que todo tipo de “bloqueio” ao bem-estar físico, moral, emocional, espiritual e material será superado em um “tempo” concebido e acionado por um “plano maravilhoso” de Deus. Dessa forma, afirma a autora, os “bloqueios” postos no tempo e espaço histórico e estrutural do Congo são recuperados, reinterpretados, transpostos e regulados por um registro teológico cristão. Em um contexto sócio-histórico e cultural trágico, tal qual o da RDC, o neopentecostalismo, portanto, opera uma batalha pela integração a uma perspectiva de mundo ocidental, moderna e capitalista fora e dentro do Congo. Essa batalha não pretende redimir a tragédia sócio-histórica de uma nação. Ao contrário disso, pretende a redenção, a promoção e construção de um self made man congolês de inspiração ocidental, moderna e capitalista. Desse modo, o cristianismo congolês restituiria um continuum híbrido, evolutivo e flexível entre colonialismo e pós-colonialismo. Restituiria a história e contornaria a trágica estrutura social do presente, sem ter que convocar o passado, convocando, ao contrário disso, para cada indivíduo, um futuro previsto, vitorioso e regulado pelas escrituras sagradas cristãs.

Demart (2008) observa, entretanto, que o discurso neopentecostal e cristão não é capaz de superar todas as tensões e descontinuidades entre passado e presente. Ou seja, há uma margem de ineficácia do discurso cristão, uma vez que o indivíduo existe no tempo histórico, na estrutura social, na comunidade e no estado-nação, logo, não possui plena autonomia na sua reinvenção com sujeito social. Acredito que também possa atribuir a isso, ou seja, a essa margem de ineficácia do discurso cristão, o impacto que o discurso da minha conferência provocou entre os meus potenciais aliados e interlocutores congoleses. Segundo me informaram meus anfitriões congoleses, Mwewa Lumbwe e Muleka Ditoka, foi a primeira vez que a Universidade de Kamina recebeu e ouviu um pesquisador brasileiro e teve notícias do Brasil. A fala sobre uma tradição afro-religiosa, proferida por um pesquisador e professor universitário brasileiro, doutor, afro-descendente, homossexual, originário de um país mais integrado à modernidade perversa que a RDC almeja alcançar, pode ter mobilizado uma reflexão sobre a dignidade das experiências ancestrais dos congoleses, assim como pode ter promovido uma desconfiança em relação às promessas alardeadas pelo processo em curso de ocidentalização e modernização cristã.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vou concluir contextualizando a frase em francês que intitula este artigo. Alguns dias antes de embarcar para o Brasil, novamente hospedado na Paróquia Saint Raphael, em Lubumbashi, administrada pelos padres Simon, Christophe e Marc, enquanto observava o movimento dos fiéis que participavam de uma missa celebrada pelo padre Christrophe, um grupo de crianças muito curiosas se aproximou de mim e conversamos um pouco. Fiz várias perguntas ao grupo, quase sempre respondidas por uma garota falante, com cerca de 10 anos, que liderava o grupo. Entre elas, várias vezes, encontrei o olhar de outra garota que, calada e séria, me observava todo o tempo de modo incisivo e escrutinador. De repente, ela me lançou a seguinte pergunta: “Quelle est votre tribu?” Estupefato com a questão lançada, por alguns minutos, não soube o que responder.

O termo tribu, ou “tribo” em português, me incomodou já que, ao menos no Brasil, se considera que esse termo é uma referência pejorativa a grupos étnicos e às distintas sociedades indígenas constituídas no passado e a outras ainda contemporâneas. Além disso, não soube imediatamente explicar àquela garota de que modo a diferença constituída por meu corpo e pela minha presença, constatada por ela, estava marcada no contexto brasileiro. Muito menos oportuno me pareceu usar o mesmo termo “tribo” para descrever a presença indígena no Brasil e de que forma me aproximava ou me distinguia da mesma. Num segundo momento, depois de ter improvisado uma resposta me afirmando como brasileiro, passei a supor que aquela curiosa garota acreditou, apesar da incerteza, que pudesse pertencer a algum grupo étnico congolês desconhecido ou ser originário de algum país africano vizinho. Essa suposição se fundamentou no fato de ter sido confundido, dias antes, em um mercado de Lubumbashi com africanos da Tanzânia, que costumam ter a cor da pele mais clara do que a dos congoleses, assim como no fato de que em Kamina alguém me disse que na RDC havia um grupo étnico com fenotipia equivalente à minha. Aliás, fui apresentado a um professor que pertencia a esse grupo e, de fato, parecíamos um com o outro.

Na noite do mesmo dia, contei essa experiência aos padres Marc e Christophe. Eles fizeram avaliações distintas e chegaram a conclusões também distintas. Na opinião do padre Marc, uma criança não deveria formular esse tipo de questão. O que se viu, disse ele, foi um problema de má educação doméstica. A ênfase na diferença étnica de um indivíduo fragilizaria o sentimento de pertença à nação congolesa ainda frágil. Na opinião do padre Christophe, não se tratava disso. A nação ainda frágil em um país com cerca de 300 grupos étnicos, uma língua oficial colonial, quatro línguas nacionais e outras tantas locais e mais de 400 partidos políticos, não deveria chegar a uma formulação de equivalência através do sufocamento ou do desprezo às diferenças que de fato existem. Disse, por fim, o padre Christophe que o grande desafio da RDC será fazer valer o que sugere seu próprio nome, construindo a equivalência da nação no contexto das diferenças sociais postas.

Apesar de não ter tido a oportunidade de uma inserção etnográfica mais densa (GEERTZ, 1989) na RDC, tendo a concordar com o padre Christophe, embora acredite que o estado-nação congolês não tem seguido sua sábia orientação. Pelo contrário, a RDC, até então, seja no que diz respeito a uma ordem social, política ou econômica, tem sido concebida e existe como expressão do terror e destruição da diferença e dos contrários. Até mesmo o processo de modernização cristã proposto pelo catolicismo ou pelo pentecostalismo, a meu ver, é uma expressão da intolerância à diferença e aos contrários assim como uma obediência ao processo sócio-histórico que Anibal Quijano definiu como “colonialidade do poder69”. Embora os cristãos transfiram riqueza para o Congo, amenizem a pobreza e cumpram, muitas vezes, o papel do Estado, por exemplo, oferecendo acesso à escola e qualificação para o mercado de trabalho, barganham almas pagãs que são induzidas ao desprezo por suas tradições culturais, línguas ou concepções de realidade ou são induzidas à dissimulação uma vez que acontece muitos convertidos proclamarem e defenderem atitudes e valores que não praticam. Há quem vista pele de cordeiro, pele negra e máscara branca no Congo (FANON, 2008).

Por fim, como afro-brasileiro antirracista, antiessencialista, esperançoso por justiça social e pluralismo sociocultural no Brasil e na RDC, em eterno retorno de África, chego a pensar que a negritude que se expressaria através da raça, do racismo e de um essencialismo racial ou cultural não se confunde com uma negritude a se expressar através da luta e questionamento da história colonial, das guerras, das disputas interétnicas, da desigualdade racial, da pobreza, da fome e das armadilhas do “capitalismo eurocêntrico moderno/colonial” na RDC e no Brasil. Novamente, me dou conta de que os caminhos afro-brasileiros e africano-congoleses não se cruzam espontaneamente, que os tangenciamentos sociais e históricos não são, necessariamente, óbvios e imediatos, uma vez que nem sempre teremos experiências, crenças e valores a compartilhar. Do mesmo modo, diria que o esforço de modernização da RDC terá que ser capaz de vencer os entraves determinados pelas perspectivas de identidades étnicas variadas, pelas tensões entre as regras tradicionais de sociabilidade e a reivindicação de identidades sociais características do mundo moderno, também falacioso, destrutivo e colonial.





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[Recebido: 04 abr 2020 – Aceito: 07 jul 2020 ]


REFLETINDO SOBRE AS ARTICULAÇÕES DA LITERATURA E CULTURA POPULAR PRESENTES NA TRADIÇÃO ORAL CAXIENSE: A LENDA DA VENEZA COMO VIÉS DE ABORDAGEM


REFLECTING ON THE ARTICULATIONS OF LITERATURE AND POPULAR CULTURE PRESENT IN THE ORAL TRADITION OF CAXIAS-MA: THE LEGEND OF VENICE AS AN APPROACH



Odilene Silva do Nascimento Almeida70

https://orcid.org/0000-0001-8050-9453


Algemira de Macêdo Mendes71

https://orcid.org/0000-0002-9253-7088



RESUMO

As relações pertinentes ao cenário das lendas e histórias oriundas da tradição oral refletem a expressiva diversidade de modelos culturais, sociais, históricos, ideológicos, dentre outros. Nesse sentido, o presente estudo versa sobre a importância de discutir as influências que a literatura e a cultura popular apresentam no contexto da cidade de Caxias – MA, tendo como alicerce a Lenda da Veneza. A proposta, assim, nasce da tentativa de compreender como as articulações provenientes dessa conjuntura correspondem a aspectos representativos de uma espécie de testemunho, das memórias de um lugar, bem como dos indivíduos que estão inseridos nele. Para tanto, usaremos como teóricos: Zumthor (2014), Azevedo (2019), Cascudo (2010), traçando a discussão acerca da literatura e cultura popular.


Palavras-chave: Literatura Oral; Lenda; Memória.


ABSTRACT


The pertinent relations to the scenario of legends and stories from the oral tradition reflect the expressive diversity of cultural, social, historical, ideological models, among others. In this sense, the present study deals with the importance of discussing the influences that literature and popular culture present in the context of the city of Caxias - MA, having as a foundation the Legend of Venice. The proposal, therefore, arises from the attempt to understand how the articulations arising from this conjuncture correspond to aspects representative of a kind of testimony, of the memories of a place, as well as of the individuals who are inserted in it. For that, we will use as theorists: Zumthor (2014), Azevedo (2019), Cascudo (2010), outlining the discussion about literature and popular culture.


Keywords: Oral Literature; Legend; Memory.



INTRODUÇÃO


A literatura proveniente da tradição oral permeia um longo caminho dentro da sociedade, sobretudo pelo fato de estar atrelada a um sentimento de pertencimento, de reconhecimento das origens de um povo. Suas características ultrapassam a simples transmissão de informação por meio da oralidade, haja vista que representam a disseminação da história e do conhecimento por meio de causos, invenções e/ou formas de manifestação da linguagem, com um conteúdo dotado de significação imbuído nessa perspectiva.

Na visão de Zumthor (2014), a natureza da literatura popular pode ser delimitada em face de sua abordagem recontada ou reelaborada, porém sua marca é pautada pelo trabalho da oralidade, refletindo numa conjuntura carregada de elementos associados à transmissão e recepção do texto. Isso implica dizer que sua presença envolve uma esfera coletiva, podendo ser constituinte de uma realidade que absorve uma série de fatores provenientes do contato com uma criação literária, transmutada pelo possível local de realização.

Sabe-se que Caxias é uma cidade com forte presença da cultura, poesia, história, sendo considerada como um berço de uma literatura rica e de expressão nacional. Desse modo, no que tange à literatura popular, sua presença é, de igual modo, bastante considerável, em virtude de suas lendas e mistérios. Os habitantes mais antigos da cidade propagam uma herança cultural fortemente identificada na fala e expressão dos mais novos, uma vez que continuam a disseminar os testemunhos de outrora como fatos verídicos que, de alguma forma, respondem aos questionamentos deixados ao longo do tempo, a respeito dos mais variados temas.

Diante disso, a reflexão acerca da Lenda da Veneza oportuniza o entendimento das articulações presentes no contexto da sociedade caxiense, a partir da busca, no passado, de reminiscências que circulam no imaginário de um povo, bem como do poder que a literatura dispõe, nesse viés. Assim, os traços advindos da oralidade assumem o papel de disseminar informações que podem servir como explicação da própria história, sendo a Veneza o marco de uma memória coletiva, contada e recontada através do tempo.







OS ASPECTOS DA LITERATURA E CULTURA POPULAR NO CONTEXTO DA CIDADE DE CAXIAS


O discurso oral equivale às marcas deixadas pela palavra e seus aspectos semânticos, delineados por configurações provenientes de realidades complexas e diversificadas, valendo-se das interferências instituídas em cada contexto. Quando se trata das narrativas que circulam no seio da literatura popular caxiense, faz-se pertinente ressaltar os elementos oriundos da busca pela conservação da tradição, dos enredos que a compõem, e da tentativa de manter viva a herança repassada de geração em geração, por meio das lendas.

No que tange aos aspectos da tradição oral, a literatura e a cultura popular absorvem uma tônica encadeada por relações dotadas de conteúdos e valores fundamentados em manifestações de cunho simbólico; sendo assim, condensadas por uma ideia de pluralidade. Nesse sentido, o percurso que as narrativas disseminadas por meio da oralidade atravessam constitui-se como uma volta ao passado, bem como tentativas de trazer justificativas para fatos que fazem parte da esfera do real, das vivências firmadas no momento presente.

Caxias dispõe de uma série de histórias, lendas e mitos correspondentes a sua origem e fundação, seus habitantes, pontos turísticos, assim como outros tantos elementos que compõem o imaginário de sua população. Esse vasto cenário pode ser considerado como representativo de um apego à sensibilidade e fruição, trazendo concepções que se alicerçam no jogo de símbolos, imagens e conteúdos, na cadência oportunizada pela transmissão oral, a conversa espontânea.

De acordo com Cascudo (2010, p. 89), “todas as cousas têm uma história no tempo e uma estória para sua divulgação compreensiva”, de tal modo que as lendas existentes em Caxias atravessam variantes intensificadoras de uma constância materializada entre o real e o fantástico, denotadas por uma conjuntura singular, próprias do seu lugar de origem. Essas lendas articulam-se com as experiências vivenciadas pelos mais velhos, por pessoas que conservam na memória o conhecimento adquirido através de seus antepassados.

Refletir sobre a literatura e a cultura popular significa mergulhar em uma atmosfera delineada por vozes plurais, dando margem a interpretações de natureza emblemática, dotadas de um conjunto de representações (AZEVEDO, 2019). Isso implica numa espécie de processos que debatem temáticas arcaicas, mas que, de algum modo, traçam uma perspectiva do momento atual, como se tudo aquilo vivenciado outrora remetesse a algo do presente, estabelecendo uma explicação aproximada dos fatos que ocorrem no mundo material, no plano tangível.

Diante dessa perspectiva, o solo caxiense é um ambiente propício para esse encontro entre crenças, valores e demais aspectos advindos da conjuntura oral, haja vista suas raízes históricas, sua herança literária, sendo local fecundo para a disseminação de narrativas imbuídas no plano da abstração e do concreto. Além da Lenda da Veneza, tantas outras podem ser citadas, a saber: Serpente da Igreja do Rosário, Anjo da Catedral, Onça Lídia, Palmeiras da Praça Gonçalves Dias e Mãe D’água, sendo, estas, pequenos exemplos de como as formas populares podem ser apreciadas.

Tomando por base as inúmeras lendas que pairam sobre Caxias, entende-se que a cultura popular equivale, em seu sentido mais amplo, às consequências de situações e atividades fortalecidas no dia a dia, nas relações humanas. O agir e o pensar, enquanto agentes de significação da oralidade, podem ser evidenciados pela fluência dos textos orais que circulam entre as gerações, marcando uma forma de personificação de identidades sociais, nas quais as lendas também atuam como propiciadoras dessa condição, gerando informações e propagando conhecimento a todo instante.

Com isso, os textos que se encontram no cerne da transmissão oral fomentam bem mais que a assimilação de ideias e pensamentos, pelo contrário, estão dispostos numa tessitura de compreensão reflexiva, tendo em vista sua proposição a um contexto, bem como “realidade do pensamento e das vivências” (BAKHTIN, 2003, p. 307). Toda essa conjuntura acaba sendo determinada pela ação do tempo, seja em sua magnitude cronológica, seja em sua concepção de experiência vivida, mediando questões que atravessam as ações humanas.

As narrativas que fazem parte da literatura popular caracterizam-se por uma linguagem simples e acessível, de modo que a voz se encontra firmada em correspondentes típicos do âmbito coletivo, da comunicação de maneira imediata, mas que mantém o compromisso com o conteúdo, com a mensagem a ser repassada (CASCUDO, 2010). A oralidade acaba, assim, constituindo uma parcela da tradição cultural, dos enredos que pairam no ambiente em que essas histórias são evidenciadas com mais veemência.

Ainda, no que concerne à oralidade, é de suma importância refletir sobre seu papel na transmissão dessas narrativas, valendo-se de aspectos ligados ao processo criativo, bem como fornecendo informações sobre as características do lugar, das influências sociais e históricas adquiridas ao longo do tempo, dentre outros. Desse modo, a ideia de coletividade, de experiências plurais acaba ganhando destaque, traçando correspondentes que subsidiam a disseminação da literatura oral.


Transmitida a obra pela voz ou pela escrita, produzem-se, entre ela e seu público, tantos encontros diferentes quantos diferentes ouvintes e leitores. A única dissimetria entre esses dois modos de comunicação se deve ao fato de que a oralidade permite a recepção coletiva (ZUMTHOR, 2014, p. 55).


Nesse contexto, as lendas podem ser entendidas como parte do acervo cultural e literário de uma sociedade, possuindo manifestações ricas de um complexo universo narrativo. Há, nesse ínterim, fontes inesgotáveis da tradição, da mistura de significados, de diferentes visões de mundo, marcando um sistema amplo e de matriz, sobretudo, heterogênea.

O conhecimento adquirido, assim, por meio dessa realidade, é passível de valor acumulativo durante as várias gerações que se sucedem, sendo ativado e recuperado constantemente, conforme interesses individuais e coletivos. A partir dessa nuance, Caxias absorve uma gama de episódios que remetem ao caráter rememorativo, da volta ao passado por meio das histórias ali vivenciadas, muitas delas assumindo um viés lendário que, de alguma forma, responde às expectativas e curiosidades sobre os causos e eventos ocorridos em seu solo.

A partir disso, é importante discutir o poder que as lendas exercem no seio da cultura popular, diferenciando-se da fábula, por exemplo, através de seu caráter próximo das ações concretas, ainda que baseadas em componentes passíveis de abstração e ideal imaginário e/ou fantástico.

Na fábula pode intervir o sobrenatural, mas esse não é o elemento típico. Nas lendas é a própria atmosfera. É preciso crer porque elas se articulam com o patrimônio da tribo que nos hospeda. [...] A lenda, legenda, traz a ideia de leitura, do gráfico, a imobilidade que se reveste de um ligeiro ritual, determinando a meia certeza da credulidade (CASCUDO, 2010, p. 102).

A compreensão dos aspectos da literatura e cultura popular estabelece um caminho longo e multifacetado, no qual há o entrelaçamento de circunstâncias pluralizadas, instituindo, em seu interior, não somente suas características particulares, mas também elementos que destoam entre si, formando uma cadeia de informações interligadas pela forma orgânica da transmissão oral.

As experiências rememoradas pelos mais antigos servem de patrimônio imaterial, passando a ser vistas como o conjunto de elementos que compõem um lugar, o que também acontece em Caxias. As lendas que fazem parte da cidade articulam-se como agentes de preservação da memória, da história, das relações mantidas nesse espaço. A população, passa a ter contato, assim, com situações que remontam a locais e fatos importantes para a literatura e manifestações culturais que compõem o imaginário caxiense, misturando o real e o fantasioso num mesmo compasso.

Assim, cada palavra contida nas lendas produz um efeito de sentido singular em seu público, caracterizando uma transmissão de informações que fazem parte de um sentimento de pertencimento, de tessitura de uma literatura e cultura popular regionalizada. Há o reconhecimento de elementos instituídos no campo simbólico, que assumem valor além da matéria concreta, disseminando um teor reflexivo acerca da identidade do povo, dos costumes, da tradição, dos aspectos religiosos, assim como dos demais elementos que favorecem a perpetuação de suas raízes.



ABORDAGENS SOBRE A LENDA DA VENEZA E SEU TEOR REPRESENTATIVO


As lendas compreendem um importante espaço no imaginário de um povo, constituem-se como representativas de situações que atravessam o tempo, sendo repassadas de geração em geração através da oralidade. Seja para tentar explicar fenômenos naturais, a origem de um lugar ou objeto, bem como para servir de encantamento aos ouvidos daqueles que apreciam uma boa narrativa, recheada de mistérios e com desfechos surpreendentes; o fato é que compõem um universo rico, perdurando de forma imanente.

No que tange à Lenda da Veneza, é pertinente depreender seu forte valor cultural para a cidade de Caxias, visto que está vinculada a um cartão postal da cidade, que carrega o nome de Balneário Veneza, um ponto turístico que recebe inúmeros visitantes ao longo do ano, despertando a curiosidade por sua famosa lama medicinal e histórias que circulam no local. Sua fundação remonta a épocas longínquas, mais precisamente no século XIX, tendo por primeiras denominações Sítio Carreiro e, anos depois, Sítio Veneza (IGBE, 2017).

O enredo que envolve a lenda assevera sobre uma menina, cujo nome era Veneza. Ela morava juntamente com seu pai e sua madrasta na zona rural de Caxias – MA, notadamente, no que atualmente se conhece pelo balneário de igual denominação. Em um certo dia, a madrasta pede que a menina vá ao comércio e traga alguns utensílios, porém o pedido é negado, haja vista a enorme distância entre os respectivos locais. A resposta de Veneza provoca a ira na madrasta, a qual coloca em prática um plano aterrorizante, de modo que a menina é espancada até a morte, tendo seus restos mortais socados em um pilão, transformando-se em lama negra.

A partir desse episódio, o local passou a ser encantado pela alma da menina, assim suas lágrimas assumiram a forma de água mineral e, seu corpo, a lama medicinal encontrada no fundo do lago. Desse modo, é possível identificar que a temática que envolve a lenda aludida é bem mais que uma simples história conservada no tempo, trata-se de uma parte da memória pertencente ao solo caxiense, norteada por elementos que admitem a esfera material, mas que, de alguma forma, encontra explicação nos episódios de outrora, tidos como parte do imaginário.

Nesse sentido, as lendas admitem uma aproximação a situações ou fatos desencadeados em uma determinada região ou lugar, em razão de diálogos com a tradição cultural, com fatores relacionados ao campo social e histórico. Essas narrativas acabam transcendendo seu espaço de circulação inicial, abrindo margem para que surjam adaptações, ou mesmo propiciem a criação de outros enredos com temáticas que dialogam entre si, mantendo familiaridade com o texto original.


A literatura oral brasileira reúne todas as manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição. [...] Se comporá dos elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual. Indígenas, portugueses e africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas e cantores profissionais, uma já longa e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar (CASCUDO, 2010, p. 16-17).


A Lenda da Veneza representa uma parte da história da cidade, dos mistérios que permeiam seus encantos e particularidades. A lama, considerada medicinal, é um dos principais atrativos dessa interessante narrativa, pois representa a materialização do poder de cura, através do próprio corpo da menina Veneza, da cor negra, constituindo-se, ao mesmo tempo, como símbolo de luta.

Nesse viés, o traço da oralidade funde-se com o pensamento de construção de identidades, com a materialização de aspectos advindos do plano da abstração, em virtude de Veneza representar bem mais que uma lenda, mas a experienciação de uma história, das raízes culturais e sociais de Caxias. É meramente impossível falar da cidade sem citar a lenda que rege o seu cartão postal, o Balneário Veneza.

Conforme Azevedo (2008), a literatura oral representa um forte vínculo com a compreensão das culturas de um povo, bem como suas diversas manifestações. O caráter informal ganha lugar de destaque, tendo em vista que a transmissão das histórias ocorre pelo boca a boca, por conversas de forma espontânea, trazendo para o centro da discussão o compartilhamento de informações através da sutileza, das realizações singelas da fala.

Em virtude dessa abordagem, as temáticas que são instituídas a partir de lendas servem de arcabouço para perspectivas que contemplam relações humanas, em suas ramificações possíveis. Trata-se de uma maneira diferente de tecer reflexões sobre eventos do cotidiano, que dizem respeito a pessoas simples, vistas a partir do olhar de fora, o olhar contemplativo, entrelaçadas pela esfera coletiva em sua completude.


Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo (CANDIDO, 2006, p. 35).


Essa proeminência de significações constitui-se como parte da efervescência literária e cultural, absorta em fatores que descendem de crenças e heranças com raízes ligadas a diferentes povos, à mistura de raças e, consequentemente, suas histórias. Elas desmistificam uma concepção única de cunho religioso, fomentando o contato com múltiplas práticas, permeadas pela ideia da natureza divina, dos elementos que simbolizam essa conjuntura.

Segundo Zumthor (2014), a movência do texto oral reúne aspectos que agem de forma isolada, mas que coadunam com dimensões atreladas ao contexto de produção da literatura popular, configurando uma imagem corporificada. Desse modo, é possível perceber que a Lenda da Veneza também congrega essa ideia de corporeidade, haja vista que a performance, aqui, será regida pela totalidade da percepção sensorial trazida por meio do enredo para o plano concreto; os elementos que compõem a narrativa da menina não ficam presos apenas ao plano do imaginário, a lama e a água mineral podem ser os representativos dessa dinâmica performática e simbólica.

Baseado nessas considerações, a Lenda da Veneza oferece uma ampla possibilidade de mergulho na literatura e cultura popular, em virtude de trazer características voltadas para a valorização dos bens culturais e imateriais de Caxias. Seu teor representativo admite uma disseminação da história da cidade, oportunizando uma integração entre os sujeitos e o meio em que estão inseridos, bem como colocando em foco a reflexão sobre diferentes formas de abordagem de narrativas que compõem o cenário do místico e das crenças na natureza.






A LITERATURA E A CULTURA POPULAR COMO ELEMENTO DE CONSERVAÇÃO DA MEMÓRIA


É oportuno considerar como os aspectos memorialísticos fomentam uma profunda discussão em face da literatura e da cultura popular, tendo em vista seu viés transformacional e em virtude de seu teor marcante da oralidade e suas temáticas estabelecidas no tempo e no espaço, circunscritos nas mais variadas realidades. As categorias que contemplam essa relação são bem mais complexas do que parecem, mas também dispõem de um caráter voltado para o viés do ponto de vista da originalidade, bem como do contato com desdobramentos pertinentes à esfera social, histórica e cultural de um povo.

Nesse sentido, quando se trata da cultura popular, esta não é tida em contraponto com a de cunho erudito e/ou acadêmica, mas sim como forma de coexistência, ou seja, como uma expressão que compreende características próprias e singulares, visto que também resiste ao tempo e a suas transformações (CHAUÍ, 1996). Baseado nisso, o aspecto oral ganha uma dimensão transmutada pela relevância de sua presença na esfera cultura, visto que a voz é um importante aspecto a ser considerado dentro do âmbito das histórias instituídas no espectro do popular.


Dizendo qualquer coisa, a voz se diz. Por e na voz a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou em nós; sobretudo pelo fato de que nossa infância foi puramente oral até o dia da grande separação, quando nos enviaram à escola, segundo nascimento. Não se sonha a escrita; a linguagem sonhada é vocal. Tudo isso se diz na voz. A voz é uma forma arquetipal, ligada para nós ao sentimento de sociabilidade. Ouvindo uma voz ou emitindo a nossa, sentimos, declaramos que não estamos mais sozinhos no mundo (ZUMTHOR, 2014, p. 87).


Dentro das inúmeras histórias que depreendem o universo da literatura e cultura popular, é notório delimitar que as crenças e costumes de um povo configuram-se como um dos elementos indispensáveis, sobretudo, por sua natureza simbólica. As reminiscências evocadas desse contexto são parte de uma experiência que ultrapassa a esfera social, ligando elementos influenciados por hábitos e costumes variados.

As narrativas que disseminam as ideias contidas na literatura e cultura popular refletem a manutenção das experiências vividas em sociedade, de modo que a oralidade será o item difusor desse contexto. Através dela é possível ter contato com épocas longínquas, diferentes povos e tradições, demarcando um pensamento de pluralidade, de condição heterogênea, delineada pela fruição textual, seja ela um pouco mais elaborada, ou mesmo em suas manifestações mais simples, por meio das conversas informais, da transmissão de uma pessoa a outra.

A memória conserva no tempo e no espaço tudo aquilo que corresponde às experiências individuais ou em grupo, não sendo apenas fixada em um período, mas condensada por diversas voltas ao passado, numa espécie de testemunho do vivido, bem como do contato com outros indivíduos (HALBWACHS, 2006). Com isso, no que se refere à literatura e cultura popular, esse movimento contínuo da memória pode ser atrelado a uma sequência de manifestações dadas pelo contato com a palavra, com a sua expressão oral.

Nesse sentido, a perpetuação de ideias e crenças vão sendo delimitadas pela força que a literatura oral dispõe, a partir do entrelaçamento com os aspectos provenientes do ambiente cultural. Ao mesmo tempo em que ela distrai, também pode fomentar reflexões profundas acerca de um lugar, sua função é determinada pela capacidade de transpor as barreiras do aspecto puramente literário, sendo composta por processos bem mais próximos da realidade e suas implicações, das experiências de um povo, misturado por raças, a saber, o índio, o europeu e o africano.

A conservação da memória, assim, parte do acúmulo de informações e conhecimento adquiridos ao longo do tempo pelo povo, condensando suas práticas culturais, em todos os âmbitos possíveis. A complexidade dessa realidade encontra suporte no entendimento das dimensões que cerceiam esse processo acumulativo, tentando mostrar que as experiências não se constituem apenas como fruto do individual, mas sim da aglomeração de fatores plurais, dando assim sua abrangência coletiva.

Na visão de Meneses (2007), a memória atua como criação de significados e, não somente, como transmissão de conhecimento e significação. Com isso, a ideia de saber corresponde a tudo aquilo que se conserva na mente humana e nas situações que decorrem do contato entre os relacionamentos tidos na esfera social e suas possíveis implicações. As imagens e impressões de um povo articulam-se aos registros que a memória oferece, nascidos na individualidade e disseminados na exigência coletiva por condição essencial de sobrevivência.

Dessa maneira, o aprofundamento de questões que circulam no cerne da literatura e da cultura popular configuram-se como um aspecto legitimador da memória e das práticas pertencentes a um grupo. A herança deixada pelos antepassados passa a constituir um rol de informações indispensáveis para cada contexto social, materializando-se como um acervo vivo da história, do convívio e da tradição.


O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamentos de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressureições do passado (BOSI, 1994, p. 11).


Diante dessa perspectiva, a memória guarda parte da construção social, dos fatos que acompanham o desenvolvimento da sociedade, sobretudo, de suas práticas culturais. O homem, tem, na memória, a preservação de sua identidade, da sua história de vida, ao mesmo tempo em que se articula com os conceitos de ideia coletiva, pois este encontra-se inserido em um grupo.

É notório ressaltar que as histórias orais constituem-se como exemplos evidentes da manifestação de culturas, hábitos e crenças de um povo, apresentando a capacidade de comprometer-se com percepções tidas no campo do real, a partir de elementos trazidos do imaginário. Desse modo, a memória passa a servir de elemento fundamental para a disseminação das narrativas que compõem o imaginário de um povo, delineando formas distintas de ver e entender a cultura do outro.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


As discussões que norteiam o âmbito da literatura e cultura popular fomentam uma reflexão profunda e, sobretudo, delicada, dos correspondentes históricos, sociais, ideológicos, dentre outros, que marcam esse cenário das narrativas orais. Apesar de seu caráter convergente, há de considerar o grau de distinção dos elementos que compõem essas estruturas, em face de seu cerne condensar heranças de raças que difundem, cada uma em seu contexto, resquícios de seu passado, de experiências que contemplam a tradição.

Tomando por base a Lenda da Veneza, esta pode ser representativa de uma realidade delineada por um fluxo de criação contínua, tendo em vista seu viés significativo para a cidade de Caxias – MA, um verdadeiro marco da história local. Essa ideia de fluxo pode ser entendida pelas variantes que a lenda dispõe, sendo contada e recontada conforme o olhar e o contexto de reprodução, porém não destoa da sua forma original, tendo como pano de fundo a menina Veneza.

Contudo, a matéria que compreende a transmissão oral tem como marca o seu caráter performático, servindo de manifestação da tradição cultural, das articulações necessárias para que o enredo não perca sua cadência, seus elementos intrínsecos. Assim, a literatura e a cultura popular estão sempre circulando no campo de debate sobre a arte da tradição, dos costumes, dos fatores que congregam a história de um povo, de suas crenças e seus mistérios.



REFERÊNCIAS


AZEVEDO, Ricardo. Cultura popular, literatura e padrões culturais. Disponível em http://www.ricardoazevedo.com.br/wp/wp-content/uploads/Cultura-popular.pdf. Acesso em: 20 de outubro de 2019.


BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra: Editora Martins Fontes, 2003.


BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994


CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.


CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 2010.


CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo, Editora Brasiliense, 1996.


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.


IBGE. Balneário Veneza: Caxias, Ma. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=449008. Acesso em: 18 de novembro de 2019.


MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Os paradoxos da memória. In: MIRANDA, Danilo Santos de. Memória e cultura: a importância da memória na formação cultural humana. São Paulo: Edições SESC, 2007.


ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo:Cosac Naify, 2014.



[Recebido: 14 abr 2020 – Aceito: 20 jun 2020]


VOZ E GESTO NA ACTIO RETÓRICA



VOICE AND GESTURE IN RHETORICAL DELIVERY



Manuel Francisco Ramos72

https://orcid.org/0000-0001-7264-8234





RESUMO

Quando no teatro grego surgiu a figura do ator, e a actio/pronuntiatio (representação) foi separada da composição teatral, os retores verificaram que o seu domínio trazia grande valor à prolação dos discursos. Daí nasceu a ideia de teorizar acerca da actio e de aprender a modulação da voz e a adequação dos gestos com os atores. Isócrates, Aristóteles, a Rhetorica Ad Herennium de autor anónimo, Cícero e Quintiliano abordaram a representação nos seus tratados. Os autores medievais procedem com grande liberdade em relação à representação: uns omitem a importância da representação nos seus pequenos tratados; outros inspiram-se na Ad Herennium (o mais influente tratado na Idade Média) e nos ensinamentos dos Padres, como S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Gregório; outros, porém, abordam a teoria da voz, gestos e rosto com grande inovação, a qual completa e dá plenitude à teoria retórica antiga. Ora, foram estes autores que nós privilegiámos no nosso estudo.



Palavras-chave: Retórica medieval. Actio/pronuntiatio retórica. Representação. Voz e gesto. Oralidade e performance.



ABSTRACT

When emerged the figure of the actor in the Greek theater, and the actio/pronuntiatio (delivery) was separated from the theatrical composition, the rhetoricians found that its rule would bring great value to the representation of the discourse. Thus was born the idea of theorizing about the actio and learn voice modulation and adequacy of gestures with actors. Isocrates, Aristoteles, the anonymous author of Rhetorica Ad Herennium, Cicero and Quintilian discussed it in their treaties. Medieval authors proceed with great freedom about the delivery: some overlook the importance of representation in their small books; others are based on the Ad Herennium (the most influential treatise in the Middle Ages) and the teaching of the Fathers, as Augustine, Jerome and Gregory; others, however, discuss the theory of voice, gestures and face with great innovation, which completes and gives fullness to the ancient rhetorical theory. In our study, we have privileged these authors.



Keywords: Rhetoric. Medieval rhetoric. Rhetorical “action”. Rhetorical delivery. Voice and gesture.



INTRODUÇÃO


Os retores antigos, como Aristóteles (Retórica, 1413b), observaram que, das duas espécies de estilos, o discurso oral, lexis agonistikê, apesar de menos exacto, era infinitamente mais poderoso e persuasivo do que a composição escrita, lexis graphikê. Também o logógrafo Isócrates (Philippe 25), convicto do grande poder da composição oral, defendeu a superioridade da lexis agonistikê, quando afirmou: “Que grande diferença há, em termos de persuasão, entre os discursos que são falados e aqueles que são feitos para serem lidos!”. Por isso, a maior parte dos discursos era composta para ser representada oralmente e, como a memória era muito praticada, o discurso podia, efetivamente, ser proferido sem o apoio da escrita, bastando o registo de tópicos auxiliares.

Esses retores antigos observaram, igualmente, que a superioridade do texto oral, quer o que é proferido por um orador ante os ouvintes, quer o dos atores ante os espetadores, lhe advinha do facto de ser um texto mimado, fazendo o seu autor uso dos poderosos meios da voz e do gesto. De fato, notou Aristóteles (Retórica, 1403b) que os atores que punham empenho na pronunciação do discurso eram geralmente aqueles que ganhavam os concursos poéticos e, como nos concursos poéticos, assim era na assembleia: “Aqueles que, entre os competidores, empregam estes três aspetos [relativos à voz: volume, harmonia e ritmo] arrebatem quase todos os prémios e, tal como os atores (…), o mesmo se passa nos debates deliberativos”. Este fato punha em evidência a grande similitude entre teatro e retórica, entre a atividade do ator e a do orador, distinguindo-os apenas o facto de os oradores atuarem na vida real e os atores representarem em palco a imitação (mimésis) da realidade.





SOBRE A VOZ E O GESTO: PRIMEIRAS NOTÍCIAS DA TRADIÇÃO



Por ser importante a representação aprimorada do discurso, surgiu a ideia de teorizar acerca da voz e do gesto tendo, dessa forma, surgido uma nova operação retórica, a actio ou pronuntiatio (representação), que foi acrescentada às quatro anteriores: inuentio, encontrar ideias e argumentos, dispositio, ordená-los, elocutio, redigi-los, e memoria, decorá-los. A actio é a última das operações que formam o eixo de representação vertical do modelo retórico, é a culminação do processo textual comunicativo e da formação do orador e, ocupando-se dos mecanismos da pronunciação do discurso, consiste na sua execução ante o auditório, acompanhado de voz e movimento corporal adequados. Os gregos designavam-na por hypókrisis, e ao ator hypokritês, o que revela mais uma vez a aproximação entre teatro e retórica.

Por ser importante a correta representação do discurso, pois o summus orator corre o risco de deitar tudo a perder se se aplicar nas quatro primeiras operações e desprezar a última, a actio, surgiu igualmente o interesse por parte dos oradores em aprender com os atores a arte de proferir o discurso, treinando a colocação da voz e dos gestos. Os casos mais conhecidos de oradores que aprenderam a arte de proferir com atores famosos são os de Demóstenes e de Cícero.

Segundo Plutarco (Moralia, 844f), Demóstenes pagou a Neoptólemo mil dracmas para que lhe ensinasse a forma correta de recitar extensos parágrafos sem respirar; e, segundo o mesmo autor, Demóstenes aprendeu a beleza e eficácia do discurso oral com o ator Sátiro, por carecer de suficientes qualidades de voz e de representação:



Depois de o ouvir, Sátiro recitou o mesmo trecho do início ao fim modulando-o..., de tal maneira que logo a Demóstenes pareceu completamente diferente. Convencido de quanta graça acrescenta ao discurso a arte do ator, chegou à conclusão de que o exercício era pouco ou mesmo nada para quem descurasse a elocução e o arranjo das palavras (DEMÓSTENES, Vidas paralelas. Demóstenes e Cícero, §7.5).



E quando, certo dia, informa Cícero (De oratore III, 213), perguntaram a Demóstenes qual das operações retóricas era a mais importante, diz-se ter respondido que era sem dúvida, a actio; e perguntando de novo qual a segunda em importância, ele respondeu que à actio reservava igualmente o segundo e o terceiro lugares, querendo, com isso, significar quão importante é a quinta operação retórica; e quando, um dia, os ródios pediram a Ésquines que lhes lesse a oração que proferiu contra Demóstenes e também a Oração da Coroa que Demóstenes proferiu contra si, o rival de Demóstenes aplicou-se o mais que pôde em proferir corretamente esta oração. Perante a admiração geral, comentou: “Muito mais maravilhados ficaríeis se a tivésseis ouvido pronunciar ao próprio Demóstenes!” (CÍCERO, De oratore III, 213), de onde se conclui que o texto oratório depende inteiramente das qualidades performativas do orador.

Também Cícero (De oratore III, 56), consciente das suas limitações em termos de voz e da importância da representação do discurso - pois considerou a actio como a única que é dona e senhora do discurso - foi ensinado por atores: Q. Róscio Galo e Esopo, o primeiro dos quais é modelo de atuação para os oradores. Informa Plutarco (Vidas paralelas. Demóstenes e Cícero, §5.4): “Diz-se que Cícero tinha problemas de dicção não inferiores aos de Demóstenes e, por isso, seguia com especial atenção as atuações de Róscio, o ator cómico, e de Esopo, o trágico”.

Tudo leva a crer que a actio retórica teve um tratamento sistemático com Teofrasto. Mas como não se conservou a obra - ou por se perder ou por nunca ter sido escrita -, foi com Aristóteles, no livro III da Retórica (1403b-1404a), que a actio começou por fazer parte dos cânones da retórica. Segundo ele, tal adaptação foi feita a partir da teoria do drama e foi dela que também adotou a designação: hypókrisis (actio), que originalmente é o termo pelo qual um ator (hypókritês) é designado. Abordou-a, todavia, de forma breve e não lhe deu grande atenção, por achar que era matéria vulgar e comezinha, mas não desprezível: “Além disso, quando devidamente examinada, parece assunto vulgar” [...] “devemos prestar atenção à pronunciação, não porque ela em si é justa, mas porque é necessária” (Retórica, 1403b e 1404a). Não obstante a sua utilidade, Aristóteles notou, no mesmo lugar, que nenhum tratado foi composto sobre essa temática, visto que, relativamente à expressão enunciativa, foi muito tarde que a pronunciação do texto dramático passou a ser proferida por atores.

Os gregos notaram, igualmente, que a prolação do discurso era importante, mas não dispunham de tratados que a abordassem, trabalho que ficaria a cargo dos retores romanos. Na retórica romana, a actio teve o seu tratamento sistemático numa tríade de obras: a Retórica a Herénio III, 19-27, de autor anónimo, o De oratore I, 113-133; III, 213-227, de Cícero, e a Institutio oratoria, de Quintiliano XI, 3.

O primeiro da tríade, a Ad Herennium, é o registo mais antigo que possuímos sobre a abordagem da memória e é também o primeiro a incluir a actio, como parte autónoma, no cânone da retórica. A inclusão da actio, desenvolvida de forma bastante completa, foi devida - notou vagamente o autor (III, 19) - à constatação de que, sobre ela, nenhum tratamento sistemático havia sido feito. Como este manual de feição escolar formava uma boa síntese e sistematização de todas as operações retóricas e tinha desenvolvido uma completa teoria sobre a voz e o gesto, viria a ter indelével influência futura. O tratamento mais completo, porém, coube a Quintiliano. Ocupou-se, detalhadamente, da colocação da voz e do movimento e interação de todas as partes do corpo, elaborando o tratamento mais completo acerca da cinesia da atuação.

Durante a alta Idade Média muitos autores adotaram, no âmbito da retórica cristã, uma atitude anti-retórica e, frente aos recursos estético-literários da época clássica, preferiram o genus humile e a simplicitas bíblica, o que conduziria ao desinteresse pela retórica e, naturalmente, pela actio. Todavia, a partir do séc. XI, a retórica e a dialética foram recuperadas, reflexos de um novo ambiente cultural, tendo no séc. XI surgido a ars dictandi, dedicada à composição epistolar e, no séc. XII, a ars praedicandi, dedicada à composição do sermão e a ars poetriae, dedicada a todas as formas de composição em prosa ou poesia; com a recuperação da retórica, a actio/ pronuntiatio recobrou parte do antigo esplendor, especialmente com as artes praedicandi, dedicadas à pregação.

Há tratados medievais, porém, que não estão interessados no tratamento da actio retórica, há tratados que seguem, no geral, o tratamento que sobre ela tinha sido feito pela Retórica a Herénio, que neste tempo foi eleito manual principal, e pela Arte Poética de Horácio, mas também há tratados que a abordam de forma original. Merecem honras de destaque as seguintes obras, representativas da retórica medieval no que à actio diz respeito: no âmbito das artes retóricas, a Ars arengandi (24-31) de Jacques de Dinant, o Liber de doctrina dicendi et tacendi (V 7-20) de Albertano da Brescia e a Rhetorica novissima (IV 4.1-4.2) de Boncompagno da Signa; no âmbito das artes poéticas, a Poetria Nova (2034-2065) e o Documentum de modo et arte dictandi et versificandi (II 170-175) de Geoffroy de Vinsauf; o De modo componendi sermones de Tomás Waleys, a Forma praedicandi de João de Gales e o De modo praedicandi de Alexandre de Ashby, no âmbito das artes predicatórias; e, no âmbito da arte epistolar, merece destaque o Candelabrum (VIII) de Bene da Firenze.



Se a actio não é tão importante quanto as anedotas de Demóstenes fazem crer e a que Tomás Waleys conta no seu De modo componendi sermones73, pelo menos é certo que o domínio da teoria retórica da voz e do gesto tem consideráveis vantagens na prolação do discurso e é capaz de fazer com que indivíduos com deficiente performance elocutiva obtenham êxitos oratórios e que, pelo contrário, indivíduos eloquentes sejam desconsiderados por culpa da debilidade da sua representação; e segundo Albertano da Brescia (Liber de doctrina dicendi et tacendi V, 9), apoiado na autoridade de Cícero, a voz é tão poderosa que, só por si, é capaz de salvar uma desajeitada atuação: “Efetivamente, ela é de tal forma superior, que segundo afirmação de Marco Túlio: ‘A desajeitada ação, porém, alcança o louvor se for optimamente proferida; e ainda que embelezada, se for pronunciada de modo inconveniente, será digna de desprezo e de riso’”.

A actio foi definida pelo autor da Retórica a Herénio (I, 3; III, 19) e depois citada até a exaustão pelos autores medievais, como: “Pronuntiatio est vocis, vultus, gestus moderatio cum venustate” (A pronunciação é a moderação com graciosidade da voz, rosto e gesto); e na sua continuação, afirma Geoffroy de Vinsauf (Poetria Nova, 2034-2036): “Ao se recitar, ressoem três línguas: a primeira seja a da boca, a segunda, a do rosto do orador, a terceira, a da gesticulação”; e noutra obra sua (Documentum de modo et arte dictandi et versificandi, II 170): “O locutor, porém, deve possuir as seguintes três qualidades, as quais têm nos discursos uma maravilhosa força e poder, especialmente a língua: uma voz bela e regulada, um rosto belo e moderado, um gesto belo e comedido, de forma que a nossa gesticulação não seja a gesticulação de um histrião ou de um obreiro, e o mesmo se diga acerca da voz e do rosto”. Cícero (Orator 55) viu na actio “uma espécie de eloquência do corpo” e o mesmo Geoffroy de Vinsauf (Documentum…, II 170) reconheceu nela quase o condimento da oração: “a pronunciação é quase o condimento da totalidade da oração, de tal forma que sem ela tudo é sensabor e desordenado”. A actio engloba a voz, a qual produz o seu efeito nos ouvidos e está para o orador como a cor está para o pintor, e os gestos, os quais produzem o seu efeito nos olhos, “dois sentidos através dos quais a emoção alcança a alma” (QUINTILIANO XI, 3, 14).



PERFORMANCE E QUALIDADES DA VOZ



Pode o retor/pregador estar dotado de ingenium, ars e exercitatio (talento, estudo e exercitação), três elementos performativos, mas sem condições mínimas de partida, ou seja, sem qualidade de voz, que é fruto da generosidade da natureza ou do treino pessoal, pois a voz também se treina, todo o talento, trabalho ou prática são inúteis. Todavia, uma melodiosa voz também nada vale se o orador, no momento de perorar, for atormentado pelo temor de enfrentar um auditório, especialmente uma grande multidão, como assevera Boncompagno da Signa (Rhetorica novissima IV 4,1,10-11): ou por ser cobardia ou temor acidental, é um facto que alguns oradores são audazes e eloquentes nos discursos que proferem perante pouca gente, mas na presença da numerosa multidão agitam-se como varas no curso dos rios”.

As características físicas da voz que os retores enumeram são relativas a sua quantidade (força e volume) e à qualidade (timbre e tonalidade). Quanto à quantidade, a voz tem muitas graduações desde o baixo ao muito alto; quanto à qualidade, tem muitos timbres ou tonalidades: o timbre grosso e fino, suave e áspero, compacto e amplo, rígido e dúctil, claro e confuso. Aristóteles (Retórica, 1403b) fala em “intensidade ou volume, harmonia e ritmo”; e o autor da Ad Herennium prefere a designação de volume (magnitudo), firmeza (firmitudo) e flexibilidade (mollitudo), sendo esta a qualidade que mais atenção merece dele e que consiste na modificação da entoação motivada pela variação das emoções. Jacques de Dinant, na Ars arengandi, divide igualmente a “figura vocis” em volume, firmeza e flexibilidade, sendo as duas primeiras qualidades naturais e a flexibilidade a característica mais importante:



Divide-se em três partes: volume, firmeza e flexibilidade. É a natureza que sobretudo determina a firmeza, a exercitação da declamação não a aumenta em nada, mas o cuidado conserva-a assazmente; quanto ao volume da voz, é a natureza que sobretudo a determina, o cuidado com a voz em nada a aumenta, mas conserva-a muito; quanto à flexibilidade da voz, a exercitação da declamação aumenta-a muitíssimo, para que ao falar a possamos pôr ao serviço do nosso interesse (Ars arengandi 24).



Essa diversidade de vozes, no que ao volume, firmeza e flexibilidade diz respeito, é motivada, assegura Boncompagno da Signa, pela diversidade de natureza de cada indivíduo e pela sua diferente compleição física:



Por causa da diversidade de natureza e da constituição física, os mortais sabem pronunciar de diferentes modos. Efetivamente, uns falam instavelmente, como os temperamentais; outros furiosamente, como os coléricos; outros ainda, como os impassíveis, falam a meio caminho entre os primeiros e os segundos; também há quem fale timidamente, como naturalmente os melancólicos. Contudo, em razão de movimentos acidentais, estas compleições mudam com o tempo (Rhetorica novissima IV 4,1,1).





Se algumas qualidades da voz, por serem naturais, não dependem do orador/ pregador, outras há que dependem inteiramente, como sejam o trato da voz (o qual inclui aspetos médicos como a dieta e o regime de vida) e os exercícios, de preferência diários, relativos ao treino da voz e do movimento corporal. A propósito da exercitação da voz e dos gestos, recomenda Tomás Waleys, no De modo componendi sermones, que o pregador neófito se exercite - era este, segundo Plutarco, o usual modo de Demóstenes se exercitar -, em lugares isolados, distante da presença das pessoas e tendo por espetador a natureza. Afirma ele, depois de confessar que são ensinamentos fruto da sua experiência: O novo pregador, antes de se expor em público para exercer a pregação, deverá retirar-se para um lugar distante do olhar das pessoas, onde não tenha medo de sofrer zombaria alguma, e comece aí, perante árvores e pedras, a pregar e a exercitar-se. Aí, aplique-se em treinar o movimento de seu corpo e exercite-se em privado em tais movimentos e gestos os quais, mais tarde, intentará exibir em público” (De modo componendi sermones, p. 128). E quando maduro para enfrentar um auditório sem temor, “o pregador preocupar-se-á principalmente, entre outras coisas, em falar de modo inteligível e atraente, já que o modo de falar não é para os ouvintes menos poderoso do que os factos relatados” (p. 128), querendo dizer que a eficiente prolação está ao nível do bom argumento.

Neste ponto, Tomás Waleys refere-se às características da boa execução. Ora, para uma boa execução, a pronunciação deverá ser clara, agradável, pausada (a respiração não deve deixar cortada a frase nem reter-se até ao seu esgotamento), com perfeita articulação de palavras e de sotaque local; será adornada quando a favorecer uma voz firme, doce, resistente, límpida e penetrante, qualidades que Demóstenes desenvolveu introduzindo pequenas pedras na boca.

Acerca da voz, nenhum assunto reúne tanto consenso, quer entre os teorizadores clássicos, quer entre os medievais, como o relativo à necessidade de o orador/ pregador/ator adotar o tom de voz de acordo com o assunto e com os sentimentos que se querem exprimir e comunicar aos ouvintes, pois a voz é reveladora da alma pensante e experimenta tantas transformações quantas a alma: na alegria, na ira, na antipatia, no pranto, no medo e aflição... Tal adequação da voz aos sentimentos e ao conteúdo do discurso implicará que umas vezes a voz baixe e outras suba, percorrendo toda a escala de sons, à semelhança das cordas de uma lira, e recorrendo a todos os tons da voz que trarão distinção à execução do discurso, pronunciando em tom agudo as partes violentas e em tom baixo as partes calmas. Era por isso que o tribuno Gaio Graco, quando discursava ante as assembleias, se fazia acompanhar de um escravo, oculto atrás de si, munido de flauta de marfim, para lhe dar rapidamente o tom médio, quer quando a voz decaía em demasia, quer quando estava com demasiada tensão e era necessário moderá-la.

Fornecemos alguns exemplos, especialmente de autores medievais, acerca da adequação da voz aos sentimentos:



ARISTÓTELES: “A pronunciação assenta na voz, ou seja, na forma como é necessário empregá-la de acordo com cada emoção (por vezes forte, por vezes débil ou média) e como devem ser empregues os tons, ora agudos, ora graves ou médios, e também quais os ritmos de acordo com cada circunstância.” (Retórica 1403b).

GEOFFROY DE VINSAUF: “Deves moldar a elocução de maneira que não esteja em desacordo com o assunto, nem a voz vá além do que vai o próprio assunto; voz e factos caminham pari passu; que a modulação da voz seja um reflexo do pensamento; o locutor deve adotar a entoação requerida pelo assunto.” (Poetria Nova 2040-43).

GEOFFROY DE VINSAUF: “O locutor deverá variar estas três coisas de acordo com a variação do conteúdo. Se o assunto for sobre dor, a voz, o rosto e o gesto devem estar concordantes com o assunto e os testemunhos serem de dor. Se o assunto for sobre alegria, de igual forma a voz, o rosto e o gesto devem estar concordantes com a alegria. Se o assunto for acerca de ira ou indignação, devemos exibir voz, rosto e gesto tanto de pessoa indignada como de irada. Se se trata de bom humor, sejamos bem-humorados e brincalhões na voz, no rosto e no gesto. Se se fala de coisas sérias, seja-se circunspeto e severo. (Documentum II, 171).

ALEXANDRE DE ASHBY: “Em tudo isto se deverá prestar atenção para que a pronunciação não seja confusa, soberba, amarga, deselegante, mas antes modesta e humilde, doce e apoiada em figuras de estilo e de acordo com a matéria… de forma que um conteúdo alegre seja proferido com rosto alegre e o triste com rosto triste.” (De modo praedicandi 61).

ALBERTANO DA BRESCIA: Quando anunciamos assuntos importantes, devem ser proferidos com importância, os assuntos menores devem ser proferidos com simplicidade e os médios, de forma moderada. Na verdade, nas pequenas causas nada deverá ser dito de grandioso, nada de sublime, mas deve-se falar de modo leve e chão. Porém, nas causas maiores, em que se fala acerca de Deus ou da salvação dos homens, deve-se exibir maior magnificência e fulgor. Nas causas moderadas, onde nada se passa a não ser que os ouvintes sejam deleitados, deve falar-se com moderação.” (Liber de doctrina…, 19-20).



Todavia, por maior que seja, no orador/ pregador, a adequação entre modulação da voz e assunto, entre voz e pensamento, que no caso da ira, adverte Geoffroy de Vinsauf, isso não passe de uma temporária agitação do espírito, pois é sabida quanto esta paixão deve ser evitada:



A ira, filha do fogo e mãe do furor, tendo origem no próprio fel, envenena o coração e as entranhas; atormenta com o fel, queima com a chama, turva com o furor. Da mesma maneira, a voz sai cáustica, o rosto inflamado, os gestos turbulentos. (…) Se estivesses no lugar deste indivíduo, como orador, o que farias? Imitavas a autêntica fúria. Contudo, não estejas furioso: agitar-te-ás como ele exteriormente e não interiormente. O teu comportamento seja em tudo aproximado, mas não idêntico. (…) Podes apresentar a expressão de uma pessoa irada e estar de bom humor. (Poetria Nova 2044 e ss).



A voz também deve variar, assegura Jacques de Dinant, de acordo com o tipo de discurso: o discurso para honrar, que exigirá uma voz carregada de emoção, para demonstrar, que será mais pausada, ou para narrar, que exigirá variedades de vozes:



Se a conversação for para honrar, é preferível empregar uma voz com os pulmões cheios do que muito sossegada e abatida, todavia, sem ultrapassar o modo oratório de falar. Porém, quando a conversação é para demonstrar, será oportuno empregar uma voz um poucochinho enfraquecida, com extensos intervalos e divisões, de forma que, com esta dicção, pareça estar a inserir-se e intrometer no espírito dos ouvintes os factos que vamos demonstrar. Porém, quando a conversação é para narrar, podem ser expostas variedades de vozes, para que, qualquer que seja o gesto, pareça estar-se a contar; o facto que queremos mostrar com evidência di-lo-emos um pouco mais rápido ou retomaremos outro sem pressa. (Ars arengandi 30).



O que é válido para o discurso, no que à variação da voz diz respeito, também é válido para o sermão: a voz deve variar em função do tipo de discurso, como assevera Frederico de Nurx, na Artis praedicandi tractatus (p. 188), distinguindo-se aqui três tipos de vozes: “A voz deve ser doce num discurso gozoso, austera num sério e intermédia num vulgar”; também o olhar e o gesto variam de acordo com o tipo de sermão: “O olhar deverá ser gracioso no primeiro tipo de sermão, indignada no segundo e indiferente no terceiro. O gesto deve ser curial, expedito e simples respetivamente no sermão gozoso, no sério e no vulgar”.

A voz também deve variar de acordo as partes do discurso, pois um exórdio não é o mesmo que uma peroração, nem uma narratio é uma argumentatio. É conveniente começar o discurso com voz moderada, calma, com ritmo tranquilo e com pausas mais extensas, não só por se estar no início, mas também para aquecer a voz, como defende Jacques de Dinant: “Primeiro, exige-se que o início dos nossos discursos seja proferido com voz calma e baixa. Na verdade, as cordas vocais danificam-se se, antes de a voz ter sido bem aquecida, ela for emitida com agudo clamor.” (Ars arengandi 25). Na narração (em que se expõe o assunto), a voz deve ser semelhante ao tom conversacional; na argumentatio deve ser mais viva e energética e os gestos de acordo com o conteúdo do discurso, isto é, vigorosos e rápidos, usando uma voz mais elevada para enfatizar as palavras importantes; há vários tipos de epílogos no que ao uso da voz e gesto dizem respeito e proceder-se-á de acordo com a situação.

Portanto, é na argumentatio, onde se expõem os argumentos próprios (confirmatio) e se refutam os alheios (refutatio), que a pronunciação deve ser mais viva, já que o tom vivo tem, segundo S. Jerónimo (Ep. 53, 2) “um não sei quê de força”; e deve ser emotiva, já que, segundo S. Gregório, para desejos superiores, não podem inflamar palavras que provenham de um coração frio. Ainda dentro da argumentatio, Albertano da Brescia recomenda que a voz seja adaptada à natureza dos argumentos, de acordo com a tradicional regra dos três estilos:



Ao passo que os argumentos baixos devem ser proferidos de modo aligeirado, os apaixonados serão expostos com gravidade e os médios em estilo moderado. Se tratamos de argumentos importantes, devemos falar em estilo elevado, se tratamos de argumentos baixos, falaremos com simplicidade, se os argumentos a tratar forem de nível médio, exprimir-nos-emos com justo equilíbrio (Liber de doctrina…18).



CONSIDERAÇÕES FINAIS



Na Roma antiga - e os tratados de retórica confirmam as licenças, especialmente entre os oradores asianos - a vivacidade da representação podia ganhar formas histriónicas na argumentatio, com a finalidade de manter as multidões acordadas e comovê-las, como sejam: franzir as sobrancelhas, bater o pé, bater nas coxas e na cabeça, rasgar as roupas, mostrar ora uma expressão tranquila, ora triste ou mesmo desesperada, gritando74.

Porém, os autores medievais, mais comedidos e de gosto contemporâneo, recomendam a discrição na voz e nos gestos, como é o caso de Geoffroy de Vinsauf: “O locutor deve possuir as três seguintes qualidades: uma voz bela e regulada, um rosto belo e moderado, um gesto belo e comedido, e que a nossa gesticulação não seja a gesticulação de um histrião ou de um obreiro, e o mesmo se diga acerca da voz e do rosto.” (Documentum… II, 170); e continua Jacques de Dinant: “O movimento do corpo é relativo ao gesto do corpo e a uma certa moderação do semblante que é conveniente àquele que pronuncia o discurso. Convém, portanto, conter no rosto respeito e aspereza, no gesto nem conter notória formosura nem fealdade, para que não se pareça ser um histrião ou um obreiro.” (Ars arengandi 31). Também João de Mainz (Mogúncia) recomenda, a propósito do sermão, o desuso de formas histriónicas e indelicadas, como sejam assinalar alguém com o olhar ou com o dedo:



Ora, deverão evitar-se as importunas vozes clamorosas, já que provocam o riso do povo e são naturalmente detestáveis; vozes demasiado enfraquecidas também não podem ser entendidas; evitai igualmente levantar e baixar a cabeça em demasia e não a abaneis para um e outro lado; não vos ponhais a olhar para as senhoras e para as donzelas, para que a vossa alma não fique maculada ou o corpo se inquiete ou alguém fique escandalizado ao topar isso. Evitai de todos os modos o jogo de dedos e o alarde das mãos, mas prendei, firmes, as vossas mãos e braços sob o laço da dignidade (Tractatulus de modo praedicandi IV, p. 192).



Além da voz, a beleza da apresentação pessoal surge também de um seu grande aliado: o gesto ou movimento corporal. Os gestos dão a entender, sem o uso de palavra, todos os estados de ânimo possíveis e às vezes penetram de tal modo os sentimentos, que parecem mesmo superar a palavra (QUINTILIANO XI, 3, 67). Era por isso que Demóstenes, consciente da sua importância, costumava preparar a representação dos seus discursos mirando-se a um grande espelho.

Tal como a voz, também os gestos, igualmente postos ao serviço da mente, devem acompanhar as emoções e estar em consonância com o sentido das palavras, tal como em cena fazem os atores. É essa a opinião de Alexandre de Ashby na parte dedicada ao modo de pregar (qualiter): “É oportuno tanto à voz como ao rosto que estejam de acordo com a matéria, de forma que um conteúdo alegre seja proferido com rosto alegre, um conteúdo triste com rosto triste.” (De modo praedicandi, p. 238). Depois fornece, a propósito da adequação entre voz, gesto e conteúdo, uma ampla citação da Arte poética de Horácio, o que demonstra não só o domínio dos autores clássicos, mas também a sua compatibilidade doutrinária:



Como o rosto humano responde ao riso com o riso,

assim às lágrimas responde tu com as lágrimas. Se queres que eu chore, começa

por sentir dor tu próprio; comovem-me verdadeiramente

os vossos infortúnios, Télefo e Peleu; se recitas mal o guião,

ou vou dormir ou vou pôr-me a rir. Palavras tristes

ajustam-se a um rosto triste, as ameaçadoras ao irado,

as humorísticas ao divertido, ao severo adequam-se as palavras sérias.

(Arte poética, vv. 101-107).



Entre os movimentos do corpo, a primazia pertence ao rosto - e na expressão do rosto a primazia vai para o olhar - por ser o reflexo e intérprete da alma e por causa dos muitos modos de mostrar a sua força expressiva, tal como fazem as máscaras do teatro. O rosto, que tem a propriedade de mostrar-se suplicante, triste, alegre, altaneiro ou humilde, deve mostrar-se, nas palavras de Albertano da Brescia, sério e aprumado, em consonância com os movimentos das mãos:



Deve velar-se para que a face esteja direita, para que os lábios não se torçam nem a abertura seja desmedida, nem o rosto esteja baixo, nem os olhos virados para terra, nem o pescoço inclinado, nem as sobrancelhas estejam elevadas ou descidas, porque nada que não seja decente pode agradar. E segundo Túlio: “O princípio da arte é que seja conveniente o que quer que se faça.” (Liber de doctrina V, 15-16).



O orador/pregador deverá falar de pé e de porte aprumado, moderando os movimentos com o tronco, evitando, por exemplo, o pescoço flácido, não adiantando o peito nem a barriga, evitando o defeito de levantar e baixar os ombros - o qual Demóstenes corrigia com uma espada suspensa do teto, para que, se no ardor do discurso se esquecesse da correta postura dos ombros, a picada da espada lhe servisse de aviso -, abrindo moderadamente os braços para os lados, estendidos nos momentos de paixão e recolhidos nos de descontração.

As mãos - elas como que falam - quase conseguem a plenitude das palavras se o começo e o termo do seu movimento coincidirem com o sentido das palavras e se forem concordantes com o rosto na expressão de alegria, de tristeza ou de indiferença (Rhetorica ad Herennium III, 16). Quando unidas, revelam sentimentos mais intensos.

Os joelhos deverão estar firmes e sem tensão, os pés deverão estar em linha com o tronco, um pouco separados ou o esquerdo ligeiramente adiantado. É oportuno dar alguns passos para a esquerda, para a direita e para a frente, mas poucos e curtos; é oportuno bater com o pé no chão no início e no final de passagens mais tensas. É censurável o balanceio frequente, que mais parece que o orador está a falar em cima de uma canoa.

Ora, ou por deficiente formação ou por nervosismo frente a um público numeroso, desconhecido e muitas vezes adverso, há gestos deselegantes que os oradores transportam consigo e não raras vezes exibem na tribuna. Boncompagno da Signa, na Rhetorica novissima, assinala vários: a tosse antes de começar a falar, os gestos supersticiosos, os abusos dos bordões da linguagem e os abusos das delicadezas e das cortesias. De facto, pode haver necessidade de tossir antes de começar a falar para limpar a traqueia, mas também pode ser um vício e não falta quem o pratique: o vicioso costume, o orgulho, a elevação ou o esquecimento induzem alguns oradores a começar o discurso com tosse voluntária ou desculpante.

Também há quem exiba gestos supersticiosos antes de enfrentar a assembleia: “Há falantes que, afastando-se do correto costume, quando se levantam para falar, por alguma superstição, abusam de gestos condenáveis, como sejam: limpar a face, compor o cabelo depois de afagar as orelhas, examinar as roupas próprias e fungar o nariz” (Rhetorica novissima IV, 4.2).

Também há os que abusam das delicadezas e cortesias, com palavras como: elegante, glorioso, generoso, delicado, ardente, suave, amável, afável, tratável, com os comparativos, superlativos e advérbios que deles provêm, que tiram brilho à apresentação pública; também há os que abusam dos bordões da linguagem, bem deselegantes: “Na verdade, uns repetem amiúde “verdadeiramente” ou “realmente, por certo” (...) Outros repetem “até, de tal forma, ao menos, certa vez, claro, mais claro”. Sem dúvida que são tantos os bordões nos discursos, que contra a elegância da eloquência são repetidos, que por ninguém podem ser contados” (Boncompagno da Signa, Rhetorica novissima IV, 4.2).







REFERÊNCIAS


ALBERTANO DA BRESCIA. Liber de doctrina dicendi et tacendi. La parola del cittadino nell’ Italia del duecento. A cura di Paola Navone. Florença: Sismel, 1998.


ALBERTE, Antonio. Retórica Medieval: Historia de las artes predicatórias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003.


ALEXANDRE DE ASHBY. De modo praedicandi. In Antonio Alberte (org.), Retórica Medieval: Historia de las artes predicatórias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003, p. 237-238.


ANÓNIMO. Expeditis duobus paradigmatis. In Antonio Alberte (org.), Retórica Medieval: Historia de las artes predicatórias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003, p. 188-90.


BONCOMPAGNUS DA SIGNA, Rhetorica novíssima. In SCRINEUM, Aggi e materiali on line di scienze del documento e del libro medievali (Janeiro, 2011). Disponível em: http://scrineum.unipv.it/wight/rn4.htm. Acesso em 15/3/2018.


FREDERICO DE NURX. Artis praedicandi tractatus. In Antonio Alberte (org.), Retórica Medieval: Historia de las artes predicatorias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003, p. 185-88.


GEOFFROY DE VINSAUF. Documentum de modo et arte dictandi et versificandi. In E. Faral, Les arts poétiques du XII.e et du XIII.e siècle. Paris: Champion, 1971, p. 263-320.


GEOFFROY DE VINSAUF. Poetria Nova. In E. Faral (org.), Les arts poétiques du XII.e et du XIII.e siècle. Paris: Champion, 1971, p. 194-262.


JACQUES DE DINANT. Ars arengandi. In Analecta Reginensia. Città del Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 1933.


JOÃO DE MAGUNCIA. Tractatulus de modo praedicandi. In Antonio Alberte (org.), Retórica Medieval: Historia de las artes predicatorias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003, p. 191-92.


PLUTARCO. Vidas paralelas. Demóstenes e Cícero. Trad. de M. Várzeas. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010.


TOMÁS WALEYS. De modo componendi sermones. In Antonio Alberte (org), Retórica Medieval: Historia de las artes predicatórias. Madrid: Centro de Linguística Aplicada Atenea, 2003, p. 128.



[Recebido: 06 abr 2020 – Aceito: 19 mai 2020]

1 Santiago Cortés Hernández, responsable técnico del Laboratorio Nacional de Materiales Orales, obtuvo el Premio de Investigación 2018 en el área de Humanidades que otorga la Academia Mexicana de Ciencias.

2 Es licenciada en derecho, licenciada en letras hispánicas, maestra en letras mexicanas y doctora en letras por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).


3 The terms "unwritten literature," "popular literature," "folk literature," "primitive literature," and "oral literature" emphasize the relations of these forms to literature, but all are premised upon the irreconcilable contradiction that literature is based upon letters and writing, whereas folklore is not. Unwritten literature at least states this contradiction in unmistakable opposition. Popular literature suggests a parallel to popular music as opposed to classical music, whereas the parallel is more accurately to unwritten music. Folk literature, which has folklore itself as a precedent, seems the least objectionable of these paradoxical terms, but there is still a considerable disagreement about the meaning of the term "folk," which has not been resolved by the considerable body of recent literature deriving from Redfield's use of the term. Oral literature, unfortunately, has associations with dental hygiene on the one hand and with Freudianism on the other. Oral art has these same connotations, but at least avoids the inconsistency of "unwritten literature." (Bascom, 1955: 246).

4 Véanse los siguientes dos trabajos de referencia para estos temas: Richard Dorson (1976). Folklore and Fakelore: Essays toward a Discipline of Folk Studies. Cambridge: Harvard University Press. Dan Ben-Amos (1971). “Toward a Definition of Folklore in Context,” The Journal of American Folklore 84-331; pp. 3-15.

5 Véanse los siguientes dos trabajos de referencia para estos temas: Hymes, Dell (1962). “The ethnography of speaking”. En T. Gladwin & W. Sturtevant (Eds.), Anthropology and Human Behavior. Washington DC: Anthropological Society of Washington; pp. 13-53. Richard Bauman y Joel Sherzer (1975). "The Ethnography of Speaking". Annual Review of Anthropology 4; pp. 95-119.

6 http://www.fhuc.unl.edu.ar/portalgringo/crear/gringa/LHO/lho.html.

7 Consúltese en http://www.lanmo.unam.mx/publicaciones.php.

8 El repositorio puede consultarse en la dirección electrónica: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/.

9 Consúltese en http://www.lanmo.unam.mx/seminarios.php.

10 https://www.lanmo.unam.mx/riemo/

11 http://www.lanmo.unam.mx/servicios.php

12 El espacio geográfico es decisivo en la entrevista y la conversación. Si el narrador se siente cómodo en el lugar en el que se encuentra, su conversación será mucho más amena; en cambio, si el lugar le es ajeno, procurará terminar la charla. Philllipe Joutard recomienda reunirse con el entrevistado en un lugar que le resulte familiar, que le permita evocar la memoria y reforzarla al mismo tiempo (Granados, 2012: 21).

13 Professora da Corporación Universitaria Comfacauca – Unicomfacauca. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), bolsista OEA-GCUB 2016; formada em Comunicação Social pela Universidade de Cauca, Colômbia. E-mail:moryta@gmail.com.

14 Professora do Instituto Federal Baiano de Educação e Tecnologia (IFBAIANO – Campus Santa Inês). Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Representante no Brasil do Laboratório Nacional de Materiais Orais (LANMO) da Universidade Nacional Autônoma do México. E-mail:maurenpavao@gmail.com

15O termo na pesquisa foi adotado para se referir a uma memória que se prolonga no ciberespaço, a partir de um processo criativo e desafiador de contar diversas histórias que forneçam a tradição oral, mas possa agir como acervo digital sobre um povo ou território.

16 Maiores informações, PISSO, Jennifer. “Capital Simbólico del indígena Misak contemporáneo en la cibercultura”, aceito para as próximas edições da Revista ‘Estudios de Cultura Contemporánea’, México.

17 Maiores informações, PRZYBYLSKI, Mauren. “Cybernarrativa pós-contemporânea: Pensando o narrador oral, urbano-digital”, 1.ed, Curitiba: Appris, 2018.

18 Método que se fundamenta na observação, descrição e análises das dinâmicas interativas e comunicativas pela internet. Desse modo, a etnografia no ambiente digital vira netnografía (net + etnografía), neologismo criado por Robert Kozinets no ano 90´s (FRAGOSO et al., 2011: 173).

195 “A categorização foi dada pela professora Ana Lúcia Tettamanzy, considerando o fato de que Maragato tanto está criando blogs, ministrando cursos na comunidade, como vendendo algodão doce ou puxando ferro (como ele mesmo diz, para se referir ao ofício de catar lixo), quando não há outras formas de sobrevivência. Cria programas de rádio, histórias em quadrinhos e ferramentas pedagógicas em ambiente digital (PRZYBYLSKI, 2018: 25).

20 Souza (2004) chama de espaços híbridos, definidos não por fronteiras físicas, mas como “lugares” de comunicação e sociabilidade que não se opõem o real e ao virtual, mas incluem o virtual dentro do domínio do real, pela mobilidade e movimento no espaço físico.

21 Usuário dentro de um ambiente digital, para exemplificar, quando se acessa Facebook, Youtube, Blogs, etc., e o sujeito percorre-interage-usa ditas plataformas, é nomeado “cibernauta”.

22 Infelizmente, por questões técnicas, o site não se encontra mais no ar.

23 Jornalista na Assessoria de Comunicação Social da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Professora de Língua Portuguesa - Séries Finais do Ensino Fundamental da Prefeitura de Dom Pedrito, RS. Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestre em Comunicação e Indústria Criativa pela Unipampa. Especialista em TICs pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e em Marketing e Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/Sul). Graduada em Comunicação Social: habilitação em Jornalismo pela Universidade Franciscana (UFN) e em Letras - Português e Literaturas pela UFSM. No âmbito profissional, possui experiência na área de Comunicação Organizacional, com ênfase em Assessoria de Imprensa, trabalhando na CVI - Coca-Cola e no Grupo RBS. Na área literária, participou da organização de um livro junto ao poder executivo, bem como de coletâneas.

24 Possui graduação em Artes e Tradições Populares - Université Laval (1982), mestrado em Artes e Tradições Populares - Université Laval (1985) e doutorado em Literatura Comparada - Université de Montreal (1991). Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Oral, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura oral, literatura comparada, lendas tradicionais e lendas urbanas, faits divers, cultura e literatura francofona.


25 População estimada para 2019, conforme o IBGE Cidades. Acesso em 20 de fevereiro de 2020. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/restinga-seca/panorama>.

26 Dados do Ministério do Turismo. Acesso em: 16 de janeiro de 2020. Disponível em: <https://www.turismo.rs.gov.br/atrativo/716/buraco-fundo#sobre>.

27 Este artigo de Jakobson (2009) foi publicado em alemão em 1929, traduzido em francês em 1973 e publicado em português em 2006.

28 As três perguntas realizadas foram: 1) Quando te perguntam sobre o Buraco Fundo, em Restinga Sêca, qual a primeira história que te vem à cabeça? 2) Já ouviu ou reproduziu alguma lenda ou mito sobre o Buraco Fundo? 3) Acreditas que o Buraco Fundo está ligado à alguma história fantástica ou mesmo sobrenatural do município de Restinga Sêca?


29 Dados do Ministério do Turismo. Acesso em: 16 de janeiro de 2020. Disponível em: <https://www.turismo.rs.gov.br/atrativo/716/buraco-fundo#sobre>.

30 LEMES, Derli. Música gravada pelo Grupo Tropilha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a6s1UKiAGPw

31 BARROS, Marcos. Depoimento do curta-metragem “No fundo do Buraco” (2010). Transcrição literal. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d6o-vBuBhTc

32 BORGES, Horácio. Depoimento do curta-metragem “No fundo do Buraco” (2010). Transcrição literal. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d6o-vBuBhTc

33 SIMON, Natalie. 26 anos. Restinga Sêca, fevereiro de 2020. Entrevista concedida a Emanuelle Tronco Bueno.

34 BROCARDO, Neide Helena. 76 anos. Restinga Sêca, fevereiro de 2020. Entrevista concedida a Emanuelle Bueno.

35 SILVA, José Alvino Dutra da. 65 anos. Restinga Sêca, outubro de 2019. Entrevista concedida a Emanuelle Bueno.

36 LAMANA, Gianna Maria. 52 anos. Restinga Sêca, outubro de 2019. Entrevista concedida a Emanuelle Bueno.

37 DUTRA, Iriana. 29 anos. Restinga Sêca, janeiro de 2020. Entrevista concedida a Emanuelle Tronco Bueno.

38 ALVES, Magliele. 29 anos. Restinga Sêca, janeiro de 2020. Entrevista concedida a Emanuelle Tronco Bueno.

39 Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); mestre em Teoria Literária (UFPA); professor Adjunto do Curso de Letras-Licenciatura da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Breves/Marajó.

40 Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Pará com período sanduíche no Programa de Pós-graduação em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em convênio com o Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD) entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e a Universidade do Estado do Pará.


41 As origens do Círio de Nazaré, segundo Cascudo (1998, p. 286), remontam, mais ou menos, ao ano de 1700, em que “o mulato Plácido José de Sousa mantinha na sua casinha, nos arredores de Belém, na estrada do Utinga ou Maranhão, grande devoção por uma imagem de N. S.ª de Nazaré, encontrada nas redondezas e réplica da que se venera em Nazaré, na Estremadura portuguesa, recordando o milagre de Dom Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, em 14-9-1182”.

42 Essa expressão, “Natal dos paraenses”, já é bastante popularizada na região, pois a festa adquire um caráter profundo de reunião de um grande número de pessoas para esse momento de celebração e trocas simbólicas.

43 Conforme Eliade (2001, p. 16), o sagrado “manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades ‘naturais’” e este se manifesta de diferentes formas e em um número extenso de hierofanias (manifestações do sagrado).

44 Ao contrário de outros estudiosos, Augé prefere usar o termo “supermodernidade” que “pós-modernidade”; para o estudioso, o primeiro termo é o que melhor definiria uma ideia de continuidade, principalmente, na modernidade vigente em que a aceleração é mais visível do que a real ruptura como preferem alguns autores, ao optarem pelo termo “pós”, com o objetivo de diferenciar as rupturas de um período para outro.

45 O conceito de Dádiva foi desenvolvido por Mauss, a partir de seu estudo sobre a observância da cerimônia – potlatch – praticada entre os povos indígenas da América do Norte: Haida, Tlingit, Salish e os Kwakiutl. Essa cerimônia mostra a prática de trocas simbólicas em sociedade ditas primitivas, em que o comércio na forma como o conhecemos não tem um efeito para esses povos, no entanto, demonstram uma outra forma de comércio, que são as trocas, o ato de dar e receber. Nesse sentido, essas trocas vão além de uma representação comercial e de fins apenas lucrativos. O sentido maior das trocas de presentes reside no fato de essa prática servir de uma troca contratual que se faz na forma de presentear “em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos”. (MAUSS, 2003, p. 187).

46 Bacharel e Mestra em Artes Visuais (UFSM). Docente na área de Artes na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

47 Licenciado em História (UCSAL/Salvador), Especialista em História Social e Econômica do Brasil pela Faculdade São Bento - BA e Mestre em História (UFBA). Docente na área de História na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).


48 Nome utilizado por Dilson Dias de Almeida em Barreiras, Bahia. Desde a infância utilizou o “Nêgo” como apelido dado pelo avô. O artista passou a residir em Barreiras na década de 1970. Atualmente, contabiliza 79 anos de idade.

49 Estamos considerando, neste artigo, a regionalização utilizada pela Secretaria de Cultura do governo do Estado da Bahia (SECULT-BA) na qual Barreiras está localizada no território de identidade da Bacia do Rio Grande (Ver SECULT-BA. Divisão Territorial da Bahia. Disponível em < http://www.cultura.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=314>, acesso em 10 maio 2020. Esclarecemos que o rio Grande um afluente da margem esquerda do rio São Francisco. Existem outras referências como Oeste da Bahia que é uma construção a partir da divisão territorial da Bahia, que leva em conta os aspectos econômicos. Historicamente, o que chamamos de Bacia do Rio Grande fazia parte do antigo Sertão do São Francisco. Sobre as noções de Oeste da Bahia e Sertão do São Francisco recomendamos FREITAS (1992; 1999) e SANTOS (2007).

50 Mestre Nêgo refere-se a Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882 - 1985), escultor carranqueiro de Santa Maria da Vitória, Bahia, no Território de identidade da Bacia do Rio Corrente.

51 Atualmente, Mestre Nêgo faz uso de espaço destinado ao atelier e a salvaguarda das obras, em sua residência.

52 Tradução Nossa. Segue o original: “El esfuerzo de los estudiosos por recuperar el arte verbal perteneciente a culturas no letradas (primitivas o tradicionales) ha suscitado la aparición de un curioso oxímoron para designarlo: literatura oral. De modo que el conjunto de mitos, leyendas, cuentos, poemas o canciones tradicionales, etc., recogidos directamente de informantes orales viene a constituir una rama especial de la literatura, subalterna y casi siempre mal considerada, la llamada literatura oral.”

53 Brincadeira tradicional de rua, ocorrida sempre na quarta-feira de cinzas quando há o cortejo fúnebre do personagem Nazáro, que faleceu de tanto comer. Aos curiosos observadores do cortejo de Nazáro restam ovos e farinha jogados por aqueles que participam da brincadeira gritando: "Nazáro morreu!".

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54 Utilizaremos a caipora no feminino conforme o nosso depoente se refere. Mas, também é comum em alguns lugares a referência no masculino.

55 Nenhuma das propostas para localizar o autor, realizadas até agora, possui fundamentos sólidos. Como já foi explicado, a página de rosto do códice único é una típica assinatura de copista, não de autor, pelo qual é infundado considerar Per Abbat como o criador/autor do texto, enquanto a data de sua cópia (maio de 1207) serve somente como limite mais recente para a redação do Cantar de mío Cid. (Frutos, Alberto Montaner. Tradução livre). Disponível em: https://www.caminodelcid.org/cid-historia-leyenda/cantar-mio-cid/aspectos-literarios/. Acesso em: 19 mar. 2020.

56 Disponível em: https://www.caminodelcid.org/cid-historia-leyenda/cantar-mio-cid/aspectos-literarios/. Acesso em: 19 mar. 2020.

57 Del árabe Saïd/Sid, ‘señor’, campi doctor - maestro en el arte de combatir (CANAVAGGIO, 1994, p. 53).

58 Todos os trechos de El cantar de mio Cid foram retirados da mesma obra, anônima, cuja edição é de 1999 e apresentada nas referências bibliográficas. Então, a partir desta citação, as demais terão apenas a indicação de página. Elas se distinguem de outras citações por permanecerem em espanhol.

59 Todas as citações de Serra dos pilões são da edição de 2001, apresentada nas referências bibliográficas. Então, a partir desta, as demais terão apenas a indicação da página.

60 Tradução livre.

61 O conto “Tropeiros do Jalapão” está inserido na obra Veredão (1999), e a lenda do romãozinho está inserida na obra Negro D’água (2002), ambas do mesmo autor, Moura Lima.

62 Tradução livre.

63 Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da Bahia (1990), mestrado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (2003). Atualmente é Professor Titular e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Coordenador do Núcleo das Tradições Orais e Patrimônio Imaterial (NUTOPIA/ Campus II/UNEB). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, atuando nos seguintes temas: relações raciais, patrimônio imaterial, música, culturas populares e negras. Tem atuado como pesquisador ou consultor em vários projetos de extensão sobre culturas populares e negras, tal como, o inventário sobre o samba de roda do Recôncavo baiano encomendado pelo IPHAN (2005) e mais recentemente o Projeto Cantador de Chula que registrou a história e o canto de mestres cantadores do samba chula na Bahia. É membro do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL desde o ano de 2012 .


64 No senso comum, entre os sujeitos animadores dos espaços de convergência de memória afro-brasileira citados acima, nas produções artísticas e culturais, particularmente na música, “África” é sempre um substantivo feminino como também é Europa, Ásia ou América. No caso de “África”, a feminilização se justifica, sobretudo, porque a este continente se atribui o papel de “mãe”. Ao menos aqui quero evitar esta conotação sobrecarregada de sentido, ideológica e mítica (CUNHA, 1986), uma vez que a mesma suscita uma posição social problemática, atribuída às mulheres negras desde o início da colonização portuguesa, aliás, emblematicamente descrita e reforçada, por exemplo, em Gilberto Freyre (1989). Logo, aqui, não vou justapor artigo feminino ou masculino ao substantivo “África”.

65 A teologia e o pensamento da tradição do candomblé no Brasil consideram a “cabeça” o principal órgão do ser humano. De tal modo, o processo de iniciação de um novo adepto deve ocorrer através de um ritual para a “cabeça” em um sentido abstrato, metafórico e sobre a “cabeça” em sentido concreto, físico. É sobre a “cabeça” que se depositam objetos que simbolizam os segredos ancestrais e é a cabeça dos novos e antigos adeptos que deve guiar o contato com o sagrado e a condução responsável no tempo e no espaço das práticas, do pensamento e da instituição religiosa. Uma “cabeça” enfraquecida, desprotegida está sempre vulnerável a todo tipo de ameaça espiritual ou a ações e pensamentos que não deveriam lhe corresponder.

66 Neste romance citado, Ana Maria Gonçalves, baseada em fatos históricos, construiu a saga de uma criança negra africana, sequestrada em África e escravizada na Bahia. Mulher liberta acumula dinheiro, patrimônio material, gera filhos, estabelece relações sociais, econômicas e afetivas com outros negros e negras escravizados ou libertos e com brancos. Incorpora valores do mundo branco assim como busca, se reapropria e reinterpreta valores e memória ancestral na Bahia e em África para onde retorna no final da vida. É uma obra fundamental da literatura brasileira que tematiza perdas, dores e agência negra.

67[...] Les modalités d´appartenance à l´ordre du monde qui régit les mobilités transcontinentales peuvent être questionnées quel que soit le cadre spatio-temporel : la longue durée, avec l´esclavage, ou la moyenne durée, avec la colonisation. Trois status sont ici concernés : le citoyen, l´esclave et/ou l´indigène. La colonisation et l´esclavage alignent, de manière différente, ces assignations statutaires dans la dynamique de déterritorialisation de l´État-Nation euro
péen, instituant ainsi, à terme et pour tous, l´éxperience particulière d´être citoyen en même temps qu´étranger partout et même chez soi. On peut appréhender cette expérience spécifique en comparant la colonisation et l´esclavage. Le dispositif d´encadrement colonial distinguait le
citoyen, celui qui avait des droits politiques, de l´indigène, celui qui était né dans le pays mais n´en jouissait pas. [...]. En résumé, dès l´origine de l´Ètat-Nation déterritorialisé, l´Africain était déjà sorti de son pays avant même de migrer, tout en restant sur « son territoire ». Par comparaison, on peut dire que l´esclave était celui que, extradé de son continent, avait perdu « son pays » sans avoir trouvé de « terre », ni de droit du « sol ». (BAZENGUISSSA-GANGA in BAZENGUISSA-GANGA e MBEMBE, 2006: 47.) Tradução minha.


68 En R. D. Congo, comme ailleurs en Afrique, la corruption agit par capillarité, elle irrigue par des circuits peu mesurables la toile d'araignée sociale et politique. Sur un marché public, sur un redressement fiscal abusif, sur une ponction illégale, sur une entreprise publique, les pourcentages de la redistribution iront croissants, de l'agent de base, au chef de bureau, puis au directeur, et ainsi de suite, jusqu'au centre de la toile. La corruption tisse ainsi le maillage du pouvoir autour d'un réseau de complicités, renforce la cohésion interne des groupes autour de la prédation et de la redistribution de ses produits. Elle permet de gérer les alliés et les courtisans, de conforter leur loyauté. [...]. La quête monétaire permanente, le « besoin d'argent » si caractéristique du quotidien des Congolais, obligent chacun à une recherche de moyens et finit par brouiller les frontières entre le juridiquement admissible et le juridiquement condamnable. Dans un contexte de rareté dramatique des ressources et de dysfonctionnement des services de l'État, la maintenance nécessaire du réseau des relations sociales a ses exigences ; elles l'emportent sur toute autre considération, fut-elle morale. Et de nouvelles obligations naissent en ville, comme celles imposées par les églises sectaires qui jouent sur la crédulité de leurs ouailles en les attirant dans leurs temples pour leur soutirer de l'argent sous le prétexte de leur apporter une absolution rapide ou une guérison instantanée. La corruption ne se résume donc pas à une microéconomie du coût (risque de sanction) / avantage (gain du pot-de-vin) dans la relation mandant-mandataire. La redistribution qui l'accompagne est essentielle à sa compréhension (Cartier Bresson, 2000). Au quotidien, l'administration se révèle être un ensemble où tout est personnalisé, relationnel, où tout se joue sur les affinités, la compréhension mutuelle. L'espace de la légalité ne se différencie pas nettement de l'espace du délit. (JACQUEMOT, 2010: 137-138) Tradução minha.


69 “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial / étnica da população do mundo como pedra angular desse padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões, materiais e subjetivos, da existência e escala cotidianas. Origina-se e se globaliza a partir da América. [...]. No curso da implantação dessas características do poder atual, foram se configurando as novas identidades sociais da colonialidade (índios, negros, amarelos, brancos, mestiços) e as geoculturais do colonialismo (América, África, Extremo Oriente, Próximo Oriente, Ocidente e Europa). As relações intersubjetivas correspondentes, nas quais as experiências do colonialismo e da colonialidade se fundiram com as necessidades do capitalismo, se configuraram como um novo universo de relações intersubjetivas de dominação sob a hegemonia eurocentralizada. Esse universo específico é o que mais tarde será chamado de modernidade”. (QUIJANO, 2014, p. 285-286, tradução nossa).

70 Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA; Pós - Graduada em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI; Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA.

71 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Pós - doutora em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Professora Associada da Universidade Estadual do Piauí,/Universidade Estadual do Maranhão,atuando na Graduação e no Mestrado em Letras.


72 Professor auxiliar da FLUP, Departamento de Estudos Portugueses e Românicos, área de Estudos Clássicos. Doutorado em Literaturas Clássicas e docente das UC de Latim, Literatura Latina, Métodos e Técnicas de Pesquisa, Matrizes da Cultura Clássica, Português Língua Estrangeira e formação de Professores de Português. Membro da U&I Instituto de Filosofia – FLUP e colaborador de CITCEM – FLUP. Trabalhando com a cultura clássica e medieval, tem na tradução de textos latinos, na edição e tradução de textos latinos medievais e na recepção dos autores clássicos na literatura portuguesa as principais áreas de interesse.

73 Conta que, enquanto um mestre em Teologia havia recebido uma calorosa ovação por causa da sua pregação, o seu discípulo, pelo contrário, que havia recitado o mesmo sermão, não obteve o mesmo êxito. Tendo estranhado o facto, perguntou ao mestre a razão de tão díspar comportamento do auditório. Obteve a resposta de que ele lhe havia entregue a viola mas não o arco com que se tangem as cordas.

74 As assembleias modernas preferem antes o tom conversacional e só entre os comediantes são apropriadas as formas burlescas.