REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitatá é uma publicação semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL)


GT LITERATURA ORAL E POPULAR

BIÊNIO 2018/2020

COORDENADOR

Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

Secretaria Estadual de Educação do Pará

alexandre_ranieri@hotmail.com

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Délcia Pombo

PPGL-UFPA

delciauab@gmail.com

SECRETÁRIA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com







IDADE MÉDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE












Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecário: Marcos Moraes – CRB: 9/1701





Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL [recurso eletrônico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 28 (ago. /dez. 2019). – Londrina: UEL, ANPOLL, 2019.



Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

Texto em português



ISSN: 1980-4504



1. Literatura oral e popular 2. Oralidade – Idade Média I. Rocha, Janaína Marques Ferreira. III. Universidade Estadual de Londrina. IV. Título: Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL


CDU 82


Índice para o catálogo sistemático:

1.

Literatura oral e popular

82.085

2.

Literatura oral – Idade Média

82:940.1






EXPEDIENTE


EDIÇÃO


Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (SEDUC-PA)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)



EDITORIA ASSISTENTE


Dra. Mauren Pavão Przybylski (IFBaiano)

Dra. Andréa Betânia da Silva (UNEB)



ORGANIZAÇÃO


Dra. Janaína Marques Ferreira Rocha (USC)



COMISSÃO EDITORIAL


Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez

Universidad Nacional Autónoma de México


Dra. Cláudia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense


Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia


Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados


Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina


Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)


Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)


Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Pará


Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Pará


Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul


Dra. Maria do Socorro Galvão Simões

Universidade Federal do Pará


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso



Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paraná


Dr. Sílvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense


Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina


Dra. Vera Lúcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa



PARECERISTAS DESTE NÚMERO


Dra. Andréa Betânia da Silva

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Cláudia Freitas Pantoja

Faculdade do Vale do Ivaí


Dr. João Evangelista do Nascimento Neto

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Janaína Marques Ferreira Rocha
Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Lênia Márcia Mongelli

Universidade de São Paulo 


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dra. Maria Isabel Morán Cabanas

Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Mauren Pavão Przybylski

Instituto Federal Baiano


Dr. Nerivaldo Alves Araújo

Universidade Estadual da Bahia


Dr. Silvio Augusto de Oliveira Holanda

Universidade Federal do Pará


Dra. Yara Frateschi Vieira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo



PROJETO E ENSAIO VISUAL


Dr. Alberto Ricardo Pessoa

Universidade Federal da Paraíba


Jéssica Araújo

Universidade Federal da Paraíba




SUMÁRIO



APRESENTAÇÃO

Janaína Marques..............................................................................................................................05



SEÇÃO TEMÁTICA

Da tradição medieval à representação (performance) contemporânea: Floripes e Ferrabrás. Um trabalho épico

Antonin Rossell ..............................................................................................................................08

El Corpus Christi en el ritual eucarístico y en las Cantigas de Santa Maria

Maria Incoronata Colantuono Santoro............................................................................................19

O Cantar de Roldão: pelas veredas de uma tradição epigenética
Ronald Ferreira da Costa................................................................................................................41 

Performance poética e musical na Cantiga de Santa Maria 20: letra e música

Gladis Massini-Cagliari..................................................................................................................60

Variabilidad métrico-melódico en los versus del manuscrito Paris BNF. LAT. 1139

Adriana Camprubí...........................................................................................................................85



SEÇÃO LIVRE

A observação de práticas de performance de literatura oral no ensino de literatura em Timor-Leste: uma experiência de trabalho no programa Capes/Pqlp
Daniel Batista Lima Borges .........................................................................................................116

A representação do boi em uma Estória de Amor, De João Guimarães Rosa

Maria Viana Schtine Pereira.........................................................................................................128

As proezas de Jiló: ecos da malandragem em Roque Santeiro

Rondinele Aparecido Ribeiro, Francisco Cláudio Alves Marques...............................................140

Ethos discursivo da figura Do Frei Damião na literatura de cordel

Marcio de Lima Pacheco, Francisco de Assis Costa da Silva, Edilene Leite Alvez.....................154

Las meigas gallegas - "haberlas, haylas": a ressignificação da imagem da bruxa na Galiza

Yls Rabelo Câmara, Maria Paz Pizarro Portilla............................................................................175



ENSAIO VISUAL

Iluminura, um ensaio visual

Alberto Ricardo Pessoa.................................................................................................................189






APRESENTAÇÃO



A presente edição da Revista Boitatá: Idade Média: oralidade e performance, reúne trabalhos que abordam de maneira interativa os elementos textuais, musicais e corporais da literatura deste período e ainda buscam explorar a comunicabilidade destas composições com expressões artísticas contemporâneas. Ao analisar o repertório literário deste período é importante compreender que independente do sentido das palavras que nos chegaram, estes são textos que, na sua época, eram indissociáveis de uma arte corporal, do contacto direto e presencial da voz com o ouvinte1. O que resta dessas vozes ao pesquisador, entretanto, além de um número muito escasso de partituras musicais, não são exatamente as vozes, mas palavras que essas vozes algum dia terão cantado. Essa limitação de ordem prática acaba por comprometer abordagens que articulem de maneira interativa os elementos textuais, musicais e corporais das composições medievais.

A comunicabilidade que as composições medievais mantêm com as expressões artísticas contemporâneas pode ser identificada por meio da sobrevivência/recuperação de topus, melodias, sagas, e pela tessitura performática, pois é um texto que se concretiza na intersecção de diferentes linguagens artísticas expressas em texto, música e gesto. Trata-se, portanto, de uma arte que revela não apenas um determinado momento histórico, mas expõe uma dinâmica capaz de sensibilizar o leitor/ouvinte de todos os tempos.

Nesse sentido, o primeiro artigo da sessão temática “Da tradição medieval à representação (performance) contemporânea: Floripes e Ferrabrás. Um trabalho épico” do Prof. Dr. Antoni Rossell, da Universidade Autônoma de Barcelona, contribui enormemente para compreender a expansão de um tema medieval até a contemporaneidade. Em seu estudo, Rossell aborda a complexa tradição literária por trás da difusão no século XXI, da lenda medieval de Floripes e Ferrabrás. Um repertório que segue vivo em manifestações culturais e folclóricas contemporâneas de diferentes países na América Latina, Europa, Ásia e África, nos quais se observa a fusão de espetáculo, música, teatro, performance oral.

Na sequência, em “El Corpus Christi en el ritual eucarìstico y en las Cantigas de Santa Maria”, a Profª. Drª. Maria Incoronata Colantuono, da Universidade Autônoma de Barcelona, aborda a percepção do Corpus Christi no ritual eucarístico e nas Cantigas de Santa Maria, do rei Alfonso X o Sábio, e como seus elementos revelam a presença de mecanismos compositivos performativos que atuam sobre os afectus dos ouvintes. Por meio da análise de quatro Cantigas de Santa Maria a pesquisadora destaca como as estratégias poéticas e musicais - paralelismos, convergências melódicas, métricas e rimáticas -, são utilizadas de maneira intencional criando uma rede de correspondências extremamente eficaz do ponto de vista mnemônico, e de seu potencial performativo.

Em “Performance poética e musical na Cantiga de Santa Maria 20: letra e música” a Profª. Drª. Gladis Massini Cagliari analisa as estruturas métricas e melódicas da composição alfonsina, investigando as contribuições da notação musical para compreensão do texto. A partir do estudo das estruturas métricas e melódicas ela levanta hipóteses das possíveis utilizações estilísticas, com elementos como: silabação, processos fonológicos (elisão), padrão acentual, rimas e acomodação dos versos à melodia, com o objetivo de fazer ressoar aos dias de hoje o som da cantiga medieval.

O artigo do Prof. Dr. Ronald da Costa “ O cantar de Roldão” busca estabelecer uma reflexão acerca da tradição literária iniciada com a Chanson de Roland já no final do século XI, em sua forma prototípica, originada de uma tradição oral que cantava a dinastia carolíngia, em contraste com a evolução e a transcendência que essa tradição encontra na América Latina e no Brasil. Nesse sentido, apresenta primeiro a origem dessa tradição; em seguida, as configurações dela no Brasil; e conclui com a apresentação da proposta de tradução como uma síntese entre o arquétipo e o típico nacional, por abertura e conservadorismo.

Finalizando a sessão temática a Drª. Adriana Camprubi Vinals analisa, em seu estudo “Variabilidad métrico-melódico en los versus del manuscrito paris BNF. LAT. 1139”, como este manuscrito, datado do século XI oferece um magnífico campo de estudo para a análise das formas métricas desenvolvidas no território da aquitânia durante os séculos XI e XII. Substituindo o conceito de irregularidade por variabilidade, Adriana aborda os processos compositivos utilizados conscientemente na elaboração deste manuscrito que deixam entrever a criação de padrões fixos que definirão a futura lírica medieval.

Na seção livre apresentamos cinco artigos, sendo o primeiro deles: “Las meigas gallegas - Haberlas Haylas: a ressignificação da imagem da bruxa na galiza”, uma coautoria da Profª. Drª. Maria Paz Pizarro Portilla e da Drª Yls Rabelo Câmara que retrata a imagem da bruxa na cultura galega, sua concepção e sua transformação no último século e meio. A meiga galega, é uma figura folclórica feminina que, em suas origens esteve ligada ao mal a bruxaria, mas com o tempo sua representação foi neutralizada passando a representar a proteção daqueles que acreditam em seus poderes e a bondade.

O estudo “A observação de práticas de performance no ensino de literatura em Timor-Leste: uma experiência de trabalho no programa Capes/Pqlp” de Daniel Batista Lima Borges, apresenta as metodologias usadas no ensino de literatura no país lusófono asiático, valorizando o vínculo que promovem entre oralidade e escrita. Analisando com especial atenção às performances de literatura oral dos alunos timorenses procura-se demonstrar como a expressividade do corpo, da voz e da narração são utilizadas para individuar e produzir novas identidades neste contexto.

No artigo “As proezas de Jiló: ecos da malandragem em Roque Santeiro” Ivanaldo Santos e Edilene Leite Alvez analisam, dentro do gênero da telenovela, a representação arquetípica do malandro por meio do personagem “Jiló” da novela Roque Santeiro, exibida pela Rede Globo em 1985, e como essa figura foi absorvida pelas mídias tornando-se expressiva nas telas.

Em seguida, os autores Marcio Pacheco, Francisco da Silva e Edilene Alves no artigo “Ethos discursivo da figura do Frei Damião na literatura de cordel”, investigam como a representação do personagem do Frei Damião reforça a identificação do gênero literário do cordel com as características profundas que constituem o povo brasileiro.

Finalizando a seção livre Maria Viana Schtine Pereira em seu artigo “O papel quase sacerdotal dos contadores de estória, em Uma estória de amor, de João Guimarães Rosa”, procura demonstrar como o autor dá voz ao contador de histórias e buscará estabelecer relações entre anotações e imagens encontradas nos diários de viagens do escritor, buscando destacar a presença do boi e sua simbologia.


Janaína Marques


















SEÇÃO TEMÁTICA



Da tradição medieval à representação (performance) contemporânea: Floripes e Ferrabrás.

Um trabalho épico


From medieval tradition to contemporary representation (performance): Floripes and Ferrabrás. An epic job


Antoni Rossell2


Resumo: A pervivência de personagens carolingios e avatares, como a utilização da lenda e objetivos de sua conservação e representação. E  a expansão de um tema medieval, sua sobrevivência e amplificação desde o medievo até o século XXI, em que a tradição de Floripes e Ferrabrás, sempre no contexto de Carlos Magno e os doze pares de França, continua representando um ideal heroico.


Palavras-chave: Épica. Tradição Oral. Representação


Abstract: The survival of Carolingian characters and avatars, such as the use of the legend and objectives of its conservation and representation. And the expansion of a medieval theme, its survival and amplification from the medieval to the 21st century, in which the tradition of Floripes and Ferrabrás, always in the context of Charlemagne and the twelve pairs of France, continues to represent a heroic ideal.


Keywords: Epic. Oral Tradition. Representation


Sabemos, por numerosos testemunhos, da difusão da matéria carolíngia em terras Latino Americanas desde os primeiros tempos da colonização: Nas crônicas3, na tradição oral do romanceiro4, como na literatura popular5. Não é possível conjecturar a origem das representações contemporâneas da lenda de Floripes e Ferabrás atribuindo-a simplesmente a uma ‘tradição medieval”, uma vez que essa transmissão foi tão complexa de modo a influenciar não só no tipo de performance, mas também em seus objetivos a partir da perspectiva do estamento político e religioso. A incorporação da cultura africana no Auto de Floripes de São Tomé é um tema extremamente complexo que foi analisado por Alexandra Gouveia Dumas6. Tal como demonstra em seu artigo, não se trata apenas da mistura de cultura africana e portuguesa, ou não unicamente, já que, por questões econômicas e políticas, a relação do personagem feminino de Floripes com diferentes culturas se estabelece em três pontos: portuguesa, africana e brasileira. Uma vez tomada a ilha de São Tomé no Golfo africano de Guiné como ponto estratégico comercial de uma nova rota para as Índias, com a chegada de europeus no Brasil no ano de 1500, e com o comércio de escravos, o cultivo de cana de açúcar e de cacau, a ilha passa a ser um centro de contato de culturas e de comércio no qual os intercâmbios de indivíduos e culturas se realiza em todos os sentidos, com grande influência do Brasil. De que modo se insere o personagem feminino em uma sociedade integrada por indígenas da própria ilha, mas também procedentes de diferentes pontos do continente africano, de escravos em trânsito, de europeus, de brasileiros, “forros”, negros ex-escravos, e colonos? A presença do Auto de Floripes tem uma justificação religiosa e social-ideológica. A implantação de uma população branco ou negra era difícil por razões de saúde, em palavras de Dumas referindo-se ao escravos:


São Tomé serviu como espaço de adaptação ultramarina. Antes de chegar às Américas, os escravos passavam um período em solo são-tomense, que servia para se viver um tipo de adaptação, desenvolvendo resistência às doenças europeias, o aprendizado da língua ou do próprio fabrico do açúcar (Dumas, op. cit., 2001, p. 186).


São Tomé passa por todo tipo de vicisitudes e alteração de atividade agrária e comercial devido ao descubrimento e a exploração do Brasil, o que gera um contínuo intercâmbio de população. Isso tem suas consequências no processo de evangelização, já que a igreja católica, ativa e presente no comercio de escravos, prefere predicar a eles e a população nativa com indivíduoa de etinia africana, exescravos convertidos, o que gerava mais confiança entre a população negra e reduzia as barreiras étnico-culturais entre os missionários europeus e a população africana.


ARTUR CONTRA CARLOS MAGNO


Na atualidade, o repertorio medieval que mais incidência tem na “cultura” audiovisual é, sem dúvida, o de tema artúrico, certamente devido à hegemonia e à capacidade de difusão da língua inglesa. Apesar disso, essa preeminência responde a construções de ordem literária. Mas, se nos aprofundamos na cultura popular tradicional, os repertórios que gozam de maior popularidade junto a um notável grau de internacionalidade, são os épicos franceses. Esses repertórios, além de manter sua boa saúde, já que alguns dos que haviam sido esquecidos estão se recuperando e os que continuam sendo representados se consolidam como tradições identitárias e de coesão social, disfrutam de uma natureza pluricultural apesar de terem a mesma origem – o que lhes confere um valor a mais ao da conservação e atualização. Jerusa Pires Ferreira, referindo-se especificamente à cultura brasileira, descreve os segmentos:


[U]ma vertente difusa arturiana, em que ancora o sebastianismo; e uma vertente épica, que traz a permanência de muitos textos e romances medievais.


Ao que acrescenta que os diferentes públicos…


ligavam-se à legendária textura da épica cavaleiresca, transformada en modelo histórico possível para pessoas que nâo experimentavam a ideia de uma História cronológica. Há uma continuaçâo entre o seu presente e o passado remoto, relações de dependência e de vassalidade, conhecimentos de como lidar com formas de dominaçâo e violência (Ferreira, op. cit., 2012, p. 230).


Deduzimos, a partir disso, uma valorização histórica desse tipo de repertório literário como razão de sua assimilação e pervivência, o que nos leva à concepção medieval da literatura como história. A conexão entre literatura e história forma parte da natureza de uma e outra. O que frequentemente não é tão evidente é a utilização que se faz da literatura a fim de convertê-la em um elemento de propaganda ideológica, transformado-a em material histórico. É paradigmática a promoção da literatura artúrica por parte da corte de Enrique II Plantagenet para elaborar uma mitologia literária que pudesse competir com a matéria carolíngia da coroa francesa. Nessa ação literária, a vontade do monarca inglês era legitimar seu poder mediante um corpus literário alternativo e tradicional de um pasado mitológico e exemplar: a materia artúrica7. Para isso, desenvolveu um programa de mescenagem no qual estariam envolvidas, tanto sua esposa, a rainha Leonor de Aquitânia, como sua família. Ao mesmo tempo, a narração dos acontecimentos históricos necessita de uma retórica literária que assimila e aproveita diversas tradições e que carrega aspectos tanto históricos como ficcionais8, nos quais, segundo Hayden, sobressaem-se os elementos formais sobre o conteúdo9.

Jeruza Pires Ferreira se pregunta – a partir da anedota segundo a qual Câmara Cascudo havia escutado seus parentes discutirem acerca da bravura de Roldão e de Oliveiros, mas nunca de Palmerín ou de Amadís – pela razão dessas ausências no sertão do Brasil. Opina que não é a ausência de tais heróis nas bagagens dos colonizadores, mas que há motivos que justificam a presença e o auge da lenda carolíngia frente à ausência do mundo artúrico, mesmo que se haja produzido certo processo de hibridização entre a matéria artúrica e a carolíngia10. Diante da concepção historicista da matéria carolíngia, o universo artúrico responderia a uma literatura popular de âmbito maravilhoso, alheio à vontade colonizadora que necessitava aproximar ficcionalmente à população a ser colonizada com os colonizadores: Comunidade e grupo frente à individualidade.

Voltando aos motivos pelos quais no âmbito oral tradicional se impôs ou impuseram a figura de Carlos Magno à de Artur, com o sentido histórico anteriormente mencionado, devemos acrescentar a questão identitária e a vontade de coesionar um grupo social acerca de alguns ideais. Tudo isso conflui numa performance plurigenérica, que não se limita em modos ou formas de divulgação para promover e impor alguns ideiais civis ou religosos. O objetivo dos colonizadores era a implantação de um corpus literário referencial numa base popular ampla, suscetível de ser assentado em contextos culturais diferentes, e para isso, era necessário uma metodologia performática interdisciplinar e, por tanto, plurigenérica. Talvez a renúncia ao elemento maravilhoso nos textos e representações contemporâneas e a escassa presença do elixir de Ferrabrás, possivelmente o elemento mais popular da lenda na tradição espanhola, é uma mostra da modificação e da utilização da lenda com fins extraliterários, nos quais convinha realçar o elemento feminino (Floripes) frente a seu irmão e eliminar o elemento maravilhoso do elixir, claramente incômodo diante dos objetivos dos religiosos para a conversão dos colonizados.


FICÇÃO, DIFERENÇA E IDENTIDADE


Se na tradição literária espanhola já se defendia a veracidade histórica da lenda de Ferrabrás e Floripes11, tampouco se discutia na tradição literária brasileira:


Leiam essa minha história

com calma e meditação

Verão que não é mentira

nem lenda de ilusão12


O aspecto que nos parece mais interessante na diferença entre o contexto cristão/católico europeu e o das representações atuais, fruto da colonização, radica em que, enquanto no contexto original a lenda evolui dentro de pautas históricas, regidas por elemento cômico sexual numa tentativa de devolver ao herói seu contexto pagão e, portanto, antinatural e religiosamente incorreto, no contexto folclorizado parece que a verdadeira intenção haja sido fossilizada e não se altere, adquirindo uma dimensão histórica. Isso mostra o grau de estabilidade e conservação ideológica da tradição oral. Vemos reafirmada essa concepção histórica do relato junto ao da identidade num caso que teve lugar no Estado brasileiro de Santa Catarina, no movimento rebelde conhecido como “Contestado” (outubro de 1912 a agosto de 1916), em que seguidores se autodenominavam como os “Pares de França” (considerando equivocadamente, por uma leitura literal, que os doze pares eram realmente vinte e quatro), com o que verificamos o grau de identificação desses indivíduos com a representação da lenda na zona do Sertão, e com um sistema político-organizacional de caráter feudal.

A utilização da figura de Carlos Magno e dos textos épicos medievais como elemento político e ideológico não é original da tradição pós-medieval. Na tradição historiográfica sobre o descobrimento da tumba do apóstolo São Tiago, encontramos uma boa mostra na história de Carlos Magno e Roldão no século XIII. Contamos com tradições historiográficas medievais antagônicas acerca do descobrimento da tumba de São Tiago, a tradição Compostelana, a partir do Pseudo-Turpino, na qual Carlos Magno tivera um papel primordial, e a tradição catelhana, que nega tal afirmação. Tudo isso tem repercussões, tanto políticas como econômicas na Idade Média, pois se Carlos Magno houvesse conhecido os foros e os direitos à cidade de Compostela, esta não deveria pagar tributos nem estaria sujeita economicamente à Coroa castelhana. E, a consequência disso, se organiza uma ação política e historiográfica entorno à figura do imperador franco em terra hispânicas e que tem como protagonista o rei Alfonso X com seu trabalho historiográfico e político13. Carlos Magno e Roldão são as figuras coesionadoras da lenda de Floripes e Ferrabrás, e ambos heróis francos não estão desprovidos de polêmica, tanto na tradição medieval como nas representações tradicionais contemporâneas.14 Poderia-se argumentar que os enfrentamentos pessoais e familiares que encontramos entre os heróis cristãos nas representações atuais são reelaborações modernas, não obstante, se nos remontamos à época medieval, as diferenças entre tio e sobrinho não são um elemento épico-literário da Chanson de Roland, mas aparecem no romanceiro tradicional. Por outro lado, Carlos Magno é um personagem problemático – historicamente falando – já na Idade Média, pois sua personalidad já é discutida e posta em questão na mesma tradição histórica e literária medieval. Boa prova disso é o título de Imperador, fruto de uma habilidosa política de apoio ao papa Leão III diante de seus inimigos, mas que teve um reconhecimento generalizado15. A estratéga de Carlos Magno pretendia o reforço da autoridade imperial em detrimento da autoridade do papado e da Igreja, já que o “modelo romano” do Imperador necessitava aglutinar em sua pessoa, tanto a autoridade política como a ética, por sobre a autoridade papal. Essa estratégia política se serviu dos intelectuais carolíngios, que pretenderam impor uma imagem do monarca mais ética que política, a fim de ensombrecer o poder papal16. Não obstante, essa estratégia fracassa e fica evidente, a partir do século XI na caracterização do Imperador, tanto em obras literárias de âmbito francês – como Pélerinage de Charlemagne, em que o Imperador é ridicularizado por sua superficialidade e orgulho – como também, e sobretudo, em obras de língua e área occitana, nas regiões em que se produz um maior desmembramento do poder carolíngio (Aquitânia setentrional ou zona Franco-Provençal), como o Roman de Flamenca, a canção épica occitana Daurel y Beton17, e o planctus satírico do trovador Guilhem de Berguedà a seu inimigo Ponç de Mataplana18. É interessante a consideração e permanência de Carlos Magno como um imperador ocioso ou, como leríamos em francês antigo, feignant. A figura de Carlos Magno também é questionada nas tradições populares atuais, tanto em Portugal.19Como na tradição dos folhetos nordestinos brasileiros:


Oh imperador Carlos Magno homem covarde e sem valor! manda dois ou três, ou quatro dos mais valentes e melhores dos doze Pares contra mim somente que espero vencer a batalha; e venham, ainda que seja Roldão, Oliveiros, Tietri e Urgel de Danóa…20


Por oposição ao herói cristão, Ferrabrás representa uma série de valores e qualidades que o convertem no protagonista masculino da lenda. De fato, ele é caracterizado – apesar de sua natureza pagã – com um contorno de ingenuidade e honestidade desde a tradição medieval. O atributo do herói pagão era sua desmesurada força, e a incorporação ao estrato cristão supunha a inclusão de uma das qualidades que representava a hombridade necessária para a luta e o combate, imprescindível para representar a missão profética de evangelizar e cristianizar aos indígenas. Esse herói de força incomensurável e invencível, sendo pagão convertido, se transforma em exemplo a imitar para os povos indígenas dos distintos continentes que os europeus querem converter. Sua representação por parte de um projeto ideológico e religioso dos colonizadores conjuga as virtudes morais ou éticas com a força física, porque também encarna a masculinidade ao formar parte do binômio masculino/feminino (Ferrebrás/Floripes) com o objetivo de simbolizar o ideal que conjugava o humano com o religioso.21

A pesar de os heróis e sua consideração estarem sujeitos a evoluções e modificações, também encontramos Ferrabrás associado a Satanás e ao Demônio na santeria brasileira e em algumas línguas invocadoras de São Ciprião:


A luta vencerei, com os poderes da Cabra Preta milagrosa.

Inimigo, com dois eu te vejo, com três eu te prendo,

com Caifás, Satanás, Ferrabrás.22


Ferrabrás supõe uma voz alternativa ao espírito épico heroico dos vencedores, uma vez que encarna o vencido que, mediante a conversão, se redime socialmente e salva sua vida e sua alma, tudo isso mediante o esforço físico e a valentia, e com um espírito de nobreza que o faz merecedor do perdão por suas campanhas contra Roma e contra os cristãos, assim como pelo roubo das santas relíquias.

Na cultura indígena e diante da impossibilidade (literária) do Imperador Carlos Magno de coesionar os “Pares”, é necessário um elemento externo, ou “estrangeiro” se atendêssemos as teorias antropológicas de Sir James George Frazer, nesse caso um personagem feminino que legitime a autoridade dos conquistadores e que se faça de intermediária entre a nova ordem imposta e a cultura autóctone. Esse personagem não é outro senão a irmã de Ferrabrás e filha do emir e almirante Balão, Floripes. Se no Auto da Neves Floripes é a protagonista, é porque, em realidade, ela é a única mulher que intervém no espetáculo, assim como também sucede na representação na ilha africana de São Tomé. Essa particularidade converte a heroína – ainda mais – em centro da ação e desencadeante dela. Não é gratuito o papel da sarracena Orable em Prise d’Orange, paralelo ao de Floripes. Orable ajuda os heróis cristãos e finalmente se casa com Guillaume d’Orange e ele troca seu nome por Guibourg. Recordemos o papel da mulher na literatura medieval como elemento legitimador do poder, e é por essa razão que, desde uma perspectiva antropológica, a razão pela qual Guillaume se casa com Orable/Guibourg é para legitimar seu poder e ser reconhecido pelo povo, visto que, em sociedades ancestrais, o poder se legitima através do elemento feminino. Assim, tanto Guibourg como Floripes são herdeiras dessa tradição, e sua utilização no processo de colonização e sua integração nas representações teatrais se justifica por razões de legitimidade da mensagem dos colonizadores diante dos indígenas. Além da leitura antropológica, o que na realidade prima na figura de Floripes é a passagem do paganismo ao cristianismo23.

Um dos antecedentes literários do personagem Floripes é a mãe do sarraceno Corbarán, identificado com o personagem histórico difamado por sua própria tradição do emir Mossul do século XI, e que se conhece com o nome de Calabre24. É um personagem enigmático, mas dotado do dom da adivinhação e, segundo a história, trata-se de uma persona “cripto-cristã”, que se converte no intermediário entre o paganismo e a salvação cristã25 , mas sua natureza mágica a dota de um status ambíguo. Assim, Floripes, nas manifestações tradicionais contará também com uma dimensão mágica do Candomblé ou da Encantaria brasileiro-africana, qua a aproximam de um lugar afastado e proscrito da crença cristã26. Encontramos o precedente desse afastamento já nas versões medievais, pois Floripes atua por amor, tanto na sua conversão ao cristianismo27 como na traição ao seu povo.

Nos processos de colonização, a mulher sempre desempenhou um papel primordial, sobretudo como moeda de troca. Nesse caso, a figura de Floripes supõe uma aceitação da troca de lugar, da alteridade dos colonizadores. As mulheres nos processos de colonização foram tanto um espólio de guerra como um modo de selar alianças com os povos conquistados28. Como apontávamos acima, a presença de mulheres no “auto” se reduz normalmente a Floripes, mas em várias representações tradicionais nos encontramos com um cortejo de mulheres que acompanham Floripes e que são denominadas como “palas”, e que seriam uma reminiscência de mulheres nobres da época dos Incas, e que formavam parte do cortejo de mouros em Quipán e Pampacocha (Peru), que intervêm na representação cantando:


Fierabrás de Alejandría

Procúrate defender

Con esa tola ensangrentada

Con esa tola ensangrentada

¡Hillawaya llawaya!

¡Hillawaya llawalla!29

Mas também as encontramos em outras localidades peruanas como Ancash, Lima, Huánuco e em Huamantanga, na representação do Cerco de Roma que instauraram os mercenários no ano de 1660.30

Essas mulheres podem estar casadas, mas Floripes não. A virgindade de Floripes foi, para essas festas populares, um requisito ineludível. Em São Tomé é premente que a jovem que se faz de Floripes tenha uma integridade moral com a qual adquire um caráter exemplar. De fato essas mulheres jamais deixarão de ser "Floripes" e elas mesmas assumem esse papel moral e exemplar que têm a obrigação moral e social de conservar por toda a vida. Isso contrasta com as versões espanholas em que se atribui a todos os irmãos a possibilidade de incesto. Referimo-nos a um pretenso desejo sexual do herói por sua irmã, desse modo Calderón, ainda conservando a pugna entre francos e sarracenos, abandona a reivindicação religiosa e dirige seu interesse à questão do incesto. Segúndo Sáez Garcia, no teatro calderoniano, a relação de Floripes com Ferrabrás supõe um incesto não realizado, no que radica a repulsa de Floripes ao amor de Ferrabrás em La puente de Mantibe31.


RECEPÇÃO, EVANGELIZAÇÃO E VIOLÊNCIA


Chegado a esse ponto, é interressante abordarmos essa tradição, não na perspectiva da tradição literária medieval e posterior, mas na perspectiva da recepção dos povos indígenas colonizados. Em primeiro lugar, não é casual a estratégia de identificar os nativos com os musulmanos ou sarracenos, logo a Floripes e Ferrabrás, pois isso levaria a mitigar a questão da alteridade32, já que os colonizadores se sentiriam parte de uma história e protagonistas dela, ao mesmo tempo que sua participação nas representações poderia supor uma redenção de seu passado incivilizado e sua integração, mediante a conversão, no mundo dos colonizadores, seja por força ou convencimento. Nesse capítulo, daremos mais destaque ao âmbito religioso, porque a colonização goza de um aspecto emocional em relação com a crença, e a adaptação dos cultos dessas populações à nova crença (imposta ou aceita). É notório que a introdução dessas representações são fruto de uma estratégia evangelizadora que transforma uma mensagem épico-heroica que existia num imaginário arcaico - porém monárquico, de uma sociedade que deseja e requer um regime de proteção feudal, equilíbrio e estabilidade - num confronto que legitima o novo indivíduo, o indígena, numa nova ordem social pelos elementos: a lealdade a uma causa justa e divina, e a lealdade por amor. Não obstante, essas representações evoluiram e de algum modo assimilaram elementos de substrato anterior à colonização. Sabemos que houve um sincretismo que incentivou os próprios missionários - sobretudo os franciscanos - mormente na substituição de deuses pré-hispânicos por santos cristãos, mas também em questões de localização dos lugares de culto escolhidos pelos nativos autóctones com o beneplácio - novamente - dos franciscanos. O mesmo acontece com a cenografia e seus elementos, mas também no conteúdo dramático da representação33.

Mas, voltando ao âmbito da recepção, devemos preguntar-nos o que esses povos aportaram à representação dos colonizadores e se houve um processo de transformação da representação (indigenization). Contamos com aspectos pontuais que mereceriam um estudo pormenorizado e muito mais extenso do que essas linhas, não obstante, não podemos deixar de mencionar um aspecto curioso de uma das representações que tem como protagonista o apóstolo São Tiago em Zacatecas, no México, cujos protagonistas são os "tastoanes" (índios selvagens, espécie de demônios e contrários à fé cristã) e que, no início da representação, realizam uma medição e repartição da terra.34

A incorporação da agrimensura à representação é uma inovação e que, com toda certeza, não é atribuída aos missionários colonizadores. Os protagonistas da representação aproveitaram a possibilidade de introduzir ali um elemento contestador e de reivindicação, e assim se apropriaram não só de uma argumentação dramática, mas da capacidade de intervenção ideológica da representação. A partir desse protagonismo que adquirem os autóctones - ou que lhes é concedido - eles se convertem em uma classe de "escolhidos", já que em algumas comunidades são os próprios indivíduos autóctones os encarregados de defender a fé cristã frente a outros povos pagãos.35

A lenda carolíngia contém elementos de traição e violência, já desde os mesmos textos medievais, dos que é paradigmática a ação de Ganelão na Chanson de Roland. A lenda de Floripes e Ferrabrás não é alheia a essa dimensão, seja pela traição de ambos os irmãos a seu credo religioso, mas também a seu pai e a sua comunidade. No caso de Ferrabrás, é por nobreza e, no caso de Floripes, por amor. Apesar de tudo, é necessário analizar a traição desde a dimensão da recepção da lenda e sua instrumentalização. Não haveria de escapar, nem aos conquistadores nem aos conquistados, a dupla traição que encontramos na Historia de Carlomagno y de los doce pares de Francia: por um lado a traição de Ganelão a Carlos Magno e aos doze Pares, que terminaria com a morte destes junto com a derrota de Roncesvalles, e por outra a de Floripes e Ferrabrás a Balão e a seu povo, e que termina também com a morte do almirante e emir Balão. Percebemos uma dupla perspectiva no modo de servir-se dessas traições obedecendo a uma intenção tanto estratégica como ideológica com clara intensão exemplar, uma vez que o receptor – inevitavelmente – vai exercer uma comparação entre os protagonistas, suas ações, suas situações, e – seguramente – nas consequências de ambas traições. Já desde um princípio da lenda, a conduta de Ferrabrás e de Floripes está tocada pelo exemplar e está plenamente justificada por seu objetivo heroico e ético por parte de Ferrabrás, e amoroso por parte de Floripes. Enquanto que a ação de Ganelão só se explica por um interesse pessoal baseado na covardia e na vingança, em Ferrabrás se idealiza em um heroísmo fundamentado unicamente pela alteração ao “justo”, prescindindo do passado do herói. Desde uma perspectiva católica, a atitude e comportamento de Ferrabrás supõe a possibilidade de redimir um passado, seja de violência ou de crenças pagãs. A Ganelão, que pertence ao âmbito dos nobres cristãos, seu comportamento o condena a ser marginalizado no âmbito religioso, mas também no social da nobreza e, por tanto, do círculo heroico dos nobres de Carlos Magno. A traição de Ganelão equilibra a de Ferrabrás, que trai sua família por uma causa justa, enquanto que a de Ganelão é imperdoável por atuar contra o monarca cristão36. No âmbito feminino, o tema da traição por causa do amor é um tema recorrente nas novelas de cavalaria37. Esse ambiente de traição submerge toda a ação numa atmosfera de violência psicológica, não obstante, as representações desses autos contém uma importante carga de violência física nos enfrentamentos, e essa particularidade não é exclusiva do continente americano, já que em Neves, os combates entre mouros e cristãos – sem chegar ao sangue – são de grande ímpeto, virulência e acaloramento. A partir da experiência brasileira, tanto em literatura de cordel com nas representações teatrais de tema carolíngio, Jerusa Pires Ferreira propõe a presença da violência nessas representações – sem chegar a ser cruenta – como a adaptação de uma idiossincrasia autóctone, uma característica mais a acrescentar à apropriação dramática (ideológica) por parte das populações colonizadas:


Sua significação (o combate) vai para além da luta, do jogo em sua descrição, contenda de antagonismos permanentes em que mal/bem, castigo/galardão são entidades e resultados, em que derrota/vitória, perdição/salvação levam fiéis ou infiéis a atuarem dentro de concepções e delimitações rigidamente antagônicas, e às vezes maniquéias38.


A representação do Auto de Floripes e seus elementos de luta e combate supõe uma renovação social no sentido de recuperar a violência controlada que comporta – ao mesmo tempo – uma recordação de uma potência latente e a capacidade de contenção ante uma sociedade que obedece à legitimação do poder mediante a violência.39

Esse universo "a sua medida", que nos indica Araceli Campos Moreno, não é outro senão o do colonizado que enxerta sua idiossincrasia e sua identidade na "obra" do colonizador e se apropria dela, a transforma e dá a ela um novo caráter ideológico, contrário à mensagem original dos colonizadores.


RETROTOPIA E INTERVANÇÃO IDEOLÓGICA E ESTÉTICA


Uma vez que se concebe a natureza (pretensamente) histórica da matéria carolíngia, tanto em sua concepção como em sua recepção, a matéria literária adquire uma nova virtude de grande transcendência coletiva que contém uma dimensão identitária, e por tanto de coesão social. O processo de retrotopia, siguindo o filósofo Zygmunt Bauman, não é só um processo de engenharia social, mas se converte em um processo de intervenções estéticas periódicas, com o objetivo de perpetuar ideológicamente um objetivo mediante a representação artística, e influenciar tanto os seus protagonistas/atores como os receptores de sua comunidade pela vertente emocional. A matéria cavaleiresca na lenda de Floripes e Ferrabrás conforma um universo histórico-lendário a partir de estruturas narrativas performáticas, no caso do teatro "auto", ou de estruturas orais/líricas, no caso da poesia narrativa e dos romances. Isso comporta estratégias, tanto discursivas como de representação que - como comprovamos - se transformam e nem sempre obedecem à estratégia original que promoveu os citados repertórios. Essas estratégias, mesmo aceitando que se conformaram a partir de textos escritos, foram legitimadas mediante um discurso oral projetado como "matéria histórica" e, como tal, foi assumida por protagonistas.

Desde uma perspectiva acadêmica corremos o risco de encriptar ou patrimonializar uma prática viva, uma representação que está viva. Consideramos o Auto de Floripes como um patrimônio que situa essa lenda num marco ideológico, moral, político e - por último - cultural, que foi produzido por um consenso de uma comunidade. Hoje, o que nos interessa - desde uma perspectiva acadêmica - é sua singularidade, muito embora essa perspectiva dificilmente seria compreendida pelos protagonistas dessas representações, pois, para eles forma parte do seu cotidiano e de sua identidade. A visão externa - a nossa visão - e a perspectiva de singularidade nos proporcionam um modelo de vinculação e compromisso entre seus protagonistas que - segundo nossa opinião - garantem sua salvaguarda e coesionam a comunidade com base em princípios éticos e morais que se legitimam por sua existência na tradição popular. Do mesmo modo e ao mesmo tempo, conferem à comunidade uma revitalização tanto de sua própria cultura e identidade, como uma promoção social de seus componentes frente a comunidades ou indivíduos sem esse patrimônio. Em conclusão, o que essas manifestações realmente geram é um sentimento identitário. Seria perigosa ou nefasta a tentativa de etiquetar essas manifestações em seu conjunto como "globais", já que sua descontextualização com o meio e com os indivíduos herdeiros de seu meio e de sua tradição imediata comportaria uma intenção arqueológica que só o que fixaria é um momento da tradição e não a tradição mesma, pois esses espetáculos vivem em uma constante evolução estética pela manutenção de seus valores, os quais, se se mantêm, o revestimento estético - evoluído ou não - não afeta nem a sua natureza nem a seus objetivos. As tentativas de patrimonialização comportam uma prática protetora que fossiliza negativamente esses espetáculos e põem em perigo sua existência:


[S]ua autenticidade reside precisamente no caráter contextual e efêmero de sua performance - assim como são as artes 'alográficas'40


Nas representações contemporâneas, Floripes, Ferrabrás, Carlos Magno e todos seus avatares têm sua origem numa estratégia ideológica de evangelização com o objetivo da conversão, o respeito e o reconhecimento dos colonizadores como figuras necessárias de uma histórica atávica. Não obstante, sua assimilação pagou o preço do hibridismo, e o patrimônio e a propiedade da representação já não pertencem nem a missionários nem a colonizadores, pertencem a seus atuais protagonistas.

[Recebido: 30 mar. 2020 – Aceito: 30 mar. 2020]





EL CORPUS CHRSTI EN EL RITUAL EUCARÍSTICO

Y EN LAS CANTGAS DE SANTA MARIA

CORPUS CHRISTI IN THE EUCHARISTIC RITUAL

AND IN THE CANTIGAS DE SANTA MARIA

Maria Incoronata Colantuono41

RESUMEN: La percepción del Corpus Christi en el ritual eucarístico y en las Cantigas marianas, atribuidas al Rey Alfonso X el Sabio, pone de manifiesto la presencia de mecanismos compositivos performativos que actúan sobre el afectus de los oyentes. Asimismo, la evaluación de la relación entre escritura y oralidad de la obra alfonsí abre perspectivas interesantes en el campo, no tan sólo de la transmisión del repertorio, sino también de la composición y de sus estrategias. El análisis de cuatro Cantigas deja emerger diferentes estrategias poéticas y musicales para evocar la sacralidad del Corpus Christi. El potencial performativo se aprecia en la presencia de paralelismos y convergencias melódicas, métricas y de rima, consecuencias directas de la intencionalidad de crear una red de correspondencias significativas, sea desde la eficacia mnemotécnica como desde la voluntad de añadir matices semánticos que, en este caso, miran a la reafirmación de la verdadera presencia de Cristo en la Hostia consagrada.

Palabras clave: Corpus Christi, Ritual eucarístico, Cantigas de Santa Maria,, performatividad, hechicería.

ABSTRACT: The perception of Corpus Christi in the Eucharistic ritual and in the Marian Cantigas, attributed to King Alfonso X the Wise, reveals the presence of performative composition mechanisms acting on the afectus of the listeners. The evaluation of the relationship between writing and orality of Alfonsian work opens interesting perspectives in the composition field, as well as the transmission of repertoire, but also of the composition and its strategies. The analysis of four Cantigas reveals different poetic and musical strategies to evoke the sacredness of Corpus Christi. The performative potential can be seen in the presence of melodic, metric and rhymes system parallels and convergences, direct consequences of the intentionality of creating a network of significant correspondences, both for the mnemonic efficiency and for desire to add semantic nuances that, in this case, look at the reaffirmation of the true presence of Christ in the Consecrated Host.

Keywords: Corpus Christi, Eucharistic ritual, Cantigas de Santa Maria, performance, sorcery.



Premisa

El ritual litúrgico representa un espacio donde las palabras y las acciones no miran sólo a la descripción de un hecho, sino que tienen finalidad “performativa” en el sentido que aportan cambios a la realidad dentro la cual se sitúan y en los oyentes que reciben el mensaje.

La palabra “performance” referida en la cultura post-moderna a las acciones teatrales que con intencionalidad política se plasman dentro un espacio público, adquiere para los rituales litúrgicos un significado aún más profundo.42 Si en suya acepción más común en inglés y francés se refiere a una obra teatral, su aplicación a las dinámicas de un acto litúrgico es aún más eficaz. La eficacia performativa en el ritual litúrgico reside en la centralidad del cuerpo, presencia que conlleva la actuación de los sentidos: hablar, escuchar, ver, oler y saborear. De hecho, es a través de la percepción sensitiva que logramos emocionarnos y emocionar, interactuando con la realidad divina en su forma humana y por medio de la evocación de las que fueron las acciones más sencillas y humiles de Cristo nos acercamos a la dimensión del más allá. Así pues, en cada ritual y en cada una de sus evocaciones, el Cuerpo divino representa una ocasión para la puesta en acto de un hecho performativo que implica la intervención del celebrante/lector al mismo tiempo que la del oyente; en ambos casos el texto no mira a ser entendido, sino que mira a ser percibido a través de la experiencia directa. El proceso de identificación del oyente con la realidad humana de Cristo refuerza la relación con su realidad divina, permitiendo reconocer la dimensión transcendental en la dimensión material y, a través de su proyección en una esfera superior, aprender a transcenderla.

En este caso, tenemos por un lado el ritual eucarístico y por el otro su evocación en los poemas marianos de Alfonso X el Sabio (1221-1284). Así pues, la evocación del Corpus Christi en un contexto poético que tiene como fin la narración de hechos milagrosos representa aquí un ejemplo privilegiado donde confluyen traces de ritualidad, memoria y nuevos elementos debidos a los cambios de la percepción colectiva. La riquísima presencia de fuentes que constituyen la orquestación literaria y musical de las Cantigas de Santa Maria ofrece numerosas claves para una lectura performativa. Entre las múltiples fuentes que Alfonso X y su equipo utilizaron se pueden hallar ampliaciones, modificaciones melódicas, además de adaptaciones de textos orales y escritos y, en este caso, de rituales de referencia. La performatividad en la obra alfonsí actúa de manera dialéctica y dinámica, incluyendo la considerable herencia de la riquísima tradición espiritual de origen cisterciense y franciscana arraigada en Europa en el siglo XIII. Este proceso de adaptación y re-presentación de hechos e imágenes simbólicas ya conocidas requiere la participación activa del oyente, o sea la capacitad imaginativa de quien percibe, en este caso, la imago de Cristo en su fisicidad. La meditación alrededor del Corpus Christi se centra en la imago de la encarnación de Cristo, de su pasión y resurrección, haciendo que la visión del Cuerpo divino entre en sintonía con el afectus a través del cual se alimenta la devoción.43 De hecho el Cuerpo divino es una imagen que se percibe como presencia sensorial en su fisicidad y por esta razón, tanto en el ámbito ritual como en el poético-narrativo que se refiere al Corpus Christi, se debe mirar desde la perspectiva performativa, porque tanto en uno como en el otro, la presencia del cuerpo implica su descripción y también su experiencia.44 La acción del afectus que nos permite recordar y al mismo tiempo re-crear la vida y misión de Cristo en el ritual eucarístico, también sigue actuando en su re-nominación en las Cantigas, a través de la evocación de su función litúrgica, permitiendo al oyente rememorar su sentido originario.



Análisis performativo de la consagración eucarística



El principio fundador del cristianismo, a diferencia de las otras religiones monoteístas, es representado por el hecho de creer en la Encarnación del Hijo de Dios y en la fe en la Trinidad, cuyo dogma fue promulgado en respuesta al arrianismo en el siglo IV (Concilio de Nicea del año 325). De hecho, el mito cristiano refiere el nacimiento de un hombre, su vida y su sacrificio, anunciado en su última Cena, durante la cual toma el pan y el vino como símbolos de su cuerpo y de su sangre: “Este es mi cuerpo…tomad y comed…”.45 De esta manera el sacrificio cristiano es un ritual que se revive sobre el altar, donde el cuerpo y la sangre ya no pertenecen a una víctima animal o humana, sino que re-crean la presencia real de Dios en forma simbólica a través de la acción de manducación del sacerdote. El dogma eucarístico se confirma solo durante el siglo XII y por eso su ritual padece cambios hasta el siglo XIII.46 La Encarnación es el fulcro del cristianismo y todos sus rituales se basan en la presencia del Cuerpo de Cristo, así pues, en todas sus ceremonias el cuerpo y sus sentidos están representados.

La atribución de sacralidad de los cuerpos hace que sean lugares privilegiados de la manifestación del sobrenatural: así es como cuentan los relatos alfonsíes de milagros, incluyendo los prodigios eucarísticos consecuentes a hechos de profanación. Des del siglo XIII la locución Corpus Christi o Corpus verum se refiere exclusivamente a la Hostia consagrada y su interés crece a medida que se difunde la defensa de la humanidad de Dios.

De la misma manera que los otros ritos religiosos, el cristiano también hace referencia a un mito fundador que re-vive en cada acción ritual. Una re-creación que se realiza con la inmersión simbólica en los tiempos primordiales, allá donde nació el mito fundador (anamnesis ritual); en el caso específico la Eucaristía es la re-creación de la ofrenda del sacrificio. La anamnesis ritual actúa, a través de sus palabras y gestos, una regeneración de la asamblea que recibe un hecho del pasado como presente. La re-creación del acontecimiento de la muerte y resurrección de Cristo representa el mito fundador que permite a sus fieles alcanzar la eternidad. En su estructuración, el ritual eucarístico, que deriva directamente del mito, se constituye de una serie de elementos variables, como vienen a ser los gestos, los movimientos, los objectos, la distribución del espacio y del tiempo y las formas accesorias del lenguaje (canto, cantilación y recitación). Por otro lado, la acción ritual se estructura sobre pilares fundantes que no se pueden cambiar porque son imprescindibles para la “performatividad” de la acción ritual: las palabras, o sea las fórmulas sacramentales que se pueden glosar, pero nunca cambiar; el papel del celebrante que actúa in nomine Christi; y, en fin, la estructura de la celebración que sigue unas pautas ya consolidadas y que representan puntos fijos en la transmisión del ritual.

La performatividad litúrgica se fundamenta sobre estos pilares y actúa o “hace cosas”, tal como dice John Austin, porque produce cam­bios en sus destinatarios. ¿La eficacia en el ritual la posee la palabra o el gesto litúrgico? La liturgia cristiana en general y la Eucarística en particular representa el lugar privilegiado dónde confluyen palabras y gestos rituales con una eficacia que actúa produciendo cambios en su entorno. La fuerza del ritual en el determinar y modificar la vida misma de sus destinatarios determina su peculiaridad, diferenciándose así de la escena teatral. Una obra teatral es una unión de palabras y gestos que no poseen la eficacia de determinar cambios en el entorno y en sus destinatarios, pueden quedarse en la memoria, pero no pueden modificar la realidad. El ritual litúrgico, en cambio, se constituye de palabras y gestos eficaces, en el sentido que actúan llegando a modificar la vida de sus destinatarios. La Eucaristía se compone de cuatro elementos: los ministros, los objectos, las palabras y los actos. Estos últimos se parten en tres categorías: los movimientos del cuerpo, como por ejemplo los desplazamientos en el templo; los gestos que se realizan con una parte del cuerpo, con las manos, los ojos o la cabeza; finalmente las acciones que son gestos codificados y destinados a un acto sacramental, como la transustanciación del pan y del vino en cuerpo y sangre de Cristo. Desde aquí la diferencia, ya presente en los libros litúrgicos del XIII, entre las palabras que se tienen que decir (dicenda) y los gestos que se tienen que hacer (agenda) durante un ritual.

El sacramento de la Eucaristía, acto simbólico por antonomasia porque celebra el sacrificio de la muerte y resurrección de Cristo, nos brinda la oportunidad de poder destacar la eficacia performativa en su conjunto de palabras y gestos. En los escritos de los teólogos de los siglos XII y XIII, como Petrus Cantor, Tomás de Chobham y Roberto de Courçon se examinan con profusión de detalles los requisitos básicos para la preparación de la Eucaristía: la integridad de la materia (harina de trigo y vino sin mezclar con agua); el papel del celebrante (solo puede ser quién ha sido consagrado sacerdote); la intencionalidad y pronunciación correcta de las palabras sacramentales. Según los escritos teológicos las palabras y su entonación representan los requisitos principales e indispensables del ritual eucarístico. Así pues, escribe Tomás de Chobham: “...porque en estas palabras consiste toda la sustancia de la consagración del pan y de la sangre de Cristo. Todas las otras cosas se refieren a la solemnidad, pero no a la sustancia del sacramento”.47 Se deduce, entonces, que el gesto no es substancial para el sacramento eucarístico y que es la palabra la que posee la eficacia de la performatividad. O sea, el gesto, igual que la palabra, “expresa” la realidad sagrada, pero además la palabra “significa”, representando la esencia misma del sacramento. El gesto de partir el pan y de trazar la señal de la cruz es “hacer memoria” de un acontecimiento del pasado poniéndolo delante de los ojos de los fieles, sin embargo, no es en los gestos que reside la eficacia de la performatividad.48

El carácter performativo del ritual radica en su especificidad de no ser acto o acción con finalidad racional, en el sentido que no se rige sobre la relación de causa-efecto, porque su finalidad no se coordina con sus medios de transmisión. O sea, el ritual no es instrumental al conseguimiento de una finalidad que se pueda reconocer en la misma trayectoria del medio que se utiliza. En este sentido la liturgia y la magia, en distintos campos de aplicaciones, comparten el elemento simbólico.

El ritual eucarístico es una acción que se plasma en un contexto donde confluyen evocación, ideación e imaginación poética, además que creencia y que se sirve de un lenguaje propio de la liturgia que, como todos lenguajes rituales y míticos, pertenece al área de la antropología de la memoria. El lenguaje ritual, vehiculando a representaciones, determina una metamorfosis de la persona que actúa y una transformación de la asamblea que, acogiendo la Palabra, se muta en yo-memoria, un grado que va más allá de la dimensión personal de cada uno: aquí reside la apoteosis de la performatividad. La voz del oficiante se modifica (cantilación, salmodia, canto), cambia de registro, utiliza entonaciones y gestos que marcan cada momento ritual, siguiendo la guía de una memoria compartida. Además, en el contexto litúrgico, refiriéndose a la dimensión sobrenatural, se cumple un nivel más profundo de transformación del acto comunicativo que llega hasta la paradoja. Aquí el enunciador recrea una situación comunicativa donde otro enunciador habla y actúa en un contexto trasladado en el tiempo y en el espacio: situación que nunca se encuentra en la vida diaria.49

Para entender los mecanismos comunicativos de la acción ritual tenemos que referirnos a la más reciente epistemología que se aleja de la teoría especulativa y de la racionalidad conceptual, pasando por la percepción del cuerpo. Así pues, la experiencia directa de nuestro cuerpo no es tan solo un caso particular de conocimiento, sino que nos proporciona una manera de acceder al mundo que se reconoce como original y tal vez originaria. Siguiendo esta línea epistemológica ya comprendemos como el cuerpo tiene su propio mundo y lo entiende sin pasar a través de representaciones, sin subordinarse a una función simbólica.50

Cuando nos acercamos a la dimensión ritual de la acción litúrgica y a sus mecanismos de transmisión y recepción, la distinción cartesiana entre alma y cuerpo, entre experiencia interior y mundo externo, nos engaña y confunde. ¿Cómo y cuál es el órgano que nos pone en contacto con lo sacro? Hablamos de acción del corazón, de alma, de sentimiento y tal vez de presentimiento para expresar una manera distinta de percibir la dimensión sobrenatural. Una forma de percepción que pasa por el cuerpo en forma de emoción, envolviendo la esfera del conocimiento y haciendo de anillo de conjunción entre dimensión cognitiva y dimensión biológica. La referencia, ya bíblica, al corazón correspondería a la dimensión emotiva del proceso de percepción, que es una acción sinestésica y perteneciente al cuerpo. A través de los sentidos se desvela todo el potencial del cuerpo, que se abre a la comunión con un cuerpo más grande: cuerpo cósmico, cuerpo ancestral, cuerpo social o cuerpo cultural.51 Este potencial permite que nuestro propio cuerpo pueda ser cuerpo espiritual, habitado de Dios, así como reza la plegaria de bendición Deus castorum corporum benignus habitator52, es decir: un cuerpo divino donde la lengua, las manos y los ojos se hacen órganos sacramentales. De esta manera, los Sacramentos, a través del cuerpo, no solo simbolizan la presencia de Dios, sino que hacen real esta presencia. La distorsión epistemológica, que tal vez impide acercarnos a la realidad del universo ritual, es consecuencia de la homologación positivista basada sobre la identificación de la verdad con el hecho empírico. Esta línea cognitiva, reduciendo la realidad a un espejo de hechos, nos impide entender la ritualidad que se funda sobre la simbolización como fin y como medio, no tan solo como medio.53 Así pues, la primera forma de percepción de la realidad es la proyección de los sentimientos en los objetos externos, que es también el primer nivel de simbolismo. Si creemos que los sentimientos, las emociones y los deseos no son formas de simbolización del pensamiento, sino síntomas de la vida interior como las lágrimas, la risa y la voz, pues tendríamos que colocar la primera forma de simbolización en el ámbito de las percepciones que salen desde el cuerpo.

En estos tiempos de incomprensión hacia el lenguaje del cuerpo, la liturgia nos recuerda que el rito es ante todo expresión de la corporeidad. El rito piensa a través del cuerpo y comparte con el cuerpo el carácter pre-pragmático y ultra-significante. Pre-pragmático en el sentido que el cuerpo, como originaria abertura sobre el mundo, viene antes de cualquier acción y ultra-significante porqué percibe el mundo antes y más allá del pensamiento. El rito es la continuación del evento del mundo, un eco recibido y re-propuesto desde el hombre a través de su cuerpo, una forma de reduplicación del macrocosmo en el microcosmo.54 Vivir ritualmente es decodificar el mundo a través de la propia percepción y no tan solo a través del pensamiento racional. La fuerza del rito se fundamenta sobre su inmediatez que pasa por la capacidad perceptiva del cuerpo. Accende lumen sensibus canta el himno del Espíritu Santo Veni creator Spititus sin dejar duda alguna de la implicación de los sentidos en la experiencia perceptiva litúrgica. En este sentido, el Espíritu Santo enciende, nunca apaga los sentidos espirituales que no son alternativos a los materiales, sino que son su afinación.

Performatividad y estrategias de composición en las Cantigas de Santa Maria

¿El potencial performativo ya patrimonio del ritual eucarístico cómo se transpone y se refleja en el corpus poético mariano alfonsí? La colección de Cantigas en honor a la Virgen, redactada bajo la guía de Alfonso X el Sabio (1221-1284), es un repertorio poético-musical construido con el auxilio de estrategias de composición mnemotécnicas y destinadas al aprendizaje mnemónico. La intención del Rey Sabio, responsable del proyecto y revisor de la escritura (fazedor), era recoger y ultrapasar el repertorio ya común a otras colecciones de milagros, en latín y vulgar, incluyendo episodios del ámbito histórico contemporáneo y personal. De ahí la dificultad de conciliar los rasgos de una estructura compositiva basada en la memoria con los signos gráficos que intentan fijar sobre el pergamino una realidad que se escapa, ya que es una proyección imperfecta del acto de su profération. Es decir que la vocalidad del repertorio alfonsí se reconstruye a partir de la escritura, re-presentación de la melodía (vox mortua) y, a través de la profération se hace vox viva.55 En este sentido la eficacia performativa se potencia a través de la presencia y combinación de tópicos narrativos, melódicos, rituales y semánticos que combinándose pueden alcanzar nuevas y más sutiles niveles de significado. La evocación del ritual eucarístico en la obra alfonsí conlleva elementos lexicales, melódicos e imágenes poéticas que miran al potenciamiento de su carga performativa.


De hecho, la presencia de incisos y ecos de repertorios de procedencia litúrgica y paralitúrgica en las Cantigas de Santa Maria mira a la evocación y re-presentación de hechos milagrosos tal vez ya presentes a la memoria de los oyentes. La elección de los incisos melódicos y del léxico utilizado tiene a menudo relación directa con los procesos mnemónicos que actúan, a diferencia de la reconstrucción histórica que es relato anestésico del pasado, a partir de la emoción y de la capacitad subjetiva de la maravilla, vehículo de obertura perceptiva e interpretativa. La percepción sensorial es una herramienta mnemotécnica de gran eficacia porque procede directamente del mismo cuerpo, así como la voz que es el vehículo de la expresión directa de la corporeidad. En este sentido la presencia de la voz en las Cantigas determina momentos narrativos donde la dimensión escrita se entrecruza con la oralidad.56 Se tracta de una forma de “oralidad secundaria” que se restructura desde la escriptura y en un ámbito literario basado en la cultura de la voz, en su uso y, sobre todo, en su valor.57

El gran valor de los textos medievales, sean los narrativos y/o liricos como los textos líricos marianos, consiste en su formación y transmisión oral: factor, este último, que fortalece y amplifica la impresión y la carga emotiva de la historia que se cuenta. Es cierto que en la producción poético-musical medieval se reconoce la preeminencia del factor EQ (emotional quotation) sobre el factor IQ (intellectual quotation) 58: asunto que nos revela el potencial expresivo y extensión descriptiva de las obras medievales. Podríamos argumentar que un análisis crítico de los textos líricos de milagros nos restituye un universo de voces, un ensamblaje de oralidades múltiples donde se pueden recoger imágenes, miedos, ideologías, picardías que solo en mínima parte se han podido fijar en el pergamino. Lo esencial de las composiciones marianas no se reconoce en su forma escrita, en el análisis de su gramática o en la estructura de su sintaxis, sino que va más allá del signo que lleva un significado fluctuante que va relacionado con el receptor. Los signos escritos son meramente símbolos mutantes en un proceso continuo de decodificación que implica alternancia entre dentro y fuera, interno y externo, trovador, juglar y público59.

La dimensión sustancialmente vocal de las composiciones liricas marianas, como textos poéticos-narrativos, deja deducir la presencia de elementos performativos. La performatividad se deduce por las mismas modalidades de transmisión del mensaje, que se ramifica en varios niveles, desde los verbales hasta los no verbales, desde la entonación hasta la gestualidad, medio expresivo ya incluso en la dimensión vocal de la monodia medieval. Si además extendemos el concepto de “performance” hacia el macro sistema semiótico que circunscribe cualquier comunicación verbal, tenemos varios elementos para reconocer elementos de eficacia performativa en el repertorio mariano medieval60.

La performatividad del repertorio de milagros marianos no se explicita en la dialéctica ínsita en el discurso directo, sino más bien en la narración llevada por una voz fuori campo. Una voz evocadora de otras voces procedentes de lejos, que entran estableciendo un dialogo con un pasado que vuelve a revivir en el presente. Una estructuración tan peculiar que nos permite formular la hipótesis de un nivel extra diegético, que se desarrolla fuera de la narración, donde las voces, dejando la acción en una suspensión atemporal, trasladan los hechos milagrosos en una dimensión transcendental, que se proyecta más allá de la humana experiencia. Ya en estudios anteriores hube la ocasión de definir los principios teóricos y las principales cuestiones sobre la centralidad de la oralidad en la valoración de las estrategias de composición del repertorio mariano medieval gallego-portugués61. Estos mismos principios aplicados a la lírica de diferentes áreas lingüísticas nos permiten colocar los repertorios en su correcto contexto literario. Un contexto, que más allá de la pluralidad lingüística, se fundamenta sobre una misma concepción literaria que hace referencia a las mismas tradiciones literarias y estéticas.

El material de la narración de estas colecciones procede de varios repertorios de historias milagrosas, cuentos de extraordinaria fuerza descriptiva y evocativa. Cada poema narra de lugares reales, de tiempos cargados de memoria y tradiciones: historias de milagros, de hombres y de hechos que han pasado y pasan en una dimensión atemporal. Aquí la narración es ya interpretación y, al mismo tiempo tradición interpretativa vehiculada por la participación emotiva a través de citaciones, conscientes o involuntarias, fragmentos melódicos de otros universos sonoros que nos restituyen un mundo lleno de memorias. De esta manera el repertorio mariano alfonsí ya ha sido especialmente objeto de análisis e individualización de estructuras melódicas procedentes del repertorio litúrgico y paralitúrgico que permiten la identificación de significativas razones intertextuales62.

El proceso de composición empezaba con la selección del milagro y la elección de los motivos melódicos: opción que sólo sucesivamente determinaba la estructuración métrica. La colocación de las palabras era una tarea posterior, consistente en la selección y adaptación del texto a los ángulos y a las sinuosidades de un sendero ya listo y determinado por la elección previa de los incisos melódicos. El ajuste de los textos a segmentos melódicos preexistentes requería una lengua fonéticamente versátil, con más palabras agudas respecto a las esdrújulas y diptongos que se adecuaran con facilidad a un sistema musical ya predispuesto. De hecho, la elección del gallego-portugués y de la lengua d’oc como idiomas del repertorio lírico medieval podría tener motivaciones de orden técnico-compositivo, siendo ambas lenguas especialmente rítmicas y de fácil adaptación a motivos musicales preexistentes. Suponer que la creación del texto poético sea anterior a la elección de los movimientos melódicos, ha sido un error vinculado a la idea de composición como acto de escritura. Si prescindiéramos de la idea preconfeccionada de “poesía con música”, entraríamos en la dimensión de la poesía planificada en función de una melodía definida a priori, en cuanto vehículo de transmisión. En lugar de textos definidos métricamente los textos líricos marianos serian el resultado de la aplicación de mecanismos que, valiéndose del material melódico preexistente, elaboraron una urdimbre sobre la cual se construyó sucesivamente la narración textual. En conclusión, tenemos evidencias para suponer que los sistemas de composición del repertorio de milagros marianos empezaran por la elección de patrones melódicos, en forma de segmentos (distinctiones) o en forma de piezas preexistentes (contrafacta), sobre los cuales se cantaba el milagro. La elección de las palabras y su disposición en versos dependía de las exigencias de la melodía, cuya estructura era mutable.

La transmisión oral de los milagros determinaba el fenómeno de la contracción cronológica que favorecía la permanencia en la memoria de los hechos de manera más natural que la sucesión linear. La narración se funda sobre una organización e interpretación de la memoria que pasaba por mapas cognitivos dibujados por la oralidad y su combinación con la escritura. Mapas que hoy difícilmente entendemos porque están marcados por los estados emotivos y las valoraciones morales que acompañaban los acontecimientos narrados. La música tiene en esta literatura la función de reactivar recuerdos, así como en el repertorio litúrgico despierta en el oyente referencias para reconocer celebraciones específicas y momentos rituales.

El análisis de la relación entre memoria y música, binomio inextricablemente presente en el sistema de composición de la monodia medieval, tiene que considerarse el hilo conductor del proceso de composición63. En el caso de los sistemas de composición del repertorio mariano, la melodía tiene la función de re-evocar, ampliando la red de significados que emergen desde una primera percepción del texto. La conditio sine qua non de este proceso de decodifica de los significados es la facultad del publico destinatario en el reconocer los referentes intertextuales. La música activa recuerdos interactuando entre los tres tipos de memoria: la episódica, que permite el recupero de acontecimientos específicos; la semántica, que activa los mecanismos conscientes de la facultad de asociación; la procesual, que actúa en los procesos de fijación a largo plazo64. La práctica del contrafactum, basada en el préstamo y reutilización del material musical preexistente, constituye un elocuente ejemplo de intermediación entre acción de la memoria e identificación de su referente. La individuación de un motivo musical determina la activación de la memoria semántica, que requiere un referente cultural y una capacidad de decodifica por parte del público. En nuestro repertorio tenemos que reconocer la función doble de la melodía, que en la elección de sus elementos constituyentes y su disposición contribuye a la eficacia mnemotécnica y añade un plus de sentido a la narración.

En fin, la melodía elegida en el repertorio mariano de milagros actúa ampliando, aclarando y comentando significados tal vez sólo sugeridos por las palabras. En esta perspectiva, la música se hace portavoz de aquel sabor de proustiana memoria, en una dimensión donde los antiguos sonidos vuelven en su eterno perdurar para recordar, ultrapasando nuestra humana condición, y así renovando los efectos prodigiosos del milagro in eternum65.



MILAGROS EUCARÍSTICOS EN LAS CANTIGAS DE SANTA MARIA

La presencia del milagro eucarístico en los poemas alfonsíes (CSM 104, 128, 149 y 208) se enlaza con la corriente teológica y apologética promovida por las negaciones heréticas de la transustanciación. Corriente que se iba haciendo camino desde el siglo XI con Berenguer de Tours (1088) hasta el siglo XIII con Rodulfo de Ardens (1216) y que caracterizaba especialmente las herejías cataras y albigenses. Una situación peligrosa para la Iglesia que requirió la convocación de un Concilio (Letrán 1215) y la intervención de reconocidos teólogos como Cesareo de Heisterbach que dedicó unos setenta relatos sobre el tema eucarístico (Dialogus, dist. IX).66 Cuatro entre las Cantigas marianas narran milagros eucarísticos: historias que cuentan los usos sacrílegos de la Hostia consagrada, que nos revelan un universo donde la creencia religiosa y la hechicería se mezclan.67 El análisis de estas composiciones deja emerger diferentes estrategias poéticas y musicales para evocar y reafirmar la sacralidad del Corpus Christi. El potencial performativo se aprecia en la presencia de paralelismos y convergencias melódicas, métricas y de rima, consecuencias directas de una intencionalidad de crear una red de correspondencias significativas, sea desde la eficacia mnemotécnica como desde la voluntad de añadir matices semánticos que, en este caso, miran a la reafirmación de la verdadera presencia de Cristo en la Hostia consagrada. La CSM 104 Como Santa Maria fez aa moller que qeria fazer amadoiras a seu amigo con el corpo de Jhesu Cristo e que o tragia na touca, que lle correse sangui da cabeça ata que o tirou ende nos cuenta el hurto de una Hostia en una iglesia de Caldes de Rey (Galicia) por parte de una mujer que quería hacer un hechizo para seducir y enamorar a un escudero que había sido su amante.

En la versión de la narración alfonsí se entrelazan temas como la presencia real del Cuerpo de Cristo en la Hostia que determina su potencial milagroso, la creencia supersticiosa del poder de la Hostia para elaborar hechizos, y en fin el castigo de la Madre de Dios que se manifiesta en forma de sangre roja que brota desde la toca (prenda de vestir que cubre la cabeza) de la mujer profanadora. La descripción de como la mujer “sintió y vio” la sangre caliente y roja nos conduce al carácter performativo del texto alfonsí, que mira a promover la participación del oyente a través la solicitación de sus sentidos. Otros elementos performativos se pueden hallar en la estructuración métrica y melódica del poema que se despliega en versos de 15 silabas cantadas con fórmulas melódicas típicas y significativas para la mnemotécnica. Se tracta de las mismas fórmulas en modalidad de protus auténtico que hallamos en la CSM 128, una composición también estructurada en versos de 15 silabas.

<CSM 104> (E2: 104/ To: 96)/ virelai/ Caldas del Rey (Pontevedra)/ 113



R Nunca ja pod' aa Virgen / ome tal pesar fazer,

como quen ao eu fillo, / Deus coida escarnecer.

M E o que fazer coida, / creed' aquesto por mi,

que a quel escarno todo / a de tornar sobre sí.

V E daquest' un gran miragre, / vos direi que ,eu oí

que fezo Santa Maria; /oyde‑mio a lezer:





Otro prodigio eucarístico, consecuencia de otra hechicería, se narra en la CSM 128 Esta é do Corpo de Nostro Sennor, que un vilâo meterá en hûa sa colmêa por aver muito mel e muita cera; e ao catar do mel mostrou‑sse que era Santa Maria con seu Fill' en braço. Se trata de una Cantiga, como las CSM 104, 149 y 208, perteneciente al ciclo de los ejemplos contra las herejías y las creencias supersticiosas alrededor de la transustanciación. Aquí el protagonista es un aldeano que roba una Hostia consagrada y la pone en su colmena, siguiendo el consejo de una vieja hechicera, para lograr más abejas y sacar más miel y cera; así pues, cuando por fin vuelve a comprobar el estado de su colmena se encuentra la Virgen con el Hijo en brazos. Este milagro, narrado ya por Pedro el Venerable (+ 1156) y difundido por Cesareo de Heisterbach en Octo libri miracolorum, aquí se enriquece de la presencia de Santa María, que siempre está al lado de su Hijo. La aparición milagrosa de la Virgen y de su Hijo en la colmena es demostración tangible de la real presencia de Cristo en la Hostia. Un milagro que en la Cantiga se celebra con una procesión a la colmena, después de informar el capellán de la aldea que anuncia el prodigio con un repique de campanas. El final del poema describe la ida procesional a la colmena, refiriendo con minuciosos detalles el intenso olor de lirios, violetas y rosas que sale de la colmena y de cómo se llevan la Madre de Dios en procesión para colocarla encima del altar. La referencia al olor de flores que envuelve la colmena es significativa en una trama textual estructurada sobre bases performativas, porque alimenta nuestros canales de percepción y nos acerca a través de los sentidos a la dimensión trascendental del acontecimiento. En fin, la narración acaba en un marco litúrgico con el canto de las Horas litúrgicas y la celebración de la Misa, con la clara intención de devolver el Corpus Christi a su dimensión sagrada y ritual.



<CSM 128> (E2: 128)/ virelai/ Frandes (Fiande)/ 131



R Tan muit' é con Jesu‑Cristo /Santa Maria juntada,

que u quer que a el achen, / ela con el é achada.

M De tal razon un miragre / vos direi maravilloso,

que mostrou Santa Maria / con seu Fillo grorioso

V a un vilâo que era /d' abellas cobiiçoso,

por aver en mel e cera / que lle non custasse nada.





Esta Cantiga, que nos cuenta un prodigio eucarístico, presenta la misma estructura métrica de la CSM 104, la del hechizo erótico: versos de 15 silabas. Así pues, las fórmulas melódicas en protus auténtico también son las mismas, distribuidas respectando los acentos del texto y según una trama propia que igualmente deja emerger un esqueleto común y unos mismos pilares tonales.



Podemos apreciar la presencia de las mismas tres fórmulas melódicas distribuidas en diferentes puntos de las composiciones que dibujan una trama ya conocida, creando, sobre todo en fase de entonación y cadencia, unos eficaces anclajes para la memoria de sus receptores. La intención era la de reactivar la memoria de un patrimonio melódico compartido que conllevaba un potencial semántico relacionado con la presencia del Corpus Christi, con su uso sacrílego y con la intervención milagrosa de la Virgen.

La CSM 149, Como un preste aleiman dultava do Sagramento [do corpo]de Deus e rogou a Santa Maria que lle mostrasse ende a verdade; e Santa Maria assi o fez porque era de bôa vida, pertenece al grupo que narran milagros eucarísticos y, en este caso, sobre las dudas alrededor de la real presencia del Cuerpo divino en la Hostia consagrada. El protagonista es un capellán alemán escéptico que pide a la Virgen una prueba de la transustanciación. Así pues, la Hostia desaparece y, en su lugar, la Virgen aparece con su Hijo en los brazos, demostrando que la Hostia con la consagración se convierte en “carne pura”.



<CSM 149> (E2: 149)/ virelai/ Alemania/ 146



R Fol é a desmesura

quen dulta que tornada

a Ostia sagrada

non é en carne pura.

M Mas, como cuidar deve / null' ome que non possa

a Ostia ser carne, / pois que Deus quis a nossa

V prender e seer ome / e resurgir da fossa,

por seu poder tod' esto / que [é] sobre natura?







Como las otras Cantigas eucarísticas, la estructura melódica aquí también se construye sobre fórmulas de protus auténtico, algunas estandardizadas como las de cadencia y otras divergentes i extravagantes como las de la mudanza. La palabra más importante, eje central de la composición, Ostia sagrada (CSM 149, refrán) es reiterada en la CSM 128 (v. 65) con un juego de rimas en -ada a través de los adjetivos: juntada, achada, rogada, dentada, avondada, demorada, abraçada, preçada, onrrada, rosada, catada, sagrada, loada (CSM 128).

Otro sacrilegio alrededor de la Hostia se narra en la CSM 208 Como ûu erege de Tolosa meteu o Corpo de Deus na colmêa e deu‑o aas abellas que o comessen. El protagonista de esta Cantiga es un hereje albigense de Tolosa que después de hurtar la Hostia consagrada, escondiéndola en la boca, la pone en una de sus colmenas para que se la coman las abejas y al cabo de días va a controlar lo sucedido. Según la narración del poema alfonsí el interior de la colmena se ha convertido en una capella con un altar central y encima la imagen de la Madre de Dios y su Hijo que desprende un “odor tan saboroso que logo foi convertido” (CSM 128, v. 44). En fin, la vista de la Virgen y el olor crean las condiciones para la conversión del hereje, que corre al obispo para anunciar el prodigio. A partir de entonces esta colmena acabará siendo lugar de destino de procesiones para loar la Virgen (CSM 128). Aquí vuelve la estructuración métrica en versos de 15 silabas (CSM 104 y 128) y vuelven las mismas fórmulas melódicas típicas del protus auténtico (CSM 149).



<CSM 208> (F: 94)/ virelai/ Tolosa (Guipúzcoa)/ 192



R Aquele que ena Virgen / carne por seer veudo

fillou, ja per ren non pode / seer menllur ascondudo.

M Ca assi como dos ceos / deceu e que foi fillar

carne da Virgen mui santa / por sse nos ben amostrar

V de com' era Deus e ome, / esto non é de negar,

ca macar seja o seu Corpo / en qualquer logar metudo





Melódicamente las cuatro composiciones se estructuran a partir de una serie de fórmulas estereotipadas en protus auténtico, pero son la CSM 104 y la CSM 128 las que utilizan de forma periódica los mismos incisos, con pocas variantes. Por otro lado, desde el punto de vista de las rimas son las Cantigas 104 y 208 las que presentan una red de correspondencias, a menudo las mismas palabras, que dejan suponer una estrategia compositiva compartida.68

Convergencia de rimas y palabras:



El paralelismo de rimas y léxico en rima entre la CSM 104 y la CSM 208, que además presentan coincidencia numérica siendo cada una respectivamente el doble y la mitad de la otra, es la consecuencia de unas estrategias compositivas que miran a la caracterización temática de los poemas. Ambas relatan milagros que se producen alrededor de la profanación del Corpus Christi, en la CSM 104 utilizada para confeccionar un filtro de amor y en la CSM 208 manejada por un herético para lograr augmentar la producción de sus abejas. En los dos casos la Hostia fue conseguida comulgando, a través del sacramento de la Comunión, escondida entre los dientes y finalmente robada. La correspondencia temática (razo) se refleja en la elección del léxico y de la rima (mot) y en la tría de los mismos incisos melódicos y de la misma estructuración métrica (so).69 La reminiscencia del Corpus Christi en las Cantigas se sirve de diferentes estrategias, desde la lexical hasta la musical, para recrear y representar, en el sentido de volver a hacer presente, una realidad ya conocida a través del ritual eucarístico. En la obra alfonsí la posibilidad de percibir con los sentidos da un grado de comprensión más profunda a los hechos narrados y constituye una conditio sine qua non para lograr remover el afectus, o sea las emociones más profundas de los oyentes.

La red de relaciones intertextuales e intermelódicas que se pueden reconocer en la composición de las Cantigas marianas tienen la finalidad de amplificar la eficacia performativa, porque permiten al oyente percibir a través del cuerpo y de las emociones. El sistema de composición teje una trama que actúa sobre la memoria solicitando los sentidos y permitiendo, en este caso, recuperar la presencia real del cuerpo de Cristo para poder “percibir” con toda su magnitud la potencia del milagro. Solo a través de una lectura que tenga presente la capacidad de recepción de los destinatarios, que reconocen los significados que conlleva cada palabra, rima o inciso melódico, se puede recuperar el mundo de voces que está detrás de cada poema alfonsí. Así pues, cada composición en su forma escrita representa una constelación de referencias textuales y melódicas que nos permiten recuperar memorias, creencias y universos simbólicos que eran patrimonio de los destinatarios. Solo a partir de una lectura performativa de los textos logramos vislumbrar el universo que anida detrás del primer nivel semántico, que no es ni más ni menos que el patrimonio de historias, tradiciones y reminiscencias que Peter Dronke define con la expresión: “les chose derrière les chose.



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[Recebido: 26 fev. 2020 – Aceito: 26 abr. 2020]



O CANTAR DE ROLDÃO:

PELAS VEREDAS DE UMA TRADIÇÃO EPIGENÉTICA


O CANTAR DE ROLDÃO:

ALONG THE PATHS OF AN EPIGENETIC TRADITION



Ronald Ferreira da Costa70

RESUMO: O presente artigo tem por finalidade colocar em tela de juízo a tradução da Chanson de Roland, denominada O Cantar de Roldão, realizada pelo autor deste artigo como Tese de doutoramento pela Universidade Estadual de Londrina, defendida no ano de 2019. Para isso, estabelece uma reflexão acerca da tradição literária iniciada com a Chanson de Roland já no final do século XI, em sua forma prototípica, originada de uma tradição oral que cantava a dinastia carolíngia, em contraste com a evolução e a transcendência que essa tradição encontra na América Latina e no Brasil. Nesse sentido, apresenta primeiro a origem dessa tradição; em seguida, as configurações dela no Brasil; e conclui com a apresentação da proposta de tradução como uma síntese entre o arquétipo e o típico nacional, por abertura e conservadorismo. Finalmente, o trabalho apresenta o cotejo da primeira série do cantar entre as mais tradicionais edições europeias, uma reconhecida tradução em espanhol e uma retradução brasileira, seguidas da proposta tradutológica em tela, a fim de que o leitor avalie, nos termos da abertura e do conservadorismo, o resultado poético do trabalho.


PALAVRAS-CHAVE: O Cantar de Roldão. Tradução. Tradição Carolíngia.


Abstract: The purpose of this article is to put the Chanson de Roland translation, called O Cantar de Roldão, on the screen of judgment, carried out by the author of this paper as a doctoral dissertation by the Universidade Estadual de Londrina, presented in the year 2019. To this end, it establishes a reflection on the literary tradition that started with Chanson de Roland at the end of the 11th century, in its prototypical form, originating from an oral tradition that sang the Carolingian dynasty, in contrast to the evolution and transcendence that this tradition found in Latin America and Brazil. In this sense, it first presents the origin of this tradition; then, her settings in Brazil; and concludes with the presentation of the translation proposal as a synthesis between the archetype and the typical national, through openness and conservatism. Finally, the work presents the comparison of the first series of singing among the most traditional European editions, a recognized translation into Spanish and a Brazilian translation, followed by the translate on screen, so that the reader can evaluate, in terms of the opening and the conservatism, the poetic result of the work.


Keywords: Roland’s singing. Translation. Carolingian tradition.




Introdução


A épica românica medieval é um gênero de capital importância na tradição literária ocidental. É sobre seu ideário ético-heroico que as primeiras novelas europeias erigem sua narrativa cavalheiresca, acrescida, claro está, da ideologia do amor cortês71. Os desdobramentos e a transcendência de seus temas literários e dessa ética heroica e religiosa podem ser reconhecidos a partir de conceitos que se tornaram caros à filologia especializada, como a abertura e o conservadorismo72 que surgem no seio das narrativas orais e garantem sua pervivência73 como tradição literária que transita entre a oralidade e o texto escrito. Qualquer que fosse o suporte de transmissão, seja a oralidade para a performance do jogral medieval ou cantador contemporâneo, seja a refundição ou trabalho de copista nos manuscritos preservados da épica ou das primeiras novelas em línguas românicas, ou seja as tipografias dos cancioneiros de romances ou folhetos soltos que deram origem ao que conhecemos por cordel, que pervive até a atualidade no Brasil, houve sempre um fio condutor: a tradição literária. No presente estudo, a fim de demonstrar alguns aspectos dessa tradição, apresentamos um dos pilares desse ideário ético-heroico, o monumento literário, a mais antiga e mais bela gesta, como enfatiza Joseph Bédier (1927), a célebre Chanson de Roland.

A despeito da relevância que cobrou este cantar na consolidação de uma tradição literária que poderíamos estritamente denominar de carolíngia – estritamente, visto que, segundo acreditamos, a influência literária e ética do cantar transcende a “temática” carolíngia – a obra foi pouco difundida no Brasil, onde a tradição carolíngia chegou como estratégia de evangelização jesuítica74 a partir de outros materiais literários, visto que o principal manuscrito da Chanson de Roland só seria inventariado em 1622 na biblioteca de Oxford, permanecendo ainda inadvertido por mais duzentos anos. Apenas em 1837 a obra foi pela primeira vez publicada em Paris, já com o nome La Chanson de Roland, título que não figura no manuscrito, sob os cuidados de Francisque Michel. A partir daí, a filologia europeia, incansável em buscar outros manuscritos do mesmo gênero, produziu uma incontável sucessão de traduções e edições deste e de outros cantares de gesta, num movimento acadêmico e editorial que o Brasil não acompanhou: A tradição carolíngia caminhava aqui por suas próprias veredas, mas as marcas do cantar, por distantes que sejam as referências, são indeléveis, segundo tentaremos demonstrar.

Nessa circunstância, ao apontar um hiato acadêmico e editorial no Brasil acerca do que reconheço como genesíaco da tradição carolíngia, a Chanson de Roland, devo fazer justiça e relativizar o exposto. O Brasil conta com uma única tradução do cantar: uma publicação intitulada A Canção de Rolando (1988), pela Francisco Alves, cuja tradução é assinada por Lígia Vassalo. Conforme se lê às páginas 4 e 19, a publicação apresentada é uma tradução feita do francês moderno, concretamente, da versão publicada por Yves Bonnefuy em 1968, cotejada com uma tradução do diplomata Guillaume Picot (1972), obras que não são consideradas edições filológicas entre os romanistas europeus75. Evidentemente e, não obstante a isso, a publicação da editora Francisco Alves dá a conhecer no mercado editorial brasileiro o enredo do cantar com um breve estudo introdutório, não isento de alguns equívocos e importantes lacunas, conforme veremos. Acrescente-se a isso a incipiência dos estudos acadêmicos acerca do cantar no Brasil76, frente à anual profusão da produção acadêmica em toda a Europa e fora dela, manifesta nos boletins bibliográficos da Société Rencesvals, publicados anualmente desde 195877, e passamos a compreender a justa identificação de um hiato da pesquisa acerca da obra no Brasil.

Diante desse estado de coisas, no ano de 2019 apresentei na Universidade Estadual de Londrina a Tese de doutorado78: La Chanson de Roland: o cantar de Roldão: manuscrito Digby 23b que traz uma série de contribuições à matéria, não apenas no Brasil, e que, inédita e comparatísticamente, teremos oportunidade de examinar no presente artigo. Sob a coorientação do prof. Dr. Antoni Rossell79, a partir de quem pude ter acesso à produção e discussões filológicas mais profícuas na Europa e quem me preservou de muitos equívocos, e, sob a orientação do prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes80, ao lado de quem cheguei ao resultado e forma final do trabalho e quem suscitou muitos dos acertos, de que hoje nos orgulhamos, apresentei uma tradução crítica e comentada do cantar que traz em seu bojo uma memória de veredas porque passou a tradição carolíngia que transcende as páginas da própria Tese, na medida em que confluem ali vozes de um longo processo de abertura e conservadorismo de uma tradição pervivente ao longo da história. O que segue dessa reflexão preambular é a demonstração dessa memória ali latente nos seguintes sentidos: 1. Da tradição que engendra a Chanson de Roland, sua transcendência e pervivência em todo o chamado ciclo carolíngio; 2. Em seguimento ao anterior, da chegada dessa tradição por vias e motivos coloniais até o cordel nordestino e a literatura nacional de reminiscências carolíngias; 3. Nessa conjuntura histórico-tradicional, da tradução denominada O Cantar de Roldão como memória rediviva – por um lado como uma resposta ao hiato acadêmico-editorial brasileiro acerca do cantar, por outro, em observância à tradição já propriamente nacional, que não poderia ser ignorada; e 4. Da estrutura composicional formular da tradução, como, propriamente, a tese tradutológica.


A CHANSON DE ROLAND E A TRADIÇÃO CAROLÍNGIA


Na biblioteca de Oxford, inventariado como fundo Digby 23, preserva-se um manuscrito em pergaminho em cuja parte b está a mais completa e mais antiga versão da Chanson de Roland81, em anglo-normando, o francês antigo escrito na Inglaterra depois da conquista normanda em 1066. Trata-se de uma escrita sóbria, sem iluminuras, datada do segundo quarto do século XII, que se consensuou reconhecer como cópia de um prototípico material perdido, escrito no final do século XI. Supor, a partir desse material, uma finalidade de divulgação literária, seja do poeta, seja do copista normando, como um manuscrito para ser lido, seria um equívoco epistemológico. Trata-se, antes, de um material para jogral com finalidade performática. A matéria épica vivia, desse modo, da transmissão oral, numa perspectiva já lendária dos fatos históricos que a oportunizaram. À exceção do Cantar de Mio Cid – um caso aberrante, segundo Martín de Riquer (2003) – a regra das gestas preservadas é um distanciamento do fato histórico gerador de cerca de três séculos. A Chanson de Roland, concretamente, remonta ao evento da batalha de Roncesvales ocorrida em 15 de agosto de 778, nos altos cumes do Pirineu navarro.

Naquele ano, Carlos, o rex francorum ou rei dos francos, ainda não consagrado como Imperador – embora o cantar seja arbitrário nesse tratamento – era já reconhecido como defensor da cristandade, herdeiro da dinastia pipínida, e emprestava seu nome à nova dinastia de poder, que se consolidará a partir de 800, com o título de Karolus Magnus et Pacificus Imperator. Não sendo objeto desse trabalho exaurir análises históricas acerca do que representou a figura histórica de Carlos Magno e a dinastia carolíngia, considerada sua revolução cultural, seus scriptori, seus êxitos e fracassos de campanhas ou a olímpica recessão monetária, cumpre apenas ter em tela que Carlos Magno não deixou de ser uma figura polêmica e nem sempre foi representado na literatura medieval como o grande imperador, mensurado e nada presto no falar, valente, de barbas brancas e cabeça florida como lemos na Chanson de Roland. Mesmo às vezes estampado de modo muito menos nobre, como na gesta Pélerinage de Charlemagne ou na novela occitana El Roman de Flamenca, o que nos interessa compreender é como a épica busca retratar um passado glorioso como exemplo ético-moral. Assim também ocorre, na Chanson de Roland, com o paladino Roldão, seu par Oliveiro e os demais Pares de França, em detrimento do inimigo pagão, o sarraceno. Vejamos algumas descrições.

Após sete anos de sucessivas e gloriosas vitórias nas terras da Espanha, o rei Carlos descansa com sua hoste em Córdoba. Enquanto isso, em Saragoça, a única cidade não invadida pelas forças cristãs, Marsílio, o rei sarraceno, preocupa-se e pede conselho aos seus mais sábios, que o convencem de propor ao rei Carlos um enganoso acordo a fim de que este retorne à França. Quando os mensageiros de Marsílio se aproximam, veem a figura do Imperador:



Blanche ad la barbe y tut flurit le chef. Branca a barba, floridos os seus canos, Gent ad le corʃ y la cuntenance fier. Nobre o corpo e o porte tão ufano.

Seʃt kil demandet ne leʃtoet emʃeigner. Se o buscam, não há que apontá-lo,

Y li meʃʃage deʃcendirent a pied os mensageiros descem caminhando, Sil ʃaluerent par amur y par bien. E o saúdam por bem e por amado.

(COSTA, 2019, vv. 117-121)


Já em retirada, as tropas cristãs da Espanha rumam à França. Carlos perfila toda a hoste, com a vanguarda sob seu mando e a retaguarda sob o mando de seu sobrinho Roldão – o que, até aqui, corresponderia ao fato histórico – junto com Oliveiros, os demais pares de França e mais vinte mil soldados. Estando Carlos já avistando a França e a retaguarda ainda cruzando os desfiladeiros de Roncesvales nos Pirineus, Oliveiro avista a imensa tropa pagã que, em emboscada, tinha por objetivo matar a Roldão e os pares de França a fim de minorar o poder bélico de Carlos. Por traição de Galalão, o padrasto de Roldão, a batalha é iminente, com enorme desvantagem numérica da retaguarda. Mas a coragem caracteriza o par épico:


Rolł ṕz y oliủ eʃt ʃage. É Roldão valente, é bio Oliveiro, ambedui unt meueilluʃ uaʃʃelage. de coragem excepcional são ambos. puiʃ que il ʃunt aʃ cheualʃ y aʃ armeʃ. Quando estão com suas armas à cavalo, Ja pur murir neʃchiuerunt bataille. não se furtam à batalha pelo medo.

(Ibid, vv. 1093-1096)


A despeito da desvantagem, os primeiros assaltos mostram não apenas a valentia, mas a superioridade dos cavaleiros franceses:



Franceiʃ i unt ferut de coer y d uigur Francos lutam com vigor e coração,

paien ʃ’t morz a millerʃ y a fulʃ. morrem em massa e aos milhares os pagãos, De cent millerʃ nen poent guarir douʃ. de cem mil se quer dois se salvarão.

Rolł Diʃt nrĕ hume ʃunt mult proz. “Nossos homens são valentes diz Roldão – Suz ciel nad home plϿ en ait de meillorʃ. sob o céu não há quem os superarão!

Jl eʃt eʃcrit en la geʃte francor Escrito esna Francor Gesta, uma canção,

Que uaʃʃalʃ li nrĕ emeur. que o nosso Imperador é um durão!

(Ibid, vv. 1438-1444)


Muita atenção se deu à expressão geʃte francor mencionada no v. 1443. Entre as diversas hipóteses para o sentido dessa expressão que aponta Riquer (2009, pp. 85-117; p. 173, n. 1443), podemos destacar a referência ao prototípico cantar, ou às antigas gestas cantadas em francês, de tradição estritamente oral, que pode haver servido de material para a composição do cantar perdido, posteriormente copiado no manuscrito de Oxford – gestas cuja existência está documentada na biografia Vita Karoli, datada de 105082, portanto, antes mesmo da composição prototípica do cantar.

Nesse ponto nos interessa tanto a caracterização épica dos personagens, como essa hipótese de fonte genesíaca da composição do cantar. A partir desses dois elementos podemos compreender que os sucessos e as vicissitudes da dinastia carolíngia são cantados três séculos mais tarde, consolidando, nessa tradição oral, um ideal ético e heroico que, como veremos, alcança a transcendência que vimos buscando. Acrescente-se a isso uma comparação do que se consensuou como a historicidade factual da batalha de Roncesvales83 com o que se narra no início do cantar:


Carleʃ li reiʃ noʃtre eme magneʃ O rei Carlos, nosso Magno Imperador, Set anz tuz pleinʃ ad eʃtet en eʃpaigne sete anos, na Espanha, ficou, treʃquen la mer c̄ quiʃt la tere altaigne. desde o mar à alta terra conquistou, Ni ad caʃtel ki deuant lui remaigne. não há castelo que possa se opor.

Mur ne citet ni eʃt’rėmeʃ a fraindre. As cidades e os muros, derrocou, Forʃ ʃarraguce ki eʃt en une muntaigne. Saragoça, no alto, ficou.

(Ibid, vv. 1-6)


Diferente do que lemos nessa primeira série do cantar, a dilatada campanha de Carlos na Espanha na realidade não passou de três meses, de meados de maio a 15 de agosto de 778, e nada teve de exitosa. As tropas permaneceram às portas de Saragoça até a catastrófica retirada pelos Pirineus. O tema da derrota da retaguarda, na que haveriam tombado Roldão84 e outros importantes da corte, apesar de não estar isento de dúvidas, encontra registros históricos, mas a questão de quem haveria atacado a retaguarda é divergente entre a historiografia e o cantar. Se Carlos é cantado na gesta como o defensor da cristandade que, em nome da supressão do paganismo vai à Espanha e, por traição viciosa, é atacado pelos sarracenos, sabemos que, na verdade, o rei franco mobiliza todo o seu contingente em duas colunas a fim de estabelecer um protetorado em Saragoça oferecido pelo governante abássida de Barcelona, que respondia a Damasco, em dissenção com o poder estabelecido pelo califado omíada de Córdoba. Frustrados os planos da entrega de Saragoça e, uma vez retornada a hoste, a retaguarda foi atacada pelos wascones, povo das montanhas, da sempre insubmissa Gascunha francesa, ou seja, o que a historigrafia nos revela é uma aliança com pagãos na campanha, e a perfídia da cristandade no ataque à retaguarda. Enginhardo, o biógrafo de Carlos Magno, em sua Vita Karoli, é explícito ao atribuir o ataque à “Wasconicam perfidiam”, porém, sessenta anos após o episódio de Roncesvales, na anônima biografia de Ludovico Pío, o sucessor de Carlos, Vita Hludowici imperatoris, o tema é recuperado em termos bem diferentes, em que se atribui o infortúnio da campanha ao crudelíssimo jugo sarraceno. Não é possível afirmar a ciência certa se essa ficcionalização deliberada nos registros oficiais é originada da tradição oral das cantilenas épico-heroicas dos jograis ou se estes responderam à conveniência que se buscava com esse registro pretensamente histórico, mas importa destacar que, a despeito a autoria basca, os inimigos a serem combatidos, cuja culpabilidade encontraria transcendência na tradição literária, são os sarracenos. É lapidar de toda a gesta o verso 1015: “[t]êm pagãos o mal, cristãos têm a justiça”85, que deixa claro um maniqueísmo ético-religioso, além da patente ignorância do cantar no que se refere ao universo muçulmano86. O esforço pela depreciação do inimigo sarraceno manifesta-se em diversos âmbitos, desde uma onomástica fantasiosa, a que destaquei:


Podemos destacar três grupos mais numerosos de fórmulas onomásticas: 1. Os de grau diminutivo, depreciativos em -in, como Blancandrín, Clarín, Estramarín, Eudropín, Gemalfín, etc; 2. Os prefixados em Mar-, como Marsil, Margariz, Marcule, Marganices, etc.; e 3. Os nomes formados por mot- valise, amálga de palavras francesas como Malbien, Malcuit (mal-pensado), Malduit (mal-educado), Malprimis (mal-prometido), Maltraien (mal-vindo) e Malpalin (mau-bastão), todos eles levados pelos demônios quando caídos em batalha, enquanto os anjos descendem aos cristãos (Ibid, p. 59).


Ainda ilustrando essa caracterização, iniciada a batalha, a gesta apresenta – por paralelismo – os doze pares sarracenos do primeiro esquadrão de Marsílio:


Vn duc i eʃt ʃi ad falʃaron. Há um duque ali, se chama Falastrão,

Jcil er frere al rei marʃiliun. de Marsílio, ele era o irmão,

Jl tint la tere datliun y balbiun. tinha as terras Datilônia e Balbisião, Suz cel nen at plϿ encriʃme felun. sob o céu não mais feio histro:

entre leʃ douʃ oilz mult out large le front. Entre olhos tem tão largo o teso; Grant demi pied meʃurer i pout hŏ. meio pé se pode dar a medição.

(Ibid, vv. 1213-1218)


Mais adiante, vindo o Emir Baligão da Capadócia em auxílio a Marsílio, o cantar enumera os dez esquadrões que se enfrentarão às hostes de Carlos Magno, já retornadas a fim de atender ao chamado de Roldão:


La premere eʃt de celʃ de butentrot. Da Capadócia é o primeiro e vai à frente.

e laltre apreʃ de miceneʃ aʃ chefʃ groʃ. Os cabeça-gorda, da Bmia os seguem, Sur leʃ eʃchineʃ quil unt en mi leʃ doʃ. no espinhaço, que no lombo eles exibem, Cil ʃunt ʃeiet enʃement cume porc. AOI. são sedosos, feito porcos, e suaves. AOI.

[...]

E la terce de nubleʃ y de bloʃ. No terceiro, os azulões e os nublados, e la quarte de brunʃ y deʃclavoz. e no quarto são escravos e são pardos.

e la quinte de ʃorbreʃ y de ʃorz. Já no quinto, como o malte, avermelhados, e la ʃiʃte dermineʃ y de morʃ. e no sexto, são mouros e armênios.

e la ʃedme de celʃ de iericho. Outros, de Jericó, já são o sétimo,

y loitme de nigreʃ y la noefme de groʃ. vão no oitavo e nono os negros e os gordos. e la diʃme de balide la fort. E o décimo de Bálida, o castelo,

co eʃt une gent ki uncheʃ ben ne uolt. é uma gente que nunca quis o certo.

(Ibid, vv. 3220-3231)


Acerca do universo ético-moral proposto no cantar, tanto do lado cristão quanto do lado do inimigo, ainda se poderia destacar uma miríade de elementos, como a valentia/covardia, nobreza/vilania, a relação com a morte, a espiritualidade, a heráldica, a importância da própria geste87, que só a tentativa de mencioná-los extrapolaria o corpus desse trabalho. Não obstante, a fim de objetivar a ideia da transcendência da tradição carolíngia, passaremos a considerar alguns elementos exteriores ao cantar, que a demonstram. Gui de Ponthieu, havendo participado da famosa batalha de Hastings, ocorrida em 14 de novembro de 1066, na que o Duque da Normandia, Guilherme II, o Conquistador, derrotou do rei Harold da Saxônia, adonando-se das Ilhas Britânicas, fez um relato em que consta haver presenciado, na ocasião, um jogral, de nome Taillefer, cantar à frente da armada a cantilena de Roland, a fim de insuflar os combatentes à coragem, com os exemplos do herói épico e dos Pares de França. Dessa batalha, preserva-se a Tapeçaria de Bayeux, com 70 metros de comprimento, datada do século XI – coetânea, portanto, à escrita prototípica do cantar – urdida na cidade de Bayeux, na Normandia. Nela são retratadas cenas com inscrições em latim da conquista normanda da Inglaterra:

Tapeçaria de Bayeux – detalhe Turoldus de Fécamp.




Tvrold, que figura em destaque, está no explicit do cantar: “Eis finda a gesta que Turoldus declina!”88. Diante disso, concluímos que essa tradição carolíngia, na época da composição prototípica, estava já muito bem consolidada, para além da poética literária. O exemplo dos paladinos carolíngios estava enraizado numa ética social. Assim, corroborando essa afirmação, a historiadora belga Rita Lejeune (1954) compila registros de pares de irmãos chamados Roland e Olivier já no princípio do século XI.

Para além de tudo isso, entendemos que, guardadas todas as especificidades de outros ciclos épicos ou outros gêneros, como os romances ou as nascituras novelas europeias a partir do século XII com seu ideal, seja na quête, seja no fine amor, o que faz a Chanson de Roland, desde aquele momento privilegiado das narrativas orais em que foi posta em manuscrito, é irradiar para toda a tradição literária medieval uma etopeia89 prevalente e, ademais, pervivente.


Tradição Carolíngia na América Latina


A Hystoria del emperador Carlomagno y de los doze pares de Francia, e de la cruda batalla que hubo Oliveros com Fierabrás, rey de Alexandría, hijo del grande almirante Balán é uma tradução de Nicolás de Piamonte, editado por primeira vez em Sevilha, no ano de 1525. Edições posteriores, das muitas que teve esta obra, alteraram, eventualmente, o extenso nome de modo a sintetizá-lo. Embora se trate de uma obra para ser lida, já em prosa, com letras capitulares e algumas iluminuras, ela guarda ainda muitas características – e finalidade – da tradição oral. Conforme pondera Montero (2011), esses textos de transição, entre as finalidades performática e de leitura, guardam ainda marcas dessa oralidade primordial, em que se destacam a estrutura formular e a ação e os fazeres dos heróis. Assim, na obra de Piamonte, além da prevalente ação no narrado, como uma clara reminiscência dos cantares de gesta, cujos manuscritos, como observamos, registram um determinado estado de vigência da tradição oral, em sua primeira edição sevilhana, apresenta um curioso e conclusivo recurso de oralidade, o custos90. Provavelmente originário da notação musical do gregoriano, o recurso denominado custos é uma antecipação ao final da página das notas iniciais à página seguinte, a fim de facilitar o canto, sem o risco da interrupção performática no ato de virar a página. Aplicado à prosa, como se observa em algumas edições da Hystoria del emperador... a inclusão, ao pé de página, da sílaba ou da palavra inicial da página seguinte, o cusco é um claro indicativo à leitura em voz alta.

Piemonte, no seu prólogo, esclarece o conteúdo e a origem da obra que, pela primeira vez se traduz da língua francesa ao romance castellano. São três livros, sendo o primeiro uma genealogia dos reis da França até Carlos Magno; o segundo, da batalha de Oliveiros contra Ferrabrás; e o terceiro culmina com a traição de Galalão e a morte dos doze pares. O segundo livro, que o próprio Piemonte declara estar, originalmente, em “metro francés muy bien trovado” é uma adaptação da segunda parte do cantar de gesta Fierabras, datado do final do século XII, cuja narrativa, sem lastro historiográfico claro, se passa três anos antes da batalha de Roncesvales, e da Chanson d’Aspremont, também datada do final do século XII, em que Roldão aparece como infante. O terceiro livro, por sua vez, traz elementos da Chronique du Pseudo-Turpin91, uma narrativa pretensamente historiográfica, provavelmente anterior à Chanson de Roland, com algumas importantes diferenças da gesta. Uma terceira versão, que inclui a história de Bernardo de Carpio, protagonista de um cantar de gesta perdido, quem, nessa versão, haveria dado morte a Roldão e derrotado Carlos Magno em Roncesvales, foi incluída em 1745. Estudando a transcendência da tradição literária carolíngia no Chile, Yolando Pino (1966)92 destaca haver, na região da Prata, registros da obra de Piemonte já em 1536, além dos doze exemplares do mesmo livro enviados à América em 1586. Já no Brasil, a obra trazida pelos jesuítas foi uma tradução ao português da obra de Piemonte [antes estava Piamonte] realizada por Jerônimo Moreira de Carvalho, no ano de 1863 em Lisboa, embora a primeira edição seja de 1728 em Coimbra.

Assim, com tantas referências cruzadas que conformam a História de Carlos Magno... que chega à América, podemos compreender o distanciamento dessa tradição literária, frente à tradição originária da Chanson de Roland. Acrescente-se a isso que, com a grande disseminação da obra no Brasil e com a prática das leituras em alta voz a que se referia Câmara Cascudo93, incorporando-a, assim, de volta à tradição oral e popular de onde se originara seu arquétipo original, podemos compreender quão facilmente essa tradição carolíngia adquire aqui certa autonomia em relação à matriz europeia. A partir desse estado da arte que destacamos, há dois elementos mais emblemáticos da transcendência que queremos apenas apontar: o primeiro de ordem histórica e um segundo de ordem popular e literária.

A exemplo do que anteriormente mencionamos acerca da batalha de Hastings, em que o jogral cantava uma cantilena de Roldão aos contendentes normandos contra as tropas britânicas, no Brasil, a etopeia trazida com a tradição carolíngia influenciou preponderantemente os rebelados da Guerra do Contestado. Feito Taillefer, o monge José Maria insuflava os caboclos revoltados a um movimento independentista de caráter messiânico e nomeou, por equívoco interpretativo da tradição literária, 24 caboclos como seus Doze Pares de França. As leituras que o monge fazia da História de Carlos Magno... a seus seguidores era, assim, mais do que uma inspiração de valores, era a essência ético-moral que justificava sua guerra santa.

Por outro lado, mais ao norte, a tradição que as sessões de leitura da História de Carlos Magno... semearam no sertão não se limita à própria tradução lisboeta de Jerônimo Moreira de Carvalho. Conhecemos a enorme tradição dos Autos, como os de Floripes e Ferrabrás, e outras festividades populares que encontram paralelo em várias regiões colonizadas pelos europeus, como, no Brasil, as Cavalhadas, as festas dos Dias de Reis, e a Encantaria, cuja amplitude de corpus tampouco alcançaria os limites deste trabalho94. Igualmente, a tradição literária de influência carolíngia no Brasil foi reiteradamente apontada em pesquisas de enorme fôlego como as de Câmara Cascudo e as de Jerusa Pires Ferreira95, e não convém aqui uma pálida reprodução das reflexões acerca dessa influência no Cordel, além das notórias influências em Ariano Suassuna ou em Guimarães Rosa, tema que merece estudo específico e de maior aprofundamento. Para o escopo do nosso trabalho, basta frisar que toda essa tradição, conforme vimos apontando, se afastou daquela que Bédier chamou de “único bem tangível e real”, como a “mais antiga e também mais bela [gesta]”, o monumento da epopeia francesa, a Chanson de Roland. Sem, evidentemente, atribuir um juízo de valor às veredas da tradição na América e, especificamente, no Brasil, a reflexão que segue deve se justificar por contraste epigenético entre a origem e o desenvolvimento da tradição.




A TRADUÇÃO: ABERTURA E CONSERVADORISMO


A noção de abertura e conservadorismo foi colocada por Don Ramón Menéndez Pidal (1954), e encontrou eco no seu continuador, Diego Catalán (1969). Aplicada à épica e ao romance, esse gênero tão característico da Península Ibérica, significa a união desses conceitos opostos que definem a natureza da tradição oral: o conservadorismo como essa capacidade de retenção de uma memória coletiva que conserva através dos séculos os menores detalhes de uma história remotamente pretérita, e a abertura, como a habilidade de recriação dessa tradição oral de modo a conferir a ela uma eterna atualidade a fim de que não se perca o sentido para o povo que a canta, mediante supressões, acréscimos e modificações convenientes que, não obstante, não desconfiguram a tradição. Há, desse modo, uma sutileza e uma inteligência coletiva em operar essas tradições orais. Isso legitima e elucida todo o percurso porque passou a tradição carolíngia, desde a Chanson de Roland até os mais contemporâneos versos ou autos que ainda hoje podemos ter a sorte de encontrar no Brasil e em alguns rincões da América Latina. Dado que o objetivo desse estudo não está pautado numa vontade arqueológica – como acertadamente nos adverte Rossell (2017) – apenas nos interessa demonstrar como, diante da complexidade desse sincretismo da tradição, se insere a possibilidade de retomar o elemento arquetípico, considerando, por um lado, um conservadorismo nem purista nem paleográfico e, por outro lado, uma abertura que, num outro extremo, não configure um palimpsesto, mas apenas dê voz às vozes que até aqui a cantaram. Com esse objetivo em pauta, claro está, assume-se uma grande responsabilidade com o texto e, aliás, um risco de exposição a críticas, por vezes mais construtivas, por vezes nem tanto. Todas recebemos com a humildade tão necessária à academia, com o único objetivo de, consideradas todas elas, contribuir com um legado que é coletivo e popular e nunca individual – assim, portanto, será também o que houver de mérito. Preocupado, pois, com o apagamento de elementos da tradição quando há desequilíbrio mais à abertura e menos ao conservadorismo, já refletia, com Meschonnic, no início da Tese:

Uma interessantíssima imagem desse fenômeno nos oferece Henri Meschonnic (2010), quando compara a tradução com o barqueiro. Importa para ele menos o atravessar, mas o estado em que chega aquele a quem atravessou; Caronte, conclui Meschonnic, atravessa os mortos que, no trajeto, perdem a memória, e é o que acontece com muitos tradutores. Aqui compartilhamos, pois, da tarefa que o linguista propõe: não traduzir o que dizem as palavras, mas o que elas constroem; recriar o sentido (COSTA, op. cit., p. 14).


Concretamente, portanto, atribuir a um manuscrito de jogral – como o de Oxford, sobre o qual nos debruçamos para a tradução – a finalidade da leitura silenciosa, ou limitá-lo a ela, parece-nos hoje um equívoco epistemológico. Sem, no entanto, menoscabar em nenhuma medida aqueles que antes e com extraordinário empenho e êxito realizaram trabalhos de fôlego irrepetível com a Chanson de Roland, cumpre, em nosso momento histórico, após quase dois séculos de contribuição da filologia europeia acerca do cantar, atender aos desafios que a pervivência da tradição nos trópicos nos propõe. Nesse sentido, hoje, uma tradução que opere pela abertura e pelo conservadorismo, com preocupações tanto filológicas quanto prosódicas, e que olhe, simultaneamente, para a Europa e para o Sertão, não poderia repousar no conforto de uma mera reprodução do já realizado, de uma retradução. Desse modo, seguindo essa pauta objetiva e partindo das reflexões da tradutologia que Henri Meschonnic (2010) coloca em termos de se buscar um equivalente de sentido e – em detrimento à tradução de palavra a palavra – uma tradução de poética a poética, de um ato de linguagem a um ato de linguagem, não nos restava outro resultado aceitável que não fosse um cantar redivivo, de performance latente.

Nesse sentido, O Cantar de Roldão se inscreve na tradição de forma transcendente, o que a caracteriza como epigenética, ou, em outros termos: operando por abertura e conservadorismo, a tradução do cantar conserva em sua forma o arquétipo e o típico nacional, do cavaleiro gaúcho ao verso do cantador. O resultado poético de O Cantar de Roldão, para atender a essa perspectiva, está composto em versos assonantados, em ritmo de martelo agalopado96, de dez sílabas poéticas com acento na terceira, na sexta e na décima sílaba, com os que se tornaram muito populares os desafios entre os cantadores sertanejos.

Nesse ponto, seguiremos demonstrando comparativamente como isso se manifesta no resultado poético final do cantar. Retomemos alguns exemplos da primeira série do cantar, a fim de uma análise comparativa:


Le roi Charles, notre empereur, le Grand, sept ans tout pleins est resté dans l’Espagne : jusqu’à la mer il a conquis la terre hautaine. Plus un château qui devant lui résiste, plus une muraille à forcer, plus une cité, hormis Saragosse, qui est dans une montagne. Le roi Marsile la tient, qui n’aime pas Dieu. C’est Mahomet qu’il sert, Apollin qu’il prie. Il ne peut pas s’en garder : le malheur l’atteindra.

(BÉDIER, 1922, p. 3)


Charles le roi, notre empereur, le Grand,

Est resté sept ans tout pleins en Espagne :

il a conquis jusqu’à la mer la terre haute.

Il n’y a pas de château qui resiste devant lui;

il n’est resté ni mur ni cité à forcer,

hors Saragosse, qui est sur una montagne.

Le roi Marsile la tient, qui n’aime pas Dieu,

Il sert Mahomet et invoque Apollin :

il ne peut empêcher que le malheur ne l’atteigne là-bas.

(MOIGNET, 1985, p. 27)


El rey Carlos, nuestro emperador magno, ha estado en España siete años enteros: conquistó hasta la mar la alterosa tierra. No hay castillo que resista ante él, ni ha quedado muro ni ciudad sin derribar, salvo Saragoza, que está en una montaña. La posee el rey Marsil, que no ama a Dios; sirve a Mahoma e invoca a Apolín: no se puede preservar de que mal le alcance.

(RIQUER, 2003, p. 49)


O rei Carlos, nosso grande imperador, sete anos completos permaneceu na Espanha: conquistou a terra altiva até o mar. Nenhum castelo resiste diante dele; não lhe resta abater nenhum muro, nenhuma cidade, exceto Saragoça, que fica numa montanha. Domina-a o rei Marsilio, que não ama Deus. Ele serve a Maomé e invoca Apolo: Não pode se proteger, nem impedir a desgraça de o atingir.

(VASSALO, 1988, p. 19)


Carleʃ li reiʃ noʃtre eme magneʃ O rei Carlos, nosso Magno Imperador, Set anz tuz pleinʃ ad eʃtet em eʃpaigne sete anos, na Espanha, ficou, emʃquen la mer c̄ quiʃt la tere altaigne. desde o mar à alta terra conquistou, Ni ad caʃtel ki deuant lui remaigne. Não há castelo que possa se opor.

Mur ne citet ni eʃt’rėmeʃ a fraindre. As cidades e os muros, derrocou, Forʃ ʃarraguce ki eʃt em une muntaigne. Saragoça, no alto, ficou.

Li reiʃ marʃilie la tient ki deu nen aimet. Rei Marsílio que a tem, Deus não amou, Mahumet ʃert y apollin recleimet pois o cão e Maomé, os invocou;

Neʃ poet guarder q̃ malʃ ne li ateignet. AOI. já não pode evitar o mal e a dor. AOI.

(COSTA, op. cit., p. 94, vv. 1-9)


À esquerda da tradução, procedemos à transcrição paleográfica97 do pergaminho com a qual, ressalvados nossos limites tipográficos, propomos uma aproximação da experiência de leitura do manuscrito com a possibilidade do cotejo entre os idiomas e as formas, naquilo em que se afastam e se aproximam. Por outro lado, observadas comparativamente as edições de Bédier (1922) e Moignet (1985) – este que, embora sem assonância ou metrificação, apresenta já uma disposição versificada do texto – e as traduções de Riquer (2003) e Vassalo (1988) supratranscritas, confiamos, como melhor julgará o leitor, não haver prejuízo semântico em nossa proposta de tradução poética. Agora vejamos, ainda comparativamente, a escansão realizada sobre os versos do manuscrito de Oxford e sobre a proposta tradutológica:


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Car/leſ / li / reiſ // noſ/tre / em/ᵱe/ / ma(gneſ) 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Set / anz / tuz / pleinſ // ad / eſ/tet / en / eſ/pai(gne) 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Treſ/quen / la / mer // c̄ /quiſt / la / te /re_al/tai(gne). 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Ni / ad / caſ / tel // ki / de/uant / lui / re/mai(gne). 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Mur / ne / ci/tet // ni / eſt’/re/meſ / a / frain(dre). 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Forſ / ſar/ra/gu(ce) // ki_eſt / en / u/ne / mun/tai(gne). 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Li / reiſ / mar/ſi(lie) // la / tient / ki / deu / nen / ai(met). 10 (4, 10)

˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Ma/hu/met / ſert // y / a/po/llin / re/clei(met) 10 (4, 10)


˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ

Neſ / poet / guar/der // q̃ / malſ / ne / li / a/tei(gnet).  10 (4, 10)


(transcrição do Manuscrito Digby 23b, fl. 1r)


Aqui observamos versos decassílabos com assonância feminina, dois hemistíquios e acentos na quarta e décima sílabas.

˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

O / rei / Car(los), // nos/so / Ma/gno_Im/pe/ra/dor, 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

Se/te / a/nos, // na_Es/pa/nha, / já / fi/cou, 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

Des/de_o /mar //à_al/ta / ter/ra / con/quis/tou, 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

(não) há / cas/te/lo // que / pos/sa / se / o/por. 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

As / ci/da/des // e_os / mu/ros, / der/ro/cou, 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

Sa/ra/go/ça, // no / al/to, / só / fi/cou. 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

Rei / Mar/sí/lio // que_a / tem, / Deus / não / a/mou, 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

pois / o /cão (e) // Ma/o/mé, / os / in/vo/cou; 10 (3, 6, 10)


˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ

já / não / po/de_e//vi/tar / o / mal / e_a / dor. 10 (3, 6, 10)

(COSTA, op. cit., p. 94, vv. 1-9)


E, finalmente, observamos na tradução os versos igualmente decassílabos, a assonância feminina, dois hemistíquios e o acento na terceira, na sexta e décima sílabas, que configuram o ritmo de martelo agalopado. À guisa de conclusão, acreditamos ficar demonstrado, na análise comparativa, o que há de conservadorismo e o que há de abertura na nossa tradução. O ritmo, que é a principal característica de abertura, que acolhe uma estrutura essencialmente sertaneja, no estrato social onde mais se enraizou a tradição carolíngia, é a ponte que se estende entre o arquétipo e o epigenético, reatando a tradição no Brasil à Chanson de Roland, a partir de uma estrutura não menos medieval, o contrafactum, que é a apropriação de uma estrutura ritmo-melódica já difundida a fim de propor e aproximar um elemento novo ou distante. Essa é a abertura que propusemos; o resultado é um cantar tão brasileiro e contemporâneo quanto românico e medieval.


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[Recebido: 09 abr. 2020 – Aceito: 02 jun. 2020]











PERFORMANCE POÉTICA E MUSICAL NA CANTIGA DE SANTA MARIA 20: LETRA E MÚSICA


POETIC AND MUSICAL PERFORMANCE IN CANTIGA DE SANTA MARIA 20: MUSIC AND LYRICS


GLADIS MASSINI-CAGLIARI98


RESUMO: Partindo do fato de que as músicas cantadas se baseiam em uma relação entre os níveis musical e linguístico, mediada pelo nível poético, este artigo objetiva analisar as estruturas métricas e melódicas da Cantiga de Santa Maria 20, de Afonso X, de modo a investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar a performance poética e musical dos trovadores medievais. A análise desenvolvida aponta para hipóteses de possíveis utilizações estilísticas da relação entre proeminências rítmicas linguísticas e musicais, da silabação e de processos fonológicos a ela relacionados (elisão), do padrão acentual de um nome próprio específico, das rimas e da acomodação de versos não isométricos à melodia padrão das estrofes.


PALAVRAS-CHAVE: Cantigas de Santa Maria. Ritmo. Melodia. Métrica.




ABSTRACT: Departing from the fact that music made to be sang is based on a relation between the musical and linguistic levels, mediated by the poetic level, this paper aims to analyze the metric and melodic structures of the Alfonso X’s Cantiga de Santa Maria 20, in order to investigate the possible contributions whether the musical notation is also considered, when the objective is to search for medieval troubadours’ poetic and musical performance, considering the relations between music and lyrics. The analysis points out to hypothesis of possible stylistic usages of the relation between linguistic and musical rhythmic prominences, syllable formation and related processes (such as elision), a specific proper name stress pattern, rhymes and the accommodation of non-isometric verses to the melody of the stanzas.


KEYWORDS: Cantigas de Santa Maria. Rhythm. Melody. Metrics.





Brea (1993, p. 132), no Dicionário da Literatura Medieval, define cantiga como “poesia composta para ser cantada; por isso, deve apresentar uma combinação harmoniosa de palavras (letra) e sons (música), característica geral de toda a lírica românica no seu início (salvo para a escola siciliana)”. Assim sendo, dado o fato de que as músicas cantadas se baseiam em uma relação entre os níveis musical e linguístico, mediada pelo nível poético, este artigo objetiva analisar as estruturas métricas e melódicas de uma das Cantigas de Santa Maria (de agora em diante, CSM), atribuídas a Afonso X (1221-1284), o Rei Sábio de Castela, de modo a investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, para além da estrutura métrico-poética, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar a performance poética e musical dos trovadores medievais, em uma época na qual não havia tecnologia suficiente para registros orais. Faz-se imprescindível a consideração desses três níveis de organização rítmico-melódica – língua, poesia metrificada e canção – quando se quer investigar os sons de nosso passado linguístico, em busca de pistas da organização prosódica da língua que dá suporte aos versos que, por sua vez, se combinam com a música. Para Rossell (2006, p. 244), no que diz respeito às CSM, “literatura e música são interdependentes”. O autor considera que as CSM seguem uma estratégia de composição textual e musical, na qual a métrica é o ponto nevrálgico. No nível da métrica, os aspectos literários e intertextuais se unem aos aspectos melódicos (ROSSELL, 2006, p. 229).

Fidalgo (2002, p. 177) considera que, dado o fato de que as CSM vêm, necessariamente, acompanhadas de música, a consideração de ambas as dimensões é a “característica esencial de onde debería saír a luz que despexara o camiño para o estudio das estructuras métricas que sosteñen as unidades narrativas das cantigas”. Entretanto, a autora considera que, por enquanto, a consideração de ambas não faz mais do que colocar dificuldades, uma vez que o rigoroso estudo da métrica está prejudicado pela falta de consenso entre filólogos e musicólogos e pela dificuldade de interpretação musical de uma notação que ainda não foi bem compreendida. Segundo a autora,


Se a medida dos versos estivera ben definida, teriamos unha parte do camiño andado para establecer a medida do ritmo musical. Por outra banda, a inseguridade con que se nos presenta a medida do verso pode quedar resolta, ás veces, pola fixeza métrica que amosa a notación musical mensural e as súas regras de aplicación, pero mentres a relación entre ambos aspectos non quede ben resolta non se poderán atopar os sons exactos da música das Cantigas. (FIDALGO, 2002, p. 202-203).


Drummond (2017, p. 5) considera que as questões interdisciplinares das relações entre texto e música nas CSM ainda não foram suficientemente abordadas. Para o autor, a forma como diferentes estruturas coexistem nas narrativas dos milagres indica que as relações entre texto e música nessas cantigas específicas são “muito mais íntimas e complicadas do que os estudiosos consideraram até o momento” (DRUMMOND, 2017, p. v-vi)

Colantuono (2012, p. 1) localiza o repertório mariano afonsino como pertencente ao gênero “poesia pela música”, que, à diferença da poesia pura, se vale do acompanhamento melódico e se caracteriza pela regularidade e simetria na disposição dos versos e na formação dos grupos estróficos. O pertencimento a esse gênero se reconhece na natureza interativa da linguagem musical, que requer uma regularidade análoga de versificação e de organização estrófica. Desta maneira, a autora considera a estrutura métrica como um anel de conjugação entre a construção melódica e o dimensionamento textual.

Em trabalhos anteriores desta autora (MASSINI-CAGLIARI, 2008, 2010, 2011) e de um de seus colaboradores (COSTA, 2010), foram analisadas cantigas medievais galego-portuguesas profanas e religiosas, em busca de pistas do acento e do ritmo na oralidade da época, seguindo a hipótese de que proeminências musicais combinam-se prioritariamente com proeminências linguísticas. De fato, esses trabalhos anteriores mostraram que, na grande maioria dos casos, proeminências musicais coincidem com proeminências linguísticas; entretanto, em alguns poucos casos, há a possibilidade de proeminências musicais serem ocupadas por sílabas que não correspondem a proeminências linguísticas. Porém, em termos estilísticos de reconhecimento de padrões métricos, isso acontece apenas em uma pequena parte dos casos porque, do contrário, não haveria a possibilidade de produção e reconhecimento de um padrão rítmico, já que os padrões de ritmo linguístico, poético e musical baseiam-se na repetição de estruturas.

É justamente esta possibilidade de desencontro entre proeminências rítmicas dos níveis musical e linguístico que motiva a escolha da CSM20, Virga de Jesse, para análise neste artigo. Como será mostrado, os vários momentos em que esse desencontro acontece fornecem oportunidades de reflexão a respeito de como poderia ter soado a cantiga na performance do seu intérprete, uma vez que as dúvidas de realização apontam para interessantes hipóteses estilísticas de construção dos versos e da música que os acompanha.


BREVES PALAVRAS SOBRE A LÍRICA RELIGIOSA AFONSINA


As Cantigas de Santa Maria (CSM), atribuídas a Afonso X, são uma coleção de 420 cantares, descontadas as repetidas (METTMANN, 1986, p. 7 e 24; PARKINSON, 1998, p. 179; BERTOLUCCI PIZZORUSSO, 1993, p. 142), correspondendo ao cancioneiro de louvor mariano mais rico da Idade Média. Mais do que isso, segundo Leão (2007, p. 21), as CSM são “de longe a maior e mais rica coleção produzida nos vernáculos românicos da Idade Média”, ecoando Lapa (1933, p. III), para quem correspondem a “um dos mais primorosos monumentos da língua e literatura galego-portuguesa”.

Apesar de as CSM serem atribuídas a Afonso X, sua composição é essencialmente uma atividade coletiva (PARKINSON, 2015, p. 11). Para Parkinson (2015, p. 16), retomando o que já havia sido mostrado anteriormente por Mettmann (1986), a autoria das CSM é atribuída a Afonso X tanto textualmente (a partir do uso do pronome de primeira pessoa do singular “eu”) quanto iconograficamente, a partir da inclusão da figura do rei em posições “didáticas” nas miniaturas iniciais dos códices Escorial rico (T) e Escorial (E).

Entretanto, mesmo havendo dúvidas quanto à autoria, de acordo com Leão (2007), indiscutivelmente, Afonso X é o “autor” das CSM, no sentido de que é o chefe do projeto. Essa opinião corrobora a de Montoya Martínez (1999, p. 35), para quem Alfonso X é indiscutivelmente o “autor” das CSM, dentro de um conceito “teológico” de autoria, no qual, a exemplo do que ocorre na autoria da Bíblia, em que Deus, o autor principal, se vale de “autores secundários” para registrar a sua palavra, Afonso X, o autor principal das CSM, teria se valido de uma vasta equipe de poetas, músicos, miniaturistas e outros para levar a cabo a sua obra.

As CSM sobreviveram em quatro os códices: dois deles pertencem à Biblioteca del Monasterio de El Escorial, na Espanha (T: El Escorial, Real Monasterio de San Lorenzo, MS T.I.1 - códice rico ou códice das histórias; e E: El Escorial, Real Monasterio de San Lorenzo, MS B.I.2 - códice dos músicos); o terceiro está conservado na Biblioteca Nacional de Madrid (To: Madrid, Biblioteca Nacional, MS 10.069, conhecido como códe de Toledo); e o último pertence à Biblioteca Nazionale Centrale de Florença, Itália (F: Firenze, Biblioteca Nazionale Centrale, Banco Rari, 20 - códice de Florença). O menor e o mais antigo é o códice de Toledo (To); o mais rico em conteúdo artístico é o códice rico de El Escorial (T), que forma um conjunto (os chamados códices das histórias) com o manuscrito de Florença (F); e o mais completo é o códice dos músicos – El Escorial (E) (PARKINSON, 1998, p. 180),

Embora sejam todos os quatro manuscritos datados do final do século XIII, a época de sua confecção não coincide exatamente. Embora Anglés (1943) e Mettmann (1986, p. 24) sejam vozes discordantes a este respeito, To é geralmente considerado um pouco anterior aos demais, enquanto F é considerado um pouco posterior.

Em termos de metrificação, segundo Parkinson (2015, p. 12), os versos cultivados nas CSM, quando comparados aos da lírica profana contemporânea, são “precisos” e de “métrica variada”, revelando grande virtuosismo em termos de estrutura de verso, de estrofe e de rima, no sentido de corresponder aos requisitos do modelo formal e de produzir uma grande variedade de estruturas, mesmo dentro de um conjunto restrito de possibilidades.

As rimas das CSM, na opinião de Parkinson (1999, p. 22) são “virtuosísticas”. O autor mostra exemplos de como o uso de coblas uníssonas, ou seja, do mesmo conjunto de rimas ao longo do poema todo, pode ser considerado um caso de “mestria”, ou seja, de grande habilidade em trovar. Colabora também como índice de mestria o uso de coblas doblas (sequências de pares de rimas), de palavras-rimas (em que a mesma palavra é usada para implementar uma dada rima em posições estruturais específicas do poema) e de outros efeitos de rima, tais como a rima insistente (em que a mesma rima é usada em três ou mais versos sucessivos) e a rima estendida (em que um verso da estrofe, geralmente o último, que antecede a retomada do refrão, rima com este).

A própria organização dos textos em torno do formato de rosário demonstra o profundo cuidado formal com que foi concebida a coleção: as cantigas são organizadas de dez em dez, sendo que as nove primeiras do grupo contam milagres ocorridos por intercessão da Virgem e a décima, identificada por um tipo diferente de rubrica (e por uma miniatura especial, em E), configura um louvor a Santa Maria. Segundo Mettmann (1986, p. 13), nos poemas narrativos (milagres), o estribilho ou refrão se repete depois de cada estrofe, apresentando a ideia principal, ou a “lição” que se quer passar. A primeira estrofe, a segunda ou até mesmo a terceira estrofes podem trazer indicações do tempo e do espaço da narrativa, e indicações vagas sobre a fonte na qual foi coletado o milagre. Também são nomeadas as personagens (pessoas que participam do milagre ou que o presenciam). Por sua vez, as cantigas não-narrativas (louvores) constituem hinos em que Maria é celebrada como auxiliadora, medianeira e procuradora (METTMANN, 1986, p. 14-15). Todas as cantigas são precedidas de epígrafes resumitivas de seu conteúdo.

A contagem das sílabas poéticas nas CSM é sensível ao processo de elisão, em que duas vogais seguidas são contadas em uma única sílaba poética. As elisões são geralmente representadas nos manuscritos pela omissão de uma das vogais envolvidas (notadamente a primeira, com pouquíssimas exceções), de modo que o registro escrito sempre contém o número de sílabas necessário à estrutura métrico-poética. As edições críticas modernas (como a de Mettmann, 1986, aqui considerada para a CSM20) costumam representar as elisões a partir do uso de apóstrofo, ao passo que as edições diplomáticas transcrevem o manuscrito de modo mais fiel, apenas suprimindo a vogal não grafada, e respeitando a segmentação adotada (MASSINI-CAGLIARI, 2007).

Com relação à elisão, autores como Massini-Cagliari (2015) e equipe (MIGLIORINI, 2012; CANGEMI, 2014) veem a elisão como um processo linguístico que dá base à sua utilização estilística, nas cantigas, ao contrário de Parkinson (2015), que considera este um mero recurso poético. Esta polêmica, no entanto, extrapola os limites deste artigo.

Segundo Parkinson (2015, p. 12), nas CSM não há liberdade de mesclar versos graves e agudos. Isso quer dizer que, considerando a posição de um verso dentro de uma estrofe, sendo este agudo, jamais poderia ser substituído por outro grave na estrofe seguinte (e vice versa), mesmo que esses contivessem a mesma quantidade de sílabas poéticas. É o que acontece na CSM20, focalizada neste artigo, uma vez que, nela, há apenas versos graves, isto é, finalizados por palavras paroxítonas.

A cantiga analisada neste artigo segue a estrutura estrófica padrão nas CSM, que se baseia na utilização de um refrão, que aparece em primeiro lugar, seguido das estrofes, às quais se interpõe o refrão, sempre repetido ao final de cada estrofe, cujo esquema métrico e rimático pode depender dos do refrão, encadeando-se a este. Em muitas das CSM, há uma combinação de linhas mais longas e mais curtas (PARKINSON, 2015, p. 15), como é o caso da CSM20 aqui analisada.

Embora muitos autores ressaltem a influência do zajal ou zéjel nas CSM, a CSM20, aqui considerada, como a maior parte das CSM, não segue esse modelo de modo estrito. Por este motivo, Fidalgo (2002, p. 180), seguindo María Morrás, prefere falar em “formas zejelescas”, uma etiqueta válida para agrupar todas as composições, de origem árabe ou romance, cuja característica em comum é o emprego da estrofe com volta. A volta consiste em um verso no final da estrofe que repete a rima do refrão, seguida do refrão propriamente dito. Segundo Fidalgo (2002, p. 180), o esquema típico da volta é AA // bbba. Já para Drummond (2017, p. 5), o esquema típico é aa|(bbba|aa), que se combina com o esquema musical padrão of ab|(ccab|ab).


A MÚSICA DAS CANTIGAS DE SANTA MARIA


A grandiosidade da coleção das CSM se estende ao nível musical, na opinião de Ferreira (1994, p. 58), para quem a coleção é especialmente notável entre a documentação remanescente de música medieval monódica, por duas razões: representam vinte anos de investimento composicional e editorial centralizado; utilizam dois sistemas notacionais semimensurais originais.

O que explica a possibilidade de diferenças na interpretação da notação musical da mesma cantiga, segundo os músicos que a executem, de acordo com Fidalgo (2002, p. 204-205), é o fato de que a notação musical da época não tinha a pretensão de reproduzir todos os parâmetros musicais da mesma maneira como a notação musical atual. O pensamento musicológico fundado por Anglés (1943) acreditava na representação exata da duração e do ritmo dos sons na notação das CSM; a esta tendência, opõe-se a que considera a interpretação rítmica das CSM em termos de liberdade e flexibilidade (FERREIRA, 1986, p. 188). López Elum (2010, p. 50-59) considera que o “primeiro projeto mariológico”, ou seja, To, não apresentava uma notação mensural, que se iniciou apenas a partir do segundo “projeto” (T e F), abrangendo o terceiro (E).

Costa (2010, p. 59) discute a questão da datação da notação musical dos manuscritos das CSM, relembrando que, muito embora To seja o manuscrito mais antigo, apresenta uma notação musical mais moderna. Essa “modernidade” da notação de To é observada por Anglés (1958), que afirma que a notação musical mais comum na época em que foram compostas as cem primeiras CSM tinha como notas fundamentais a longa e a breve, ao passo que To apresenta a breve e a semibreve como notas fundamentais.

Do ponto de vista rítmico, Fernández de la Cuesta (1999, p. 349) considera que as CSM e as cantigas medievais e renascentistas em geral possuem métrica e são agrupadas em estrofes mais ou menos isométricas; desse modo, o ritmo e a melodia seriam determinados pela métrica e, mais especificamente, pela isometria.

Drummond (2017, p. 220) analisa a estrutura musical das cantigas de milagre, mostrando que a combinação entre o que cíclico e o que é linear na estrutura musical das CSM é uma base fértil para a performance dramática da narrativa dos milagres. O autor considera que a música das CSM se estrutura a partir de um refrão sonicamente persistente, que, retomado após as estrofes, funciona no sentido de realçar a confiança na veracidade da narrativa do milagre. Assim, a recorrência do metro, das rimas e da melodia do refrão atua como um mecanismo de separação e realce da narrativa central, expondo o essencial da mensagem do milagre à audiência. Desta maneira, a estrutura poético-musical funciona como um veículo que guia auditivamente a performance e a audiência através da canção (DRUMMOND, 2017, p. 33).

Colantuono (2012, p. 10) compara o sistema de composição musical das CSM ao da construção arquitetônica: uma prática que requer profundo conhecimento musical e métrico e que parte do material preexistente, com o objetivo de reinventá-lo continuamente. Para a autora, a melodia é o elemento principal, sendo os intervalos simples e fáceis de entoar (COLANTUONO, 2012, p. 56). Porque a melodia da primeira estrofe se impõe aos demais versos, Colantuono (2012, p. 56) conclui que há “percursos melódicos independentes do desenvolvimento do texto literário”. Portanto, a melodia teria autonomia em relação ao texto, sendo o veículo de sua memorização e transmissão. A estrutura melódica, assim, assume uma expressão transcendente, que retorna incessantemente a si mesma, e que, com sua estrutura, determina o dimensionamento do texto (COLANTUONO, 2012, p. 56-57).

Para Colantuono (2012, p. 61), as CSM são composições modais (compostas a partir de um “motivo melódico”, uma porção “completa” de um ponto de vista modal e emitida em um único respiro, COLANTUONO, 2013, p. 82), em que a linha melódica gerencia a estrutura métrica (COLANTUONO, 2012, p. 197), a partir de uma visão que a própria autora (COLANTUONO, 2012, p. 201) denomina de “melódico-cêntrica”. Desta maneira, a análise desenvolvida pela autora procurou diferenciar a estrutura poética da estrutura melódica, sendo a primeira baseada na disposição da rima, importante elemento mnemônico, e a segunda sobre a partição em elementos significativos. Os dois sistemas se combinam, sem necessariamente coincidir (COLANTUONO, 2012, p. 209). A rigidez da constituição métrica não é parâmetro absoluto na valoração do “verso cantado”, que não se define somente em conformidade a uma rígida estruturação métrica, mas também sobre expedientes tais como paralelismos e recorrências fônicas (rimas, aliterações, assonâncias), com papel claramente estrutural (COLANTUONO, 2012, p. 168). Tal abordagem já havia sido ensaiada anteriormente pela autora (COLANTUONO, 2007, p. 1220), quando tratou da valorização do bon son, supondo uma ótica analítica que engloba tanto o aspecto métrico quanto o melódico.

Já em Colantuono (2013, p. 81-82), a autora desenvolve uma análise melódica dos componentes das CSM que mostra que a semelhança e a igualdade melódicas, consequências diretas da passagem de material melódico de um componente a outro, permitem a individuação das relações intertextuais entre os componentes. O elemento melódico reforça a função descritiva da composição, através da evocação dos mundos poético e sonoro, sendo veículo de transmissão e de memorização do repertório.

Em termos de sua execução, acredita-se que as estrofes eram cantadas por solistas, ao passo que o refrão estaria a cargo de um grupo maior de pessoas. O estudo da tessitura (intervalo entre a nota mais grave e a mais aguda de um trecho) reforça esta hipótese (FIDALGO, 2002, p. 201). A este respeito, Ferreira afirma que:


as Cantigas de Santa Maria são, por um lado, maioritariamente narrativas - o que torna mais provável a participação de um instrumento na sua execução - e, por outro, bastante mais permeáveis a influências andaluzas do que a lírica trovadoresca, o que justifica a ideia de que poderiam ser, com alguma probabilidade, objecto de um acompanhamento simultâneo de tipo heterofónico. (FERREIRA 2005, p. 42).


Escolhemos a edição de Anglés (1943) para a análise aqui desenvolvida, apesar de haver abordagens divergentes da de Anglés, quanto à concepção musical das CSM. Rossell (2006), por exemplo, difere de Anglés quanto à concepção da melodia das CSM. Ao analisar a CSM 72, Rossell (2006, p. 232) afirma que as relações melódicas internas dessa cantiga específica mostram que existe uma estrutura melódica interna, independentemente da forma musical apresentada por Anglés. A hipótese modal das melodias das CSM de Rossell (2006, p. 238) se baseia na aparição das mesmas estruturas melódicas em uma série de cantigas que apresentam uma estrutura melódica inicial comum. A abordagem de Colantuono (2014) é semelhante à de Rossell (2006), no que diz respeito à consideração da repetição de trechos melódicos. A autora mostra que, nas estrofes, é possível reconhecer a predominância melódica do movimento inicial e da fase final conclusiva, apesar de que a interação melódica não implica simplesmente em repetição, contemplando mudanças agógicas, dinâmicas e rítmicas, derivadas das peculiaridades fonéticas e expressivas do texto (COLANTUONO, 2014, p. 2).

Colantuono (2007, 2012, 2013) tem uma abordagem do ritmo das CSM bastante divergente da de Anglés (1943), considerando a notação musical das CSM como dependente da estruturação melódica. Colantuono (2012, p. 15) considera que todo processo de escrita musical implica um grau de relação variável com os processos de composição. Em muitos casos as estratégias de composição não podem ser atestadas apenas pelos testemunhos documentais, mas devem ser valorizados os processos de confluência dialética entre as dimensões oral e escrita. Assim sendo, a própria autora reconhece que propõe “um possível canal de acesso às estratégias de composição, que não quer ter a pretensão de ser o único sistema: a proclamação de haver chegado a um definitivo contribuiria somente à inércia e ao conformismo intelectual” (COLANTUONO, 2012, p. 6).

Apesar da divergência de concepção do ritmo das CSM entre Anglés, por um lado, Ferreira, por outro, e Colantuono e Rossell, por ainda outro, a ruptura entre esses autores se dá, principalmente, na concepção da composição melódica das cantigas, e menos com relação ao ritmo, embora tenha consequências para a concepção deste. Por considerar que, apesar das críticas, a edição de Anglés, que é ainda a mais popular em termos de performance musical, pode trazer interessantes dados para a discussão da relação texto-música das CSM, ela é aqui considerada. Uma revisão da análise aqui empreendida, a partir das concepções de Ferreira, Colantuono e Rossell, pode ser um interessante desenvolvimento futuro deste trabalho, uma vez que há variações quanto ao que cada um desses autores considera como “proeminência musical”.


A cantiga analisada: CSM20


Conforme já foi dito anteriormente, a CSM20 foi escolhida como objeto deste artigo justamente por apresentar, como será visto, momentos em que ocorre um verdadeiro desencontro rítmico entre proeminências musicais, poéticas e linguísticas. Tanto quanto os momentos em que proeminências musicais, poéticas e linguísticas coincidem, os momentos de desencontro fornecem oportunidades de reflexão a respeito das escolhas estilísticas dos poetas e de como poderia ter soado essa cantiga religiosa específica na performance do seu intérprete.

Transcrevemos, em (1), a CSM20, na edição de Metmann (1986, p. 109-110). Tendo sobrevivido em três manuscritos (To20, T20, E20), a CSM20 é um louvor a Santa Maria, comparada à Virga de Jesse (“ramo de Jessé”), que, apesar de padecer o tempo todo pelos nossos pecados, ainda assim ora sempre a seu Filho, intercedendo pelos pecadores, e realizando milagres “formosos” e “maravilhosos”, pelos quais desce do céu e cresce em honra aos humildes.

Esta é de loor de Santa Maria, por quantas mercees nos faz

Virga de Jesse,

quen te soubesse

loar como mereces,

e sen ouvesse

per que dissesse

quanto por nos padeces!


Ca tu noit' e dia

senpr' estás rogando

teu Fill', ai Maria,

por nos que, andando

aqui peccando

e mal obrand' -o

que tu muit' avorreces –

non quera, quando

sever julgando,

catar nossas sandeces.

Virga de Jesse...


E ar todavia

senpr' estás lidando

por nos a perfia

o dem' arrancando,

que, sossacando,

nos vai tentando

con sabores rafeces;

mas tu guardando

e anparando

nos vas, poi-lo couseces.

Virga de Jesse...


Miragres fremosos

vas por nos fazendo

e maravillosos,

per quant' eu entendo,

e corregendo

muit' e soffrendo,

ca non nos escaeces,

e, contendendo,

nos defendendo

do demo, que sterreces.

Virga de Jesse...


Aos soberviosos

d'alto vas decendo,

e os omildosos

en onrra crecendo,

e enadendo

e provezendo

tan santas grãadeces.

Poren m' acomendo

a ti e rendo,

que os teus non faleces.

Virga de Jesse...

(METMANN, 1986. p. 109-110).


Segundo Mettmann (1986, p. 109), a estrutura métrica da CSM 20 é: A4 A4 B6 A4 A4 B6 / c5 d5 c5 d5 d4 d4 b6 d4 d4 b6. Em outras palavras, o refrão é formado por seis versos, dos quais o primeiro, o segundo, o quarto e o quinto, que rimam entre si, são compostos por apenas quatro sílabas poéticas; os demais versos do refrão, o terceiro e o sexto, que também rimam entre si, contam com seis sílabas poéticas cada. As quatro estrofes contam com dez versos cada uma, sendo os quatro primeiros compostos por cinco sílabas poéticas; o quinto, o sexto, o oitavo e o nono versos têm quatro sílabas poéticas; e o sétimo e o décimo versos apresentam seis sílabas poéticas. O esquema de rima do refrão é o seguinte: o primeiro verso rima com o terceiro; o segundo, o quarto, o quinto, o sexto, o oitavo e o nono versos rimam entre si; o sétimo e o décimo versos rimam com o refrão.

Nas figuras 1, 2 e 3, aparecem os testemunhos da CSM20 nos três códices em que sobreviveu: Toledo (To), Escorial rico (T) e Escorial (E). Nos três códices, figura sob o número 20.






Figura 1. ToXX (CSM20).

Fonte: Cantigas de Santa María. Edición facsímile do Códice de Toledo (To). Biblioteca Nacional de Madrid (Ms. 10.069). Vigo: Consello da Cultura Galega, Galáxia, 2003. fólios 29r, 29v e 30r.




Figura 2. T20 (CSM20).

Fonte: Códice Escorial rico (microfilme cedido pela Biblioteca Real Monasterio de San Lorenzo, El Escorial, MS T.I.1). fólio 32r.



Figura 3. E20 (Cantiga CSM 20).

Códice dos músicos (Escorial), fólios 46r e 47v.

(Reproduzido de Anglés, 1964, 46r e 47v).




Na figura 4, apresenta-se a atualização da notação musical realizada na edição de Anglés (1943, p. 28) da CSM20, com base nos três manuscritos em que sobreviveu.









Figura 4. CSM20: notação musical. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).


A Tabela 1 traz o mapeamento dos tipos de sílabas que ocorrem nas posições de proeminência musical (aqui entendida como início de “compasso”, até onde este conceito pode ser estendido à música medieval), subdivididas quanto à sua pauta prosódica: tônica (acento principal de palavra); monossílabo tônico (definidos, para a língua retratada nas cantigas medievais galego-portuguesas, por Cunha, 1961, acrescidos dos casos apontados em Massini-Cagliari, 2015); monossílabo átono (clíticos); pretônicas (sílabas que ocorrem antes do acento principal no interior da palavra); átona final (sílaba final de palavra, sem proeminência prosódica).


Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição de proeminência musical – CSM20.


Pauta prosódica da sílaba em posição de proeminência musical

quantidade de unidades de tempo ( compassos)

Tônica

60 (34.5%)

monossílabo tônico

42 (24.1%)

monossílabo átono (clítico)

8 (4.6%)

pretônica

30 (17.2%)

átona final

34 (19.6%)

TOTAL

174 (100%)



A tabela 1 mostra que na maior parte dos “compassos” considerados (isto é, nos 60 compassos em que uma sílaba tônica ocorre na posição de proeminência musical, somados aos 42 compassos em que figura um monossílabo tônico nessa posição), há um encontro entre as proeminências dos níveis linguístico e musical (58.6%). Se considerarmos, como já mostrado em Costa (2010), que as pretônicas podem assumir proeminência rítmica relativa, compatível com a realização de um acento secundário, o índice de correspondência sobe para 75.9% (132 de 174 casos). Também considerando que, de acordo com Amaral (2017), os clíticos do galego-português podiam assumir uma proeminência rítmica mais acentuada, em comparação com o comportamento dos clíticos do português atual, neste caso, o índice de correspondência chega a 80.5% (140 de 174 casos).

Mesmo sendo bastante alto o índice de correspondência entre proeminências musicais e linguísticas, não há correspondência total. Em 19.6% dos casos (34 em 174), a proeminência musical coincide com uma sílaba átona final de palavra, a pauta prosódica mais fraca e o padrão menos esperado nessa posição. Quando se analisam os casos de coincidência de sílaba átona final com proeminências musicais, um fato que chama a atenção é que, em 26 dos 34 casos (76.5%), a sílaba átona final acontece em final de grupo prosódico, ou final de verso no nível poético. Do ponto de vista da realização fonética do verso cantado, essa coincidência pode marcar um alongamento típico em final de constituinte prosódico, para marcar o limite do constituinte. É justamente o que se pode observar na figura 5, em que as palavras paroxítonas mereces e padeces, que ocorrem rimando entre si no final do terceiro e do sexto versos do refrão, correspondem a notas de duração igual, tanto na sílaba tônica (acento principal da palavra), quanto na átona final, que se localiza em final de linha melódica.



Figura 5. CSM20: notação musical: linhas 2 e 3. Fonte: Anglés (1943, p. 28).


O mesmo pode ser observado na figura 6, em que as palavras paroxítonas sandeces, couseces, sterreces e faleces correspondem ao mesmo padrão musical na linha melódica verificado em relação a mereces/padeces na figura 5, ou seja, notas de duração (longa) igual na tônica e na postônica final. São justamente as palavras focalizadas na figura 6 que se localizam no final do verso da volta, ou seja, o verso final da estrofe, que, de acordo com o padrão desta cantiga específica, deve rimar com o terceiro e o sexto versos do refrão.



Figura 6. CSM20: notação musical: linha 6. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Este padrão, porém, pode ser encontrado em outros contextos, no interior das estrofes, como mostra a figura 7, que focaliza a sílaba átona final das palavras rogando, lidando, fazendo, decendo, Maria, perfia, maravillosos, omildosos, andando, arrancando, entendo e crecendo. Todas essas palavras são cantadas com a melodia registrada na linha 4 da edição musical de Anglés (1943, p. 28). Nos contextos específicos em que aparecem estas palavras, o padrão se repete: duas notas de valor longo igual, ambas em posição de proeminência musical, com a primeira correspondendo à sílaba tônica principal da palavra e a seguinte, à sílaba átona final. Tal recorrência pode indicar uma escolha estilística, em nível da combinação de letra e música, para marcar os limites dos constituintes prosódicos, tanto no nível musical quanto no linguístico.




Figura 7. CSM20: notação musical: linha 4. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Em termos da investigação da possível performance poética e musical dos trovadores medievais em relação à CSM20, a observação da notação musical é também muito importante para a confirmação da silabação de ditongos e hiatos e a realização fonética de processos tais como a elisão. Nesses casos, a notação musical pode confirmar as hipóteses de silabação realizadas a partir da estrutura métrico-poética da cantiga.

Por exemplo, a correspondência de uma sequência de vogais a duas notas na linha melódica indica a realização do encontro vocálico como um hiato. É o que está representado na figura 8, em relação às palavras que se encontram envolvidas por um retângulo de linha contínua: dia, todavia e aos (preposição a + artigo os). Por outro lado, quando uma mesma e única nota é indicada como alvo do canto de duas vogais, este fato indica a sua realização como ditongo. É o que ocorre na figura 8, nas sílabas envolvidas por uma forma oval: noite e soberviosos.



Figura 8. CSM20: notação musical: linha 3. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Já as palavras envolvidas por retângulos de linhas pontilhadas exemplificam casos de elisão, quando há a supressão de uma vogal na escrita, em geral átona, ocorrendo em final de uma palavra seguida de outra iniciada por vogal. Xavier e Mateus (1990, p. 140) definem elisão como um “fenómeno de fonética sintáctica que consiste na supressão de uma vogal átona final quando a palavra seguinte começa por vogal”. A definição colhida em Xavier e Mateus (1990) coincide com definições anteriores desse processo, encontradas em dicionários de Linguística, por exemplo, Camara Jr. ([1973], p. 157), que chama atenção para o fato de a elisão também ser denominada, na literatura especializada, de “sinalefa”. É exatamente este o termo utilizado por Cunha (1961, p. 15), para quem, no entanto, o processo era definido como sendo do domínio estilístico da construção poética, não sendo necessária a queda da vogal, mas apenas a realização das duas vogais envolvidas em uma mesma emissão de voz.

Conforme pode ser notado a partir da figura 8, na notação musical, a ocorrência de apenas uma nota para a realização das duas sílabas (a final da primeira palavra e a inicial da palavra seguinte) dá pistas da realização do processo de elisão. Os casos focalizados na figura 8 são os seguintes: noit’e dia = noite + e; senpr’estás = senpre + estás (que se repete na segunda estrofe); d’alto = de + alto.

A observação da notação musical pode trazer contribuições significativas também à determinação da pauta prosódica de palavras específicas, dando pistas da sua realização na performance oral da cantiga. Logo no primeiro verso do refrão (figura 9), aparece o nome próprio Jesse, que corresponde ao atual Jessé, cuja etimologia, segundo Obata (1986, p. 178) remonta ao hebraico Ishair ou Yishay, significando “rico” (em vários sentidos), com realização fonética de oxítona, ou seja, com a proeminência prosódica principal (acento) na última sílaba. Contrariamente, os glossários construídos a partir das CSM consideram esse nome como paroxítono. Por exemplo, o rimário de Betti (1997, p. 176) considera o nome Jesse como paroxítono, justamente por sua rima com soubesse, ouvesse e dissesse. Por sua vez, Metmann (1972, p. 166) define Jesse como “Jessé (o pai de David)”, o que mostra que, embora também considere a sua realização fonética como paroxítona, baseado nas rimas da CSM20, tem como referência a forma atual desse nome, que é oxítona.



Figura 9. CSM20: notação musical: linha 1. Fonte: Anglés (1943, p. 28).



A observação da notação musical, neste caso, mostra que a linha melódica correspondente a esse nome no refrão observa o padrão que também se sobrepõe às palavras que com ele rimam: soubesse, ouvesse e dissesse. Nos quatro casos, a relação de duração entre a tônica e a postônica se inverte, sendo que à tônica corresponde apenas uma nota, enquanto que à átona final correspondem duas, cuja duração somada é o dobro da da nota que dá suporte à sílaba acentuada. Tal fato pode levar à hipótese de que, mesmo que o nome fosse já realizado como oxítono naquela época, as diferenças de tonicidade entre as duas sílabas (e também entre as duas sílabas finais de soubesse, ouvesse e dissesse) poderiam ser diluídas estilisticamente pela estrutura melódica, em que a maior duração da sílaba final torna-a musicalmente mais proeminente do que a própria tônica linguística, que ocupa a posição de proeminência musical.

Porém o caso mais interessante para o qual a observação da notação musical pode contribuir, no caso da performance oral da CSM20, é o que está retratado na figura 10, que traz a letra correspondente à linha melódica inicial da sexta linha da edição de Anglés (1943, p. 28). O que essa figura mostra é que, relativamente ao oitavo verso da última estrofe, “Poren m’acomendo”, há uma sílaba a mais do que postula a estrutura de Mettmann (1986, p. 109): A4 A4 B6 A4 A4 B6 / c5 d5 c5 d5 d4 d4 b6 d4 d4 b6. Em outras palavras, nessa posição da estrofe deveria aparecer um verso de quatro sílabas, enquanto o verso considerado tem cinco, desconsiderando a átona final: Po/ren/ m’a/co/men/do. É esta a lição que aparece em To20 e E20; em T20, aparece um ditongo entre mi e a primeira vogal de acomendo, fato que não afeta a quantidade de sílabas por verso, que continua a ser cinco. Este fato faz com que seja difícil a acomodação deste verso à linha melódica proposta, como mostra a figura 10. Neste caso, a própria notação musical traz a solução, uma vez que, entre as variantes encontradas por Anglés nos três manuscritos considerados para a sua edição, há a possibilidade de desdobramento em duas notas da que corresponde à sílaba final das palavras quando, guardando e contendendo. Desta forma, a nota final atribuída à última sílaba de acomendo poderia ser subdividida, acolhendo as sílabas men-do.


Figura 10. CSM20: notação musical: linha 6. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



CONSIDERAÇÕES FINAIS


A análise da CSM20 desenvolvida neste artigo objetivou investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, para além da estrutura métrico-poética, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar uma possível performance poética e musical dos trovadores daquela época. A partir da consideração das estruturas métricas, no nível linguístico e poético, e rítmicas e melódicas, no nível musical, foi possível construir hipóteses quanto a possíveis utilizações estilísticas, com finalidades de construção de versos a serem cantados, da relação entre proeminências rítmicas linguísticas e musicais, da silabação e de processos fonológicos a ela relacionados (elisão), do padrão acentual de um nome próprio específico, das rimas e da acomodação de versos não isométricos à melodia padrão das estrofes. Nesses casos, as hipóteses foram construídas a partir da consideração dos três níveis de organização rítmico-melódica envolvidos na construção de uma cantiga, língua, poesia metrificada e canção, com o objetivo de tentar “escutar” o atualmente inaudível, ou seja, a voz do poeta-trovador, cantando sua própria cantiga, aos nossos ouvidos futuramente longínquos, mas ainda ávidos.


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[Recebido: 26 fev. 2020 – Aceito: 24 mai. 2020]










VARIABILIDAD MÉTRICO-MELÓDICO EN LOS VERSUS DEL MANUSCRITO PARIS BNF. LAT. 1139

METRIC AND MELODIC VARIABILITY IN

THE VERSUS OF PARIS BNF. LAT. 1139



Adriana Camprubí Vinyals99

Resumen: Los versus del manuscrito Paris, BnF, lat. 1139 ofrecen un magnífico campo de estudio para el análisis de las formas métricas desarrolladas en territorio aquitano a finales del siglo XI. El concepto de 'nueva canción', ampliamente estudiado por Wulf Arlt y más recientemente por Margaret Switten, James Grier o Andreas Haug, designa una nueva cualidad estructural de los versus identificable a través de sus estructuras métricas y melódicas. El presente estudio tiene por objetivo un estudio sistemático y exhaustivo de sus estructuras internas con el objetivo de demostrar de qué manera dichas composiciones se encuentran en un estadio de experimentación formal testimonio del ingenio poético de sus compositores. Será a través del concepto de variabilidad (y no irregularidad) a partir del cual podemos ver de qué manera su elaboración sigue unos procesos compositivos conscientes que dejan entrever el uso de patrones fijos que marcan los primeros pasos hacia nuevas formas poéticas que definirán la futura lírica medieval. Los planteamientos formales de la nova cantica incorporan nuevas tecnologías de versificación que emergen en un momento de búsqueda de la expresión individual. Los versus devienen una especie de laboratorio métrico y melódico, el termómetro de los avances de la 'nueva canción'.



PALABRAS CLAVE: variabilidad; métrica; versus; lírica latina; Saint Martial de Limoges.



ABSTRACT: The versus we find in the Paris, BnF, lat. 1139 (SM1) manuscript provide a fantastic means for studying the metrical forms developed in Aquitania at the end of the eleventh century. The concept of the ‘new song’, studied in great detail by Wulf Arlt and more recently by Margaret Switten, James Grier and Andreas Haug, designates a new kind of structure in the versus which can be identified through its metrical and melodic structures. This paper offers a systematic and exhaustive analysis of these internal structures in order to reveal how these compositions engage in formal experimentation. This in turn gives us an insight into the poetic ingenuity of eleventh-century composers. The notion of variability (and not irregularity) enables us to see how composition involved a range of conscious processes that can uncover the fixed patterns which marked the first steps towards the new poetic formulae that would define future medieval lyric. The formal features of the nova cantica use new methods for versification and these emerge from a moment when individual expression was becoming more and more sought after. The versus become a kind of metrical and melodic laboratory, a thermometer that shows us how the nova cantica came to be.

KEYWORDS: variability; metric; versus; Latin Poetry; Saint Martial de Limoges.

El corpus lírico del manuscrito lat. 1139 (SM1100) presenta unas peculiaridades únicas para el estudio de la evolución de las formas métrico-poéticas, monofónicas y polifónicas, producidas durante los siglos XI y XII en territorio aquitano.

De todos los manuscritos conservados en la abadía de Saint-Martial de Limoges, SM1 se caracteriza por ser un punto de referencia clave para el estudio de las nuevas formas poéticas de la nova cantica así como un elemento de unión con la lírica profana de los trovadores occitanos. Como señala Chailley (1960, p. 109), SM1 "(...) forme un monument d'une valeur capitale pour l'étude de la transformation des genres semi-liturgiques et la naissance des genres musico-littéraires religieux ou profanes". De hecho, las relaciones entre la lírica latina de SM1 y la lírica trovadoresca se acentúan en la medida que encontramos versus escritos en occitano y composiciones de temática amorosa que nos recuerdan a las futuras cansos trovadorescas con las que comparten unos mismos códigos poéticos.

Como es sabido, la definición que hace del concepto 'nueva canción' el musicólogo Arlt (1986, p. 4 y 1992, p. 26-52101) pone de manifiesto una de las características fundamentales para entender la producción poética de la 'escuela aquitana'. Por un lado, el termino Neues Lied hace referencia al nuevo repertorio litúrgico (versus, secuencias...) surgido durante los siglos XI y XII y, por el otro, al conjunto de sus nuevas cualidades estructurales. Entre ellas destaca un incremento de la regularidad en el cómputo silábico y una nueva percepción de la rima y del acento, reflejo de una creciente conciencia de la unidad estrófica lo que supone "a variety of experiments in artful strophic forms" (Arlt, 1984, p. 4) . La experimentación en la forma conlleva el desarrollo de nuevas estructuras métricas y el uso de unas melodías que se adaptan al nuevo sentido de la unidad estrófica.

La búsqueda consciente de una disposición métrica regular en los versus de SM1 refleja, a su vez, una nueva concepción melódica que, al igual que el sistema de rima, tiende a regularizar sus frases dotando a la composición de una mayor homogeneidad. Los esfuerzos por regularizar la unidad estrófica, la inclusión del refrán como elemento de cohesión poética o el entramado intermelódico de muchas de sus composiciones, son síntoma de un nuevo modo de entender los desarrollos poéticos.

La métrica en toda composición lírica (y en la Edad Media el concepto de lírica es sinónimo de dimensión oral) constituye el punto de unión entre el texto y la música (Rossell, 1991, p. 131-137). El profesor Antoni Rossell, a propósito de la dimensión oral en la (re)interpretación del Cantar del Mio Cid, contrapone el concepto de variabilidad al de irregularidad. Mientras que el último se encuentra sujeto al plano escrito y, por ello, está vinculado a la reproducción manuscrita (lo que podríamos llamar variantes textuales/melódicas), el primero, vinculado a la esfera oral, no solo implica normalidad en la transmisión de un texto sino que configura un sistema compositivo propio (Rossell, 2015). Esta premisa, básica para entender el sistema compositivo del repertorio épico, nos parece un punto de inicio interesante para abordar los análisis que siguen des de la perspectiva variable de sus formas métrico-melódicas.

El objetivo es comprobar cuál es la relación entre esta experimentación formal y el concepto de variabilidad. De qué manera, los ejemplos analizados responden (o no) a unos desarrollos métrico-melódicos 'débiles' como resultado de unas formas que se están acomodando en una tradición poética sin precedentes y que se encuentran, en definitiva, en una fase inicial de desarrollo. La elaboración de un análisis métrico-melódico desde la perspectiva variable de sus textos y melodías nos permitirá, también, plantear ciertas conjeturas acerca de la relación entre el plano escrito, la performance y la oralidad.

Así, un análisis profundo de estas composiciones es indispensable para entender cuál fue el uso de determinadas formas métricas en un momento clave para el florecimiento de la lírica europea. Los versus aquitanos, como probetas de ensayo para el desarrollo de lo que Switten (2007, p. 94) denomina 'new technology,' actúan como laboratorio poético de una lírica en desarrollo.



Nunc clericorum concio

El primer caso del que nos ocuparemos corresponde a lo que hemos denominado como 'composición con melodía de desarrollo variable' y se trata de la pieza con doble refrán Nunc clericorum concio conservada en los fol. 33v y posteriores de SM1. Sabemos que este versus era cantado durante el Ciclo de Navidad y que, con toda probabilidad, como sugiere su último verso, precedía la lectura de una 'lectio': Modo dicatur lectio.

Su contenido gira entorno a la Natividad desarrollando, a lo largo de sus versos, el concepto teológico de la Theotokos y la redención de las almas gracias al sufrimiento de Jesús en la cruz, ejemplificado en la última estrofa. Otro elemento textual es interesante para ubicar la pieza. Se trata del sintagma 'clericorum concio' presente en el propio incipit que sugiere, como apunta Switten (2007, p. 103), que esta pieza fue cantada en el seno de una comunidad monástica y que, con toda probabilidad, gozó de cierta popularidad. La permeabilidad que pudo tener su recepción entre los monasterios aquitanos tendrá mucho que ver, como veremos, con su naturaleza melódica.

Su estructura métrica presenta una forma simple que divide la estrofa en dos secciones irregulares enmarcadas por cada uno de los refranes (Gaudeat homo!):



I

Nunc clericorum concio

devota sit cum gaudio;

in tanto natalitio

nam summi Patri(s) filio

datur excelebratio;

Gaudeat homo!

Qui, carni(s) sumto pallio

virginis in palatio,

nostra fuit redemptio;

Gaudeat homo!



Ambas secciones son monorrimas, formadas por versos octosílabos proparoxítonos para a y pentasílabos paroxítonos para el refrán:



a a a a a B a a a B

8 8 8 8 8 4' 8 8 8 4'





La estructura métrica de la primera estrofa se repite a lo largo de toda la composición quedando abreviada en la estrofa III 'Hic restauravit gaudium' que reproduce solo la segunda sección de la estrofa (aaaB).

Respeto a la 'charpente métrique' de Nunc clericorum y su distribución entre estrofas y semi-estrofas, Chailley (1960, p. 134) ve en su disposición a las futuras tornadas de la lírica trovadoresca. De hecho, la inclusión de versos más cortos en una cadena de versos octosílabos ya fue utilizada por trovadores como Guilhem de Peitieu o Marcabrú. Sirva como ejemplo, sin ser por ello motivo alguno de relaciones intertextuales, la composición de Ben vuelh que sapchon li pluzor (BdT 183, 2) en la que de manera similar a nuestro versus aquitano, los versos octosílabos se alternan con versos tetrasílabos, estos, a diferencia del ejemplo latín, de rima masculina :



Ben vuelh que sapchon li pluzor

D'un vèrs, s'es de bona color

Qu'ieu au trach de bon obrador;

Qu'ieu pòrt d'aicel mester la flor,

Et es vertatz,

E puesc ne trait la vèrs auctor,

Quant èr laçatz.



El contenido melódico de Nunc clericorum concio presenta un grado de dificultad mayor en contraste con la sencillez de su estructura métrica. La melodía, copiada en cada una de las estrofas, muestra un desarrollo particular dando lugar a distintas variantes. Mientras que algunas de ellas sugieren un error de copia otras, como veremos, son fruto de un proceso de variabilidad melódica reflejo de la propia estrategia compositiva de la pieza. Reproducimos a continuación la transcripción de la primera estrofa con su correspondiente análisis con el objetivo de entrever la complejidad de su desarrollo melódico102:







Su estilo melódico combina el silábico con el melismático, presente este último en los finales de verso y en el refrán desarrollado de η, dando lugar a lo que Chailley denomina como 'estilo mixto'.

La complejidad de su esqueleto melódico, tal y como es presentado en el manuscrito, se puede observar en la siguiente tabla:






I

II

III

IV

V

VI








a

Α

α''

...

α''

α''

α''

a

α'

α'

...

α'

α'

α'

a

Β

β'

...

β

β

γ'''

a

Γ

γ'''

...

γ'

γ'''

γ''''

a

δ(γ)

γ''

...

δ'(γ)

γ''

γ''

B

Ε

ε

...

ε

ε

Ε

a

ζ(β)

θ(β)

β'

β

ι(β)

ι(β)

a

γ'

γ'''

γ'

γ'''

δ''

Δ

a

γ''

γ''

γ'

δ'

γ'

γ''

B

Η

ε

η

ε

ε

Ε





La cuestión de los refranes merece una atención especial. Como señala Switten (2007, p. xx), el copista muestra cierta despreocupación a la hora de reproducir los refranes copiando parcialmente el refrán ε para cada una de las estrofas a excepción de la variante melismática de η que es copiada para el último verso de la primera estrofa y para la segunda parte de la tercera. Todo apunta a que el orden natural de posicionamiento del refrán seria: R1= ε cantado después de los primeros 5 versos dejando a R2 = η para el final de cada estrofa. Debido a la poca precisión en su copia, nos preguntamos si el refrán de Nunc clericorum podría, en cierta manera, improvisarse en el momento de la performance intercambiando ε y η (y quien sabe si más opciones) de manera aleatoria en las distintas interpretaciones o si, simplemente, el copista no lo tuvo demasiado claro a la hora de reproducirlo.

Si disecamos escrupulosamente todas las variantes melódicas que el escriba traslada en el manuscrito, nos encontramos con las siguientes fórmulas103:











La línea melódica de α se repite en los dos primeros versos de cada estrofa con ciertas variaciones. La primera y única versión de α empieza con un salto de cuarta (sol-do) característico de muchos de los inicios del repertorio de SM1 mientras que el resto presenta un movimiento por grados continuos.

En todas la variantes, las primeras notas se dirigen hacia re seguidas por una pequeña secuencia melismática que coincide en las tres versiones en la quinta sílaba del verso. Coinciden también las notas posicionadas en la sexta y séptima posición mientras que la cadencia final es la misma para α y α'' mientras que α', manteniendo la distancia interválica, se transporta un quinta inferior empezando en si.

El caso de la relación entre β y β', como veremos más adelante sugiere un posible error de copia por parte del escriba. Ahora bien, el movimiento de ζ y ι, aunque parecido al de β, guardan suficientes diferencias (sobretodo respeto al ámbito melódico) como para ser consideradas frases melódicas independientes.

La melodía de γ es, sin duda, la que presenta más variabilidad a lo largo de toda la composición. Mientras que las tres primeras notas mantienen la relación de la-la-sol, el desarrollo medio del verso presenta notables variaciones en cada versión y las distintas cadencias finales son copiadas de manera diferente en todas ellas (mi-re-si / re-si-la / re-do-la / do-si-la).

La frase melódica de δ, a pesar de compartir rasgos con γ, podría ser considerada como una melodía independiente. De la misma manera, la última línea melódica es la de θ, que nos podría recordar a una variante de β.

Como podemos observar, aunque las notas cambien a lo largo de las distintas estrofas creando distintas variantes para cada frase, el movimiento melódico es muy parecido en todas ellas y las cadencias finales de cada verso responden a una misma dirección melódica.

De una manera general, podríamos decir que la estrofa I reproduce un mayor número de concordancias melódicas con la estrofa IV que con el resto. Lo mismo sucede con las estrofas V y VI que desarrollan la frase melódica de γ en todas sus posibles variantes dando muestra de la habilidad técnica del compositor introduciendo, a la vez, la variante de β correspondiente a ι que podría ser tratada, como hemos visto, como β''.

Si simplificamos el esquema melódico homogeneizando sus líneas melódicas, nos encontramos con la siguiente disposición:



v1

Α

v2

α

v3

β

v4

γ

v5

I-IV = δ // II-V-VI = γ

v6

ε

v7

β

v8

I-II-III-IV = γ // V-VI = δ

v9

γ // IV = δ

v10

η

Una vez entendida la estructura métrico-melódica de la composición, nos preguntamos cuál debería ser su correcta interpretación y de qué manera la variabilidad de su estructura melódica nos indica cual podría ser el estadio de transmisión de Nunc clericorum en el momento de su copia.

Como plantea Grier (1992, p. 375) en su estudio sobre la dimensión escrita y oral de la copia de los versaria aquitanos la cuestión acerca de la transmisión de sus composiciones enmarca cualquier hipótesis. ¿El escriba copia directamente de un ejemplar escrito o trabaja desde la dimensión oral de la composición que, supuestamente, sabía de memoria?

Nun clericorum concio no presenta variantes en otros manuscritos, lo cual hace que las conjeturas acerca del comportamiento del copista se acentúen haciendo aumentar su número de hipótesis. ¿En qué medida las variaciones melódicas responden a un error por parte del escriba o son fruto de un proceso de traslación oral en el manuscrito de lo que el escriba recordaba de la ejecución vocal? ¿Podemos interpretar las variaciones como un testimonio del substrato oral de la pieza? O lo que es lo mismo, ¿hasta qué punto el copista ha reflejado de manera directa sobre el manuscrito la variabilidad de su performance?

En algunos casos, resulta fácil pensar que el copista se pueda haber equivocado en la colocación exacta de la altura de algunas notas. Este es el ejemplo de la frase β' que, en el tercer verso de la segunda estrofa, presenta una diferencia de segunda ascendiente respeto a β. Pero, ¿qué ocurre cuando la variación es tal que modifica por completo el sentido de la melodía? ¿No es esta praxis reflejo del carácter móvil de estas melodías y, por lo tanto, síntoma de una variabilidad consciente sujeta a un proceso de transmisión oral ?

Como hemos visto a través del análisis de concordancias entre algunas de las notas centrales de la composición, tales repeticiones (que se reiteran a lo largo de todas las estrofas) aseguran no solamente unos puntos de referencia claves para el desarrollo melódico sino que muestran una clara voluntad de homogenizar la pieza y, por lo tanto, son testimonio de lo que entendemos que es una estrategia de composición deliberada.

En el caso particular que comentamos, nos preguntamos hasta qué punto los distintos procesos de variabilidad melódica de Nun clericorum concio podrían ser considerados (utilizando la terminología de Zumthor) como un caso de 'oralidad mixta' en el que la prevalencia de la memoria haya podido suplantar, al menos parcialmente, la referencia visual-escrita del manuscrito copiado y donde la 'voz' aun no se haya visto debilitada por el proceso de escritura.

Sea como sea, Nunc clericorum concio es testimonio del carácter dinámico del repertorio de SM1 en el que el escriba tuvo un papel de traslación primordial a la hora de entender el desarrollo de la composición tomando unas propias decisiones que fijarían por escrito su forma.



Gratuletur et letetur

El segundo caso que analizaremos es el del 'Benedicamus verse-trop104' Gratuletur et letetur copiado en el fol. 43v, vinculado métrica y textualmente al himno Iocundetur et letetur del Códice Calixtinus105. Esta pieza pertenece, también, a la categoría de 'composición con melodía de desarrollo variable':



I

Gratuletur

Et laetetur

Fidelium concio

Nato rege

Facto grege

Omnes uno gaudio

Psallat laetus

Noster coetus

In hoc natalitio

Sed cantantis

Et laetantis

Pura sit devotio



Su planteamiento métrico corresponde a la tipología del versus tripertitus caudatus (aabaab o aabccb y sus variantes), vinculado por De Alessi (1972, p. 93) a una variante del septenario trocaico compuesto por dísticos tetrasílabos separados por versos más largos, y presenta el siguiente esquema:





a a b c c b d d b e e b

3' 3' 7 3' 3' 7 3' 3' 7 3' 3' 7



En este caso, el encadenamiento métrico se ve alternado por versos cortos de 4 sílabas paroxítonas para a y versos más largos heptasilábicos proparoxítonos para b106.

A nivel melódico, Spanke (1931, p. 294) propone una forma básica en la que cada estrofa se divide en cuatro secciones de tres versos cada una, variables a lo largo de la composición:




a

a

B

C

c

B

d

d

b

e

e

B


3'

3'

7

3'

3'

7

3'

3'

7

3'

3'

7

I

Α



Α



β



β



II

Α



Α



β'



β'



III

Γ



Γ



δ



δ







El desglosamiento de cada una de estas secciones, da lugar a la siguiente estructura melódica:








I

II

III

a

α

α'

δ'

a

β

Β

ε

b

γ

Γ

γ

c

α

α'

δ'

c

β

Β

ε

b

γ

Γ

γ

d

δ

δ'

ζ

d

β'

ε

γ'

b

γ

γ

γ

e

δ

δ'

ζ

e

β'

ε

γ'

b

γ

γ

γ






La distribución melódica de la composición se unifica gracias a la función del verso b que actúa como 'verso-anclaje' y que repite, a lo largo de las tres estrofas, el mismo material melódico (γ) casi sin ninguna variación, constituyendo un punto de referencia fijo a lo largo de toda la composición:







La segunda estrofa reproduce parte del material melódico de la primera pero presenta ciertas variaciones. Por un lado, la línea melódica de δ se ve alterada por δ'. Y, por el otro, introduce la asimilación de nuevo material melódico para los versos 8 y 11 (ε) dando lugar al esquema final de δ'εγ.

Ahora bien, la característica más notoria de esta composición la encontramos en la tercera estrofa que empieza con la repetición de la segunda sección melódica de la segunda estrofa (δ'εγ):



Una posible explicación para esta variación podría corresponder a una confusión visual por parte del copista que habría copiado reiteradamente el mismo material melódico para la primera sección de la tercera estrofa dando lugar a uno de los casos más comunes de errores planteados por Grier (1992, p. 393 y ss.)a propósito de la copia del repertorio polifónico, esto es, la distribución incorrecta de la música sobre del texto.

No obstante, si asumimos que esta disposición no es fruto de un error en la copia sino de una disposición melódica consciente, podríamos llegar a plantear un distribución estrófica distinta dividida en subsecciones de 6 versos cada una:



I

II

III

I

II

III

IV

V

VI

Α

Δ

α'

δ'

δ'

ζ

Β

β'

β

ε

ε

γ'

Γ

Γ

γ

γ

γ

γ

Α

Δ

α'

δ'

δ'

ζ

Β

β'

β

ε

ε

γ'

Γ

Γ

γ

γ

γ

γ





La melodía se desarrolla a medida que avanza la composición introduciendo paulatinamente nuevas variaciones. La sección IV (correspondiente a la segunda parte de la segunda estrofa) supone un punto de inflexión para el ulterior desarrollo melódico de la composición. En la misma sección se incorpora nuevo material melódico para ε dando inicio al principal desarrollo variable de Gratuletur et letetur. La variabilidad se acentúa en la última estrofa introduciendo la nueva frase melódica de ζ para los versos 7 y 10 que solo comparte las notas de la cadencia final con la melodía de γ'. Como hemos visto en el caso anterior, la variabilidad se acentúa a medida que transcurre la composición.



Radix Jesse castitatis

El caso de Radix Jesse, conservado en el fol. 46r e introducido por la rubrica versus obtimus, presenta una distribución compleja con tendencia al heterostrofismo. Des de una perspectiva visual, el copista solo traza letras mayúsculas en los versos de Radix Jesse, Cujus in proeconia y Ergo per haec gaudia dando una indicación poco clara de su distribución interna:



Radix Jesse castitatis

lilium

Stella nova novum profert

radium

Rosa mitis et conculeans

lolium.



Exulatis,

Captivatis,

Morti datis

Mater natis

Dedit gratis



In te bravium.



Nova profert radium

Virgo Dei filium

Qui est salus omnium

Qui non habet initium,

In hoc venit exilium

Dare nobis consilium.



Cujus in praeconia

Intonet harmonia

Resonet symphonia



A Patre nato

Athanato

Athanato,

Athanato



De virgine Maria



Ergo per haec gaudia

Gaudet caeli curia

Gaudeat ecclesia

Vociferans prodigia

Per haec sacra solemnia

Patrem natum de filia.



Per haec sacra solemnia.



Siguiendo el análisis propuesto por Treitler (1992, p. 5-6), dicha pieza se dividiría en ocho secciones irregulares dotadas de un sentido textual claro. La primera sección constaría de tres versos endecasílabos monorrimos con cesura interna de tipo 4p + 7pp formados por dos secciones melódicas:





a

11 (3'+7)

α+β

a

11 (3'+7)

γ+δ

a

11 (3'+7)

γ+δ







De hecho, el propio sentido de la melodía sugiere una clara partición del verso en dos partes melódicamente diferenciadas. Después de la recitación sobre re en Radix Jesse, la melodía procede a un desarrollo melismático que da conclusión al verso:



Radix Jesse / castitatis lilium



La segunda sección estaría formada por 6 versos tetrasílabos p. y un último verso de cinco sílabas pp. La melodía de los versos 1, 2, 3 y 6 reproducen parcialmente la larga melodía de los versos de la primera estrofa e introduce para el cuarto verso la melodía ε que corresponde a una variante de la primera parte de δ:







El contenido textual es acompañado por la melodía que remarca el exilio, captura y muerte de Jesús (Exulatis, Captivatis, Mortidatis, Maternatis), episodios dramáticos que realzan su patetismo a través de la repetición melódica de material escuchado en la primera estrofa:



b

3'

β'

b

3'

γ

b

3'

γ

b

3'

ε

b

3'

ζ

c

5

δ'





Las secciones 3, 4 y 5 están formadas por estrofas de tres versos, heptasilábicos proparoxítonos para la 3 y 5 y octosilábicos proparoxítonos para la 4. Las tres secciones repiten para cada uno de sus versos el misma material melódico:









Sección 3:

c

7

η

c

7

η

c

7

η





Sección 4:



c

8

θ

c

8

θ

c

8

θ



Sección 5:



d

7

ι

d

7

ι'

d

7

ι'





La sexta sección reproduce un esquema parecido a la segunda sección repitiendo con algunas variaciones la melodía de la anterior e incorporando nuevo material para sus últimos dos versos. En esta estrofa se repite hasta tres veces la palabra Athanato que hace referencia a la inmortalidad de Jesús dejando sin copiar la melodía para su tercera repetición.





Sección VI:



e

4'

ι''

e

3'

ι''

e

3'

...

e

3'

κ

d

7

λ





Las últimas secciones repiten el esquema de las secciones 3 y 4 transportando una segunda descendiente la misma línea melódica:







Sección 7:



d

7

η' (transposición)

d

7

η' (transposición)

d

7

η' (transposición)



Sección 8:

d

8

θ

d

8

θ

d

8

θ

d

8

μ





De esta manera, y des de una perspectiva interestrófica, las distintas secciones se encuentran relacionadas a nivel métrico-melódico de la siguiente manera: la primera estrofa con la segunda, la tercera con la séptima, la cuarta con la quinta y la quinta con la sexta.

En este caso, contrariamente a lo que podríamos pensar, el carácter heteroestrófico que presenta Radix Jesse castitatis, es un claro ejemplo de una disposición premeditada, reflejo de una voluntad de estandarización de las formas estróficas.



O Maria, Deu maire

El versus occitano O Maria, Deu maire, copiado en el fol. 49r de nuestro manuscrito, constituye uno de los ejemplos más paradigmáticos para el estudio del uso de la lengua vulgar en el repertorio religioso de carácter paralitúrgico. Dicha peculiaridad, no solo aseguraba una mayor difusión de la composición sino que es reflejo del carácter permeable de su repertorio al unir en sus versos el elemento profano y el religioso. De hecho, numerosos estudios, entre los que destaca la publicación de Switten (1992), vinculan la melodía de O Maria, Deu maire al himno Ave maris stella y al alba religiosa Reis glorios de Guiraut de Bornelh.

El versus O Maria, Deu maire está compuesto por un total de 12 estrofas de cuatro versos hexasílabos cada una:



O Maria, Deu maire,

Deu(s) t'es e fils e paire:

Domna, preia per nos

to fil, lo glorios!

E lo pair aissamen

preia per tota jen,

e cel (l.s'el) no nos socor,

tornat nos es a plor.



Eva creet serpen:

una gel resplanden,

e so nos en vai gen,

Deus ne (h)om veramen.



Car (l.Quan?) de femna nasquet,

Deus la femma salvet

e pre quo nasquet hom

que garit en fos hom.



Eva, moler Adam,

quar (l. quan) creet lo setam,

nos mes en tal afan,

per qua vem set e fam.



Eva mot foleet

quar (l. quan) de queu frut miet (l. manjet)

qui Deus li devedet,

e cel que la creet.



E cel (l. s'el) no l'an crees

et deu fruit no manjes,

ja no murira hom

chi ames nostre Don.



Mas tan fora de gen

ch'an era garimen:

cil chi perdut seran

ja perre no feran.



Adam menjet lo fruit

per que som tuit perdut:

Adam no creet Deu;

a tot nos en vai greu.



Deus receubut per lui mort

e la crot a grant tort,

e resors al ter dia,

si cum o di[i] Maria.



Aut (l. Als) Apostols cumtet

e dis c'ap Deu parlet,

qu'eu (l. qu'el) poi de Galilea

viu lo verem angera.



Vida, qui mort aveis,

nos donet paradis!

Gloria aisamen

nos do (l. de) veramen!



Excepto las estrofas III, V y VI, que son monorrimas (aaaa), el resto presenta una rima pareada en aabb:



a a b b

6 6 6 6



La melodía, distribuida a lo largo de las estrofas en forma de oda continua (αβγδ), presenta cierta variación en la II estrofa. Véase la distribución de las frases melódicas en la siguiente tabla:





I

II

III, IV, VII, VIII, IX, X, XI, XII

V

VI

Α

γ

α'

α'

α'

Β

δ'

β'

β''

β'

Γ

γ

γ

γ'

γ'

Δ

δ'

δ

δ

δ

La melodía está sujeta a diferentes variaciones y repite consecutivamente las líneas melódicas para todos los verso de cada estrofa con excepción de las variantes α', β', γ' que modifican algunas de las notas de la melodía principal.

Es en la segunda estrofa (E lo pair aissamen) donde encontramos que el manuscrito repite el material melódico de la segunda parte de la primera dando como resultado el esquema γδ'γδ', caso parecido al que hemos visto en la anterior composición. Además, incorpora una ligera variación en la línea melódica de δ.

En su repertorio métrico, Spanke (1931, p. 296) sugiere que la copia de la melodía para la segunda estrofa sería fruto de un error por parte del escriba que repetiría el mismo material melódico que los dos últimos versos de la primera. Tal conjetura no carece de legitimidad puesto que para el resto de estrofas la estructura melódica permanece sin alteraciones. Ahora bien, si nos fijamos en el sentido del texto, parece que haya una clara división entre el contenido de la estrofa I y II respeto al resto de la composición. Mientras que las dos primeras estrofas, a modo de alabanza, se dirigen directamente a la Virgen, a partir de la tercera la narración se centra en el episodio de Eva y el pecado original perteneciente al Génesis, con un claro sentido propedéutico.

La variabilidad en este caso vincularía el contenido con la forma donde la repetición de las frases melódicas para la segunda estrofa tiene el objetivo de enfatizar la introducción del versus y dar un cierto sentido de conclusión mientras que el resto de estrofas, al narrar un episodio concreto, repiten una y otra vez la misma melodía.



Consideraciones finales

Las ediciones modernas tienden a regularizar las variantes presentes en los manuscritos considerándolas, en la mayor parte de los casos, errores en el proceso de copia. Así, por ejemplo, las interpretaciones contemporáneas de O Maria, Deu maire no siguen la variabilidad en la distribución de las frases melódicas para la segundo estrofa aceptando, por ello, que se trata de un error en el proceso de copia.

Sin embargo, como hemos planteado al inicio de nuestra exposición, la variabilidad en la lírica medieval supone normalidad en la transmisión y es reflejo de un sistema compositivo vivo y dinámico, como es el caso de parte del repertorio de lat. 1139.

Los ejemplos analizados en este estudio son reflejo de la profunda revolución que afecta a la forma y estilo de las composiciones de lat. 1139. En los cuatro casos, la noción de variabilidad se encuentra vinculada o bien a un desarrollo melódico complejo o a una disposición poco regular de las mismas frases melódicas.

Frente a la homogeneidad estructural que presenta la lírica trovadoresca que, por lo general (excepto la particularidad de los descorts), se compone de patrones estróficos regulares y de estructuras melódicas identificables, los ejemplos analizados parten de una notable independencia melódica respeto a la estructura métrica. Esta característica, aunque muy presente en el repertorio de lat. 1139, no es una norma. Baste con recordar el caso de la canción monofónica Plebs domini en la que los cuatro primeros versos presentan una rima interna alternada en abab 4pp + 3p, movimiento que es acompañado por la melodía en αβαβ. De esta manera, en la lírica occitana es habitual encontrar ciertas correspondencias entre ambos esquemas, la melodía de los versus de lat. 1139 no presenta ninguna relación con su esquema de rima.

Al observar los distintos elementos variables de las piezas se plantea la cuestión acerca del momento en el que estas composiciones se interpretaban. Un primer planteamiento nos llevaría a pensar que la variabilidad métrico-melódica es indicio del carácter móvil de la composición y que supone una rotura con cualquier parte fija de la liturgia, lo cual es un rasgo evidente en los versus aquitanos. Fácilmente se podría vincular la variabilidad métrico-melódica (y sobretodo melódica) de estas composiciones con un posible movimiento performático lo cual implicaría que fueron utilizadas como conductus acompañando procesiones. Ahora bien, sin tener pruebas certeras de esta evidencias, dejaremos en el aire dicha cuestión.

La flexibilidad en el contenido y la forma de estos versus es una de las características más notorias del repertorio de SM1. Como hemos planteado a lo largo del estudio, nos preguntamos qué vínculos existen entre la variabilidad métrico-melódico de estos casos y el propio sistema compositivo; si este parte de una voluntad consciente por parte del compositor o bien si la variabilidad es reflejo de la movilidad de la transmisión oral y, por ello, una elección 'natural' por parte del copista. Cualquiera de las combinaciones nos lleva a pensar que en los casos analizados, la variatio implica, sin lugar a dudas, renovatio.

Todas estas cuestiones tienen mucho que ver con la transmisión y copia de la sección más antigua de nuestro manuscrito. Como hemos anunciado al inicio del estudio, la variabilidad, confronta de manera evidente el plano escrito al oral.







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[Recebido: 06 jan. 2020 – Aceito: 26 abr. 2020]











SEÇÃO LIVRE



A OBSERVAÇÃO DE PRÁTICAS DE PERFORMANCE NO ENSINO DE LITERATURA EM TIMOR-LESTE: UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO NO PROGRAMA CAPES/PQLP



OBSERVATION OF PERFORMANCE PRACTICES IN LITERATURE TEACHING

IN EAST TIMOR: EXPERIENCE WORKING IN THE PROGRAMME CAPES/PQLP

Daniel Borges107

Resumo: O presente artigo consiste na apresentação da problemática decorrente de situações vividas no programa de cooperação internacional CAPES/PQLP, em 2014, em Timor-Leste. A problemática em questão advém da observação do conflito entre metodologias usadas no ensino de literatura no país. Busca-se afirmar a necessária relação entre caminhos metodológicos e questões contextuais de fundo (o quê, para quem, por que e quando) no momento de escolher uma abordagem para o ensino de literatura. Ainda, problematiza-se o ensino da literatura valorizando o vínculo incontestável entre a oralidade e a escrita, a partir de referencial teórico condizente com a concepção e o direcionamento da análise: a abordagem da voz no trabalho de Paul Zumthor. Busca-se assim trazer contribuições para o entendimento de especificidades relacionadas ao ensino de literatura e à escrita literária em Timor-Leste.

Palavras-chave: performance. oralidade. ensino de literatura. Timor-Leste

Abstract: This article presents the issues arising from the situations experienced in the CAPES/PQLP international cooperation program in Timor-Leste in 2014. The problem in question stems from the observation of the conflict between the methodologies used in the teaching of literature in the country. It seeks to affirm the necessary relationship between methodological pathways and substantive contextual questions (what, for whom, why and when) when choosing an approach to literature teaching. In addition, the teaching of literature poses a problem by valuing the indisputable link between orality and writing, based on a theoretical framework corresponding to the conception and direction of analysis: the approach to voice in Paul Zumthor works. It seeks to contribute to the understanding of the specificities related to the teaching of literature and literary writing in Timor-Leste.



Keywords: performance. orality. literature teaching. Timor-Leste



Introdução

As situações vividas em Timor-Leste como cooperante no programa de cooperação internacional CAPES/PQLP, em 2014, nos permitiram observar a formação do campo de ensino de Literatura e de Língua Portuguesa, na qualidade de professor destas disciplinas. Durante um ano de trabalho em Timor-Leste, pudemos entrar em contato com um quadro no qual se configura uma situação de tensão entre o planejamento institucional do ensino de literatura e a prática dos professores timorenses da disciplina de Estudos Literários, do curso de Letras da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL).

A situação observada mostrou que o atual planejamento do ensino de literatura no país tem como principal ponto de apoio e de investimento público os manuais de ensino de literatura Temas de Literatura e Cultura (RAMOS et al., 2012)⁠, distribuídos no ensino secundário, que se propõem a abordar e definir a literatura oral timorense em seus programas. Para atingir esse objetivo, os manuais excluem a diversidade cultural e linguística presente no país e também os contextos de produção e de recepção da literatura oral e da vocalidade108. A voz viva, tão importante nas performances109 orais das comunidades timorenses, têm sua importância diminuída em detrimento de uma concepção redutora de literatura oral.

Entretanto, a vocalidade é o centro de práticas de ensino de literatura de boa parte dos professores timorenses nos cursos de formação de professores e no Ensino Secundário Geral. Obrigados a ensinar a literatura em língua portuguesa, esses professores encorajam os alunos a traduzir e a escrever a literatura oral de seus municípios de origem e de suas famílias, e a performatizá-la nos cursos de literatura. Eles atribuem a essa literatura o mesmo nível de importância que à literatura escrita, e consideram que o efeito literário é o resultado das técnicas vocal e escrita, interação que solicita o texto, mas também o corpo e a voz em presença (Zumthor 1983; 1987)⁠.

Em relação a esta dupla configuração do ensino de literatura em Timor-Leste, pretende-se confrontar algumas concepções presentes nos manuais de ensino às práticas de ensino de professores timorenses. Para tanto, apresentaremos algumas particularidades das aulas destes professores, como o uso de literatura oral, e sua tradução estético literária como alternativa válida para o ensino de literatura, a despeito das concepções restritivas dos manuais.

1 - Primeiro olhar: a experiência como professor de literatura no PQLP/CAPES

A problemática em questão parte de uma experiência como docente em Timor-Leste no âmbito do Programa de Qualificação de Professores e de Ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste (PQLP)110. O programa brasileiro de cooperação internacional tem por objetivo específico o ensino da língua portuguesa111 e outras atividades ligadas à formação de professores provenientes de várias instituições timorenses de ensino. Foi no âmbito desta experiência profissional que se constituiu um primeiro contato com as práticas de ensino dos professores timorenses.

Na formação inicial e contínua dos professores, modalidade na qual trabalhamos, os professores timorenses ensinavam em companhia de professores estrangeiros, depois de terem preparado e discutido a metodologia e o material, numa prática dita de co-docência. Idealmente, o trabalho com os professores no curso de literatura fazia-se através do planeamento conjunto dos cursos, da didática da disciplina ensinada e da intervenção dos dois professores na sala de aula. Entretanto, por várias razões e em certos casos, os professores estrangeiros acabavam por assumir sozinhos a inteira responsabilidade dos cursos do professor timorense.

Desde o início dessa experiência de ensino, depois de um primeiro encontro com o co-docente para planejar um curso, percebemos que o colega timorense não tinha qualquer afinidade com os meus códigos de ensino e nem com as concepções ocidentais da literatura. Depois deste encontro com o professor, este desapareceu da universidade, e não tivemos mais notícias dele até ao fim do semestre.

Este primeiro contato deixou uma impressão muito negativa e até começamos a aceitar algumas opiniões de colegas portugueses e brasileiros que afirmavam que os professores timorenses não queriam aprender nada e ainda aproveitavam a mínima oportunidade para fugir do trabalho. Além disso, outro problema apareceu, ligado à metodologia do ensino da literatura: os cursos na universidade eram acompanhados com dificuldade pelos estudantes.

Os 24 anos de dominação indonésia em Timor-Leste112 criaram um ambiente de guerra que não favoreceu política de leitura alguma, pois, durante a guerra, as comunidades orais apresentaram uma tendência a se fecharem culturalmente sobre si mesmas. Ainda hoje, após 20 anos de democratização, o país sofre com a falta de bibliotecas, com políticas incipientes de leitura e com a parca de circulação de livros113. Tudo isso contribui para que a maioria dos estudantes tenham muita dificuldade para ler e parar formar um discurso sobre a literatura. Além disso, em minha situação inicial como professor, minha metododologia contemplava pouco os universos de referência dos estudantes e não apresentava nada que aproximasse a literatura de seus quotidianos.

Numa tentativa de resolver a situação, decidi examinar os manuais de ensino utilizados obrigatoriamente no ensino público para verificar a sua utilidade. Estes manuais seriam o material de trabalho obrigatório que os estudantes, enquanto futuros professores de literatura, teriam que utilizar em seus próprios cursos, no futuro. Depois de uma leitura atenta dos manuais e de trocas de ideias com alguns colegas professores a propósito de suas experiências, decidimos deixar de utilizá-los. A forma como os manuais apresentavam a literatura não era adequada à realidade cultural e linguística de Timor e esse material merecia uma revisão crítica sob uma perspectiva pós-colonial.

Em Timor-Leste e entre os povos da Melanésia114, a literatura oral funciona dentro de importantes dinâmicas identitárias e sociais. Ela se pluraliza em redes de narração oral que datam de milhares de anos. Essa oralidade se fortaleceu bastante durante os 24 anos de resistência aos invasores indonésios e que terminou após a restauração da independência do país, em 2002. Isso porque a narração oral foi duplamente preponderante. Primeiramente, foi um dos meios que os guerrilheiros timorenses privilegiaram para se comunicar sem ser percebidos pelas forças invasoras. Em segundo lugar, como os narradores tradicionais sempre foram autoridades respeitadíssimas em toda parte de Timor-Leste115, foi um modo eficiente de manter a coesão cultural que levou à autodeterminação dos timorenses enquanto povo.

Em contraste com este contexto, os manuais de ensino de literatura mais recentes preconizam outras formas de estruturar sua proposta de ensino: baseiam-se na apresentação de identidades fixas, lusófonas116 e dadas a priori, e ignoram as dinâmicas de identificação culturais existentes no país. A proposta contida nos manuais contribui para a constituição de uma hierarquia identitária, baseada na destituição dos objetos culturais timorenses do estatuto de arte e na sobreposição de uma identidade fixa da lusofonia117.

Um dos modos de hierarquização de objetos culturais é a adoção de categorias estéticas específicas empregadas nos manuais. Um exemplo é a adoção das classificações Jolles (1972)⁠, autor de Formas simples, e de seu entendimento de que literatura oral não é arte e não é dotada de autonomia artística. Jolles analisa a narração oral a partir de gêneros escritos e emprega uma concepção hegeliana baseada no modelo forma-matéria. As consequências são que, se por um lado os manuais simplificam excessivamente a literatura oral timorense, classificando-a como formas simples e definindo-a em relação ao texto escrito; por outro lado eles não levam em conta a performance e o contexto cultural para a constituição da literatura oral enquanto obra.

O problemas metodológicos presentes nos manuais de ensino eram conhecidos pelos professores de literatura da cooperação internacional brasileira. Após algumas discussões com professores da cooperação sobre que metodologia empregar, foi aconselhado trabalhar a literatura a partir dos textos orais trazidos pelos estudantes. Assim, propomos aos estudantes que escrevessem textos que considerassem literatura. Juntos, procuramos seguir os movimentos narrativos destes textos, compostos pela literatura oral contada entre as famílias dos estudantes.

O material recolhido nas aulas nos permitiu construir planos de aula focados na análise narratológica e da ideia de efeito literário em performance. A execução dos planos de aula conduziu a discussões sobre hipóteses de leitura com os estudantes, relacionando a literatura oral timorense a práticas culturais timorenses e comparando-a a outras literaturas orais, como a literatura do povo Munduruku, do Brasil. Também conseguimos ler durante o semestre alguns textos teóricos em torno da questão dos Direitos Humanos, como “O direito à literatura”, do crítico literário brasileiro Antonio Candido (1995)⁠. A questão principal que nos orientou foi a de como analisar uma narrativa timorense sem cair numa atitude puramente neocolonialista.

No final do semestre, ao discutir com um professor do departamento sobre práticas de ensino da literatura, surgiu o assunto do co-docente timorense que havia desaparecido. O colega nos disse que o co-docente estava dando aulas na aldeia de Aileu, um município timorense, e que, na realidade, tinha desaparecido por medo dos chamados “professores internacionais”, afinal, ele não falava português segundo a norma padrão e não conhecia os modos de ensino que lhe eram propostos pelas cooperações de ensino. Após essa conversa, conseguimos realizar uma entrevista com o co-docente que havia desaparecido, o que mudou totalmente nossa primeira opinião sobre ele (e sobre os outros professores timorenses).

Durante a entrevista, tivemos acesso a outra realidade, paralela ao mundo das cooperações internacionais e das estruturações oficiais do programa de literatura e que mostrava uma outra vida dos objetos literários em Timor-Leste. O co-docente contou-nos que existem, entre os professores timorenses, práticas consolidadas de ensino da literatura que utilizam a performance da literatura oral como literatura.

Segundo ele, os professores pedem aos estudantes que busquem narrativas orais nas aldeias e que as traduzam em português para serem performatizadas na sala de aula. As performances completam-se com a circulação de manuais alternativos (não oficiais) elaborados pelos professores timorenses que, tendo conseguido fazer cursos de mestrado e doutoramento em Portugal ou no Brasil, e dedicado as suas pesquisas à literatura oral timorense, partilhavam os seus trabalhos com os seus colegas. O co-docente falou-nos também sobre a publicação e circulação de antologias dos textos apresentados pelos estudantes. Segundo ele, nenhuma destas práticas foram reconhecidas como válidas por aqueles que planejaram e elaboraram os manuais de literatura postos em circulação pelo governo a partir de 2012.

Depois desta entrevista, pudemos realmente acompanhar o co-docente nas suas aulas de literatura, mas na qualidade de observador. Com base nesta experiência, encontramo-nos posteriormente com todos os professores de literatura das duas universidades118 - a Unital e a Untl - que o co-docente tinha indicado como referências para o ensino da literatura. Os outros professores relataram seus pontos de vista sobre a construção do programa de ensino da literatura em Timor-Leste, e sobre a origem dos manuais de ensino Temas de Literatura e Cultura e das exclusões de que são alvo. Segundo os professores entrevistados, na elaboração destes manuais, as equipes de elaboração demonstraram um desprezo total para com eles e para com os pesquisadores timorenses119.



2 - Olhar qualificado: elaboração de uma problemática

Com base nas observações «de terreno» e depois de deixarmos Timor Leste, sintetizamos uma problemática de pesquisa que decorre da injunção ocasionada pelo estabelecimento de normas no campo literário neste país. A importância das maneiras de abordar a literatura oral dos professores timorenses não é tão insignificante se tivermos em conta que a integração da literatura oral com o escrito no processo de ensino já foi sublinhada nos trabalhos de Goody (1978)⁠, Havelock (1986, 1995)⁠, Edwards e Sienkewicz (1990)⁠ Reyzábal (1999)⁠, como aponta ⁠Fernandes (2007)⁠. Além disso, como os professores timorenses, todos estes investigadores sublinham a autonomia técnica da literatura oral em relação à literatura escrita. Os Estudos Culturais propuseram também, a partir dos anos 1980, compreender o texto como um objeto cultural de um determinado contexto, o que mostra que os recursos de contextualização da literatura oral implementados por esses professores não são uma anormalidade nos estudos literários.

A forma como os professores timorenses fazem funcionar a literatura oral mostra que a consideração da vocalidade na produção literária exige um modelo epistemológico específico. Em vez de uma dualidade forma-matéria, a performance de literatura oral mostra antes uma conexão entre técnicas que nos remete ao papel da voz e da literatura oral na sociedade timorense.

Definimos técnica a partir do pensamento da individuação de Gilbert Simondon (2012)⁠. Uma técnica consiste no modo material de captar as particularidades expressivas de um meio, com o objetivo de individuar um ser e torná-lo visível. A gama do que pode ser considerado como “ser” é infinita: ideias, identidades, seres vivos, conceitos, etc. A observação de várias performances de literatura oral dos alunos timorenses mostra um uso da literatura segundo o qual tanto a técnica oral como a técnica escrita são utilizadas para individuar (produzir) novas identidades.

Analisando as performances dos textos que os alunos timorenses trouxeram nas aulas de literatura, a pedido dos professores (cerca de 250 textos), notamos que alunos têm uma predileção por narrativas de totem, que definem as particularidades de cada indivíduo e de cada família. Assim 70% desses textos remetem à interação de mundos humanos com mundos animais, vegetais.

Por exemplo, a narrativa Bui-Laho (do tetum, menina-rata) conta a história de como uma mãe humana adota uma ratinha perdida na mata. Após esse evento, a rata incorpora a genealogia da família à qual pertence a história. Cria-se um tabu de interdição segundo o qual os integrantes da família são proibidos de fazer mal aos ratos. Entretanto, as virtudes dessa família no que consiste à reprodução e à agricultura são reputadas à parte rato de sua genealogia.

Segundo Philipe Descola (2015)120⁠, nas sociedades totemistas, plantas e animais recebem atributos antropomórficos, como a intencionalidade, a subjetividade, as afeições, ou mesmo a palavra em certas circunstâncias, ao mesmo tempo que características propriamente sociais: a hierarquia dos estatutos, comportamentos baseados no respeito das regras de parentesco ou de códigos éticos, a atividade ritual, etc.

Nas narrações totem dos alunos, a relação entre humanos e não-humanos define os sujeitos de um determinado grupo social, normalmente uma família. O indivíduo se compõe identitariamente com121 um animal ou uma planta, e ambos são considerados como tendo elementos físicos e de interioridade idênticos: é considerado capaz de falar na língua do animal, e de incorporar certos atributos, como a velocidade e a capacidade de defesa. Não existe uma desproporção de importância existencial entre as duas espécies.

No curso de literatura dos professores timorenses existe uma enorme diversidade étnica, e os alunos consideram-se, na maior parte das vezes, através destas identidades étnicas. Assim, as narrativas do totem captam relações que compõem cada família e cada indivíduo, e tornam essas relações visíveis. Esta expressividade é narrativa, porque a narração totem depende de uma narrativa, mas também está presente, porque se completa com os sinais visíveis na performance: gestos, entonações, vozes e aparências.

Cada aluno conta sua história à classe, e a performance é comentada pelo público. Alunos e professores explicam o efeito literário destas performances e os comparam com notícias ou romances da literatura escrita. Os comentários incidem também sobre as famílias designadas pelos totens e sobre a importância destas narrativas para conhecer a cultura timorense e a identidade.

O modo como estas performances abordam as categorias de identidade e de cultura é bastante intensivo, no sentido em que é a partir do específico e do diverso que definem identidade e cultura, e não a partir de uma norma cultural já estabelecida, extensiva. As performances orais são utilizadas como técnicas que captam as particularidades expressivas do corpo, da voz e das narrações, e individuam pensamentos, sensações, identidades, etc. A função das narrativas nestas performances é tornar visíveis os novos padrões da cultura e as novas identidades no curso da literatura.

Estes modos de fazer funcionar a literatura oral não são arbitrários : seguem os usos da voz nas sociedades timorenses. O totemismo é um modo de identificação bastante comum em Timor-Leste, e pode ser classificado em categorias genealógicas que mostram de que relações os indivíduos se compõem: a expressividade dos indivíduos nunca é dada em si mesma, mas composta pelas relações que mantêm com outras famílias e também pelas relações que mantêm com comunidades de seres não humanos. É através destas relações que as suas identidades são vistas, ouvidas e tornadas expressivas umas perante as outras, em situações de desempenho.

Bovensiepen e Rosa (2016)⁠ explicam como a incorporação do Outro122 em Timor-Leste revela um mecanismo em que as culturas se reequilibram nos encontros históricos, incorporando o ponto de vista do Outro na sua própria cultura. Isto leva à transformação da cultura, considerando a presença do Outro no seu território como parte dessa cultura. Nesta dinâmica, as narrativas orais do totem têm o papel de tornar visíveis os atributos de cada um para que o Outro possa incorporá-los.

Os investigadores sublinham também que, se o Outro, enquanto não-humano, é tão desejado nestas culturas, é porque no modo de conceber a pessoa em Timor-Leste não há identidades fixas e pensadas como essências impermeáveis. Os indivíduos são sempre constituídos (indivíduos) em relação ao Outro. Isto faz do Outro um ponto de chegada no processo de individuação da pessoa.

A performance de literatura oral, com a narrativa como forma de evidenciar novas identidades não é uma aberração enquanto objeto literário. Sauvagnargues (2005) ⁠identifica a função artística de tornar visíveis novas forças na literatura em geral e na arte contemporânea. Esta maneira de pensar a literatura é também inerente à literatura escrita e seu uso se configura exatamente no que autores como Butler (2003)⁠ e Schechner (2003)⁠ definem como performatividade: a encenação de novas identidades no plano social a partir de um ato sobre uma norma instituída. ⁠

Estes autores mostram também que, sob certos pontos de vista, tal como a literatura oral, a literatura escrita é dotada de performatividade, e o seu efeito resulta do confronto entre várias técnicas heterogêneas, sem hierarquia de importância entre técnicas. Nos trabalhos dos artistas contemporâneos é comum a experimentação com novas técnicas e novos materiais. O mesmo se aplica aos trabalhos dos etnólogos, que devem ser capazes de captar e traduzir estas novas formas de existência através das suas investigações compostas por várias técnicas (orais e escritas) de modo a individuar os saberes que alargam a ideia de humano.

Por outro lado, as obras literárias escritas são compostos de linguagem escrita que captam peculiaridades expressivas dessa mesma linguagem e da narrativa, e a arte em geral, consiste em tornar expressivas particularidades dos diversos materiais para individuar também pensamentos, sensações, identidades, etc. Enquanto a literatura escrita é técnica escrita mais narrativa, a literatura oral se compõe de voz, gestos, contexto e ambiente mais narrativa, e ambas são processos artísticos de criação.

Nesse sentido, as maneiras de fazer funcionar a literatura oral nos cursos observados em Timor-Leste implementam uma perspectiva técnica que torna inutilizável qualquer ideia baseada em uma dependência da literatura oral em relação à literatura escrita.



Considerações finais

A performance de literatura oral praticada pelos professores é uma modalidade artística e, como tal, dotada de performatividade e de técnica. Sua dinâmica de produção e de recepção está ligada diretamente ao uso da voz e aos sistemas de individuação e de produções culturais timorenses. Ao mesmo tempo, as performance de literatura oral em questão têm características estéticas suficientemente consistentes par invalidar a desvalorização da literatura oral feita nos Manuais Temas de Literatura e Cultura.

Mas é preciso considerar que, para o caso em questão, não se trata de uma problemática no sentido de um sistema dialético, onde o termo negativo (os professores timorenses) é despojado de qualidades expressivas no sistema de ensino de literatura. Valorizar a performance de literatura oral por suas particularidades intrínsecas é só metade do trabalho. A outra metade consiste na consideração do sistema de ensino a partir do ponto de vista dos professores timorenses, trabalho que ainda está por ser feito e que mostra o papel político que a literatura pode assumir.

Além disso, a questão do efeito ocasionado pela imposição de uma norma no sistema literário deve ser redobrada por outra questão: «Qual é o efeito no sistema de ensino quando as práticas dos professores para a aprendizagem da literatura são consideradas elementos ativos e com um poder de modificação sobre este sistema? ». Isto significa confrontar o efeito normativo dos manuais Temas de Literatura e Cultura com o efeito das práticas reais de ensino da literatura, feitas pelos professores timorenses e estruturar um sistema que considere a performance de literatura oral como uma arte, com todas as suas implicações estéticas. Deixo esta proposta para pesquisas futuras.











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A REPRESENTAÇÃO DO BOI EM UMA ESTÓRIA DE AMOR, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA


THE REPRESENTATION OF THE OX IN UMA ESTÓRIA DE AMOR, BY JOÃO GUIMARÃES ROSA



Maria Viana Schtine Pereira123

Resumo: Por meio deste ensaio, pretende-se demonstrar como o escritor João Guimarães Rosa dá voz ao contador de estórias seu Camilo, personagem da novela “Uma estória de amor”, do ciclo Corpo de Baile. Nesse sentido, estabelecerei relações entre as anotações e as imagens encontradas nos diários de viagem do escritor, com destaque para a presença do boi na cultura popular brasileira, para verificar em que medida pode-se estabelecer uma relação entre esse animal e a própria linguagem. Nesse percurso analítico, dialogarei com ideias de Derrida, apresentadas na obra A Farmácia de Platão, e conceitos sobre a memória, retomados por Paul Ricoeur do pensamento aristotélico.


Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Corpo de Baile, boi, oralidade, memória.



Abstract: With this essay, we intend to demonstrate how the writer João Guimarães Rosa gives voice to the storyteller Seu Camilo, a character in the novel “Uma Estória de Amor”, from the Corpo de Baile cycle. In this sense, I establish relations between notes and images shown in the writer's travel diaries, with an emphasis on his presence in Brazilian popular culture, to see if the measure can establish a relationship between this animal and the language itself. In this analytical path, you can dialogue with Derrida's ideas, examine in Plato's Pharmacy and concepts about memory, adopted by Paul Ricoeur, of Aristotelian thought.

Keywords: João Guimarães Rosa, Corpo de Baile, ox, orality, memory.


Introdução


A grandeza do alcance da obra do escritor brasileiro João Guimarães Rosa deve-se, sobretudo, ao apurado trabalho com a linguagem. Movido pelo desejo de registrar palavras, expressões e o modo de vida dos vagueiros, o escritor realiza uma viagem pelo sertão de Minas Gerais, em maio de 1952.

Certamente grande parte do conteúdo das cadernetas intituladas “A boiada 1” e “A boiada 2” foi usada na tessitura de “Uma estória de amor”. Matéria ruminada até tomar a forma estabelecida na novela que faz parte do ciclo Corpo de Baile, conjunto composto por sete histórias, publicado em 1956, mesmo ano em que veio a lume a obra mais conhecida do escritor, Grande Sertão: Veredas.

Em carta endereçada a seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa declara: “Uma estória de amor” trata das “estórias”, sua origem, seu poder. Os contos folclóricos como encerrando verdades sob forma de parábolas ou símbolos, e realmente contendo uma ‘revelação’. O papel quase sacerdotal dos contadores de estórias”. (ROSA, BIZARRI, 2003, p. 91)

Nessas anotações são recorrentes transcrições não apenas de trechos de falas dos vaqueiros, mas também listas de palavras a serem usadas nas obras, quadras populares, provérbios; bem como informações a respeito da vida dos moradores da região, que inspiraram a criação de várias personagens, inclusive o contador de estórias, seu Camilo.

O enredo de qualquer narrativa ficcional se constitui a partir de variados temas, dos mais banais aos mais complexos. Todavia, “O verdadeiro tema de uma obra não é o assunto tratado, assunto consciente e desejado, que se confunde com o que as palavras designam, mas os temas inconscientes, os arquétipos involuntários em que as palavras, e também as cores e os sons tomam seu sentido.” (BRUNEL, PICHOIS e ROUSSEAU, 1990, p. 121).

É sabido que João Guimarães Rosa tomava notas compulsivamente e disse que o fazia por que “às vezes você tem uma ideia muito bonita, mas ela não se repete.” (SCHMIDT, A. F., 2006). O volumoso acervo, com cerca de vinte mil documentos, entre cadernos, cartas, documentos pessoais, projetos de livros e recortes de artigos de jornais e revistas, colecionados e guardados pelo próprio escritor, atualmente arquivados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, são prova cabal disso.

Ao visitar esse acervo, durante o mês de julho de 2019, tive a oportunidade de ler os 35 manuscritos, composto por cadernos e cadernetas do escritor. Durante essa investigação, constatei o que vários pesquisadores já ressaltaram: a predileção de Rosa pela catalogação e pelas listas. Por exemplo, o caderno de número 1, apresenta as seguintes informações na capa: De março a dezembro. Aluno: J. Guimarães Rosa. Classe animais. Nela encontram-se informações sobre onças, aves, borboletas e outros bichos. Entretanto, o fato que mais surpreendeu-me durante a leitura desses documentos foi notar que o boi é tema recorrente em vários cadernos e não apenas nas supracitadas cadernetas 6 e 7, de 1952, que, posteriormente, foram datilografadas, com inclusão de muitos dados (e supressão de outros) para compor os arquivos A boiada 1 e A boiada 2, editados em 2011, sob o título A boiada.

Já nas anotações referentes às viagens feitas a Alsácia e Lorena, Borgonha e Rouen, realizadas em 1950124, há uma reprodução a lápis do rosto de um boi, copiado com cuidado pelo escritor de um brasão, acompanhada de anotações, como cotas em uma figura, com as seguintes informações: “Fundo amarelo, cara mais alongada”.

Durante a viagem à Itália (Milão, Veneza e Florença)125 Rosa faz um desenho a partir da obra Touro nos Alpes, de Eugène Burnand, de 1884, e escreve na marginália: “Grande quadro, vale brumoso”, e sob ele inclui a legenda: “Touro malhado e marrom. A luz o colhe e apresenta em plena imponência. Baba, bufa e muge para as montanhas. Touro com muito movimento.”

Algumas páginas adiante, na mesma caderneta, mais um desenho, agora retratando a obra O camponês, também de Eugène Burnand, de 1894. Com os seguintes dizeres: “O homem vem, chicote na mão, à frente de uma junta de bois vermelhos, de caras e pernas brancas, bois de orelhas peludas, como um gato persa. Expressão felina. Patas em movimento.”

O procedimento continua na caderneta 3126, com registro da passagem por Roma, que inspira o escritor a desenhar esculturas de bois e um bezerro mamando. Sob a reprodução da obra O rapto de Europa, escreve: “Muito belo! Touro = grinaldas nos chifres, lambe o pé esquerdo de Europa. Belo céu, com nuvens mais nesgas de verde-azul”.

Há também a descrição de um retábulo, apreciado pelo escritor em alguma igreja de Florença. Sobre essa obra anota: “Boi e burro destacados. Boi castanho, burro pardo. O boi (quase que) apoia o queixo na mão de São José. A curva da cara do burro acompanha a do chifre do boi.”

Além disso, em carta destinada ao amigo João Condé, Rosa explica que: “Uma história de amor” (título grafado com h na carta), era um belo tema que não conseguira desenvolver razoavelmente quando da publicação de Sagarana, em 1946. A narrativa foi, então, retirada da antologia e desenvolvida posteriormente, depois da viagem realizada em 1952.127

Fico só nesses exemplos, para não ser exaustiva. Fato é que Rosa já trabalhava nesta novela, onde a presença do boi é determinante, muito antes da famosa jornada ao sertão mineiro.


Ia haver a festa”


Dada a importância da pecuária para a economia brasileira, é bastante elevado o número de romances, xácaras, solfas, quadrinhas e festejos populares em que o boi é personagem central. Ao pôr-do-sol, acabava-se a labuta do sertanejo e era comum a reunião de trabalhadores para contar as façanhas realizadas durante o dia. Como apontado por Câmara Cascudo (2005, p. 108): “Indispensavelmente havia um ou dois cantadores para divertir. O cantador, analfabeto quase sempre, recordava outras apartações, outras vaquejadas famosas, ressuscitando nomes de vaqueiros célebres e de cavalos glorificados pela valentia.” A lista de nomes de bois homenageados também é enorme: Surubim, Rabicho da Geralda, Espácio, Misterioso, Prata, Guerreiro, Chita, Estrela e muitos outros.

Por ter sido inspirada no vaqueiro Manuel Nardy, o condutor da célebre boiada, da qual Rosa participou em 1952, os estudos sobre a novela “Uma estória de amor”, geralmente, tomam como tema central, a personagem Manuelzão. Entretanto, o que me interessa apresentar neste ensaio é a participação dos contadores de estórias, figuras fundamentais nessa narrativa: Joana Xaviel e, sobretudo, o velho Camilo.

A estória transcorre durante os três dias de uma festa, organizada no mês de maio, para marcar a inauguração de uma capela para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, erguida nas proximidades do local onde fora enterrada a mãe de Manuelzão, dona Quilina, para honrar sua memória.

De acordo com Marli Fantini (2004, p. 262), Manuelzão seria “um herói civilizador que põe a tarefa de instruir normas para corrigir o cafarnaum do mundo do boi’”, mas, a meu ver, a evocação do boi pode ter um significado também simbólico, como será demonstrado no decorrer deste ensaio.

Já com sessenta anos, “espécie de começo de metade de terminar”, metera o boiadeiro Manuelzão na cabeça o desejo de “assentar casa” (C.B, p. 144)128. “Seus homens, mais ou menos velhos conhecidos, com ele vindos do Maquiné, para apego de companhia não bastavam? Ele calculava que não” (CB, p. 146). Para tanto, reúne em torno de si uma família tardia, composta pelo filho Adelço, a nora Leonísia, o irmão dela, Promitivo, e os sete netinhos. Ao núcleo familiar juntar-se-á mais adiante o velho Camilo, descrito na caderneta 6129 da seguinte maneira: “Ele asséste mais é aqui. Às vezes descasca um milhozinho, busca um balde d’água, mas tudo na vontade dele, ninguém manda não”. Trecho literalmente transcrito da caderneta de viagem para a novela, mas, como poderá ser confirmado mais adiante, essa personagem ganha grande importância no decorrer de toda a narrativa, não só devido ao papel de contador que desempenha, mas por ser uma espécie de duplo do próprio Manuelzão, aspecto já apontado por Vasconcelos: “Nesse tecido de inquietações e lembranças, sobressai ainda a figura do velho Camilo, um agregado da Samarra, cuja figura funciona como uma espécie de espelho para Manuelzão” (1997, p. 31).

A despeito de as terras terem sido ocupadas há quatro anos, a fundação do lugar é determinada pela missa inaugural. Primeiro construiu-se o curral, depois a casa e, por último, meses após a morte de dona Quilina, ergueu-se a igreja. O vaqueiro que maestrara durante a construção da capela, no início da narrativa, espreita de longe, do alto do cavalo, a labuta das mulheres, que decoram a igrejinha na antevéspera da festa. Solteirão, solitário, nómade como um bom vagueiro, Manuelzão não percebia a importância do ir e vir do mulherio e falava de supetão, com sua voz de comandar mil bois, mas que naquele momento não tinha qualquer serventia: “Falta uma pia de água benta.” (CB, p. 140)

Sempre a cavalo, pois o pé lhe doía, percorre os dois quilômetros que distam a casa da capela. Os preparativos ocuparam-no nos últimos dois meses, quando se deu o início da construção da igreja, que, ao ser finalizada, exigia uma missa, com a benção do padre.


O riachinho de só segredos mal contados”


O lugar escolhido por Manuelzão para assentar pouso no Samarra, não fora casual. Havia ali um riachinho. Os sertanejos têm pleno conhecimento das potencialidades produtivas de cada espaço dos sertões secos. Vinculado a uma cultura peculiar, cada grupo humano tem sua própria especialidade no terrão que lhe cabe. Uns são vaqueiros, outros agricultores nas regiões alagadiças, os brejos. Há também os veredeiros, pessoas que trabalham nas ilhas de umidade, as veredas, que pontilham a aridez dos sertões. E, acima de tudo, cada um se esforça para conservar a água, a fim de aguentar os duros meses de estiagem. Portanto, não foi por acaso a escolha do local para construção da sede da casa por Manuelzão, nas terras adquiridas por seu patrão, Federico Freyre. Todavia, pouco tempo depois de erguida a casa, o riacho, subitamente, seca. Por certo não é fortuita, como se verá mais adiante, a personificação do riachinho em frases como: “Era como se um menino sozinho tivesse morrido” (CB, p. 148). Importa também ressaltar que é quando pensa no riachinho seco que Manuelzão recupera muitas de suas lembranças.

A primeira menção ao riachinho já se reporta à sua ausência: “O lugar poderia merecer outro nome “Seco riacho” (CB, p. 165). Há dúvida quanto a quem dera essa sugestão. Poderia ter sido seu Camilo, mas Manuelzão sabia que o inventante dessa maldade havia sido mesmo seu filho, Adelço, que escarnecia o pai pelo erro da escolha do lugar. Fato é que esse riacho, que desembocava no córrego das Pedras, que acabava do rio De-janeiro, que, por sua vez, mais adiante, fazia barra como o São Francisco, secou. Desde então, Chico Carreiro, atrelava as suas quatro juntas de boi e descia até o córrego das Pedras para apanhar água, sempre acompanhado pelas crianças, e, às vezes, pelo velho Camilo. Entretanto, a vala onde outrora correra suas águas fora preservada, pois sempre havia a esperança de que elas voltassem a correr.


Essas estórias dentro da estória


O grande desafio dos escritores dos países colonizados que desejam incorporar os saberes dos contadores tradicionais em suas narrativas é perceber que a passagem do oral para o escrito exige uma zona de mistério criativo. Não é apenas imperativo escrever resgatando a palavra narrada preservada pela memória, mas produzir uma criação artística capaz de mobilizar a totalidade oferecida justamente pela peculiaridade do processo de colonização, tanto do ponto de vista da oralidade, como da escrita. É preciso estar aberto às oposições e aos paradoxos, conservados por essa amplitude, que tangenciam as diferentes matizes da palavra, sobretudo em um caudal em que diferentes etnias, tanto ameríndias como africanas, se entrelaçam à língua dominante do colonizador, que, por sua vez, já comporta em suas origens outras assimilações, adquiridas durante seu próprio processo formativo.

Não é difícil constatar a presença explícita de elementos recolhidos da tradição oral na novela “Uma estória de amor”. Basta lembrar da participação de Chico Bráabóz130, rabequista, que tinha muitas memórias de músicas, danças e cantigas, a quem vem se juntar seu Vevelho, sanfoneiro, e o filhos, tocadores de bandolim e viola. Ou o uso que o narrador faz da estrutura do ABC, utilizada por seu Camilo para nomear os vaqueiros antes de começar sua estória, indo de Antônios a Zusa, sem se esquecer do Til, “que dê para atilar: setenta joãos e joães” (CB, p. 233). Talvez uma maneira encontrada pelo escritor, também um João, para juntar-se ao bando.

Cabe lembrar que são chamados de ABC os versos organizados em ordem alfabética. Esses poemas geralmente são usados para contar a história de um boi, um touro ou algum fato histórico. Há também os ABC de exemplos, em que os versos são compostos para exaltar as virtudes e o comportamento ou apresentar códigos de bem proceder. Outro tema bastante comum são as histórias de amor. Nesse caso, geralmente, ele é composto como se fosse uma carta endereçada à pessoa amada.

Esse tipo de composição tinha uma função mnemônica, pois lembrar a ordem das letras do alfabeto facilitaria o exercício de declamação dos versos decorados. Quanto à presença do acento ortográfico til, de acordo com Câmara Cascudo, essa prática deve ser em decorrência dos exercícios de caligrafia, quando o aluno era estimulado a copiar o alfabeto. Por ser o til um sinal gráfico de difícil representação, ele também era incluído nos exercícios e talvez por isso fosse considerado como uma letra pelo sertanejo: “Como não é possível arranjar-se um tema com ele, aproveitam para uma frase de ironia, uma despedida, um motejo” (CASCUDO, 2005, p. 82). Como feito nesta passagem na recriação rosiana.

Mas desse volumoso caudal de gêneros da literatura oral, utilizados pelo escritor para urdir essa narrativa, deter-me-ei nas estórias e seus contadores. A primeira estória que Manuelzão escuta é relatada pelos dois vagueiros de seu grupo, Simão e seu irmão Januário, que se atrasaram no retorno. Para justificar esse retardo, contam que estiveram a ajudar o vaqueiro Uapa, o goiano, considerado o rei de todos, sempre montado no seu bonito Alazão: “que vive em mágica com os bois e seus mestres cavalos” (CB, p. 162). A audiência, era composta por dois campeiros além de Manuelzão, que não conseguia ser mais forte do que aquelas novidades. Portanto, trata-se de uma vaguejada que realmente acontecera. Mas que também pode não ter ocorrido como relataram os vaqueiros, pois para se bem lembrar de uma viagem, diz o narrador algumas linhas adiante: “quase que se tinha necessidade de inventar a devoção de uma mentira” (CB, p. 162).

Da boca de Joana Xaviel, deitado no quarto aparedado com a cozinha, Manuelzão, insone, ouve trechos da estória do Dom varão ou A donzela que vai à guerra.131Joana Xaviel narra também a história da Destemida, que deseja comer o boi do patrão e persuade o marido a matar o animal preferido do fazendeiro. Todavia, se no final do auto ela é punida, a seu gosto Joana Xaviel muda o final: a mulher do vagueiro, além de não ser castigada, sai da estória “rica, e subida por si”, o que provoca a contestação da audiência.

Seu Camilo é a personagem que o narrador mais nos dá objetivamente a conhecer. Dele sabe-se o nome completo: Camilo José dos Santos. Nome que tentou escrever, mas não soube. Na verdade: “Não se alembrou mais”. Experimentou escrevê-lo com a ponta de um tição na régua de um curral. Informou a idade: 80 para mais. Nascera no Riacho do Machado e acabara de se criar em Coração de Jesus de Inconfidência” (CB, p. 152)132. A descrição física também é detalhada. Até o traje, que Leonísia lhe mandara fazer para a festa, é descrito. “Ele nada pedira. Mas apreciara a roupa: “que nem que um milagre o tivesse envolvido, mudou o modo de sua seriedade, se alisava. Não sabia como se permanecer.” (CB, p. 180)

A estória da festa, que o próprio Manuelzão conta, por meio do discurso indireto livre, fazendo emergir fragmentos de sua vida, possibilitando, portanto, o resgate do seu passado, não poucas vezes é afetado pela narração dos contadores. Como o ponto de vista que prevalece é o do vagueiro, se temos tantas descrições a respeito do velho Camilo, a questão também aparece no seu fluxo de pensamento: “Por que era que ele, Manuelzão, derradeiramente, reparava tanto no velho Camilo? E responde: “Porque, assim, clareada uma festa, o velho Camilo se demonstrava a pessoa separada no desconforme pior: botada sozinha no alto da velhice e da miséria” (CB, p. 163). Pode-se dizer, então, que essa relação que vai se estreitando entre o vaqueiro e o homem 20 anos mais velho, espelha o medo que o próprio Manuelzão tem de perder o que até ali conquistara, mas, sobretudo, da própria morte.

Não por acaso, a morte é tema recorrente na narrativa: o riacho que seca; a morte do boi e da mãe do fazendeiro rico, que a Destemida envenena, na estória contada por Joana Xaviel; a morte da mãe de Manuelzão. Também por certo não é casual que ao acompanhar de longe a procissão, pois o pé lhe doía, e seria uma profanação fazer a peregrinação da casa à capela a cavalo, Manuelzão está entretido a ver as chamas das velas deixadas pelos penitentes nos mourões que cercam o cemitério, quando a luz de uma delas ilumina justamente o rosto do velho Camilo, aumentando sua palidez. “Sem ser forte, mas com voz conhecível, ele também cantava” (CB p. 165).

Algumas linhas depois, seo Camilo, que até então pouco falara, é apresentado também como declamador de quadras. Os mesmos temas que nas cadernetas são apresentados em versos, quando atribuídos ao memorial de seu Camilo, aparecem integrados na narrativa na estrutura de prosa. Procedimento que será recorrente mais adiante, quando essa personagem realmente assumir seu papel de narrador.

Se Manuelzão escuta as estórias de Joana Xaviel durante uma noite de insônia a contra gosto, o que não significa que não gostasse delas, mas não conseguia ouvi-las e cuidar da festa ao mesmo tempo, pois para ele: “tempo de festa, era só para festa, não pra o comum, a cabeça da gente não dá pra tantas coisas” (CB, p. 185); é muito diferente sua relação com a contação de seu Camilo. Essa narração só ocorre no desfecho da novela e, consequentemente, da festa, quando Manuelzão não só se pergunta sobre o paradeiro do riachinho, como também pensa novamente na própria morte: “A festa ia se acabar, ele ia ir com a boiada – sentia que para morrer, no caminho, no meio, desmaginava” (CB, p. 185).

Com o término da missa, e consequente retirada do padre, a parte sagrada da festa se encerra. Desfecho bem marcado pela ação de Manuelzão, ao trancar a porta da capelinha, guardar as chaves na algibeira e dirigir-se a um ponto da “cama do riachinho seco”, antes de tentar se divertir na parte profana da festa. Todavia, Manuelzão não consegue se entregar aos prazeres festivos. Entrementes a descrição dos ponteios de viola e os rodopios dos dançarinos, o vaqueiro conversa sobre o boiadão que em pouco tempo vai guiar, especula sobre a produção de mandioca de um, sobre o fabrico de rapadura de outro.

A presença tão próxima de seo Camilo, aquele que acompanhava o carreiro para buscar água no Riacho das Pedras, que bebia água guardada num pote, que parecia até coisa abandonada, água antiga, é, finalmente, explicada: o próprio Manuelzão havia solicitado a presença dele por perto, caso precisasse, mas não se lembrava disso. Todavia, o velho não se esquecera do comando e, por isso, o seguia por toda parte.

É a caminho do cemiteriozinho, para render honras à mãe, que essa situação é revelada. Aquele seo Camilo com quem Manuelzão tanto se parece, que como ele não se divertia com a festa e que quando perguntado sobre o que pensa dos festejos responde: “Eu divêrto, não. Eu só inteiro e semêlho…” (CB, p. 227). Teria o seo Camilo, como ele, medo de morrer? Pergunta-se o boiadeiro.

A essa reflexão segue-se novamente uma alusão ao riachinho: “Havia de ser abençoado a gente viver ainda muitos anos, residindo, ladeira abaixo, o sissipe do riachinho” (CB, p. 227). Percebe-se, então, que Manuelzão e Camilo ficaram tão acamaradados no decorrer de toda a narrativa, só porque, mesmo não se divertindo, Manuelzão afastou-se temporariamente do trabalho e pode notar a presença do agregado. No último dia da festa, à noite, à volta da fogueira, antes de sair para conduzir a boiada, ao pensar que deveria comandar que não judiassem do velho na sua ausência, decreta:

“— Seo Camilo, o senhor conte uma estória. O velho entendeu, obedeceu e contou, para a roda de ouvintes que em torno dele logo se formou, a Décima do Boi Bonito e a do cavalo. (CB, p. 228)

De acordo com Paul Ricouer a herança grega nos legou dois conceitos distintos e complementares sobre memória, um platônico e um aristotélico: “O primeiro, centrado no tema da eikõn, fala de representação presente de uma coisa ausente” (2014, 27). Aristóteles, por sua vez, desenvolve o tema centrado “na representação de alguma coisa anteriormente percebida, adquirida ou aprendida” (2014, 27). Portanto, preconiza a inclusão da problemática da imagem da lembrança. Portanto, de acordo com Ricouer, em Aristóteles anamnésis seria volta, retomada, recobramento do que anteriormente foi visto, experimentado ou aprendido. Mas o elo entre esses dois eventos, esquecer e lembrar, é assegurado pela distância temporal. É esse intervalo entre a impressão original e seu retorno que a recordação percorre. (cf. Ricouer, 2014, p. 37).

Ao recordar-se do que pensava não mais saber, ou seja, de seu dom de contador, seu Camilo contribui para a cura de Manuelzão, que se sente fortalecido para assumir o comando da boiada ao término da festa. Mas também reumaniza João Uruquém, homem que já não sabia falar e vivia solitário no pé de uma serra. Afastado do convívio de todos, por ter sido culpado por um crime que não cometera. Uruquém não apenas havia perdido a capacidade de falar como os outros, mas “parecia que chorava, pensando que estava se rindo.”(CB, p. 154) Entretanto, aquele que nem devia se lembrar mais do que o levara a afastar-se do convívio com outros seres humanos, se aproxima com as quatro patas no chão, como um quadrúpede, para também ouvir a estória contada pelo velho Camilo.

Quem se aproxima do jacaré para ver o toco da língua dele, ele devorava a memória da cabeça da pessoa” (CB, p. 155). Lê-se essa analogia logo depois da descrição do que acontecera a Uruguém. Ora, Rosa declara na entrevista concedida a Günter Lorenz133 que queria era ser um crocodilo. Portanto, não seria de todo errado dizer que nessa, e em outras narrativas, o escritor mineiro mimetiza-se em um crocodilo devorador de memórias, e as rumina até conseguir devolvê-las na forma escrita.

Como visto, nesta novela, Rosa recupera da tradição oral narrativas que têm como tema central o boi. Na versão de seu Camilo, o animal é vencido por um boiadeiro, até então chamado de Menino, que só revela seu nome no final da narrativa. Não poderemos ver nesse boi sagrado, que, quando laçado pelo boiadeiro, bebe na companhia do cavaleiro das águas do riachinho, que no cotidiano da vida do Samsarra fazia tanta falta, justamente porque secara, mas que volta a correr na estória de seu Camilo, uma analogia com uma personificação do deus Thot?

No ensaio A Farmácia de Platão (2015, p. 43), Derrida assinala que o deus Thot, na civilização egípcia é alegorizado como um touro. Esse deus da escrita, que também é deus das ciências e da aritmética, considerado o arquétipo de Hermes, pode bem ser associado ao Boi Sagrado, guardador do espírito do riachinho, que depois de laçado pelo cavaleiro menino, sorve de suas águas na companhia daquele que o derrotara. O vaqueiro, no entanto, rejeita paga, mas pede como recompensa justamente a liberdade do boi, que, selvagem, poderá pastar livremente.

De acordo com Derrida, a linguagem é a morada da escrita, que, por sua vez é originalmente metafórica, posto que a metáfora é o traço que reporta a língua à sua origem: “A escritura seria, então, a obliteração desse traço.” (2015, p. 330), mas abre-se uma outra possibilidade quando se vê a língua como hieroglífica e apaixonada. Ouso dizer que é justamente essa certa selvageria, que se mantém na máxima proximidade desta origem passional da língua, que encontramos no manancial arcaico, que pode secar se não for mantido pela tradição, como secara o riachinho, mas que foi recuperada por Rosa, por meio de seus personagens contadores.

Indo mais além, o título Uma estória de amor, pode referir-se ao amor de Seo Camilo pela Joana Xaviel, ou ao desejo interdito de Manuelzão pela nora, Leonísia, aspectos bastante evidentes na leitura da obra, mas também pode referir-se à estória de amor de Rosa com a palavra: cantada, declamada, contada e escrita, recuperada justamente nesse embate entre um cavaleiro de nome menino e o deus da escrita Thot, alegorizado na figura do boi misterioso.





Referências


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[Recebido: 29 fev. 2020 – Aceito: 13 mai.]



















AS PROEZAS DE “JILÓ”:

ECOS DA MALANDRAGEM EM ROQUE SANTEIRO



THE PROHESES OF “JILÓ”:

ECOSES OF TRIKERY IN ROQUE SANTEIRO



Rondinele Aparecido Ribeiro134

Francisco Cláudio Alves Marques135

Resumo: Herdeira de manifestações ligadas a expressões populares, tais como as narrativas folhetinescas, as radionovelas e o melodrama, a telenovela notabiliza-se por ser gênero de representação da cultura nacional. Ancorada em uma estrutura que dialoga intensamente com outros artefatos da cultura popular, a narrativa televisual apresenta personagens que se filiam a arquétipos. Assim, a partir dessas considerações iniciais, o presente trabalho intenciona tecer considerações acerca da representação do arquétipo da malandragem presente na personagem “Jiló”, da telenovela Roque Santeiro. Inicialmente, o texto situa a representação desse arquétipo na literatura nacional, desnuda como essa figura de relevância para a representação do país foi absorvida pela cultura de mídia, tornando-se bastante expressiva nas telas.

Palavras chaves: Telenovela. Arquétipo. Ficção. Mito. Malandragem.


Abstract: Heir to manifestations linked to popular expressions, such as booklet narratives, radio soap operas and melodrama, the telenovela stands out for being a genre of representation of national culture. Anchored in a structure that dialogues intensely with the traits of popular culture, the televisual narrative features characters who join archetypes. Thus, from these initial considerations, the present work intends to make considerations about the representation of the trickery archetype present in the character “Jiló”, from the soap opera Roque Santeiro. Initially, the text situates the representation of this archetype in national literature, showing how this figure of relevance to the representation of the country was absorbed by the media culture, becoming expressive on the screens.


Keywords: Telenovela. Archetype. Fiction. Myth. Trickery.




Introdução

O presente artigo tece considerações sobre a representação da arquetípica da malandragem na telenovela Roque Santeiro, exibida pela Rede Globo em 1985. Para tanto, o estudo dimensionará o personagem “Jiló”. Inicialmente, o texto situa a representação desse arquétipo na literatura nacional. Sua representação, ao longo da trajetória, perpassou os mais diversos aspectos indo de uma representação pitoresca, ora representada com traços mais negativos, ou até mesmo, visto como o responsável pelo atraso do país na conjuntura econômica.

Para o presente estudo, é importante dimensionar a representação na literatura do primeiro malandro nacional, bem como desnudar como essa figura de relevância para a representação do país foi absorvida pela cultura de mídia, tornando-se expressiva nas telas. Cumpre o dever de esclarecer, ainda, que este trabalho não objetiva estabelecer uma trajetória acerca da representação da malandragem na cultura brasileira, mas sim mostrar como esse arquétipo se revigorou na cultura midiática e acabou se destacando na teleficção brasileira, ganhando, sobretudo, uma marcada conotação de crítica social.

Fornecidos esses elementos contextuais, o presente artigo delimita como marco expressivo do estudo acerca da representação da malandragem na literatura nacional o estudo de Antonio Candido (2015) sobre o romance Memórias de um Sargento de Milícias, publicado em 1856. O crítico brasileiro contribuiu de forma significativa para os estudos literários ao propor uma nova interpretação acerca da obra de Manuel Antônio de Almeida. Escrito inicialmente em 1970, o ensaio de Candido (2015) interpretou, sob um olhar inovador, o romance publicado no século XIX, fato que acabou ressignificando a maneira de se interpretar a obra. Dessa forma, com a escrita do ensaio intitulado Dialética da Malandragem, o crítico refutou a tese de que a obra era representante do estilo picaresco espanhol. Assim, ao mudar os rumos dos estudos literários, no que tange à análise da obra em questão, o estudioso introduziu uma nova linha teórica ao filiar a narrativa à linhagem do romance de extração picaresca. Dessa forma, o protagonista Leonardo representa, na visão de Candido (2015), o primeiro personagem malandro da literatura brasileira.

Seguindo as proposições de Candido (2015), de fato, com as Memórias, tem-se a inauguração na ficção nacional do romance malandro, que, evidentemente, mostra sua vitalidade com a publicação de Macunaíma, ampliando-se com a incorporação de novas narrativas perpassadas pela tópica da malandragem, vista pelo crítico brasileiro como “espécie de um gênero mais amplo do aventureiro astucioso, comum a todos os folclores” (CANDIDO, 2015, p. 23), embora a noção de folclore, quando se trata dos personagens desse tipo de literatura, não dê conta de expressar a real função de crítica política e social que eles engendram e desempenham em seus contextos, como bem demonstrou o estudo realizado por Francisco Cláudio Alves Marques (2018) relativamente aos anti-heróis da cultura popular, desde o italianos Biaggio e Bertoldo, do século XVI, até João Grilo e Pedro Quengo da literatura de cordel do Nordeste brasileiro.

A contemporaneidade, fortemente acentuada por fluxos e trânsitos culturais, revelou a centralidade da mídia como um potente sistema de representação cultural. Nesse sentido, a telenovela emerge como uma legítima representante da cultura nacional. Alçada a uma posição de destaque na cena cultural brasileira, ainda que alguns estudiosos mais pessimistas encarem o gênero sob uma perspectiva meramente ligada à indústria cultural, a telenovela revela uma vocação ligada à nutrição de referências identitárias do receptor, ao propagar valores e hábitos culturais, além de se converter numa espécie de espelho da nação.

Ancorada em uma estrutura que dialoga intensamente com os traços da cultura popular, apresenta personagens que se filiam a arquétipos de longas datas. Esse gênero televisivo, cuja matriz remonta às narrativas folhetinescas, tais como as radionovelas e o melodrama, atua significativamente no processo de reatualização e de ressemantização de arquétipos na sociedade. Para Sílvia Helena Simões Borelli (2004), a telenovela mostra-se como objeto singular de análise e interpretação cultural do país, especialmente por revelar a peculiaridade de propiciar uma conexão com aspectos híbridos típicos da cultura contemporânea, “que se molda nas fronteiras entre matrizes populares, tradições letradas e produção massiva” (BORELLI, 2004, p. 09).


Algumas reflexões sobre o “folhetim eletrônico”

Alicerçada na tradição oral, o sucesso do gênero telenovela se mantém na contemporaneidade, principalmente por conjugar estratégias milenares com aparatos tecnológicos pela conjugação de estratégias milenares aliadas à incorporação de aspectos tecnológicos responsáveis por revigorar os suportes e criar uma nova forma de audiência e espaço de debates. Vale salientar, ainda, que esse gênero se constitui como uma forma de narrativa sobre o país capaz de alimentar um repertório compartilhado de sentidos e de projeções responsáveis por situar o público numa comunidade imaginada, uma vez que o brasileiro desenvolveu o hábito de acompanhar o desenrolar de histórias seriadas transmitidas pela televisão. Mesmo que não a veja diariamente, o telespectador mantém laços com a telenovela, seja nas diversas plataformas multitelas, características da nova fase de circulação de histórias na sociedade, ou, ainda, pela constituição dessa narrativa em se tornar um gênero capaz de narrar os dilemas da sociedade brasileira e criar um repertório compartilhado no cotidiano e na memória da sociedade.

É possível notar que, na conjuntura da multiplicidade, é necessário o surgimento de um novo olhar crítico para se pensar nas especificidades suscitadas pelo meio, haja vista exigir novas leituras a fim de que se dessacralizem formas arraigadas na academia de se conceber o audiovisual. Desse modo, é importante recuperar o ponto de vista da crítica literária Ivete Walty (2011), que, ao analisar as configurações do cenário cultural contemporâneo, assinala a mobilidade como característica principal da sociedade moderna pensada sob uma perspectiva cultural complexa, multifacetada, marcada pela convergência devido às conexões constantes mantidas com outros artefatos culturais.

As considerações de Walty (2011) mostram-se profícuas, especialmente, por fornecerem subsídios para tratar da relação imanente entre literatura e teledramaturgia, aqui analisada ao largo de determinadas posturas acadêmicas excludentes. Seguindo essa linha de raciocínio, a teleficção emerge dessa relação como um gênero de representação da cultura nacional. Ancorada em uma estrutura que dialoga intensamente com os traços da cultura popular, a narrativa televisual, especialmente a brasileira, apresenta personagens que se filiam a arquétipos, que vêm sendo revitalizados no âmbito da cultura popular por centenas de anos, especialmente pelo fato de representarem, por suas maestrias, a desforra contra o sistema.

Enquanto gênero de ficção seriada, a telenovela ou “folhetim eletrônico”, como muito bem defende Campedelli (1987), apresenta em sua configuração uma longa tradição herdada das narrativas orais. Assim, num jogo alusivo, pode-se perfeitamente compreender que os milhões de telespectadores do gênero na contemporaneidade muito se assemelham aos auditores dos jograis da Idade Média. Campedelli (1987) ainda esclarece sobre a narrativa televisiva: “Não tão longa quanto o romance nem tão curta como o conto –, história usualmente curta, ordenada e completa, de fatos fictícios verossímeis” (CAMPEDELLI, 1987, p. 18). Na Idade Média, o termo novela era usado como sinônimo de “enredo” ou “narrativa trançada” e era aplicado às novelas de cavalaria e, já naquele momento, tinha não só a função de entreter, mas também de ditar regras e modelos de conduta.

Na telenovela, a história é longa e se desenrola, quase sempre, por mais de cem capítulos, sete a oito meses (CAMPEDELLI, 1987). Calcada numa longa tradição milenar de sincronização de linguagens, a telenovela emerge da experiência acumulada do folhetim, do melodrama, da soap opera e do rádio, suas matrizes por excelência. Ela traz em seu bojo expressões narrativas primordiais ligadas à estrutura seriada diária e interativa do mesmo modo empregado por Scherazade. Marcada pelo amplo sucesso e pelo estilo melodramático presente nas mais diversas manifestações indo da tragédia a opera, e do cinema ao rádio, a fórmula seriada está fortemente consagrada devido à forte aceitação popular.

Em conformidade com o ponto de vista de Sadek (2008), esse gênero televisivo corresponde a uma necessidade atávica do ser humano: o gosto pela narração. Assim, a telenovela pode ser incluída em umas das mais antigas tradições da espécie humana: a de contar e ouvir histórias. Desse modo, é lícito afirmar que “ela tem um passado significativo, que começa com a primeira narrativa” (SADEK, 2008, p. 17).

Ainda sobre a narratividade, o autor explica que os agrupamentos humanos sempre tiveram acesso e sempre dependeram de um suporte para ela se efetivar. “Fomos da roda de conversa para o palco, depois para o livro, o rádio, o cinema e a televisão” (SADEK, 2008, p. 20). Assim, a telenovela representa muito bem o que está sendo explicado por Sadek (2008), uma vez que esse gênero corporifica a longa tradição narrativa da qual o homem mantém uma grande dependência. “Todas as formas de contar e de ouvir histórias se mantêm vivas, de modo que sempre acoplamos novas tecnologias, novos formatos e novas estratégias de contar relatos sem excluir ou descontinuar os anteriores” (SADEK, 2008, p. 24).

Ao se reportar ao sucesso das narrativas seriadas, Sadek (2008) ressalta o caráter da mobililidade presente na ficção. “Não por acaso. Estão entre os programas mais cuidados e mais caros da TV brasileira. São campeãs de audiência e atraem milhões de pessoas, que assistem ao mesmo tempo à mesma história” (SADEK, 2008, p.19).

Ao definir a telenovela, o autor sustenta que:A telenovela [...] é uma história dividida em capítulos, mas, nesse caso, o seguinte é continuação do anterior; o sentido geral do conjunto é previsto inicialmente, mas seu desenrolar e desenlace não são previamente decididos; durante seu desenvolvimento, pode receber novos personagens e dar novos direcionamentos para as várias tramas que compõem o todo (SADEK, 2008, p. 33).

O “folhetim eletrônico”, como define alguns estudiosos, tem mais de meio século de existência. Consolidou-se como o gênero mais importante da televisão brasileira, sobretudo, pelo fato de responder pela larga margem de lucro obtida por meio da exportação de roteiros e do próprio produto. Também ocupa espaço privilegiado na grade da programação televisiva. Notabilizando-se como objeto de estudos acadêmicos nos últimos anos, o gênero foi alçado ao posto de verdadeira narrativa acerca do Brasil.

Presente no cotidiano brasileiro basicamente desde a implantação da televisão no país, sua permanência aqui pode ser explicada devido à especificidade do gênero, que soube empregar a experiência acumulada da tradição de contar histórias. Maria Immacolata Vassallo de Lopes (2004) contribui de maneira fecunda com nossas pressuposições ao ressaltar a ascensão da telenovela como um ponto de entrecruzamento entre as formas cultas de massa e pela especificidade do gênero em se constituir como um nutriente do imaginário social brasileiro:

A telenovela aparece como um ponto de entrecruzamento não só de formas de investigação sobre a cultura de massa, mas de estados de reflexão teórica sobre as relações entre a televisão, os gêneros “cultos” e “populares”. Por meio dela e possível identificar o lugar da ficção narrativa na constituição do imaginário social e, no presente caso da telenovela brasileira, o que as diferenças regionais fazem a um produto que atravessou fronteiras (LOPES, 2004, p. 127).

Na cultura contemporânea, seu modelo de produção se explica pela forte mudança e experimentação tecnológica influenciada pela indústria cultural com seu traço marcante de atingir vários públicos. Autores como Ângela Aparecida Batista Conversani e Altamir (2010), confirmam o exposto ao atribuir à televisão o papel de moldar o imaginário e contribuir para o diálogo de e entre culturas. Para esses autores, a televisão firma-se como uma linguagem universal responsável por diminuir as distâncias entre idiomas e classes sociais.

A representação do arquétipo da malandragem em “Jiló”

Igor Sacramento (2012), ao se referir à produção televisiva de Dias Gomes, destaca a existência de um realismo crítico, mas também se mostra permeada pelo grotesco e pelo fantástico indicando as fortes hibridizações estéticas responsáveis por situar a sua produção televisiva no projeto estético do dramaturgo. Em Roque Santeiro, esses traços estéticos estão presentes. Primeiro, pela adoção de inúmeras situações do cotidiano popular facilmente observadas a partir do título e da vinheta de abertura da primeira versão, de 1975, que se intitulava A Fabulosa História de Roque Santeiro e de Sua Fogosa Viúva, a que Foi Sem Nunca Ter Sido.

O estudioso Antonio Roberto Esteves (2018), de modo profícuo, fornece informações de grande importância acerca desse aspecto popular identificado na adaptação da telenovela, que foi proibida pela ditadura. Para tanto, destaca o vínculo dessa narrativa audiovisual ao gênero cordel assinalando que essa telenovela se estrutura a partir de aspectos ligados ao burlesco, particularidade responsável pelo surgimento de inúmeras situações reveladoras de risos escrachados.

Esteves (2018) avança em suas proposições e enfatiza que o processo de aclimatação do gênero cordel no país, aqui ressemantizado e incorporado nas diversas manifestações artísticas da contemporaneidade, circula a partir de algumas versões orientais ou, até mesmo, greco-latinas até chegar às feiras e aos cantadores do interior do Nordeste e suas manifestações nas periferias das metrópoles do centro-sul do país ou releituras em diversos meios de comunicação, entre os quais as telenovelas, antigas histórias adquirem infinitas e variadas versões. Esse trânsito ocorre ao longo dos tempos em geografia diversificadas e em diferentes línguas e linguagens (ESTEVES, 2018, p. 11).

As asserções do crítico revelam que a televisão se constitui pelo aspecto híbrido, sobretudo pelo fato de sua programação, como muito bem definiu Ana Maria Balogh (2002) ao afirmar que esse suporte se estrutura em torno de inúmeras influências oriundas das matrizes cultas, populares e massivas. Desse modo, a televisão, para a autora, constitui-se como um verdadeiro “pantagruel eletrônico”.

No cenário cultural brasileiro, a reverberação da figura arquetípica da malandragem pode ser vista de modo recorrente. Na literatura brasileira, o marco inicial da representação dessa figura encontra em Leonardinho, o protagonista do romance Memórias de um Sargento de Milícias, a gênese da linhagem desse grupo de personagens gestados sob aspectos peculiares da formação social do país. Como atesta Altamir Botoso (2017): “Efetivamente, com as memórias, o personagem malandro, que se solidifica com a publicação da rapsódia macunaímica, amplia-se com os malandros do pós-milagre [...]” (BOTOSO, 2017, p. 17).

Botoso (2017) assinala também que esse arquétipo migrou das ruas para a ficção e, na contemporaneidade, dados os diálogos intertextuais estabelecidos entre a literatura e outras expressões culturais, encontrou na narrativa audiovisual mais um espaço profícuo para se aclimatar e propiciar a continuidade dessa tradição gestada num contexto de grandes descalabros sociais, peculiaridade, aliás, que garante sua vitalidade, sobretudo pelo aspecto cíclico de contrastes e desmandos políticos que afligem o país.

Desse modo, o ponto de vista do estudioso é de fundamental importância para se compreender a origem dessa tradição ligada à malandragem que aflora no país. “O malandro, tal qual o pícaro, transferiu-se das ruas para a ficção. A sua linhagem, se assim podemos chamá-la, começa com Leonardo Pataca, afirma-se com Macunaíma, passa pelos demais malandros [...] e prossegue em várias obras [...]” (BOTOSO, 2017, p. 21).

O pesquisador Francisco C. A. Marques (2018), ao se referir aos representantes da malandragem na poesia popular nordestina, destaca as figuras de Pedro Malasartes, João Grilo, Cancão de Fogo, Pedro Quengo, Bocage, Camões, entre outros personagens, que são cultuados num contexto de exploração econômica e social. Desse modo, como salienta o estudioso, a preponderância dessas figuras no ideário popular está vinculada à superação de uma ordem vigente calcada em estruturas sólidas de exploração social “no sentido de que esses tipos sintetizam a astúcia e a sabedoria camponesa empregada para sobrepujar os representantes da cultura oficial, detentores da ‘sabedoria escrita’ e senhores dos meios de produção” (MARQUES, 2018, p. 205).

Devido a esses traços ligados a uma função de caráter social, o pesquisador salienta que esses “anti-heróis” se reconfiguram nesse contexto, passando a serem vistos como heróis heróis e, portanto, representantes de suas comunidades. Ao se referir aos malandros do imaginário nordestino, Marques (2008) destaca que tais figuras, descendentes do trickster ancestral, do herói provedor e do pícaro europeu, são responsáveis por “reavivarem do avesso os valores tradicionais e consagrados da coletividade” (MARQUES, 2018, p. 217).

Com efeito, é preciso também dar o devido destaque às contribuições do estudioso Mário Miguel González (2017), que fornece um panorama bastante assertivo acerca da gestação da figura picaresca. Para o pesquisador, a figura do pícaro surge no contexto conturbado pelo qual a Espanha passava nos séculos XVI e XVII. Trata-se de uma figura que precisa lutar pela manutenção da vida, além de se portar contra as injustiças sociais. Como as projeções de ordem econômica e social responsáveis pelo surgimento da picaresca espanhola também puderam ser observadas no contexto político, econômico e social do Brasil, Gonzàlez (2017) denominou de neopicaresca a manifestação desses atributos na narrativa brasileira que afloraram no país com traços um pouco distanciados dos atributos facilmente observados na Espanha dos séculos XVI e XVII. Ainda sobre a eclosão desse arquétipo na cultura nacional, o ponto de vista do estudioso atribui ao neopícaro gestado no Brasil a particularidade de empregar expedientes calcados na adoção de expedientes para a realização de seus ideais.

Sobre o personagem que tipifica a malandragem na cultura nacional, Jiló é apresentado no primeiro capítulo da telenovela Roque Santeiro. Na sinopse da telenovela, ele é descrito como um personagem muito esperto, que exerce o ofício de guia turístico da cidade de Asa Branca, que percorre o local frequentado pelos romeiros com um discurso decorado. Também aproveita da credibilidade mantida com os romeiros para vender objetos que afirma terem pertencido a Roque Santeiro.

Na primeira cena em que aparece na telenovela, o personagem aproxima de um grupo de romeiros, que desce do ônibus e recebe o grupo com seu discurso ensaiado:

TONINHO JILÓ: Tarde minha gente. Sejam bem-vindos a Asa Branca. Tão precisando de um guia? Tem um aqui: Toninho Jiló, às ordens de vossas excelenças. Nossa cidade tem trinta mil habitantes, duas rádios, quatro hotéis, um cinema, várias pensões e restaurantes. E também um museu sacro onde se encontram valiosas relíquias do tempo dos jesuítas. Vossas excelenças podem conhecer o Paço Municipal, a Santa Casa de Misericórdia e a Igreja Matriz. Esta é a praça principal de Asa Branca, a praça Roque Santeiro. Tem esse nome porque foi aqui que tudo aconteceu. Ali, em frente da Igreja, foi que Roque caiu morto.

Na sequência da cena, quando o grupo de romeiros adentra a loja de “Zé das Medalhas”, o público presencia sua primeira proeza. Ao perceber que poderá ter mais vantagens econômicas, o personagem empreende sua primeira ação que o vincula à malandragem:

ZÉ DAS MEDALHAS: - Estas medalhas são de prata. Tem também de cobre. De prata mesmo elas não são. São de lata, mas o que vale é a fé.

ROMEIRO: - São bentas pelo vigário?

ZÉ DAS MEDALHAS: - Benta, benta não é, mas é como se fosse...

ROMEIRO: - Esta escultura é de Roque Santeiro?

ZÉ DAS MEDALHAS: - Ele mesmo. Obra de um artista da terra.

TONINHO JILÓ: - Mostra aquela peixeira, seu Zé, que pertenceu ao Roque. Moço, é uma raridade, a única que existe.

ZÉ DAS MEDALHAS: - Para como isso Jiló. Na semana passada você vendeu mais de trinta dessas peixeiras...














Figura 01: Jiló aplicando golpe



Salientamos que as ações empreendidas por Jiló reverberam elementos tipicamente associados à malandragem, tais como a astúcia e a trapaça. Para a estudiosa Cláudia Mattos (1982), a figura do malandro abarca um aspecto da fronteira, da margem, notabilizando-se por revelar aspectos ligados à carnavalização e à ambiguidade. Ele não pode se classificar nem como operário bem comportado nem como criminoso comum: não é honesto, mas também não é ladrão, é malandro (MATTOS, 1982, p. 22). Ainda conforme as ponderações da estudiosa, a mobilidade da personagem ligada à malandragem é permanente, uma vez que ele depende dela para escapar, ainda que de forma passageira, às pressões do sistema.

Diante do exposto, a poética da malandragem no contexto nacional, aqui figurativizado, pode ser perfeitamente compreendida como manifestação de um perfil marginalizado socialmente, portanto excluído da ordem pré-estabelecida. Dadas as peculiaridades de um país de extração colonial, situado no contexto periférico da ordem internacional e que apresenta uma estrutura ainda calcada nas contradições do sistema colonial, responsável pela sua herança, a malandragem se aclimatou e se revitalizou em diversos setores da cultura nacional.

Sobre a transposição da malandragem para a telenovela, é importante acrescentar que o personagem, vincula-se à tradição de malandros da cultura brasileira gestados sob a égide de contextos perpassados por situações de desequilíbrio econômico, desmandos governamentais, instabilidades políticas e grandes desajustes sociais.

Ampliando essa definição, convém destacar, ainda, o ponto de vista de Jean Pierre Chauvin (2008). O pesquisador, ao se referir à presença do malandro na literatura nacional, assevera que esse arquétipo é marcado pela revitalização:

É curioso que de tempos em tempos a ambígua figura do malandro (seja ele carioca, seja paulistano) ressurge – nítida e escorregadia –, em meio a enredos da melhor qualidade. É notória a identificação entre esse verdadeiro arquétipo nacional e seus variados tipos com o elemento urbano (CHAUVIN, 2008, p. 254).

No caso desse malandro que sai das ruas, ganha a ficção e migra para o audiovisual, tem-se a representação de personagens plasmados no reflexo do homem simples que tende a driblar os problemas da vida recorrendo à astúcia e a diversos expedientes, como havia feito seu ancestral afrobrasileiro escravizado às voltas com um sistema excludente e opressor. Situando-se na ambivalência, como salienta Mattos (1982), essa personagem se revitaliza adquirindo status de anti-herói, justamente, por trilhar uma poética ambivalente situada entre a ordem e a desordem.

Pensando na função social exercida pela televisão no país e nas especificidades do cenário contemporâneo rotulado de mobilidade, sobressai o ponto de vista de Maria Carmem Jacob de Souza (2004), que desnuda como se opera a construção do popular no meio televisivo. Para a estudiosa, essa aclimatação estrutura-se a partir de uma tensão situada entre os aspectos da emoção, da projeção e do lirismo bem como na abordagem representativa de situações realistas dadas as devidas relações de uma narrativa que encontra o mercado como forte mediador cultural.

Dadas as especificidades da narrativa teleficcional em se mostrar como uma fértil expressão da representação da realidade brasileira atestada pela qualidade de um gênero que assumiu a função incidental de captar e refletir os dilemas da sociedade brasileira, se pensarmos em sua função representativa discursiva, a telenovela ancora-se nesse entrecruzamento típico de fluxos da contemporaneidade, revelando a presença de uma forte hibridação de gêneros narrativos que se estruturam em torno desse viés “culto” e “popular”. Ademais, pelo menos no Brasil, a construção do ideário nacional abrange a intermediação da televisão como seus aspectos documentarizantes em se constituir como um espelho da nação.

Ainda sobre a figura do malandro na cultura brasileira, é importante acrescentar que esse arquétipo decorre de uma ideologia que norteia toda a problemática da não consolidação da Nação, sendo, então, um tipo de herói específico, criado pela sociedade brasileira. E, justamente, por causa da nossa sociedade hierarquizada, esse herói não poderia ser um homem comum que representasse a si mesmo, pois essa representação estaria ligada ao reflexo do cotidiano desinteressante dessa sociedade. Essa peculiaridade pode ser explicada com base nas pressuposições do antropólogo Roberto DaMatta (1997). O estudioso, ao fornecer uma definição acerca do herói, destaca que esse ser fictício “deve sempre ser um pouco trágico para ser interessante, com sua vida sendo definida por meio de uma trajetória tortuosa, cheia de peripécias e desmascaramentos” (DAMATTA, 1997, p. 257).

Desse modo, ao destacar os traços da malandragem na telenovela Roque Santeiro, Dias Gomes, que era familiarizado com a produção cordelística nordestina, e profundo conhecedor da literatura mundial, fato que pode ser atestado pelo trabalho que desempenhou durante o período em que esteve no rádio exercendo o ofício de adaptar os clássicos da literatura para esse meio, reverbera a malandragem aplicada de modo a ressaltá-la como um elemento proteico da cultura brasileira, que se revitaliza de acordo com as circunstâncias histórico-sociais da comunidade que o adota como seu representante.



Considerações Finais

A presença da teledramaturgia na sociedade brasileira, além da expressão da mobilidade caracterizadora do cenário atual, pode ser concebida como uma atualização do papel desempenhado pelos contadores de história na antiguidade: propiciar o acesso à ficção. Dessa forma, salientamos que a telenovela, expressão fértil do cenário perpassado por fluxos de transferências culturais, emerge como um gênero de representação da cultura nacional. Ancorada em uma estrutura que dialoga intensamente com os traços da cultura popular, a narrativa televisual apresenta personagens que se filiam a arquétipos. Assim, o presente trabalho propôs-se a investigar alguns traços do malandro “Jiló”, personagem da telenovela Roque Santeiro.

Como atesta Marques (2018), a astúcia brejeira na poesia popular nordestina é representada por Pedro Malasartes, João Grilo, Cancão de Fogo, Pedro Quengo, Bocage, Camões, dentre outros, que exercem uma função ligada à superação de uma ordem vigente, “no sentido de que esses tipos sintetizam a astúcia e a sabedoria camponesa empregada para sobrepujar os representantes da cultura oficial, detentores da ‘sabedoria escrita’ e senhores dos meios de produção” (MARQUES, 2018, p. 205). Devido a esses traços ligados a uma função de caráter social, o pesquisador assevera que tais personagens se reconfiguram, passando de herói a anti-heróis.

O estudioso, ao se referir aos malandros do imaginário nordestino, explica que eles, ao associarem à figura arquetípica da malandragem, são responsáveis por “reavivarem do avesso os valores tradicionais e consagrados da coletividade” (MARQUES, 2018, p. 217).

André Rezende Benatti (2017) destaca que a “Dialética da Malandragem” traça, a partir do romance de Manuel Antônio de Almeida, “toda a estrutura literária e o processo social criador da personagem que hoje faz parte do imaginário popular brasileiro” (BENATTI, 2017, p. 09). Assim, é legítimo afirmar que as considerações articuladas pelo estudioso permitem analisar a sociedade brasileira pelo binômio fronteiriço situado entre a ordem e a desordem. A partir dessa dialética, há uma personagem que precisa viver.

No Brasil, no século XX, esse arquétipo da malandragem passa a ser representado de forma estereotipada. Em seu estudo, o autor aponta que no país, essa personagem adquire até mesmo traços marcantes. De forma profícua, Roberto Goto (1988) contribui com as considerações elencadas a respeito dos traços peculiares da representação do arquétipo da malandragem na ficção brasileira. Recorrendo à apresentação desse tipo, o crítico afirma que a figura da malandragem no imaginário coletivo da sociedade brasileira está associada de maneira a refletir determinados atributos específicos do brasileiro, tais como “hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, a manha e o jogo de cintura, muito apreciados no futebol e na política, a agilidade e esperteza no escapar de situações constrangedoras ligadas ao trabalho e à repressão [...]” (GOTO, 1988. p. 11).

O mais interessante é que, ao ser transplantado para a tela da TV, tais atributos específicos, como drible, manha, jogo de cintura etc., podem ser mais facilmente marcados e visualizados, haja vista a performance de tais personagens passar a ser vista em chave dramática, de modo que somo levados a inferir que, concebido do ponto de vista das câmeras, os estereótipos que ajudam a definir tais figuras são muito mais reforçados ainda.


Referências


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[Recebido: 11 out. 2019 – Aceito: 26 dez. 2019]











ETHOS DISCURSIVO DA FIGURA DO

FREI DAMIÃO NA LITERATURA DE CORDEL


ETHOS DISCURSIVE OF FREI DAMIÃO'S

FIGURE IN CORDEL'S LITERATURE



Marcio de Lima Pacheco136

Francisco de Assis Costa da Silva137

Edilene Leite Alves138



RESUMO: O objetivo do presente artigo visa investigar o ethos discursivo da figura do Frei Damião presente na literatura de cordel. O estudo é orientado pelo questionamento: qual o ethos do personagem Frei Damião – e não do indivíduo histórico – emerge da literatura de cordel? Trabalhou-se com a teoria do ethos desenvolvida por Dominique Maingueneau. O corpus é constituído pelos cordéis de Borges (2007, s/d), Cavalcante (1976), Silva (1997), Soares (1981) e Mota (1980). Por fim, afirma-se que o ethos da figura do Frei Damião presente na literatura de cordel reforça o caráter de identificação entre esse gênero literário e o povo brasileiro. Tanto o cordel como a figura do Frei Damião são faces da poesia popular e de um ethos de identificação entre a literatura e a realidade nacional, entre o texto poético e as características mais profundas que constituem o povo brasileiro.


PALAVRAS-CHAVE: Ethos. Frei Damião. Literatura de Cordel.


ABSTRACT: The objective of the present study is to investigate the discursive ethos of the figure of Frei Damião present in cordel literature. The study is guided by the questioning: what character of the character Frei Damião - and not the historical individual - emerges from cordel literature? We worked with Maingueneau's theory of ethos. The corpus is constituted by the cords of Borges (2007, s / d), Cavalcante (1976), Silva (1997), Soares (1981) and Mota (1980). Finally, it is stated that the ethos of Frei Damião's figure present in the cordel literature reinforces the character of identification between this literary genre and the Brazilian people. Both the line and the figure of Frei Damião are faces of popular poetry and an ethos of identification between literature and national reality, between the poetic text and the deeper characteristics that make up the Brazilian people.


KEYWORDS: Ethos. Frei Damião. Literature of twine.


INTRODUÇÃO


A Análise do Discurso é um campo de estudo abrangente que nos possibilita a realização de estudos no campo da inter-relação entre a linguagem, a literatura e a dimensão sociocultural. Trata-se de uma área de pesquisa que se “constituiu em torno da questão da linguagem, depois da língua e da história” (MAZIÈRE, 2007, p. 116). Dentro dessa área uma das possibilidades investigativas é o ethos.

  A noção de ethos discursivo é objeto de reflexão de diferentes pesquisas que estudam a imagem do enunciador produzida no discurso (AMOSY, 2010). Essa imagem, conforme Dominique Maigueneau (2005, 2008, 2014), é fruto de uma construção no discurso em suas múltiplas relações com o outro (sujeitos e discursos) e emerge na articulação entre variados elementos (verbais e não verbais, éticos e estéticos etc.), os quais necessitam da incorporação do interlocutor para apreendê-la em um conjunto complexo de representações sociais e culturais. Ou seja, a imagem que o público tem do orador antes de falar está diretamente ligada à eficácia da apresentação de si mesmo que ele construirá durante o intercâmbio. A capacidade do falante de refazer seu ethos anterior é, portanto, fundamental.

É importante notar que o ethos discursivo, embora se diferencie da tradição retórica, por exemplo da retórica latina (Cícero, Quintiliano), não deixa de concordar com três ideias básicas do ethos aristotélico, na qual o ethos é: a) uma noção discursiva, isto é, constitui-se por meio do discurso, não sendo, portanto, uma “imagem do locutor exterior à fala”, (b) um “processo interativo de influência sobre o outro” e (c) uma noção “[…] híbrida (sócio-discursiva), tem um comportamento socialmente avaliado, que não deve ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa”, própria de uma conjuntura histórico-social (MAINGUENEAU, 2006, p. 60).

Dentro da ótica da Análise do Discurso, os discursos são veiculados através de diversos gêneros, favorecendo investigações das mais diversas naturezas que envolvem a linguagem, seja na esfera do texto verbal ou do texto não-verbal. Toda manifestação da linguagem, de alguma forma, está articulada a um determinado meio de comunicação, através dos mais diversos gêneros textuais ou literários. Desta forma, é possível estudar os mais variados discursos que compõem o mundo da linguagem, seja através da língua, da cultura ou da literatura.

Entre esses estudos, destacamos o campo da literatura de cordel, que constituem um vasto terreno para análise, diante das figuras sócio-históricas que fazem parte da cultura nordestina religiosa, como o Frei Damião de Bonzano que representa, uma personalidade significativa para os cristãos católicos nordestinos, movidos pela fé no beato andarilho.

Nessa linha de pensamento a literatura de cordel absorve muitas figuras representativas da cultura sertaneja nordestina religiosa, cultural, social que, de algum modo, se configuraram como sujeitos reconhecidamente imortais pelo verso e pela poesia cordelista, entre eles, três figuras relevantes se destacam; o Padre Cícero Romão, o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, e o Frei Damião, o beato andarilho (COSTA, 1998). Desse modo,


Frei Damião é a terceira figura de relevo de preferência dos poetas populares e também dos leitores dos folhetos de cordéis. Perdendo somente para Lampião, o Rei do Cangaço, e o Padre Cícero Romão, que tiveram uma incalculável tiragem de folhetos (COSTA, 1998, p. 17).


A produção cordelística constam várias obras dedicadas a figura do Padre Cícero Romão e do Frei Damião. Sobre este último, destacam-se os cordéis produzidos por Borges (s/d; 2007)), Silva (s/d), Soares (1981), Cavalcante (1976) e Mota (1980).

Como mais uma manifestação da linguagem, sob o viés literário, o discurso poético-literário, através do cordel, pode nos servir não só de informação, mas também como forma de persuadir o outro de diferentes formas, desde o seu comportamento, costumes, opiniões, e outros fatores que possibilitem a construção de novos discursos. É preciso lembrar que o poema, ao ser construído e colocado no seio da sociedade, possui diversas funções que vão além do simples processo de comunicação, como a emoção, o convencimento, o encantamento, somente proporcionados pela linguagem literária.

Dentro desse contexto, o objetivo do presente artigo é investigar e refletir sobre o ethos discursivo da figura de Frei Damião presente na literatura de cordel. Diante disso, o estudo é orientado pelo questionamento: qual o ethos da figura do personagem Frei Damiãre.Não procuraremos nos debruçar sob – e não do indivíduo histórico, o missionário e sacerdote católico Damião de Bozzano, mais conhecido como Frei Damião – emerge da literatura de cordel?

Como salienta Costa (1998) a produção, no campo da literatura de cordel em torno da figura do Frei Damião é muito vasta. Apenas um estudo científico dessa natureza, não daria conta de analisar tamanha produção. Por isso, optamos por um corpus composto por poucos cordéis, mas capazes de nos oferecer uma dimensão necessária para compreender a construção do ethos do referido personagem dentro da literatura de cordel. Assim, para esta análise nos subsidiaremos nos cordéis escritos por: Borges (2007, s/d), Cavalcante (1976), Silva (1997), Soares (1981) e Mota (1980). A noção de ehtos será com base nas ideias defendidas por Maingueneau (2008a, 2008b, 2013, 2016, 1997), bem como as reflexões tecidas acerca do pensamento de Cavignac (2006), Potier (2012) e Coutinho (1978).

Desse modo, partimos do princípio de que o ethos, na literatura de cordel, representa a imagem do personagem que emerge dessa construção poética. É possível saber, ao certo, o que o poeta cordelista ou o cidadão, em sua singularidade, que escreveu os versos poéticos pensa ou endossa sobre o personagem histórico, como veremos na figura de Frei Damião. É preciso entender, através do estudo e da análise, o que o cordel constrói da figura dentro do poema, através do discurso, que vá além da conhecida figura histórica de Frei Damião.

Dentro desse contexto, notamos uma certa exaltação poética, heroica e mitológica do Frei Damião, muitas vezes apresentado, principalmente, na região nordeste do Brasil, como uma figura poética e religiosa, um missionário cristão, capaz de realizar milagres, digno de uma devoção popular. Frei Damião se consagra por sua trajetória religiosa enquanto missionário andante, defensores dos mais pobres e oprimidos, como podemos observar nos versos apresentados logo abaixo:



É assim: Frei Damião

Simples, humilde e bondoso

No Nordeste, onde ele passa

Tem sido até milagroso

Tornou-se a maior figura.

(MOTA, 1980, p. 5).


Desse modo, dividimos nosso estudo em três partes: a) Ethos discursivo, a partir da teoria desenvolvida por Maingueneau, procurando ver como se apresenta o conceito e a aplicação da categoria de ethos ao texto, considerando o cordel e sua relação com a oralidade; b) Literatura de cordel, em que procuramos ver , de forma introdutória, a origem, o conceito de literatura de cordel e sua influência no nordeste e em outras regiões do Brasil e c) a análise do corpus, considerando a teoria de Maingueneau sobre o ethos, aplicando à figura do Frei Damião pressente na literatura de cordel. Por fim, a título de conclusão, enfatizamos o reconhecimento do nosso estudo como forma pensar e refletir sobre o cordel e sua relação com o imaginário popular, entendendo a relação da figura simbólica de Frei Damião e a literatura de cordel.


ETHOS DISCURSIVO


O ethos é uma categoria de pesquisa que, desde o mundo antigo, tem contribuído para o aperfeiçoamento dos debates na filosofia, na ética, nos estudos da linguagem e em outras áreas do saber (QUELQUEJEU, 1983). Amossy (2016, p. 221), afirma que na sociedade contemporânea existe um grande interesse e até mesmo um retorno dos estudos em torno do ethos. Esse interesse é representado, por exemplo, pelo quadro figurativo de Benveniste (1988,1989), pelos trabalhados de Kerbrat-Orecchioni (1980) sobre a subjetividade na linguagem, pela noção de apresentação de si de Goffman (1959), pelas investigações, no campo da literatura pragmática, de Brown e Levinson (1987).

Dominique Maingueneau (2008b, p. 11) observa que tanto nos estudos da linguagem como também nas ciências humanas existe um interesse crescente pelo ethos. Para ele, esse interesse “está ligado a uma evolução das condições de exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a pressão das mídias audiovisuais e da publicidade". Ainda para o Linguista Francês (2013, p. 110), contemporaneamente, não se pode ver o ethos apenas como um “estilo de vida”, da forma como os gregos antigos pensavam. Para ele, existe uma série de fatores, no atual modelo societário, que limitam o ethos em sua formulação clássica. Entre esses fatores é possível citar as novas formas e construções do texto, ligadas as mídias e a publicidade, o poder, cada vez maior, da oralidade, em uma sociedade marcada por espaços sociais fraturados, por uma cultura da exposição individual via mídias.

Nesse ínterim, o ethos deve ser percebido como a imagem que emerge de um complexo conjunto formado pela formação das palavras, pelo planejamento e exposição textual, pela recepção do texto junto ao público e muito mais. Assim,


O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale. Parece necessário, então, estabelecer uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo. [...]. Uma outra série de problemas advém do fato de que, na elaboração do ethos, interagem fenômenos de ordens muito diversas: os índices sobre os quais se apoia o interprete vão desde a escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento textual, passando pelo ritmo e a modalidade. O ethos se elabora, assim, por meio de uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade do interprete, que tira suas informações do material linguístico e do ambiente (MAINGUENEAU, 2008b, p. 15-16).


Assim, o autor Professor da Sorbonne tenciona construir um discurso positivo, bem elaborado que passa para o auditório uma imagem positiva proporcionada por esse discurso. Essa imagem ou a imagem do discurso – e não o discurso em si – é o que constituiu o ethos. Nesse caso, o sujeito falante, dentro da relação entre o texto e a oralidade, necessita de imagem do discurso para poder construir algum tipo de interação (confiança ou desconfiança, aprovação ou desaprovação, etc) com o texto e, principalmente, com o conteúdo informacional que emana do texto. Sobre essa questão, Maingueneau ressalta:


A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão por meio do modo como se constrói o discurso, em dar de si uma imagem capaz de convencer o auditório ao ganhar sua confiança. O destinatário deve assim atribuir certas propriedades à instância apresentada [...]. (MAINGUENEAU, (2016, p. 267).


O ethos, por conseguinte, é o responsável pela construção de uma figura, de um personagem relevante dentro do texto, no caso em pauta, a figura de Frei Damião na literatura de cordel. A partir dessa imagem, dessa representação imagética-textual, é que a figura ganha autonomia dentro do imaginário social, fazendo com que seja (re) conhecida por determinadas características e/ou ações. Para Maingueneau:


[...] o discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de uma “voz”. Esta era, aliás, uma dimensão bem conhecida da retórica antiga que entendia por ethé as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem. [...]. A eficácia destes “ethé” se origina no fato de que eles atravessam, carregam o conjunto da enunciação sem jamais explicitarem sua função. (MAINGUENEAU, 1997, p. 45)



Isto posto, o ethos, então recobre não apenas a dimensão verbal, mas também um conjunto de características psíquicas e físicas que se associam a um fiador, o qual se revela por meio de um tom, atestando o que diz. Esse fiador recebe um caráter e uma corporalidade que variarão conforme a constituição dos textos, a cena de fala criada. Enquanto “o caráter corresponde a um feixe de traços psicológicos”, a corporalidade está ligada a uma “compleição física e a uma forma de vestir” (MAIGUENEAU, 2006,p. 62)

É interessante notar que a apresentação de si no discurso, confere autoridade ao locutor. Isso permite, em diferentes graus, a emergência de afinidades e proximidades com determinados indivíduos assim como, por outro, a emergência de distinções e distanciamentos de outros. Essa compreensão da imagem que se constrói no discurso, tanto individual como coletiva, implica em uma reflexão sobre ethos prévio e ethos discursivo. O primeiro pressupõe conhecimentos sobre o modo de ser do locutor. Enquanto que o segundo, exige a observação do discurso por meio do qual o locutor projeta uma imagem de si e negocia sua identidade.

Com esse pensamento, ressaltamos que o papel do ethos se dá de forma não impositiva, ou seja, é algo originado pelo outro a partir do outro, a respeito do que ele constrói sobre determinado sujeito.

É importante ressaltar que a imagem, a qual a literatura de cordel ajuda a construir de Frei Damião é fruto dos seus discursos (sermões e modo de vida). Pois, o discurso, que circula socialmente, acerca do Capuchinho, oscila entre o missionário piedoso, feitor de milagres, o homem caridoso e a imagem de um religioso radical com um discurso de um cristianismo primitivo, rural e bucólico. Essa imagem, esse ethos é constituído, em grande medida, pela literatura de cordel, a partir das pregações e do modo de vida do Frei Italiano.

Vale salientar que o ethos não é uma representação pronta e acabada. Ele pode ser articulado, inclusive, pela relação do texto cordelista com a oralidade, a partir dos elementos apresentados no texto: vestimentas, argumentos, posturas, gestos e palavras. Tudo isso, em conjunto, é responsável pela construção de uma imagem sociocultural, na tentativa de auxiliar o interlocutor na construção de uma representação, geralmente positiva, de algum elemento e/ou figura sócio histórica, presente no texto. Em consonância com o exposto, Maingueneau elucida:


Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário por meio do próprio movimento da fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano, mas de forma lateral. Ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário. (MAIGUENEAU, 2008, p. 57).


Assim, a construção do ethos, como já foi dito, é um conjunto de elementos que o sujeito, presente no texto, possui, de forma que o receptor é tocado de todas as formas pelo locutor, podendo fazer suas próprias atribuições sobre o outro e construir o que compreende como a representação do outro, ou seja, o ethos presente no texto. Por essas razões, é que o sujeito faz uma junção de corpo e discurso sobre o outro, construindo relações dentro de suas especificidades sociais e pessoais e permitindo essa elaboração do ethos de cada indivíduo. Para Maingueneau:


A noção de ethos permite ainda refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos ao ponto de vista defendido por um discurso [...] permite articular corpo e discurso: a instância subjetiva que se manifesta através do discurso não se deixa perceber neste apenas como um estatuto, mas sim como uma voz associada à representação de um “corpo enunciante” historicamente especificado. (MAIGUENEAU, 2016, p. 271).


Como podemos observar, a adesão do sujeito a um discurso não é automática e nem pré-programada. Em grande medida, essa adesão depende dos elementos internos que compõem o texto, de como o enunciado é construído e organizado e como essa organização, interna ao sistema frasal, poderá causar algum grau de impacto no sujeito. Um sujeito que, em muitos sentidos, está relacionado a oralidade, aos sistemas de fala, signos e crenças. É a relação entre o texto, carregado com seus enunciados, o sistema de fala e signos e o sujeito que é possível estabelecer um ethos entre o texto e o sujeito. Na negociação da construção da imagem de si, o locutor (o cordelista) se engaja em um diálogo com o que os outros dizem e pensam sobre aquela pessoa que se fala.


LITERATURA DE CORDEL


A literatura de cordel, no 19 de setembro de 2018, foi reconhecida pelo Conselho Consultivo, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como Patrimônio Cultural Brasileiro (IPHAN, 2018). Esse tipo de literatura é uma das expressões literárias que melhor representam o cotidiano, a história e o povo brasileiro.

Desse modo, a literatura de cordel é um gênero literário que chegou ao Brasil no período da colonização, entre os séculos XVII e XVIII, trazida pelos portugueses. Muitas vezes, serviu como forma de manifesto literário da cultura popular, especificamente, no nordeste brasileiro. Esse gênero desenvolveu peculiaridades próprias no nordeste brasileiro e, atualmente, vive um processo de expansão pelo Brasil e por outros países (EUA, México, França, Itália, etc) como pode ser visto em Abreu (1999).

Conhecidos popularmente como cordéis, esses folhetos populares em forma de poema são livros pequenos que geralmente contam, em forma poética, uma história. Muitas vezes, são livros ilustrados com xilogravuras estampadas, principalmente, em suas capas, fazendo uso de temas e acontecimentos populares, através da linguagem impressa, composta de rimas poéticas metrificadas, cuja origem mais remota, são os trovadores medievais. A origem do nome cordel se dá pelo fato de, no final do século XIX e início do XX, os pequenos livros contento os poemas eram pendurados, nas feiras livres das cidades do Nordeste brasileiro, em cordas e/ou barbantes para melhor exposição, e vendidos em locais de comércios. Sobre essa questão ressaltamos:


[...] a Literatura de Cordel assumia função informativa, fazendo o papel de uma imprensa por vezes inacessível às camadas populares. Assim, “homens dispersos no espaço e ‘fechados’ nas fazendas encontram, ao comprar os folhetos, a oportunidade de saber das últimas novidades ou de trocar uma moeda por um pouco de sonho” (POTIER, 2012, p. 19).


Como vemos, no final do século XIX e início do XX, por meio da literatura de cordel as pessoas que viviam na zona rural, muitas vezes, isoladas e não tinham o hábito de frequentar a cidade, buscavam informações através dessa leitura. Além disso, esse gênero literário, durante muito tempo, em meio a imensidão e até mesmo da solidão da zona rural, funcionou como elemento de distração para o cidadão. Assim, o cordel funcionava como uma espécie de grito popular que unia à poesia, os clássicos da literatura universal e a experiência sociocultural, principalmente, a experiência do morador da zona rural do nordeste brasileiro (COUTINHO, 1978).

Nesse sentido, a literatura de cordel continua possibilitando que uma parcela considerável da população, principalmente, a população da zona rural, grupos humanos que vivem semi-isolados no interior do Brasil, possam, ao mesmo tempo, expressar e ter acesso ao patrimônio cultural, aos signos e significados que ajudam a consolidar um discurso de identificação sociocultural.

Esse tipo de literatura narra para o povo o que ocorre no dia-a-dia. Sua intensa força de persuasão o tornou um grande veículo disseminador de ideias. Colocar o poeta popular como cronista da contemporaneidade aproxima a poesia das pessoas, fazendo com que a difícil realidade seja decodificada de uma forma diferente, ainda dura, ainda real, mas que leva as pessoas a refletirem de uma forma mais sutil.

Dentro desse discurso emerge figuras folclóricas, do imaginário social e portadoras de uma mensagem religiosa, destacam-se: o Padre Cícero Romão, Antônio Conselheiro e o Frei Damião. O discurso do sujeito nordestino, muitas vezes, entrecortado por uma mensagem religiosa, é apresentado por Silva (1997, p. 3-4) da seguinte forma:


Entre os deuses que reinaram

no legendário sertão

estão em primeiro plano

o padre Cícero Romão

o legendário Conselheiro

e o nosso frei Damião.


São grandes missionários

que a Deus obedientes

vêm consolida a fé

nos corações mais descrentes

deixando um rastro de luz

clareando nossas mentes.


Através dos versos, Silva (1997), demostra a figura do Frei Damião, percebida pelo povo nordestino, como um rastro de luz. Do ponto de vista do ethos, uma imagem positiva do religioso católico, um missionário que deve iluminar os corações dos seres humanos. É preciso esclarecer que a literatura de cordel não segue uma religião ou uma doutrina política e filosófica, contudo, devido as suas origens ibéricas, à influência cristã, à forte presença da cultura popular e por estar tão perto do homem simples e comum, existe um forte conteúdo espiritual e religioso dentro dos textos que a compõem.

Nesse pensamento, é possível encontrar na literatura de cordel elementos e princípios religiosos ligados a várias religiões, do espiritismo ao budismo. No entanto, o conteúdo religioso mais presente nesta expressão literária é o cristianismo. Não se pode afirmar que o cordel é cristão, mas seu conteúdo poético-cultural está carregado de elementos da religiosidade popular e da cultura cristã. Por esse motivo, não é nenhum espanto que das três figuras mais citadas, ao longo da história da literatura de cordel, duas sejam sacerdotes católicos, ou seja, o Padre Cícero Romão e o Frei Damião.

Reforçamos o pensamento ainda de que o presente estudo não é uma análise exaustiva da presença de Frei Damião dentro da literatura de cordel, mas trata-se de uma análise demonstrativa de como é efetivado o ethos desse sacerdote católico, enquanto personagem, na literatura de cordel.



A FIGURA DE FREI DAMIÃO NA LITERATURA DE CORDEL


Para iniciarmos nossa análise, utilizaremos algumas estrofes do cordel: Os Milagres de Frei Damião, de José Soares, composto por vinte e duas estrofes com versos em sextilha. Nas estrofes II e III, o poeta nos leva a perceber o ethos discursivo da figura do Frei Damião:


Com seu poder sacrossanto

dado pela providência

de um poder infinito

da divina Oniciencia

que a santa majestade

deu-lhe o poder de bondade

do nosso Deus de clemencia


Assim como jesus Cristo

transformou água no vinho

frei Damião também faz

como fez o meu padrinho

muitas curas milagrosas

porque a mão poderosa

deu poder ao capuchinho

(SOARES, 1981, p. 11)


Nessas estrofes Frei Damião é apresentado como um enviado de Deus que recebeu poderes capazes de fazer curas e milagres. Essa passagem está presente no primeiro e no terceiro versos da segunda estrofe. Já nos dois últimos versos da segunda estrofe também é possível vislumbrar que ele recebeu poderes divinos, passagem do texto em que o poeta parece reforçar a ideia de confiança no que está expressando pelo seu discurso. Esses fatores contribuem para que ele seja visto como um religioso capaz de operar milagres e de realizar feitos sobrenaturais. Pensando na construção do ethos, pelo discurso construído no cordel, recorremos a Maingueneau para esclarecer:


[...] o ethos implica uma maneira de se movimentar no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida mediante um comportamento global. O destinatário o identifica com base num conjunto difuso de representações sociais avaliadas de modo positivo ou negativo, de estereótipos que a enunciação contribui para confirmar ou modificar. (MAIGUENEAU, 2016, p. 272).


Assim, o ethos, se retrata através de representações sociais que podem ou não ser positivas, dependendo daquilo que esteja sendo representado. No caso do cordel em pauta, a figura de Frei Damião, ganha, diante do leitor, uma imagem positiva, impregnada da cultura religiosa, dos problemas geofísicos (secas, escassez de água, etc) e sociais que habitam o mundo do leitor. Na verdade, o discurso enfatiza um sujeito enviado de Deus, capaz de fazer milagres, como se quisesse passar uma mensagem, uma palavra, uma construção enunciativa capaz de dar esperança ao sofrido povo do Nordeste e de outras regiões do país. Das estrofes IV até a IX Soares explicita um dos miraculosos atribuídos a figura do Frei Damiao. Ele apresenta esses feitos da seguinte forma:


Na cidade de Bom Conselho

curou uma professora

da irmandade católica

Maria Auxiliadora

que tinha uma santa madre

autorizada do padre

como sua diretora


Essa pobre professora

sofria de um mal incurável

desenganada dos médicos

em condição deplorável

da família abandonada

pelo povo desprezada

num estado detestável


No dia 7 do mês

o frade Frei Damião

apareceu na cidade

fazendo santa missão

e a professora em pranto

pediu ao padre santo

lhe ouvir uma confissão


Frei Damião aceitou

o pedido da cliente

notando que sua filha

estava muito doente

a professora coitada

a o padre ajoelhada

contou tudo em continente


O padre lhe perguntou

se acreditava na cruz

ela disse a cruz pra mim

é como o símbolo da luz

erigida na capela

frei Damião disse a ela

pois tenha fé em Jesus


Ela contou os pecados

foi pra casa descansada

passou a noite dormindo

não sentiu dores nem nada

dez horas ela deitou-se

pela manhã levantou-se

radicalmente curada.

(SOARES, 1981, p. 2-3)



Soares (1981) apresenta um dos milagres atribuídos ao Frei Damião; a cura de uma professora que tinha uma doença incurável. No decorrer das estrofes são colocadas situações, do ponto de vista poético e imagético, sobre a aproximação da professora com o frade. Esse detalhamento exposto no cordel possibilita o leitor a criar uma imagem de como se deu esse fato extraordinário. Temos aí, uma cenografia, parte da cena é o confessionário que indica o arrependimento daquela, diante do frei que lhe ouvira a confissão, arrepende-se e implora o seu perdão e cura. A outra parte, é sua casa que indicando assim o regresso e ao locus que talvez lhe angustiava e a cura após o sono. Não após o descanso, pois a mesma já chegou em casa em estado de cura e paz. Essa cenografia valida a fama do Frei e a fé da mulher que sofria de uma doença.


Partindo dessa linha de pensamento é possível citar Maingueneau (2008, p. 65):


De fato, a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da leitura é um estereótipo cultural que subsume determinado número de situações estereotípicas associadas a comportamentos [...]. (MAIGUENEAU, 2008, p. 65).


Nesse sentido, Maingueneau lembra que o leitor é encaminhado pela dinâmica interna do texto, a se colocar no papel de um personagem e, desse modo, consiga imaginar-se vivenciando os acontecimentos narrados nele. Em grande medida, a figura do Frei Damião é vista, tanto no universo poético do cordel como em setores da cultura popular brasileira, como um religioso praticante de milagres, devido ao processo de incorporação. Isso acontece pela forma como texto poético é organizado, pois a força resultante da relação entre estrutura poética-textual, a relação entre texto e oralidade e o mundo social fazem com que o leitor e/ou o ouvinte do texto, mergulhe no imaginário produzido pelo texto.

É preciso lembrar que grande parte do público da literatura de cordel apenas ouve/escuta a declamação dos poemas –Com isso, independente dos fatos reais que circundam a vida do sacerdote Frei Damião, o personagem, a figura literária Frei Damião passa a ter uma imagem de santo milagreiro, de missionário que faz curas e fatos extraordinários, construída pelo discurso no cordel.

Na sequência, Soares nas estrofes XV, XVI e XX ressalta a santidade atribuída a Frei Damião pelos fiéis cristãos:


Toda vida comparei

frei Damião de Bozano

com Padre Cícero Romão

e o Papa do Vaticano

segundo o que tenho visto

frei Damião é ministro

do nosso Deus soberano


Frei Damião é velhinho

chega já anda corcundo

mais pode fazer milagre

em menos de um segundo

pois é um santo ministro

imitando Jesus Cristo

quando andava pelo mundo


[...]


Se frei Damião morrer

Entra direto no ceu

Para mim ele é um santo

Jamais poderá ser réu

Frei Damião e simbólico

Eu como sou apostólico

A ele tiro o chapéu.

(SOARES, 1981, p. 5-7).


Essa cenografia permite que a medida que os valores do Frei em comparação a outras figuras, há uma precisão temporal que dá ao enunciador uma condição de notoriedade ao Frei Capuchinho e de sua vida miraculosa. Podemos dizer que há um simbolismo religioso na própria figura de seu agir, que é percebido pelo cordelista e pelo povo.

O fragmento do Cordel possibilita a construção de um ethos, no qual Frei Damião tem a imagem, a imagética de um homem santo, com uma vida de piedade e de dedicação aos fiéis. Uma das técnicas utilizadas nessas estrofes é colocar a imagem de Frei Damião junto, de forma correspondente, à outra figura relevante e mística da literatura de cordel; o Padre Cícero Romão. Outra técnica, do ponto de vista da construção de um ethos, é comparar a figura do Frei Damião com o papa, ou seja, o líder espiritual da Igreja Católica. Assim, atribui-se ao Frei Damião uma autoridade espiritual, mística, ética e, até mesmo humanística universal.

Com isso, Frei Damião não é apenas um missionário que fez pregações no nordeste do Brasil, um imitador de Jesus Cristo, mas um portador de um discurso universal, que parte do nordeste brasileiro. O destinatário do seu discurso não está circunscrito a essa região do país. Trata-se de um discurso voltado para o mundo, para as fronteiras fora do Brasil. Na XX estrofe Soares (1981) fortalece esse ethos de santidade, de discurso universal atribuído a figura do Frei Damião, pois devido aos serviços ético-religiosos prestados a humanidade ele já teria um lugar assegurado no paraíso bíblico.

No sentido de reforçar esse raciocínio, recorremos a Maingueneau, quando afirma:


Há assim uma circularidade constitutiva entre a imagem que ele dá de sua própria instauração e a validação retrospectiva de certa configuração da comunicação, da repartição de sua autoridade, do exercício do poder que ele cauciona, denuncia ou promove por seu gesto instaurador. (MAIGUENEAU, 2008, p. 54).


A partir desse raciocínio, compreendemos que nas estrofes apresentadas, existe uma relação, mesmo que precária, entre o sujeito histórico Frei Damião – de fato ele existiu, era um sacerdote, pregava missões cristãs nas cidades do interior do nordeste brasileiro, e a representação sócio religiosa e poético-imaginária construída pelo texto. O texto apresenta um personagem, uma figura poética identificada com o nome de Frei Damião, que possui algumas características históricas desse sujeito. Contudo, além dessas características, apresenta uma construção imagética que coloca essa figura literária junto dos grandes nomes da cristandade, dos grandes vultos da história da humanidade, que atribui a essa figura um ethos de um discurso universal e humanístico.

Já no cordel, cujo título é Frei Damião: o último santo do sertão, Silva (1997) também faz referência a figura do Frei Damião. Para melhor esclarecimento deve-se citar, por exemplo, as estrofes VII e XIV do poema:


Frei Damião de Bozzano

(perdão pelo desatino)

São Damião Brasileiro

São Damião Nordestino

a quem milhões de devotos

entregarão seu destino.


[...]


Seguem os missionários

seus luminosos destinos

reverenciados como

santificados, divinos

na alma das multidões,

nos corações nordestinos.

(SILVA, 1997, p. 2-4).


Nas estrofes apresentadas, o poeta manejar as palavras com acerto, relacionando o nome do sacerdote católico, ou seja, Damião de Bozzano, com o creme masculino, geralmente utilizado para se barbear, Bozzano. Com isso, cria-se um trocadilho entre o “Bozzano” do Frei Damião e o “Bozzano” do creme de barbear. Por isso, o poeta pede “perdão pelo desatino” dos versos poéticos. Além disso, o poeta compara a figura do Frei Damião, relacionada a um famoso missionário que fez pregações no nordeste do Brasil, com São Damião um monge que viveu na Síria e que é um dos grandes pregadores e santos do monasticismo cristão.

Nesse sentido, o poema constrói uma indicação, uma espécie de proposta indireta, para que o Brasil, país que até o final do século XX não tinha um santo proclamado, de forma oficial, pela Igreja, aclamasse o Frei Damião como o santo brasileiro, como uma espécie de São Damião do Brasil. É preciso observar que a insistência de Silva (1997) em apresentar a figura do Frei Damião como um santo, muito provavelmente a versão brasileira de São Damião, é uma técnica de construção do ethos muito presente na literatura de cordel. Em muitos aspectos, o cordel faz uma identificação entre o sofrimento presente na história da vida dos santos e o sofrimento vivido pelo cidadão. Sobre a relação entre o cordel, a vida dos santos e as angústias socioculturais vividas pelos cidadãos, especialmente os cidadãos do nordeste do Brasil, Cavignac (2006) ressalta:


A humanidade e o sofrimento dos santos aparecem assim como elementos fundadores e organizadores do sistema de representação do mundo divino. [...] os santos chegam até a compreender e resolver os problemas dos homens, haja vista que conhecem o sofrimento. [...] eles se tornam interlocutores potenciais. Isso explica porque os sertanejos insistem mais no poder dos santos [...] poder adquirido em consequência de um sofrimento físico ou moral (CAVIGNAC, 2006, p. 207).


De acordo com Cavignac (2006) um sujeito não se santifica à toa, para que isso ocorra, é necessário que haja motivos maiores, fatores contribuintes, como os sofrimentos físicos, os problemas econômicos e as angústias socioculturais. Esse tipo de construção discursiva-textual encontra-se no cordel de Silva (1997), pois seu discurso indica uma identificação entre o personagem Frei Damião, a vida dos santos e os diversos níveis sofrimento enfrentados pelo cidadão.

Desse modo, na construção desse ethos, existe a articulação de certas características e, por essa razão, é importante que a relação entre o texto/orador possa ter uma noção de conhecimento sobre o seu público (leitor e/ou comunidade da oralidade), para que possa haver algum grau de adequação às diferentes circunstâncias que lhe serão proporcionadas, acarretando em uma identidade interligada ao público. Sobre essa questão, Maingueneau esclarece:


O ethos constitui, assim, um articulador de grande polivalência [...] a qualidade do ethos remete a um fiador que, através desse ethos, proporciona a si mesmo uma identidade em correlação direta com o mundo que lhe cabe fazer surgir [...] o fiador que sustenta a enunciação deve a legitimar por meio de seu próprio enunciado seu modo de dizer. (MAIGUENEAU, 2016, p. 278).


Nessa perspectiva, o ethos deve, de um lado, está relacionado, de alguma forma, ao público leitor/oralidade. Um ethos totalmente desvinculado com esse público não terá condições de construir pontes de identificação, entendimento e interpretação. Se a literatura de cordel é muito viva e presente no Brasil, principalmente, no nordeste brasileiro, é, em grande medida, devido ao caráter de ethos de identificação entre o público e o texto.

Do outro lado, o ethos deve ser capaz de edificar uma articulação entre o texto e o mundo vivido, entre a estrutura poética-imaginária e a vida real. Um exemplo de como o ethos deve estabelecer essas duas dimensões consta de Silva (1997). De um lado, Silva (1997) constrói uma estrutura poética ligada diretamente ao público leitor/oralidade, principalmente, ao público consumidor de poesia popular no interior do Brasil e, do outro lado, ele consegue articular a estrutura textual-poética com a realidade social, religiosa e cultural de amplos setores do interior brasileiro.

Seguindo nossa análise, passemos a outro cordel: Frei Damião: o missionário do Nordeste, de Cavalcante (1976). As estrofes V e IX apresentam a figura do Frei Damião da seguinte forma:


Trata-se de Frei Damião

De porte simples, sereno

Com uma batina velha,

De estrutura: pequeno,

Pelas cidades pregando

Ao povo anunciando

Como Jesus Nazareno.


[...]


Na cidade que ele chega

É formada a romaria

Por milhares de fiéis

Que o próprio povo anuncia.

Vale a pena a pregação

Do frade Frei Damião

Que fala sem hipocrisia.

(CAVALCANTE, 1976, p. 2-3).


Como é possível perceber, as estrofes ilustram o ethos da figura do Frei Damião como um pregador humilde, que fala a verdade, distante dos interesses egoístas existentes na vida cotidiana. Nesse fragmento existe um ethos de identificação, quase de semelhança. De um lado, o nordeste brasileiro é aproximado, do ponto de vista imagético, com o deserto da antiga Palestina, região onde viveu e pregou Jesus Cristo. Assim como a Palestina, o nordeste brasileiro é uma região (semi) desértica, pobre, com um povo explorado e que espera a redenção por meio da vinda do messias.

Do outro lado, existe a identificação com o carisma de Jesus Cristo, um líder messiânico palestino, que atraia multidões para suas pregações. Nesse contexto, a figura do Frei Damião é apresentada como um líder religioso cristão que, assim como Jesus Cristo, vive em um (semi) deserto, uma região pobre, explorada e que suas pregações atraem multidões de curiosos e de pessoas que desejam, de forma sincera, a redenção dos problemas individuais e sociais.

Nesse sentido, a identificação de um ethos discursivo, entre a figura do Frei Damião e a vida austera do deserto palestino, entre Frei Damião e a disciplina religiosa dos profetas bíblicos é apresentada por Costa (1998) da seguinte forma:


Para o povo, Frei Damião foi milagroso, e para muitos outros foi um milagreiro. Quando estava em plena atividade missionária pelas cidades nordestinas, ia dormir tarde da noite e deitava-se no chão, acordando-se às quatro horas da manhã para confessar o povo. Alimentava-se pouco [...] um símbolo do seu próprio sofrimento. (COSTA, 1998, p. 25).


A partir de Costa (1998) deve-se perceber que, de um lado, existe um ethos que articula o personagem Frei Damião, presente na literatura de cordel, e a realidade do nordeste brasileiro. Uma realidade, muitas vezes, marcada por secas, problemas sociais e crises econômicas. Do outro lado, assim como na antiga Palestina, a esperança para superar esse quadro de problemas e conflitos sociais não vem de um discurso político, do direito ou de alguma instância da racionalidade. Pelo contrário, uma possível solução é vislumbrada no discurso religioso, místico, poético e imagético. O discurso proferido pelo cordel nos leva a entender que a esperança não vem da razão ou da política, mas sim da poesia e da vida religiosa.

Sobre algumas características do ethos, que podem ser aplicadas a figura do Frei Damião, presente na literatura de cordel, Maingueneau ressalta:


- o ethos é uma noção discursiva; é construído por meio do discurso, em vez de ser uma “imagem” do locutor exterior á fala;

- o ethos está intrinsecamente ligado a um processo interativo de influência sobre o outro;

- o ethos é uma noção intrinsecamente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela mesma integrada a uma dada conjuntura sócio histórica. (MAIGUENEAU, 2016, p. 269).


As características, acima, apresentadas por Maingueneau (2016) podem ser encontradas no cordel de Cavalcante (1976) – e também de Silva (1997) e Soares (1981) – sobre a figura de Frei Damião. De um lado, trata-se de uma construção literária ligada a uma situação sócio histórica, ou seja, está vinculada a uma região geofísica (o nordeste do Brasil), a um contexto de problemas e conflitos socioculturais. Do outro lado, está ligada ao que Maingueneau classificou de noção hibrida do discurso, isto é, um discurso que é constituído e, ao mesmo tempo, oscila entre diferentes polos do discurso, como, por exemplo, o discurso literário, o discurso religioso, o discurso de crítica social e o discurso da esperança ética. Essa complexa combinação ajuda a construir o ethos de identificação entre o texto, o personagem – nesse caso a figura do Frei Damião – e o conjunto formado pelo leitor/comunidade de oralidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


De forma geral, os cordéis utilizam de uma variedade de artifícios de linguagem para construir um ethos de identificação entre o texto e o conjunto formado pelo leitor/comunidade de oralidade. Nesse contexto, eles contribuem para que o sujeito, enquanto ser social, possa atribuir diferentes visões sobre o outro e sobre a realidade sócio histórica em que está envolvido.

O ethos de identificação dentro da literatura de cordel visa, de um lado, manter – não exatamente reproduzir – a estrutura poética-textual que foi estabelecida pelo texto, mas do outro lado, visa conduzir o conjunto formado pelo leitor/comunidade de oralidade a ir além da pura métrica poética e, com isso, mergulhar esse conjunto na realidade sócio histórica. Uma realidade que, muitas vezes, está carregada de problemas e conflitos sociais.

Nesse sentido, a teoria desenvolvia por Maingueneau ajudou a refletir e a (re) posicionar a figura do Frei Damião presente na literatura de cordel. De um lado, essa figura possui um ethos de identificação entre o deserto da Palestina e o semiárido brasileiro, entre o carisma do pregador do nordeste do Brasil e a figura de Jesus Cristo no deserto da antiga Palestina. Do outro lado, existe o ethos de articulação entre a figura do Frei Damião e a geografia física do nordeste brasileiro, entre os problemas sociais e as esperanças do povo nordestino. A figura do frei Damião termina sendo um sofisticado articulador poético-linguístico, textual-histórico para os dramas e esperanças de muitas populações que vivem na zona rural do Nordeste e de outras regiões do país.

Por fim, lembramos que, num tempo em que a literatura de cordel foi reconhecida, como Patrimônio Cultural Brasileiro, um estudo sobre o ethos da figura do Frei Damião presente na literatura cordelística só reforça o caráter de identificação entre esse gênero literário e o povo brasileiro, bem como a necessidade de refletir sobre os estudos da linguagem que envolvam a construção do discurso. Tanto o cordel como a figura do Frei Damião são faces da poesia popular e de um ethos de identificação entre a literatura e a realidade nacional, entre o texto poético e as características mais profundas que constituem o povo brasileiro.


REFERÊNCIAS


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CAVIGNAC, J. A literatura de cordel no Nordeste do Brasil. Natal: Edufrn, 2006.


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SOARES, J. F. Os Milagres de Frei Damião. João Pessoa, 1981. Disponível em:<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cordel&pagfis=27333>. Acesso em: 04 de fevereiro de 2018.

[Recebido: 26 jun. 2019 – Aceito: 26 dez. 2019]







LAS MEIGAS GALLEGAS – “HABERLAS, HAYLAS”:

A RESSIGNIFICAÇÃO DA IMAGEM DA BRUXA NA GALIZA


LAS MEIGAS GALLEGAS – “HABERLAS HAYLAS”:

THE REFRAMING OF THE WITCH’S IMAGE IN GALICIA


Yls Rabelo Câmara139

Maria Paz Pizarro Portilla140

RESUMO: Esse artigo apresenta a meiga galega, que ao longo dos séculos deixou de ser a mulher cuja conduta oscilava entre a bondade e a maldade e passou a representar a proteção dos que em seus poderes creem, sem que com isso perdesse seus contornos originais de manipuladora de energia segundo os seus interesses. Esse estudo é válido porque trata de um levantamento bibliográfico que demonstra como a concepção que se tem da bruxa galega tem se transformado com o transcorrer do tempo e, em especial, no último século e meio. Para ancorar nossas considerações, nos amparamos em investigadores prestigiosos da área. Concluímos que o estudo das meigas galegas merece um olhar mais atento da Academia, já que reflete as mudanças econômico-sociais e histórico-culturais pelas quais os galegos vêm passando nos últimos cento e cinquenta anos e que reverberam em antigas crenças que resultam atuais, em um contexto que lhes empresta um novo significado para além do original. Estudar as meigas da Galiza representa um mergulho nas fontes mais genuínas da cultura galega, que nos influencia indiretamente, uma vez que o ibérico está conosco há mais de quinhentos anos.


PALAVRAS-CHAVE: Meigas Galegas. Folclore Galego. Superstição na Galiza. Ressignificação.


ABSTRACT: This article presents the Galician meiga, who over the centuries has ceased to be the woman whose conduct oscillated between goodness and evil and has come to represent the protection of those who believe in her powers, without losing her original features as a manipulator of energy according to her interests. This study is valid because it is a bibliographic survey that demonstrates how the conception of the Galician witch has changed over time and, especially in the last century and a half. To anchor our considerations, we rely on prestigious scholars of the area. We conclude that the study of Galician meigas deserves a closer look by the Academy, as it reflects the economic-social and historical-cultural changes that Galicians have been going through in the last century and a half and that reverberate in old beliefs that are current, in a context lends them a new meaning in addition to the original. Studying the Galician meigas represents a dip in the most genuine sources of Galician culture, which influences us indirectly, since the Iberian has been with us for over five hundred years.


KEYWORDS: Galician Meigas. Galician Folklore. Superstition in Galicia. Reframing.



CONSIDERAÇÕES INICIAIS


A meiga galega é uma figura folclórica feminina massivamente entranhada no inconsciente coletivo ibérico, não apenas espanhol. Trata-se de uma bruxa que, em suas origens, esteve ligada ao Mal, mas que com o tempo foi sendo repaginada, neutralizada em sua malignidade e hoje representa uma entidade menos negativa, chegando a ser associada à simbologia da proteção e da bondade.

Essa transposição de um polo a outro está em sintonia com a própria transformação pela qual vem passando a bruxa, em sentido macro (durante séculos de cristandade, transformação essa iniciada na Europa e depois irradiada para as culturas tocadas pelas conquistas territoriais europeias dos séculos XVI e XVII); em sentido micro, a partir dos movimentos românticos e nacionalistas do século XIX (JIMÉNEZ-ESQUINAS, 2013).

Originalmente concebida como a mulher sábia, detentora de um conhecimento ancestral feminino, conforme Câmara (2016), que a permitia ter domínio sobre a arte de manipular energia, de paliar dores ao promover a cura ou de eliminar o sofrimento por meio da providência da morte, a bruxa teve seu caminho interceptado pela falsa moral judaico-cristã misógina e falocêntrica, que com o passar do tempo tornou-se lassa, a ponto de hoje assistir à evolução do conceito de bruxa e de ver surgir a bruxa neopagã, empoderada - as wiccanas141 e as praticantes do Neoxamanismo142 - e de repô-la ao lugar que às suas ancestrais pertenceu. Nos dias que correm, quando uma mulher é chamada de bruxa (apesar do estereótipo cristianizado), a estamos qualificando como inteligente, poderosa e tocada pela Espiritualidade (imagem que vem se cristalizando com a difusão de religiões neopagãs, como as supramencionadas).

Assim sendo, o ponto fulcral desse trabalho é a meiga, a bruxa pertencente ao folclore pretérito e atual da Galiza que, dependendo do recorte temporal e do contexto no qual esteja mergulhada, pode ser boa ou má.

Para que melhor a apresentemos, dividimos esse artigo em partes entre si complementares, a saber: em um primeiro momento, expomos a justificativa para essa pesquisa e, em seguida, detalhamos a metodologia utilizada na coleta dos dados; ato contínuo, analisamos a presença das meigas no folclore galego. Isso posto, tratamos, na última parte, da reconfiguração pós-moderna deste ícone da Galiza nos dias passados e atuais.


JUSTIFICATIVA


A bruxa tem atraído nossa atenção e nosso olhar acadêmico desde que cursamos o mestrado em Filologia Inglesa (Letras Inglês), na Universidade de Santiago de Compostela, entre os anos de 2007 e 2009. Naquele momento, vivíamos em terras jacobinas, lugar mágico, especialmente marcado pela cultura céltica, e onde as meigas são vistas com simpatia tanto pelos galegos e moradores imigrantes da cidade quanto por seus visitantes. Então investigávamos acerca de Morgana, a bruxa arturiana por excelência, protagonista da obra neopagã, feminista e homoafetiva de Marion Zimmer Bradley, o best-seller Las nieblas de Avalon (1982).

Nosso fascínio por essa figura feminina dotada de poder pessoal estendeu-se no doutorado que se seguiu, também em Filologia Inglesa (Letras Inglês), na mesma universidade. Dessa vez, delineamos um estudo comparativo-contrastivo entre Morgana (fada-bruxa da Ilha de Avalon, pagã, morena, feia, poderosa, irmã do Rei Arthur, apaixonada por Lancelot - e por ele rechaçada) e Ginebra (Rainha de Camelot, cristã, loura, bela, subserviente, esposa do Rei Arthur, apaixonada por Lancelot - e por ele correspondida), não sem antes aprofundarmos nossos estudos sobre os celtas, a mulher celta e, em particular, a espiritualidade desse povo icônico.

Aprofundando nossas pesquisas nessa temática, selamos nossos estudos strictu sensu com um Pós-Doutorado em Educação na Universidade Estadual do Ceará, cuja linha de investigação em História Oral repousa na biografia de mulheres. Nele nos centramos nas nossas bruxas pós-modernas, nas rezadeiras, especificamente em algumas das mais emblemáticas da periferia da cidade de Fortaleza, registrando seu modus faciendi e seu discurso.

Logo em seguida, ao finalizamos nossa segunda graduação, desta vez materializada no curso de Letras Espanhol, continuamos com nossa linha de pesquisa e com nosso objeto de estudo desde 2009. Esse artigo é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a obtenção do título de Licenciada em Letras Espanhol. Como a Galiza, onde vivemos por tantos anos, é uma terra céltica, tal como a imagem que se tem da bruxa ancestral galega, motivamo-nos a estudar, nesse trabalho, essas bruxas lendárias e dúbias por natureza, que têm sido reconfiguradas pela pós-modernidade.

Acreditamos que investigar essas mulheres, sobre elas escrever e a respeito delas publicar trabalhos tratados pela Academia é uma maneira de contribuirmos para que sua importância para com o folclore, as lendas, os costumes e as tradições orais da terra que tão bem nos acolheu seja preservada e continuada, em conjunto com o trabalho de outros investigadores.

O percurso metodológico que realizamos, coletando informações para a tessitura desse artigo científico, será pormenorizado a seguir.


METODOLOGIA

Quanto à natureza, essa é uma pesquisa aplicada, de abordagem qualitativa, exploratória em seus objetivos e que se configura como uma pesquisa bibliográfica.

Assim sendo, durante dois meses, buscamos artigos, monografias, dissertações, teses e relatórios de pós-doutorado em repositórios de universidades, buscadores e bases de dados a partir dos mais diversos descritores, tais como: Meigas, Meigas Galegas, Bruxas Galegas, Meigas da Galiza, Meigas Gallegas, Meigas en Galicia, Brujas Gallegas, Galician Witches e Witches in Galicia.

Foram encontrados e baixados mais de cento e trinta arquivos em português, inglês e espanhol; posteriormente lidos e, descartados alguns, os mais importantes foram fichados e mantidos classificados em uma pasta para nos servirem de referencial teórico quando da escrita do texto. Uma vez colhidas essas informações iniciais, passamos à etapa da construção textual, que nos levou cerca de um mês, concatenando ideias e baseado nossos argumentos no material reunido na pasta supramencionada e nos teóricos que aportam luz sobre o tema estudado.

Tal como defende Minayo (2010), o método qualitativo revela processos sociais pouco conhecidos e pertencentes a grupos particulares, objetivando proporcionar a construção e/ou revisão de novas abordagens, novos conceitos e novas categorias que concernam ao fenômeno em estudo. Não foi diferente com o que nessa investigação aprofundamos.

Explicado, então, o processo de concepção desse artigo, passemos ao marco teórico, que analisa as meigas galegas nas tradições locais.


REFERENCIAL TEÓRICO: AS MEIGAS NO FOLCLORE GALEGO


De acordo com Somoza-Sampayo (2011), a Galiza, comunidade autônoma espanhola entronizada no extremo Noroeste da Península Ibérica, situada em cima de Portugal, tem sido relacionada, desde tempos imemoriais, à “Terra de Meigas”, vinculada o mais das vezes com o Outro Mundo, uma vez que sua localização geográfica coincide com o que os romanos antigos batizaram de Finisterrae - o “Fim do Mundo”.

Alimentando as teorias que ligam a Galiza ao lendário e ao supersticioso, temos os monumentos megalíticos, os dólmens, os menires e os petróglifos, além dos castros – povoados célticos fortificados e que pertencem ao Mesolítico, já que os celtas chegaram ali no século VII a. C., trazendo consigo o ferro e a Cultura de Hallstatt143. Segundo Sánchez-Regueira e Sánchez-Regueira (1984), os pagãos que ali viveram antes de que os cristãos àquelas terras tivessem acesso (ou seja: os celtas, os vândalos e os suevos) cultuavam os poderes das pedras, que eles julgavam possuir propriedades medicinais (Pedra dos Cadrís), divinatórias (Pedra de Abalar) e fertilizantes (O Berce da Santa). O costume de consultar as pedras estende-se aos dias atuais. É também muito comum encontrarmos os milladoiros144 ao longo das rotas que perfazem o Caminho de Santiago ou a romaria a San Andrés de Teixido (em Muxía), assim como os peregrinos levando pedras nos bolsos, representando, através delas, as pessoas que não puderam percorrê-los (ALBERRO, 2002).

A mescla ancestral dos povos bárbaros mencionados acima, especialmente dos celtas, com o elemento autóctone, cristalizou-se no amálgama que encontramos nos galaicos tempos depois (SÁNCHEZ-REGUEIRA; SÁNCHEZ-REGUEIRA, 1984). Esse povo resultante - guerreiro e organizado - manteve intensas relações com os povos das Ilhas Britânicas e outros, intercâmbio esse que não atendeu apenas aos interesses econômicos senão também aos culturais, já que muitas das lendas e costumes célticos são encontrados em todos os locais onde eles ou seus descendentes viveram.

Outro elemento presente na natureza, que encantava os celtas e que segue encantando sua progênie galega é o fogo. Os antigos celtas veneravam-no como sagrado e suas festividades, principalmente Beltane145, tinham nas fogueiras o seu ponto culminante. Resquício daqueles tempos são as cacharelas (fogueiras, em galego) da noite de São João na Galiza. Cada bairro compostelano, por exemplo, tem a sua - alta e portentosa - assim como em cada um deles se distribui, à noite (a mais curta do ano e quiçá a mais celebrada), sardinhas, pão, vinho e refrigerantes. Nessa noite de festa, os gaiteiros estão por todas as partes, com suas gaitas de foles galegas, e dança-se a muñeira146 em volta das fogueiras. É costume também saltar sobre elas, com o intuito de afastar o Mal e atrair o Bem; faz-se isso de mãos dadas com uma “comadre” ou um “compadre” de fogueira, em números de três vezes, independentemente do medo que se tenha de se queimar partes do corpo nas tentativas.

De modo semelhante a outras regiões com topografia e clima semelhantes, como a Bretanha Francesa ou a Irlanda, último reduto dos celtas, o sibilo do vento entre as árvores próximas, o cantar dos rios que ali abundam, o clima nebuloso e chuvoso colidindo com os ares atlânticos, assim como os bosques verdes e densos reforçam o ambiente de medo presente na superstição, nas lendas e nos mitos galegos e alimentam a imaginação de quem os reproduz (SÁNCHEZ-REGUEIRA; SÁNCHEZ-REGUEIRA, 1984). Há que se fazer também uma clara diferença entre o interior da Galiza e o seu litoral. No que se refere a crenças e histórias lendárias, Nogueira (1992) defende que quanto mais adentremos essa comunidade autônoma, mais histórias surreais (verossímeis ou não) encontraremos. O litoral, mais acessível ao contato com outros povos, não tem essa mesma característica.

Ligadas às pedras, ao fogo e aos bosques, temos as meigas. Além delas, o folclore da região também alberga outros seres fantásticos, muitos deles ligados a elementos da natureza, como os mouros, os lobisomens, os trasnos, as fadas, as lumias e as almas penadas – apenas para citar alguns. Quanto a essas últimas, existe, à luz de Sánchez-Regueira e Sánchez-Regueira (1984) e Alberro (2002), a Santa Compaña147, resquício das lendas e mitos dos antigos pagãos que habitaram a Galiza antes dos galaicos, cujo cerne era povoado de histórias ligadas à morte.

Ligando fogo, mortos e meigas, temos o ritual de preparação da queimada, que é uma bebida típica galega feita com aguardente, açúcar, casca de limão, pedaços de maçã, grãos de café e raspa de canela. Além desses ingredientes, a bebida concentra em si os quatro elementos mágicos - água, terra, fogo e ar: água, da aguardente; terra, do barro com o qual é feita a panela na qual é preparada a bebida; fogo porque a bebida é fervida e ar porque sem ele não haveria combustão e o nome “queimada” perderia seu sentido. Colocados os ingredientes na grande panela de barro, segue-se um ritual próprio para validar seu poder curador: prende-se fogo dentro dessa mistura, fazendo com que o lume, inicialmente azul, torne-se alaranjado pouco a pouco, enquanto a pessoa que revolve o conteúdo dentro da panela o faz em total escuridão, mantendo apenas como foco de luz a concha incandescente que sobe e desce do tacho e a bebida a arder em sua superfície.

Quando o teor etílico já está bem diminuído, após vários minutos de fervura e com alguém sempre a remexer a concha iluminada pelo fogo dentro do grande receptáculo, profere-se o “conxuro da queimada”; ato contínuo, apaga-se o fogo e serve-se a bebida fervente, que é, de imediato, tomada após um brinde. Acredita-se que essa bebida medieval, com receita tão antiga quanto, presente também em outros sítios de origem céltica, tem o poder de afastar a impotência sexual; as doenças físicas, anímicas e espirituais; o mau de olho, a inveja e claro: a presença das meigas enquanto seres nocivos. Crê-se que além de uma panaceia, a queimada é também uma bebida afrodisíaca: quem não a tomar logo após escutar o conjuro, poderá perder a libido ou passar muitos anos sem desfrutar da vida sexual.

Na verdade, há que se comentar que bebidas com teor etílico considerável e adoçadas com açúcar ou mel, servidas quentes e com limão, têm sido utilizadas pelos europeus há séculos para curar muitos males, especialmente os ligados ao trato digestivo e às vias respiratórias, tão comuns na gélida Europa invernal (SÁNCHEZ-REGUEIRA; SÁNCHEZ REGUEIRA, 1984). Portanto, a tradição da queimada, ainda que com um matiz divertido e recente, refere-se a um costume vetusto e que até hoje mantém-se em voga.

Pelo supra exposto, em suma, podemos afirmar que a queimada é uma fórmula mágica e apotropaica que objetiva o afastamento das meigas e de tudo o que de ruim a elas concerne, valendo-se de um ritual de manipulação de energia que resulta em uma bebida que deve ser comungada entre todos os partícipes do ritual que a prepara, logo após a escuta de uma oração poderosa e que invoca seres não vivos a se fazerem presentes e se mesclarem com os vivos que ali estão. Imagina-se que as meigas menos afeitas a atos de bondade não se aproximam de quem está protegido pela queimada, que não à toa tem o fogo (elemento místico céltico) como catalizador.

Em se tratando de meigas, é comum que, estando em terras galegas, escutemos o refrão “Eu non creo nas meigas, mais habelas, hainas”. Mas, afinal, por que as meigas são tão controversas? Blanco-Prado (2007) defende que há quatro tipos de mulheres tocadas pela Espiritualidade: as sábias, as boas mulheres, as bruxas e as meigas. As sábias são as profundas conhecedoras da farmacopeia de seu entorno, as que curam enfermidades como o mau-olhado e a espinhela caída, dentre muitas outras, ou seja: seriam como as nossas rezadeiras. As boas mulheres são as que, ainda que não sejam populares como as primeiras, conhecem um sem fim de remédios caseiros. As bruxas e as meigas são contrapontos uma da outra: aquelas, boas; essas, más.

Além dessas categorias, Jiménez-Esquinas (2013) acrescenta outras: sanadoras, santas, curandeiras, remedieiras, saludadoras e compostoras – essas últimas, no contexto rural galego, conhecem as práticas curativas no âmbito ginecológico e obstetrício, fundamentais na Galiza de outrora (agrária, pobre e excluída). Já para Echevarría (2009, p, 79-80), essas mulheres tocadas pelo divino e pelo maldito dividem-se assim: “La sabia, sanadora, se sitúa en el polo positivo. La meiga, sujeto de la envidia y del mal de ojo, en el negativo”. Percebemos, portanto, que não há uma unanimidade quando o tema é a definição dessas mulheres, suas aproximações e afastamentos.

Essa ambiguidade quanto à meiga galega foi o que nos incitou a pesquisarmos sobre ela. Infelizmente, ao contrário do que críamos no início, não foi tarefa fácil fazê-lo. Apesar de muito conhecida e de pertencer ao imaginário popular, vinculada à magia da Galiza, herança dos longínquos celtas e dos povos bárbaros que lhes sucederam, não encontramos muitos trabalhos acadêmicos dedicados à sua figura. Quando muito, artigos científicos ou livros, mas não uma quantidade razoável de dissertações, teses ou relatórios de pós-doutorado, que era o que almejávamos encontrar a princípio – o que, por outro lado, nos estimula a continuar estudando-as em trabalhos vindouros.

Nesses poucos materiais de que dispomos, alguns nos impressionaram por tratarem da repaginação que essas mulheres vêm sofrendo ao longo do tempo. Dito de outro modo, resgatadas na pós-modernidade, as vemos hoje com uma simpatia que antanho não lhes cabia - “LAS MEIGAS GALLEGAS - HABERLAS, HAYNAS” - uma vez que eram mais temidas do que louvadas. Sobre essa transformação de sua imagem tratamos a seguir.


ANÁLISE E DISCUSSÃO: A MEIGA GALEGA RECONFIGURADA


É interessante notarmos como os costumes e as crenças mudam horizontalmente em uma dada comunidade no decorrer do tempo, motivados por razões de diversas ordens - uns surgem, alguns intensificam-se, outros transformam-se parcial ou inteiramente e há os que esmaecem e desaparecem. No que à meiga galega concerne, muitas foram as reconfigurações de sua imagem e do significado de sua importância, como afirma Jiménez-Esquinas (2013).

A princípio reconhecidas por sua bondade ou sua maldade natural, a depender do momento, do contexto e da pessoa com quem lidavam, conforme Jiménez-Esquinas (2013), mas em especial pela maldade, as meigas estavam vinculadas com o ambiente rural, montanhoso e misterioso da Galiza, que se distingue de outras regiões peninsulares ibéricas porque ali se processaram e se condenaram poucas bruxas quando da Inquisição e da Caça às Bruxas, se comparadas com as mulheres perseguidas em outros sítios (NOGUEIRA, 1992).

Os registros oficiais contabilizam cento e doze casos de magia, bruxaria e feitiçaria entre os anos de 1566 e 1683: oitenta e duas mulheres e vinte homens, com escassa presença de menores de trinta anos e vários sujeitos com cinquenta anos ou mais - com bastantes viúvas, mendigas, solteiras e parteiras, assim como lavradoras (JIMÉNEZ-ESQUINAS, 2013). Curiosamente, a Santa Inquisição, que se iniciara na Espanha em 1478, chegou à Galiza apenas em 1574, sendo as Rias Baixas a região galega mais afetada por essa perseguição misógina (SOMOZA-SAMPAYO, 2011). Como explica Nogueira (1992, p. 18): “[...] a primeira menção de que temos notícia desta atividade na Galícia é um processo datado de 1602, onde Constanza do Pazo foi denunciada por três mulheres que diziam que era ‘bruja’, ‘hechicera’, e que ‘chupaba los niños’.”. À luz de Stachová (2007, p. 21), “[…] los primeros inquisidores en Galicia fueron el Dr. Quijano del Mercado y el Dr. Carvajal. Perseguían, sobre todo, la brujería y los cultos que se referían a los elementos naturales.”.

Ainda que tenham sido poucos casos, informações mais apuradas sobre as bruxas galegas neles enquadrados não chegaram até nós:



Non temos noticias de nomes de mulleres coñecedoras das herbas as súas propiedades, e da súa aplicación nas enfermidades, pero é ben seguro que as houbo xa que moitas delas transmitiron o seu saber a súas descendentes e moitas delas hoxe seguen exercendo esta medicina popular. A dificultade da Muller para acceder a estudos tal como xa mencionabamos anteriormente e as persecucións que sufriron as curandeiras por parte da Inquisición e probablemente unha das causas de que non se atopen escritos que se refiran a elas148. (FERNÁNDEZ-GARCÍA, 2015, p. 102).


Percebe-se, por esse perfil das perseguidas, quão feminicida foi a campanha para erradicá-las:


Los datos manejados muestran que entre las meigas gallegas abundaban las mujeres que en su contexto subvertían los mandatos que la estructura social les tenía destinados. La relación de su exclusión, persecución y muerte por razones de género, y su segregación, tanto a nivel estructural como en la vida cotidiana, hacen pensar en una auténtica campaña feminicida (Lagarde y de los Ríos 2006: 12). Las viudas y las monjas eran las únicas mujeres que podían salir de su estatus de dependencia respecto a la unidad familiar, se convertían en cabeza de familia y no debían obediencia a un hombre proveedor (Fernández Álvarez 2002: 125-127). Las viudas, las solteras y las sanadoras, que manejaban cierta cuota de conocimiento y poder en su servicio a la población campesina, se alejaban del modelo social de hembras domésticas y reproductoras, y eran vistas como peligrosas por la ausencia de la figura central masculina del padre-marido-sacerdote, protagonista de la vida social y referencia de neutralidad. Las mujeres, y especialmente las brujas, eran consideradas la alteridad, «las otras», las opuestas al paradigma de lo humano y sus virtudes en un sistema androcéntrico (Moncó 2011: 19). (JIMÉNEZ-ESQUINAS, 2013, p. 60).


Lamentavelmente, essa não foi uma prerrogativa galega: bruxas europeias outras passaram pelo mesmo crivo falocêntrico excludente e sofreram o mesmo acosso, as mesmas vexações e os mesmos castigos - ou piores. Contudo, a lacuna de detalhes acerca das perseguidas galegas, sobre quem há parcas referências fiáveis, muitas delas folclóricas, instigou-nos a estudar outro aspecto a elas referente e que nos fascina, ligado ao hiato informativo supra exposto: como sua imagem vem sendo modificada no decorrer do tempo.

Para Jiménez-Esquinas (2013), as meigas que vemos na forma de amuletos e talismãs nas vitrines das lojas de souvenirs da Galiza ou na forma de estátuas vivas nas ruas dessa comunidade autônoma (mormente nos lugares públicos e muito visitados por turistas, como as ruas da zona vella149), mantêm suas figuras como as de bruxas que habitam o nosso inconsciente coletivo (com seus longos vestidos pretos, cabelos compridos e grisalhos, o nariz aquilino e verrugoso e poucos dentes), cercadas dos elementos que lhe são associados (caldeirão, vassouras, corvos e gatos pretos, por exemplo). Mesmo assim e apesar desses aspectos negativos a elas relacionados, são intituladas de “meigas de la suerte” ou “meigas del amor”, - um paradoxo à primeira vista. Como se deu essa mudança de polos? Como a meiga, mais má do que boa, hoje é associada à fortuna e à proteção?

A explicação é-nos facilitada pela mesma investigadora, Jiménez-Esquinas. Segundo ela, os movimentos românticos e nacionalistas do século XIX resgataram tradições populares que foram recontextualizadas naquele momento histórico e reinterpretadas. As raízes célticas da Galiza foram então evocadas, mostrando um povo que resistiu ao Império Romano e à cristianização, rebatizando, mas não olvidando antigos costumes, saberes e crenças. Ainda de acordo com Jiménez-Esquinas (2013), a Revolução Industrial que se operava naqueles idos em termos mundiais, repercutindo na Espanha e na Galiza, por extensão, ameaçava suplantar as tradições com as novidades advindas da modernidade e representou um fator que trouxe de volta ecos do passado saudosista e nostálgico de celtas, suevos, visigodos, vikings e guerreiros outros, com sua vida simples e centrada na natureza.

As rápidas transformações socioeconômicas e sociais pelas que passou a Galiza entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX acenderam o sentido de preservação cultural nos galegos (JIMÉNEZ-ESQUINAS, 2013). Era preciso não aderir à mudança iconoclasta; era preciso conservar e manter a memória e o patrimônio imaterial dos costumes, das lendas, das tradições e do folclore galegos, ameaçados por uma cultura atraente de renovação e de repaginação em um mundo em constante câmbio. Figuras como a das meigas foram mantidas e, pouco a pouco, transformadas, modificando sua configuração original. Portanto, essas figuras lendárias, outrora bastante mais maléficas do que benéficas, hoje são tratadas com mais aceitabilidade e até com certo grau de simpatia - presentes nas artes em todas as suas facetas: da Literatura à pintura, da fotografia à escultura, da música ao cinema.

Um exemplo dessa repaginação está presente em uma das festas mais esperadas e vividas com intensidade na Galiza de ontem e de hoje, a noite de São João, quando ocorre a famosa e disputada Noite Meiga, na localidade de Ribadavia (na Idade Média, a capital do Reino da Galiza, com o monarca D. García I, no século XI), momento no qual bruxas confeccionadas com material inflamável são queimadas junto com as cacharelas, espantando assim o espectro do Mal. O detalhe é que as bruxas em questão, diferentemente de suas congêneres antepassadas, são belas, jovens e sensuais (muitas vezes), mas em absoluto reina nessa festa o sentimento negativo de destruí-las de forma “feminicida”; pelo contrário: o clima é de divertimento e de leveza. O que se busca é queimar e afastar os malefícios e atrair, com simpatias e afins, os benefícios.

Essa necessidade de afastar o mal e de atrair o bem está presente em outras festividades, de povos outros, mas com uma ligação céltica entre eles - muitas vezes. Assim é que outra ilustração interessante da ressignificação do peso da figura da bruxa é a noite galega de Halloween, o Samaín (em espanhol), que evoca as raízes célticas desse povo dado a preservar suas tradições, quando as pessoas se fantasiam de bruxas e/ou de meigas para irem aos bailes a fantasia. Tal comportamento é inclusive esperado, uma vez estando na Galiza. Como bem resume Novelo (2005):


Esta nueva consideración de las meigas se observa tanto por los turistas y visitantes, que reclaman una reinterpretación del pasado adaptada a sus gustos, como por la población y los poderes locales que observan como posible recurso esta simpática representación, considerándola finalmente algo digno de ser valorado. (NOVELO, 2005, p. 86).


Tal como o mundo pós-moderno ressignificou antigos conceitos e preconceitos, a tão perseguida meiga de séculos atrás hoje já não é mais tão má, mesmo que ainda não seja totalmente boa. O entre lugar onde se encontra nesse momento definirá seus próximos passos rumo ao futuro, próximo ou distante, e seus papéis dentro dele. “Que assim seja!”. Como diz o provérbio mexicano e que hoje soa como um oráculo, referindo-se às bruxas e que aqui associamos às meigas galegas: “Quiseram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes.”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Ao finalizarmos esse trabalho, ressaltamos a importância das meigas para o folclore e para as tradições orais da Galiza, terra ligada ao mágico no inconsciente coletivo ibérico, muito, quiçá, devido à sua origem céltica, cujo cerne é mítico e místico.

Pelo levantamento bibliográfico que fizemos para a tessitura desse texto, comprovamos que apesar de a Inquisição e a Caça às Bruxas não terem sido muito presentes na Galiza, fazendo poucas vítimas entre as condenadas por bruxaria, as bruxas sobreviveram a séculos de opressão misógina e chegaram à pós-modernidade repaginadas, sob outros nomes, como as meigas. Constatamos que ditas mulheres habitam as lendas galegas e alimentam o supersticioso universo da Galiza, presentes não mais apenas na oralidade, como outrora, mas cristalizadas nas mais diversas formas de arte, além de sua representação icônica e imagética em souvenirs que têm nelas um símbolo apotropaico e de sorte.

Observamos que as meigas galegas, concebidas em sua origem como más, foram tendo sua imagem lapidada com o transcorrer do tempo, atendendo a um apelo social que, por razões próprias, reconfigurou os contornos embrionários dessas mulheres ligadas à magia e à manipulação energética. Ressaltamos que ainda que esse pareça um tema bastante estudado, na realidade, não o é. Balizamos essa premissa pela dificuldade que tivemos para levantar bibliografia para esse trabalho; apuramos que não abundam os trabalhos acadêmicos strictu sensu sobre o tema, por exemplo, ainda que haja uma quantidade razoável de artigos científicos que tratam das meigas – mas que ao nosso ver são parcos, se comparados a outros assuntos do universo galego, mormente o cultural.

Concluímos que, embora se trate de um tema interessante ao leigo, não percebemos o mesmo grau de interesse nele pela Academia, haja vista a dificuldade que tivemos para levantar bibliografia, como mencionamos acima. Os que encontramos não supriram nossas expectativas. Daí inferimos que trabalhos como o que agora rematamos são fundamentais para a compreensão da importância das meigas na Galiza, na Espanha e na Península Ibérica por extensão. Estudá-las e registrá-las academicamente é um convite a um mergulho profundo e profícuo em uma das mais genuínas tradições dos galegos; uma tarefa demandante a princípio; sem embargo, mais gratificante ao final.





Referências


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ALONSO-ROMERO, Fernando. Ánimas y bujas de Finisterre, Cornualles e Irlanda. Anuario Brigantino, n. 22, p. 91-104, 1999.


BEZERRA, Karina Oliveira. Esboço Geral da Magia na Wicca: segundo perspectiva de Marcel Mauss. Anais do IV Colóquio de História, UNICAMP, p. 266-274, 2010.


BLANCO-PRADO, José Manuel. Algunas consideraciones sobre la medicina popular en la provincia de Lugo. Las curaciones por medio de ensalmos (I). Culturas Populares - Revista Electrónica, v. 5, p. 1-23, jul./dez., 2007.


CÂMARA, Yls Rabelo. Morgana versus Ginebra: análisis de la dicotomía entre las representanes del paganismo y del cristianismo en el mundo celta de Las nieblas de Avalon. Tese Doutoral. Universidad de Santiago de Compostela, 427 p., 2015.


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FERNÁNDEZ-GARCÍA, Maria Isabel. Os científicos lucenses do século XVIII. Lvcensia, p. 85-102, 2015.


JIMÉNEZ-ESQUINAS, Guadalupe. Las meigas: la transformación de un estigma

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MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2010.


NOGUEIRA, Carlos Alberto F. A migração do Sabbat: a presença “estrangeira” das bruxas europeias no imaginário ibérico. Espacio, Tiempo y Forma, Serie 4, Ha Moderna, v. 5, p. 9-30, 1992.


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SÁNCHEZ-REGUEIRA, Isolina; SÁNCHEZ-REGUEIRA, Manuela. Galicia entre la historia y la leyenda. Boletín AEPE, n. 32-33, Centro Virtual Cervantes, p. 27-34, 1984.


SOMOZA-SAMPAYO, Irene. Galicia, “Terra de Meigas”. TOG, v. 8, n. 14, p. 1-5, set., 2011.


STACHOVÁ Alena. Creencias, costumbres y tradiciones de Galicia. Trabajo de Fin de Curso, 34 p., Brno, 2007.


[Recebido: 26 abr. 2020 – Aceito: 16 mai. 2020]



ENSAIO VISUAL





ILUMINURAS, UM ENSAIO GRÁFICO

LIGHTING, A GRAPHIC ESSAY


Alberto Ricardo Pessoa150

Resumo: Por meio deste ensaio gráfico de cunho autoral, pretendemos realizar uma interpretação gráfica com base em ilustrações que remete a iluminura, um prenúncio da ilustração moderna, uma vez que se trata de uma arte decorativa aplicada às letras capitulares de textos presentes no período medieval. O ensaio gráfico se posiciona como um meio de pesquisa e reflexão acerca da memória gráfica presente nas artes, letras e literatura, alternativo ao artigo acadêmico. O percurso do ensaio gráfico consiste na apresentação de uma sequência de ilustrações que mesclam o texto verbal, no caso, letras e o texto não verbal, que consiste em imagens baseadas em esculturas e pinturas oriundas da época.


Palavras-chave: Iluminura, Memória, Idade Média, Ensaio Gráfico, Ilustração



Abstract: Through this authorial graphic essay, we intend to perform a graphic interpretation based on illustrations that refers to the illumination, a harbinger of modern illustration, since it is a decorative art applied to the capitular letters of texts present in the medieval period. The graphic essay is positioned as a means of research and reflection on the graphic memory present in the arts, letters and literature, as an alternative to the academic article. The course of the graphic essay consists of the presentation of a sequence of illustrations that mix the verbal text, in this case, letters and the non-verbal text, which consists of images based on sculptures and paintings from the time.

Keywords: Illumination, Memory, Middle Ages, Graphic Essay, Illustration









Figura 1 PESSOA (2019)




Figura 2 PESSOA (2019)







Figura 3 PESSOA (2019)






Figura 4 PESSOA (2019)




Figura 5 PESSOA (2019)




Figura 6 PESSOA (2019)





Figura 7 PESSOA (2019)




Figura 8 PESSOA (2019)



Figura 9 PESSOA (2019)



Figura 10 PESSOA (2019)



Figura 11 PESSOA (2019)

Figura 12 PESSOA (2019)




1 (LOPES, 2006 p.1) / Caracterizada como a cultura da voz e do gesto por Paul Zumthor (1987) e Jean-Claude Schmitt (1990)

2 Arxiu Occità. Institut d’Estudis Medievals. Universitat Autònoma de Barcelona

3 Cf. José Rivair Macedo, Op. cit. 2008; vide também D. Lamas, Persistência temática de Carlos Magno no folclore brasileiro, em Revista Goiana de Artes, 10/1 (1989), pp. 7-29; Jerusa Pires Ferreira, A cavalaria no Sertão, em: Lênia Márcia Mongelli. E Fizerom taes Maravilhas... Histórias de Cavaleiros e Cavalarias, São Paulo Ateliê Editorial, 2012, pp. 223-232.

4 Stanley L. Robe. Charlemagne in America: Formation and Transmission, em: El romancero hoy : nuevas fronteras, ed. tedra Seminário Menéndez Pidal, 1979, pp. 181-190.

5 G. Moser. Elementos medievais na literatura popular do Brasil. Homenagem a Manuel Rodrigues Lapa. Boletim de Filologia, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 28, 1983, pp. 123-141; Luis da. Câmara Cascudo. Mouros, franceses e judeus. Três presenças no Brasil. Global Editora, São Paulo, 2001.

6 Alexandra Gouveia Dumas. Encruzilhada Atlântica na Rota Carolíngia – uma Breve Análise do Auto de Floripes (Príncipe-África) e da Luta de Mouros e Cristãos (Prado-Bahia-Brasil), em: IV ENECULT Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 28 a 30 de maio de 2008, Faculdade de Comunicação/UFB, Salvador-Bahia-Brasil. http://cult.ufba.br/enecult2008/14122.pdf.


7 Spiegel, Gabrielle M. Social Change and Literary Language: The Textualization of the Past in Thirteenth-Century French Historiography, em : Journal of Medieval and Renaissance Studies, 17, 1987, pp. 129-148.

8 Hayden V. White The Historical text as literary artifact, em : Tropics of discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore & Londres, 1978.

9 Hayden V. White. The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore, 1989.

10 Jerusa Pires Ferreira, op. cit., 2012, p. 227.

11 Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, primeira edição por Francisco López Fabra, Barcelona, 1605 (IV 49. 29-30).

12 Leandro Gomes de Barros, Batalha de Liveros com Ferrabràs, em: Jerusa Pires Ferreira, op. cit. 1993, p. 25.

13 Henrique Monteagudo Eomero. A crónica galega dos Reinos de León e Castela na historia e na historiografia galegas, em: VII xornadas de historia de Galicia. Novas fontes. Renovadas historias. Editado por: Servicio de Publicacións da Deputación Provincial de Ourense, 1993.

14 Anônimo, Historia del Emperador Carlo Magno: en la cual se trata de las grandes proezas, y hazañas de los doce pares de Francia, y de como fueron vendidos por el traidor de Ganalon, y la cruda batalla que hubo Oliveros con Fierabrás de Alejandría, hijo del almirante Balán. Barcelona, prensa de Antonio Berdeguer, 1840 Capítulo XVI (De la respuesta de Roldán al emperador Carlo Magno), p. 38.

15 Louis Halpen. Carlomagno y el imperio carolingio, Akal , Madrid, 1992. Ed. Albin Michel, 1968 .

16 Miethke (1993) propõe, inclusive, que o espelho de príncipes carolíngios é desenhado como veículo de transmissão das doutrinas políticas. Cf. rgen Miethke. Las ideas políticas de la Edad Media, Biblos, Buenos Aires, 1993.

17 Velasco, J. R. Castigos para celosos, consejos para juglares, Gredos, Madrid, 1999, pp. 41-47.

18 Consiros cant e planc e plor (BdT 210,9). Vide Antoni Rossell. Els Trobadors catalans, Dínsic, Barcelona, 2006, pp. 117-122.

19 Cf. Luís Alberto Dias Franco. Auto de la princesa Floripes, entre el mito y la realidad (Largo das Neves, Portugal), op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 280.

20 Cf. Raymond Cantel, op. cit 1970, p. 185.

21 Fernanda Molina, La construcción de la masculinidad en la conquista de América, em: Lemir 15 (2011), pp. 185-206; pp. 197-198.

22 Trata-se de uma entre tantas orações e invocações de magia branca e negra, correspondendo aos cultos de São Ciprião. Não contamos com uma citação ou referência bibliográfica desse texto, fruto das conversas que tivemos no seminário da professora Jerusa Pires Ferreira na Universidade Pontífica de São Paulo, no mês de agosto do ano 2011.

23 Marc Le Person. Du paganisme à la sainteté: l’itinéraire de Fierabras dans le petit cycle des reliques (La destruction de Rome et Fierabras), em: Paroles sur lislam dans loccident médiéval. Actes du colloque du 9 mars 2001-2002. Cahiers du Centre d’histoire médiévale, 1, 2002. Presses de l’Université Jean Moulin Lyon III, pp. 7-27.

24 Leclercq, Armelle. La destinée d’un émir turc : Corbaran, personnage historique, personnage épique, em: Façonner son personnage au Moyen Âge [en ligne], Presses universitaires de Provence, Aix-en-Provence, 2007 (généré le 01 mai 2017), pp. 201-210, n. 17.

25 Outros personagens épicos medievais foram moldados sobre esse mesmo padrão. Assim, na Chanson d’Antioche contamos com Piruus, chamado de Turc beneois ou Datien, e sua mulher cumprindo o papel de intermediários. Cf. Armelle Leclercq. Une magicienne au cœur de la croisade : la vieille Calabre, Femmes, héroïnes et sociétés, ed. M. Nakazato et A. Gras, Presses de l'Université d'Iwate, 2011, pp. 55-72. Nota nº 18, p. 50.

26 Regina Célia de Lima e Silva. Ferrabrás de Alexandria: a presença da personagem do romance de cavalaria no tambor de mina maranhense, em: XV congresso Brasileiro de Professores de Espanhol, 2013, Recife. Caderno de Resumos. Recife: UFPE, 2013; Regina Célia de Lima e Silva. Ferrabrás de Alexandria: a presença da personagem do romance de cavalaria no tambor de mina maranhense, em: IV Sappil, 2013, Niterói. Caderno de Resumos. Niterói: UFF, 2013; Regina Célia de Lima e Silva. Narradoras encantadas da história de Carlos Magno no Maranhão, em: VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2012, Salvador. Caderno de Resumos, 2012.

27 Philippe Sénac. L’image de l’autre, histoire de l’Occident médiévale face à l’Islam, Paris, Flammarion, 1983, p. 92. Essa situação também corresponde a um esquema de guerreiro arcaico no qual as mulheres do inimigo são apropriadas. A paixão amorosa introduzida nas obras suaviza a prática. Cf. Leclercq, A. op. cit. 2011, n. 18, p. 50.

28 Molina, F. op. cit. 2011, p. 195.

29 Luis Cajavilca Navarro. El culto a Carlomagno y la fiesta de moros y cristianos en los Andes de Canta, Perú, Canta, Pampacocha, op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 144.

30 Luis Cajavilca Navarro. Ceremonias y teatro medieval en el Perú contemporáneo, em: Investigaciones sociales, Vol. 18 N° 33, pp. 155-166 [2014], UNMSM-IIHS. LIMA, Perú., p. 161. Vide também: Luis Cajavilca Navarro. Ceremonias y teatro medieval en el Perú contemporáneo, Editorial: Editorial Academica Espanola (2015).

31 Cf. Adrián Jesús Sáez García. Entre el deseo y la realidad: Aproximación al incesto en la comedia áurea, em: Nueva Revista de Filología Hispánica, vol. 61, n° 2, 2013, p. 620; Adrián Jesús Sáez García,. Un Calderón de leyenda: Otra vuelta a la Puente de Mantible y la Historia de Carlomagno, em: Anuario Calderoniano, 8, 2015, pp. 355-374.

32 Cf. José Rivair Macedo, Mouros e cristãos, 2009, op. cit., p. 8; y M. MEYER. Tem mouro na costa ou Carlos Magno “reisdo congo, em: Caminhos do Imaginário no Brasil, São Paulo, 1993, pp. 150-154.

33 Martha Toriz. El teatro de evangelización, em: Martha Toriz (ed.), Performance y censura en el México virreinal. Caderno web, Nueva York, Instituto Hemisférico de Performance y Política, 2005, em: http://www.hemisphericinstitute.org/cuaderno/censura/html/t_evan/t_evan.htm.

34 Araceli Campos Moreno. Sobrevivencias indígenas en la fiesta de los moros y cristianos en México. El caso de los Tastoanes, op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 177.

35 Op. cit. Campos Moreno, araceli, p. 172.

36 Ademir Aparecido de Moraes Arias. A presença dos traidores na história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, em: Op. cit. E Fizerom taes Maravilhas, 2012. pp.39-54; Maïté Billoré & Myriam Soria (Org.), La trahison au Moyen Âge. De la monstruosité au crime politique (V-XV siècle), Presses Universitaires de Rennes, Rennes, 2009.

37 Jerusa Pires Ferreira Cavalaria em cordel, op cit. p. 27.


38 Ferreira, Cavalaria em cordel, op cit. p. 114

39 Araceli Campos Moreno, op. cit., p. 172.

40dont l'authenticité réside précisément dans le caractère contextuel et éphémere de leur performance- comme le sont les arts 'allographiques'Nathalie Heinich, La fabrique du patrimoine. De la cathédrale à la petite cuillère, Maison des Sciences de l'Homme: Ethnologie de la France, 2009, Paris, p. 24, cf. Daniel Rico. ¿La Sibila, patrimonio inmaterial? Un concepto a la deriva. pp. 13-36, em: M. Gómez y E. Carrero (editores). La Sibila. Sonido. Imagen. Liturgia. Escena. Ed. Alpuerto, Madrid, 2015.


41 Profesora de Música medieval y Notaciones musicales medievales (Universitat Autònoma de Barcelona).

42 J.L. Austin, “Performative Utterances”, en Philosophical Papers, Oxford: Clarendon Press, p. 220-239.

43 N. Love, The Mirror of the Blessed Life of Jesu Christ, ed. de Lawrence Powell: London, 1908, p.8-9.

44 S. Beckwith, Christ´s Body: Identity, Society and Culture in Late Medieval Writing, Routledge: London and New York, 1993, p.61.

45 J. C. Schmitt, “El cuerpo en cristianidad”, en Anales de Historia Antigua, Medieval y Moderna, n. 31 (1998), Universidad de Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras, Instituto de Historia Antigua y medieval, Buenos Aires, pp. 51- 62.

46 La fiesta del Corpus Christi fue declarada universal en 1264.

47 Thomas de Chobham, Summa confessorum, ed. F. Broomfield, Louvain et Paris, 1968, p. 143.

48 Hugo de San Victor, De sacramentis legis naturalis et scriptae, PL 176, 18B-42B. - De sacramentis christianae fidei, PL 176, 173A-618B.

49 R. Tagliaferri, La magia del rito. Saggi sulla questione rituale e liturgica, ed. Messaggero, Padova, 2006.

50 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia della percezione, Milano, Il Saggiatore, 1980.

51 P. Tomatis, Accende lumen sensibus. La liturgia e i sensi del corpo, Roma, Edizioni liturgiche, 2010, pp. 394-396.

52 Plegaria de bendición incluida en las Misas de setiembre Ad virgines sacras.

53 S. Langer, Filosofia in una nuova chiave. Linguaggio, mito, rito e arte, Roma, Armando Armando, 1972.

54 A. N. Terrin, Il rito. Antropologia e fenomenologia della ritualità, Brescia, Morcelliana, 1999.

55 M. I. Colantuono (2015), De la vox mortua a la vox viva: sistemas de composición y oralidad en las Cantigas de Santa Maria, en “Boitatá”, Revista de Literatura oral de la Universidad de Londrina (Brasil), n. 19 Voz, poesia e performance na Idade Média.


56 P. Zumthor (1987), La lettre et la voix. De la “littérature” médiévale, Paris: Editions du Seuil. Ed. italiana (1990), La lettera e la voce. Sulla “letteratura medievale”, Bologna: Il Mulino; Idem (1999), Una cultura della voce, Lo spazio letterario del Medioevo, Medioevo Volgare, Roma: Salerno, I/1.

57 P. Zumthor (1987), op. cit., ed. italiana, 47-72.

58 M. Oldoni (1997), “I luoghi della cultura orale”, in Centri di produzione della cultura nel Mezzogiorno normanno-svevo, a cura di G. Musca, Bari: Edizioni Dedalo, pp. 373-388

59 M. L. Meneghetti (1992), Il pubblico dei trovatori. La ricezione della poesia cortese fino al XIV secolo. Torino: Einaudi.

60 A. Rossell (2010), Literatura y oralidad: música, lenguas e imitación intersistémica, in “Cognitive Philology”, n.3, 2010. Roma: Università degli Studi Sapienza.

61 M. I. Colantuono (2015), De la vox mortua a la vox viva... cit.

62 M. I. Colantuono (2007), El bon son en las Cantigas de Santa Maria, Actas do VII Congreso Internacional de Estudos Galegos. Mulleres en Galicia. Galicia e os outros pobos da Península (28-31 de mayo 2003), Barcelona, ed. H. Gonzáles Fernández y M. X. Lama López, Sada: Edición do Castro/Asociación Internacional de Estudos Galegos (AIEG)/Filoloxía Galega (Universitat de Barcelona), 1219-1231; Id., L’intento intertestuale della translatio melodica nelle Cantigas de Santa Maria, Medievalia, Revista d’Estudis Medievals, XVI/2013, 81-90.

63 K. K. Shelemay (2006), La musica e la memoria, en “Enciclopedia della música”, V, 126-147. Milano: Einaudi.

64 U. Neisser (1967), Psicologia cognitivista,126. Firenze: Giunti.

65 M. Proust (1913), Recherche du temps perdu, vol. I: Du côté de chez Swann. Paris: Grosset.

66 Cesareo de Heisterbach, Dialogus miraculorum, edición de J. Strange, 2 volúmenes, Colonia, 1831.

67 Cantigas de Santa Maria, ed.W. Mettman, Clásicos Castalia, Madrid, 1988, 3 voll.: CSM 104, vol. II p. 18; CSM 128, vol. II p. 82; CSM 149, vol. II p. 135; CSM 208, vol. II p. 257.

68 M. P. Betti, Rimario e lessico in rima delle Cantigas de Santa Maria di Alfonso X di Castiglia, Pacini editore, , Pisa, 1997.

69 J. Gruber, Die Dialektik des Trobar, Tübingen, 1983.

70 Professor Dr. em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina, professor do Instituto Federal do Paraná.

71 Vide Carlos García GUAL (1974, 1997).

72 Vide Menéndez PIDAL (1959) e Diego CATALÁN (1969).

73 Assim como afirmamos em COSTA (2019, p. 30, n. 33), optamos pelo termo como se encontra em castelhano (pervivéncia), por ser largamente utilizado em referência a essa matéria, prescindindo de equivalentes como “sobrevivência” ou “permanência”. Há, nesse aspecto, uma clara opção semântica que quisemos preservar, seguindo a tese de Diego CATALÁN (op. cit., 1969). As ocorrências do termo seguirão em destaque.

74 Vide Antoni ROSSELL (2017).

75 Para as principais edições do cantar, vide BÉDIER (1937, 1938, 1938a); e, mais modernamente, RIQUER (2009).

76 Em levantamento realizado em 09/03/2017 na Plataforma Lattes, a plataforma padrão para toda a produção acadêmica nacional, identificamos um total de apenas 30 pesquisadores com alguma publicação, atual ou pregressa, acerca da Chanson de Roland – entre os quais, o autor deste artigo e seu orientador na Tese de doutorado com a tradução do cantar.

77 Disponíveis em: http://rencesvals.net/Bulletin/Bulletin.html

78 Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000227450

79 Professor de filologia românica da Universitat Autònoma de Barcelona, diretor do Arxiu Occità do Institut d’Estudis Medievals, vide http://grupsderecerca.uab.cat/occita/node/203

80 Professor da Universidade Estadual de Londrina, é o atual presidente da ANPOLL e Coordenador Geral do Portal de Poéticas Orais, vide https://portaldepoeticasorais.inf.br/site/?pg=home

81 Link permanente: https://digital.bodleian.ox.ac.uk/inquire/p/79097275-ef1d-4107-85d3-e8402120f365

82 Sobre esse texto vide COSTA, op. cit., p. 50.

83 Sobre a reconstrução do fato histórico ibid, pp. 60-65.

84 Para o tema da ficcionalidade ou da existência histórica de Roldão vide Ibid, p. 50.

85 Paien unt tort y xpĭenʃ unt dreit. (Ibid, v. 1015, vide nota ao verso e nota 91).

86 Para a caracterização dos personagens musulmanos no cantar, vide KINOSHITA (2001); e COSTA, op. cit., pp. 58-59.

87 Para o sentido do termo geste como “linhagem”, “nação”, etc., vide COSTA, op. cit., p. 21.

88 ci falt la geʃte que turoldϿ declinet. (COSTA, op. cit., v. 4002). Para a autoria do cantar, vide ROSS (1963); e COSTA, op. cit. pp 41-45.

89 MONTANER (2000).

90 Do latim, custos, custodis: guardião, cobertura.

91 Essa referência integra o Liber de miraculis S. Jacobi, cujo quarto livro se denonmina Historia Karoli Magni et Rothalandi. Tratamos desse texto em COSTA, op. cit., pp. 66-67.

92 Apud MONTERO (2013).

93 Prescindo, por reiteradamente citado por diversos estudiosos da matéria, da citação de CASCUDO (1953, p. 441), em que o célebre folclorista relata a hegemônica presença da História de Carlos Magno... no interior do Brasil, a fim de não redundar na mesma citação direta.

94 Razão pela qual remeto o leitor a SILVA (2015) e ROSSELL (2017).

95 Vide CASCUDO (1953); DINNEEN (2010); FERREIRA (2012); MACEDO e ESPIG (1999); PEREIRA (2014); RUIZ-BELLOSO (2019); e SOUSA, (2013).

96 Segundo Câmara CASCUDO (1972), o metro martelo foi inventado por Pedro Martelo (1665-1727) da Universidade de Bolonha, inicialmente com doze sílabas; trazidos à cultura popular brasileira pelos portugueses letrados no século XVIII, esses versos jamais se adaptaram aos cantadores como alexandrinos, reconfigurando-se aqui como martelo agalopado, com dez sílabas.

97 Trabalho realizado a partir do arquivo digital da Coleção Western Medieval Manuscripts da Biblioteca Bodleain, da Universidade de Oxford. Disponível em link permanente: https://digital.bodleian.ox.ac.uk/inquire/p/79097275-ef1d-4107- 85d3-e8402120f365

98 Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil(1995). Professor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Araraquara). CNPq (Processo 302648/2019-4)




99 Doctoranda en Teoría de la Literatura y Literatura Comparada en la Universidad Autónoma de Barcelona (UAB). E-mail: adriana.campru@uab.cat

100 De aquí en adelante de utilizarán las siglas de Chailley para hacer referencia al manuscrito P. BN. lat. 1139 conservado en la Bibliothèque Nationale de Francia.

101 A los estudios de Arlt añadimos los trabajos de Gunilla y Haug (2002), Switten (2007), o el más reciente de Llewellyn (2018).

102 Las transcripciones melódicas, revisadas para la presente publicación, siguen los estudios de Raillard (s.d), Fuller (1969), Switten (2007) y Treitler (1967).

103 Debido a la gran cantidad de variaciones que plantea su edición, hemos optado por estandarizarlas en las frases que consideramos más representativa. Se ha marcado con un asterisco aquellas frases melódicas que, aunque varían en una o dos notas respeto a la frase propuesta, reproducen un movimiento melódico parecido

104 Esta categorización ha sido propuesta por Fuller (1969, I, p. 22-24).

105 Sobre la intertextualidad entre ambas tradiciones liricas a propósito de la pieza en cuestión remito a los estudios de Spanke (1931, p. 294); Chailley (1955).

106 Para un estudio detallado sobre la presencia de la forma del versus tripertitus caudatus en la lírica latina medieval, remito a la publicación de Camprubí (2019).

107 Daniel Borges é mestre em teoria e história literária pela Unicamp e atualmente é doutorando no departamento de estudos lusófonos pela universidade Paris-Nanterre.

108 Para escapar ao reducionismo do termo oralidade, Zumthor utiliza a expressão vocalidade, que corresponderia à palavra poética enquanto voz viva que se une ao corpo, desencobrindo-se como presença sonora, gestual e cênica. Enquanto a oralidade fica restrita à expressão oral, a vocalidade é mais ampla, uma vez que inclui os outros aspectos, além dos sonoros, que permeiam a realização do ato de transmissão oral; a vocalidade, nos dizeres do estudioso, “é a historicidade de uma voz: seu uso” (1983, p. 21) e a compreensão da voz em uso não se restringe ao fenômeno puramente sonoro. O conceito de vocalidade implica também um sentido antropológico (ZUMTHOR 1990), na medida em que, em comunidades predominantemente orais, a voz se manifesta como um valor antropológico partilhado por grupos sociais heterogêneos em contacto no mesmo espaço. A voz é constitutiva da formação das identidades e também é o que torna visível a alteridade, mediante a narração. Assim, todas as instituições que garantem a narração oral têm um valor social específico, o que confere valor antropológico à voz.

109 Paul Zumthor (1987; 1983) define performance como o evento no qual o texto oral se realiza com a presença do contador e dos ouvintes.

110 Até o ano de 2015, o PQLP era administrado por uma equipe multidisciplinar da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil, e pelo Departamento Cultural (DC) do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil (MRE). Até 2015, o PQLP era a única atividade civil de cooperação internacional brasileira em Timor-Leste. Hoje, este programa está suspenso e não envia mais nenhum professor desde o ano de 2013.

111 A língua portuguesa é oficial em Timor-Leste desde 2002, como língua de trabalho e de comunicação, ao lado do tetum, língua de origem timorense. O Censo Nacional de 2010 apurou que cerca de 90% da população usa tétum diariamente. Uns 35% são utilizadores fluentes do indonésio e, 23,5% falam, lêem e escrevem português. Este é um número extremamente otimista se comparado ao Censo Nacional de 2002 5% dos timorenses dizia compreender português. (HULL, 2002)⁠ Ao lado da língua portuguesa, o tétum é a língua oficial, e uma boa parte da população fala língua indonésia e inglês. Soma-se a essa paisagem linguística a existência de cerca de 16 línguas nativas, sem contar os dialetos.

112 Os militares indonésios dominaram Timor-Leste de 1975 a 2000.

113 Para uma descrição precisa da parca circulação de livros em Timor-Leste ver Lucca (2014).

114 A Melanésia (nome de origem grega que significa «ilha negra») é uma região da Oceania que inclui os territórios de Timor, Ilhas Molucas, Nova Guiné, Ilhas Salomão, Vanuatu, Nova Caledónia e Fiji.

115 Para um panorama das expressões artísticas em Timor-Leste, indicamos o dossiê « Arte, agência e efeitos de poder em Timor-Leste » (SILVA; SOUSA, 2015).

116 Para uma crítica do uso da lusofonia enquanto identidade fixa e a-histórica em consonância com projetos políticos ver Faraco (2016).

117 Segundo os autores dos manuais, o “programa assenta na potenciação da relação com a lusofonia [...]” (Ramos, 2017, p. 3). Nesse sentido, no manual do aluno de 10° ano, a unidade temática 3, Identidade (RAMOS et al, 2012, p. 36) é toda dedicada a mostrar as evidências da identidade lusófonas em Timor-Leste e os benefícios de se aprender português. A lusofonia é apresentada como uma identidade, que se afirma tanto pelo uso da língua portuguesa, quanto pelas obras de literatura apresentadas no manual. Para uma leitura crítica deste conceito, ver Couto (2009); Fonseca (2013) e Lourenço (2004)

118 Durante o período em Timor-Leste fizemos pesquisas participativas de campo, onde seguimos o curso de três professores de literatura e entrevistamos 23 outros professores a respeito de suas práticas de ensino. A metodologia desta investigação inscreveu-se, numa abordagem qualitativa, analítica, segundo as iniciativas de Latour (1997)⁠ e de Beattie e Wagner (1976)⁠, erigidas em método pelos estudos de cultura material : mostrar como alguns objetos podem fazer ressonar valores específicos, dependendo do meio em que funcionam.

119 Pude ter a confirmação deste desprezo durante colóquio em Timor-Leste. Note-se também que, na primeira página dos manuais de literatura do 10o ano (Ramos et al, 2012), são citados os nomes completos de todos os “autores” e coordenadores, todos estrangeiros, enquanto que os mesmos manuais não dão nem o número nem o nome dos colaboradores locais. São simplesmente designados através da referência “Colaboração das equipas técnicas timorenses da disciplina”.

120 Descola salienta que « num tal modo de identificação, os objectos naturais não constituem, portanto, um sistema de sinais que autoriza transposições categoriais, mas sim uma coleção de sujeitos com os quais os homens tecem, dia após dia, relações sociais. » (Idem, p.223).

121 Trata-se de uma composição com outro ser, pois segundo a concepção da pessoa em Timor-Leste, os sujeitos não são concebidos como dados a-priori, mas como derivados das relações que eles estabelecem com seres não-humanos. A relação de totem é uma possibilidade desse tipo de relação.

122 Utiliza-se a expressão « Outro » iniciao em maiúscula, para marcar a qualidade heterogênea que um sujeito pode assumir em uma relação⁠.

123 Doutorando na Université Paris Ouest Nanterre La Defénse - Paris X, na área de Langues, Littératures et Civilisation Romanes: Portugais,


124 Caderneta 01, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).

125 Caderneta 02, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).

126 Caderneta 03, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).

127 Essa carta, destinada ao amigo João Condé, foi transcrita na obra: ROSA, V. G. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 333.

128 As referências à novela “Uma estória de amor” foram retiradas na primeira edição de Corpo de Baile, vol. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. As referências a essa narrativa serão indicadas pela sigla CB, seguida da respectiva numeração de página.

129 Caderneta 6, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).


130 A personagem do violeiro Chico Bràabóz foi inspirada em Francisco Barbosa, a quem Rosa conheceu na fazenda de Sirga, de onde partiu a boiada da qual o escritor participou em maio de 1952.

131 Esse mito é retomado por Rosa na tessitura de Grande Sertão, personificado na figura de Diadorim.

132 No datiloscritos do livro Boiada lê-se depois de uma sequência de quadras certamente declamadas por seo Camilo: (Camilo José dos Santos, 80 anos, para fora. Tinha uns 8 ou 10 anos, por ocasião da alforria do cativeiro. Nasceu no Riacho do Machado e acabou de se criar em Inconfidência), p. 41.

133 GÜNTER, Lorenz. “Diálogo com Guimarães Rosa”, in João Guimarães Rosa, Ficção Completa, vol. I, Rio de Janeiro: Aguilar. 1994.


134 Mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil(2019)
PROFESSOR do COLÉGIO TIA ANA MARIA.

135 Doutor Universidade de São Paulo. Professor no UNESP – Assis.




136 Pós-Doutorado em Letras Discurso (UERN)/ Doutor em Filosofia/Metafísica (PUC-SP)/ Mestre em Filosofia/Metafísica (UFRN)/ Avaliador do INEP/MEC para os Cursos de Filosofia e Teologia/ Cursando Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo- UNINCOR/ Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela (FASA)/ Licenciado em Filosofia (UERN)/ Bacharel em Teologia Faculdade Católica Dehoniana/; Professor e tradutor do: Latim, Grego e Hebraico/ Disciplinas que ministra no Doutorado e Mestrado: Filosofia da Linguagem, Tópicos de Filosofia moderna Locke e os Medievais; Disciplinas que ministra graduação : Metodologia do Trabalho Científico, Ontologia I e II, Filosofia da Linguagem, Antropologia Filosófica, Bioantropologia, História da Filosofia Antiga e Medieval, Bioética, Biofilosofia, Teologia, Leitura e interpretação de Texto, Sociologia Jurídica e disciplinas relacionadas a Pedagogia. Possui projetos de pesquisa que versam sobre: Paul Ricoeur, São Tomás de Aquino, Tradução dos textos de Agostinho de Hipona, Fenomenologia da Religião, Moral Sacramental, Doutrina Social, História da Igreja Medieval, Liturgia Cristã, Ética social e ética cristã, Participe do Grupo de Teoria Política Contemporânea vinculado ao Departamento de Filosofia da UNIR. http://orcid.org/0000-0003-3902-2680 e ResearcherID:Y-3516-2018. Professor Adjunto do Mestrado e da Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Rondônia E-mail: ppachecus@hotmail.com

137 Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana di Roma (2007). Mestre em Teologia Fundamental pela Pontificia Università Gregoriana di Roma (2004). Possui graduação em Filosofia pela Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II (1993), em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1997), graduação em Letras Clássicas: Português-Latim-Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998), Professor Adjunto do Mestrado e da Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: diretor@cdscaico.com.br

138 Graduada em Letras Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN. E-mail: eddileite@gmail.com.

139 Doutora Cum Laude em Tendencias Actuales en los Estudios Ingleses y sus Aplicaciones (2016) pela Universidad de Santiago de Compostela. Docente de língua inglesa e suas literaturas no Curso de Letras Inglês da Faculdade de Educação Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC), da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

140 Doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, Brasil (2010). Professor Auxiliar I da Universidade Estácio de Sá


141 Significa “bruxas” em inglês antigo e o correspondente feminino é “wicce”. [...] Gardner utilizou o termo para ambos os gêneros, pois relacionou o nome Wicca ao verbo, também do inglês antigo, “wican”, que quer dizer “dobrar”. Nesse sentido, os wiccanos, seriam pessoas que saberiam moldar suas vidas com a magia. Com intuito mais profundo, Gardner também relacionou Wicca ao verbo, também do inglês antigo “witan” (saber). Dessa forma, a bruxaria, em inglês witchcraft (craft quer dizer arte), seria “ a arte dos sábios”. Muitos wiccanos chamam sua religião de “A Arte”. (BEZERRA, 2010, p. 267).


142 Neoxamanismo é o nome dado às teologias não ortodoxas que tentam resgatar a sabedoria dos povos ancestrais, conciliando-a com elementos culturais e filosóficos da modernidade. Numa perspectiva de análise histórica, insere-se nos movimentos sociais de natureza estética ou religiosa denominados como “revivalismo”, uma ressurgência de valores espirituais e/ou culturais dentro de uma cultura em transformação ou o retorno à identidade étnica de grupos de remanescentes indígenas e de quilombos, minorias e formas de organização antes perseguidas legalmente e/ou discriminadas. [...] As tradições xamânicas têm em comum a ideia de que há uma profunda conexão entre os elementos da natureza e do Universo e de que através de práticas meditativas, rituais e utilização de plantas de poder “enteógeno” é possível adquirir habilidades para a superação dos limites convencionais impostos pela mente humana racional. Disponível em: https://neoxamanismo.com.br/apresentacao/ (último acesso: 10-02-2020).


143 A Cultura Hallstatt foi a primeira da Idade do Ferro. As regiões ocidentais desta cultura, entre a França e a Alemanha Ocidental, também falavam a língua celta. [...] O Período de Hallstatt, deu-se entre 1200 e 450 a. C., no fim da Idade do Bronze. No entanto, o aparecimento dos celtas mais marcante verificou-se na segunda metade deste período, começando em cerca de 800 a. C. O nome “Hallstatt” é dado devido às marcas mais importantes dos celtas mais antigos terem sido encontradas nessa aldeia da Áustria. A área abrangia a Áustria, Alemanha, Suíça e França. Disponível em: http://caminhocelta.blogspot.com/2009/05/cultura-hallstatt.html?m=1 (último acesso: 10-02-2020).

144 São montes de pedras sobre os quais se entroniza uma cruz. Trata-se de um costume antigo, pré-cristão: as pessoas passavam por uma encruzilhada e honravam os deuses que as protegiam ao colocarem ali uma pedra, que se juntava às outras que já estavam e às que estavam por ser postas. A cruz, que com os séculos passou a culminar esses montes emblemáticos de pedras, pertence ao rebatismo cristão dessa tradição pagã. Disponível em: https://www.celtiberia.net/es/conocimientos/?idp=3622 (último acesso em 10-02-2020).


145 Beltane, llamado también Certamain, celebrado a día de hoy el primero de mayo, era un festival que se relacionaba con el calor del astro sol y con la fertilidad de los animales, de los campos y del pueblo. En otras palabras, Beltane era la celebración del buen tiempo, explica García Font (1998: 32), y su llegada era esperada con expectación. […] Beltane era la fiesta sacerdotal por excelencia, aunque se desconocen los detalles sobre el ritual que tenía lugar en esta celebración por parte de los druidas y el contenido del festín. La Iglesia de Irlanda, encabezada por San Patricio, fue especialmente implacable con los ritos de Beltane, quizá porque remitían a la sexualidad de modo “primitivo”, donde la libertad sexual pagana que se disfrutaba en aquella noche entraba en conflicto directo con los preceptos más castos de la nueva religión. (CÂMARA, 2016, p. 130,133).


146 Composición musical popular gallega y baile que la acompaña, que se ejecuta con la gaita, el pandero y el tamboril: Las muñeiras son típicas de Galicia. Disponível em: https://sal_es.academic.ru/23851/mu%C3%B1eira (último acesso: 10-02-2020).


147 Santa Compaña é a procissão de almas penadas que, uma vez que para diante de alguém, indica com isso que essa pessoa irá morrer. Curiosamente, a mesma lenda existe nos folclores bretão, britânico e irlandês – que têm em comum com a Galiza a influência céltica (ALONSO-ROMERO, 1999).


148 Não temos notícias de nomes de mulheres conhecedoras das propriedades das ervas e de sua aplicação em doenças, mas é certo que existiram, uma vez que muitas delas transmitiram seu saber a suas descendentes e muitas delas hoje seguem exercendo essa medicina popular. A dificuldade da mulher para ter acesso a estudos, tal como já mencionamos, e as perseguições que as curandeiras sofreram pela Inquisição são, provavelmente, umas das causas pelas quais não se encontrem escritos que se refiram a elas (versão nossa do galego para o português).


149 A parte histórica da cidade. Trata-se do antigo burgo ao redor do qual a cidade se desenvolveu.

150 Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.