S
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
BOITATÁ, Londrina, n. 27, Jan.- Jun. 2019
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
BOITATÁ, Londrina, n. 27, Jan.- Jun. 2019
REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL
Revista Boitatá é uma publicação semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e
Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística
(ANPOLL)
GT LITERATURA ORAL E POPULAR
BIÊNIO 2018/2020
COORDENADOR
Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Secretaria Estadual de Educação do Pará
alexandre_ranieri@hotmail.com
VICE-COORDENADORA
Profa. Ma. Délcia Pombo
PPGL-UFPA
delciauab@gmail.com
SECRETÁRIA
Profa. Ma. Dia Favacho
PPGED-UEPA
favachodia1@gmail.com
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019 1
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL
ISSN 1980 4504
NÚMERO 27 (Jan-Jun) 2019
A EDUCAÇÃO SENSÍVEL NA VIBRAÇÃO
DA VOZ POÉTICA
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019 2
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecário: Marcos Moraes CRB: 9/1701
Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL [recurso eletrônico] / Universidade
Estadual de Londrina - n. 27 (jan./jun. 2019). Londrina: UEL, ANPOLL, 2019.
Semestral
Requisitos do sistema: Adobe Reader.
Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>
Texto em português
ISSN: 1980-4504
1. Literatura oral e popular 2. Literatura oral ensino e educação I. Fares, Josebel
Akel. II. Pombo, Délcia. III. Favacho, Dia. IV. Universidade Estadual de Londrina. IV. Título:
Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Letras e Linguística - ANPOLL
CDU 82
Índice para o catálogo sistemático:
1.
Literatura oral e popular
2.
Literatura oral ensino e educação
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EXPEDIENTE
EDIÇÃO
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (SEDUC-PA)
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
EDITORIA ASSISTENTE
Dra. Mauren Pavão Przybylski (IFBaiano)
Dra. Andréa Betânia da Silva (UNEB)
ORGANIZAÇÃO
Dra. Josebel Akel Fares (UEPA)
Ma. Délcia Pombo (PPGL-UFPA)
Ma. Dia Favacho (PPGED-UEPA)
COMISSÃO EDITORIAL
Dra. Alai Garcia Diniz Universidade Latino Americana /
Universidade Federal de Santa Catarina
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Secretaria de Educação do Estado do Pará
Dra. Anna Christina Bentes
Universidade Estadual de Campinas
Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dra. Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra. Cláudia Neiva de Mattos
Universidade Federal Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Eliana Mara de Freitas Chiossi
Universidade Federal da Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
Dra. Ivete Walty Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve (Portugal)
Dra. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa (Canada)
Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes
Universidade Federal do Pará
Dr. Luiz Roberto Cairo
Universidade Estadual Paulista (Assis)
Dra. Maria das Dores Capitão Vigário Marchi
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do Pará
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do Sul
Dra. Maria do Socorro Galvão Simões
Universidade Federal do Pará
Dr. Mário Cezar Silva Leite
Universidade Federal de Mato Grosso
Dr. Piers Armstrong
University of California (Estados Unidos)
Dr. Sílvio Renato Jorge
Universidade Federal Fluminense
Dra. Vanderci de Andrade Aguilera
Universidade Estadual de Londrina
PARECERISTAS DESTE NÚMERO
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Secretaria de Educação do Estado do Pará
Dra. Andréa Betânia da Silva
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Carla Meira Pires de Carvalho
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Cláudia Freitas Pantoja
Faculdade do Vale do Ivaí
Ma. Délcia Pombo
Universidade Federal do Pará
Ma. Dia Favacho
Universidade do Estado do Pará
Dr. João Evangelista do Nascimento Neto
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade do Estado do Pará
Dra. Mauren Pavão Przybylski
Instituto Federal Baiano
Dr. Miguel Almir Lima de Araújo
Universidade Estadual de Feira de Santana
CRÉDITOS DA IMAGEM DE CAPA
Autor: Frederico Augusto Garcia Fernande
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O GT de Literatura Oral e Popular /ANPOLL dedica este número
da revista Boitatá a Jerusa Pires Ferreira (Feira de Santana/BA,
1938 -
Salvador/BA, 2019), eterna mestra, que, junto com Boris
Scheneiderman, Bráulio do Nascimento e Hidelete Muzzart, criou
nosso grupo de trabalho, é responsavel pela formação de muitos
pesquisadores na área e impulsionou os estudos de poéticas da
oralidade no Brasil.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
SUMÁRIO
A EDUCAÇÃO SENSÍVEL NA VIBRAÇÃO DA VOZ POÉTICA
Josebel Akel Fares, Délcia Pombo e Dia Favacho......................................7
A
SEÇÃO TEMÁTICA
A CHAMA DA ESTRELA QUE PULSA E ARDE: EDUCAÇÃO
SENSÍVEL NA PROSA POÉTICA DE ABGUAR BASTOS
Evellin Natasha Figueiredo da Conceição e Josebel Akel Fares................10
A VOZ INDÍGENA E A EDUCAÇÃO: ESQUECIMENTO NAS
OBRAS ANTES O MUNDO NÃO EXISTIA E MEU QUERIDO
CANIBAL
Alisson Preto Souza...................................................................................25
DA RUA À LITERATURA MARGINAL-PÉRIFÉRICA DOS
SARAUS & SLAMS: LETRAMENTOS LITERÁRIOS DE
REEXISTÊNCIA NA FORMAÇÃO SENSÍVEL-POLÍTICA DE
ESCRITORES E LEITORES POR MEIO DE PERFORMANCE
POÉTICA EM ESPAÇOS NÃO-ESCOLARES
Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza..............................................38
A
LITERATURA E ALTERIDADE: A SEQUÊNCIA DIDÁTICA
COMO FERRAMENTA PARA UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL
Arlen Maia de Melo e Sylvia Maria Trunsen............................................52
MAURA CANSADA: CORPO, PERFORMANCE E
MEMORIALIDADES
José Dênis de Oliveira Bezerra e Rosilene da Conceição Cordeiro ……69
MEMÓRIAS DO POVO TUPINAMBÁ: HISTÓRIAS SOBRE O
CABOCLO MARCELINO
Randra Kevelyn Barbosa Barros
Elizabeth Gonzaga de Lima.......................................................................83
O ENSINO DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO:
POSSIBILIDADES DE DIÁLOGOS COM CULTURAS E MODOS
DE VIDA
Sílvia Santana Velloso..........................................................................................94
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POESIA: EMOÇÃO E CONHECIMENTO
Elisângela Maria Ozório..........................................................................109
SARAU E PERFORMANCE: A REDE LONDRIX E
ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO DO TEXTO POÉTICO
Ana Cristina Pereira da Silva e Frederico Augusto Garcia Fernandes....118
A
SEÇÃO LIVRE
A
AS SINGULARIDADES DA PESQUISA COM CRIANÇAS: ÉTICA,
SENSIBILIDADE E VISIBILIDADE DAS INFÂNCIAS
Tânia Regina Lobato dos Santos, Nilza Maria Ribeiro e Adelice
Braga.........................................................................................................133
MEMÓRIA POLÍTICA DO PARÁ NA VOZ POÉTICA DE
ABGUAR BASTOS: ROMANCE SAFRA, UM ECO DA
RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA
Dinalva da Silva Corrêa e Denise Simões Rodrigues..............................145
A
A
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
A EDUCAÇÃO SENSÍVEL NA VIBRAÇÃO DA VOZ POÉTICA
Este universo em que se firma a literatura oral/
impressa é construído numa esfera de aproximações
dos sentidos, em várias formas de expressar: ver,
ouvir, dizer, gesticular, da voz, do gesto, e da figura
Jerusa Pires Ferreira
A voz penetrada pela poiesis, voz pulsante do ser, vibra ressonante o sentido da
existência humana. Assim, a educação promovida pela voz poética, educação sensível,
responde bem ao ser humano em suas relações consigo, com a vida, com o mundo. O que faz
constituir e manifestar o sentimento de outridade tão necessário para vivermos a diversidade
característica de nosso tempo. Educar para viver uma poética da diversidade é propósito
primal de uma Educação para/com/do Sensível. E esta, nos parece ser a ordem do dia, diante
do desassossego global vivido nestes tempos de transição paradigmática que exige de nós
respostas fortes frente às questões fortes que nos impunha. Desse modo, este número da
revista recebeu artigos que refletem e/ou projetam imagens de vozes que vibram uma
educação aproximada da razão sensível e seus valores complexos, conjuntivos, paradoxais do
pensamento; textos que elaboram a reflexão de uma educação de voz poética para uma poética
da voz que, por si só, educa ao fazer revelar o ser, a vida e o mundo em profusão.
Esta Boitatá compõe-se de 11 artigos que tratam da força poética em diferentes lugares
- no palco, na rua, na sala de aula, no urbano e no campo - se expressam nas formas verbal,
visual, sonoro-musical, cênica e cuidam de experimentos teóricos e leituras literárias. Os
artigos estão apresentados pela ordem alfabética do título, não seguem ordem de importância,
nem temática. Os textos seguem um fio onde se penduram experiências de leitura a partir de
textos orais, textos em matrizes impressas do oral, textos escritos, em ambiências de
diferentes semiosferas, em que se concebe o espaço da recepção estética, de autores da
literatura brasileira não canônica, especialmente. Nesta apresentação, nossas vozes se unem às
vozes dos pesquisadores para dizer das temáticas dos estudos.
A linguagem poética é recriação do mundo através de subjetividades capazes de
atingir o leitor nas suas emoções e razões, tornando-o um fruidor da voz sensível da criação.
Assim, no poema Um corpo sobre a areia, de Leonardo Tonus (2018), a voz poética passa a
ser a voz do eu-leitor que constitui um novo olhar sobre o mundo contemporâneo, analisado
como o submundo. Em Somanlu, de Abguar Bastos, obra tecida a partir da origem de seres
da mitopoética amazônica, habitantes da floresta, das águas, do céu, ultrapassa os limites do
local, apresenta temáticas universais, o estudo suscita questionamentos acerca de dramas e
problemáticas sempre presentes no existir humano. A partir da experiência com os textos
Antes o Mundo Não Existia (1995), de Tõrãmu Kehirí e Meu Querido Canibal (2000), de
Antônio Torres, comprova-se a ausência da literatura indígena nos currículos escolares e
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impulsiona-se a luta para sua inclusão. Com a narrativa indígena Iapinari, recolhida por
Antonio Brandão de Amorim e publicada postumamente em Lendas em Nheengatu e em
português (1928), também intensão de romper com o preconceito da exclusão, com a
invisibilidade dos textos produzidos pelos povos indígenas, ainda considerados pela crítica
literária como não-literatura. Em Anciões em Contos e Encontros, coletânea de quatorze
narrativas de resistência, contadas por velhos da nação Tupinambá de Olivença, organizada
por Alessandra Mendes e Jaborandy Tupinambá, entre relatos memorialísticos e contos
tradicionais, retratam o Caboclo Marcelino, relevante personagem histórico do povo
Tupinambá, analisado como forma de fortalecimento da identidade da comunidade.
A contemporaneidade coloca em discussão novas formas de pensar a literatura e
impulsiona mudanças nos cânones da teoria literária. Experimentações performáticas em
espaços públicos são formas de sensibilizar o leitor/espectador para uma leitura em que se
escarna a critica às opressões/desigualdades políticas, sociais, raciais, de gênero/orientação
sexual, a loucura, que corpos periféricos/minoritários vivenciam na sociedade. Na periferia
de Belo Horizonte, a literatura marginal dos saraus e slams promove a formação sensível de
leitores e de escritores, por meio da recepção de performances poéticas, a exemplo das
periferias de São Paulo, onde o movimento nasceu. Em Londrina, o Sarau Artístico e
Literário de Cambé, um dos mais antigos da região, entre outros grupos, permite o
compartilhamento de novas formas de fazer poético, colaborando para a formação e
fortalecimento da literatura londrinense, a partir da rede Londrix. Nos palcos de Belém e de
outras cidades brasileiras, a vida e a obra da escritora brasileira Maura Lopes Cançado é
apresentada a partir de experimentações performativas vivenciadas, que proporciona pensar
caminhos possíveis entre as relações corpo/ vida/ arte/ performance/ memória na
contemporaneidade. Outra experiência de formação de leitores acontece na Educação do
Campo sujeitos com diferentes perfis, sujeitos históricos de resistência - a partir de textos
literários, que propiciam diálogos culturais e identitários.
Na sessão livre, dois outros trabalhos enriquecem este número da revista: um artigo
sobre pesquisa com crianças como um instrumento de escuta sensível e de visibilidade das
vozes das crianças e de suas infâncias, e outro sobre uma das obras que compõe a Série Os
dramas da Amazônia, de Abguar Bastos, o romance Safra, analisado na perspectiva da
memória e da resistência na Amazônia.
Agora convidamos o leitor a percorrer os textos e encontrar-se com as imagens
incontornáveis que as diversas experiências dos artigos nos trazem por meio dos sentidos que
nos tocam sob a presença da Poesia que as fazem. A educação sensível em que está aportado
este número da revista Boitatá não é aquela que revela a sensibilidade daqueles que sabem
ver, mas dos que transvêem a partir dos diferentes sentidos e assim desvelam a diversidade
poética de que é feita a educação da poesia da voz.
Josebel Akel Fares
Délcia Pombo
Dia Favacho
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SEÇÃO TEMÁTICA
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A CHAMA DA ESTRELA QUE PULSA E ARDE: EDUCAÇÃO SENSÍVEL NA
PROSA POÉTICA DE ABGUAR BASTOS
THE FLAME OF THE STAR THAT PULSES AND BURN: SENSITIVE EDUCATION
IN THE POETIC PROSE OF ABGUAR BASTOS
Evellin Natasha Figueiredo da Conceição (UEPA)
1
Josebel Akel Fares (UEPA)
2
Resumo: O presente artigo estuda a construção do romance “Somanlu, o Viajante da Estrela”, do
escritor Abguar Bastos, publicada em 1953, ancorada na voz poética, na educação sensível. A obra
explica a gênese dos seres tecidas a partir de mitopoéticas, de matriz oral, fio condutor da narrativa
que, aliado à memória, é matéria propulsora das relações estabelecidas entre Somanlu e os demais
habitantes da floresta, capaz de abarcar uma rede de sociabilidade com vivências e ensinamentos
essencialmente educativos, marcados por um existir tocado pelo bem viver e conviver com o outro. A
partir dessas premissas, nosso principal intento nesse espaço é problematizar o modo como a educação
é vivenciada na narrativa, a partir do estudo das mitopoéticas e os saberes que as compõem, ao revelar
outra perspectiva de aprendizagem, expressa consideravelmente no plano do sensível e na totalidade
do ser. O texto em estudo faz parte da vasta produção da chamada Literatura Brasileira de Expressão
Amazônica, que ultrapassa os limites do local, apresentando temáticas universais, suscitando
questionamentos acerca de dramas e problemáticas sempre presentes no existir humano.
Palavras-Chave: Amazônia. Memória. Mitopoética. Oralidade. Educação Sensível.
Abstract: This article studies the construction of the novel "Somanlu, the Star Traveler", by the writer
Abguar Bastos, published in 1953, anchored in the poetic voice, in sensitive education. The work
explains the genesis of beings woven from mythopoetics, of oral matrix, the guiding thread of the
narrative that, combined with memory, is a driving matter of the relations established between
Somanlu and the other inhabitants of the forest, capable of encompassing a network of sociability with
essentially educational experiences and teachings, marked by one being touched by the well-being to
live and live with the other. From these premises, our main intention in this space is to problematize
the way education is experienced in the narrative, from the study of mythopoetics and the knowledge
that composes them, by revealing another perspective of learning, expressed considerably in the
sensitive plane and in the totality of the being. questions about dramas and problems always present in
human existence.
Keywords: Amazon. Memory. Mythopoetics. Orality. Sensitive Education.
1
Mestra do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Licenciada em Letras
- Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Pará. Integrante do Núcleo de Pesquisa Culturas e
Memórias Amazônicas (CUMA). Bolsista CNPQ.
2
Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP -2003), Professora titular da Universidade do Estado do Pará/
Departamento de Língua e Literatura e Programa de Pós-Graduação em Educação. Coordena o Núcleo de
pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA); Membro do GT de Literatura Oral e Popular da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL).
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Chamado da Estrela
Com um olhar prenhe de sensibilidade acerca da região amazônica, Abguar Bastos,
por meio das aventuras narradas por Somanlu, menino nativo do rio, provoca-nos a uma
reflexão crucial sobre este espaço enquanto seio de instâncias sociais cunhadas a partir de
uma vivência sensível, essencialmente marcada pela dinâmica interação com rio e a terra.
Deste modo, encontram na Mãe Terra um ponto de origem comum. Embebidos no texto
imagens dos rios, das plantas, do céu, dos astros em movimento, das ondulações das nuvens
que perpassam por entre várias nuances, potencializam um sentimento de integração a algo
maior. O outro é visto como extensão de tudo que rege o universo e, assim, o afeto do amor
permeia com real força tais relações sociais, tecidas sob os passos paulatinos do devir.
As mitopoéticas que compõem a narrativa se constroem a partir de metáforas e
envolvem os seres que povoam a natureza, fruto da amplitude dos saberes poéticos oriundos
do imaginário impresso na região amazônica. A explicação para a gênese de todos esses seres
abarca uma gama de imagens e sensações, nas quais, por vezes, estão presentes a luz, o rio, o
fogo, etc., gerando um jogo imagético que sensibiliza o nosso olhar.
Dessa forma, o presente artigo focaliza a discussão pautada nos saberes expressos nas
narrativas mitopoéticas presentes em “Somanlu, O Viajante da Estrela” de Abguar Bastos, a
fim de refletir sobre como a educação é vivenciada a partir da rede de sociabilidade construída
entre Somanlu e os seres da floresta na história, por meio de experiências ancoradas na voz
poética.
Tessituras do Encantamento
Abguar Bastos. Nascido em Belém do Pará, em 22 de novembro de 1902 e falecido
em São Paulo em 26 de março de 1995, foi um brilhante intelectual brasileiro, com extensa
obra no campo da literatura, da política, da religião, de cunho sociológico, antropológico,
jurídico e ficcional. Além de escritor premiado como intelectual do ano (Prêmio Juca Pato de
1987), foi diplomata, deputado federal pelo Pará e por São Paulo. Teve participação efetiva na
Revolução de 1930, fato que propiciou uma aproximação com os grupos políticos vitoriosos
no movimento. Tinha, além disso, engajamento político na Aliança Nacional Libertadora
(PAIVA, 2008).
No âmbito da Literatura, foi um dos primeiros a retratar a realidade amazônica, os
dramas humanos, a rica cultura e suas fábulas. na década de 30, registrou no conto "Safra"
a dura realidade da vida dos seringueiros da região, comprometendo-se com “a construção de
um painel cultural/social/político da Amazônia, configurado e reconfigurado a partir de
elementos de heterogeneidade, de hibridismos e diálogos culturais” (LOPES, 2015, p. 2), os
quais dão um dinamismo peculiar à trama narrativa.
O engajamento político latente na vida do escritor reverbera em sua escrita. Sua prosa
poética é potencialmente um escrito que grita por liberdade, uma experiência a qual o autor já
vivenciava na luta por uma sociedade igualitária. Seus personagens estão sempre na condição
de enfrentamento e resistência. Essa é uma das vertentes intrínsecas ao livro “Somanlu, o
viajante da estrela”, publicado em 1953. em sua advertência o autor nos deixa claro as
especificidades de que tratará:
Trata-se de novela e não de documentário. Por necessidade da harmonia do
enredo, o autor criou personagens e episódios que não pertencem a nenhum
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quadro mitológico ou folclórico porventura devassado ou transcrito.
Entretanto, quase todo o material aqui utilizado provém das fontes
autorizadas do nosso fabulário e da nossa tradição de feitiçaria. Através do
vocabulário que se encontra no final deste volume, o leitor verá o que
interessa diretamente às exigências dos documentários e encontrará o
significado dos termos e expressões regionais (BASTOS, 1953, p. 9)
Logo, uma forte intenção de explorar as potencialidades da terra. Tudo aquilo
presente na natureza, a sabedoria do seu povo e a fortíssima e vasta relação com o natural, um
chamado esperançoso à ancestralidade pela qual perpassa o estar no mundo desses seres,
nutridos de uma conexão profunda com as vozes da floresta, carregam um olhar inteligível
direcionado ao natural e ao sobrenatural. Os saberes construídos dia após dia, nas mais sutis
manifestações, amplificam a noção de que a existência humana está para além daquilo que é
palpável. Interagem, portanto, com divindades detentoras de um expressivo pluralismo de
ensinamentos morais e éticos reguladores de suas vidas.
A figura mítica é transplantada integralmente para a composição da narrativa. É fruto
do envolvimento do autor com esta cultura, a qual é prenhe dos saberes oriundos de
construções imagéticas expressas no imaginário e isto se pela memória. O par
esquecimento e memória constitui-se como capaz de conservar a materialidade poética
circunscrita nas narrativas existentes no imaginário amazônico. É necessário um
aprofundamento nesta discussão, justamente o que a próxima parte se propõe a realizar.
Memória, Mitopoética: atravessamentos
A dimensão memorialística cunhada no livro nos faz revisitar o conceito de tempo e
sua consequente divisão social. O modo como a escala temporal é organizada parte de um
pressuposto moldado por costumes e crenças sociais, tendo o calendário como principal
instrumento de seu controle (LE GOFF, 1992). Essa sistematização permite classificar o fluir
do tempo a partir de uma cronologia. É com base nesse modelo de organização existencial
que as pessoas orientam a dinâmica de suas vidas, marcadas por uma rotina coletiva,
atividades costumeiras conduzidas por uma orientação sistêmica. O universo de Somanlu, no
entanto, está configurado de forma a resistir a esse modelo pré-estabelecido.
O tempo é medido de maneira diversa. A história é contada durante um intervalo de
vinte luas. A monotonia da natureza impregna a existência de seus filhos convidando-os ao
ato de desacelerar. Todas as vidas estão entrelaçadas de maneira indissociável: “Tudo é céu.
Nosso mundo gira no céu. Nós mesmo estamos no céu. Caru-Saca-Ibo tanto pode morar entre
as nuvens como numa montanha, como no fundo de um rio” (BASTOS, 1953, p. 61).
Inspirado pelo saber da experiência vivido pelo povo indígena, Abguar constrói uma
dinâmica temporal a qual molda decisivamente cada pormenor da narrativa. Trata-se de um
tempo que não pode ser medido e nem quantificado de maneira linear, mas de “um tempo
circular, cósmico, que habita a mente e o coração dos povos indígenas, povos nativos, que
constroem a sua História vivendo o momento, o presente” (MUNDURUKU, 2005, p. 18).
A partir da devaneante experiência temporal, temos a construção de uma memória,
entendida como “a propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro
lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele representam como passadas” (LE GOFF, 1992, p. 423).
Nas vinte luas que iluminam as aventuras de Somanlu, a memória pode ser compreendida a
partir de dois vieses: as lembranças de Abguar enquanto amazônida e pelas reminiscências
dos costumes intrínsecos aos povos tradicionais. Logo, perpassa uma perspectiva individual
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(BERGSON, 2006) e coletiva (HALBWACHS, 2006), uma vez que as rememorações de um
povo impregnam o modo de estar no mundo de determinada sociedade.
Essas rememorações oriundas de uma coletividade têm sua principal chave em
elementos de matriz oral. Os povos tradicionais constituem suas vivências a partir de
ensinamentos embebidos essencialmente na oralidade e são nestas circunstâncias que a trama
narrativa de Abguar é construída, na medida em que a cultura do amazônida é encharcada
pela voz de seu povo. A experiência é construída a partir de escuta e observação sensível
frente aos elementos naturais. Zumthor ao desenvolver um interesse particular pelas
composições trovadorescas da Idade Média considera aspectos essenciais para a compreensão
acerca da voz e, deste modo, ressalta que
Na medida em que a mensagem poética para se integrar na consciência
cultural do grupo, deve recorrer à memória coletiva, ela o faz em virtude de
sua oralidade, de modo imediato: esta é a razão pela qual as sociedades
desprovidas da escrita são estreitamente ‘tradicionais’[...] A oralidade
interioriza, assim, a memória do mesmo modo que a espacializa: a voz se
estende num espaço, cujas dimensões se medem pelo seu alcance acústico,
aumentada ou não por meios mecânicos, que ela não pode ultrapassar
(ZUMTHOR, 2010, p. 41).
A voz é uma chama de se chegar ao poético. Proporciona uma gama de imagens e
sensações as quais de tão pungentes se misturam e amplificam nosso olhar perante as coisas
ao nosso redor. A voz é propulsora do imaginário, o anima e o enriquece, é “palavra sem
palavras, depurada, fio vocal que fragilmente nos liga ao Único” (ZUMTHOR, 2010, p. 12).
Esse sentimento de unicidade está continuamente expresso em todos os pormenores da
narrativa. É necessário registrar o fato de que a discussão acerca da oralidade aqui realizada se
insere em uma perspectiva de ultrapassar o aspecto fônico. Parte-se da intrínseca relação entre
a voz e a totalidade corpórea, que se materializa de forma expressiva na composição mítica do
referido livro.
Nesse contexto, convém lembrar que os mitos são formas seculares entre as quais as
mais distintas sociedades lançaram mão para compreender a realidade. Vernant (1973)
adverte que, na Grécia Antiga, os homens encontravam nos mitos uma forma de
personificar seus sentimentos, bem como conservar a história do povo, garantindo um modo
de ela ser repassada de geração em geração e o faziam a partir da figura dos deuses,
proporcionando uma perspectiva memorialística de caráter divino. É daí a raiz etimológica da
palavra memória, oriunda da figura da deusa Mnemosyne, sua personificação.
Eliade (2016) compreende o mito como uma realidade cultural extremamente
complexa devido ao fato de existirem sociedades em que ele fundamenta, assim como
justifica todo o comportamento e atividade humana, considerando-o uma história sagrada com
forte verossimilhança. Nesse cenário, uma explicação diferenciada para a origem de tudo
no mundo. Assim, o mito conta uma história sagrada ao relatar um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. A poesia, que bebe na materialidade desses
mitos, é um exemplo do processo de recriação pelo qual estas narrativas perpassam. Isto se dá
justamente devido à possibilidade do esquecimento. Memória e esquecimento estão
entrelaçados por um fio condutor à criação. Logo, a transformação destas histórias é
proporcionada pelo esquecimento, que tem a propriedade de poli-las e não somente apagar
(FERREIRA, 2003).
Loureiro (1995) discorre sobre a iluminação poética dos mitos na Amazônia. Ao cair
por terra o aspecto sacro, com um fim puramente prático, essas narrativas abarcam um caráter
essencialmente estético, sinalizando uma movência de função. Mito e Poesia são fundidos e
transformados em Mitopoética. Para o autor, um dos principais pilares dessa potência mítica
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impressa no solo amazônico é o estado de contemplação devaneante impresso na existência
do caboclo, impregnada por uma forte potência criadora. Isso proporciona um sentimento
estetizador propulsor de coesão social, um comportamento moral capaz de ligar os indivíduos,
não só pela sensibilidade estética, mas pela conduta moral e afetiva. Nesse sentido, são
ativados de maneira latente os sentimentos de alegria interior e prazer espiritual inscritos em
ampla sensibilidade cotidiana: “O devaneio contemplativo sempre foi a linha inconsútil que
ligou o caboclo amazônico do barranco à beira do rio às estrelas. Uma espécie de cordão
umbilical ao seu ser imaginal e o grande útero cósmico do universo” (LOUREIRO, 2015, p.
199).
Além disso, tal estado de contemplação perpassa a extensão da humanidade do
homem, geradora de humanismo. O olhar propicia a definição de um limite entre o homem e a
natureza. Mesmo sendo uma contemplação operativa, ela está circunscrita de forma
notadamente desinteressada. É observando as minúcias deste solo sagrado que o sujeito
compreende a sua pequenez frente a coisas as quais jamais conseguirá explicar por uma linha
convencionalmente lógica de raciocínio. Logo, atribui à natureza uma amplitude ligada ao
sensível, dedicando o sentimento de amor à vida pela qual se orienta:
Confere à natureza uma dimensão espiritual, povoando-a de mitos,
recobrindo-a de superstições, destacando-lhe uma emotividade sensível,
tornando-a lugar do ser materializando nela sua criatividade, ultrapassando
sua contingência na medida que faz dela um lugar de transcendência [...] A
natureza é fonte de signos em permanente circulação. Permite, como no caso
da Amazônia, a criação de uma verdadeira teogonia do cotidiano, estetizada
pelo imaginário, que lhe atribui uma configuração formal expressiva e
significante (LOUREIRO, 1995, p. 200-201).
Nessa perspectiva, na contemplação estética é essencial o envolvimento dos sentidos:
“O poema eleva-se a um nível de acontecimento do universo para conhecer o instante de um
clarão. A preguiça do devaneio é sacudida. Sonha-se. É preciso ver, ver com os olhos bem
abertos(BACHELARD, 1990, p. 57). Assim, os mitos abarcam uma espécie de visualidade
do maravilhoso que leva ao poético. Conduzem, portanto, o homem a uma experiência única
de transcendência com forte apelo imagético:
Era verão, as praias estavam lindas, as tartarugas nelas subiam para depositar
seus ovos, as flores vermelhas e amarelas das árvores cresciam e o mundo
parecia aos meus olhos muito enfeitado e luminoso.
As noites não eram estreladas, pareciam também sonoras, porque, ainda
que não tivessse certeza, aos meus ouvidos chegavam sons de músicas muito
suaves, que pareciam escorrer das copas das árvores ou fluir das flores
entreabertas (BASTOS, 1953, p. 23).
. Somanlu, ao narrar as aventuras da composição de seu mundo nos revela uma
concepção única de existência. Consegue enxergar a unidade entre os seres, existência
carregadas de grande complexidade. Todos os elementos naturais dialogam entre si de
maneira harmônica e são capazes de construir belíssimo fluir existencial, com uma integração
ampla dos sentidos. É com base nessas considerações que podemos falar em um educar capaz
de considerar a natureza corpórea em sua potência.
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O Viajante da Estrela e o Educar Sensível
Mesmo se considerarmos a existência de um estado de crise da imaginação
(CASTORIADIS, 2004) na sociedade contemporânea, podemos ilustrar de forma vívida o
quanto a Amazônia fornece um material imagético riquíssimo para o seu florescimento. se
estabelece o ponto de encontro com o mito, com Somanlu. Nas narrativas míticas a região se
imortaliza:
A Amazônia se funda no mito. As narrativas de origem construídas pelo
outro, pelo estrangeiro, configuram a América exótica, as promessas de
encontro de paraísos, do Eldorado e do reino misterioso das Amazonas,
composto por tesouros e por fábulas são recorrentes nas crônicas dos
viajantes estrangeiros que estiveram na região antes e depois do
“descobrimento”. O reino dos amazônicos nasce, portanto, sob a força do
mito, da força do feminino. As míticas guerreiras, as Amazonas ou as
Icamiabas, manejam arcos, amputam um seio e os filhos homens [amazona =
não; mazona (madzós) = seio] (FARES, 2018, p. 13).
Nesse contexto, as explicações oriundas de narrativas míticas intrínsecas à história de
Somanlu são permeadas por elementos fantásticos e sobrenaturais, que conduzem ao poético
e, logo, inscrevem-se no plano literário enquanto mitopoéticas. As plantas, os rios, os animais,
são personificados de tal maneira de modo a dar uma nova dinamicidade ao espaço e conduz a
um olhar ímpar em relação a determinado fenômeno natural. Apresento a seguir algumas
mitopoéticas fundamentais na estética geradora da narrativa.
Para que as coisas reservadas à sua fome estivessem sempre bem nutridas e tratadas,
Caru-Saca-Ibo, a divindade reguladora do mundo, fez nascer feiticeiras que deveriam
governar a terra, pois, para governar o céu, bastavam Tatamanha, a Mãe do Fogo, e Caru-
Saca-Ibo. Deu vida a cinco figuras: Nunó, Paqueima, Ceuci, Aiá e Nonhon, nascidas de
Tatamanha. Observamos que o equilíbrio fundante no modo como as coisas eram tecidas
passava pelo poder dessas cinco feiticeiras. Cada uma, a seu modo, era responsável por
articular uma espécie de bem viver condutora do existir dos elementos naturais. Elas estavam
organizadas sistematicamente para proporcionar harmonia ao mundo.
Nunó (Figura 01) deteve profunda atenção por tudo aquilo que era feminino, de modo
a conseguir por em ordem os rios e todas as águas. Tudo que habitava as suas profundezas
passava pela existência sensível de Nunó como protetora dessas criaturas. Assim ficou sendo
seu destino.
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Figura 01: Nunó
Fonte: Livro Somanlu, o Viajante da Estrela, 1953
Paqueima (Figura 02) logo teve um interesse especial pelas luzes. Queria arrumá-las e
dar lógica a sua dinâmica impregnando-as de cores. Era uma forma de evitar que os bichos se
soltassem à noite fora de tempo apropriado e, assim
Passou logo a mandar não nas luzes como nas sombras. E enquanto a
escuridão marchava de um lado para outro [...] Paqueima soltava vagalumes
no espaço, que acendiam suas luzes, apagando-as quando a escuridão se
achava escondida (BASTOS, 1953, p. 40)
Figura 02: Paqueima
Fonte: Livro Somanlu, o Viajante da Estrela, 1953.
Ceuci (Figura 03), por sua vez, olhou para os animais e desde o primeiro momento
nutriu grande afeição por eles, devotando um carinho muito sincero. Viu que estes eram
dotados de uma completa assimetria e logo quis fazer algo para deixar ainda mais exuberantes
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aqueles seres cheios de luz. Assim, redimensionou estas existências colorindo ainda mais suas
formas:
Ceuci achou ruim o que viu: pássaros que tinham dentes, mamíferos que
punham ovos, peixes e lagartas que tinha asas, pássaros que tinham mãos,
cobras com duas cabeças, animais que cresciam demasiadamente e outros
que, podendo viver em toda parte, não sabiam qual a sua verdadeira morada:
se o ar, a terra ou as águas. No entender de Ceuci, cada coisa devia ter o seu
lugar e a sua condição de vida. Passou então a dar formas definidas aos
bichos [...] Mas não se limitou aos bichos, passou a equilibrar a existência de
tudo o que possuía movimento e que podia ir de um lugar para o outro. E
assim ficou sendo seu destino (BASTOS, 1953, p. 40-42)
Figura 03: Ceuci
Fonte: Livro Somanlu, o Viajante da Estrela, 1953.
Aiá (Figura 04) olhou para as florestas e enxergou um fortíssimo potencial de vida.
Conseguiu compreender a unidade que este espaço representava para todos os seres, sendo
casa que abriga e ao mesmo tempo edifica, compilando essas vidas, ao ser sua extensão.
Corporificou e ajudou a manter o equilíbrio entre os elementos que a constituíam,
contribuindo para a manutenção da simetria entre estes corpos artisticamente: “Aiá ficou
encantada com as florestas. Passava dias e noites colorindo as plantas e as flores. Queria ver o
mundo enfeitado. E ajudava Nunó a pôr ordem nos rios, porque Aiá ficava furiosa quando um
rio lhe derrubava uma árvore [...] (BASTOS, 1953, p. 42). Deste modo, proporciona à
natureza grande parte daquilo que há de mais belo em seu meio.
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Figura 04: Aiá
Fonte: Livro Somanlu, o Viajante da Estrela, 1953.
Nonhon (Figura 05) se encantou com os minerais preciosos os quais encontrava na
medida em que explorava as vastidões da Terra. Viu logo o potencial daqueles brilhantes ao
carregarem uma beleza única comparável à dos astros. Isso possibilita a iluminura de algumas
regiões da floresta, tal como rios e montanhas, preocupando-se incessantemente com as
profundezas, o subterrâneo:
“Nonhon maravilhou-se com o oiro, a prata, as pedras coloridas e brilhantes
que ia encontrando. Pôs-se a iluminar as montanhas e os rios com essas
pedras e metais, pôs-se igualmene a alumiar o interior da terra com os
minerais preciosos [...]” (BASTOS, 1953, p. 42)
Figura 05: Nonhon
Fonte: Livro Somanlu, o Viajante da Estrela, 1953.
São existências entrelaçadas em uma relação indissociável. Tudo aquilo que existe está
dentro do todo por mais complexa que seja sua forma de vida individual. Vemos, portanto,
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uma dinâmica pautada na ideia de globalidade, um fluir existencial cravado por uma ampla
gama de sujeitos naturais e sobrenaturais.
A nese dos rios também é ilustrada a partir de uma lógica diferenciada, de forma
amplamente personificada. Surnizuno (Figura 06) a vida que move essas águas em suas
profundezas e limites, conquistando a alcunha de “o pai dos rios”:
Surnizuno desceu à Terra transformado num menino barrigudo [...] Nunó
levou Surnizuno pela mão até um lugar hoje conhecido por Tinquicocha.
bateu na sua barriga, ouviu-se um estalo e a água começou a jorrar pelo
umbigo do menino, que ficou tremendo ao ver tanta água escapar de sua
barriga [...] Quando havia bastante água para formar um rio, Surnizuno
apertava a barriga com as mãos. Nos lugares secos afrouxava a barriga e
nadava guiando as águas no rumo do mar que atravessava a terra toda. E
assim Surnizuno andou por todos os lugares secos e, em todos os lugares
secos, atravessando as mais densas florestas e espantando os bichos, formava
rios (BASTOS, 1953, p. 43)
Figura 06: Surnizuno, o pai dos rios.
Fonte: Livro “Somanlu, O Viajante da Estrela”, 1953.
Vislumbramos uma imagem dinâmica, forma distinta de compreender a origem de
determinado elemento que, nesse contexto, é identificada como verdade de um povo,
porquanto ilustra vividamente a concepção do caboclo acerca das origens pulsantes de seu
existir. Esse é um mito dotado de forte carga semântica e poética. Uma esfera estética
imbricada no social, capaz de levar o ser a um estado latente de devaneio, de modo a interligar
os seres a um estado intemporal de poesia (LOUREIRO, 2000).
Outro elemento manifesto na poética de Abguar arraigado na história é o dinamismo
dado aos sentimentos os quais, por vezes, são personificados de forma a terem vontades
próprias e uma maneira peculiar de conceber uma dada realidade:
Entre os novos seres criados apareceu Rudá, também nem homem nem
mulher, invenção de Capu, que encheu Rudá de feitiços. Rudá, por sua vez,
inventou o amor, que era um feitiço muito engraçado: fazia com que todos
os seres, até mesmo o bichos, gostassem mais de uma coisa que de todas as
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outras. Antes, todos gostavam de tudo, indistintamente. Não havia
preferências. Depois que apareceu Rudá, começaram as preferências: As
iaras, por exemplo, passaram, cada uma, a gostar de determinado oara e os
oaras passaram a escolher, cada um, a sua iara. O amor era um pequenino
bicho de fogo que Rudá botava dentro do peito de cada criatura quando esta
dormia (BASTOS, 1953, p. 70)
O amor, por sua vez, ganha vida e toma a forma de um bicho o qual, dentro do peito
de cada vivente, era fecundo e apresentava um misto de sensações que causavam um estado
de explosão multifacetada, capaz de colorir e amplificar o olhar de quem o nutria. Pontuamos
a delicadeza como são descritos os detalhes sobre a gênese de um sentimento de cunho
universal, tal qual é o amor. São sensações intrínsecas ao humano sempre relacionadas aos
seres da natureza. Tudo está conectado em um amplo estado de totalidade.
Estamos, portanto, diante de uma experiência cosmogônica, epistemológica e
ontológica completamente diferenciada. Encontra no natural os principais indícios de feitura
do mundo. Além disso, explica coerentemente a origem dos seres, resgatando a tradição oral
impressa na vivência dos povos originais da Amazônia. Isso contribui para a afirmação da
identidade desse povo, pois com seus ensinamentos nutre de saberes as experiências fincadas
no cotidiano, saberes estes que estão para além de um conhecimento científico de cunho
moderno, marcado por uma grade disciplinar. Abguar nos mostra o quanto é possível
aprender interagindo com a natureza, o que identificamos como uma atitude marcada por
fortes traços de resistência, pois é atravessada por vivências e ensinamentos marcados pela
sensibilidade.
A academia, muitas vezes, ainda nos leva a uma concepção única de ciência e,
partindo de uma perspectiva cartesiana, constitui um olhar quase sempre unidimensional com
preponderância na ideia de causalidade. Esta forma de se compreender o conhecimento
expressa uma atitude de fragmentação disciplinar, em que a subjetividade social é produto da
objetivação científica (MORIN, 2000). Logo, vasta teia de conhecimentos é marginalizada,
tornando complexo o entrecruzamento entre saberes e práticas. Foi com essa sutileza do
pensar e estar no mundo que a Ciência Moderna não conseguiu lidar ou, pelo menos,
apresentou problemas para compreender. Tudo aquilo que fugisse da lógica excessivamente
racionalista era posto à margem, fato capaz de estruturar uma hierarquização entre
conhecimentos diversos. O saber científico destinou-se a uma minoria, os círculos intelectuais
acadêmicos. A maioria, o corpo social, aquele que de fato sustentava as reflexões entre os
cientistas, enveredou pelas bordas nesse processo, o que acarretou a exclusão de uma série de
vivências, expressiva gama de experiências desperdiçadas por não serem legitimadas pelo
poderio científico dominante (SANTOS, 2002).
Dessa forma, conclui-se que o conhecimento não foi (e ainda não é) distribuído de
maneira equitativa na sociedade, logo podemos falar em privilégio epistemológico e seu
impacto na construção de desigualdades sociais: “o privilégio epistemológico que a ciência
moderna se arroga pressupõe que a ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo”
(SANTOS, 2010, p. 138). Assim, é imperativo pensar na desconstrução das dicotomias as
quais a ciência moderna estava impregnada, apostando na existência de outras explicações
acerca da realidade.
A Pós-modernidade trouxe consigo o florescer de novas perspectivas relacionadas ao
saber. Tal como aurora, iluminou as reflexões em torno do conhecimento, propiciando a
oxigenação dos ideais nesse contexto, ao apresentar a percepção de que a ciência, por si só,
ainda não havia conseguido responder questões complexas relacionadas ao existir humano.
Acena, portanto, para possibilidades alternativas mediante ao conhecer, de modo a considerar
a socialidade que emerge aos nossos olhos de maneira ampla. Nosso intento, nesse espaço, é
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discutir acerca de uma forma outra de compreender o fazer científico, uma visão que abarque
as potencialidades de um objeto estético-literário, tal como é o livro de Abguar.
Bachelard (1970, p. 14, apud PESSANHA, 1985, p. 5) advoga a ideia de um tempo
descontínuo, formulador de “um racionalismo aberto, setorial, dinâmico e militante”, que traz
uma inovação na concepção de imaginação. Explora o devaneio e é exímio mergulhador nas
profundezas abissais da arte. O autor concentra sua reflexão na potência criadora do ato de
imaginar, considerado uma das formas mais profícuas de dar sentido ao mundo, distanciando-
se de simplificações. Parte, portanto, de um pensamento de alta complexidade. Logo, uma
reformulação acerca da ideia de racionalidade, a qual compreende o sensível e o inteligível,
sendo mescla de sensorialidade e intelecção.
Maffesoli (2008) também reflete sobre a racionalidade ancorada no sensível. Intitulada
“Razão Sensível”, esta forma diferenciada de compreensão da realidade está fincada na ideia
de valoração da multiplicidade, não apenas das emoções, mas também do intelecto e do
cotidiano. O indivíduo, na unicidade do corpo e da mente, é uma explosão de forças vitais,
racionais e passionais. O estímulo à sensibilidade permite ao ser alargar suas potencialidades
de reflexões acerca de determinados valores. Portanto, é pertinente o debate acerca de uma
racionalidade que vai além do aspecto puramente cognitivo, sendo o ponto de partida para a
formação de pessoas mais humanas e a construção do que o autor denomina saber dionisíaco:
Um saber que seja capaz de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a
este o lugar que lhe é próprio. Um saber que saiba, por mais paradoxal que
isso possa parecer, estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisível, da
desordem e da efervescência, do trágico e do não racional. Coisas
incontroláveis, imprevisíveis, mas não menos humanas. Coisas que em graus
diversos, atravessam as histórias individuais e coletivas. Coisas, portanto,
que constituem a via crucis do conhecimento (MAFFESOLI, 2008, p. 11-
12).
O saber dionisíaco, que fundamenta expressivamente a concepção de educação
sensível, reconhece a ambiência emocional, de modo a estruturar coerentemente uma teia de
sentimentos e sensações as quais estão expressas e participam de forma decisiva da dinâmica
estabelecia pelas pessoas no corpo social, em um entrecruzamento de processos afetivos e
cognitivos. Tal concepção advoga uma experiência de globalidade existencial marcada por
um viés poético, que encontra nos pormenores da vida humana matéria artística propícia à
fruição estética.
As mitopoéticas apresentadas em Somanlu, o Viajante da Estrela sugerem uma
perspectiva existencial diversa e expressiva. O saber construído pelos personagens integrantes
da narrativa percorre uma razão a qual explora de forma ampla a sensibilidade humana.
Abguar tece diversas imagens de cunho poético, fundamentadas pela interação frequente do
homem com a terra em seu sentido totalizante. Há sempre uma forma diferenciada de
aprendizado. Um saber que vazão ao sentir do corpo em todas suas magnitudes,
aprendizagem configurada pela exploração ampla dos sentidos, a educação sensível, com forte
estímulo à imaginação, pois tem uma função transcendental, ou seja, ela permite que se
além do mundo material objetivo e se crie o que Bachelard chamava de ‘suplemento da
alma’” (PITTA, 2005, p. 38, grifos da autora).
Vemos, portanto, uma concepção fluida de existência: “Escrever a história da Floresta era
escrever a história de cada flor, de cada ramo, de cada folha, de cada raiz, de cada fruto”
(BASTOS, 1953, p. 115). uma sutil conexão entre a natureza e os seres que a povoam.
Traçam um existir ancorado por uma energia harmoniosa capaz de suscitar um profundo
estado de bem querer o meio e o outro. Essa é uma herança deixada pela filosofia de vida
indígena, na qual o bem viver é um dos grandes fundamentos:
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Os povos indígenas têm uma coisa em comum: uma mensagem de amor pela
Mãe-Terra, de apego às raízes ancestrais transmitidas pelos rituais; um
profundo respeito pela natureza, buscando caminhar com ela por meio de um
conhecimento das propriedades que ela nos oferece e com as quais sustenta
cada povo, como uma mãe amorosa que sempre alimenta seus filhos
(MUNDURUKU, 2000, p. 33).
Essa conduta de harmonia espiritual está atravessada por uma concepção expressiva de
sustentabilidade. Logo, podemos falar em uma dinâmica de modos de vida sustentáveis.
Fleuri (2017) considera que o bem viver sugere justamente essa boa maneira de ser e de viver,
ao suscitar uma quebra do paradigma binário estruturado pela modernidade entre natureza e
sociedade. Assim, somos convidados a revisitar uma relação milenar tecida minuciosamente
entre mundos biofísicos, humanos e espirituais, a fim de atentar para o real valor de uma
relação holística com o mundo por meio de práticas comunitárias dialógicas e recíprocas entre
si.
O próprio tempo em que se delineia a narrativa é convidativo ao ato de desacelerar,
distanciando de uma concepção de racionalidade positivista. O autor nos mostra uma floresta
diversificada, um tempo que advoga pela monotonia natural constituída por um saber da
experiência (BONDÍA, 2002). É um reconectar-se com o universo, uma forma de sentir-se
pertencente a algo ou a alguém. Um fluir temporal no qual não há espaço para a produtividade
maçante imersa no cotidiano da sociedade capitalista contemporânea.
Sob esta ótica, Brandão (1981) afirma que a educação do homem existe por toda parte,
sendo o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os seus participantes. É o
exercício de viver e conviver com o que educa. Somanlu nos mostra outra perspectiva de
aprendizagem, fincada consideravelmente no plano do sensível. A educação sensível é
justamente esse resgate de um saber ancorado na totalidade do ser, imbuído de poeticidade,
porquanto “O ato poético é como um ato essencial que ultrapassa em um jorro as imagens
associadas à realidade” (BACHELARD, 1990, p. 80).
A poesia nos leva ao caminho do humano. As reflexões presentes nas entrelinhas em
que se desenham a história do viajante da estrela são fecundas em suscitar um sentimento de
empatia em relação ao outro. O modo de enxergar as coisas e se relacionar com os seres ao
seu redor faz de Somanlu um protótipo de humanidade, que convida o leitor a um
reencantamento com o mundo. As poéticas amazônicas persistem a nos mostrar o quanto são
universais, mesmo com a pouca visibilidade dada a essa Literatura. Abguar nos presenteia
com uma obra que está para além do seu tempo, permanecendo infinda nos limites de nossa
memória.
O caminho é o da Estrela...
Somanlu abre caminhos para viajarmos em sua estrela. Ao sermos cativados por seu
brilho iniciamos uma jornada que dá vida ao nosso lado humano. Quisemos mostrar a
potencialidade da vivência descrita no livro e a sutileza pela qual perpassam os saberes
expressos em suas mitopoéticas.
As aventuras de Somanlu, além de impulsionarem a transcendência do ser, levam-no a
um convidativo desacelerar. Cada imagem descrita potencializa um estado pulsante de deleite,
o qual estabelece uma profunda conexão entre o leitor e a Amazônia, rompendo assim os
limites instaurados pelo físico. Cada linha de Abguar nos aproxima ainda mais da Amazônia e
a essência do existir sensível presente no cotidiano dos povos tradicionais. Portanto, é
possível enxergar com sutileza o amor como grande ferramenta de manutenção da rede de
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sociabilidade entre Somanlu e os seres da floresta. A grande proposta de suas vidas é o amor:
pela Mãe Terra, pelas águas, pelo céu, pelas flores, por todos os irmãos filhos das mesmas
origens pela unidade que compõe o universo. O amor traz um efeito balsâmico capaz de
harmonizar a alma.
O menino nos ajuda a compreender as nuances de um educar que está para além do
aspecto formal. Sua viagem na estrela funciona como ponte para reflexões profundas sobre o
existir humano e suas implicações. A explicação para o nascimento de tudo que compõe a
arquitetura universal ganha matizes de colorações diversas, as quais suscitam forte amplitude
poética. Logo, aprendemos a enxergar o mundo pela ótica de um viver diversificado e
amplamente fluido, que considera a sensibilidade corpórea ponto crucial para a construção do
conhecimento.
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A VOZ INDÍGENA E A EDUCAÇÃO: ESQUECIMENTO NAS OBRAS ANTES O
MUNDO NÃO EXISTIA E MEU QUERIDO CANIBAL
THE INDIGENOUS VOICE AND EDUCATION: FORGETFULNESS IN THE WORKS
ANTES O MUNDO NÃO EXISTIA AND MEU QUERIDO CANIBAL
Alisson Preto Souza (UFRGS)
3
Resumo: Este trabalho tem como tema central a presença/ausência da outridade indígena como parte
de um discurso colonial no âmbito escolar, cuja pedagogia perpetua um imaginário de invisibilidade
com a alteridade. Apesar de a escola ser um espaço de aprendizagem que desenvolva a consciência
social, também privilegia um discurso dominante e homogêneo. O esquecimento evidencia-se ainda
mais após a análise estatística de leituras obrigatórias de obras literárias nos últimos vestibulares. Nos
processos seletivos de 2017, 2018 e 2019 das universidades federais do sul do Brasil, verificou-se que
nenhuma das instituições exige leituras para reflexões políticas e estéticas de identidades indígenas.
Com base em teorias coloniais, educacionais, culturais, as obras contemporâneas Antes o Mundo Não
Existia (1995), de Tõrãmu Kehirí e Meu Querido Canibal (2000), de Antônio Torres ressaltam,
sobretudo, a relação entre a luta dos povos indígenas e uma luta simbólica contra o esquecimento e a
submissão aos signos colonizantes.
Palavras-chave: Esquecimento. Alteridade. Aprendizagem. Indígenas. Educação.
Abstract: This work has the central theme the presence/absence of indigenous otherness as part of a
colonial discourse in the schooling context, whose pedagogy maintain an imaginary of invisibility with
the alterity. Despite the school being a learning environment which develops social consciousness, it
also gives privilege to a dominant and homogeneous discourse. The forgetfulness is more visible after
the statistical analysis of the mandatory readings from literary Works in the last vestibulares. In the
exams of the 2017, 2018 and 2019 the Federal Universities of the Southern part of Brasil, none of the
institutions demanded any aesthetical and political Reading toward indigenous identity. Having
colonial, educational and cultural theory in mind, the contemporaneous literatures Antes o Mundo Não
Existia (1995), by Tõrãmu Kehíri and Meu Querido Canibal (2000), by Antônio Torres highlighted,
above all, the relation between the fight of the indigenous peoples and the symbolic fight against the
forgetfulness and its submission to colonial signs.
Keywords: Forgetfulness. Alterity. Learning. Education. Canibal. Indígenous People.
Ensino e voz indígena
Uma das formas de conscientização do sujeito em relação a si e ao mundo ocorre
através da escola. Enquanto Freitag (1974) associa a função da escola como fundamental na
construção da voz do indivíduo para a sociedade e para sua própria humanidade. Hunt (2011)
reflete que a escola acredita na aprendizagem através da imposição por meios de coação,
3
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras pela UFRGS. Membro da Linha de Pesquisa: Teoria,
Crítica e Comparatismo. Mestre em Literatura pelo programa de pós-graduação em Letras pela UFRGS
através da linha de pesquisa: Pós-Colonialismo e Identidades. E-mail: alissonsouzaprof@gmail.com
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manipulação, recompensa e castigos. Por outro lado, Libâneo (2007) prevê três objetivos para
a função da escola: a preparação para o processo produtivo e para a vida em uma sociedade
técnico-informacional; a formação para a cidadania crítica e participativa; e a formação ética.
Isto é, um espaço para os processos de socialização do indivíduo.
A ausência da consciência social em relação à causa indígena é sintomática de um
problema de inclusão e diversidade cultural. A situação social vigente permite-nos reconhecer
um descaso em nossos sistemas de ensino para com a nossa outridade e os discursos
bioéticos. Muitas questões permanecem abertas e não resolvidas, destacando o sujeito
indígena intrusivo, implicante, invasor e omisso ao sistema econômico e à cultura dominante.
Sonia Guajajara em entrevista para o jornal eletrônico “Brasil de Fato” posicionou-se em
relação ao governo da seguinte forma:
uma expressão de intolerância muito maior do que o que vivemos até
hoje. Vejo sim um perigo muito grande para nós mulheres, para nós
indígenas, para a população negra, pobres [sic] e da periferia, todo nós que
somos a diversidade. Tudo que é diversidade não é reconhecida por
ele[Bolsonaro], ele nos como intrusos ou pessoas que não merecem estar
aqui. (BRASIL DE FATO, 2018)
Por outro lado, a perversidade do pós-humanismo se debruça em um retorno à visão
de que certas humanidades são superiores e mais racionais do que outras. Não obstante, neste
viés, o indígena é parte de uma poética idealizada, de um universo ficcional e selvagem,
arquitetado por uma política envergonhada do que considera o atraso da “civilização
ocidental”. Todavia Guajajara é um exemplo contrário e vivo disso. Além do ataque aos
nativos e a perda das tradições indígenas, como resgatam os filmes Chuva é cantoria na
Aldeia dos Mortos (2018) de Renée Nader Messora e João Salavisa e o filme Ex-Pajé (2018),
de Luiz Bolognesi, talvez o maior estranhamento da atualidade esteja na ausência de
questionamentos para os estudos de cultura na espacialidade do ensino.
Mas não é só o tema dos ataques à diferença que poéticas orais sobrevivem a
racionalidade da escrita. Como reforça Antônio Torres, em Meu Querido Canibal (2000), as
políticas de invisibilidade indígena conectam-se à ideia de conformidade ao passo que os
registros indígenas envolvam colonizadores no papel de heróis da história nacional. Por outro
lado, no seu estudo Metamorfoses Indígenas (2013), Maria Celestino de Almeida enfatiza a
ideia de uma transformação do indígena em proletariado através do século XIX no Rio de
Janeiro. Darcy Ribeiro em Os Índios e A Civilização (1982) destaca movimentos que
deslocam indígenas para o Brasil profundo à medida que imigrantes e refugiados encontram
um novo lar na América. Manuela Carneiro da Cunha em Índios no Brasil: História, Direitos
e Cidadania (2012) vai sublinhar que a ideia do apagamento indígena começa a partir do
Descobrimento, reforçando de forma irônica que indígenas são comunidades “pré-
cabralianas”.
Talvez a poesis oral encontra-se a partir da autenticidade do texto, uma quebra de
contrato com as estruturas prévias; uma brecha para o respiro onde não existe espaço para
“ser”. É nesse contexto semântico de resistência que circulam as poéticas orais da lembrança.
Talvez legitimando a ideia de que enquanto a voz lembra, resgata, cura e age sobre o social; a
escrita, em contrapartida, aprisiona, domestica e faz esquecer. Assim se revelam os discursos
do esquecimento nos espaços de aprendizagem do que se entende por cultura brasileira. O
Outro no texto escrito, assim como no discurso treinado do pós-humano, se é que existe algo
depois do humano, é aquilo que mais afeta bombasticamente o ensino e a consciência social
do ser. Segundo Híran de Moura Possas (2011) é vital compreender que é a oralidade o “ser
em movimento” e toda a organicidade envolvida no ato da performance.
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Tão fortemente social quanto individual, a voz mostra a forma pela qual o
homem se situa no mundo em relação ao outro e como é capaz de reatualizar
os paradigmas literários, apresentando uma convencionalidade particular,
híbrida e permeável, revelada em uma poética comparável à secreção do
corpo humano. (POSSAS, 2011, p. 42)
No registro textual encontra-se artificialidade do texto sem cheiro, sem sentido e sem
vida nos rastros históricos de uma ausência. Desde as principais fases escolares até a chegada
dos processos seletivos na vida do brasileiro em formação, faz sentido que o esquecimento é a
energia motriz do imaginário colonial. Dando assistência à criação de sistemas simbólicos
“estereotipados”, empobrecidos e desnutridos da ideia de cultura como um organismo celular.
Este trabalho pretende explorar a temática do esquecimento e poéticas orais dos povos
originários e apresentar dados a respeito deste projeto de memorialidade e conscientização
social no ensino público. Para tanto, tem-se como objetivos específicos analisar as leituras
obrigatórias envolvendo a literatura indígena das Universidades federais e a exploração da
noção de esquecimento através das obras Antes o Mundo Não Existia (1995) e Meu
Querido Canibal (2000). O estudo do esquecimento e da invisibilidade indígena é didático à
medida que esclarece tensões, limites e práticas culturais para formação da identidade
brasileira.
A escrita do esquecimento
O esquecimento é uma voz política central nas manifestações que caracterizam a
identidade indígena, contudo, dificilmente identificam-se meios para redução desse
esquecimento em projetos inseridos na cultura, por exemplo. Ao lado de outras representações
de vozes periféricas, o indígena ainda constitui um espaço ínfimo de representatividade. Por
outro lado, muito do que é sabido sobre a identidade indígena advém de fontes terceirizadas,
em outras palavras, o índio é falado (não fala) ou a partir da folclorização das datas
comemorativas representado sem se fazer representar); ou através da história pelo discurso
de descoberta do continente americano; ou pela descrição idílica a qual a literatura se
recheada. De certo estes caminhos destroem a possibilidade de qualquer performance de
vozes autenticas, pois nele não há sequer poesia indígena.
Segundo Maria Eunice Moreira a definição pelo que se entende de poesia precisa ser
revisada uma vez que estabelece caminhos distintos daqueles tradicionais no mundo
simbólico. Para a autora Poesia é, como designa Paul Zumthor (e hoje nos parece tão
claro) [...] um conjunto de textos ditos poéticos como atividades que os produziu: o corpo, o
gestos, os meios [...] (MOREIRA, 2009, p. 114-116). Os caminhos de aprendizagem sobre
as tessituras artísticas indígenas traçam um caminho para revitalização do tecido da voz, da
poesis indígena que pertence, por hora, fixo ao imaginário colonial.
Em relação à sala de aula, o índio é uma construção simbólica europeia, um
construto falado, pois, assim, é categorizado e inexistente. Num processo que Zila Berndt
(2003, p. 63), vai caracterizar por “desmontagem” ao pensar em direção contrária “a ideia de
um sistema que se vai construindo”. O descaso com as questões indígenas está inserido como
discurso na cultura através da emulação de um inimigo ultrapassado, como figurantes de
uma história de caso encerrado. Um exemplo disso está em diversos artefatos do patrimônio
histórico no Rio de Janeiro, como atenta Antônio Torres, ao revelar o lado ambicioso, militar
e sombrio por trás dos monumentos cariocas. A maior riqueza retirada a força pelo europeu
no Brasil não foi o pau-brasil e nem o ouro, mas o indígena e sua cultura de existência e
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adaptação no terreno dos trópicos. O branco precisou do indígena que nunca precisou do
europeu até ser completamente usurpado, julgado por suas “maneiras” e saqueado.
Havia, portanto, a possibilidade de que os colonizadores não fossem os únicos
dotados de inteligência, organização social, língua e idioma. Seria, para o povo europeu, algo
como descobrir-se novamente, repensar convicções e valores e pôr-se em xeque. Assim como
destaca o primeiro ensaio da obra As margens do Ocidente, de mesmo título escrito por
Adauto Novaes:
O reflexo da cultura não produz apenas o duplo, produz tambem a
consciência da diferença. E foi exatamente porque as sociedades indígenas
mostraram ao europeu o outro lado da história faces diferentes de uma
mesma realidade humana que hoje se pode dizer (e não é reconhecido
politicamente) que existem sociedades diferentes, formas diferentes de
organização políticas, pensamentos diferentes que produzem diferenças no
interior da própria ideia de Ocidente. (NOVAES, 1999, p. 8)
No artigo “A Escola como Problema: Algumas Posições”, Dominique Gallois explica
que apesar da escola ser um espaço de aprendizagem que possui a função de empoderar o
sujeito para a autonomia, ela é também uma espécie de domesticadora de conhecimentos.
(GALLOIS, 2016, p. 509). Por outro lado, a relação entre a ideia da aquisição da cultura e o
papel da escola como espaço de aprendizagem traz à tona o estereótipo da escola como lugar
intrinsicamente cultural. Contudo, muitas vezes escola é apenas o lugar que se restringe a
produção de certos conhecimentos. Em relação à construção do conhecimento, do diálogo
entre escola e cultura, Gallois relata:
Aqui, uma sábia lição ameríndia, muito enfatizada nas experiências dos
Guarani: a escola não é nem o único nem necessariamente um espaço
privilegiado para a construção de um saber próprio; os saberes são criados
alhures, precisam ser buscados, descobertos por sujeitos que circulam em
busca de conhecimento. (GALLOIS, 2016, p. 511)
Apesar de a aprendizagem ir além dos muros da escola, a instituição de ensino ainda
pode ser um lugar de reflexão e desenvolvimento dos saberes, que depende tanto da visão dos
profissionais de ensino quanto da articulação com outros processos que produzem e
influenciam o sujeito na cultura. Contudo essa influência da escola nem sempre é libertadora,
uma vez que tende a ser uma experiência momentânea imediata, lúdica e textualizada. Sobre o
povo indígena, no livro Índios no Brasil (2012), Manuela Carneiro da Cunha, demarca os
principais desafios enfrentados pelos povos indígenas em relação ao branco.
Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência
do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de
sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi
fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-
organismos, mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: a
ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se convencionou
chamar o capitalismo mercantil. (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 14).
Em vez de um lugar sagrado para produção de consciência social, a escola torna-se um
braço direito que serve para o controle e a contenção das ideias dos papeis sociais do
indivíduo. No texto “Quando a escola é de vidro?”, de Ruth Rocha (1983), a autora critica o
papel da escola como produtora de modelos homogeneizantes, cujo desejo é massificar, e
simplificar os repertórios de imagens inseridos na cultura. Muitas questões políticas ainda não
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são trazidas para o processo de formação do sujeito, pois primordialmente sobrevive ainda a
ideia de que a escola é um lugar para que o aluno alcance a integridade social. Além disso, na
escola para com os povos indígenas o conhecimento é exibido de forma segmentada e
incongruente à realidade.
Evidentemente houve nas últimas décadas um descentramento do conteúdo para a
valorização da aprendizagem em relação ao espaço e história dos alunos. Por exemplo, na
Literatura, costumava-se associar a aprendizagem literária à identificação do autor e escola
literária, sublinhando um caráter menos político da Literatura. Atualmente, tenciona-se,
sobretudo, uma aproximação entre as contextualizações históricas e preocupações culturais. A
parte disso, se focarmos as sabedorias de tribos indígenas, o que temos como produção de
conhecimentos motivados pela escola?
A importância dos Estudos Culturais, como um estudo que observa através da
articulação dos saberes diferentes formas de construções discursivas, tem sido vital para
estudar a manifestação de artefatos culturais, uma vez que explora de forma politizada a
autoridade de artefatos produzidos na cultura em prol das identidades. Costa, Silveira e
Sommer, no artigo, Estudos Culturais, Educação e Pedagogia, enfatizam o papel dos
estudos culturais na reflexão sobre o fazer pedagógico no espaço latino americano:
Se voltarmos nosso enfoque para as conexões entre os Estudos Culturais da
América Latina e o amplo campo da educação, poderíamos experimentar
uma decepção inicial diante da escassez de trabalhos que tematizem tal
relação. Não podemos, entretanto, cair na cilada de que nada tenha sido dito
ou feito nessa direção. Por um lado, temos esporádicas mas não banais
reflexões sobre o papel e as características da escola dentro desse novo
mundo híbrido, vista como um espaço em mudança nas novas configurações
culturais. Por outro lado, é forçoso reconhecer a existência de estudos na
área educacional que principalmente através da influência dos olhares
foucaultianos, da visão cultural e outros da pós-modernidade aproximam-
se grandemente do que se tem pensado no Brasil como Estudos Culturais em
Educação. (COSTA, SILVEIRA, SOMMER, 2006, p. 55)
Trazer da mídia literária e cinematográfica atual mais material e análises para recordar
e lembrar a tradição indígena do Brasil situa-nos em um caminho menos turbulento para
estudos da cultura. Duas obras razoavelmente atuais que destacam distintamente a presença
indígena são Antes o Mundo Não Existia (1995) e Meu Querido Canibal (2000). Além de
destacarem de forma latente a presença indígena em cada uma de suas narrativas, ambas tem
na luta contra o esquecimento seu denominador comum.
A literatura indígena sob o título de Antes O Mundo Não Existia (1995) foi criada
pelos contadores das histórias: Umusi Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana) e Tõrãmú Kehíri
(Luiz Gomes Lana). O livro é parte de um projeto denominado Coleção de Narradores
Indígenas do Rio Negro e possui duas edições publicadas. A primeira edição teve sua
publicação em junho de 1980, enquanto a segunda edição ocorreu em abril de 1995. A
contação de histórias e o resgate do passado possuem uma relevante e estreita ligação nesta
obra, uma vez que a memória é evocada e recriada a partir de uma série de narrativas
simbólicas. Ainda na Apresentação, Luiz Lana sublinha que uma de suas lutas como indígena
é multiplicar as lembranças e responsabilizar-se pela sobrevivência de suas tradições:
Eu fiquei pensando, já que eu comecei a trabalhar, de pegar todas as estórias
que meu pai sabe, até terminar. Quero continuar. Enquanto eu viver, quero
fazer isso. Agora vou pegar as estórias que os antigos contavam para as
crianças. Quando terminar tudo isso quero escrever algumas rezas que os
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velhos têm, escrever em minha língua mesmo e traduzir ao português. Essas
rezas são muitas, e vai dar mais trabalho que este livro. Eu não quero que
elas se percam. E meu pai, que é kumu, é dos poucos que ainda se lembram,
agora tem kumu, não tem mais pajé. E quero publicar também, publicar
esse livro. São as rezas que se faziam quando davam nome às crianças,
quando as moças tinham a primeira menstruação, reza da defesa antes da
vinda dos pajés invisíveis, rezas contra dores de cabeça, febre, para as
plantas crescerem, para se acalmar os inimigos, contra mau olhado.
(KEHÍRI, 1995, p. 14)
De modo geral, ainda na seção da Apresentação, Luiz Lana, afirma que o livro nasce
de um desejo ver as histórias contadas por seu pai circulando entre os povos indígenas,
“sobretudo entre os jovens estudantes nas escolas espalhadas por todo o noroeste do Brasil.”
(KEHÍRI, 1995, p.10). Em entrevista à antropóloga Berta Ribeiro, Luiz Lana compartilha que
as histórias são ditadas pelo pai Pãrõkumu e que rejeitava as contar até mesmo ao Padre
Casemiro, “só a mim é que ele ditou essas casas transformadoras. Ele ditava e eu escrevia,
não tinha gravador, só tinha um caderno, era todo meu.” (KEHÍRI, 1995, p. 11).
Ao contrário de Tõrãmú Kehíri, em 2000, Antônio Torres publica a obra Meu Querido
Canibal com outro propósito. Em termos gerais, o romance traz outra leitura da representação
indígena criticando sobre a forma em que a sociedade ocidental narrou e proliferou certas
“verdades” como universais. Ainda nas primeiras páginas, Torres alega que por ser um
narrador branco e criado em berço ocidental, não seria totalmente imune ao pensamento
originalmente colonizador.
Como os índios não dominavam a escrita, seu destino sobre a terra se
esfumaçou em lendas. Se sabemos alguma coisa a respeito deles, é graças
aos relatos daqueles mesmos brancos, quase sempre delirantes, pautados
pelo exagero e eivados de suspeição, num desvario tresloucado de que não
está imune o narrador que vos fala (herdeiro do sangue e fabulas de uns e
outros). (...). algo de lúdico nesta expedição, porém. O simples prazer de
acrescentar alguns pontos a outros contos já contados. (TORRES, 2000, p. 9)
À denúncia da escrita da historiografia e ao ato recordativo do narrador que investe
nas poéticas orais, histórias memórias, recordação de nome de ruas, lembranças de espaços-
históricos e discursos emocionados da situação de ignorância sobre a história dos donos da
terra, uma voz popular pragmática, debochada e angustiada, que conversa com monumentos,
quadros e pergunta-se: de que forma alguém venceu qualquer coisa que houve neste lugar? A
polifonia e a ironia Bakthiniana apontam para a sobreposição de camadas que formatam do
estilo autêntico da voz poética na narrativa.
Como afirma Rubelise da Cunha no seu ensaio “O Outro lado do Espelho: a
representação contemporânea do indígena no Brasil” existe, ao entrarmos no século XXI, “um
deslocamento do narrador branco o qual se orienta para o resgate da história indígena.” (DA
CUNHA, 2003, p.28) A criação do texto literário parte de uma premissa de pesquisa histórica
e memorial, ressaltando uma aproximação entre a historiografia e a uma nova estética
literária. Zumthor (2000) parece sensato ao defender a ideia de que a oralidade experimenta
uma nova era diferente da tradicional, apresentada pela recriação da experiência alheia.
Dessa forma, para falar da memória indígena, o narrador em Meu Querido Canibal
ressignifica os eventos ligados ao processo de colonização brasileira, questionando o discurso
edênico do índio e expondo a perversidade do português em busca de terra, ouro e
mercadorias. O narrador, junto ao protagonista Cunhambebe, atravessa o período de
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resistência indígena reconhecido como Confederação dos Tamoios exibindo a base de quantas
mentiras sobrevive o legado colonial.
Não o imagine apenas um edênico bom selvagem e nu, ainda por cima,
sem nada a lhe cobrir as vergonhas etc. senhor das selvas e das aguas, da
caça e da pesca, a viver na era da pedra lascada. [...]. Vamos situá-lo no
tempo: a era da pedra polida. E no espaço uma região paradisíaca que os
brancos batizaram de Rio de Janeiro, ignorando os seus antigos nomes: Rio
de Arrefens, Rio de Oriferis, Rio de Rama, Rio de Iaceo. Cunhambebe foi o
senhor destas águas de sonho e fúria. (TORRES, 2000. p. 11)
Ao passo que introduz o leitor a história do Brasil, contrapõe ao leitor o país
fantasiado, roubado e violentado, juntando informações fragmentadas para expor uma verdade
oculta, perversa e violenta dos eventos históricos. Ao refletir o ensino sobre a cultura indígena
na sala de aula de escolas públicas enfrenta-se justamente a estereotipagem, a fantasia e o
discurso colonial inferido por inúmeros outros signos culturais como placas, nomes de
estradas e monumentos históricos.
4
As sessões de literaturas infanto-juvenis são espaços para
onde obras indígenas são encaminhadas, tratando-se de questões ontológicas que relacionam
filosofia e ecocrítica, mas são vendidos através de um discurso infantilizado.
Por outro lado, a consciência social torna-se um objetivo secundário, pois a prioridade
é obter um título para aquisição de um emprego ou ingressar em uma instituição de ensino
superior. Como pontua Rubem Alves em entrevista à Revista Cult (2001), desde cedo as
nossas crianças começam a ser influenciadas a fazer vestibular. Em detrimento disso, a
organização do ensino escolar passa a refletir muito das decisões temática abordadas por esses
exames. A partir da série os alunos são expostos a aprendizagens que tem a finalidade de
converterem-se em conhecimentos para aplicação destes processos. Por outro lado, ainda que
a universidade seja um espaço de produção intelectual, as ansiedades e estudos acadêmicos
nem sempre se manifestam da mesma forma que nos processos seletivos, como confirmará a
amostragem dos processos de ingresso nestas instituições de saberes no sul do país.
Esta análise permite, nesse sentido, uma reflexão sobre o caminho percorrido entre o
ensino médio e o ensino superior, entre o curso médio na escola pública, o vestibular e a
universidade. Tendo em vistas as leituras obrigatórias das provas das principais universidades
federais do sul, - UFRGS, UFSC e UFPR - dos anos de 2017, 2018 e 2019, percebe-se certa
invisibilidade em relação às questões indígenas, uma vez que o pressuposto destes exames,
baseia-se, segundo as premissas de Perrenoud (2003, p. 14) em um processo de avaliação
“socialmente situado, que passa por transações complexas, ancoradas no currículo vigente e na visão
da cultura da qual a avaliação faz parte”, visão essa que além de não possibilitar um espaço para a
reflexão e valorização a respeito dos povos originários, sublinha o esquecimento estrutural de uma
perspectiva política do indígena no âmbito de ensino pelos estados de Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná. Por outro lado, a lista de obras exigidas como leitura, evidentemente, cobre uma
variedade de temas sociais, filosóficos e literários. Na tabela 1 a seguir está demonstrada a lista de
obras por autor, ano e universidade.
Tabela 1
5
4
Preto Souza, Alisson. Cap 7. As placas, os monumentos, as ruas e os quadros em Meu Querido Canibal. In:
Representação, Memória e Cultura: a composição do universo indígena em Meu Querido Canibal, de
Antônio Torres. (Dissertação) Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/200582. Acesso em:
11 de Nov. 2019.
5
As informações encontradas na tabela foram retiradas dos sites das universidades supracitadas. Os links
encontram-se nas referências deste trabalho.
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Universidade
Ano
Autor
Obra
UFPR
2017
Ana Miranda
A Última Quimera
Lima Barreto
Clara dos Anjos
Carlos Drummond de Andrade
Claro Enigma
Gianfrancesco Guarnieri
Eles Não Usam Black-Tie
José Lins do Rego
Fogo Morto
Raduan Nassar
Lavoura Arcaica
Luís Carlos Martins Pena
Os Dois ou o Inglês Maquinista
Antônio Vieira
Sermão de Santo Antônio [aos peixes]
Gonçalves Dias
Últimos Cantos
Machado de Assis
Várias Histórias
2018
Antônio Vieira
Sermão de Santo Antônio [aos peixes]
Gonçalves Dias
Últimos Cantos
Machado de Assis
Várias Histórias
Lima Barreto
Clara dos Anjos
Carlos Drummond de Andrade
Claro Enigma
Raduan Nassar
Lavoura Arcaica
Gianfrancesco Guarnieri
Eles Não Usam Black-Tie
Ana Miranda
A Última Quimera
2019
Basílio da Gama
O uraguai
Gonçalves Dias
Últimos Cantos
Machado de Assis
Várias Histórias
João Cabral de Melo Neto
Morte e Vida Severina
Gianfrancesco Guarnieri
Eles Não Usam Black-Tie
Milton Hatoum
Relato de um certo Oriente
Lima Barreto
Clara dos Anjos
Bernardo Carvalho
Nove Noites
UFRGS
2017
Erico Veríssimo
O Continente;
Chico Buarque E Paulo Pontes
Gota d’Água;
Caio Fernando Abreu
Morangos Mofados;
Clarice Lispector
A Hora da Estrela;
Fernando Pessoa
Coletânea
Aluísio Azevedo
O Cortiço;
Machado De Assis
Dom Casmurro;
Pe. Antônio Vieira
Sernões
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes
e outros
Tropicalia ou panis et
circensis (álbum/disco);
Lídia Jorge
A noite das mulheres cantoras;
Tabajara Ruas
O amor de Pedro por João;
Sergio Faraco
Dançar tango em Porto Alegre
2018
Valter Hugo Mãe
A máquina de fazer espanhóis;
Carolina Maria De Jesus
Quarto de despejo
Elis & Tom
Álbum/Disco de 1974;
Michel Laub
Diário da queda;
Erico Veríssimo
O Continente;
Caio Fernando Abreu
Morangos Mofados;
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Clarice Lispector
A Hora da Estrela;
Fernando Pessoa
Coletânea
Aluísio Azevedo
O cortiço
Machado De Assis
Dom Casmurro
Pe. Antônio Vieira
Sermões
2019
Florbela Espanca
Poemas
Machado De Assis
Papeis avulsos
Maria Firmina Dos Reis
Úrsula
William Shakespeare
Hamlet
Valter Hugo Mãe
A máquina de fazer espanhóis
Carolina Maria De Jesus
Quarto de despejo diário de uma favelada
Elis & Tom
Álbum/Disco de 1974
Michel Laub
Diário da queda
Erico Veríssimo
O Continente
Chico Buarque E Paulo Pontes
Gota d’Água
Caio Fernando Abreu
Morangos Mofados
Clarice Lispector
A Hora da Estrela
UFSC
2017
Ariano Suassuna
Auto da compadecida
Machado de Assis
Esaú e Jacó
Ana Cristina Cesar
Poética
Conceição Evaristo
Olhos D’Água
Carlos Henrique Schroeder
As fantasias eletivas
Elvira Vigna
Vitória Valentina
Caio Fernando Abreu
Além do ponto e outros contos
Maria Valéria Rezende
Quarenta dias
2018
Carlos Henrique Schroeder
As Fantasias Eletivas
Conceição Evaristo
Olhos D’Água
Francisco de Assis Barbosa
Manuel Bandeira
José de Alencar
Lucíola
Luis Fernando Verissimo
Comédias para se Ler na Escola
Maria Valéria Rezende
Quarenta Dias
Nelson Rodrigues
Valsa n° 6
Salim Miguel
Nós
2019
Carolina Maria de Jesus
Quarto de Despejo
Jorge Amado
Capitães da Areia
Lygia Fagundes Telles
Melhores Contos
Manuel Bandeira
Melhores Poemas
Nelson Rodrigues
Valsa n° 6
Salim Miguel
Nós
A preocupação temática que abrange as escolhas das obras nos processos seletivos dos
anos que seguem os vestibulares de 2017, expressa tanto a dissolução das fronteiras em
relação ao gênero literário quanto à reflexão sobre a questão identitária.
Entre os temas relacionados às obras escolhidas se faz presente o nero literário; a
discussão sobre a autobiografia, autoficção e a metaficção; a presença da autoria feminina na
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literatura; a metalinguagem, o existencialismo e a subjetividade dentro do papel da literatura;
questões de cerne sociais, como os questionamentos trazidos pelo autoritarismo dos regimes
militares; os movimentos migratórios, a xenofobia e o nordestino; as questões raciais e a
exclusão social; a preocupação com as tradições e exaltação de aspectos regionalistas; e a
interpelação das questões judaicas no Brasil.
Além disso, pode ser observado na tabela que muitas das obras exigidas em 2017
mantêm-se nos processos de 2018 e 2019. A repetição de certos autores e obras indica que a
permanência é parte do procedimento das três universidades em questão. Em um panorama
nacional, no primeiro semestre de 2018, dentre as 68 instituições federais que realizaram
processos seletivos, apenas a Universidade Federal de Roraima UFRR exigiu a leitura de
uma obra que trata da temática indígena. O título da obra é Urihi Nossa terra, nossa
floresta, lançada em dezembro de 2017, escrita por Devair Fiorotti.
Algumas considerações
Assim como destaca Antes o Mundo não Existia (1995), o diálogo entre os textos
escritos e visuais é uma característica propriamente da literatura indígena. A maioria das
narrativas contempla desenhos coloridos criados pelos índios da tribo. Diferente dos brancos,
correspondendo, em alguns casos, às marcas identitárias, as ilustrações tem tanta importância
quanto as histórias escritas. Os desenhos que expressam deuses Desana, rituais, estéticas
sagradas e artefatos mágicos para as tribos do Rio Negro são uma forma de poesis, isto é,
símbolos que constituem a história oral dessas comunidades indígenas. O barco-cobra, por
exemplo, na obra de Kehirí, possui uma relação estreita com a esfera sagrada do saber mítico
de sua tribo, que ultrapassa, o campo mítico transfigurando-se nas artes de balaios e estética
circular, assim como compreende a visão de tempo da “criação” tribal.
A procura pela verdade e o olhar desconstrutivista a respeito da história da violência
colonial configura um espaço um tanto novo na literatura de representação indígena, que ao
adentrar o século XXI, parecem reagir ao esclarecimento de Walter Benjamin de que não
existe nenhum documento de cultura que não seja documento de barbárie. Ou seja, a história
da humanidade é um acúmulo de opressões e injustiças.” (BENJAMIN, 1986, p. 10). Em Meu
Querido Canibal (2000), é este aspecto denunciativo que marca a narrativa. É através de
Cunhambebe, um grande líder indígena tupinambá, por exemplo, que Torres realiza uma
reavaliação do discurso historiográfico, criando um estilo debochado na narração ao tratar dos
méritos e conquistas constituintes do violento processo de colonização no Brasil.
Enquanto em Antes o Mundo Não Existia (1995) a narrativa nos revela a organização
simbólica da identidade Desana, apresentando pela história antiga os ensinamentos tribais
concatenados através do mito e dos rituais, em Meu Querido Canibal (2000), a narrativa
revela o descontentamento com as políticas ocidentais em relação ao esquecimento indígena.
Esquecimento esse intencional e orientado pelos discursos interpelados pelas instituições
regularizadas pelo Estado.
Desde a invasão europeia, nos princípios do século XVI, a cultura dominante
trabalha duro para obtenção tanto do controle territorial quanto das práticas culturais
indígenas. A metodologia para o domínio Ocidental sobre as sociedades indígenas tem
objetivos simples: a “ceifação” das vozes e das cosmologias e a sua velada atualmente-
expurgação territorial. Entretanto, como afirma Aníbal Quijano, a força do discurso colonial
tem explorado o papel indígena em detrimento do seu próprio progresso, objetivando inseri-lo
para subordiná-lo a seu sistema de trabalho. Para ele, assim como Almeida (2012), o papel do
registro colonial reside na tentativa de sedimentar o sujeito indígena no proletariado.
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Desde o começo da América, os europeus associaram o trabalho não pago ou
não assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores. O
vasto genocídio dos indígenas nas primeiras décadas da colonização não foi
causado pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os
conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram
usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer.
(QUIJANO, 2005, p. 120)
A repercussão dessas ideias parte de uma premissa que privilegia a produção do
trabalho em detrimento da produção cultural, metamorfoseando e modernizando a identidade
cultural indígena num sujeito que se integra à história luta de classes, descriminando,
consequentemente, o etnocídio como solução para a interculturalidade dos povos originários.
Portanto, chego à finalidade do artigo sobre a relação da poética oral, a escrita como sistema e
o questionamento sobre o esquecimento. Ainda que a temática política indígena na escola e o
incentivo das leituras de temáticas indígenas pareçam ser um redutor de estereótipos e
abismos culturais, percebe-se ainda descaso através das propostas de atividades, livros
didáticos e lista de obras exigidas para os processos seletivos.
Como aponta Fernanda Trindade (2013), através de sua pesquisa de cunho
etnográfico, “Representação dos Índios na Escola: A experiência de uma oficina pedagógica”,
as atividades curriculares que ressaltam a representação social do indígena constituem-se nada
mais do que uma fabulação, fixação e estagnação do mesmo repertório de imagens
distorcidas. Não houve surpresa que ao expandir a pesquisa para os processos seletivos de
outras universidades do país, foi encontrado um conjunto de instituições que elegeram o livro
Iracema, de José de Alencar, como uma das leituras obrigatórias para prova. A parte disso, a
UFRR ainda nos pode ser observado como um signo de esperança em meio à pesquisa
elaborada, dialogando com o roubo da história, da memória e da identidade indígena no país.
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20/09/2018
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20/09/2018
[Recebido: 12 nov. 2019 Aceito: 13 mar. 2020]
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DA RUA À LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA DOS SARAUS & SLAMS:
LETRAMENTOS LITERÁRIOS DE REEXISTÊNCIA NA FORMAÇÃO SENSÍVEL-
POLÍTICA DE ESCRITORES E LEITORES POR MEIO DE PERFORMANCE
POÉTICA EM ESPAÇOS NÃO-ESCOLARES
FROM STREET TO MARGINAL-PERIPHERAL LITERATURE OF RECITALS &
POETRYSLAMS: LITERARY LITERACIES OF REEXISTENCE IN SENSITIVE
POLITICAL FORMATION OF WRITERS AND READERS THROUGH POETIC
PERFORMANCE IN NOT-SCHOOL SPACES
Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza (CEFET-MG)
6
Resumo: A Literatura Marginal-Periférica é um movimento que se consolida nos anos 2000 e emerge
das ruas e periferias de São Paulo, espalhando-se para outros grandes centros urbanos do Brasil. Num
primeiro momento, a base propulsora dessa cena literária é o circuito de saraus, e as competições de
slams que ganham mais visibilidade numa segunda fase. O principal meio de expressão dessa
literatura é a performance poética que se faz presente nos espaços à margem da cidade e do sistema
literário, e que mobiliza um público significativo de jovens para a escuta, a leitura, a escrita e o
protagonismo produtor dessa literatura contemporânea. Com esse processo de circulação nas/pelas
ruas e periferias, a literatura marginal dos saraus e slams promove a formação sensível de leitores e
escritores por meio da recepção das performances/vozes poéticas e letramentos de reexistência que
criticam as opressões/desigualdades políticas, sociais, raciais, de gênero/orientação sexual, etc., que
seus corpos periféricos/minoritários vivenciam na sociedade. O objetivo desse artigo é realizar
algumas leituras analíticas dos letramentos literários de reexistência na formação sensível-política por
meio das performances nos saraus/slams de literatura periférica de Belo Horizonte. Para isso,
contextualizamos esse nicho literário mediante o cruzamento entre conceitos teóricos e exemplos de
performances poéticas.
Palavras-chave: Literatura Marginal. Sarau. Letramentos Literários. Voz. Performance Poética.
Abstract: Marginal-Peripheral Literature is a movement that consolidates in the 2000s and emerges
from the streets and peripheries of São Paulo, spreading to others bigs urban centers of Brazil. At first,
the driving force of this literary scene is the recitals circuit, and the slam competitions that gain more
visibility in a second phase. The main means of expression of this literature is the poetic performance
that is present in the spaces on the fringes of the city and the literary system, and which mobilizes a
significant audience of young people to listen, read, write and produce the leading role of this
contemporary literature. With this process circulating in the streets and peripheries, the marginal
literature of recitals and slams promotes the sensible formation of readers and writers by receiving the
poetic performances / voices and reexistence literacies that criticize political, social, racial oppression /
inequality, gender / sexual orientation, etc., that their peripheral / minority bodies experience in
society. The purpose of this article is to perform some analytical readings of literary literacies of
reexistence in the political-sensitive formation through performances in the recitals / slams of Belo
Horizonte's peripheral literature. To this end, we contextualized this literary niche by crossing
theoretical concepts and examples of poetic performances.
Keywords: Marginal Literature. Recitals. Literary Literacies. Voice. Poetic Performance.
6
Doutorado em Estudos da Linguagem (CEFET-MG/2019). Atuou Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas-
EDUC (PPGED PUC-MG). Professor do Ensino Médio.
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Introdução
A rua é tratada, conforme Ivete Lara Camargos Walty (2014), como um espaço
político, econômico e cultural em que coexiste a diversidade populacional numa pluralidade
de lugares e narrativas urbanas que promovem encontros identitários, étnicos e/ou classistas.
Assim o faz, também, a Literatura Marginal-Periférica produzida nos saraus de rua frente ao
campo da produção cultural contemporânea, emergindo surpresas inesperadas neste entre
lugar ou não-lugar da rua violenta e abandonada, que, segundo a arquiteta Camila Renata
Félix de Oliveira,
A rua, a praça, a esquina, o espaço público, é o lugar da surpresa, do en-
contro com o inesperado, da oportunidade de realmente vivenciar a cidade.
Mas na maioria das vezes o locais abandonados pelo poder público e
também abandonado pelos moradores. O que é da rua é muitas vezes visto
como violento, como perigoso. [...] é clara a percepção do sarau como
expressão da realidade da rua, como a forma de passar um olhar, uma voz da
periferia, do ser periférico e marginal, para a rua. (FÉLIX, 2017, p. 162).
Dessa perspectiva sociocultural, sujeitos periféricos, negros, pobres, jovens, ativistas
das minorias políticas, nos anos 2000, vêm ressignificar aquela prática literária e social do
Sarau cultivada nos séculos XIX e XX por classes letradas e elitizadas. De forma semelhante
ao Movimento Cultural Hip-Hop (1980-1990), a Literatura Marginal-Periférica insurge nas
favelas, morros, vilas, presídios, muros e ruas das metrópoles urbanas do país. Com este
movimento cultural periférico, observa-se uma inovadora apropriação popular da prática
literária do sarau, que antes era praticado por setores da classe média e elite rural-industrial.
Retoma-se, a partir dessa transição aproximativa entre rua e a literatura periférica, o
termo Sarau que é uma derivação etimológica do latim serum que carrega o significado de
“tarde”, pois era nesse período do dia que aconteciam os saraus promovidos por setores de
artistas, políticos ou do mercado editorial como meio de divulgação pública de suas obras.
Assim, a antropóloga e doutora em literatura Lucía Tennina relembra as raízes históricas do
sarau, afirmando que
A palavra sarau não é recente. Diversas músicas, romances, cartas, crônicas
e memórias do século XIX, da Europa e da América, fazem referência a
essas luxuosas reuniões de amigos, artistas, políticos e livreiros, que, com
frequência variada, encontravam-se em casas de certas figuras da alta
sociedade ou em espaços exclusivos desses setores como clubes e livrarias
para tornar suas criações públicas. (TENNINA, 2013, p. 11).
Por outra ótica sobre essa transição etimológica e geográfica, os saraus não-elitizados
dos anos 2000 vêm acontecendo em espaços à margem do centro das metrópoles como: bares,
praças, ruas, metrô, esquinas, dentre outros lugares periféricos à linguagem central. Tal
deslocamento espacial que populariza a prática literária do sarau, é um processo de
ressignificação que também mobilizou Mark Smith um operário da construção civil a
organizar, em um bairro de trabalhadores da zona norte da cidade de Chicago, o Poetry Slam
que é uma competição de poesia falada com intuito de democratização da literatura oral “em
contraponto aos fechados e assépticos círculos acadêmicos”, (D’ALVA, 2014, p. 110), do
campo literário americano. O termo slam é apropriado dos torneios de baseball e briged, e
designava, primeiramente, a performance poética e depois a competição de poesia falada. No
Brasil, o slam chega em 2008 pelas mãos da Zona Autônoma da Palavra (o pioneiro ZAP
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Slam no bairro Pompéia da capital paulista) e segue esse contraponto crítico que era feito
pelos saraus marginas nas periferias de São Paulo desde 2001 quando surge o Sarau da
Cooperifa considerado o precursor desse movimento conectado à Literatura Marginal
Contemporânea.
Desse modo, os slams se identifica com essa cena literária de vozes periféricas que
ecoam pelos saraus não-elitizados que sustentam a base do movimento de Literatura
Marginal-Periférica, o qual transborda por vários centros urbanos pelo Brasil. Portanto,
refletimos que não importa se haverá legitimação dessa literatura praticada nas fendas da
cidade-capital urbana, incluindo-a ou não ao campo artístico, literário e cultural, pois, a
imagem que possa dar conta da produção linguística periférica não seja tanto a da inclusão
(aos grandes meios de comunicação, às grandes editoras, aos circuitos da cultura da cidade
criativa etc.), mas justamente ao contrário a do êxodo dos lugares corrompidos de poder e
vampirização, por um lado, e a da expansão do orgulho, da produção comum, da colaboração
e da cidadania, por outro. (RENA, 2016, p. 110).
Essa Literatura Marginal-Periférica é, portanto, marcada pela crítica social criativa em
suas performances poéticos-corporal em lugares hostis da rua contemporânea e
protagonizadas por jovens escritores e leitores, que se forjaram positivamente em contextos
não-escolarizados e por intermédio de uma educação sensível e letramentos literários de
resistência ou reexistência. Nesse sentido, a escrita e a leitura dessa Literatura Periférica vêm
se constituir como potentes e promissores “atos de resistência”, (DAVIS apud WALTY,
2014, p. 219), ao campo literário e cultural canonizado e institucionalizado por setores
hegemônicos dentro do Estado-capital.
Um indício desses processos sensíveis de Educação e Letramentos Literários de
Reexistência, (SOUZA, 2011) Não-Escolarizados, é registrado pelo pesquisador João Paulo
de Freitas Campos em 2016 quando demonstra, na sua etnografia urbana antropológica do
Sarau Vira-Lata de Belo Horizonte, que
De fato, não foram poucas pessoas que começaram a ler, escrever e declamar
poesias ao frequentarem estes saraus. Este é o caso de um notório
frequentador dos encontros, que assume o pseudônimo de “Vagabundo
Iluminado”. Ele afirmou que antes de conhecer o Sarau Vira-Lata “não tinha
interesse em poesia”, mas ao começar a frequentá-lo logo começou a
escrever e declamar, sendo comum vê-lo caminhando por ruas, praças e
bares da cidade vendendo suas zines e livros, manufaturados por ele mesmo.
(CAMPOS, 2016, p. 17, grifos nossos).
Aqui constata-se, inicialmente, um exemplo do processo de letramento literário em
contexto e/ou espaço não-escolarizado como as praças ocupadas pelo Sarau Vira-Lata, na
capital mineira, e que estimulou positivamente, em alguma medida, a leitura e a escrita do
poeta Matheus Garcia Torrezani, o conhecido “Vagabundo Iluminado”. Com isso, este sujeito
desinteressado em Literatura, devido talvez à experiências negativas com a linguagem
literária na Escola, viria a se abrir para a leitura e escrita de poesias após sua participação nos
encontros do Sarau Vira-Lata em 2011.
Esta questão nos aproxima de ressignificações sensíveis de Letramentos Literários
para além da principal Agência de Letramento na sociedade: a Escola. Tal reflexão era
realizada pela reconhecida teórica dos letramentos Graça Paulino que afirma que: “O
letramento literário, como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação pessoal
de práticas sociais de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem por ela.”
(PAULINO, 2004, p. 165).
Assim, a apropriação da leitura e escrita literária do escritor Vagabundo Iluminado se
desenvolveu por meio de uma prática de ressignificação coletiva do sarau de produção
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criativa da literatura marginal-periférica. Portanto nesse processo, uma singularidade no
uso da linguagem literária da poesia oral performada por este leitor-escritor e tantos outros
nas ruas em seus cotidianos de microrresistências àquela experiência negativa do cânone
escolar. Assim, este poeta questiona em seus versos reexistentes à linguagem formal e erudita
do cânone escolar:
Me pediram pra FAZER poesias belas / com rimas, palavras complicadas /
que soem bem aos ouvidos que desejam / ser massageados por palavras /
Mas EU sou Poeta Marginal [...] Registrar o ERRO em palavras é minha
função social. (VAGABUNDO ILUMINADO, 2015, p. 4-5).
Os atos performáticos poéticos e sensíveis do sarau marginal são reinventados num
sentido de nova existência literária potente e rebelde fora da ordem escolar e, por isso,
detonadores de Letramentos de Reexistência Literária Sensível-Política na formação de
jovens leitores e escritores na contemporaneidade. Com isso, ações estético-políticas dos
saraus de literatura periférica da rua contribuiriam para processos de Letramentos Literários
Não-Escolarizados na comunidade, interferindo no campo literário canonizado-hegemônico
dentro dos sistemas escolar e cultural, por meio de performances/vozes poéticas.
Letramentos literários de reexistência nos saraus e slams de literatura marginal
O Circuito/Movimento/Cena dos Saraus e Slams de Belo Horizonte promove a
visibilidade de outras práticas sociais de uso das linguagens literárias não-
canonizadas/escolarizadas que são fomentadas em outras Agências (Literatura Marginal-
Periférica dos Saraus-Slams) e por outros Agentes (escritores, poetas, performers, cantores,
dançarinos) de Letramento. Assim, os processos de Letramentos, escolarizado ou não,
deveriam, provavelmente,
recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de
uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais
ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho,
mídias, escola etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e
sociocultural. (ROJO, 2009, p. 32).
Porém, esta perspectiva sociocultural e antropológica dos letramentos, que abrange as
práticas de linguagem dos jovens leitores na periferia ou no centro da cidade, esbarra em
hegemonias influenciadoras da prática pedagógica dos professores nas escolas. Com isso, o
discurso pedagógico desconsidera agências de letramentos que estão fora da escola e são
desestabilizadoras da fixidez da “escolarização da literatura”, ou descontroem a “leitura
literária” única autorizada pela tradição do cânone estético-escolar.
Nesse movimento de contraponto à hegemonia da escolarização da literatura no
sistema escolar, a pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza (2011) reconheceu o Movimento
Cultural Hip-Hop como uma Agência emergente de Letramento Multissemiótico nos usos e
práticas da linguagem no cotidiano de jovens negros, ativistas, rappers, arte-educadores, que
se transformam em Agentes de Letramentos em suas comunidades leitoras na periferia de São
Paulo.
Aproximamos dessa autora o enfoque ideológico na abordagem do Letramento,
sugerido pelas performances e vozes poéticas dos saraus e slams de BH nas quais se “vê as
práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais de poder da
sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em
diferentes contextos” (STREET, 1993, p. 7 apud ROJO, 2009, p. 99).
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Souza (2011) contribui, ao reconhecer a complexidade dos Letramentos do
Movimento Hip-Hop associado ao Movimento Negro diante das estruturas de poder e
culturais na sociedade, para nossa abordagem dos Letramentos Literários fora da Escola que
produzem aquelas contestações estético-políticas de leitores-escritores coletivozes vira-latas
comuns. Assim, em sua pesquisa a Ana Lúcia afirma que
[...] não era mais o caso de observar as singularidades de suas práticas
letradas, mesmo estando fora do espaço escolar, mas perceber em que
medida elas não apenas eram letradas, como reelaboravam a perspectiva de
resultados ao mostrarem que não apenas valorizavam a cultura letrada
escolarizada, embora a refutassem em muitos momentos, como
principalmente a reinventavam [...] Nesse movimento, eles não apenas
resistiram a um modelo de letramento excludente apoiado em formas
cristalizadas de legitimação, mas criaram outras formas de dizer o já dito,
imprimindo de forma indelével suas identidades sociais. Daí a nomeação
letramentos de reexistência e não apenas de “resistência” (SOUZA, 2011, p.
158).
Aquela palavra como arma do Poeta Marginal-Periférico transforma-se, então, em
Letramentos Literários de Reexistência Não-Escolarizados performados, em atos de
resistência àquele Letramento Escolarizado pelos saraus em suas ações estético-políticas que
ocupam ruas, bares, praças, estações de metrô, etc. Assim, “é na palavra partilhada que se
encontra a conquista dessa revolução, diz Sérgio Vaz ao relatar experiências” do Sarau da
Cooperifa em São Paulo, pois o pobre trabalhador cuja única dose de lazer e cultura eram as
pílulas anestésicas da televisão, agora tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que
a gente não tinha e que agora era nossa” (VAZ apud WALTY, 2014, p. 223-224).
Priscila Gunutzmann (2017), pesquisadora da PUC-SP, também, percebe esta potência
da palavra poética quando mergulha no Sarau do Binho de São Paulo, que surgiu inspirado na
Cooperifa em outra quebrada da metrópole. Com isso, “é a utilização da poesia enquanto
mecanismo de transformação social cujos temas e apresentações possibilitam a reflexão e
aprendizagem que fazem parte da formação identitária de indivíduos que passam a contestar a
ordem estabelecida” (GUNUTZMANN, 2017, p. 238-239).
Essa partilha sensível e revolucionária da palavra literária num bar periférico foi a
inspiração para o surgimento em 2008 do Coletivoz Sarau de Periferia na regional do Barreiro
em Belo Horizonte, cujo manifesto da “Voz Coletiva” demarca “ideia de coletividade, que
vem desde o título, atravessa o texto, marcado pela busca do diálogo com o discurso
hegemônico, embora a ele a se oponha em exercício de resistência” (WALTY, 2014, p. 224).
Também nessa linha da potência do “coletivo”, o antropólogo João Campos (2016) aponta
que “Essa perspectiva de ação estético-política consiste na criação de sensibilidades
compartilhadas (RANCIÈRE, 2009), capazes de deslocar o visível e o invisível, num processo
criativo, afetivo e emancipador, tecendo novas maneiras de estar no mundo, tornando o novo
possível” (CAMPOS, 2016, p. 63).
Nesses novos modos e movimentos de recepção, reexistência e leitura-escritura
sensível das performances das vozes coletivas da Cooperifa, Coletivoz, Vira-Latas, Comum
“os saraus constituem rebeliões poéticas que manipulam taticamente espaços e práticas
artísticas, inventando novos usos e sentidos para ambos” (CAMPOS, 2016, p. 61). Daí a
recepção da Poesia Oral da Literatura Marginal-Periférica vem constituir-se “um ato único de
participação, copresença, que esta [poesia oral vem] gerando o prazer. Esse ato único é a
performance” (ZUMTHOR, 2014, p. 65).
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A performance do Vagabundo iluminado em que o poeta vocaliza a dor do trabalhador
queimando sua carteira de trabalho, durante a etnografia urbana do EDUC/PUC-MG
7
em
2014, configura-se uma formação crítica de leitores, espectadores no Sarau Comum, em
relação ao mundo desigual do trabalho nesta cidade-capital, promovendo a emergência dos
Letramentos Literários de Reexistência que poderia ser a ponte entre a Cultura Escolar e sua
comunidade de jovens leitores e escritores num sentido sensível de transformações das
linguagens e, consequentemente, do mundo ao redor superando barreiras entre saberes do
professor e estudantes, bem entre a periferia e o centro.
Performance, leitura, recepção e prazer estético-sensível
Tal leitura breve que realizamos daquela performance do poeta Vagabundo Iluminado
no Sarau Comum nos aproxima de um estado reflexivo sobre os meandros e as nuanças da
recepção estética do corpo dinamizado pela voz poética. Essa interpretação faz um diálogo
plural e móvel com as práticas de leitura diante da performance poética em espaços não
escolares ou não institucionalizados por aquele sistema literário e cultural dominante na
produção da linguagem artística. A performance “POBRE trabalha a DOR” daquele poeta
opera uma convergência ritualística e vibrante entre a escrita poética e o corpo vocalizado,
desencadeando aquela minha interpretação-leitura que ativou meu repertório crítico em
relação ao mundo e à identidade do trabalho e dos sujeitos trabalhadores em contextos
urbanos.
A partir dessa reflexão dialógica sobre o leitor da performance poética editada por um
escritor e performada no Sarau Comum-BH (Ocupação Cultural “Espaço Comum Luiz
Estrela”), cruzamos com a visão da antropóloga Michele Petit (2008) em que o leitor é
trabalhado por sua leitura de forma ativa e criativa para além da função informativa do texto
escrito. Com isso,
O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera
o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes,
deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra
algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso poderá levá-lo (PETIT,
2008, p. 28-29).
Esse aspecto do leitor ativo e recriador das semioses semânticas do texto com
liberdade de trânsito é aprofundado pela antropóloga Petit que, citando Michel De Certeau,
postula que “os leitores são viajantes; circulam por terras alheias; são nômades que caçam
furtivamente em campos que não escreveram” (PETIT, 2008, p. 27). Assim, aquele relato de
leitor “nômade” da performance poética (Sarau Comum) nos remete à diversidade de
recepção dos modelos e situações da comunicação poética e artística e seus efeitos estéticos
na relação escritor-texto-leitor, ou autor-obra-público de acordo com conceituação de
“sistema literário” do Antonio Cândido (2000), bem como de campo literário” do Pierre
Bourdieu (1996).
Nessa perspectiva histórica e antropológica da linguagem literária, o estudioso das
poéticas da voz Paul Zumthor (2014) apresenta modelos comunicativos para situações
poéticas de performance/recepção/leitura, ao considerar, de maneira semelhante ao de
Cândido e de Bourdieu, a literatura como uma prática cultural das atividades do campo
7
Essa etnografia urbana foi realizada pelo grupo de pesquisa Educação e Culturas (EDUC) da Pós-Graduação
em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) sob orientação e coordenação
da professora doutora em antropologia Sandra Pereira Tosta nos anos 2014 e 2015.
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artístico. Para isso, Zumthor concebe três elementos convergentes e universais para o
fenômeno das práticas literárias e poéticas: primeiro, os produtores de textos/objetos estéticos,
assim identificados por um grupo/geração; segundo, a existência de um conjunto de textos e
obras reconhecido por seu valor simbólico/artístico; terceiro, a participação necessária de um
público consumidor e receptor que identifique e reconheça aquelas obras/produtos como
poéticas. Portanto “desses pontos articula-se um elemento ritual: textos identificados como
tal, produtores assim identificados, público iniciado” (ZUMTHOR, 2014, p. 49).
Imbricado nesse pensamento sistêmico-comunicativo, Zumthor concebe a Recepção
do ponto vista da compreensão histórica e da duração temporal, medindo “a extensão
corporal, espacial e social onde o texto é conhecido e em que produziu efeitos” (2014, p. 51).
a Performance é tratada, por Zumthor, como um termo antropológico e não,
necessariamente, histórico, pois ela remete às condições do ato de expressão linguística e
percepção sensorial do “aqui-agora”, desviando daquela “duração longa” possível no processo
de recepção, uma vez que “performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a
um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes
implicados nesse ato de maneira imediata(ZUMTHOR, 2014, p. 51). Daí o pesquisador das
poéticas vocais relaciona os momentos de performance e de recepção naquela estrutura
discursiva e enunciativa da comunicação literária, ponderando que:
A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em
que um enunciado é realmente recebido. [...] Uma das marcas do discurso
poético (do “literário”) é, seguramente, por oposição a todos os outros, o
forte confronto que ele instaura entre recepção e performance. Oposição
tanto mais significativa que a recepção contempla uma duração mais longa
(ZUMTHOR, 2014, p. 52).
Essa presença ímpar da performance ao receber o enunciado poético aproxima Paul
Zumthor da ideia de “concretização” dos estudiosos alemães da Estética da Recepção, bem
como voltamos para as variantes móveis do ato único da performance na promoção do “prazer
artístico” em seu público leitor, ouvinte, espectador e participante copresente. A circunstância
privilegiada da performance produz uma recepção e uma leitura geradoras do “prazer
estético” na medida em que reintegra-se um “conjunto de percepções sensoriais”, pois “o que
produz a concretização de um texto dotado de uma carga poética são, indissoluvelmente
ligadas aos efeitos semânticos, as transformações do próprio leitor, transformações percebidas
em geral como emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica” (ZUMTHOR,
2014, p. 54).
Carregados dessa emoção sensorial e pluralidade semântica, a recepção ou leitura que
o leitor faz da performance realiza o “polo estético” que o autor elaborou do seu lugar ou
“polo artístico” para sua obra que “não pode ser idêntica ao texto nem à sua concretização,
mas deve situar-se em algum lugar entre os dois” (ISER, 1976, p. 21 apud COMPAGNON,
2010, p. 147). Assim, para esse teórico alemão Wolfang Iser, o leitor movimenta a si e a
própria obra literária, definindo a leitura como absorção e criação”, conforme Paul Zumthor
(2014, p. 52-53) interpreta este teórico. Disso, o mediavalista concebe o leitor vivo e num
movimento “nômade” que “vibra, de corpo e alma” (ZUMTHOR, 2014, p. 54).
Desse modo, a leitura é diálogo entre corpos, autor-público, mediado pelo texto oral
ou escrito. A “compreensão” do texto poético se torna dialógica e mistura as percepções
sensoriais das vozes dos corpos vibrantes do leitor com as do escritor, do receptor com as do
produtor, do participante com as do performer. A materialidade sonora das palavras alteram
virtualmente o estado físico e emocional dos sujeitos no ato enunciativo poético, seus centros
nervosos sensitivos e táteis. Tais reverberações da performatividade artística e literária nos
corpos desencadeiam o “prazer do texto” na medida em que transcende “necessariamente a
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ordem informativa do discurso” (ZUMTHOR, 2014, p. 63). Esse prazer da performance
transfigura em mundo o corpo e seus conhecimentos vivenciais, o que desestabiliza e
desconforta as crenças do leitor copresente-participante daquele ato de fruição estético-
político, e “faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor”, (BARTHES,
2006, p. 20-21). Portanto, “O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir
suas próprias ideias pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu” (BARTHES, 2006,
p. 24).
Hans Robert Jauss (1979) concebe condições ou elementos para uma conduta do
prazer estético” que refere-se àquela livre transformação do leitor criativo viajante em
interface com o texto e o escritor, movimentando-os (PETIT, 2008; DE CERTEAU, 1994).
Com isso, Jauss postula que:
[...] a conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo liberação de e
liberação para realiza-se por meio de três funções: para a consciência
produtora, pela criação do mundo como sua própria obra (poiesis); para a
consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto
na realidade externa quanto na interna (aisthesis); e, por fim, para a
experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao
juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação
predeterminadas e a serem explicitadas (JAUSS, 1979, p. 102).
A liberação do prazer estético perpassa, então, três consciências da poeticidade:
produtora, receptora e intersubjetiva. Jauss (1979) caracteriza a poiesis como algo da
necessidade de satisfazer a expressão do indivíduo ao sentir-se em casa, no mundo” (p. 100-
101). O reconhecimento das percepções sensoriais embasa a consciência receptora da
aisthesis que assimila um saber ou um conhecimento por intermédio da experiência corporal
sensível. A consciência experiencial da intersubjetivação, isto é, da katharsis, nos conduzem
às sensações afetivas que vivenciamos, modificando-as, diante da manifestação poética, ou
seja, “aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o
ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua
psique” (JAUSS, 1979, p. 101-102).
Nesse jogo livre e não-linear do prazer poético entre leitura e escrita, recepção e
performance, leitor e escritor, Jauss e Iser instituem dois conceitos para elevar o valor do
leitor frente às obras literárias, incluindo um conjunto de normas sociais e de convenções
culturais que constituem a ação do leitor e suas competências num dado período ou geração
histórica. Por esse motivo, Jauss postula horizonte de expectativa na produção/recepção dos
sentidos textuais, que Iser chama de repertório do leitor diante da obra literária
(COMPAGNON, 2010). Nesse sentido das expectativas, seja no horizontes ou no repertório,
aparece, por um lado, o leitor implícito que segue as instruções dos efeitos textuais
(pretendidos pelo autor implícito), e, por outro, o leitor real que efetiva e estrutura a leitura
real, equilibrando ou o aqueles pressupostos dos horizontes/repertórios, pois é aberto a
interação desses sujeitos na intercomunicação humana.
A história dos atos relacionais da escrita e da leitura com texto poético apresenta,
segundo Paul Zhumthor (2014), vários momentos que balizam aquela situação ou modelo da
comunicação literária. O primeiro momento a ser instaurado é o de formação, aquele de
produzir ou criar o texto. Na sequência, Zumthor fala da transmissão do produto textual
estético, aquele momento de ser publicado. Depois a poiesis é recebida pela comunidade ou
público e provoca a recepção. E, para enfrentar as temporalidades que limitam o fenômeno
cultural, a poética passa pela conservação. Nesse processamento ocorre, naturalmente,
inúmeras recepções ad infinitum que se somam no elemento da reiteração das poéticas, seja
no suporte da grafia escrita ou da palavra viva. A partir desses momentos/fases da história da
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poeticidade, Zumthor vislumbra dois modelos situacionais para linguagem/comunicação
literária: oralidade-vocal pura; leitura-escritura pura. Assim, detalha-se essas duas situações
enunciativas e comunicativas:
Tabela 01: comparativo entre oralidade e leitura-escrita puras
Na situação de oralidade pura,
Na situação de leitura-escritura pura,
[...] a formaçãose opera pela voz, que carrega a
palavra;
a primeira transmissãoé obra de um personagem
utilizando em palavra sua voz viva, que é,
necessariamente, ligada a um gesto.
A recepção vai se fazer pela audição
acompanhada da vista, uma e outra tendo por objeto
o discurso assim performatizado [...] transmissão e
recepção continuam um ato único de participação,
copresença, esta gerando prazer. [...] é a
performance.
Quanto à conservação”, em situação de oralidade
pura, ela é entregue à memória, mas a memória
implica, na reiteração”, incessantes variações re-
criadoras: é o que, nos trabalhos anteriores chamei
de movência (ZUMTHOR, 2014, p. 65, grifos
nossos).
[...] a formação” passa pela escritura, que é um
traçado, desenhado por um utensílio manual (caneta
etc.) ou máquina, e ademais codificado, de maneira
diferente segundo os tipos de escritura, ou os tipos de
língua.
A primeira transmissão vai-se fazer seja por
manuscrito ou por impresso, de toda maneira por
meio da mesma marca codificada, que além disso
subsiste, daqui por diante, por ele mesmo, pronto
para ser recebido pela leitura. Quanto a esta, ela é
uma visão de segundo grau: o sentido visual do
leitor serve-lhe para decodificar o que foi codificado
na escrita, operação diferente da visão comum
(informadora).
[...] A conservaçãose deve ao livro, à biblioteca,
ao que Michel Foucault chamava de arquivo. Graças
ao livro, à biblioteca, uma identidade fixou-se na
permanência (ZUMTHOR, 2014, p. 65, grifos
nossos).
Existem algumas distinções nesse dois modos situacionais para a
comunicação/produção artístico-estética. Uma das dissimetrias da obra transmitida pela voz e
pela escrita é que a recepção se efetiva coletivamente na situação de oralidade-vocal.
Destacamos práticas de recepção e leitura em grupo que são reverberadas por performances
poéticas dentro das comunidades de Saraus e Slams da Literatura Contemporânea Periférica.
Essas vibrações sensíveis provocadas pela recepção coletiva da palavra viva emanada pelas
vozes poéticas nos saraus/slams, resgata a esfera sensorial daquela concretização do prazer
único da performance, que ativa os sentidos de audição, visão, táctil, etc., dos sujeitos
presentes na ritualização da linguagem artística, e isso demarca outra diferença essencial entre
os dois modelos de comunicação, pois na oralidade “se mantém, de momento a momento,
uma unidade muito forte, da ordem da percepção” (ZUMTHOR, 2014, p. 66).
Na situação de leitura-escritura pura, é apagada parte dos fatores perceptivos e
sensíveis da presença vocal frente ao ouvinte receptor auditivo. A partir disso outra distinção
entre voz e leitura que se sente na intensidade da presença do intérprete, emissor. Essa
diferenciação entre poéticas orais coletivas e leitura-escritura individuais é, também, apontada
por Roger Chartier (2009) numa visão da historicidade dos atos e modos de leitura, que “A
oposição entre visualização e oralização é, sem dúvida, o indicador mais manifesto de uma
diferença nas maneiras de ler. Mas, obviamente, a leitura silenciosa não é única e as
capacidades daqueles que a praticam podem variar consideravelmente” (CHARTIER, 2009, p.
84).
Dessa recepção e leitura que se delineiam por meio dos poderes sensoriais da
copresença corporal, podemos identificar tipos de performance apresentadas Paul Zumthor
(2014). A performance completa é aquela em que se tem uma visão global do ato poético
enunciativo acompanhada da audição. Essa tipificação vai polarizar, fortemente, com aquela
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leitura silenciosa e solitária. Outro tipo de performance se processa pela ausência de um dos
elementos mediadores da percepção, que é o caso do ato auditivo de um disco ou rádio no
qual se perde a esfera do olhar em cima da performance. Reduz-se nesse caso a polaridade
entre performance e leitura. O grau zero ou mais fraco da performance se na leitura
solitária e apenas visual. Nessa última, Zumthor instiga-nos a pensar sobre origem de uma
mudez e/ou surdez não-sensitiva/performativa que veio dominar a nossa “educação literária”,
uma vez que “A escrita, no curso da luta em que ela se empenhou, por alguns séculos, para
garantir sua hegemonia na transmissão do saber e expressão do poder, deu-se como alvo
confesso a suspensão ou a negação de todo elemento performancial na comunicação”
(ZUMTHOR, 2014, p. 68-69).
Posto esses tipos de performances e situações comunicativas das poéticas,
visualizamos códigos culturais de contraste das práticas de letramentos em espaços
escolarizados e não-escolarizados. Daí, os letramentos literários de reexistência não-
escolarizados, por meio de poéticas das vozes que emergem do sarau/slam, desloca-nos para
concebê-los como “comunidades interpretativas”, na qual seus membros frequentadores
(escritores-poetas-performers, leitores-ouvintes-espectadores) se envolvem com recepções
geradoras de múltiplos prazeres estético-corporais num sentido global e amplo das práticas
sociais de uso das linguagens e da língua. Esse conceito de “comunidades interpretativas” é
concebida por Stanley Fish (1980) e é citado pela pesquisadora doutora Marta Passos Pinheiro
(2004). Desse modo, compreende-se que a comunidade interpretativa é “uma entidade pública
e coletiva composta por todos aqueles que partilham uma mesma estratégia de interpretação,
um mesmo modelo de produção de textos ou que contam a mesma história acerca do mundo”
(PINHEIRO, 2004, p. 112).
Com isso, os multiletramentos intersemióticos das/nas performances vocais e políticas
dos saraus/slams o reinvenções/ressignificações da linguagem central da agência escolar ou
de outras instituições influenciadoras da comunidade interpretativa, cujos sentidos semânticos
e sensíveis seguem trilhas desviantes e à deriva daquela ordem institucionalizada pela cidade
letrada (RAMA, 1998 apud TENNINA, 2017). Assim, quando o Sarau/Slam de Literatura
Periférica e seus frequentadores (agentes de letramentos de reexistência), ao assumirem a voz
como tática crucial para ocupar o campo literário da cidade criativa em espaços da rua,
identifica-se a historicidade da vocalidade num espectro de potências e valores sensíveis-
políticos que transbordam os enquadramentos gidos e fixos da norma letrada, implicando
ações identitárias “nômades” e à borda da produção cultural dos recitais das academias de
letras (espaços institucionalizados pelo poder hegemônico no sistema literário).
Essa prática literária por meio da poética-performance-vocal é abordada por Lucía
Tennina (2017) num direcionamento para além do termo “oralidade” que muitas vezes
confunde o olhar e o refletir sobre a poesia na cena periférica do sarau e do slam. Essa autora
retoma, então, aquela historicidade da linguagem vocal, citando Zumthor (2001), em sintonia
com o corpo presente para apontar que,
A palavra que circula nos saraus da periferia conta de um corpo, de um
momento e de um lugar que o conceito de “oralidade” não consegue
assinalar. A palavra falada que circula nos saraus é letra em estado
incorporado, que manifesta toda uma vida na periferia. Trata-se de vozes que
se atualizam por diferentes meios, em diferentes situações de performance,
mas que nunca se fixam, sempre estão de passagem, em um movimento
nômade, segundo Zumthor (2005), em um processo de transformação
constante. (TENNINA, 2017, p. 141).
O leitor, o escritor, a leitura, a escrita na comunidade de sarau/slam estariam em
estado ritual de “movência”, ou “reiteração”, que atravessam infindáveis “variações
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criadoras” de múltiplos letramentos, múltiplas intersemióticas, transformando seus corpos
“nômades” em permanente “reexistência” e resistência às padronizações ideológicas e físicas
que são impostas pela força hegemônica do campo/sistema literário cultural na cidade-capital.
Dalcastagné (2012) caracteriza esse grupo hegemônico na literatura contemporânea brasileira,
por meio de vasto levantamento das obras premiadas e publicadas por grandes editoras, sendo
de uma classe elitizada, branca, masculina de profissionais privilegiados no domínio dos
meios de comunicação e da ciência acadêmica.
Uma leitura de performance/voz poética marginal
Imersos nesse âmbito da crítica à literatura contemporânea contestada, miramos numa
leitura-performance-poética da escritora Nívea Sabino, no evento do Slam Estadual (etapa
final da seletiva para o Slam Nacional) de 2016 em BH, em que sua voz lírica nos indaga,
como leitor frequentador da comunidade interpretativa, a partir dos versos:
Seguimos na trilogia do não faz mal:
- mulher, negra e pobre!
Ei, me diz, fala pra mim: Qual é a dor que te comove!?
(SABINO, 2016, p. 78)
Essa estrofe de um dos poemas da escritora Nívea Sabino aponta para vozes, corpos e
o espaço social em disputa por inclusão na sociedade e na literatura contemporânea. Ainda
persiste a exclusão das vozes e corpos mulheres negras e pobres para “Quem insiste no ‘não’:
/ - ‘Não há machismo’ / - ‘Não há racismo...’ / Não há é na sua rotina, de ir e vir, vivência pra
te mostrar!”, continua a Sabino na quarta estrofe desse texto selecionado para nossa leitura
analítica.
O eu-lírico da poeta se posiciona no combate às violências patriarcal-masculina e
étnico-racial sofrida pelo corpo daquela “mulher, negra e pobre!” do segundo verso. E no
espaço da rotina societária, percebe-se uma estratégia de busca de legitimidade pela
experiência vivida pela autora que foi adotada por Carolina Maria de Jesus ou Ferréz em suas
obras literárias. Isso é indicado pela pesquisadora Regina Dalcastagnè, (2012) da seguinte
forma:
A autora de Quarto de Despejo [...] compreende sua posição periférica no
campo literário, adotando estratégias que permitam superá-la, sobretudo pela
valorização da experiência vivida e da autenticidade discursiva.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 47);
Ferréz também busca se legitimar via autenticidade na contracapa de
ninguém é inocente, ele diz ‘morar dentro do tema’ [...] apresenta-se [...]
como aquele que briga nas bordas do campo literário. (DALCASTAGNÈ,
2012, p. 45).
Essa legitimação vivencial e corporal, é reiterada pela poeta que convoca a atenção do
leitor, o público, recitando “Vem / cola ni mim / vão dar um rolezinho pro sentir: / -
Sentir na cara, ...a negligência! / Sentir na cara, ...a indiferença! / Sentir na cara, ...a
violência!”. Nesses versos, retomam-se fatos ocorridos cidades de segregação e higienização
racial nos ambientes de shoppings quando se proibiu a entrada de grupos de jovens negros em
shoppings para fazerem passeios que ficaram conhecidos como “rolezinhos”.
Na performance poética ao vivo, ou no vídeo acessível no site youtube, o “sentir na
cara, ...” é seguido de um gesto de tapa com as mãos que a performer faz em sua face,
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impactando a recepção do leitor-público, reforçando que “a performance é o ato de presença
no mundo e em si mesma. Nela o mundo está presente” (ZUMTHOR, 2014, p. 67).
Essa variável da segregação urbana, do “rolezinho” nesse poema, é pertinente na
elucidação dos espaços possíveis na Literatura Contemporânea analisado pela Regina
Dalcastagnè (2012), uma vez que a “urbanização, desterritorialização, transformações nas
esferas pública e privada, segregação [...] são alguns elementos que, combinados entre si,
podem ajudar a entender melhor a configuração espacial da narrativa dos nossos dias” (p.
111).
Dessas segregações sofridas pelos corpos femininos e negros, Nívea Sabino recoloca a
memória de resistência e insubordinação nos versos por inclusão e igualdade: Olha bem / se
eu tenho cara / de quem viria aqui fazer versinhos pra te divertir. / Direitos iguais é que vim
pedir. / É que Rosa Parks se recusou sentar pra eu chegar aqui, onde estou / Carolina de Jesus,
escreveu sua rotina em papéis e revista que sequer ela os tinha, resistiu da maneira que
conseguia / Cláudia, não houve quem não viu que o homem arrastou
8
.
A poeta, nesses quinto e sexto estrofes, retoma a resistência da mulher negra, escritora
e pobre trazendo a memória histórica e contemporânea de três mulheres negras pobres: Rosa
Parks (negra ativista nos EUA), Carolina Maria de Jesus (escritora negra), Cláudia (moradora
negra de favela no RJ).
Eu,
eu permaneço de pé
armada pela palavra
reverenciando gerações passadas
representando milhões de minorias diariamente silenciadas (FONTE?)
A poética de Sabino completa e demarca uma ancestralidade negra e feminista em
sua escrita contemporânea, o que reforça o dito por Dalcastagnè em sua crítica à Literatura
Contemporânea pelo “constrangimento” ao seu espaço tendo em vista a ocupação de seu
território contestado por,
corpos silenciados, domesticados, esquecidos nos quartos de despejo; corpos
insubordinados, que insistem em ocupar lugares que não lhes são destinados;
corpos que negam o discurso alheio sobre si são esses corpos, cheios de
marcas e rasuras que preenchem nossas cidades, e que podem dar sentido à
nossa literatura (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 144).
Esse sentido literário de que Minha poesia hoje pede passagem é pra mulherada [...]
pra ver se atinge a meta máxima: o dia em que TODAS SERÃO LIVRES”, talvez, seja um
verso-janela que a Nívea Sabino abre e que a literatura se transforma em ação coletiva num
sarau ou slam. Nisso, a poeta, o sarau-slam, provocam nos frequentadores um processo de
inclusão/democratização do fazer literário e do direito à literatura no cotidiano dessa cidade,
que é segregadora espacialmente de corpos e vozes advindas das minorias políticas, sociais,
identitárias e étnico-raciais. A partir dessa leitura da letra e da voz performática da Nívea
Sabino, podemos adentrar no elemento político-estético da Literatura Marginal Periférica da
crítica social às discriminações e desigualdades de gênero, raça e econômica, que é vivida na
pele por corpos femininos, pobres e negros.
Tal perspectiva das vozes/performances poéticas dos saraus/slams aproxima esse
movimento à cultura Hip-Hop que também, desde os idos de 1980-1990, usa a linguagem
tática de crítica ao poder dominante das classes burguesas e a todas desigualdades enfrentadas
8
É um trecho do mesmo poema analisado aqui e que foi publicado na 1ª edição do livro de Nívea Sabino na
página 78.
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pelas classes populares moradores das periferias nas cidades. Para isso, semelhante ao
Movimento de Literatura Marginal, segundo Lucía Tennina (2017), citando Moassab (2008),
o Hip-Hop através do rap “assume posição contra os modos hegemônicos de produção de
conhecimento atravessados pela escrita, e propõe a palavra falada como um meio de
formação” (TENNINA, 2017, p. 79 apud MOASSAB, 2008).
Os eventos da realidade violenta das desigualdades sociais, ao serem transpostos para
a forma da voz e da letra nas performances poéticas dos saraus/slams de periferia, tornam-se
elementos sensíveis que deslocam o leitor para letramentos emancipadores, praticando-os em
seu corpo em meios às demandas do cotidiano, e, assim, contribuindo para sua formação de
leitor-escritor.
Referências
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LITERATURA E ALTERIDADE: A SEQUÊNCIA DIDÁTICA COMO
FERRAMENTA PARA UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL
LITERATURE AND OTHERNESS: DIDACTIC SEQUENCE AS A TOOL FOR A
SENSITIVITY EDUCATION
Arlen Maia de Melo (PPGEAA/UFPA/CAPES/CNPQ)
9
Sylvia Maria Trusen (UFPA/CUNCAST e PPGEAA)
10
Resumo: Este estudo objetiva refletir sobre o processo de leitura literária a partir de conto
maravilhoso de proveniência indígena, visando à formação de leitores sensíveis a formas discursivas
que promovam a alteridade no âmbito educacional. Dessa forma, pretende-se trabalhar com a narrativa
indígena Iapinari, recolhida por Antonio Brandão de Amorim e publicada postumamente em (1928)
no livro Lendas em Nheengatu e em português, sugerindo, como ferramenta, sequência didática
calcada no texto selecionado. A metodologia utilizada neste trabalho consiste em pesquisa
bibliográfica de abordagem qualitativa a partir da seleção da narrativa, articulação dos conceitos sobre
produção escrita, letramento e leitura literária. Outrossim, este estudo pretende romper com a
invisibilidade que afeta os textos produzidos pelos povos indígenas, ainda considerados pela crítica
literária como não literatura. Dessa forma, espera-se que esta atividade elaborada possibilite a reflexão
dos educandos em relação a sua experiência com os textos de natureza indígena, para que se possa
atingir uma educação mais voltada à apreciação do sensível, favorecendo, assim, o processo de ensino-
aprendizagem dos educandos em sala de aula.
Palavras-Chave: Literatura. Alteridade. Narrativas indígenas. Sequência didática. Educação sensível.
Abstract: this study aims to reflect on the literary reading process from a wonder tale of indigenous
origin. Also, it points to formation of readers who are sensitive to discursive forms that promote
otherness in the educational field. Thus, we intend to work with the indigenous narrative Iapinari
written by Antonio Brandão de Amorim and published posthumously in the book Lendas em
Nheengatu e em português (1928); suggesting, as a tool, a didactic sequence elaborated from the text
in question. Our methodology consists of a qualitative bibliographical research based on the selection
of the narrative and articulation of concepts about written production, literacy, and reading. Moreover,
this study has the intention of reducing the invisibility that affects texts produced by indigenous
peoples, which are still considered as non-literature by literary critics. In this form, we hope this
activity may allow students to reflect on their own experiences with indigenous texts so that we can
contribute to achieve a more focused education for appreciation of the sensibility; favoring, therefore,
the teaching and learning processes of students in the classroom.
Keywords: Literature. Otherness. Indigenous Narratives. Didactic Sequence. Sensitivity Education.
9
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA/UFPA/ bolsista
CAPES/CNPQ). Correio eletrônico: arlen.maia@outlook.com
10
Doutora em Letras, Docente (UFPA/CUNCAST e PPGEAA). Correio eletrônico: sylviatrusen63@gmail.com
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Introdução
“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”
(BARROS, 2004, p. 75)
O fragmento poético acima descrito, de autoria do poeta Manoel de Barros, insere-nos
na proposição temática deste trabalho. O olhar sensível do poeta na intenção assídua de
“transver” o mundo e a agucidade com que nota as coisas simples e encantadoras, servem de
amparo para uma reflexão e entendimento de uma relação educacional cada vez mais plural e
diversificada. Entende-se que ainda existem várias dificuldades para a execução de um plano
educacional voltado para a experiência do aluno com o texto, prejudicando assim, tanto o
processo de leitura quanto o da produção escrita. O modelo de educação que se instaurou em
nossa sociedade ainda se baseia em práticas tradicionalistas e formalistas de ensino. Com isso,
observa-se que a capacidade tão eminente e latente em crianças e jovens de desempenharem
relações interdependentes, permeada por experiências diversificadas com os variados tipos de
textos, ainda são obstaculizadas em razão do sistema cerceador da educação. Não de ser
fortuito, com efeito, o fato de que o último censo realizado pelo Instituto Pró-ler indicar, em
sua 4ª edição, dados desalentadores neste campo:
Em 2015, semelhante ao observado nas edições anteriores da pesquisa,
pouco menos de um terço dos brasileiros declaram que gostam muito de ler.
Ao contrário, pouco menos de um quarto não gostam. A proporção de
leitores que gostam muito de ler é significativamente maior que a proporção
de não leitores, grupo composto por 43% de indivíduos que não gostam de
ler.
11
Sabe-se que o ensino de literatura, por muito tempo, destinou-se apenas à prática de
exercícios repetitivos, à decoração exaustiva de períodos literários, ao longo das quais exigia-
se dos educandos o conhecimento específico sobre os principais autores e representantes
destes períodos, bem como, suas respectivas obras literárias. Nota-se, a partir dessas
reflexões, o quanto eram desestimulantes, cansativas e frustrantes as perspectivas de
aprendizagem dos alunos a partir de seu contato com a literatura. Em virtude disso, vários
teóricos, profissionais da linguagem e estudiosos debruçaram-se sobre novas orientações
metodológicas atreladas ao ensino de literatura, pautadas no letramento literário e em modelos
plurissignificativos para estimular novos anseios de aprendizagem para a formação de
leitores. Os trabalhos de importantes pensadores em torno da educação e da literatura
introduzem novo “olhar” para a leitura, visando ao letramento literário e proporcionando
novas práticas para o ensino de literatura em sala de aula, e, dentre eles, cumpre mencionar os
nomes do professor Antônio Cândido (2004), Rildo Cosson (2009), Marisa Lajolo (1993)
Michèle Petit (2009), que estimulam o exame e a perspectiva adotada no presente artigo.
Este trabalho tem por finalidade refletir acerca da importância da literatura como fator
implicado no desenvolvimento do ensino-aprendizagem a partir da elaboração de sequência
didática que almeja discutir o nero conto maravilhoso indígena
12
em sala de aula. Esta
11
Conferir dados em : http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil-2015.
pdf. Consultado em 06 jan 2020.
12
Entende-se narrativa do maravilhoso a partir das proposições de Victor Bravo (Los poderes de la ficción)
como encenação da alteridade. “Poderia dizer-se que no fantástico o outro é irrupção, e, no maravilhoso, um
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proposta de elaboração tem por intuito trabalhar especificamente a narrativa indígena Iapinari
contida na recolha intitulada Lendas em Nheengatu e em Português(1928) coletada pelo
viajante Antônio Brandão de Amorim, às margens do Alto Rio Negro, no final do século XIX.
Dessa forma, os alunos realizarão o contato com texto que difunde as cosmologias e o
pensamento indígena que, em muito, não são reconhecidas nem referenciadas pelos manuais
didáticos utilizados em sala de aula. Por conseguinte, este trabalho consiste em estimular o
letramento literário dos educandos para que não apenas decodifiquem os signos dispostos,
mas que também leiam a narrativa, constatando a diversidade cultural, bem como a
importância dos textos indígenas. Por outro lado, o educador é motivado a conhecer essa
literatura demarcada pela alteridade que a singulariza, e a trabalhar com ela em sala de aula
como forma de resistência e difusão desses textos.
A leitura como uma experiência outra: A estimulação do olhar, ouvir e narrar.
As diversas formas de experiência com o texto literário em sala de aula são conduzidas
a partir do estabelecimento de jogo entre o que se compreende como real e como fantasiado
por crianças e jovens educandos, colocando em cena a ativação do imaginário e os atos de
fingimento (ISER, 1996), próprios da atividade de leitura de textos ficcionais.
Se a leitura, por conseguinte, funciona como dinâmica que coloca o leitor face a
alteridade do texto literário, ela possibilita não uma melhor desenvoltura e aprendizagem
do aluno em sala de aula e fora dela, mas também contribui à formação do sujeito em sua
relação com o mundo. A respeito desta importância histórica, social e cultural da leitura,
Jorge Larrosa (2003), afirma:
Se o sentido de quem somos é construído sob a forma narrativa, as histórias
que ouvimos e lemos, bem como a maneira como essas histórias funcionam
dentro das práticas sociais, terão um papel muito importante em sua
construção e transformação mais ou menos institucionalizada [...]. A
autocompreensão narrativa não se produz em uma reflexão não mediada
sobre si mesma, senão que neste imenso manancial de histórias que é a
cultura, e em relação ao qual organizamos nossas próprias experiências (o
sentido do que nos acontece) e nossa própria identidade (o sentido de quem
somos). (LARROSA, 2003. p. 39)
13
Como se lê neste fragmento, nota-se que o pensador e educador espanhol Jorge
Larrosa (2003) enfatiza o processo de construção e formação dos sujeitos, mediante o contato
com as narrativas que fazem parte da historicidade de determinado povo ou cultura. Esse
processo de imersão dos sujeitos está intimamente ligado ao processo de formação leitora do
indivíduo, conforme elucida o autor:
Na formação como leitura, o importante não é o texto, mas a relação com o
texto. E essa relação tem uma condição essencial: que não é de apropriação,
espetáculo (BRAVO, 1985, p. 244). Denomina-se, por conseguinte, narrativa do maravilhoso indígena, aquelas
que, expressando a cosmogonia ameríndia, encenam a alteridade humana (TRUSEN, 2018).
13
Texto original: Si el sentido de quién somos está construido narrativamente, en su construcción y en su
transformación tendrán un papel muy importante las historias que escuchamos y que leemos así como el
funcionamiento de esas historias en el interior de prácticas sociales más o menos institucionalizadas[...]. La
autocomprensión narrativa no se produce en una reflexión no mediada sobre mismo, sino en ese gigantesco
hervidero de historias que es la cultura y en relación al cual organizamos nuestra propia experiencia (el sentido
de lo que nos pasa) y nuestra propia identidad (el sentido de quién somos).
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mas de escuta. Ou, em outras palavras, que o outro permanece como outro e
não como "outro eu" ou como 'outro de mim mesmo' (LARROSA, 2003. p.
30).
14
De acordo com tal afirmação, percebe-se que uma relação interdependente entre o
texto e o leitor, sendo esta relação desprendida da implicação, ou da capacidade do leitor
deixar-se afetar pela alteridade do texto, decorrendo daí a experiência de leitura a que alude o
pensador. Neste caso, convém salientar que de acordo com o autor, o texto precisa ser
encarado como um constante outro, e, não somente como mera duplicação dos pré-juízos e
pré-concepções do leitor.
A literatura como suporte para uma educação sensível e criativa: a recolha de Antônio
Brandão de Amorim
A literatura, entendida, pois, como elemento que viabiliza a relação com a alteridade
do texto, configura-se como possibilidade de via transgressora que faculta aos alunos a
ruptura com os sistemas instituídos. Para tanto, nota-se, entretanto, a emergente necessidade
de se entender, questionar e modificar o modelo educacional vigente. A educação sensível
implica, necessariamente, pensar, propor e exercitar práticas que estimulem o aprendizado a
partir de outro olhar, através de outras formas de sentir, agir, refletir e questionar sobre sua
realidade social, possibilitando novas perspectivas e linhas de pensamento. O sistema
educacional ainda distancia os alunos da sua capacidade interna de pensar além do que se
estabelece previamente nos manuais didáticos. Com efeito, como anota, Alamo Pimentel “é
preciso perder a noção das imposições que nos colocam diante dos outros, para desafiarmos a
feitura da pesquisa, a partir das normas disciplinares no trato com o conhecimento”
(PIMENTEL, 2016, p. 10).
Lajolo (1993), por sua vez, expõe sua crítica aos padrões impostos aos livros didáticos
distribuídos e difundidos pelas grandes editoras, uma vez que enquadram o professor em
planejamentos de aulas metódicas, que ignoram o contexto dos envolvidos na experiência:
aluno e professor.
O que há, então, para o professor é um Script de autoria alheia, para cuja
composição ele não foi chamado: leitura jogralizada, testes de múltipla
escolha, perguntas abertas ou semiabertas, reescritura de textos, resumos
comentados são alguns dos números mais atuais do espetáculo que, ao longo
do território nacional, mestres, menos ou mais treinados, estrelam para
plateias às vezes desatentas, às vezes rebeldes, quase sempre
desinteressadas, sobrando a seção de queixas e reclamações para congressos,
seminários, cursos de atualização e congêneres [...] (LAJOLO, 1993, p.15).
A denúncia, sugerida no fragmento acima, expõe o cenário, que aliena o professor
desvinculando-o, a ele e a seu aluno não da realidade que o entorna, mas também da
própria feitura da prática docente, denotando exploração rasa e insuficiente do leque de textos
literários que têm à sua disposição. Nota-se, pois, a pouca participação do corpo docente na
contribuição para a composição e elaboração dos conteúdos dos manuais didáticos. Dessa
14
Texto original: En la formación como lectura lo importante no es el texto sino la relación con el texto. Y esa
relación tiene una condición esencial: que no sea de apropiación sino de escucha. 0, dicho de otro modo, que lo
otro permanezca como otro y no como "otro yo" o como 'otro desde mí mismo".
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forma, observa-se que a instituição escolar ainda é refém de conteúdos monopolizados,
concebidos em outras realidades que não a vivenciada pelos educandos.
É pois, nesse sentido, que como docente envolvido na prática em sala de aula com alunos
de e ano do ensino fundamental, discentes da e etapa da Educação de Jovens e
Adultos (EJA) e como mestrando interessado na leitura literária de textos de proveniência da
cultura indígena, que penso na formulação desta sequência didática como instrumento voltado
ao aprimoramento do modelo educacional vigente. Almeja-se, por essa via, a utilização de
recursos diversificados, pelos profissionais no âmbito do ensino, de modo a oferecer uma
gama de textos visando o contato do aluno com diversos gêneros, incentivando a leitura e
escrita. Para além disso, cumpre salientar a importância da inserção de textos indígenas nos
manuais e instrumentos de ensino empregados pelo corpo docente.
Para este trabalho, utiliza-se o texto oriundo da recolha de Antônio Brandão de Amorim
(1865-1926), que foi um viajante descendente de família portuguesa, nascido na cidade de
Manaus, que realizou expedições e manteve contato com etnias indígenas que habitavam às
margens do alto Rio Negro, no final do século XIX. Brandão de Amorim catalogou várias
narrativas que traduzem o universo e as cosmologias dos povos indígenas habitantes da
floresta. Para este estudo, selecionou-se a narrativa Iapinari que integra a coletânea Lendas
em Nheengatu e em Portuguêspublicadas em 1928, narrativas estas que foram traduzidas
pelo viajante, da Língua Geral Amazônica nheengatu- para a Língua Portuguesa.
A importância do legado de Brandão de Amorim, destacada por (2012) e Trusen
(2018) remonta não só ao amplo leque de lendas, práticas e narrativas recolhidas por Amorim,
como também à recepção desses textos na formação da literatura brasileira modernista.
Com efeito, destaca Trusen:
A recolha reúne 35 narrativas provenientes da tradição oral dos grupos
indígenas da bacia do Rio Negro, como os tarianos, manaus, barés, macuxis,
uananas. O acervo reúne lendas, como a que versa sobre a origem dos
uananas e dos tárias, mitos (...), narrativas de fundo maravilhoso que
também incorporam elementos míticos, além de observações do próprio
Amorim acerca de costumes e ritos (TRUSEN, 2018, p. 89).
A influência dos textos recolhidos por Antônio Brandão de Amorim em Lendas em
Nheengatu e em português são notadamente marcadas na composição literária de obras do
movimento modernista brasileiro como Macunaíma de Mario de Andrade e Cobra Norato de
Raul Bopp. Além disso, seus textos fortificaram e inspiraram o grupo de escritores que
participavam da Revista de Antropofagia, entre eles, Oswald de Andrade. Em virtude disso,
Lúcia (2012) destaca em seu livro intitulado Literatura da floresta algumas considerações
sobre a consulta desses escritores às narrativas de Brandão de Amorim:
[...] Mário de Andrade, por exemplo, leu as Lendas em nheengatu e em
português, e suas marcas podem ser vistas na linguagem de Macunaíma. [...]
A antologia de Amorim também ajudou a alimentar as polêmicas dos
verdeamarelistas como os antropófagos. A adoção da anta como símbolo dos
verdeamarelistas foi provavelmente inspirada pelos textos de Amorim (SÁ,
2012.p. 282).
Esta influência da obra de Brandão de Amorim proporcionada aos escritores
modernistas brasileiros é compreendida pela expressividade de suas recolhas que dizem muito
sobre o universo indígena até então invisibilizado pelos ideais da visão eurocêntrica. A
negação do "outro", como recalque da alteridade constitutiva da cultura e do humano, reflete-
se na rejeição e apagamento desses textos no âmbito da educação, bem como no
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reconhecimento do caráter estético próprio à singularidade dessas narrativas, como bem
anotam Sá (2012) e Trusen (2018).
A sequência didática com o gênero textual conto: caminhos para uma educação sensível
Apresentação da situação
Nesta sequência didática (SD), aborda-se acerca do gênero conto maravilhoso, cuja
proposta está centrada na narrativa indígena Iapinari. Esta SD está pautada na teoria dos
gêneros discursivos, apresentada pelo círculo de Bakhtin. Desse modo, propomos atividades
que contemplem as práticas de linguagem, da leitura e da escrita.
Para a realização desta atividade, sugerimos o trabalho com turmas de ano (Ensino
Fundamental). A narrativa selecionada tem como objetivo proporcionar uma reflexão sobre a
importância dos textos indígenas na escola e a sua inter-relação com a diversidade literária e
cultural. Essa proposta tem como tema de trabalho O preconceito distancia-me do outro no
intuito de estabelecer uma relação entre a realidade do aluno, no âmbito escolar com o
universo literário dos povos indígenas e a sua relação de respeito ao outro, ao distinto. Para
tanto, seu papel, aqui, é atuar como mediador dessa discussão, provocando no aluno a
capacidade de reconhecer os aspectos referentes a cada uma dessas esferas e aspectos sociais.
Discussão da temática
Esta etapa é de suma importância para o desenvolvimento do trabalho, pois esse é o
momento em que o aluno iniciará a reflexão crítica acerca dos textos selecionados,
relacionando-os com a proposta temática O preconceito distancia-me do outro. Neste
momento, faz-se levantamento sobre a experiência dos alunos com leitura, sobre o que
sabem e conhecem, proporcionando, por outro lado, novos horizontes proporcionados pela
leitura. Desse modo, sugerimos que se inicie a discussão trabalhando, primeiramente, as
noções de reconhecimento do gênero conto. Após esse primeiro momento, recomenda-se a
introdução da narrativa Iapinari, para uma leitura coletiva. Feito isso, pode-se levantar alguns
questionamentos, tais como:
1- Você já teve contato com algum texto indígena?
2- Você já ouviu falar ou conhece alguma narrativa indígena? Qual?
3- Você obteve conhecimento de alguma narrativa indígena por meio de outro
interlocutor como algum familiar, por exemplo?
4- Qual a importância dos textos indígenas na sua vida escolar, como aluno?
Sugestão:
Para introduzir a temática, sugere-se a exibição do vídeo intitulado: Conto e reconto:
literatura e (re) criação Contos indígenas- Parte 2
15
que discute a redescoberta dos contos
na escola com a proposta de composição nos currículos educacionais desde a educação
infantil aos anos finais do Ensino Fundamental. Após a apresentação do vídeo, sugere-se que
o docente organize a turma para realização da leitura da narrativa Iapinari. A turma pode ser
dividida em grupos proporcionais ao número de alunos da turma, encarregando-os de
realizarem a leitura em voz alta das partes da narrativa.
Produção inicial
15
O referido vídeo sugerido para exposição durante a abordagem do gênero textual encontra-se disponível no
endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=-SC_U-fo_ts&t=17s.
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Após a apresentação da situação e discussão do texto, será o momento dos alunos
realizarem uma primeira produção escrita a partir do gênero e da temática propostos nesta SD.
A produção inicial será realizada por meio dos conhecimentos prévios que os alunos têm em
relação ao gênero conto, além de propiciar ao professor (a), um diagnóstico em relação à
escrita dos alunos e o que eles conhecem inicialmente sobre o gênero conto. Dessa forma,
pode-se observar através da escrita o que é preciso aprimorar.
Produção dos alunos
A partir das discussões realizadas, os alunos poderão produzir um pequeno conto com
base nos conhecimentos prévios sobre o gênero.
Dica: para a realização desta atividade, sugere-se ao professor que ele solicite a todos
os alunos a elaboração de um roteiro contendo cinco questionamentos sobre a temática
abordada. Esse roteiro será nomeado de primeira produção. Após a realização desta etapa, as
atividades produzidas pelos alunos são recolhidas.
Segue abaixo o modelo de questionário previamente elaborado para realização da
primeira produção escrita dos alunos. Conforme análise dos textos escritos pelos alunos, o
professor poderá diagnosticar se os educandos compreenderam e reconheceram o gênero
textual conto maravilhoso apresentado em sala de aula.
Tabela 01
Ficha diagnóstica para a primeira produção
AVALIAÇÃO INDIVIDUAL
Aluno:______________________________________________________________
Série/Turma:_________________________________________________________
Escola:______________________________________________________________
Professor:___________________________________________________________
CRITÉRIOS
1
2
3
4
5
Há, no texto, elementos que caracterizam o gênero?
Há problemas de grafia?
O texto apresenta uma linguagem acessível?
Os alunos foram imparciais?
Há problemas de pontuação?
Há problemas de concordância?
Fonte: Autoria nossa
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Reconhecendo o gênero conto
Neste momento, sugere-se a apresentação de vários gêneros discursivos aos alunos
para que se aproximem do objeto-alvo deste estudo, que é o gênero conto. Desse modo, esta
atividade propiciará aos alunos a compreensão dos vários tipos de contos, que se definem de
acordo com o tipo de produção escrita (Conto de terror, de fadas, romances, humor, etc).
Para a realização desta etapa, são apresentados aqui dois passos, a fim de direcioná-lo
ao decorrer da SD: um primeiro momento, para o qual selecionam-se rios tipos de contos
com o propósito de favorecer o reconhecimento do gênero pelos alunos e, em um segundo
momento, estabelece-se diálogo com a turma acerca do conhecimento apresentado sobre o
gênero. Com isso, deve-se alcançar diagnóstico, visando futura produção textual com a
turma.
a) Apresentação dos vários tipos de contos para o reconhecimento do gênero pelos
alunos.
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Figura 1: conto maravilhoso
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Fonte: http://horaleitura.blogspot.com/2014/03/conto-maravilhoso.html
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Tabela 2: conto de terror
Fonte: https://2.bp.blogspot.com/-85istAwySBY/TcdWhmC-
lVI/AAAAAAAAUa4/dNMRamfX26U/s1600/2.JPG
Tabela 3: conto de fadas
Fonte: http://caixinhadivertida.blogspot.com/2011/05/literatura-infantil-peter-pan.html
O LOBISOMEM
em Rio do Antônio, perto de Caculé, interior da Bahia, vivia uma mulher, grávida de sete
meses. Certa noite, o marido chegou dizendo que precisava sair com ela. Era noite de lua cheia. O
homem queria passear. A moça estranhou, mas foi.
Quando deu meia-noite, os dois chegaram e a uma encruzilhada. Então o marido botou a mão
na cabeça. Lembrou que precisava fazer não sei o que lá, que ia embora, que era só um minutinho. A
mulher ficou esperando sozinha.
De repente, a coitada sentiu um cheiro forte de enxofre. Um cachorrão preto do tamanho de
um burro, de orelhas imensas e dois olhos cheios de fogo saiu do mato soltando fumaça pelo focinho.
Mesmo barriguda, a moça voou, correu e trepou numa árvore bem alta. A infeliz vestia um
xale de vermelha. Contam que o monstro não conseguiu morder sua perna mas arrancou um
pedaço do xale.
O tempo passou. Quando o galo cantou, a coisa sumiu e, logo depois, o marido chegou. Veio
suado. Parecia cansado. Pediu desculpas e os dois foram para casa.
Chegando lá, eles se deitaram, mas a moça não conseguia dormir e o marido ao lado
roncando. A mulher olhou bem para ele e quase desmaiou. O sujeito dormia de boca aberta. Entre os
dentes amarelos havia um monte de lã vermelha.
PETER PAN
Todas as crianças crescem, Peter Pan não! Ele mora na Terra do Nunca.
Um dia junto com a Fada Sininho, foi visitar seus amigos Wendy, João e Miguel.
Peter levou-os para conhecer a Terra do Nunca. Com a mágica de Sininho eles saíram voando.
Avistaram o barco pirata, a aldeia dos índios e a morada dos meninos perdidos.
O Capitão Gancho viu Peter Pan e seus amigos voando e resolveu atacá-los;
Peter Pan salvou Wendy antes que ela caísse no chão.
Os meninos perdidos moravam dentro de uma árvore oca. Wendy contou lindas estórias para eles.
Ela gostou dos meninos.
Um dia o Capitão Gancho raptou a princesa dos índios, mas Peter Pan apareceu para libertá-la. O
Capitão Gancho fugiu e o Crocodilo Tic Tac quase o engoliu, mas ele escapou.
Mas o Capitão Gancho não desistiu. Desta vez capturou os meninos perdidos, levou-os para o barco
pirata, de lá eles seriam jogados no mar.
Mas Peter Pan veio salvar os seus amigos. Lutou com Gancho e o derrubou.
De volta ao lar, Wendy pediu que Peter Pan ficasse com eles, mas ele disse que não e preferiu a Terra
do Nunca, assim ele nunca cresceria e poderia brincar com todas as crianças sempre.
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Indica-se a apresentação para os estudantes dos suportes nos quais o gênero conto
encontra-se: vídeos, áudios, livros, entre outros, para que os alunos reconheçam o gênero em
questão. Essa atividade será fundamental para que mais adiante nesta SD, seja favorecida a
etapa de produção que os alunos realizarão.
Nesse momento, são sugeridos alguns textos que contém o gênero conto para que,
assim, a turma possa reconhecer o que é um conto, quais suas características e,
posteriormente, consiga diferenciá-las de outros gêneros.
Concluída a abordagem de alguns modelos textuais apresentados aos alunos, faz-se
necessária a elaboração de um breve questionamento para iniciar a discussão em sala de aula.
Desse modo, esta atividade servirá como diagnóstico sobre o conhecimento prévio dos alunos
sobre esse tipo de gênero. Seguem abaixo algumas questões que podem ser fundamentais para
complementação das informações para o docente.
Os alunos reconhecem um conto?
Quais os tipos de conto eles já tiveram acesso?
De acordo com o entendimento dos alunos acerca do gênero, que conto seria
interessante para eles?
Esses questionamentos têm o objetivo de colaborar com a compreensão dos alunos
acerca das principais características do gênero para que, com isso, consigam contemplar uma
narrativa com uma visão mais crítica. Essa etapa poderá ser destacada como uma das mais
relevantes, pois, a partir do momento que o professor (a) instiga os conhecimentos de mundo
dos estudantes, consegue desenvolver um diagnóstico daquilo que será possível abordar em
sala para, então, dar continuidade e se aprofundar ao decorrer do processo de ensino e
aprendizagem. Assim, ao observar as dificuldades apontadas nessa primeira etapa, o professor
poderá ter uma ampla visão dos pontos positivos e negativos a serem trabalhados com maior
cuidado em próximas oportunidades de ensino.
Leitura global de textos do gênero conto
É necessário, neste momento, que o docente apresente aos alunos uma variedade de
textos relacionados aos contos veiculados nas mais variadas formas na sociedade e,
principalmente, que possam ser encontrados em qualquer lugar. É importante que se exponha,
aos alunos, contos com temáticas variadas. Dessa forma, será possível a edificação de novas
compreensões sobre algo já existente.
Nesta etapa, sugere-se que o professor exponha, de maneira geral, o gênero que será
trabalhado, fazendo com que o aluno tenha contato com os diversos estilos de produção
escrita sobre o gênero conto, identificando o que eles têm em comum entre si e qual a
finalidade de cada um. Isto ajudará a fortificar os sentidos adquiridos por eles. Pode ser
apresentado à turma, por exemplo, um conto de terror, um conto de fadas, etc.
Com a exposição dos variados contos, será possível também a apresentação de alguns
suportes, explicando aos alunos suas características. A seguir, propõe-se que se proceda a uma
divisão da turma em equipes pequenas e que se distribua duas ou três narrativas diferentes
para cada uma. Sugere-se que os alunos sejam orientados a fazerem uma breve análise das
características específicas de cada conto, a partir de provocações, tais como, que tipo de
narrativa está sendo lida?”, “qual o assunto abordado nas indagações e qual o tipo de
linguagem utilizada durante o diálogo?”; além de perguntas mais gerais abarcando o gênero,
mediante indagações, a exemplo, “No que esses contos se diferenciam?”, “que finalidade
cada texto possui?”, “em que contexto essas narrativas podem ser utilizada?”.
A etapa a seguir é de fundamental importância, já que é ela a responsável por capacitar
os alunos para as etapas posteriores, pois elas exigirão um conhecimento mais dedicado do
processo de análise do gênero.
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Como auxílio a esta proposta, foram aportados esses questionamentos, a serem
realizados juntamente à turma. Eles podem ser feitos de forma oral, procurando interagir com
os alunos de forma que todos possam colaborar, acrescentando novas informações e
conhecimentos que vão enriquecer o trabalho realizado.
Leitura de um texto do gênero: a narrativa Iapinari
Figura 3: Capa do livro Lendas de Nheengatu e em Português.
Fonte: Antonio Brandão de Amorim. Fundo Editorial - ACA, 1928 - 477 páginas.
Figura 4: Iapinari.
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Fonte: Antonio Brandão de Amorim. Fundo Editorial - ACA, 1928 - 477 páginas.
Proposta de produção textual e reescrita
O momento a seguir é de estimular os alunos a produzirem, visto que se realizaram
as seguintes etapas: a) Apresentação das características do gênero conto; b) Leituras de
diferentes tipos de conto; c) Diferenciação de gêneros semelhantes; d) Discussão da temática
que orientará a produção textual.
Vale lembrar que na proposta de produção, é indispensável seguir os seguintes
momentos: planejamento, execução, revisão e reescrita. É de suma importância apresentar aos
seus alunos as condições de produção, propostas por Geraldi (1997), que são:
a) O que escrever (o aluno precisa ter domínio em relação a temática proposta para a SD);
b) para quem escrever (ao escrever, o aluno precisa pensar em seu público alvo a quem os
textos serão destinados para que possa realizar as etapas seguintes);
c) para que escrever (a escrita precisa ter um objetivo, uma finalidade que não seja apenas
avaliativa);
d) como escrever (utilizar estratégias para desenvolver essa escrita, como: contemplar as
características do gênero, sua estrutura composicional e suas marcas linguísticas-
enunciativas).
A produção será feita de maneira individual. Cada aluno ficará responsável por
elaborar o seu conto. Sugere-se que antes de iniciar as atividades, disponibilize-se aos alunos
algum tempo para que possam fazer sua produção; para isso, é importante oferecer a eles:
jornais, revistas, livros etc., para que sejam auxiliados na elaboração de sua escrita. O docente
também poderá instigá-los a criar narrativas a partir de sua experiência e vivência entre as
histórias contadas em família e/ou na escola e em outros espaços.
Com os contos prontos, em um primeiro momento, cada aluno precisará expor sua
produção à turma. No segundo momento, após o término das apresentações, o professor (a),
fará perguntas e reflexões sobre os textos desenvolvidos.
Sugestão: Se possível, solicite aos alunos que façam a gravação (áudio) dos contos, pois este
gênero é marcado pela oralidade e é fruto da interação, isto é, a voz que fala e o registro
escrito. Essa prática ajuda, e muito, o processo de compreensão dos textos.
16
Texto retirado da obra Lendas em Nheengatu e em Português (1928) de Antônio Brandão de Amorim
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No momento de produção textual pelos alunos, é importante lembrar de abordar a
temática: O preconceito distancia-me do outro, relacionando-o ao texto recolhido por
Amorim, Iapinari. Pode-se, por exemplo, verificar com os alunos, quais e quantos deles
conhecem narrativas indígenas, divergentes e/ou similares a esta. Outrossim, sugere-se que se
provoque conversa, indagando quais dessas narrativas conhecidas por eles, aparecem nos
livros a que tiveram acesso, ou se elas estão presentes nos programas de televisão que
assistem. Por último, deve-se recordar, como forma de estímulo, que a produção textual será
colocada no mural da escola e também será produzido um livro ou revista que ficará
disponível para a comunidade escolar na biblioteca da escola. Para tanto, siga as orientações
da tabela a seguir:
Tabela 4: planejamento temático
Gênero
Conto Maravilhoso
Tema
O preconceito distancia-me do outro
Objetivo da produção
Levar o aluno a refletir sobre o gênero proposto e
apresentar à comunidade escolar a função social do
trabalho produzido. Este será um grande passo para a
construção de uma melhor relação entre a família e a
escola, uma vez que a proposta é de, também, fazer uma
culminância com essas duas esferas tão importantes da
sociedade.
Público alvo
Comunidade escolar
Produção
Individual
Fonte: Autoria nossa
Nesse momento, os alunos poderão iniciar a produção do conto. Em seguida, ao
término produção da escrita, é interessante que o aluno tenha a chance de corrigir seu próprio
texto, pois dessa forma ele será capaz de avaliar seu texto, e assim, fazer as alterações que
achar necessárias.
O trabalho este gênero pode ser de grande aprendizado para os alunos, visto que a
intenção não é apenas possibilitar o acesso a diferentes gêneros discursivos, mas fazer com
que o aluno conheça e domine práticas linguísticas e literárias diversas, incluindo aquelas que
fazem parte da sua realidade.
Considerações finais
Conforme discutido neste trabalho, a sequência didática é uma ferramenta muito
importante que facilita ainda mais a aprendizagem dos alunos. Sendo assim, as contribuições
e reflexões dos alunos com base em diferentes narrativas, incluindo dentre elas, a narrativa de
Antônio Brandão de Amorim, amplia o conhecimento do universo mítico sobre os povos da
floresta. Além disso, esta SD elaborada com base no gênero textual conto servirá como um
auxílio para que o professor de Língua portuguesa possa melhorar suas práticas de ensino da
literatura e melhorar ainda mais a produção escrita e a leitura de seus alunos.
O intuito deste trabalho, por conseguinte, é não só ressaltar a importância de promover
a circulação de narrativas do maravilhoso indígena, como as recolhidas por Brandão de
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Amorim, mas favorecer, por seu intermédio, uma educação que desperte a ética e a
sensibilidade face a alteridade. Outrossim, cumpre ressaltar a riqueza contida nesta
compilação, que tem muito a contribuir para os estudos referentes às comunidades
tradicionais, bem como para a sua valorização cultural.
Referências
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William J. Bennert. Trad. Luiz Raul Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
Disponível em: http://horaleitura.blogspot.com/2014/03/conto-maravilhoso.html
Acesso: 20 de Fev de 2020.
AMORIM, Antonio Brandão de. Lendas em nheengatu e em português. Manaus, Fundo
Editorial-ACA, 1987.
BARROS, Manoel de. As lições de R.Q. In: Livro sobre nada. Rio de Janeiro/São Paulo,
Editora Record: 2004.
BRAVO, Victor. Los poderes de la ficcin. Caracas: Monte Ávila, 1985.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro
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GERALDI, J.W. Portos de Passagem. 4a ed. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
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de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. Série Educação em
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LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura Estudios sobre literatura y formación.
México: FCE, 2003.
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. ed. Tradução Celina Olga
de Souza. São Paulo: Editora 34, 2009.
PIMENTEL, Álamo. Sensibilidade e criação. In: FEITOSA, Débora [et al.]. O sensível e
sensibilidade na pesquisa em educação. Cruz das Almas/BA: UFRB, 2016. P. 07-17
SÁ, Lúcia. Literatura da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2012.
TRUSEN, Sylvia Maria. Maravilhoso e alteridade no Cobra Norato, de Raul Bopp e na
recolha de Antonio Brandão de Amorim, Lendas em nheengatu e em português In: GARCÍA,
Flavio; GAMA-KHALIL, Marisa Martins; ROSSI, Aparecido (Orgs.). Vertentes do Insólito
Ficcional Ensaios II. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2018.
[Recebido: 14 jan. 2019 – Aceito: 22 jan. 2019]
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MAURA CANSADA: CORPO, PERFORMANCE E MEMORIALIDADES
MAURA CANSADA: BODY, PERFORMANCE AND MEMORALITIES
José Denis de Oliveira Bezerra (UFPA)
17
.
Rosilene da Conceição Cordeiro (SEDUC-SEMEC-PERAU)
18
.
Resumo: O presente artigo apresenta uma vivência artística entre Memória e Performance, a partir de
experimentações com a vida e a obra da escritora brasileira Maura Lopes Cançado. Como travessias
teórico-metodológicas, pauta-se nas discussões e relações conceituais de Bonfitto (2013), Zumthor
(2014), Cohen (2013), Schechner (2003) sobre performance e seus atravessamentos e significados
existentes nesse campo de conhecimento; Canton (2009) e Pollak (1992) sobre a experiência narrativa
e a constituição das memórias individuais e coletivas na construção ou representação de identidades.
As experiências performativas vivenciadas nos proporcionaram a pensar caminhos possíveis entre as
relações corpo/vida/arte/performance/memória na contemporaneidade onde os processos artístico-
memoriais ocorrem.
Palavras-chave: Maura. Performance. Memória. Corpo.
Abstract: This article presents an artistic experience between Memory and Performance, based on
experiments on the Brazilian writer Maura Lopes Cançado´s life and work. As theoretical-
methodological approach, we follow the conceptual relations and discussions from Bonfitto (2013),
Zumthor (2014), Cohen (2013), Schechner (2003) on the performance and its crossings and meanings
in this knowledge field; Canton (2009) and Pollak (1992) on narrative experience and the constitution
of individual and collective memories in the construction or representation of identities. The
performance experiences arose interpretations about possible paths between
body/life/art/performance/memory relationships in contemporaneity where artistic-memorial processes
occur.
Keywords: Maura. Performance. Memory. Body.
Iniciar o caminho...
O presente artigo tem por objetivo apresentar reflexões sobre memória e performance a
partir do trabalho performativo Maura, desenvolvido desde 2012. Esse trabalho artístico é
fruto de uma investigação de fatos da história de vida e da escrita literária da ficcionista
brasileira Maura Lopes Cançado (1929-1993): o romance-diário Hospício é Deus, e os contos
de O Sofredor do Ver. Essas obras são o relato do cotidiano manicomial das décadas de 1950-
70, além das experiências com a loucura, com a literatura, com os devaneios e arquiteturas
poéticas da autora, que nos coloca diretamente no lugar da vivência de uma mulher louca-
escritora.
17
Doutor em História. Mestre em Letras- Estudos Literários. Professor da Escola de Teatro e Dança/ICA/UFPA.
Atua e pesquisa no campo da história do teatro amazônico. Ator, performer e diretor teatral. Coordena a Pós-
graduação em Artes (PROFARTES) da UFPA. Lidera o Grupo de Pesquisa PERAU- Memória, História e Artes
Cênicas na Amazônia/PPGARTES/UFPA/CNPq. Endereço eletrônico: denisletras@yahoo.com.br
18
Mestra pelo Programa de s-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura- PPGCLC da Universidade
da Amazônia. Especialista em Estudos Contemporâneos do Corpo/ICA/UFPA. Atriz-performer, professora de
teatro, realizadora de cena, na cidade de Belém-PA. Integrante do Grupo de Pesquisa PERAU- Memória,
História e Artes Cênicas na Amazônia/PPGARTES/UFPA/CNPq. Endereço eletrônico:
enelisorcordeiro@yahoo.com.br
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Nesse contexto, os atos performativos que vimos realizando desde 2012, quando a
escritora foi a nós apresentada pela obra ficcional do poeta Ney Ferraz Paiva (Maura Lopes
Cansada de Deus), nos proporcionaram um encontro com o campo dos estudos da
Performance. Esses momentos de apresentação foram amalgamados a processos pessoais de
escrita acadêmica, ao mergulho como performer às memórias individuais e coletivas por onde
transitamos. A cada ato performativo, Maura se apresentou de acordo com o lugar e a situação
estabelecida, Ela se corporifica na matéria do performer e ao mesmo tempo surge na condição
e transformação desses corpos percebidos gordos, suados, marcados na vértebra pelo ato
cotidiano de escrever. Eles têm algo em comum: a linguagem, tanto aquela que se materializa
pelo registro da grafia, quanto a que se torna viva e contínua, nas vivências diárias, enquanto
cotidiano. Por meio da experiência com esse trabalho performativo, podemos inferir algumas
considerações, tais como: por ser, para o performer, deboche, reflexão, ilusão, poesia, Maura
a cada vivência representa a loucura nossa de cada dia, de cada hora, ou seja, a performance
dispara memórias individuais e coletivas tanto do performer, que as redescobre em cada ato,
como daqueles que presenciam (participam-interagem), alterando, mutuamente, suas
percepções nas relações do jogo cênico proposto. Ela está na escrita acadêmica, poética, Ela
está nos livros, na rua, nas encruzilhadas. Maura é deus, e seu olhar aprisionado libertou-se
em sua poesia verbalizada no corpo, na voz dos silenciados, dos flagelados pelos sistemas de
poder, aqueles que passam, que transitam pelas ruas.
Dessa maneira, este texto busca dialogar com os estudos das poéticas orais,
principalmente com as discussões de Zumthor (2014), o qual abre possibilidades de encontros
entre os estudos da oralidade e o campo das artes cênicas, ao problematizar o conceito de
performance. Acrescentam-se as reflexões de Bonfitto (2013) sobre Presenças e Ausências,
temas problematizados no trabalho do ator-performer. Compartilhar essas vivências torna-se
um momento-espaço de trocas e outras representações.
Contudo, mesmo estabelecendo esse diálogo teórico-metodológico, entendemos que
nossa escrita acadêmica sobre Maura em performatividades parte das impressões, relatos e
inferências teóricas, às quais suscitamos a partir de nossas experimentações e imersões tanto
na ficção de Maura Lopes Cançado, quanto em fragmentos de sua biografia, intercalados e
embrenhados por nossas transversalidades no mundo. Por isso, esse texto por si só já se torna
mais uma etapa de nosso trabalho com Maura, a performance da escrita-vida-academia-
corpolitura... dos performers que buscaram/buscam adentrar nos labirintos dos estudos da
performance em suas aproximações, atravessamentos e distanciamentos dos estudos da
memória, das oralidades, das virtualidades, dos corpos entremeados pela necessidade de
saber-ser-fazer.
Maura-Denis: caminhos entrecruzados.
O que me assombra na loucura é a distância os
loucos parecem eternos.
(Hospício é Deus: Diário I. Maura Lopes Cançado).
Meu encontro com a escritora Maura Lopes Cançado se deu no ano de 2012, quando o
poeta paraense Ney Ferraz Paiva apresentou seu poema-drama, Maura Lopes Cansada de
Deus, a mim. De início, comecei a ler o texto, sem nada saber sobre a existência da pessoa
Maura; imaginei que se tratava de uma personagem criada pelo poeta. Ney me relatou que
estava escrevendo esse texto alguns anos, que tinha dado a duas atrizes para levá-lo à
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cena, porém ainda não tinha conseguido encená-lo. Em novembro de 2012, quando tive meu
primeiro contato com essa ficção, aceitei o desafio de ir para a cena.
No primeiro momento, não me via “interpretando” Maura, mas desafiado a dirigir o
texto. Convidei Rosilene Cordeiro para dar vida à personagem. Contudo, Rosilene propôs o
inverso: ela dizia que era um texto escrito por um homem (Ney Paiva) sobre uma mulher
(Maura Lopes), e propunha que ele fosse interpretado por um homem (eu) e dirigido por uma
mulher (ela). Tal proposta me balançou: “interpretar” uma personagem feminina sem cair no
perigoso lugar do travestismo, como ser/encarnar Maura, personagem tão cheio de
contradições, conhecida por alguns e esquecida/silenciada por quase todos?
Dessa maneira, lançamo-nos ao primeiro momento com o processo Maura, em março de
2013, no Colóquio Blanchot: Literatura, Amizade uma Vida, organizado pela Revista
Polichinelo em parceria com o Instituto de Artes do Pará
19
. Aos poucos o trabalho
performativo ganhava vida em um palco pela primeira vez. O ato cênico consistiu na
representação de um fragmento do poema de Ney Paiva, citado anteriormente, sem ensaios,
induzido pelo texto e pelas sensações; pude entrar em contato com o universo biográfico-
ficcional dessa escritora brasileira: louca-jornalista-romancista-cansada-ativa-escorregadia-
eterna.
A partir desse momento, Rosilene e eu começamos a desenvolver uma pesquisa de
investigação e experimentação a partir de fragmentos da vida e da obra de Maura Lopes
Cançado. Passamos a vislumbrar que o trabalho não era para ser ensaiado e organizado para
as convenções do teatro; a cada leitura, mergulhávamos em ideias que nos iam conduzindo
para o campo performático, espaço visitado com propriedade por Rosilene, mas totalmente
novo para mim. Experimentar a linguagem da performance tornou-se um grande desafio,
porque tive uma formação e experiências com a linguagem teatral, com a rotina de ensaios,
direção, memorização de textos, repetição, em busca da finalização da obra como um primor
artístico tão presente nos fazedores de teatro. Ser jogado na “boca do leão” foi o primeiro
momento de forte impacto, acentuado pelas dúvidas, medos, ansiedades, fatores esses que se
tornaram elementos essenciais para o trabalho performativo que se estende até hoje.
Trabalhar com a linguagem da performance não significa ausência de planejamentos, de
organização, tão pouco alheio às técnicas. Porém, são outras questões que norteiam: domínio
do que se quer; pensar nas possibilidades da experimentação com a linguagem, como afirma
Cohen (2013, p. 31): “na sua própria essência, a performance se caracteriza por ser uma
expressão anárquica, que visa escapar de limites disciplinares [...]. Mas, nem por isso, podem
se designar por performance certas experiências (na verdade “intervenções”) feitas por
radicais ou livres-atiradores”.
A partir dessas induções iniciais, começamos a falar, ler, vivenciar Maura. Contudo, não
mais a “personagem” presente na obra de Ney Paiva, e sim, a materializada pela poesia da
ficção da escritora, na qual passamos a nos lançar. Além disso, Rosilene criou como campo de
estímulo: a aproximação entre Maura e Denis, aqueles imersos no ato cotidiano na escrita, que
para viver-ser precisam mostrar pela linguagem escrita seu motivo de estar no mundo.
Nesse momento, vivenciava o processo de escrita de meu doutoramento
20
, no qual
buscava, cotidianamente, uma linguagem que o estava acostumado: “escrever
historicamente”, como ouvi em determinado momento da pesquisa. Vindo do campo das
Letras, em constante diálogo com a literatura, campo de formação e atuação profissional
como professor, mesmo tendo feito uma dissertação de mestrado, que dialogava os saberes
19
Sobre o evento consultar: https://revistapolichinelo.blogspot.com.br/2013/03/coloquio-blanchot-belem.html
20
Entre 2011 e 2016, Denis Bezerra realizou seu doutorado em História, na Universidade Federal do Pará. Na
pesquisa, ele discute o movimento de teatro amador em Belém do Pará, no século XX. Teve como resultado a
tese: Vanguardismo e Modernidades: cenas teatrais em Belém do Pará (1941-1968).
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históricos do teatro paraense, me vi em um grande dilema. Escrever passou a ser um ato de
busca de uma identidade profissional (historiador), além de ser o passaporte para o universo
acadêmico, no qual atuava, porém seria o “abre de Sésamo” para as estruturas e regras
desse campo de produção do conhecimento no Brasil. Nessa questão, passamos a buscar
pontos de intersecção com Maura: aquela que existiu-existe pela e para a literatura dentro do
nosso universo particular.
Um momento expressivo de experimentação foi feito em minha residência, o cubículo
56, na Vila Luana, Umarizal, Belém do Pará. Nesse espaço morava, me alimentava e dividia
lugar com meus companheiros de luta: os livros e meus cigarros; meu hábito de fumar se
acentuou nesse período. Entre o trabalho como docente (aulas, orientações, reuniões, etc.) e a
pesquisa de doutorado, Maura veio ao encontro do meu cansaço e começou a conviver
comigo, diariamente; passei a buscá-la em sua ficção, mas, também, por onde transitava
minhas dores, minhas queixas, minha respiração, meus limites. Foi um momento em que a
minha loucura passou a movimentá-la: comecei a buscar induções em tudo que via, e quem eu
via e nisto a via e me via. Nesse movimento de trocas, iniciei a inserção de imagens, de
objetos, de situações que iam ocorrendo/aparecendo nas encruzas de minha cidade.
A rua e meu cotidiano acadêmico passaram a ser o laboratório de experimentação.
Observar foi meu primeiro exercício, na aproximação com as histórias contadas e vividas por
Maura Lopes Cançado. O que mais me desafiava era não ter a consciência teórica do campo
da performance, saber o que faria, esse movimento intelectual que procuramos, ter a cons-
ciência dos atos. É evidente que isso é muito importante para o ator/performer, porém resolvi
fazer-experimentar-sentir-viver as situações presentes na ficção de Maura. Nesse movimento
de estar atento às situações do cotidiano, a cada encontro com determinados elementos,
ativavam-se lembranças, individuais e coletivas, em pleno diálogo com as situações narradas
por Maura em sua ficção. Isso ocorreu, talvez, porque como aponta Pollak (1992):
Quais são, portanto os elementos constitutivos da memória, individual ou
coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente.
Em segundo lugar, são acontecimentos que eu chamaria de “vividos por
tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem
sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no
fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou
não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se
juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma
pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da
socialização política, ou da socialização histórica, um fenômeno de projeção
ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar
numa memória quase que herdada.
[...]
Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas,
personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar, falar
de personagem realmente encontrada no decorrer da vida, de personagens
frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se
transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagem que não
pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa (POLLAK, 1992,
p. 201-202).
Na relação com o espaço/moradia (cubículo 56/Vila Luana) vivia, como Maura, em
uma caixa, camuflada de residência, um casulo de solidão necessária pela exigência da escrita
da tese, ao mesmo que em sua companhia pelo ato de lê-la neste comigo, igualmente. O
elemento caixa aparece frequentemente na prosa ficcional da escritora, ora como a
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representação de sua moradia (Hospício), ora como aquele lugar imaginário-real que ela,
pensamos, tanto temia: os becos do esquecimento.
Visita para a Maura?
A surpresa do guarda se justifica. Há meses não aparece ninguém para visitar
a interna do cubículo 2. E, depois de minuciosamente revistada, ao contrário
do que acontece com os outros visitantes, não sou conduzida à cela, mas a
um pátio interno, um árido triângulo cimentado onde três árvores
desgalhadas são circundadas por bancos de cimento. Debaixo do banco que
me é apontado, um rato morto (AUTRAN, 1992, p. 185-86).
No meu cubículo, Rosilene e eu experimentamos. O desconforto físico, juntamente com
objetos pré-selecionados e que o performer maturava em suas investigações foi um norteador
imprescindível. Exploramos os cômodos do cubículo 56 (banheiro e sala/biblioteca), e as
sensações instauradas foram: calor, fobia, memórias pessoais imiscuídas com fragmentos da
ficção da autora-louca. Essa ação proposta por Rosilene foi decisiva para a imersão nos
caminhos do trabalho solo-duplo, do meu corpo em busca de Maura, dela se encontrando
comigo, um divisor de águas nesse trabalho performativo contínuo; definimo-lo como
Exercício nº 1.
Imagem 1: Corpo em estímulo (2016).
Fonte: Rosilene Cordeiro.
Imagem 2: Maura em presença (2016).
Fonte: Rosilene Cordeiro.
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Esse processo performativo proporcionou a interação com campos sensíveis,
principalmente ao adentrar em lugares de memória. Nós, Mauras, não somos as vozes que
querem. Falamos para nos constituir como presença nesse mundo que ignora os corpos não
consoantes. Destoamos perante aqueles que observam e nos julgam, porque nossa arma é a
palavra, atravessamo-nos e transpassamos o outro pelas reminiscências que nos fazem pessoas
vivas, mesmo que a história queira nos matar. Nesse contexto, Pollak (1992) afirma que:
Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma
lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter
apoio no tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na
infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito
marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu
(POLLAK, 1992, p. 202).
A narrativa de Maura Lopes Cançado é uma construção memorialística de várias
situações vivenciadas desde a sua infância, e, principalmente, sua experiência nos
manicômios. E nesse jogo de idas e vindas à sua literatura, estabelecíamos o diálogo entre as
suas e as nossas reminiscências. A cada performance, presenciávamos esse entre, Rosilene e
eu, eu e Maura, Rosilene e Maura a performance da memória em nós, lembranças Dela e
nossas que se corporificavam, se presentificavam:
[...] que a memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção
em nível individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto
ser conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava,
recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro
trabalho de organização (POLLAK, 1992, p. 204).
Assim, atravessar a vida significa ir além da vontade do outro, porque nossa matéria
se presentifica por meio daquilo que podemos narrar, uma vez que narrar é a condição de
existência. Existir pela relação com o outro é vivenciar fragmentos, caminhos de lembranças
em contato com o tempo que nos constitui estar-presente no agora.
Atravessar os caminhos do outro pela potência da memória é ativar em nós estados
sensíveis. O sensível que tanto falamos, buscamos, almejamos e que as poéticas se tornam
esse lugar latente de concretude, para nós, é aquilo que conseguimos dividir, partilhar
sensações utilizando nossa matéria corpórea, quando nos colocamos em estados de
performance. E Maura é esse lugar.
Maura-Rosilene: a corpoesia dos atuantes em estado de performance
Significava que só uma psicose, em todo seu esplendor,
poderia consumar a longa greve que tinha sido toda sua
vida.
(Samuel Becket, citado na abertura de O sofredor do
ver. Maura Cançado. Contos. 1968).
Há alguns anos estamos em contato criativo com e a partir de Maura Lopes Cançado, na
performance Maura. Com, por entendermos que a cada nova presentação (seu estado presente
em cada evento) a reinauguramos, (re) descobrindo nuances e facetas outras dessa mulher
personagem ícone inspirador performativo nos mergulhos sempre únicos e residuais dessa que
foi um expoente literário de sua época. Ao expor sua própria loucura como passageira, essa
louca-mulher tornou-se uma arredia, entre várias, credenciada à solidão imposta por um
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mundo utilitário no qual ela venceu sua intelectualidade com a sobriedade de sua insanidade
assumida sem sombras de culpas acerca de si.
A partir de Maura é a modalidade realizante da performance como linguagem que nos
permite a reflexão crítica sobre os dados obtidos, enquanto pesquisa artística, ainda em
andamento, nos momentos ímpares em que as ações performativas propostas em cada gestus
social
21
compartilhado nos distancia do encontrado sobre Ela, nos põe em lugar de sentido
e em permanente ação. Enquanto intervenção artística vai relativizando-se, posicionando-se
de forma independente e autônoma, o que nos leva a inquiri-la mais e mais, a interrogá-la sem
tréguas em cada ato cênico vivido como performatividade de si no/dos atuantes, simultânea e
após os atos sucessivas vezes.
Somos ambos atuantes: o Denis, enquanto inquisidor e respondente aos estímulos
“arremessados” antes e durante a ação cênica em si; e eu, uma espécie de “advogada do
diabo”, arbitrando ao impedir sua localização em zonas confortáveis experimentadas. Em
tais imersões, observando o corpo do Denis atuante, percebo elementos duplos, um entre a
dividir cena e vida do atuante/pesquisador, também escritor de uma tese o que me faz pensar:
Maura estaria se transformando em uma personalidade, personagem para ele? O atuante Denis
Bezerra teria, ato após ato, de alguma forma, talvez inconscientemente, cedendo lugar ao ator
e este por sua vez estaria destruindo a áurea sob a qual a esculpimos quase quatro anos
atrás, inspirados nos estudos da performance, de um trabalho sempre eventual e único?
Estaria ocorrendo, de ambos os lados, um especializando-se em Maura, reanimando-a em
cada ato novo, como essa mulher já conhecida, uma vez que nos enxergamos na loucura dela,
em sua literatura, em sua verdade enquanto arte de “ser e estar no mundo?”.
A pesquisa, posto que nos orientamos por uma literatura, igualmente, por registros da
nossa própria relação cotidiana com uma religiosidade, na qual a enxergamos no
temperamento e nos discursos, estaria encaminhando-se para esse ‘fim’, enquanto meio,
método, viagem criativa, cravejada de signos de nossa própria vivência, impedindo-a de
avançar poeticamente? Estaríamos consolidando-a, estando ela encontrada, em pretensas
ações ditas novas, mas tão reveladoras desta energia já assentada em nós, quanto já a sabemos
em nossas experimentações?
Muito provavelmente no ‘talvez’, que comporta a dúvida sempre bem-vinda, caiba o
limite do trabalho, que temos designado o entre-lugar dessa pesquisa performativa, em
diálogo com muitas frentes discursivas ainda em construção. Nós, que percorremos muitos
conceitos, agregando valor a ela do seu jeito e no devido tempo, no entanto, falhamos quanto
a essa mobilidade que a performance Maura tomou para si em inúmeras fugas conceituais,
que fez para fora de todos eles requerendo novas interlocuções.
Num esforço por um pensar reflexivo desse “entre’ contemporâneo, que pretendemos
discutir aqui, cortante e divisor de certezas gidas e frágeis que atravessam nosso sentir mais
íntimo e nossa própria expectação sobre o trabalho, aliamo-nos no conceito desse narrar
expandido, instaurado pela contemporaneidade recente, da qual discursos outros emergem e
juntam-se ao saber científico para explicar essas relações pouco exploradas dos estudos sobre
o corpo em relação com sua cotidianidade com as formas de reinventá-la em teoria. E o corpo,
as artes do corpo e da presença, como tema pertencente a esse desejo, o corpo em estado de
performance.
21
Em Bertold Brecht, o conceito de Gestus Social não diz somente da gestualidade, mas compreende a música, o
cenário, o figurino e outros elementos estéticos como pontos que visam mostrar ao espectador uma característica
social e/ou contraditória do personagem (BRECHT 1967, p. 77 apud FREITAS 2015, p. 07). De acordo com
Freitas (2015, p. 07), esse conceito aparece ainda na dramaturgia, não sendo uma exclusividade da encenação.
Assim, o Gestus seria um elemento do espetáculo que exterioriza artística e significativamente uma ideia
(BRECHT 1967, p. 54 apud FREITAS, 2015, p. 07). Para o autor, comunica algo que diz sobre o todo, sobre um
contexto mais amplo, seja do espetáculo ou da sociedade como um todo.
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Partimos da ideia de que as narrativas consistem no conteúdo, no que se diz sobre algo e
nesse horizonte recente desperta uma fruição entrelaçada, ao que se diz, como se diz, quem
diz, de onde diz e o que suscita, ativa, tanto no que diz quanto no seu interlocutor, o fruidor,
no qual ela chegará meio e conteúdo, canal e mensagem. É desse modo que Canton (2009)
designa e trata as narrativas como ‘enviesadas’, como formas particulares contemporâneas de
contar histórias, de modo não linear, sem a necessidade de um começo-meio-fim, propondo
deslocamentos múltiplos manifestos em sobreposições e repetições, ausências e adendos,
correlação, diálogo, quebra com a representação de um discurso cada vez mais artificial sobre
a realidade. Outra percepção sobre a dualidade da obra de arte enquanto processo e resultado,
acerca do sujeito da criação e o produto derivado desta.
Segundo a autora, tal pensamento surge em decorrência das necessidades da arte
contemporânea valer-se de fragmentos, repetições, desconstruções em busca de uma ‘virada
ao avesso’, diminuindo cada vez mais a distância de um dizer sem compromisso com a
realidade; de pautar a necessidade de discutir uma produção artística e surgida no cenário
internacional, incluindo o Brasil, sobretudo a partir dos meados dos anos 90, cada vez mais
interessada e entregue ao jogo da artificialidade sem representar a quebra de velhos
paradigmas. “Trata-se de um tipo de obra ou texto que dá indícios de contar uma história, mas
que se recusa a criar uma narrativa cujo sentido seja fechado em si mesmo, ou seja, que possa
ter linearidade” (CANTON, 2009, p. 19). Logo, vincula-se a vontade de construir outra/nova
forma de tratar velhos e conhecidos temas, de apresentar os vários possíveis lados desse
contar textual, por meio da poesia, da música, do vídeo, das artes da imagens, sonoridades e
objetos jamais experimentados. Nossa narrativa, em Maura, é um jeito de conhecê-la pelo que
não foi revelado sobre ela, o que nos moveu a buscá-la, em nós e no mundo que nos cerca. E
nisso Maura Lopes Cançado é instigante, por sua atitude transparente que nos raptou/rapta
indefesos para dentro dela:
Sedutora e inquietante, refiro-me, ainda, ao texto que, ao meu ver é, ao
mesmo tempo, uma vontade de entrega e negação, na mesma ordem em que
vai nos desorganizando orgânica e simbolicamente, conseguindo preencher
esse vazio largado por dentro da alma, vontades antigas de experimentar
uma densidade mais fria e experimental em teatro, chegando, inclusive, a
romper com ele enquanto literatura (CORDEIRO, 2016, p. 04).
Na performance Maura, é justamente isso que ocorre, a literatura se esgarça: contamos,
narramos, presentamos pedaços de uma história que construímos e desconstruímos, a medida
que ela se projeta para frente, a medida em que ela nos remete, propositalmente, ao apelo de
uma cena que possa entendê-la pronta. Um trabalho-pesquisa que, como narrativa, pretende
reaproximar as ações pretendidas desse contexto imediato em que a latência da vida se dá, daí
a busca pelos estudos da performance, que atribuem a devida mobilidade, nos permite o
trânsito conceitual, as perdas e os achados que vamos encontrando pela frente, redesenhando
tais achados no estranhamento necessário, para que novas buscas criativas sejam empreitadas
em sua direção. Uma vez que: “performances afirmam identidades, curvam o tempo,
remodelam e adornam corpos, contam histórias” (SCHECHNER, 2003, p. 29).
Nesse movimento entre o que a louca Maura é o que ela diz sobre ela e sobre o mundo
silencioso em que viveu, como se comporta, o que agrega e o que destoa, os atuantes vão
descobrindo comportamentos ligados aos seus hábitos e rotinas de vida em sua cotidianidade,
fato que vai os alterando dentro do trabalho, como comportamentos restaurados: os tons da
voz, a movimentação corporal, o aparecimento e o uso de alguns objetos recorrentes em cena,
tais como a presença do texto escrito, espelhos e sombrinha; um figurino que foi, lentamente
sendo introduzido e hoje conjuga-se como parte desse contar imagético. Elementos cênicos e
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atitudes recortadas, recombinados e devolvidos aos atos de forma poética sobre esse corpo
falante a conversar conosco acerca de sua obra, a própria Maura em seus dias de clausura.
Para Schechner (2003, p. 34), um comportamento pode ser restaurado a partir de nós
mesmos, em outro tempo ou estado psicológico, enfatizando este contar, um comportamento
que possui texto independente, mas que, na performance cênica, contribui para que essa
narrativa ganhe vida, acentuando a importância da vivacidade nesse narrar. Maura conta-se
nessa gama de códigos, ícones, símbolos e ausências que nos remete à sua literatura à qual,
sempre sintetizada, nos permite olhá-la tantas vezes, por muitos ângulos interpretativos.
Voltando às questões abertas no início deste tópico, sobre a reverberação reflexiva que
nos impomos enquanto corpos aprendizes com e a partir de Maura, embebidos dessa
aproximação dos estudos da performance, acreditamos que nossos corpos têm procurado
resistir ao ordenamento com que um teatro dito mais convencional, por mais contemporâneo
que se proponha, consiga nos enredar. E assim vamos re-inventando os atos como janelas
imagéticas, a vida, a dela, as nossas, até onde esse ‘onde e como’ estético nos conduza,
encantando-nos em cada nós e perdendo-nos até o próximo momento em busca desse
corpolitura
22
pessoal nossa: compreendendo a escritura do corpo que está presente nele
próprio, e apenas nele; um corpo (corpos) que se inscreve nesse ser grafado no tempo e no
espaço da criação e da ação, da atuação cênica, que possui vocabulário e gramática própria;
não somente desenhando-se ‘fora’ desse corpo, mas traçando externamente o ‘dentro-fora-
dentro’ da ação de pensar-se, revelar-se expressando-se, comunicando-se como obra artística,
literária, cênica, performativa, vida em relação, portanto:
Interessante como sua escritura, quando pensada cenicamente, é feminina e
livre pela forma com que se desprotege gramaticalmente, rasgando qualquer
tratado de relação classicista com estilo literário, teatral, social ou de gênero,
pela visceralidade depravada e animalesca de um ser que vai diluindo-se nas
palavras sem qualquer compromisso ético ou estético com seu tempo e sua
condição de inter-NADA. Ela mesma declara que não tinha essa
compreensão poética do que escrevia. Para Maura, tudo que escrevera foi
dor, sua própria vida (CORDEIRO, 2016, p.8).
Maura-Performance: caminhos, encruzas e corpolituras.
A performance Maura instiga diversas reflexões, porque ela parte de vários indutores,
de desejos e reflexões que foram surgindo ao longo das experimentações. Esse trabalho
artístico pode suscitar leituras plurais, que bom ela tenha esse potencial, dependendo das
referencialidades. Contudo, para esse artigo, optamos por inferir algumas questões
importantes para nosso fazer performativo.
Com base nisso, o conceito de presentação, apresentado por Bonfitto (2013), ajuda-nos
a pensar alguns pontos sobre a performance Maura. O autor se dedica a analisar a relação
entre o trabalho ator e/ou performer, partindo de performances de alguns artistas. No campo
cênico, desde que os estudos da performance se estabeleceram, a partir da década de 1960,
essa dualidade vem suscitando intensos debates e reflexões, na tentativa de compreender os
22
Categoria que procura dilatar o conceito de corpografia memorial no qual o corpo e memória se fundem e
geram uma pensar e um fazer cênico embebido de uma pessoalidade tecida na relação experiencial entre
oralidade, história e cultura, as quais não se apartam, mas revelam uma percepção mais comprometida com o
‘dizer’ do corpo pela voz do corpo, os discursos do corpo por ele mesmo. Cf. CORDEIRO, Rosilene da
Conceição. “Lá fora, na boca e no olho da rua: performance e narrativas de si”. Artigo apresentado à disciplina
Imaginário e saberes Amazônicas, do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação,
Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia, ministrada pela Profa. Dra. Alda Cristina da Silva Costa.
PPGCLC/UNAMA, 2017.
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entres estabelecidos na criação artística. Aproximamo-nos dessa dualidade, para pensar o
nosso trabalho performativo. E quais seriam os pontos que nos ajudariam a refletir sobre
Maura. Um deles é a questão que Bonfitto (2013) suscita sobre referencialidade e
representação; e autorreferencialidade e presentação. Sobre a primeira relação, o autor afirma:
A própria relação entre criador no caso o ator e/ou performer e o
processo de criação deve ser igualmente problematizada, uma vez que a
partir desse ponto de vista não é possível pensar tal relação simplesmente
como aquela em que um “Eu” dá vida a um “Outro”, ou como aquela em que
um “Eu” simplesmente se afirma como “Eu” (BONFINTO, 2013, p. 97).
Essa questão está intimamente relacionada ao conceito aristotélico de mimese: não a
simples reprodução da realidade, mas a criação de redes simbólicas, imitação como
representação daquilo referenciado na realidade”. Referencialidade e representação tem uma
importância no pensamento de Aristóteles, e ainda possibilita pensar na diversidade para a
criação. Bonfitto (2013) afirma que:
De acordo com o princípio de imitação, o ator deve estudar o material com
grande cuidado, observando-o e recolhendo informações; o princípio de
veracidade implica a exclusão de todos os elementos falsos, aparentes, uma
vez que a captação da elegância, por exemplo, é o resultado de uma imitação
verídica de algo elegante, e não de um esforço direcionado simplesmente
para a demonstração de tal elegância (BONFINTO, 2013, p. 100-101).
Esse princípio de referencialidade acompanharam e ainda acompanham muito o
trabalho do ator, principalmente a partir de ações artísticas que exijam tal relação. Isso ocorre
porque a relação com a realidade é um movimento contínuo, contudo, as diferenças de
percepção e criação poética dependem das relações estabelecidas com o que a cultura oferece,
ou seja, das escolhas cênicas para a realização dos trabalhos. Nesse ponto, Bonfitto (2013)
estabelece um comparativo com a performance, principalmente as que ele analisa em seu
estudo, que estaria relacionada mais com a autorreferencialidade:
No que diz respeito àquelas vivenciadas em primeira pessoa, a desconstrução
de processos de imitação foi geradora de autorreferencialidade, como já
observado. Mas, ao mesmo tempo, qualidades expressivas permeadas de
autorreferencialidade emergiram de outros processos: de intervenções no
material feitas a partir da exploração de intuições, de insights gerados pelo
fazer, assim como de necessidades ligadas à composição em vários níveis
(das partituras, das dramaturgias etc.) (BONFITTO, 2013, p. 106).
Nesse ponto, encontramos relações importantes entre as ideias expostas por Bonfitto
(2013) e a performance Maura. Aproximamo-nos desses conceitos, para elucidar algumas
questões sobre nosso trabalho performativo. Um deles é essa referencialidade com certas
situações do cotidiano que experimentamos. Partimos de objetos: sombrinha, remédio, mala,
espelho, papel, caneta, etc.
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Imagem 3: Seminário do CUMA/UEPA (2015).
Foto: Uirandê Gomes.
A relação com determinados objetos, na performance Maura, partiu de subjetivações
vindas ora da leitura da ficção de Maura Lopes Cançado, ora da observação de determinadas
situações cotidianas. Quando passamos a buscar a Maura nas encruzas dos lugares, nas ruas,
nas praças, por onde transitávamos. Mas esse passar, esse caminhar estava atravessado pela
experiência da vida-obra da escritor.
Imagem 4: Maura na rua (2017).
Foto: Rosilene Cordeiro.
A experiência com a performance Maura nos possibilitou a imergir cada vez mais nos
estudos e nas experimentações dessa linguagem. Inicialmente, movidos pelo medo em pisar
em terras movediças; depois esse inconstante mutável nos conduzindo para as zonas que
fomos/vimos buscando: do atirar-se fazendo; colocando o corpo em espaços onde não firme o
pé, mas que seja absorvido por esse solo e desse lugar observar, balançar, tentar.
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Imagem 5: Maura em Breves/PA (2016).
Foto: Denis Bezerra.
A performance é nosso buraco, aquele lugar de busca do saber-ser, como afirma
Zumthor (2014). Com Maura aprendemos a olhar pela brecha, aquele lugar privilegiado de
onde observamos o mundo, porém, com a liberdade de ser. Estar-olhar pela frecha não
significa direta e restritamente estar aprisionado, mas perceber as coisas por outra ótica.
Em outros termos, performance implica competência. Mas o que é aqui
competência? À primeira vista, aparece como savoir-faire. Na performance,
eu diria que ela é o saber-ser. É um saber que implica e comanda uma
presença e uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-
temporais e fisiopsíquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em
um corpo vivo (ZUMTHOR, 2014, p. 34).
Imagem 6: Abertura do PPGED/UEPA (2017).
Foto: Rosilene Cordeiro.
Por isso, não procuramos representar Maura, como era o desejo inicial, mas mergulhar
nesse campo plural que nos possibilitou a vivenciar, em diálogo e atravessado por nossas
memórias, por nossas histórias grafadas em nossas vértebras. Porque a performance, como
afirma Zumthor (2014, p. 45): “não é uma soma de propriedades de que se poderia fazer um
inventário e dar a fórmula geral. Ela pode ser apreendida por intermédio de suas
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manifestações específicas. Ela partilha nisso com a poesia (e sem dúvida a poética) um traço
definidor fundamental”.
Maura seria uma personagem, uma pessoa, um reflexo do mundo, um pensamento sobre
atos de nós mesmos? São muitas conjurações pessoais para poder se arvorar em responder a
tais questionamentos. Mas podemos apontar que hoje Maura faz parte de nós, que nos
permitimos a, primeiramente, reconhecer nossas loucuras; a corpoescrever essas experiências;
a simplesmente entrar e sair de nossas caixas cotidianas. Maura Lopes Cançado entrou no
buraco (hospício) por livre e espontânea vontade, mas de lá não saiu mais. Foi aprisionada por
uma sociedade que lhe tirou o direito de ser.
Seminário do CUMA (2015).
Foto: Uirandê Gomes.
Contudo, não idealizamos Maura, sua loucura, sua literatura. Mas nos solidarizamos a
ela, porque com sua vida-obra, seu Hospício é deus, nos colocou diretamente na fenda
reflexiva do Sofredor do Ver. E nos vendo, que dizemos: Maura nunca morrerá, porque ela se
alimenta de nós, está no meio de nós. Somos muitas Mauras e nos perguntamos: Maura,
Maura, existe uma mulher mais Maura que eu nesses nós?
Referências
AUTRAN, Margarida. Posfácio: Ninguém visita a interna do cubículo 2. In: CANÇADO,
Maura Lopes. Hospício é deus: Diário I. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, pp. 185-189.
BONFITTO, Matteo. Entre o ator e o performer: alteridades, presenças, ambivalências. 1.
Ed. São Paulo: Perspectiva Fapesp, 2013.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é deus: Diário I. São Paulo: Círculo do Livro, 1992.
CANTON, Kátia. Narrativas enviesadas. Martins Fontes, São Paulo, 2009.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2013.
CORDEIRO, Rosilene da Conceição. Cançada, excessivamente Maura ao largo de Deus.
Tribuna do cretino: Revista de crítica em teatro e dança. v. 2, 4, 2016 Belém: UFPA/
ICA/Escola de Teatro e Dança.
CORDEIRO, Rosilene da Conceição. “Lá fora, na boca e no olho da rua: performance e
narrativas de si”. Artigo apresentado à disciplina Imaginário e saberes Amazônicas, do Curso
de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da
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Universidade da Amazônia, ministrada pela Profa. Dra. Alda Cristina da Silva Costa.
PPGCLC/UNAMA, 2017.
FREITAS, Luciano Diogo Oliveira. O estranhamento e o Gestus brechtiano nos filmes de
Charlie Chaplin. Projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-graduação em
Performances Culturais Interdisciplinar da EMAC/UFG. Nível mestrado. Linha de pesquisa:
Espaços, Materialidades e Teatralidades Orientador: Dr. Robson Corrêa de Camargo
PPGPCI/UFG/EMAC Goiás, 2015.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5,
n.10, 1992, p. 200-212.
SCHECHNER, Richard. O que é Performance. In: Revista O Percevejo, Rio de Janeiro,
UNIRIO, n. 12, p. 25-50, 2003.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
[Recebido: 30 out. 2019 Aceito: 10 fev. 2020]
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
MEMÓRIAS DO POVO TUPINAMBÁ: HISTÓRIAS SOBRE O CABOCLO
MARCELINO
TUPINAMBA’S PEOPLES MEMORIES: STORIES ABOUT CABOCLO
MARCELINO
Randra Kevelyn Barbosa Barros (UNEB)
Elizabeth Gonzaga de Lima (UNEB)
RESUMO: Os indígenas da nação Tupinambá de Olivença vivenciam muitas histórias de resistência
que se mantêm vivas nas memórias dos mais velhos, sendo contadas oralmente pelos anciões no
âmbito dessas comunidades. Algumas dessas narrativas foram registradas na obra Anciões em Contos
e Encontros, organizada por Alessandra Mendes e Jaborandy Tupinambá. O livro apresenta
um mosaico de narrativas de quatorze anciões, composto por relatos memorialísticos e contos
tradicionais. Em suas histórias, muitos sábios relembram a figura do Caboclo Marcelino. Este nativo
foi uma liderança indígena que reivindicou, durante o período da década de 1930, os direitos
territoriais de sua comunidade, sendo por isso perseguido pela polícia local e visto como bandido pelos
coronéis da região. Nessa época, as vozes dos nativos foram silenciadas, sendo necessário presentificá-
las hoje, por meio da escrita, para que a história seja escovada a contrapelo, como propõe Benjamin
(1985). Tomando como ponto de partida as histórias registradas em Anciões em Contos e
Encontros, pretende-se analisar como os anciões retratam o Caboclo Marcelino em suas narrativas
orais e a importância de rememorar esse personagem histórico para o povo Tupinambá. Por meio da
análise dessas narrativas, busca-se ainda divulgar a relevância dessa liderança indígena para o
fortalecimento da identidade Tupinambá.
Palavras-chave: Povo Tupinambá. Memórias. Histórias. Caboclo Marcelino.
Abstract: The indigenous peoples of the Tupinamba nation in Olivença experience many stories of
resistance that remain alive in the memories of the elders, being told orally by the elders within these
communities. Some of these narratives were recorded in the book Anciões em Contos e Encontros”,
organized by Alessandra Mendes and Jaborandy Tupinambá. The book presents a mosaic of narratives
by fourteen elders, composed from memorialist accounts and traditional tales. In these stories, many
sages remember the figure of Caboclo Marcelino. This native was an indigenous leader who claimed,
during the 1930s, the territorial rights of his community, being therefore persecuted by the local police
and seen as a villain by the colonels of the region. At that time, the natives voices were silenced, and it
is necessary to present them today, through writing, so that history is brushed against the grain, as
proposed by Benjamin (1985). At starting point the stories recorded in Anciões em Contos e
Encontros, it intends to analyze how the elders portray Caboclo Marcellino in his oral narratives and
the importance of recalling this historical character to Tupinamba peoples. By means of the analysis of
these narratives, it is also sought to divulge the relevance of this indigenous leadership for the
strengthening of the Tupinamba identity.
Keywords: Tupinamba Peoples. Memories. Stories. Marcelino Caboclo.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
O povo Tupinambá de Olivença: nação indígena baiana
Os Tupinambá
23
de Olivença, segundo os estudos da antropóloga Susana Viegas
(2018), publicados no verbete desse povo organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA),
encontram-se na região sul da Bahia, ocupando um espaço de Mata Atlântica, próximo a
Ilhéus. Apesar de terem sido o povo que primeiramente sofreu com a colonização e
exploração europeias, nunca abandonaram a sua condição de indígena ao longo da história,
embora o poder hegemônico tenha negado essa identidade em vários momentos.
Especialmente a partir do século XIX, o Estado retirou-lhes os direitos nativos por
compreender que esses indígenas se assemelhavam mais a camponeses ou caboclos do que a
povos originários de fato. Isso é decorrente de uma visão estereotipada a respeito dos filhos da
terra, marcada pela desconsideração da indianidade
24
daqueles que sofreram processo de
miscigenação intenso. Nesse sentido, por muito tempo, os nativos da Bahia e outras regiões
do Nordeste foram designados como caboclos, uma mistura entre indígena e branco, como
uma forma de negar a existência das comunidades tradicionais nesse local. Assim, utilizava-se
essa justificativa para desapropriar os povos originários de seu território.
Apenas a partir da Constituição de 1988, a solicitação dos Tupinambá de Olivença e
de outras comunidades de se reconhecerem como indígenas foi ouvida, havendo uma garantia
legislativa de seus direitos. Viegas (2018) aponta que esse povo foi reconhecido oficialmente
como nativo pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2001. Além disso, a primeira fase
de demarcação de seu território que consiste na publicação dos relatórios de estudos de
identificação e delimitação da terra foi concluída em 2009. Todavia as outras etapas ainda não
foram realizadas, por isso não houve uma demarcação territorial de fato
25
.
Com o intuito de produzir um livro que mostrasse as histórias contadas pelos mais
velhos dessa nação indígena baiana, Alessandra Martins Girotto Mendes propôs o projeto
Anciões em Contos e Encontros à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, tendo sido
aprovado e financiado pelo órgão governamental. Assim, em parceria com o indígena
Jaborandy Tupinambá, as gravações das entrevistas na aldeia foram realizadas em 2012, e a
obra publicada em 2014. O exemplar é dividido em duas partes: a primeira é composta por
quatorze capítulos, um dedicado a cada ancião, havendo na abertura de cada seção uma foto e
apresentação de cada sábio, seguidos de suas narrativas; a segunda é denominada
“Adicional”, apresentando informações complementares (relato do organizador indígena,
orações tradicionais e mapa da aldeia). Além disso, há um glossário ao final do livro.
Em seus relatos, a maior parte dos anciões conta as lutas de Marcelino José Alves,
mencionado pela comunidade como Caboclo Marcelino, como sendo relevantes para a
história desse povo. Os sábios demarcam a importância dessa liderança tanto para o passado,
na época em que esse nativo atuou, quanto para o presente, visto que ele se tornou uma
inspiração para os filhos da terra prosseguirem em suas reivindicações. Busca-se, então,
analisar as imagens que os sábios Tupinambá apresentam desse indígena em suas narrativas
na obra Anciões em Contos e Encontros.
23
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) determina que os nomes dos povos indígenas não sejam
pluralizados, assim como devem ser grafados com a inicial em letra maiúscula.
24
Sentimento de pertencimento à identidade indígena.
25
O processo de demarcação das terras indígenas no Brasil consiste em nove etapas. O procedimento, em sua
maior parte, é realizado pela FUNAI, havendo duas fases que cabem ao Ministro da Justiça e à Presidência da
República, respectivamente (FUNAI, 2018).
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Caboclo Marcelino: a criminalização de uma liderança nativa
Segundo Patrícia Couto (2012), desde o início do século XX, principalmente nos anos
vinte e trinta, foi um período marcado pelo avanço da população não indígena sob o território
de Olivença, buscando expulsar a comunidade nativa da região. Nesse contexto, entre 1929 e
1936, destaca-se o indígena Marcelino José Alves conhecido como Caboclo Marcelino ,
tendo repercussão a sua luta em defesa dos direitos territoriais de seu povo.
A elite cacaueira estava empenhada em construir uma ponte sob o rio Cururupe, que
ligaria a comunidade de Olivença ao município de Ilhéus. Isso facilitaria o acesso de
automóvel dos coronéis ao local ocupado pelos filhos da terra. Logo, essa construção
transformaria o território indígena em espaço de veraneio, intimidando a permanência dos
moradores na região. Como isso muito provavelmente acarretaria a expulsão dos nativos do
local, Caboclo Marcelino liderou um grupo de indígenas para protestar pelo direito à terra,
buscando impedir a edificação dessa ponte. Na comunidade, como mostram Carlos Santos e
Katu Tupinambá (2012), ele era o único que sabia ler e escrever, por isso também fazia
reinvindicações legais, organizando ainda mais o movimento nativo.
As lutas de Marcelino foram retratadas de maneira a criminalizar o indígena. A
imprensa de Ilhéus dominada pelos fazendeiros começou a noticiar de maneira sensacionalista
vários eventos que colocavam o nativo e os seus seguidores como perturbadores da ordem
pública, que estariam percorrendo a região, incendiando fazendas, destruindo plantações e
instaurando o terror entre os pacatos moradores” (COUTO, 2003, p. 56). Vários delitos foram
atribuídos a Marcelino, até mesmo o de assassinato. Nos periódicos, era comum também
retratar essa liderança como se estivesse em uma categoria não humana, atribuindo-lhe a
condição de selvagem:
Nos jornais, Marcelino foi definido como “caboclo” e “o homem que se fez
bugre”, questionando-se sua condição de homem civilizado, mas ao mesmo
tempo retirando dele qualquer laço coletivo ao nomeá-lo como “lampião” ou
“criminoso” contrário aos interesses dos “índios mansos” e “caboclos
decentes” (MEJÍA LARA, 2012, p. 48).
Como demonstra Mejía Lara (2012), era comum caracterizarem Marcelino como um
bugre, pois assim aproximavam mais ele de um bicho do que de um homem. Sendo frequente
ainda distinguirem-no do restante de sua comunidade, dado que os outros eram
considerados passivos, não se revoltando contra a expropriação.
As pressões conduzidas pelas notícias e também pelo processo aberto para investigar
os delitos atribuídos ao Caboclo Marcelino mobilizavam ainda mais a atuação policial na
busca pelo nativo para levá-lo à prisão. Diante de tanta perseguição, como apontam os estudos
de Couto (2003, p. 63) realizados a partir dos registros oficiais, o indígena “foi submetido
duas vezes a julgamento, em ambas tendo sido absolvido, o que provocou a ira dos poderosos
locais que tinham por objetivo declarado o seu desaparecimento e dos adeptos”. Ainda assim,
continuou sendo procurado, ocorrendo a sua última captura em 1936, na Serra do Padeiro,
quando se entregou à polícia para evitar que houvesse mais repressão aos filhos da floresta,
que estavam sendo obrigados a revelar onde a liderança estava escondida.
A definitiva prisão de Marcelino foi comemorada pela dia, como mostra Carlos
Santos e Katu Tupinambá (2012, p. 6), a manchete do Jornal do Estado da Bahia, de 6 de
novembro de 1936, declarou era uma vez, o Caboclo Marcelino”. Contudo, não se sabe o
que de fato aconteceu com ele após a sua prisão. Existe a tese de que ele foi torturado e
morreu em cativeiro. Mas não uma confirmação exata de que isso aconteceu (COUTO,
2003). Embora tenham se mobilizado para primordialmente impedir a construção da ponte,
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Marcelino e seu grupo conseguiram apenas retardar a edificação, que acabou sendo construída
e dificultando ainda mais a sobrevivência dos nativos na região.
O modo como essa liderança foi tratada mostra que no registro historiográfico apenas
um ponto de vista é levado em consideração. Aqui, vale ressaltar as reflexões de Walter
Benjamin (1985) sobre o fato de a escrita da história ser realizada, na maioria das vezes,
atendendo a determinados interesses. Para o filósofo alemão, o historiador tradicional
geralmente registra os acontecimentos tratando de um viés específico, dando destaque ao
olhar dos vencedores. Assim, beneficiam-se os dominadores. No caso do povo Tupinambá,
apenas a versão dos coronéis foi valorizada, retratando Marcelino como bandido, o que foi
levado em consideração nos registros. Até porque, “os registros oficiais em geral expressam o
ponto de vista oficial” (BURKE, 1992, p. 13), ignorando a visão daqueles que sofreram
repressão.
Diante de toda essa perseguição e criminalização do Caboclo Marcelino, torna-se
importante questionar como os nativos rememoram essa figura e a relevância dessa liderança
para os Tupinambá de Olivença hoje. A pretensão de analisar esse ponto de vista se insere em
um movimento de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1985, p. 223), desvelando
as narrativas que foram ocultadas nos registros oficiais. Nesse sentido, é importante lembrar
as estratégias levantadas por Peter Burke (1992) para que o historiador realize a sua tarefa de
maneira mais justa. O estudioso ressalta que é necessário seguir as técnicas da heteroglossia e
da micronarrativa. A primeira se caracteriza por considerar mais de um ponto de vista acerca
de um acontecimento, praticando a multivocalidade. A segunda busca “a narração de uma
história sobre as pessoas comuns no local em que estão instaladas” (BURKE, 1992, p. 341).
Essas técnicas propostas por Burke (1992) podem ser aplicadas para se pensar outras
narrativas acerca do Caboclo Marcelino sob a perspectiva dos mais velhos da comunidade.
Essas histórias, tão presentes na memória dos sábios e transmitidas oralmente, são transcritas
justamente para que não nativos tenham acesso a elas e para que se possa revisar a história
oficial.
A revolta de Marcelino: histórias de Anciões em Contos e Encontros
Anciões em contos e encontros, livro organizado por Alessandra Mendes e Jaborandy
Tupinambá, tendo sido publicado em 2014 com o apoio financeiro da Secretaria de Cultura do
Estado da Bahia, apresenta a compilação de narrativas de quatorze anciões Tupinambá de
Olivença. Desse total, dez sábios para falarem de si mencionam a figura de Marcelino
como um herói que lutou pelo povo indígena baiano. Há uma anciã que conheceu a liderança,
tendo vivenciado essa época (Sr
a
. Maria); alguns anciões ouviram histórias a respeito de
Marcelino de seus avós (Sr. Domingão e Sr. Amaral); outros, escutaram os seus pais
falarem dessa figura histórica (Sr. Alicio e Sr. Manuel).
Sr
a
. Maria (2014, p. 30), anciã de noventa e dois anos, narra que lembra de quando
Marcelino foi preso (“eu o vi passar de longe, mas como tinha muita gente olhando, eu
nem cheguei perto”). Devido a sua idade, vivenciou a época de ascensão do coronelismo na
região de Olivença. Quando o indígena foi preso na Serra dos Trempes, a anciã relata que
todos na comunidade ficaram sabendo, visto que as notícias percorriam rapidamente a região
na época, reflexo de ser uma cidade pequena. “Foi ele quem trouxe a informação que esta área
o governo tinha que nos dar. E, por isso, jogaram um monte de crimes sobre ele e começaram
a caçar ele. Esses crimes, dos quais ele era acusado, ninguém tinha prova” (MARIA, 2014, p.
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30)
26
. A versão dessa senhora diverge das informações que foram amplamente divulgadas
pela imprensa na época, pois ela pontua que houve um interesse por trás do processo de
criminalização do nativo. Era uma forma de impedir que Marcelino continuasse atuando,
explicando aos membros de sua comunidade os direitos que tinham sobre a terra e a
legitimidade de reivindicá-los. A atuação do indígena incomodava especialmente aos
coronéis, que desejavam continuar detendo o domínio de grande parte desse território.
Embora não houvesse provas, de tanto atribuírem crimes a Marcelino, Sr
a
. Maria
(2014, p. 30) reconhece que alguns nativos começaram a acreditar nesses delitos, mas explica
que ela nunca acreditou nisso “porque sempre soube que os mais velhos eram sábios e eles
protegiam muito Marcelino”. A anciã afirma que Marcelino era inteligente, conhecendo tanto
o mato quanto a cidade:
Eu lembro que muito dos papéis que chegavam para algumas famílias
assinar, era atrás de Marcelino que iam para resolver. Se ele não soubesse,
ele conhecia alguém que sabia. Por isso o perseguiram e deram o sumiço
nele, por causa de sua inteligência. Acredito que depois dele, nasceram
outros Marcelinos. Infelizmente era uma época de muitas covardias contra
nós, foi na época que o cacau começou a reinar na região. Esses novos
"Marcelinos" não conseguiram aparecer, porque foram mortos. Nessa época
muitos parentes eram assassinados e nós ou não ficávamos sabendo ou
simplesmente ficávamos calados. Não podia fazer nada se não era fácil
matar todo mundo e ninguém ficar sabendo (MARIA, 2014, p. 30).
Em virtude de saber ler, Marcelino até mesmo ajudava os outros nativos quando
chegavam documentos na aldeia para eles assinarem, o que poderia ser papelada para
transferir terras para fazendeiros. A narradora cita ainda outros Marcelinos, que surgiram
depois e foram silenciados. Os nomes de muitos deles não são lembrados nos registros da
história. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin (2006) explica que cabe ao historiador a tarefa
política de “transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos
mortos que não puderam ser enterrados” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Entretanto, no caso dos
Marcelinos da nação Tupinambá, parece que essa tarefa não foi cumprida. Os nativos que
lutaram nessa época se tornaram os sem-nome esquecidos na historiografia, mas sempre
lembrados pelo seu povo.
Sr. Domingão, liderança nativa, lembra que seus avós lhe contavam histórias sobre o
Caboclo Marcelino. Ele afirma que tanto ele quanto o seu povo não desejam que a repressão
se repita: “mas a gente não quer isso que aconteceu com o parente Caboclo Marcelino, que foi
massacrado e torturado. Antes de Marcelino, teve também o coronel Nonato
27
que tomava
conta de Olivença” (DOMINGÃO, 2014, p. 16). Neste caso, lembrar de Marcelino, e também
de Nonato, faz com que o narrador imediatamente pense em sua condição no presente, na
possibilidade de ele e outros nativos enfrentarem a mesma perseguição que os guerreiros
sofreram no passado. Para Gagnebin (2006, p. 47), outro papel do historiador é “lutar contra a
repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente)”. Essa reprodução ocorre
principalmente porque as atrocidades cometidas no passado não foram punidas, não se fez
justiça à luta de Caboclo Marcelino. Isso autoriza que outros casos semelhantes se
26
A Sr
a
Maria explica uma perspectiva interessante para se refletir sobre a imagem do Caboclo Marcelino. O
indígena conseguia transitar entre a mata e a cidade. Com os conhecimentos adquiridos no espaço urbano,
explicava ao seu povo sobre direitos territoriais indígenas que são omitidos pelo governo e pelos latifundiários.
27
Manoel Nonato do Amaral foi um coronel mestiço nativo de Olivença-Ba. [...] Testemunhas da época o
apontaram como o chefe político em Olivença, seja como coronel, seja como um índio. Moradores de Olivença
relatam que ouviram falar que a casa de Manoel Nonato era um ponto de ‘acolhimento’ de índios e demais
moradores” (OS BRASIS E SUAS MEMÓRIAS, 2020).
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presentifiquem na comunidade, pois parece que o poder público não se importa com o fato de
a vida de diversos nativos estar em risco. Na verdade, essa ausência de preocupação com a
causa indígena nota-se no fato de não haver sido concluído o processo de demarcação
territorial dos Tupinambá, o que propicia a continuidade de conflitos na região entre os filhos
da terra e aqueles que desejam ser donos da terra.
Outro relato de Sr. Domingão (2014, p. 16) expõe o que muitos denominam “revolta
de Marcelino”. Segundo o ancião, foi uma luta pelo território e para impedir a invasão de não
indígenas nas terras da comunidade. Os policiais frequentemente entravam nas casas dos
nativos procurando o foragido. “Mas toda vez que Marcelino sentia a presença deles ou os
via, Marcelino corria pelo mato adentro” (DOMINGÃO, 2014, p. 16). Isso mostra que o
nativo conhecia bem diversos lugares no mato onde pudesse se esconder. Apesar da coerção,
os filhos da floresta não revelavam o paradeiro de Marcelino. Mesmo sofrendo torturas, eles
continuavam em silêncio. Sr. Domingão narra que o nativo Duca Liberato foi torturado pelos
policiais, mas mesmo com isso não falou onde o caboclo estava. Até mesmo a avó desse
sábio foi perseguida, quando estava preparando comida para o foragido:
Nesse dia, ela estava cozinhando caranguejo para levar pra ele. Mas minha
avó e Marcelino tinham um código, que era o assobio, para avisar que ela
estava chegando e ele respondia se ela poderia subir, também com o assobio
(DOMINGÃO, 2014, p. 17).
Os policiais interrogaram aos avós desse velho se aquele excesso de comida seria
levado para o foragido. Apesar de ter negado, a avó foi forçada a levar os policiais para um
lugar próximo de onde Marcelino estava e se utilizar do sistema do assobio para avisá-lo e
assim ele conseguir fugir. Depois disso, Sr. Domingão relata que Marcelino se escondeu na
Serra do Padeiro e, após algum tempo, decidiu se entregar para evitar que a perseguição ao
seu povo continuasse. Essas narrativas ilustram como o indígena criminalizado era querido
pelos membros daquela nação. Ele era tão considerado pelo povo que os nativos arriscavam a
própria vida para protegê-lo. Embora muitos tenham sido torturados, outros acuados para
revelar o paradeiro do foragido, os indígenas não revelavam onde a liderança estava
escondida ou encontravam uma forma de avisá-la sobre a chegada dos policiais. Tudo isso
para defender uma pessoa que muito ajudou a comunidade, que buscou garantir os direitos
dos nativos Tupinambá.
O interessante das narrativas discutidas acima reside no fato de que elas foram
transmitidas oralmente pelos avós do Sr. Domingão. E o próprio ancião afirma: “eu sempre
contei nossas histórias que vivi e escutei de meus antepassados” (DOMINGÃO, 2014, p. 17).
Essas histórias se fazem presentes na memória dos velhos. Daniel Munduruku (2012, p. 19)
explica como a memória é transmitida nas comunidades tradicionais:
Sei que alguém pode querer saber como se esta transmissão da Memória
no contexto da aldeia. Me adianto e logo vou explicando que é pela Palavra.
A Tradição é passada pelo uso da Palavra. O “dono” dela é o ancião, o
velho, o bio. É ele que tem o poder e o dever da transmissão
(MUNDURUKU, 2012, p. 19).
Diante da reflexão de Munduruku (2012), é possível pensar que a transmissão oral é
tratada como uma forma de registro que impede a extinção das histórias dos povos
originários. Cabe ao velho fazer uso dessa palavra oral para manter viva as narrativas que não
estão escritas nos livros. Esse patrimônio não se perde porque “a história indígena é contada
pelos velhos para os mais novos, de pai para filho, para não ser esquecida” (KAXINAWÁ,
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1996, p. 6). Deste modo, como pontua Olívio Jekupé (2005), os sábios são vistos como se
fossem as bibliotecas das aldeias.
Ong (1998) distingue oralidade primária e oralidade secundária. Para o estudioso,
culturas em que a oralidade é fundamental, pois são marcadas pela ausência do contato com a
escrita (oralidade primária); e existem sociedades nas quais a oralidade se atualiza nos
dispositivos eletrônicos, tendo a maior parte de suas atividades ligadas à escrita (oralidade
secundária). Ainda discutindo essa questão, o pesquisador faz uma ressalva: “atualmente, a
cultura oral primária, no sentido restrito, praticamente não existe, uma vez que todas as
culturas têm conhecimento da escrita e sofreram alguns de seus efeitos” (ONG, 1998, p. 19).
Então, as culturas orais primárias são aquelas que têm um pouco de interferência da escrita,
mas toda a sua estrutura social é baseada na oralidade. Um elemento que se destaca nessas
sociedades é o fato de que nelas “a experiência é intelectualizada mnemonicamente” (ONG,
1998, p. 46). Ou seja, a memória desempenha uma função extremamente importante porque é
a partir dela que as histórias dessas sociedades serão narradas. Isso pode ser visto no relato do
Sr. Amaral, membro do Conselho de Anciões, pois ele relembra Marcelino por meio do que
ouviu de sua avó:
Aqui nós temos muitas histórias. Histórias de lutas e muitas histórias bonitas
também. Minha avó contava muitas coisas. Certa vez, me contou que
namorou caboclo Marcelino. Mas como ele era muito valente, minha bisavó
proibiu o namoro (AMARAL, 2014, p. 26).
Nesse ponto, vale ressaltar que dentre as diversas histórias que o ancião lembra a
narrativa sobre Marcelino é tida como indispensável para ser relatada. Circunstância que
remete ao entrelaçamento entre memória individual e memória coletiva, pois segundo
Maurice Halbwachs
28
(2006, p. 51), “cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva”. Dessa maneira, a figura do Caboclo Marcelino está na memória coletiva
do povo Tupinambá e cada ancião tem o seu ponto de vista sobre essa figura, muitas vezes
tendo formado esse olhar a partir das histórias que ouviu de seus antepassados, estando em
consonância com a memória coletiva. A liderança marcou tanto a vida individual de cada
nativo quanto a vida do grupo. Neste relato, observa-se uma história íntima. Não é lembrado o
Caboclo Marcelino que ajudava os indígenas a ler as documentações, que lutava pela terra de
seu povo e se utilizava de diversas estratégias para fugir das perseguições. Sr. Amaral guarda
na memória a imagem do indígena como aquele que namorou com a sua avó, que este fato
lhe foi contado por essa anciã. Mesmo que seja um caso muito particular da avó do Sr.
Amaral, não como negar que essa lembrança, que está na memória individual, não se
desvincula da ideia que o grupo tem dessa figura histórica, no caso, não se separa da memória
coletiva. Assim, essas duas formas de rememorar estão em constante diálogo.
“Lembro-me do caboclo Marcelino, que vivia correndo e se escondendo da polícia”.
Assim Sr. Alicio (2014, p. 34), cacique com setenta e oito anos de idade
29
, inicia o seu relato.
O velho narra que houve um tiroteio perto da Serra dos Trempes, mencionada como Serra do
Padeiro na narrativa do Sr. Domingão, último lugar usado por Marcelino para se esconder.
Após o confronto, nessa versão, Marcelino teria sido levado para Ilhéus, depois para Salvador
e em seguida para o Rio de Janeiro: Quando chegaram lá, nem sentença deram. De lá, ele
sumiu. Ele foi morto, e sumiram com o corpo dele!(ALICIO, 2014, p. 34). O narrador
ênfase ao caráter arbitrário do tratamento dado à liderança. Na visão dele, quando o acusado
28
O pensamento desse sociólogo demanda uma ressalva. Ele acredita que a memória e a tradição se extinguem,
surgindo daí a necessidade do registro historiográfico. Isso não se aplica às sociedades indígenas, como foi
explicado acima, ao tratar-se das reflexões de Munduruku (2012) e Jekupé (2005).
29
Não uma uniformização quanto à revelação da idade dos anciões. A maior parte dos sábios não tem esse
dado apresentado. Mas alguns acabam contando isso durante os seus relatos.
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chegou ao Rio de Janeiro, nem ao menos teve direito a um julgamento justo. Imediatamente, o
filho da terra foi assassinado e nem mesmo o seu cadáver foi encontrado. E tudo isso Sr.
Alicio (2014, p. 34) lembra porque o seu pai lhe contou e não porque vivenciou essas histórias
diretamente: “eu que estou com 78 anos me alembro das histórias de Marcelino. Pai que
andava com ele e me contava as histórias. Ressalta-se aqui a dinâmica da tradição oral.
Muito provavelmente o pai do Sr. Alicio já faleceu, mas este ancião ainda guarda na memória
tudo o que ouviu, que sua memória é constantemente exercitada tendo em vista a ausência
do uso da escrita. O sábio é um idoso de setenta e oito anos que, ao falecer, não teessas
histórias extintas, tal como as narrativas do pai dele sobre Marcelino não se perderam no
tempo. Como o seu pai, é provável que Sr. Alicio conte essas histórias ao seu filho,
mantendo-as sempre presentes no seio de sua família e de sua comunidade.
Outro ancião que soube das histórias de Marcelino pelos seus pais foi o Sr. Manuel,
falecido em 2013, mas contou as suas histórias para as outras gerações e também teve as suas
narrativas registradas no livro em análise para que outras pessoas fora da aldeia tivessem
acesso a elas:
Pode olhar o passado, tudo que aconteceu com Nonato, Marcelino, Duca
Liberato e tantos outros. Seria muito difícil acontecer o que vem
acontecendo hoje em dia, se não fosse o que é lembrado do passado, essa
luta que está sendo travada é uma luta nossa, de todos os Tupinambás de
Olivença. Nós temos que somar forças com as Lideranças para que nossa
terra seja logo demarcada (MANUEL, 2014, p. 42).
O fragmento acima demonstra uma das características das culturas orais pensada por
Ong (1998). Para ele, as sociedades orais são homeostáticas, ou seja: “elas vivem
preponderantemente num presente que se mantém em equilíbrio ou homeostase, descartando-
se de memórias que já não são relevantes para esse presente” (ONG, 1998, p. 58). Nota-se que
Marcelino é citado ao lado de outros guerreiros Tupinambá porque lembrar deles é relevante
para o presente desse povo. A luta pela demarcação das terras e a perseguição às lideranças
indígenas é algo que se iniciou muito tempo e os nativos ainda hoje persistem, continuam
com suas reivindicações territoriais e resistindo ao extermínio. É preciso olhar para o passado
e ver exemplos como de Marcelino, lembrar constantemente desse personagem histórico,
como o fazem os sábios, na tentativa de recuperar aquela força e coragem do guerreiro
Tupinambá.
Não é apenas os anciões que reiteradamente falam sobre Marcelino. Os jovens ouvem
as histórias dos velhos sobre essa liderança. Esse é o caso de um dos organizadores do livro,
Jaborandy Tupinambá, que na seção “Adicional”, expõe a sua visão sobre o assunto. Desde
criança, sempre ouviu histórias a respeito de Marcelino, mas “os anciões contavam como se
fosse só uma história e não algo que de fato tivesse acontecido” (TUPINAMBÁ, 2014, p. 66).
As narrativas transmitidas oralmente pelos anciões podem dar a entender que são apenas
ficção, porém os sábios recorrem à memória, mostrando outras formas de acessar a verdade.
Isso instigou o jovem a procurar mais informações sobre o guerreiro nativo, notando que as
ações dele precisavam ser relembradas para inspirar o movimento Tupinambá a continuar
com as suas lutas. Para Mariana Souza (2014), a memória evoca referentes identitários
importantes para um povo. É o caso de Marcelino para os Tupinambá. Ele é um símbolo de
resistência para essa comunidade. Percebe-se que esse guerreiro, ao protestar contra a
construção da ponte, ao exigir a garantia de que o território fosse habitado apenas por
membros de sua aldeia, estava reivindicando o direito de ser nativo, de continuar praticando o
seu modo de vida sem interferência dos não indígenas. Então, a memória, especialmente no
caso dos povos originários, como pontua Munduruku (2012, p.18) “é quem comanda a
resistência, pois nos lembra que não temos o direito de desistir, caso contrário não estaremos
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
fazendo jus ao sacrifício de nossos primeiros pais”. O sacrifício de Marcelino incentiva os
Tupinambá a lutarem para poderem continuar exercendo as suas indianidades, apesar de todas
as repressões e práticas de extermínio.
O jovem nativo afirma que desde pequeno sempre foi chamado de caboclo e que, até
mesmo os outros indígenas, assim se cumprimentavam. Jaborandy Tupinambá (2014, p. 66)
afirma: “o que não imaginava é que essa foi mais uma estratégia de esconder nossa
identidade”. Marcelino, na época em que atuou, foi tido como caboclo, negando-lhe a
possibilidade de ser reconhecido como indígena. Mas, após a sua atuação, houve um
sentimento de fortalecimento da identidade nativa, incentivando o povo a até mesmo buscar o
nome da nação a que pertencia, se autodenominando e se reconhecendo enquanto Tupinambá
de Olivença. A figura de Marcelino faz com que o sentimento de pertencimento à identidade
Tupinambá se reforce, havendo uma transição de caboclos para indígenas, especificamente
para nativos Tupinambá.
Desse modo, os anciões veem Marcelino como uma liderança que deixou sementes
para os indígenas permanecerem lutando pela causa e afirmarem o seu direito de serem
diferentes dos não nativos, reivindicando o direito originário à terra, que também é um direito
à sobrevivência.
Considerações finais
Os olhares dos nativos contribuem para repensar a história, especialmente as injustiças
que criminalizaram aqueles que lutaram pelos seus direitos, como é o caso do indígena
Tupinambá Marcelino. Os relatos dos anciões, compilados no exemplar Anciões em contos e
encontros, colaboram para reposicionar Marcelino José Alves na história, de bandido a
ativista, pensando-o como liderança que lutou pelos direitos de seu povo.
O processo de revisionismo histórico é tão importante que, oitenta e dois anos depois
do desaparecimento de Marcelino, no dia 20 de abril de 2018, houve um júri simulado em
Ilhéus para possibilitar um julgamento justo ao nativo. Organizado pela Defensoria Pública,
sendo parte da Série Júri Simulado Releitura do Direito na História, nesse julgamento, o
acusado foi absolvido de todos os crimes. Após o evento, houve uma mesa de discussão com
lideranças nativas para discutir os direitos dos povos indígenas, mostrando que repensar o
passado estimula a busca por atitudes que melhorem o presente.
Assim, as histórias registradas nas memórias dos sábios Tupinambá e transmitidas
oralmente mantêm Marcelino vivo como um exemplo de resistência para as gerações
passadas, atuais e futuras.
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BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019 94
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
O ENSINO DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO: POSSIBILIDADES DE
DIÁLOGOS COM CULTURAS E MODOS DE VIDA
LITERATURE TEACHING IN THE COUNTRY FIELD EDUCATION:
POSSIBILITIES OF DIALOGUES WITH CULTURES AND WAYS OF LIVING
Sílvia Gomes de Santana Velloso (PPGLITCULT UFBA)
30
Resumo: Discute-se o ensino de literatura na Educação do Campo, especialmente, tendo em
vista os diálogos culturais e identitários que o texto literário pode estabelecer com os sujeitos
no processo de formação leitora
31
. O Campo, de acordo com Arroyo (2003), é constituído de
uma potência identitária, ou seja, de sujeitos que possuem um perfil diverso: “trabalhadores,
camponeses, mulheres, negros, povos indígenas, jovens, sem-teto... Sujeitos coletivos
históricos, se mexendo, incomodando, resistindo. Em movimento” (ARROYO, 2003, p.33), a
qual nega e repulsa qualquer proposta de ensino que se mostre homogênea e hierarquizante.
Nesta perspectiva, espera-se que este texto contribua para se pensar no ensino de literatura
como uma ação que deve ocorrer em intercâmbio com as experiências dos sujeitos sociais.
Palavras-chave: Literatura. Leitura. Ensino. Educação do campo.
Abstract: This article discusses the Literature teaching in the country field education,
especially, bearing in mind the cultural and identity dialogues that the literary text can
establish with the subjects in the reading training process. The country field, according to
Arroio (2003), consists of an identity power, that is, it consists of subjects who have a diverse
profile: “workers, peasants, women, black people, Indians, young people, homeless people.
Historical collective subjects, moving, bothering, resisting. In motion” (ARROYO, 2003, p.
33), who denies and repulses any teaching proposal, that proves to be homogeneous and
hierarchichal. In this perspective, it is expected that this text contributes to thinking about
literature as an action that should take place in exchange with the experiences of social
subjects.
Keywords: Literature. Reading. Teaching. Country Field Education.
Introdução
30
Doutoranda em Literatura e Cultura - PPGLITCULT Universidade Federal da Bahia UFBA; Mestra em Crítica
Cultural Pós Crítica, na linha de pesquisa Letramentos, Identidades e Formação de educadores Universidade
do Estado da Bahia UNEB/Campus II Alagoinhas. E-mail: gsantana20@yahoo.com.br.
31
É importante destacar que, ao referir-me à expressão formação leitora, faço menção ao trabalho com a
leitura em âmbito escolar, compreendendo, entretanto - é importante dar ênfase a esta ideia que, ao chegar
à escola, o sujeito traz consigo uma enorme bagagem de leituras resultantes de suas vivências, do convívio
social, de suas experienciações. Faço questão de salientar tal ideia, para não correr o risco de trazer
sustentação a uma concepção de formação leitora como sinônimo de escolarização, desconsiderando as
experiências anteriores ao acesso do sujeito à escola. Seria interessante utilizar outro termo, então? Algo mais
abrangente que alcance esta concepção alargada de leitura para a qual outros autores também apontam? Uma
questão para se pensar.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Este trabalho discute o ensino de literatura, especialmente na Educação do Campo,
como uma ação que deve ocorrer em diálogo com as identidades, culturas e modos de vida
dos diferentes sujeitos. Em “A Gaia Ciência” cujo título pode ser traduzido como “alegre
saber”, Nietzsche convida o leitor, num discurso bastante poético, a pensar sobre como a
noção de ciência como sendo um campo soberano, que vem se construindo ao longo de um
percurso histórico, às vezes se apresenta acima das experiências humanas, afastando-se,
assim, de alguns processos importantes de interação com a vida.
Corroborando essa ideia, ao elaborar o texto de apresentação da referida obra de
Nietzsche, Ciro Mioranza, conhecedor das possíveis intenções desse filósofo da linguagem,
diz não ter dúvidas de que a experiência de vida é uma enorme fonte de conhecimento. A
despeito disso, o autor deixa registrado o quanto a ciência utiliza-se desse saber, da
observação histórica do comportamento humano, para criar e ditar regras comportamentais,
instituindo leis que ignoram as experiências humanas.
Fora com base nas leituras de Nietzsche, o qual pode ser considerado um dos maiores
autores e intérpretes da ciência, principalmente da linguagem, mas também de muitos
pesquisadores, como Sodré (2017) e Martins (2002) - importantes teóricos que, igualmente,
ou, talvez, de modo ainda mais amplo, que têm se proposto à pesquisa sobre diferentes
culturas, mormente as culturas africanas, vêm pensando sobre a construção do conhecimento,
nas perspectivas da descolonização e da decolonialidade, dos corpos dissidentes - que me
propus a escrever este texto.
Iniciei minha trajetória docente como voluntária na alfabetização de adultos, na
comunidade em que vivi toda a infância e adolescência, o distrito de Passé - Candeias, na
Bahia, Brasil. Um local com poucos recursos financeiros, de maneira que muitas pessoas
utilizam-se de variadas formas de trabalho para sobreviver, como o plantio e a
comercialização de bananas; a pesca e a mariscagem esta última gerida, mormente, por
mulheres. Hoje, tenho de modo mais preciso a noção da potência cultural, identitária e de
modos de vida que marca aquela comunidade. Uma potência que se reinventa no percurso
histórico, social e cultural, sempre existindo e resistindo.
Exercendo formalmente a docência na Educação básica, desde o ano de 2007, transitei
por vários caminhos dessa etapa educacional, desde a Educação de Jovens e adultos por
qual tenho grande paixão - ao Ensino médio, no campo e nas periferias urbanas. Em 2015, fui
aprovada num concurso público para atuar na docência do componente curricular Língua
portuguesa, num município da região metropolitana de Salvador, na Bahia. Tendo em vista
que o concurso estabeleceu a distribuição das vagas entre sede e zona rural, fui indicada a
atuar zona rural. A princípio rejeitei, devido à distância, mas resolvi permanecer. Lembrei-me
de que também vivi no campo e das dificuldades que os sujeitos enfrentam para terem uma
educação minimamente digna, que respeite seus modos de vida e produção. Fui destinada a
uma escola localizada numa comunidade tão rica cultural e identitariamente quanto o local
onde passei parte da minha vida, em Candeias, na Bahia.
compreendia que teria muito trabalho pela frente, visto que não caberia reproduzir
um currículo urbanocêntrico na educação de sujeitos que têm outras experiências de vida.
Reafirmo que a educação precisa ocorrer em diálogo com a multiplicidade que constitui as
pessoas. Nas atividades que envolvem a leitura, sobretudo a leitura literária, sempre tenho
buscado textos que dialoguem com os sujeitos (jovens e adolescentes, negros, em sua maioria;
ribeirinhos, trabalhadores do campo, filhos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, dentre
outros) que adentram as salas de aula, como as produções dos (as) /as escritores/as das
literaturas negra e indígena: Cristiane Sobral, Oliveira Silveira, Alessandra Sampaio, Daniel
Munduruku, Eliane Potiguara, dentre outras potências literárias.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Trata-se de escritores (as) que, em suas obras literárias, assumem suas identidades
negras e indígenas, por exemplo, de modo positivo, afirmativo, questionando discursos
opressores que ferem os múltiplos modos de ser e existir das pessoas, o que possibilita aos
(às) seus (suas) leitores (as) a construção de uma autoimagem nesta mesma perspectiva.
Como fazer ciência é valorizar e dialogar com a vida, retomando as ideias de
Nietzsche, não poderia me furtar ao relato da minha trajetória profissional, que me
proponho a discutir ensino de literatura em diálogo com as experiências humanas, com a vida.
Essas vivências me permitiram pensar e tensionar o que vem a ser a Educação do campo.
Quem são os sujeitos desse espaço? Quais currículos têm sido ofertados às escolas do campo?
Esses currículos se propõem a dialogar com as identidades e modos de vida dos campesinos?
Como isso ocorre? São currículos construídos a partir de um olhar externo sobre o campo, ou
no campo, com a participação de seus atores?
São algumas das indagações propostas neste trabalho, o qual é parte de uma pesquisa
de doutorado, em andamento, que investiga a formação de leitores em contextos de Educação
do Campo. Nesta perspectiva, serão utilizados como referenciais teóricos autores, tais como,
Arroyo (2003), que tem discutido o campo como esta potência cultural e identitária -
abordada nesse texto - e, neste sentido, a Educação do campo como um processo cujos
sujeitos a que se destina: crianças, jovens, adultos, adolescentes e idosos, ribeirinhos,
quilombolas, mulheres negras e tantos outros negam e repulsam de alguma maneira quaisquer
modelos de educação que os escravize ou os ignore. Serão discutidos, também, autores como
Martins (2002), Sampaio (2016) e Silveira (1998), para o diálogo sobre leitura literária e
experiências humanas, dentre outros.
Espera-se que este texto contribua na reflexão sobre a necessidade de interação entre o
ensino de literatura e as experiências dos sujeitos sociais.
Literatura e experiências humanas
Na introdução ao texto performance, exílio e fronteira, Graciela Ravetti e Márcia
Arbex discorrem a respeito de temáticas caras, sobretudo em tempos em que se tenta
cristalizar ideias e impor movimentos ao corpo, aos sujeitos, ao que é dinâmico e diverso,
mormente por ser humano. As autoras permitem ao leitor refletir que a fronteira une,
diferencia e acolhe o diverso e, ao mesmo tempo, aquilo que se opõe. “A fronteira, linha de
demarcação de um território, real ou simbólico, é também lugar em que se desafia a liberdade
e em que se abre espaço para a criatividade” (RAVETT E ARBEX, 2003).
Consonante as ideias dessas autoras, na observação das relações entre memória, corpo
e performance, Leda Martins escolhe como corpus de análise os ritos de congado, que,
segundo ela, correspondem a uma das formas mais expressivas da cultura afro-brasileira. Na
análise desses ritos, sobretudo nas Américas, a autora busca mostrar como o legado ancestral
africano se fixa e se movimenta na diáspora. Trata-se de um movimento “espiralar”, em que
as performances da voz e do corpo, especialmente, vão traduzindo modos de resistência e
estratégias de manutenção de uma cultura que produz vida, que é vida e traz sentido a muitas
vidas humanas. Como exemplo dessa reflexão, Martins presenteia o leitor com trechos de um
ritual de congado
32
realizado no estado de Minas gerais:
32
Os Congados, ou Reinados, são um sistema religioso alterno que se constitui no âmbito mesmo da
encruzilhada entre os sistemas religiosos cristão e africanos, de origem banto, através do qual a devoção a
certos santos católicos, Nossa Senhora do Rosário, o Benedito, Santa Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês,
processa-se por meio de performances rituais de estilo africano, em sua simbologia metafísica , convenções,
coreografias, estruturas, valores, concepções estéticas e na própria cosmovisão que os instauram” (MARTINS,
2002, p. 74).
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Cânticos do congado
Zum, zum, zum
lá no meio do mar.
É o canto da sereia
Faz a gente entristecer.
Parece que ela adivinha
O que vai acontecer.
Ajudai-me, rainha do mar
Ajudai-me, rainha do mar
que manda na terra
que manda no ar
ajudai-me, rainha do mar.
Zum, zum, zum...
[...]
MARTINS (2002, p. 78)
Como se pode perceber, a autora utiliza-se dos rituais de congado para trazer à
reflexão as estratégias de resistência das pessoas negras escravizadas em diversos espaços,
sobretudo nas Américas, aos processos de escravização, à negação de suas culturas e ao
apagamento das performances que caracterizavam suas coletividades. Martins (2002), numa
tentativa de sintetizar uma das narrativas de origem deste ritual que, segundo ela, todos os
atos rituais partem de uma narrativa de origem -, diz que tudo se inicia na época da
escravidão, quando uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Conforme
relatos da autora, avistando a Santa, que resplandecia de modo a ofuscar a luz do sol, os
negros escravizados chamaram o dono da fazenda e pediram-lhe permissão para retirá-la das
águas. O fazendeiro negou-lhes o pedido, mas ordenou-lhes que construíssem uma capela
para a Santa com muitos enfeites.
Ainda segundo Martins, após o término da construção da capela, o patrão reuniu seus
amigos brancos e, juntos, retiraram a Imagem das águas e a colocaram num altar. A Santa,
todavia, rejeitou aquele espaço, retornando às águas. Foram várias as tentativas de resgate da
Imagem para o altar construído a pedido do fazendeiro, porém todas sem êxito; a divindade
sempre voltava às águas.
Sentindo-se frustrado com sua ideia, o homem branco resolveu, então, pedir aos seus
escravizados que retirassem a Imagem da água. Primeiro foi um grupo de escravizados de
Congo, que se enfeitou bastante com cores vistosas, muitas danças, tentando cativar a santa.
Ela pareceu ter gostado muito das performances, no entanto ainda não saíra das águas. Leda
narra que seguira então outro grupo de negros escravizados, mais velhos e muito pobres, o
qual, antes de ir ao mar tentar retirar a santa, foi às matas, cortou madeiras, produziu tambores
com troncos e folhas de inhame e formaram um grupo de candombes. Entraram nas águas,
com muita dança telúrica e cantos africanos que cativaram a santa, trazendo-a de volta para a
capela, onde todos os negros dançaram e cantaram para comemorar (MARTINS, 2002, p. 75).
A narrativa apresentada por Martins mostra-nos o modo subversivo que marca estes
ritos. O fato de a Santa apenas ter saído das águas para permanecer na capela após uma forte
sedução pelos cantos e danças africanos indica várias performances de resistência a um
processo colonizatório e escravista que tenta apagar dos corpos aquilo que os mantém vivos,
bem como que ultrapassa o corpo físico. Trata-se de um devir poético performatizado, um
desejo de existência que busca se instaurar numa ausência.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Se aqueles sujeitos não puderam expressar suas culturas e modos de vida livremente
por temer à opressão do colonizador, eles utilizaram-se daquilo que o atraia, ou seja, dos
instrumentos do próprio colonizador, para manifestar suas ancestralidades. A produção dos
tambores, empregando o próprio tronco que os castigava, é uma metáfora dessa inversão de
ordem, desta rasura.
O coletivo superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de
resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por
metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do
corpo e da voz. Tanto no enunciado da narração mítica, quanto na
performance dramática que cenicamente a representam, a superação parcial
das diversidades étnicas recria o ethos comum e o ato coletivo negro como
estratégias de substituição e reorganização das fraturas do conhecimento
(MARTINS, 2002, p. 81).
Assim como nos rituais de congado, o canto e as performances vocais, corporais e
outros elementos que constituem sua poética, além de traduzirem a ancestralidade, bem como
toda uma potência presente na cultura africana, embalam estratégias de resistência à negação
desse processo, à escravização, à impossibilidade de expressão de um corpo e movimento que
se configuram em muitos modos de vida, o individual e o coletivo, numa grande fusão.
A literatura negra também segue esse viés de resistência. Se, secularmente, os negros
foram retratados nessa arte, principalmente, sob a perspectiva da subalternidade, da
escravidão e inferiorização, igualmente no decurso da história muitos escritores têm se
debruçado na inversão dessa ordem, abordando a cultura negra de modo afirmativo e
preocupando-se com a construção de uma autoimagem positiva das pessoas negras.
No texto que segue, o escritor brasileiro Jorge de Lima traz ao leitor a construção de
uma representação da mulher negra, por exemplo, como objeto sexual, como tendo sido dócil
aos processos de escravização dos quais, a despeito de toda uma resistência, fora vítima.
Essa negra fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
[...]
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
(LIMA, 1980, p. 237).
Todavia, com o intuito de inverter essa ordem sustentada por Lima (1980) e por tantos
outros escritores, o poeta brasileiro Oliveira Silveira, num estilo subversivo, reescreve o
texto“ Essa negra Fulô”, sob outro olhar; o olhar de um eu poético que se reconhece negro,
tendo a negritude como potência, como marca de resistência:
Outra Nega Fulô
O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
a blusa e se pelou.
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
Ah, foi você que matou!
É sim, fui eu que matou
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!
(SILVEIRA, 2016, p. 56-57).
Nos versos de Silveira, percebe-se um sujeito poético que questiona a ideia de
passividade da mulher negra escravizada, que pode ser observada no texto de Jorge de Lima.
Tomado por um eu poético que se propõe político - político não em sentido partidário, e sim
em sua acepção mais ampla, de participação, de posicionamento - Silveira “rasura” a sintaxe e
a semântica de “Essa negra fulô”. Se em Lima a Negra Fulô deita-se com “seu” Senhor, de
modo dócil, sem resistência, como se pode ver nos versos “O Sinhô foi açoitar/ sozinho a
negra Fulô/A negra tirou a saia/e tirou o cabeção/de dentro dele pulou/nuinha a negra Fulô”,
em Silveira ela resiste, nega-se a ter seu corpo explorado: O sinhô foi açoitar/ a outra nega
Fulô/ ou será que era a mesma?/A nega tirou a saia/a blusa e se pelou/O sinhô ficou
tarado/largou o relho e se engraçou/A nega em vez de deitar/pegou um pau e sampou/nas
guampas do sinhô/ Essa nega Fulô!” (SILVEIRA, 1988, p. 56-57).
É importante a releitura desses textos nas escolas para que os adolescentes, jovens,
adultos e idosos, negros e negras, indígenas, quilombolas, sujeitos do campo e da cidade,
tenham a oportunidade de perceber a escola também como um espaço de
construção/reconstrução de suas autoimagens de modo positivo e afirmativo. É preciso
ensinar literatura sob um viés político, como uma arte que pode tensionar importantes
situações culturais, sociais, históricas e identitárias. A literatura, como todo o processo
educativo, é política. A quem interessa o ensino de uma literatura que não se proponha
política? Neste sentido, torna-se imprescindível a leitura de escritores da literatura negra, por
exemplo, os quais, numa estratégia subversiva, rasuram quaisquer discursos que ponham as
pessoas negras em condição de passividade, subalternidade, dentre outras situações.
Os homens e, sobretudo, as mulheres negras nunca permaneceram passivos a
quaisquer processos de cerceamento da liberdade, às violências impostas aos seus corpos.
Maria Firmina dos Reis, por exemplo, uma mulher negra que, num contexto racista, apoiado
pelo cientificismo, e segregacionista, como fora o século XIX, mormente, tornou-se escritora
ainda que com um tímido e tardio reconhecimento. Estas estratégias de resistência são
objetos de análises de muitos escritores, há algum tempo.
Ainda no que concerne ao caráter político implicado no ato de produzir literatura, é
válido ler os versos da escritora baiana Alessandra Sampaio:
Relutância
Para Isaías Silva de Jesus
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Aquele emprego esperado
Com sabor de liberdade
Veio acompanhado de tesoura
Pra cortar o teu brilho
Sufocar meu suspiro
Ao tocar o teu black
Que há tempos admiro
(SAMPAIO, 2016, p.32)
Em “Relutância”, a poetisa permite ao leitor o contato com um eu poético que
denuncia as violências social, cultural, identitária, mas também históricas vivenciadas por
muitas pessoas negras. Como é possível perceber nos versos acima dispostos, há, no poema,
uma voz que reclama o fato de um sujeito negro ter tido de cortar seus cabelos crespos, pois
estes o retiravam do perfil para uma vaga de emprego. Que perfis são estes? Quem os define?
Sob quais perspectivas, sobretudo ideológicas, estes perfis são delineados? Essas são algumas
das inquietações provocadas pelo texto de Alessandra Sampaio, as quais favorecem -, além de
uma compreensão de que a literatura é produzida em diálogo com as experiências humanas,
com o que de mais intenso nessas experiências, outros questionamentos, tais como: Que
literatura priorizar nas escolas? E em contextos de Educação do campo, os quais, segundo
Arroyo (2009), dentre outros pesquisadores, surgem na contramão de um modelo hegemônico
de educação que oprime, escraviza e nega os modos de vida dos sujeitos do campo?
Ensino de Literatura
Que é mesmo ensinar literatura? Trata-se da capacidade de apresentar aos estudantes
um arsenal de textos e autores escolhidos por instâncias sociais legitimadoras das
consideradas grandes produções literárias, como as escolas e as universidades? Mas que
noções de literatura essas instituições defendem? Uma literatura como espaço de criação, de
inversões de ordens instituídas, de potencialização de ideias, independentemente de seus
suportes ou modos de criação, oral ou escrita, por exemplo? Em quais perspectivas de arte
literária essas noções encontram ancoragem?
Em Platão, por exemplo, a arte literária fora concebida como espaço de modalização
dos sujeitos, como instrumento corruptível, que não deve existir fora da moral. Em diálogo
com Aristóteles sobre a constituição de sua República, Platão sugere a destruição de alguns
trechos da Odisseia, de Homero, por considerá-los perigosos aos homens, como se pode
observar no trecho a seguir:
No tocante a estas passagens e a todas as outras do mesmo gênero,
solicitaremos a Homero e aos outros poetas que não levem a mal se as
destruirmos; não que lhes falte poesia e não lisonjeiem o ouvido da maioria,
mas, quanto mais poéticas, menos convém à audição de crianças e homens
que devem ser livres e temer a escravidão mais do que a morte.
(GUINSBURG, 2014, p. 98-99).
A proposta de Platão é recebida sem embates pelo filósofo Aristóteles, que diz:
- Tens perfeita razão. Portanto cumpre também rejeitar todos os nomes
terríveis e apavorantes relativos a tais assuntos: os de Cocito, de Estige, dos
habitantes dos infernos e outros do mesmo gênero que põem a tremer quem
os escuta. (GUINSBURG, 2014, p. 99).
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Os diálogos estabelecidos por esses filósofos consagrados pela filosofia ocidental,
sem dúvidas, contribuíram para a grande tensão criada em torno da ideia de literatura. Quando
Platão, insistentemente, em seu discurso - como se pode perceber, sobretudo no livro III da
obra A República - faz questão de definir como a arte deve se comportar na sociedade, quem
deve apreciá-la ou para quem ou não ela deve ser produzida, a noção de literatura que ali se
percebe é a de um espaço de verdades incontestáveis, de cópia fiel da realidade, e não de uma
arte que se propõe à plurissignificação das ideias e que, portanto, deve manifestar-se de
modos diversos em diferentes sujeitos e contextos socioculturais.
É inegável a necessidade de considerar que essas concepções foram estabelecidas num
tempo em que ainda não se reconhecia o Sujeito histórico no processo de construção do
conhecimento. Isto parece ter tido início com Aristóteles, quando este, em discussão sobre a
mímesis antiga, como apontado por Lima (2000), admite que ela possa provocar dor e prazer;
a oportunidade de uma experiência ao receptor. “A mímesis Aristotélica ensina algo que a
ciência dos primeiros princípios, a obra em que ela mais se empenharia, não se permitia
ensinar: que é preciso saber viver sobre a dupla via, e não sobre a via única da verdade
alcançada pelo pensamento” (LIMA, 2000, p. 33).
Todavia, apesar de situar um discurso aparentemente relacionado a uma proposta de
defesa da autonomia da Arte, não fora esta a proposta de Aristóteles, que, para ele, a noção
de metáfora, por exemplo, ainda aparecia bastante ligada à busca da verdade; portanto
limitada. Sobre essa questão, Lima (2000) observa, cuidadosamente salientado que se trata de
uma ideia meramente especulativa, que: “Não é pois que Aristóteles de algum modo
antecipasse o princípio da autonomia da arte. O que julgamos sua intuição parecia meta bem
diversa: habilitar o cidadão para o enredo da vida”. Então, como se pôde perceber, o Sujeito
da experiência ainda não é considerado no processo de construção do conhecimento neste
percurso da filosofia ocidental.
Essa questão, inclusive, fora objeto de análise feita por muitos filósofos, mormente
aqueles ligados à filosofia da linguagem, como Foucault, Deleuze, entre outros. Em as
“Palavras e as coisas”, por exemplo, Foucault problematiza tal ideia, quando admite que,
embora tenhamos tido acesso a grandes produções literárias, como as obras de Homero, a
noção de literatura, de fato, corresponde a uma criação da modernidade, surgindo,
especialmente, a partir do século XIX, momento em que o sujeito histórico começa a ser
considerando na análise da construção de conhecimentos.
Finalmente, a última das compensações ao nivelamento da linguagem, a
mais importante, a mais inesperada também, é o aparecimento da literatura.
Da literatura como tal, pois, desde Dante, desde Homero, existiu realmente,
no mundo ocidental, uma forma de linguagem que nós, agora, denominamos
“literatura”. Mas a palavra é de recente data, como recente é também em
nossa cultura o isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade
própria é ser literária”. É que, no início do século XIX, na época em que a
linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a
parte, atravessar por um saber, ela se reconstituía alhures, sob uma forma
independente, de difícil acesso, dobrada sobre o enigma de seu nascimento e
inteiramente referida ao ato puro de escrever. [...] Da revolta romântica
contra um discurso imobilizado na sua cerimônia até a descoberta, por
Mallarmé, da palavra em seu poder impotente, vê-se bem qual foi, no século
XIX, a função da literatura em relação ao modo de ser moderno da
linguagem (FOUCAULT, 2000, p.306).
A partir da inserção deste considerado sujeito histórico, a literatura começa a ser
pensada como espaço móvel, múltiplo, que vai refletir também as experiências das
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comunidades, suas subjetividades, sem um necessário compromisso com a produção de
verdades. Em consonância com essas reflexões, Foucault diz ainda que a literatura
destaca-se de todos os valores que podiam, na idade clássica, fazê-la
circular (o gosto, o prazer, o natural, o verdadeiro) e faz nascer, no seu
próprio espaço, tudo o que pode assegurar-lhe a denegação lúdica (o
escandaloso, o feio, o impossível); rompe com toda definição de
“gêneros” como formas ajustadas a uma ordem de representações e
torna-se pura e simples manifestação de uma linguagem que tem
por lei afirmar contra todos os outros discursos sua existência
abrupta; nessas condições, não lhe resta senão recurvar-se num
perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por
conteúdo senão dizer sua própria forma: endereça-se a si como
subjetividade escriturante, ou busca capturar, no movimento que a faz
nascer, a essência de toda literatura (FOUCAULT, 2000, p.306).
A verdade pode até ocupar o espaço da literatura, mas não é o propósito desta arte
“defendê-la”, encerrá-la, “dizê-la”. A leitura literária, neste sentido, ficará a critério do
sujeito, deste sujeito histórico de que Foucault nos falou, que a lerá sob diferentes
perspectivas, a partir de seus distintos contextos sociais, culturais, identitários e históricos.
Nesta perspectiva, ao tempo que parece negativa a preocupação apontada por Platão e
Aristóteles no que concerne aos efeitos que a leitura literária pode causar, é possível dizer que
ela indica a possibilidade de pensar na potência criativa impressa na ideia de arte,
especialmente da arte literária, admitindo, inclusive, ou quem sabe a exigindo, uma
redefinição do termo literatura.
Em discussão sobre a potência criadora impressa na literatura oral, por exemplo, no
texto “A letra e a voz”, Zumthor (1993) afirma que nos rastros dos anos 50 do século XX
houve grandes conflitos entre pesquisadores, visto que a ideia de poesia oral exigia uma
redefinição do termo literatura. As poéticas orais obrigam um descentramento da ideia de
literatura por romper com o grafocentrismo, com a noção de literatura ligada apenas ao
impresso, passando a considerar os modos de criação que surgem das experiências dos
sujeitos, do seu cotidiano, das suas estratégias de interação com o mundo e de reflexão
criativa sobre a vida. Todo este movimento é resultante da ruptura com um conceito de
literatura impresso pela filosofia ocidental, que quase desconsidera as experiências dos
sujeitos, como se viu em Platão e Aristóteles.
Esta nova concepção de literatura favorece o ensino dessa arte em diversos contextos,
de modo a valorizar e interagir com as experiências dos sujeitos, dos seus destinatários. Em
relação ao ensino de literatura na Educação do campo, por exemplo, é possível considerá-lo
como um ato político, conforme mencionado neste trabalho. Como uma ação de
compromisso com causas, com a construção de redes de solidariedade, como é possível dizer,
por exemplo, das literaturas produzidas por mulheres negras, como Conceição Evaristo, Mel
Adún, Alessandra Sampaio, dentre tantas outras.
As produções dessas autoras são subversivas, na medida em que partem de reflexões
propostas por mulheres, numa sociedade machista e patriarcalista, em que à mulher quase
sempre fora negado o direito à produção, sobretudo intelectual; e de mulheres negras, numa
sociedade ainda marcada pelo racismo.
No texto “Eu não vou mais lavar os pratos”:
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
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Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar. [...]
(SOBRAL, 2013, s.p.)
Percebe-se, nos versos desenhados e potentemente ilustrados pelo eu poético, um ato
de libertação da opressão, que deve ser experienciado por muitas mulheres, sobretudo. Trata-
se de uma poesia comprometida com um coletivo, que possibilita a percepção de várias vozes,
as quais, de modo subversivo, exigem a inversão das ordens estabelecidas, balançando as
estruturas sociais, reclamando por relações respeitosas. Se à mulher, principalmente à mulher
negra, historicamente fora imposta a condição de subalternidade e opressão, a poética de
Sobral (2013) reitera que essa condição nunca fora, tampouco será aceita por estas pessoas:
“Eu não vou mais lavar os pratos/ Nem vou limpar a poeira dos móveis/Sinto muito. Comecei
a ler [...]”. O direito de estudar; de decidir sobre suas próprias ações, tudo isso é reivindicado
pelo eu poético.
É sob esta perspectiva que a literatura precisa ser ensinada nas escolas. Uma literatura
que dialogue com as experiências dos sujeitos. Que possibilite mudanças em seus modos de
autorrepresentar-se. A literatura como um ato político. É importante salientar que a mesma
produção literária que fora utilizada para criar representações negativas e estereotipadas em
relação à mulher negra, por exemplo, como muitos dos textos que marcaram o culo XIX,
pode ser utilizada como instrumento de reescrita dessas representações, sob outras lentes,
como se viu no texto do poeta Oliveira Silveira.
Conforme preconizado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a linguagem dá ao
sujeito tanto a sua origem quanto o seu lugar próprio, o que permite inferir que um dos erros
da metafísica ocidental consiste em desconsiderar as experiências vividas pelos sujeitos a
partir da linguagem nas mais diversas esferas sociais. Ainda segundo esse pesquisador,
É nessa separação entre ciência e experiência que devemos perceber o
sentido, nada abstrato, mas extremamente concreto, das disputas que
dividiram os intérpretes do aristotelismo da antiguidade tardia e medieval a
propósito da unidade e da separação do intelecto e sua comunicação com os
sujeitos da experiência (AGAMBEN, 2005, p. 27).
Tais considerações feitas pelo autor, pautadas numa perspectiva rizomática de
construção do conhecimento, que desierarquiza sua produção, valorizando seus diferentes
moldes e diálogos com diversas culturas, grupos sociais, enfim, os variados contextos,
permitem o questionamento das práticas de ensino, especialmente nas escolas.
Em “O que é uma literatura menor”, Deleuze e Guattari discorrem sobre o modo que
Kafka, grande escritor judeu, trata da expressão literária. Destacando o lugar sociocultural - o
de judeu - ocupado por Kafka enquanto escritor de literatura, vivendo numa sociedade alemã,
os pesquisadores acreditam que o problema levantado por ele em relação à dificuldade de
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reconhecimento de uma produção literária num contexto de soberania alemã não surge de
modo abstrato ou universal, mas sim experiencial.
Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua
que uma minoria constrói numa língua maior. E a primeira característica é
que a língua, de qualquer modo, é afetada por um forte coeficiente de
desterritorialização. Kafka, nesse sentido, define o impasse que impede o
acesso à escrita dos judeus de Praga e faz da literatura algo impossível;
impossibilidade de não escrever; impossibilidade de escrever em alemão,
impossibilidade de escrever de outra maneira (DELEUZE E GUATTARI,
2014, p. 38).
Ao referir-se à expressão “Literatura menor”, para dizer das produções elaboradas por
judeus em Varsóvia ou em Praga, Deleuze e Guattari (2014) afirmam que tal literatura é
política, é coletiva; apresenta-se como se trouxesse um eu-mobilizador, que fala por si e pelos
outros, que trata, no caso de Kafka, do sentimento da desterritorialização, uma luta coletiva. A
literatura se define, portanto, como espaço de experienciação; como uma máquina de guerra,
em sentido Deleuzeano.
Mas como tratar de uma literatura que dialoga com a experiência, de uma literatura
que é eminentemente política, se o currículo escolar continua majoritariamente preso a uma
concepção de produção literária ligada à metafísica do ocidente, como à filosófica de Platão,
por exemplo? Vale destacar que, ao discutir o simulacro como uma cópia imperfeita, Platão
exclui a possibilidade de autonomia da arte, e a considera como instrumento a serviço de uma
ordem social.
A formação leitora dos sujeitos, sobretudo a formação do leitor de literatura, precisa
ser pensada em seu estreitamento com a cultura das diferentes comunidades, valorizando
todos os modos de manifestação literária, seja oral-escrita, como a poesia de cordel, oral,
apenas, ou escrita. Para tanto, é necessário investigar de que modo as escolas têm olhado para
tal diversidade e que diálogos têm sido estabelecidos para a construção do conhecimento num
entrecruzamento com a cultura, que, no caso específico deste artigo, tem a ver com os saberes
que constituem os grupos sociais do Campo e sua quase negação pela escola.
Pesquisar sobre os processos interativos ocorrentes entre os modos de vida das
comunidades do campo, o ensino e a aprendizagem escolares corresponde a uma estratégia de
compreensão das múltiplas identidades dos campesinos, seus diferentes modos de ser, fazer e
conhecer, mas também sobre os estereótipos sociais construídos em torno destes, devido a um
modelo civilizatório bastante violento e suas interferências na sociedade que se forma.
Educação do campo
O termo educação Do Campo, e não Educação No Campo, surge em contraposição a
uma ideia de educação pensada para contextos rurais, mas reprodutora de modelos
urbanocêntricos, que excluem o diálogo com as identidades e modos de vida dos sujeitos do
campo. O espaço do Campo, de acordo com Arroyo (2003), é constituído de uma potência
identitária, ou seja, de sujeitos que possuem um perfil diverso: “trabalhadores, camponeses,
mulheres, negros, povos indígenas, jovens, sem-teto... Sujeitos coletivos históricos, se
mexendo, incomodando, resistindo. Em movimento” (ARROYO, 2003, p.33), a qual nega e
repulsa quaisquer propostas de ensino e aprendizagem que se mostrem homogêneas e
hierarquizantes.
Uma proposta de Educação do campo exige a ultrapassagem dos limites da escola
formal, como também a luta pela garantia de políticas públicas e por uma identidade própria à
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educação e às escolas do campo, favorecendo as condições de cidadania e possível melhoria
das condições de vida aos milhares de brasileiros e brasileiras que vivem no campo
(BASÍLIA, 2002, p. 11). A ideia de cidadania, neste contexto, ao contrário de refletir uma
perspectiva de atendimento ou reprodução de modelos sociais, diz respeito à promoção da
participação social das comunidades campesinas, as quais devem protagonizar, ou seja, viver
como sujeitos de suas próprias histórias, refletindo sobre as práticas escolares a partir de seus
próprios lugares, espaços e territórios.
A história da educação formal, no Brasil, é marcada pela instituição de modelos
sociais que quase nada dialogam com as identidades, culturas e modos de vida, sobretudo dos
povos do campo. Brasília (2002, p. 11) aponta ainda para os resultados de uma Conferência
Nacional “Por uma Educação Básica do básica do campo”, realizada em Luziânia - Goiás, em
que foram afirmadas a existência do campo e a legitimidade das lutas pela instituição de
políticas públicas específicas e por um projeto educativo próprio para quem vive nele.
No campo estão milhões de brasileiros e brasileiras, da infância até a terceira idade,
que vivem e trabalham no campo, como: pequenos agricultores, quilombolas, indígenas,
pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, lavradores,
sem-terra, entre outros. Apesar de o reconhecimento dessa potencialidade identitária que
caracteriza as comunidades do campo, “Há currículos deslocados das necessidades e das
questões do campo e dos interesses dos seus sujeitos. [...] Crianças e jovens têm o direito de
aprender da sabedoria dos seus antepassados e de produzir novos conhecimentos para
permanecer no campo” (BRASÍLIA, 2002, p. 17).
A discussão sobre o ensino de literatura neste contexto surge como estratégias de se
pensar na leitura e produção literárias, nas escolas, como um ato político, de luta contra
processos de desterritorialização, de violências identitária e cultural, de reflexão sobre a vida,
como sugerido por Deleuze e Guatarri.
Conforme analisado por Cosson (2009, p. 17), “Na leitura e na escritura de um texto
literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A
literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós
mesmos. A reflexão proposta por esse autor, bem como todo o percurso teórico traçado neste
trabalho, contribuem para reafirmar a ideia de que o ensino de literatura, assim como
quaisquer práticas de ensino e aprendizagem precisa ocorrer em diálogo com as experiências
dos diferentes sujeitos.
Considerações finais
As análises feitas no decorrer deste texto permitem compreender a complexidade que
cerca a definição do currículo escolar e a violência que se impõe quando o fazemos sem
considerar as potencialidades social, cultural, histórica e identitária que constituem as
comunidades a que estas propostas se destinam. O que ensinar? Como ensinar? A quem
ensinar? Esses questionamentos devem ser feitos por quem se propõe a mediar conhecimentos
em contextos escolares, sobretudo se se concebe a escola como espaço de formação de
sujeitos sociais.
Consoante ao que se viu nas ideias de Arroyo, as identidades e modos de vida dos
diferentes sujeitos sociais impõem a necessidade de revisão ou reformulação das práticas
pedagógicas e dos currículos escolares. No Campo, não cabe a reprodução de um modelo
“civilizatório” de ensino de leitura literária, por exemplo, pois isto não favorecerá o
protagonismo dos sujeitos. A literatura, como apontado por Deleuze e Guatarri, pode
configurar-se em um ato político, assim como deve ser o processo educativo. Mas ela terá
este sentido, funcionará como uma “máquina de guerra” em sentido Deleuzeano, se for
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pensada em diálogo com as experiências de seus leitores. De seus ouvintes. De seus
interlocutores, no campo ou na cidade, em diferentes espaços e territórios.
Em contato com as produções de grandes escritores e escritoras da literatura negra,
como Oliveira Silveira, Cristiane Sobral, Alessandra Sampaio, dentre tantos outros/outras que
não caberiam em um único artigo, pode-se perceber as possibilidades de trabalho com a
literatura, na escola, como um ato político, como estratégia de luta e de inversão de ordens
sociais, culturais e históricas. Neste sentido, este trabalho configura-se em um convite à
reflexão sobre que literatura ensinar em contextos socioculturais tão diversos, como no Brasil,
por exemplo.
Referências
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[Recebido: 01 out. 2019 – Aceito: 22 jan. 2020]
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POESIA: EMOÇÃO E CONHECIMENTO
POETRY: EMOTION AND KNOWLEDGE
Elisângela Maria Ozório (SEDUC-SP)
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Resumo: Pensar a educação pelo sensível incentiva a pensar sobre a poesia e sua capacidade de
despertar emoções que atingem a razão. O presente artigo pretende refletir como a linguagem da
poesia apresenta uma voz que recria o mundo de maneira que o leitor o sinta, tornando-o seu próprio
mundo. Para isso, busca-se na catarse segundo o filósofo Aristóteles (2004), a fonte de conhecimento e
de prazer que a poesia excita, ao passo que, em Paul Zumthor (2007), observa-se a presença de uma
voz poética que estabelece um vínculo com o eu-leitor. O vínculo entre o eu lírico expresso na voz
poética com o eu-leitor provoca uma nova forma de ver o mundo, a partir de um novo conhecimento.
O poema “Um corpo sobre a areia”, de Leonardo Tonus (2018), concede meios de perceber como a
voz poética passa a ser a voz do eu-leitor que a vivencia e incorpora, desenvolvendo pela emoção
recém-sentida um novo olhar sobre o mundo contemporâneo, analisado aqui como o submundo. Além
disso, o artigo trata rapidamente sobre a alteridade e sobre a intertextualidade em Leonardo Tonus
(2018).
Palavras-Chave: Poesia. Voz. Conhecimento.
Abstract: Thinking education by the sensible encourages thinking about poetry and its ability to
arouse emotions that reach the reason. This article aims to reflect how the language of poetry presents
a voice that recreates the world in such a way that the reader fells it, making it his own world.
According to the philosopher Aristóteles (2004), catharsis is the source of knowledge and the pleisure
poetry excites, whereas in Paul Zumthor (2007), there is the presence of a poetic voice that establishes
a bond with self reader. The link between the lyrical self expressed in the poetic voice and self reader
provokes a new form of seeing the world, from a new knownledge. The poem “Um corpo sobre a
areia”, by Leonardo Tonus (2018), provides ways of understading how the poetic voice becomes self
reader voice who experiences and incorporates it, developing a new look by the newly felt emotion the
contemporary world, analized here as the underworld. Besides that, the article briefly deals about the
alterity and the intertextuality in Leonardo Tonus (2018).
Keywords: Poetry. Voice. Knowledge
A poesia corresponde a uma arte que resgata a liberdade da criação, da emoção e do
conhecimento, sendo que tal liberdade a transforma em uma linguagem que pode transitar por
todas as outras manifestações artísticas, o que suscita a afirmação de Décio Pignatari: “A
poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura”
(PIGNATARI, 1981, p. 01). De acordo com o poeta e crítico literário, a poesia não pertence a
nenhuma arte específica, mesmo que seja estudada na literatura, porque, ao final, pertence a
todas elas; o que gera o risco de afirmar que a poesia é em si uma arte específica, posto que
sua capacidade de representação provoca e produz uma espécie de conhecimento do outro e
da própria identidade. Em outras palavras, a poesia consiste em uma arte de representação,
cuja palavra emitida se transforma em matéria concreta e palpável para o leitor que a “lê”
inicialmente por meio das emoções, mas que, posteriormente, atinge o conhecimento. O
33
Doutorado em Letras/ Teoria Literária (UNESP/2018), integra o Grupo de Pesquisa Estudos da Poética:
Interconexões Diacrônico-Sincrônicas na Poesia Brasileira e Portuguesa (PUC/SP). Professora de Educação
Básica II - Português do Secretaria de Educação do Estado de São Paulo , Brasil
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diálogo do leitor com a leitura de poesia leva em conta que um dos traços de liberdade desta
arte implica tanto a leitura silenciosa de um texto escrito, como a leitura de uma audição de
uma canção. Paul Zumthor, crítico que pesquisava a canção e sua condição de recepção plena
pelo corpo que a ouve, explica que não existe realmente uma leitura silenciosa e muda, ainda
que o leitor se encontre isolado em um cômodo, visto que toda leitura pressupõe uma voz
presente no texto:
Na leitura, essa presença [presença corporal do ouvinte e do leitor] é, por
assim dizer, colocada entre parênteses; mas subsiste uma presença invisível,
que é a manifestação de um outro, muito forte para que minha adesão a essa
voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto
de minhas energias corporais. Entre o consumo, se empregar essa palavra, de
um texto poético escrito e de um texto transmitido oralmente, a diferença
reside na intensidade da presença (ZUMTHOR, 2007, p. 68-69).
Paul Zumthor desenvolveu um trabalho sobre a poesia oralizada e vocalizada, em que
a presença da voz poética se torna mais sensível e concreta devido à presença do canto. Desse
modo, a poesia cantada localiza-se em uma esfera de altíssima qualidade, porque o leitor-
ouvinte recebe a mensagem da canção no tempo agora e no espaço aqui concomitante e de
forma plena. A isso o crítico chamou de performance e, por causa disso, explica que poesia
escrita também tem um lado performático, um tanto mais atenuado, porquanto a ausência da
voz cantada enfraquece a voz poética. Todavia, atenuada, a voz poética permanece lá, no
texto escrito, juntamente com a performance: a recepção da mensagem poética. Logo, a voz
do texto, a voz poética, configura-se no caminho da vivência e da experiência do mundo
literário-poético, porque é esta voz que permite que a palavra antes tirada das relações
comunicativas cotidianas agora se transforme em matéria e/ou objeto concreto de experiência,
uma chance de conhecer o mundo ou o universo possíveis, sendo que tal conhecimento condiz
com uma espécie de outro que complementa a si mesmo. A voz poética figura, dessa maneira,
no outro e no eu. Para compreender melhor essa proposição, lembrar-sede uma citação de
Mikhail Bakhtin (2006) acerca da construção da identidade da personagem. Segundo o
teórico, a identidade constrói-se a partir da presença de um outro, que é no outro que o eu
encontra parâmetros para a definição e a delimitação de si:
Partindo de si mesmo, sem nenhuma mediação do outro que ama, o homem
nunca conseguiria falar a seu próprio respeito na forma e nos tons
hipocorísticos, em todo caso estes não exprimiriam, de modo algum, o
efetivo tom volitivo-emocional do meu autovivenciamento, da minha relação
interior imediata comigo mesmo, seriam esteticamente falsos: é de dentro de
mim que eu menos vivencio a minha “cabecinha” ou a minha “mãozinha”,
mais propriamente a “cabeça”, eu ajo precisamente com a “mão”. Na forma
hipocorística só posso falar de mim em relação ao outro, exprimindo através
dela a atitude real desejada do outro para comigo (BAKHTIN, 2006, p. 47).
Apesar de Bakhtin explorar a identidade da personagem no romance, ajuda a
compreender a questão da alteridade como um fator essencial na formação do eu, posto que a
identidade precisa de uma fonte de comparação para existir, isto é, o modo pelo qual o eu se
conhece decorre através do olhar do outro, porque, por meio do olhar alheio, capta-se o
verdadeiro eu. O eu depende do outro, porque necessita de um modelo do qual estabeleça
padrões de comparação. Não interessa, neste artigo, se os padrões sofrem valores de
julgamento do outro, e sim que, a partir de quem é o outro e de como a imagem do eu é
projetada em seu olhar que é possível construir a identidade e a percepção da existência. As
ideias de Mikhail Bakhtin (2007) permitem que, ao pensar na poesia a relação do outro e do
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eu, a sustentação de dois movimentos: a voz da poesia configura-se no outro, ao passo que
o mundo que recria fundamenta-se na alteridade da voz poética. Ambos movimentos
culminam na vivência do leitor que se dá por meio da poesia.
A alteridade não será amplamente tratada como foco do artigo, mesmo que se façam
referências a sua presença iminente no trabalho de um poema, porque ela auxilia a entender
como se constrói o conhecimento que se origina da leitura de poesia. O artigo objetiva a
observação de como a voz da poesia corresponde a um tipo de conhecimento. Para isso, deve-
se lembrar o filósofo da Grécia Antiga Aristóteles (2004), no livro Poética. Apesar de ser uma
leitura um tanto defasada, porque o livro analisa a literatura durante o seu tempo, Aristóteles
chama a atenção para a capacidade de purificação das emoções que a linguagem da poesia
desperta:
Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais.
Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos
outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela
imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos
sentem prazer nas imitações. Uma prova disso é o que acontece na realidade:
as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando
as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as
reproduções dos mais repugnantes animais e cadáveres. A razão disto é
também que aprender não é agradável para os filósofos mas é-o
igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa
aprendizagem em menor escala. É que eles, quando veem as imagens,
gostam dessa imitação, pois acontece que, vendo, aprendem e deduzem o
que representa cada uma, por exemplo, “este é aquele assim e assim”.
Quando, por acaso, não se viu anteriormente o objeto representado, não é a
imitação que causa prazer, mas sim a execução, a cor ou qualquer outro
motivo do género (ARISTÓTELES, 2004, p. 42-43).
A arte parte da imitação, contudo, a imitação não significa uma cópia exata dos
objetos da realidade. Na verdade, a imitação artística copia o que poderia se constituir numa
realidade, daí termos um real criado e representado. Desse modo, a poesia acompanha a
criação de um real, fazendo imitações que despertam um certo prazer advindo da emoção
sentida; logo a leitura de uma poesia conduz à experimentação da emoção representada, em
que o leitor vive a imitação e o prazer despertado por ela, resultando na liberação de energias
emocionais e provocando a catarse. A catarse, segundo Aristóteles, não finda na liberação das
energias emocionais, e sim no conhecimento e no aprendizado que ela instigou. Ao sentir o
representado, o leitor começa a conhecer a si mesmo, a construir e a compreender a própria
identidade. Verifica-se que, apesar de não se nutrir a problemática da alteridade no artigo,
as reflexões recaem sobre ela, porque o eu-leitor vive a experiência do outro que é a
representação contida no poema. A alteridade compõe-se de uma fonte de catarse, de
aprendizado e de conhecimento que falta ao eu-leitor.
“Um corpo sobre a areia”: voz poética e conhecimento
O caminho para alcançar a catarse aristotélica acontece pela voz poética que fala o que
sente e o que o eu-leitor gostaria de ouvir. O Professor Doutor Leonardo Tonus (2018), na
obra Agora vai ser assim, explora a voz da poesia que representa mundos e submundos da
atualidade. A obra apresenta uma poética que representa o mundo marginalizado e
aparentemente antipoético, porque falta-lhe o belo que tanto se cogita ser elemento
fundamental para o poema. A voz poética desenvolvida por Leonardo Tonus (2018) capta o
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cotidiano das classes sociais que se encontram entrincheiradas ora por convenções sociais, ora
por preconceitos, além de que essa captação é transmitida por uma voz poética seca, quase
desnudada de metáforas, com um vocabulário direto e sem volteios, mas que, ao mesmo
tempo, lamenta a realidade ao representar o mundo, o seu submundo. O poema “Um corpo
sobre a areia” (2018) exemplifica claramente essas questões. Antes, todavia, de adentrar o
poema, salienta-se que o vocábulo submundo dito indica a sociedade marginalizada, que não
usufrui das riquezas ou que se encontra na ilusão de que sua comunidade está desprovida de
problemas econômicos, morais ou éticos. Retornando ao texto de Leonardo Tonus (2018),
lemos uma voz poética que parte de duas ações opostas que se defrontam e formam um todo:
a negação e a não aceitação. A ação de negar surge de maneira mais nítida, porque a voz do
eu lírico já determina de chofre o que deveria ser e o que não deveria ser belo e, por
conseguinte, a cogitação do material poético:
Não há poesia no estupro.
Não há poesia no racismo.
No feminicídio não há poesia.
A faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca.
Em seu caminho de lâmina. Em sua função de faca (TONUS, 2018, p. 14).
O advérbio de negação “não” perpassa o poema e indica o conceito antiquado de
poesia como uma arte do belo; subentendendo-se que a arte da poesia não reconheceria o feio,
o chocante e a violência como temas. Em contrapartida, se o feio e a violência não integram a
poesia, por que estão no poema de Leonardo Tonus (2018)? A negação do belo passa a
admitir quaisquer tema, situação ou emoção como ideias da poesia. Na literatura moderna, o
belo fora questionado e rompido a partir do momento em que o poeta torna tudo elemento
passível de representação; isso é conferido no poema “Não vagas”, de Ferreira Gullar
(2004), em que o eu rico fala que o poema está fechado em si mesmo e não admite que as
crises econômicas e sociais, como a miséria e a fome, adentrem o universo artístico. Mas
Ferreira Gullar realiza justamente o contrário, porque representa a crise do cotidiano:
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão (GULLAR, 2004, p. 162).
Os problemas do cotidiano parecem não ser material de poesia, entretanto, ao
representar tais problemas, transformam-se em matéria artística. O ato de dizer o que não é
poesia e o que é salienta a ação de negação e não aceitação, porque, no poema de Ferreira
Gullar (2004), a negação acontece por meio da hipótese de que a arte não trataria do feio, ao
mesmo tempo que a não aceitação faz com que o feio seja poético. Entre Ferreira Gullar
(2004) e Leonardo Tonus (2018), ocorre uma aproximação das ações dos eus líricos que usam
sua voz para determinar que, no poema, vagas para a recriação do submundo, criticando a
imposição de um campo cerzido em uma arte tão libertária quanto a da poesia.
A poesia de Leonardo Tonus (2018) e de Ferreira Gullar (2004) concede um tipo de
educação que se realiza pela via da linguagem poética; porquanto conhecemos o submundo a
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partir da vivência que o olhar do eu lírico o desenha. O olhar do eu rico passa a ser o olhar
do eu, porque ele não através dos olhos do outro, nem por seu reflexo, e sim com o seu
olhar próprio, incorporando-os; assim como Mikhail Bakhtin (2007) teoriza sobre a criação da
identidade: o eu conhece-se, porque se vê no olhar do outro. O “ver-se” no olhar do outro não
corresponde a um mecanismo nem de atravessar, nem de se refletir, mas de incorporar a
imagem como se ela fosse do eu. Quando o eu lírico criado por Leonardo Tonus (2018) diz
que não beleza na violência, o eu-leitor enxerga, como o eu lírico, a própria violência: A
faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca”. Nesse verso, sente-se a lâmina cortar a
carne do corpo. Não se trata mais de uma mulher desconhecida, porque o leitor agora,
tomando o olhar do eu lírico, toma para si o corpo cortado. Desse modo, trata-se de que a
violência não consiste apenas de uma negação do material da poesia, porque consiste de uma
matéria sensível e capaz de aprendizado, porquanto a dor da mulher é a dor do eu lírico e é a
dor do eu, que é o leitor. Novamente verifica-se a citação do filósofo antigo Aristóteles sobre
a condição catártica da poesia, uma vez que a catarse não significa pura e simplesmente a
purgação de emoções, pois a catarse se refere à vivência de emoções que atingem o
aprendizado e, consequentemente, o conhecimento. A poesia de Tonus (2018) entrega ao
leitor justamente o conhecimento do mundo marginalizado, transformando o hipotético não
poético, o não belo, em palavra concreta para o leitor, que é o eu, aprender a ver. Conforme
Carlos Felipe Moisés (2007), a poesia ensina o leitor a ver, indiferentemente se o visto já fora
enxergado, pois ela ensina a ver de outra perspectiva, como se fosse a primeira vez: “O
excêntrico modo de ver, ensinado pela poesia, incita-nos a encarar o objeto (ou coisa ou ideia)
sobejamente visto, como se nunca o tivéssemos visto antes” (MOISÉS, 2007. p. 20).
A visão da poesia é ligada diretamente à sensação que ela provoca, a catarse; afinal o
leitor olha não como mais uma informação de casos de violência, e sim como a violência é, de
dentro dela, da faca que corta o corpo da mulher, da mulher que sente a lâmina, do negro que
é rechaçado por sua etnia. Tudo se transforma em corpo material e de sensibilização; pela
primeira vez, o leitor vê a violência.
O texto de Leonardo Tonus (2018) prossegue com o ritmo de desnudamento do real, o
que não é belo, nem poético, e, ainda assim, fazendo-se de poesia: Não poesia nos
genocídios”; “No refúgio não epifanias” (TONUS, 2018, p. 14). Todavia, aos poucos, a
voz lírica que, antes, havia dito aquilo que não é, o ato de negação, cede para uma voz que
afirma a sua identidade: “Eu perdi a voz/ ao sair” (TONUS, 2018, p. 14).
A perda da voz do eu lírico não se faz da ausência de voz, porque não se ausenta, se
presentifica em um tom de desesperança e de distopia, como ouvimos e lemos na voz poética
escrita e cantada pelo compositor-poeta Renato Russo, líder e intérprete da banda brasileira de
rock Legião Urbana. Renato Russo, no álbum A tempestade ou o livro dos dias (1996),
apresenta uma voz poética que representa a dualidade em constante diálogo de um real criado
na canção e do sonho do eu poético, sendo que, no caso do real, a imagem figura-se sempre
como a distopia, enquanto o sonho, como a utopia. Seu eu poético ainda transita por temas
sociais e existenciais que podem se debater e se chocar. Por ser canção poética, a voz da
poesia não se perde, com o eu lírico de Leonardo Tonus (2018), porque se encontra no texto
musical, o que lhe permite ganhar mais força de expressão. Em suma, o real em Renato Russo
é construído sobre a imagem da distopia, em que o caos, o feio, a desordem, a solidão, a
violência e a indiferença sobrepõem-se a tudo, restando um mundo em decadência. No poema
“Um corpo sobre a areia(TONUS, 2018, p. 14-15), observa-se a mesma ideia construtiva da
distopia conforme Renato Russo, pois o mundo não existe como uma unidade, porquanto
sobrevive de indivíduos marginalizados e violentados, posto que a mulher estuprada, o
negro discriminado, os mortos em massa, as pessoas traficadas, o corpo de uma criança
refugiada e encontrada morta na areia:
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Um corpo sobre a areia
que, entre meus dedos silenciosos,
escorrega
oco. (TONUS, 2018, p. 15)
É defronte ao mundo distópico, cuja criança morta, que remonta à foto de uma criança
afogada após fugir da crise econômica-social da Síria, em 2015, que o eu lírico perde a voz e
ganha a certeza de que se encontra solitário:
Não houve abraços na chegada.
Ninguém esperava por mim.
Ninguém me acudiu ao me perder
pelas ruas de uma cidade
que ainda não era cidade (TONUS, 2018, p. 14).
O eu lírico não encontra companheiros, ninguém vê seu sofrimento, ninguém o espera,
porque ninguém tem esperança, e, sem ela, o mundo torna-se o submundo, a distopia que
aparece na canção de Renato Russo. O verso “Ninguém esperava por mim” causa desconforto
e tristeza, posto que o pronome indefinido “ninguém” articulado com o verbo “esperar” cria o
abismo entre as pessoas. “Ninguém” mostra que o ser humano não se comporta com
humanidade. Sem o humano, sem a humanidade, o que sobre condiz com um espaço e um
tempo de distopia.
Diferentemente de Leonardo Tonus (2018), o verso “Ninguém esperava por mim”,
notado como o auge da distopia no texto, contrasta-se com a canção “Esperando por mim”
(1996), de Renato Russo, uma vez que, apesar de representar o real distópico, a canção
presenteia o leitor-ouvinte com a possível utopia, com a esperança, passíveis de realização:
E o que disserem
Meu pai sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Minha mãe sempre esteve
esperando por mim
E o que disserem
Meus verdadeiros amigos
sempre esperaram por mim
E o que disserem
Agora meu filho espera por mim
Estamos vivendo
E o que disserem
Os nossos dias serão para sempre (RUSSO, 1996).
No caso da canção, o tratamento temático fixa-se na problemática da existência,
porque o eu poético se apresenta como um ser doente, que se desgasta com a iminência da
morte e a única esperança atrela-se à certeza de que sua presença física neste mundo foi
aguardada e isso garantirá a eternidade de sua existência. Em Tonus (2018), a ausência da
espera provoca o fim da eternidade como o tempo utópico em Renato Russo; afinal, a certeza
do eu lírico de “Um corpo sobre a areia” consiste no isolamento e na solidão, ninguém tem
esperança, não há a projeção de um espaço de utopia.
Enquanto o eu poético de Renato Russo tem voz, porque esta não se suspende,
inscreve-se na presença da perenidade, na canção, a voz do eu lírico em Leonardo Tonus
(2018) perde-se e encontra o silêncio na grande cidade:
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Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Eu conheci o silêncio.
Eu me esqueci do silêncio (TONUS, 2018, p. 15).
A voz do eu lírico cede o som para que a cidade se torne o centro do poema: “Ela era
um plano./ Um traçado de planos que entre si formavam ângulos,/ paralelas e
perpendiculares”. Nessa cidade, as linhas retas e gélidas acentuam a ausência de empatia e a
presença da solidão. Na cidade que impossibilita a habitação de “um nome”, em que o eu
lírico perde a voz e ganha o silêncio, o eu-leitor também perde a identidade, porque, como
vimos em Mikhail Bakhtin (2007), a identidade existe somente a partir do outro; mas, no
poema, o outro está ausente, porquanto corresponde a um “ninguém”.
O eu lírico ganha o silêncio, mas é neste silêncio que a voz se sobressai, é retomada:
“Eu me esqueci do silêncio”; a poesia faz seu retorno às ações de negação, nega-se o silêncio,
e de não aceitação, não se aceita o silêncio. Negação e não aceitação compõem a poesia de
Leonardo Tonus (2018), porque, a partir disso, o texto começa a se realizar.
Últimas palavras
No início deste artigo, cogitou-se a poesia como uma arte libertária, que explora e
atinge o conhecimento que se efetua pela incorporação do leitor na voz do eu lírico. Tal voz
desperta e representa meios de se ver de maneira diferente e nova o mundo habitado.
Conforme Octavio Paz (1982), a poesia fornece o conhecimento, porque atua em diversas
áreas, de diversas formas, e pode partir de uma recriação de algo grandioso, como algo
pequeno, da alegria e da morte:
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este
mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à
viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular.
Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela
angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo,
conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente.
Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio
resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a
consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento,
emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo.
Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras;
criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da
Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do
paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão.
Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol
onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas
correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral,
exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos
escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e
minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta
todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é
uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda
obra humana! (PAZ, 1982, p. 15-16).
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A explicação de Octavio Paz (1982) permite compreender que a atuação da poesia é
livre, por isso, essa liberdade instiga uma forma de adquirir conhecimento proveniente da
experimentação e da sensação das emoções que levam à reflexão e à razão. Toda a forma de
conhecimento presente na poesia depende de uma voz poética, vinda do eu lírico, que se torna
capaz de transformar o escrito ou oral em objeto material e concreto para que o leitor ou
ouvinte possa incorporar e vê-lo com outros olhos. Não os olhos do eu lírico, nem os olhos do
leitor, mas sim os olhos unificados na nova percepção do mundo.
A poesia de Leonardo Tonus (2018), “Um corpo sobre a areia”, possibilita a vivência
do novo olhar, em que as violências cotidianas do mundo contemporâneo são recriadas por
um eu lírico que nega e não aceita os limites que a ideia falaciosa de alguns escritores da
poesia procuraram criar, tampouco aceita a realidade torpe daqueles que se encontram à
margem do sistema social. Vive-se o olhar crítico do eu lírico, perde-se a voz e, ao migrar
para o silêncio da cidade, redescobre-se a voz, uma voz inquieta, não mais do eu lírico, nem
do leitor, e sim uma voz unificada e nova que quebra o silêncio e diz ou “rediz” o que
incomoda, o que não aceita, a busca, no fim, de uma mudança.
A voz do eu lírico em Um corpo sobre a areia” (2018) articula-se com outro poeta,
como Ferreira Gullar (2004), e outro compositor-poeta, como Renato Russo (1996). Ambos
representam que a poesia, uma criação livre, corresponde à representação do submundo, o
mundo dos marginalizados. Seus eus líricos e poéticos vivem o submundo, experimentam a
cada abandono o tempo e o espaço distópico. Em Gullar (2004), o eu lírico recria as
dificuldades de um país em constante crise econômica. Em Renato Russo (1996), a espera da
morte e a certeza da brevidade apresentam um eu poético que busca a todo momento o alívio
da utopia que se faz na eternidade. Em Leonardo Tonus (2018), o eu lírico representa o
olheiro que registra o aspecto feio das cidades, uma realidade de abandono e de morte, que
não espera ninguém, nem o tempo da utopia.
O Professor Doutor Fernando Segolin, em aulas ministradas no Programa de Pós-
Graduação, nível mestrado, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre os anos
de 2009 e 2011, explicara que a poesia corresponde a um texto que provoca o conhecimento
sobre o outro e, consequentemente, ao conhecimento de si mesmo. A poesia, portanto,
preenche as lacunas que o ser humano sente, complementa-o, sua alteridade está vinculada
com a alteridade do outro. Assim, ao pensar sobre a poesia de Um corpo sobre a areia”
(2018) ou brevemente na poesia de Ferreira Gullar (2204), “Não vagas”, e na canção de
Renato Russo (1996), Esperando por mim” , constata-se que o “corpo sobre a areia” se
encontra diante do leitor, incomoda-o, despertando o desejo da revolta com o mundo. Em
contrapartida, o leitor é silenciado, porque o corpo “escorrega/oco” por seus dedos. O corpo
sobre a areia possibilita ao leitor aprender e conhecer o corpo que escapa, ao passo que este
corpo delimita sua existência silenciosa e solitária. A experiência do corpo alheio é o
reencontro com o próprio corpo. Tal reencontro consiste no conhecimento que o eu leitor
adquire sobre si e sobre o mundo. Nisso consiste a educação pelo sensível que a poesia
instiga: pelos olhos do outro, unidos aos olhos do leitor, a possibilidade de reviver o mundo
conhecido e agora renovado não cala o leitor, porque a sabedoria provoca a emoção e causa a
razão, assim como incentiva o ser humano a buscar a verdade e a mudança.
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Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Ana Maria Valente. Lisboa: Gulbenkian, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. 476 p.
GULLAR, Ferreira. Não há vagas. In: ___. Toda poesia. 12. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2004. p. 162.
MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São
Paulo: Escrituras, 2007. 143 p.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Tradução: Olga Savary. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1982. 368 p.
PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1981.121 p.
TONUS, Leonardo. Um corpo sobre a areia. In: ___. Agora vai se assim. São Paulo: Nós,
2018. p. 14-15.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 125 p.
Discografia
RUSSO, Renato. Esperando por mim. In: LEGIÃO URBANA. A tempestade ou o livro dos
dias. Manaus: EMI, 1996. 1 cd. Faixa 13. (4m 21s).
[Recebido: 30 set. 2019 Aceito: 21 jan. 2020]
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
SARAU E PERFORMANCE: A REDE LONDRIX E ESTRATÉGIAS DE INSERÇÃO
DO TEXTO
SOIREE AND PERFORMANCE: THE LONDRIX NETWORK AND ESTRATEGIES
OG INSERTION OF THE POETIC TEXT
Ana Cristina Pereira da Silva
34
Frederico Augusto Garcia Fernandes
35
Resumo: O artigo trata dos saraus e da performance enquanto estratégia de inserção da poesia
na literatura contemporânea. O objeto de análise da pesquisa é o “Sarau Artístico e Literário de
Cambé” que é um dos mais antigos saraus da região e conta com o registro de suas reuniões em atas.
Através dele, objetiva-se refletir acerca do impacto que esses eventos têm na produção literária local e
compreender como eles podem contribuir para a promoção do escritor e legitimação do processo
artístico enquanto espaço de divulgação, por meio da performance e das redes estabelecidas. Com base
nos estudos de Even-Zohar (1990), Aguilar e Cámara (2017), Leone (2014), Zumthor (2007), Tennina
(2013), Silva (2008), Fernandes (2017), Hollanda (2001) e Rancière (2009), a análise das atas e das
participações nos saraus propicia a constatação de que esses eventos permitem o compartilhamento de
novas formas de fazer poético, colaborando para a formação e fortalecimento da literatura londrinense,
a partir da rede Londrix. O estudo dos saraus contribui para que a teoria literária tome novos rumos de
análise na literatura contemporânea e possibilita pensar os mecanismos de produção e circulação
literária na atualidade.
Palavras-Chave: Literatura contemporânea. Sarau. Performance. Poesia oral. Produção Literária.
Abstract: This article deals with soirees and the performance in the contemporary literature. It is
focused on the “Sarau Artístico e Literário de Cambé” which is onde of the oldest soirees in the
region. Based on its minutes, we are discussing the impact of literary event on local literary
production, as well as following up to see now the poetic performance contribute for promoting
writers, legitimizing artistic processes, and setting literary networks. Authors as Even-Zohar (1990),
Aguilar e Cámara (2017), Leone (2014), Zumthor (2007), Tennina (2013), Silva (2008), Fernandes
(2017), Hollanda (2001) e Rancière (2009) were taken in consideration. The analyses of minutes and
the participant observation unfolded new ways of making poetry in Londrina, buy the establishment of
networks among writers and poets.
Keywords: Contemporary literature. Soiree. Performance. Oral poetry. Literary production.
34
Mestranda Programa de Pós-Graduação em Letras/ UEL Pesquisa Saraus literários em Londrina.
35
Doutor em Letras pela Unesp, com estágios de pós-doutorado no Canadá (Programa Visiting International
Scholar, da Brock University - 2008-2009), e na Itália (Estágio nior CAPES - Università di Bologna - 2014-
2015). Autor, tradutor e organizador de vários livros sobre teoria literária, com foco em poéticas orais e de
vanguardas. Pesquisador produtividade do CNPq. Professor da Universidade Estadual de Londrina Eleito em
junho de 2018 presidente da ANPOLL - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e
Linguística.
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019 119
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Introdução
A presente pesquisa tem como tema o “Sarau Artístico e Literário de Cambé”, a
partir da análise da performance como principal estratégia de inserção do texto poético.
A partir dos anos 90, a poesia se liberta da necessidade de filiações estéticas e a
produção poética se abre para uma multiplicidade de vozes. Heloisa Buarque de Hollanda
(2001, p. 13) afirma que passa-se a haver “uma confluência de linguagens, um emaranhado de
formas e temáticas sem estilos ou referências definidas”, o que acarreta em uma nova
configuração na edição e divulgação do texto poético, que passa a se realizar por meio do
regime de redes estabelecido na contemporaneidade.
Com o regime de redes, o singular se faz presente por meio do coletivo e a
constituição do coletivo se pela afetividade e identidade partilhada, o que garante
visibilidade para a poesia. (LEONE, 2014). Em Londrina e região, a produção literária se
constitui através do regime de redes, sendo o sarau um dos eventos em que o coletivo se
encontra e coloca em ação, por meio da performance, as singularidades afetivamente
marcadas, funcionando como estratégia de disseminação da poesia.
Londrix é marca de um coletivo que se caracteriza pelos trânsitos artísticos,
em que seus membros assumem múltiplos papéis. Torna-se um festival, cuja
importância é a operacionalização da rede, abrindo-a para o contato com
artistas de outros estados, sem deixar de promover poetas locais.
(FERNANDES, 2017, p. 111)
Sendo assim, objetiva-se por meio dessa pesquisa elencar os saraus que acontecem,
em Londrina e região, e mostrar de que forma eles se realizam, compreendendo como esses
eventos poéticos performáticos podem contribuir para a promoção do escritor e legitimação
do processo artístico, entendendo-o enquanto espaço de divulgação por meio da performance
e das redes estabelecidas. Busca-se também refletir a partir dos saraus, os mecanismos de
circulação e práticas performáticas do texto poético oral na atualidade, e seus impactos na
produção cultural na cidade de Londrina e região.
. Even-Zohar (1990) estabelece um diagrama baseado na estrutura jakobsoniana dos
elementos e funções da linguagem, apresentando os elementos do sistema literário e suas
funções, que permite pensar os saraus e a performance enquanto estratégia de inserção do
texto poético, uma vez que esse sistema é intrínseco ao sistema social, totalmente dinâmico,
constituído pelas ideologias literárias, editoras, críticos, grupos literários, agências
governamentais de fomento à cultura e à educação, instituições educacionais, a mídia, que
obedecem às regras do sistema cultural.
Com base nesse modelo teórico-analítico de Even-Zohar (1990) e nos estudos de
Aguilar e Cámara (2017), Leone (2014), Zumthor (2007), Tennina (2013), Silva (2008),
Fernandes (2017), Hollanda (2001) e Rancière (2009), o presente trabalho se dará por meio da
participação nos saraus realizados em Londrina e região, através da observação em um
primeiro momento, a fim de elencá-los, e no segundo momento a análise será feita tendo
como objeto de estudo o “Sarau Artístico e Literário de Cambé”. Esse sarau conta com
grandes fontes de registros que não se dão apenas por fotos ou vídeos, mas também por meio
do registro em ata de todas as reuniões. O “Sarau da Leonilda”, como é conhecido
popularmente, é um dos mais antigos da região e um dos que acontece com maior
regularidade, além dos registros importantíssimos feitos através das atas, motivos estes da
escolha desse evento como objeto de análise da pesquisa em tela.
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Os saraus da rede Londrix
O sarau é um evento em que pessoas se reúnem para falar sobre literatura e arte,
marcado por apresentações performáticas, que envolve o a declamação de poemas, mas
também apresentações musicais.
A palavra sarau tem sua origem na palavra latina serum e significa “tarde”, período
em que, de acordo com Tennina (2013), eram realizadas as reuniões que contemplavam
dança, música e literatura.
Desde o século XIX, a palavra sarau para designar esses encontros aparece em livros,
cartas, entre outros documentos que a registram como prática comum àquela época.
Até aproximadamente meados da década de 1920, o mundo do livro
brasileiro era restrito a um pequeno número de consumidores e os artistas
continuavam, como em épocas anteriores, sendo patrocinados por mecenas.
A publicação de livros nacionais era feita em tiragens restritas, com
financiamento do próprio escritor, e competiam com os livros estrangeiros
traduzidos no Brasil. Desde o final do século XIX, São Paulo, por exemplo,
o centro de produção brasileira, dispunha de melhores condições, mas
contava com poucas livrarias, tais como a Casa Eclética, a Empresa Literária
Fluminense, a Paulista, e a famosa Casa Garraux, além dos salões
organizados pela elite paulista. Estes, por sua vez, geralmente constituídos
por uma pessoa economicamente influente, funcionavam como lugar de
encontro para a oligarquia e os artistas desprovidos de recursos financeiros.
(SILVA, 2008, p. 187-188).
A limitação e relação entre literatura e mercado ocorria naquela época, conforme
nos coloca Silva (2008), os saraus surgem com o intuito de divulgação das obras e dos
artistas. Embora Tennina (2013) aponte esses eventos como forma de representação dupla
daquela época de divulgação e legitimação dos artistas e de exibição das posições de classe
por parte da elite eles foram extremamente importantes para a formação de uma identidade
literária brasileira e por trazer à arte um espírito genuinamente brasileiro.
\
O mais famoso e importante dos salões em São Paulo era o da Vila Kyrial,
ao que se sabe berço de “nascimento” da Semana de 22. Pertencente ao
gaúcho José de Freitas Valle, que foi para São Paulo estudar Direito, o salão
da Vila Kyrial era, no início do século, o ponto de encontro de muitos
artistas, políticos, jornalistas e escritores que freqüentemente se reuniam
para participar de saraus literários, audições musicais, banquetes e ciclos de
conferências. (SILVA, 2008, p. 188).
Os saraus desencadearam ações políticas, artísticas e culturais importantíssimas como
citado por Silva (2008), impulsionando a Semana de 22. E além disso, faz entender a força
que esses movimentos tinham, à medida que faziam as obras circularem e promoverem o
escritor, representando a dinamicidade do sistema literário, em que um largo trajeto é
desenhado até a publicação do livro e que os elementos desse sistema se relacionam de
maneira interdependente.
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As “rodas” passaram a ser o meio através do qual os artistas produziam e
faziam circular suas obras. No tempo das rodas, eram elas as responsáveis
pelo julgamento, pela crítica e pela divulgação do produtor artístico. No caso
do mundo do livro, por exemplo, evidencia-se a importância que as “rodas”
passaram a ter no processo fundamental de promoção do escritor a
publicação dos livros, que segue um largo trajeto até chegar ao editor por
meio de um integrante da “roda”. (SILVA, 2008, p. 189).
Atualmente, os saraus passaram a ter diversas configurações enquanto evento, dos
salões aos cafés e às rodas de artistas, passaram a acontecer em casas, bares, cafés, centros e
espaços culturais, bem como museus, praças, dentre outros espaços, contando com diferentes
atrações artísticos-performáticas e microfones aberto ao público.
Um dos maiores e mais famosos saraus, hoje no Brasil, o sarau da Cooperifa,
realizado na periferia de São Paulo, teve Sérgio Vaz como o organizador do espaço, que fora
realizado no bar do Zé Batidão, em 2001. Em entrevista à pesquisadora Teninna (2013, p. 12),
o escritor afirma que
O espaço que o Estado deixou para nós é o bar, aqui não tem museu, não tem
teatro, não tem cinema, não tem lugar para se reunir, e o bar é o nosso centro
cultural, onde as pessoas se reúnem para discutir os problemas do bairro,
aonde as pessoas vêm se reunir depois do trabalho, onde as pessoas se
reúnem quando vai jogar bola, ou quando é um aniversário, se reúnem para
ouvir e tocar samba, então o bar é a nossa ágora, a nossa assembleia, o nosso
teatro, tudo, a única coisa que o Estado deixou para nós foi o bar, então a
gente ocupou o bar. É isso o que a gente tem, então, é isso o que vamos
transformar. (VAZ, Ségio. In: TENNINA, 2013, p.12)
Sérgio Vaz estabeleceu não o nome do sarau e o espaço em que ele se realizara,
mas também um modus operandi incorporado pelos frequentadores dos saraus e dos
posteriores saraus que foram se formando na periferia de São Paulo. Essa transformação do
espaço, citada por Vaz em entrevista à Tennina (2013), implica numa ressignificação do
espaço produzida pelos saraus.
Os saraus da rede Londrix, incorporam não apenas a cidade de Londrina, mas o seu
entorno, ligando-se a um regime de redes, que segundo Fernandes (2017) se faz presente na
produção literária brasileira. Nesse regime temos uma multiplicidade de eventos acontecendo
atualmente: “O Sarau Artístico e Literário de Cambé”, realizado pela professora e escritora
Leonilda Bissochi, na cidade de Cambé; “Sarau: prosa, poesia e outras delícias”, realizado na
Vila Cultural Cemitério de automóveis, em Londrina; “Sarau das artes”, realizado no sebo
Nosso Sebo; “Sarau Madrepérola”, organizado pela editora londrinense Madrepérola; o
“Carnasarau”, realizado no tradicional Bar Brasil; os saraus realizados pelo projeto “Brisa:
Saraus artísticos”, organizados pela Funcart (Fundação Cultura Artística de Londrina), que
são realizados na Concha Acústica (monumento localizado em uma praça no centro da cidade,
palco de importantes eventos, apresentações e manifestações políticas, artísticas e culturais); o
sarau Versa e conversa: sarau literário”, organizado pelo Coletivo Versa e o “Sarau das
Pretas”, pelo coletivo Luiza Nahin. Esses saraus acontecem com maior regularidade.
Além disso, a região ainda conta com saraus que acontecem esporadicamente no bar
Valentino e em outros bares tradicionais, nas feiras, nas semanas literárias, no Londrix
(Festival Literário de Londrina), nos museus, dentre muitos outros espaços, alguns
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organizados por instituições privadas que promovem a cultura e a arte, além de coletivos e
instituições que a cada dia surgem com novas organizações de saraus em Londrina e região.
Como visto, esses eventos literários têm como forma de representação a
performance. Zumthor (2007) define a apresentação performática, in praesentia, como única,
dotada de corporeidade, e carregada de sensações e emoções, que nunca será igual a outra,
mesmo que realizada no mesmo lugar com as mesmas pessoas.
Na performance a voz é emanação do corpo, uma representação plena, que não é
apenas uma forma de comunicação que transmite conhecimento, mas que transforma o
conhecimento, e sendo assim transforma de alguma forma o ser. A voz marca tanto o
performer quanto o espectador, estabelecendo uma comunicação poética, uma experiência
vivenciada, e é essa comunicação que permite que o escritor se promova por meio da
performance. (ZUMTHOR, 2007)
Os documentos analisados e as observações/participações nesses eventos levaram à
compreensão de que o sarau é o espaço de realização da performance, e estabelece a relação
de rede com os elementos envolvidos no sistema literário, servindo como estratégia de
inserção da poesia no espaço público.
O “Sarau Artístico e Literário de Cambé” funciona dentro do regime de rede ao
estabelecer “uma trama de complexas conexões pautadas pela ordem das trocas, dos trânsitos
e das relações”. (FERNANDES, 2017, p. 112). Essa definição de rede trazida por Fernandes
(2017), ao retomar as ideias da filósofa Anne Cauquelin, demonstra exatamente a dinâmica do
“Sarau da Leonilda”, que permite trocas entre sujeitos de um mesmo grupo e também com
grupos de outras localidades. A dinâmica do sarau pressupõe uma troca mais próxima entre os
sujeitos, revelando um caráter mais íntimo de configuração do evento que poderá ser visto a
partir do modus operandi estabelecido por Leonilda, e que tem como ápice o momento da
performance.
O sarau Artístico e Literário de Cambé
O “Sarau Artístico e Literário de Cambé”, conhecido popularmente como Sarau da
Leonilda”, é um sarau que acontece há 15 anos, na cidade de Cambé, município fronteiriço de
Londrina.
Idealizado pela professora e escritora Leonilda Bissochi, o sarau era uma vontade
antiga. Antes ela realizava reuniões em sua casa, na qual discutiam sobre literatura, arte,
política. Essas reuniões ganharam o formato de sarau em 10 de julho de 2003, quando a
escritora realizou o primeiro “Sarau Artístico e Literário de Cambé”, em sua própria casa.
“Aos dez dias do mês de julho de dois mil e três às 20:30 horas, na
residência da poeta e escritora Leonilda Aparecida Bissochi de Freitas,
situada na avenida Canadá, 180, foi realizado o 1º Sarau Artístico e Literário
de Cambé, por inciativa e criação da referida escritora, contando com a
presença de amantes das artes, poetas, escritores, artistas plásticos, músicos.
O presente sarau foi presidido pela autora da ideia, professora Leonilda que
usando da palavra agradeceu a presença de todos, apresentando cada um e
citando o ramo da arte que cada qual pertencia. Falou também de algumas
pessoas que haviam sido convidadas, mas que não puderam comparecer
devido a afazeres particulares, mas prometeram se engajarem neste
movimento cultural. Em seguida, falou aos presentes que decidiu convidar
os artistas da cidade para este sarau que seria o primeiro dos muitos que
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virão. Falou que o objetivo deste encontro é oferecer um espaço para que
cada artista possa manifestar o seu pensamento ou dar vazão a sua arte, seja
ela de que área for. (SARAU ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE CAMBÉ, Ata
de reunião do dia 10 de julho de 2003, Livro 1, p. 1)
Desde então, o sarau acontece sempre entre os meses de março e novembro,
geralmente na última semana do mês. E conta com a presença de diferentes pessoas, como
artistas, músicos, escritores, incentivadores e apreciadores da arte e da literatura, pessoas de
diferentes profissões e das mais variadas idades. O sarau é aberto a quem quiser participar,
sendo composto por um grupo que frequenta desde o início, mas também por novos
participantes a cada reunião.
Imagem 1
Fonte: Arquivo pessoal de Leonilda (facebook), 2012
O modus operandi estabelecido por Leonilda, para o sarau em sua residência, segue
uma programação fixa, contando com dois momentos importantíssimos, o momento de
discussão em que um tema é designado, denominado pela idealizadora do sarau de “gancho”,
e o momento ápice da reunião em que a performance é a principal atração, em que cada
participante pode trazer algo para apresentar, sendo autoral ou não.
As atas revelam esse modus operandi criado pela Leonilda, à medida que trazem os
registros descritivos de todas as reuniões, contendo desde o início, com a leitura da ata da
reunião anterior, a aprovação dos participantes e suas respectivas assinaturas, a fala e a
direção do início da presente reunião feita pela escritora, passando pelo “gancho” (tema ou
pergunta lançada para discussão), a fala dos participantes acerca desse tema, as performances
que acontecem no segundo momento da reunião, denominado de “apresentação de trabalhos”,
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o momento de confraternização com o lanche ofertado por Leonilda, ao final de todos os
encontros, e finalizando com os nomes e assinaturas de todos os que estiveram presentes no
dia. Os registros das atas contam ainda com os nomes dos textos apresentados, e com as falas
dos participantes, sendo fielmente registrado conforme ocorrido, permitindo que qualquer
pessoa que as leia, seja capaz de compreender o que aconteceu nesses encontros.
De acordo com Leonilda (2019), em entrevista à autora, a decisão dos registros foi
“para saber o que discutimos e também a evolução dos assuntos. Às vezes eu toco num
assunto que foi discutido faz tempo, para ver como está, pois acredito que a pessoa está
sempre em mudança.”
Para além disso, essas atas ganharam grande valor e importância histórica, artística e
cultural, uma vez que trazem muitas questões acerca do próprio fazer artístico, sobretudo
literário, e do artista que como Leonilda afirma, sofre mudanças no decorrer do tempo.
Esse valor histórico, artístico e cultural atribuído às atas de reuniões do sarau pode
ser evidenciado à medida que marcam as ideias e impressões de um grupo de artistas
contemporâneos sobre essa arte que lhes é contemporânea, como por exemplo, na ata da
reunião do dia 1 de dezembro de 2009, cuja questão “Como percebemos a arte
contemporânea?”, foi sugerido como “gancho” para as discussões, ou como no registro do dia
18 de agosto de 2009, em que o tema A globalização inibiu a criação artística?”, permitiu
aos artistas manifestarem sua opinião acerca do seu próprio tempo.
A ata, um documento que remete à burocracia, é ressignificado por Leonilda,
passando a ser utilizada como fonte de memória. Apesar de toda formalidade que a escritora
mantém ao registrar as reuniões, o caráter burocrático da ata fica esquecido dando lugar à
memória.
As atas representam fonte de conhecimento e pesquisa para a posteridade, mostrando
as características, os elementos, as perspectivas e a visão de mundo não dos autores que
frequentam o sarau, mas também de uma determinada época, no âmbito social e artístico-
literário.
O tema da noite foi: “A arte consegue mudar o mundo?”. Para Dona Martha
a arte, mesmo a arte, mesmo sem o devido valor, ela é capaz de influenciar e
muito. A arte encanta a todos desde a criança até o adulto. Lorraine acha que
a arte muda o comportamento da criança quanto ao seu comportamento,
disciplina, conceitos. A arte influencia o mundo e é influenciada por ele.
Zulmira diz que a arte influencia o mundo, pois por exemplo na época da
ditadura os artistas foram exilados porque o governo sabia que sua arte
influenciaria no comportamento da nação. Para Ely a arte influencia e muda
o comportamento das pessoas. E todos nós temos talento para a arte, é
preciso ser canalizada. Segundo Diego Navarro a arte não muda o
comportamento de quem faz arte como também de quem não faz, mas a
aprecia. ((SARAU ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE CAMBÉ, Ata de
reunião do dia 22 de setembro de 2005, livro 1, p. 17)
Esse momento da reunião marcado pela discussão do tema da noite é o momento em
que a máscara e a pose do escritor estão em cena. O artista se autoapresenta, a partir de seu
discurso público, de suas ideias, da maneira como se posiciona, seus trejeitos, vestimentas e
opiniões. Assim, a imagem pública do escritor é apresentada a todos por meio de um ato
performático que o marca enquanto figura pública.
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Imagem 2
Fonte: Arquivo pessoal de Leonilda (facebook), 2012
A máscara e a pose, de acordo com Aguilar e Cámara (2017, p. 141), “são
dispositivos da modernidade literária”, que envolvem a vida pública, a instituição, o escritor e
o mercado, ou seja, a forma pública como o autor se autoapresenta funciona também como
estratégia de divulgação de seus textos e de si mesmo enquanto escritor, interferindo
diretamente na sua relação com o mercado e com o público.
A máscara necessita de um discurso, de todo o discurso público do autor, a pose
envolve o corpo com suas vestimentas, trejeitos, lugares que frequenta, gestos e ambos
contribuem para a relação autor/público e consequentemente mercado. Diante disso, a postura
pública do escritor funciona como uma estratégia de divulgação do seu próprio texto, através
das relações estabelecidas socialmente por meio da máscara e da pose. (AGUILAR;
CÁMARA, 2017).
Dentro da programação do “Sarau artístico e literário de Cambé”, o momento de
discussão do tema contribui não para teoria literária enquanto discussões sobre a literatura,
que possam levar a novos caminhos a partir das ideias de cada sujeito inserido no sistema
literário e de questões políticas e culturais, como também é o momento em que o autor se faz
presente performaticamente através da máscara e da pose, utilizando-se da autoapresentação
de suas ideias para divulgação de seus textos. No sarau, o escritor promove seu texto e a sua
figura enquanto autor para estabelecer relações com o público e com o mercado.
Além disso, há 9 anos, o sarau sai da casa da escritora uma vez por ano, para adentrar
os espaços públicos da cidade de Cambé, como as escolas e o centro cultural da cidade,
contando com a participação de artistas, músicos e escritores, professores, pais, alunos e
funcionários das escolas públicas do município, representantes do poder público e da
comunidade em geral.
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Aos quatorze dias do mês de setembro do ano de 2010, realizou-se mais uma
reunião do Sarau A. Literário, tendo como local o Centro Cultural de Cambé
e sob a coordenação da Secretaria Municipal de Educação, juntamente com
Leonilda Bissochi os trabalhos foram iniciados com a palavra da Secretária
de Cultura, professora Arisia, dando abertura à reunião [...]. (SARAU
ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE CAMBÉ, Ata de reunião do dia 14 de
setembro de 2010, Livro 1, p. 56).
Imagem 3
Fonte: Arquivo facebook da prefeitura de Cambé, 2018
Quando o “Sarau da Leonilda” sai de sua casa para adentrar um espaço público, o
modus operandi segue o mesmo, no entanto, a programação e o número de participantes se
ampliam. um protocolo de apresentação de autoridades e de escolas e professores, bem
como a fala de abertura de Leonilda, em seguida a discussão do tema, as apresentações
performáticas e, por fim, a confraternização com um lanche.
Um trabalho é realizado nas escolas de Cambé com os alunos, cuja culminância é o
sarau, trabalhos literários e artísticos são expostos por todo espaço onde o sarau acontecerá e,
dessa forma, ele é ocupado e ressignificado. Esse espaço compõe a máquina performática e os
signos nele presentes ganham corpo e voz à medida que se cria um espaço de criatividade, de
arte e de literatura que permitem a expressão de uma subjetividade por meio da performance.
A performance não passa, no caso dos saraus, pelo campo experimental: não
se trata de avançar para a produção de novos tipos de signos, mas sim de
utilizar todos os gêneros estabelecidos que tenham a ver com a expressão
de uma subjetividade, dos depoimentos aos poemas. (AGUILAR;
CÁMARA, 2017, p. 133)
A ocupação desse espaço permite então a ressignificação dos signos ali presentes e a
partir disso o espaço se funde com o performer, revelando uma subjetividade do ato
performático e esse ato performático que ocorre apenas uma vez e depois se dissolve no ar
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acaba por ter o espaço como um arquivo das performances que ficará marcado na lembrança
das pessoas.
Retomando as ideias de Zumthor (2007), sobre a performance infere-se que, após o
ato performático, fica o espaço ocupado e ressignificado por aqueles que estiveram presentes,
que sempre ao entrar em contato com determinado espaço terão a lembrança daquele
momento único, dotado de corporeidade que passa a marcar a subjetividade do expectador.
E isso acontece tanto no espaço público em que o sarau se realiza, como no privado,
a casa de Leonilda, que ao ser aberta a todos que quiserem participar do sarau também se
transforma em um espaço compartilhado e ressignificado por meio da performance e dos
signos ali presentes.
Performance e estratégia de inserção do texto poético
Na arte contemporânea, a inexistência de um zeitgest faz com que as conexões
artísticas e literárias se façam por meio do regime de redes, ou seja, o sujeito estabelece uma
nova forma de conectividade a partir da partilha do comum, buscando restaurar laços afetivos
de vivência e uma identidade partilhada, do individual para o coletivo. (RANCIÈRE, 2009)
De acordo com Leone (2014, p. 46), a rede permite novas formas de agrupamentos
artísticos, sendo os saraus, sobretudo o Sarau Artístico e Literário de Cambé, uma forma
desses agrupamentos. Historicamente, o sarau não pode ser considerado uma nova forma,
que tem suas raízes nos salões do século XIX. Na contemporaneidade, ganhou novos
formatos e vem contribuindo para o estabelecimento dessas redes, que propiciam vislumbrar
novas estratégias de visibilidade, inserção e divulgação do texto poético, tendo a performance
como uma das principais.
É no sarau que a máquina performática se coloca em ação. Corpo, voz, espaço,
máscara e pose se conjugam num ato em que o texto ganha vida e funciona como meio de
divulgação e inserção da poesia.
O momento da performance é o ápice do Sarau artístico e literário de Cambé, o qual
os participantes declamam, cantam ou dramatizam seus textos:
Inicialmente Bruna de Freitas Fiorini leu o poema de sua autoria O tempo”;
Ralph leu dois poemas de sua autoria. Zulmira leu um texto do autor
argentino Ernesto Sábato; Eby declamou o primeiro poema que compôs [...]
Felipe leu de sua autoria os poemas: Perpétua, Soneto de sua tristeza e
Despetalada. Edson leu a primeira parte de seu conto “Tudo outra vez”, e leu
também “Epílogo da vida perene”. Djalma nos apresentou a música: “Batata
quente”, letra e música de sua autoria, acompanhado de violão e gaita.
Também apresentou a música “Compositor”, de sua autoria, acompanhado
de violão e gaita. Karina cantou ao violão “Samba Morena”. Wagner
apresentou três poemas de sua autoria: Páginas Picadas, Química do amor e
Como um flash. (SARAU ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE CAMBÉ, Ata de
reunião do dia 15 de março de 2011, Livro 1, p. 60)
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Imagem 4
Fonte: arquivo pessoal, 2019.
Durante as reuniões do sarau, o momento da performance emociona, faz ri e conecta
o performer aos espectadores. Os participantes colocam suas experiências poéticas, artísticas e
literárias em cena e vivem as experiências do outro, ocorrendo então o que Jacques Rancière
(2009) denomina como a partilha do sensível, um sensível que se faz ser visto e que ao
mesmo tempo que revela um comum. Também mostra o que é individual, particular, a partir
das experiências trazidas nesse momento do sarau.
Na performance, uma recepção mais direta, este laço entre autor e leitor acontece
com menor esforço uma vez que a presença corporal de quem fala/autor e do ouvinte/leitor, e
a presença da teatralidade ou da espetacularidade criam essa relação direta, fazendo com que
os sentimentos possam ser vivenciados, experienciados de forma única. Na performance não
exigem-se manifestações corporais obrigatórias, no ato performático as coisas acontecem de
forma espontânea. (ZUMTHOR, 2007).
O produtor desempenha, na contemporaneidade, vários papéis, inclusive o de
escritor. Estabelece-se, portanto, uma reconfiguração do sistema à medida que a relação entre
o mercado e o texto não se dão apenas por fatores econômicos, mas também por fatores e
escolhas afetivas ocorridas num espaço onde múltiplas subjetividades e expressões se fazem
presentes por meio da performance. (EVEN-ZOHAR, 1990; LEONE, 2014).
Nesse sentido, Leonilda Bissochi desempenha alguns papéis dentro do polissistema
literário. Além de escritora, atua como produtora, revisora e incentivadora, colaborando para a
divulgação de vários escritores como, por exemplo, o jovem escritor londrinense Felipe
Pauluk, que começou participando do sarau e hoje ganha o cenário nacional não com a
poesia, mas também com seus roteiros e contos. Leonilda revisou o primeiro livro do escritor
“Meu tempo de carne e osso” e escreveu o prefácio:
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Ler os poemas de Felipe Pauluk é o mesmo que mergulhar num verdadeiro
caleidoscópio de sensações, prazeres e uma eterna e contagiante alegria,
poisele escreve com a maestria de um veterano nesta difícil arte de transmitir
o que sente a alma.
Como diziam os sábios, o poeta é o grande mensageiro da humanidade,
um verdadeiro “profeta do seu tempo” e assim nesta obra, o autor utiliza
frases construídas com tamanha destreza e intensidade para descrever todos
os sentimentos inerentes ao ser humano, tal qual a sutileza dos grandes
mestres e filósofos. Sentimentos estes, que não se pode dizer que sejam eles
seus, ou apreendidos e incorporados como um toque de mágica a sua
personalidade. (BISSOCHI, 2011, online, s/p)
O trabalho de Leonilda e a realização do sarau impactam diretamente na literatura
londrinense, visto que a relação estabelecida por meio dos participantes, abrange não a
cidade de Cambé, mas toda a região metropolitana de Londrina, atuando dentro da rede
Londrix. Nesse sistema literário dinâmico em que o sarau está inserido, o impacto se não
apenas na divulgação e na visibilidade do texto poético, mas também no fortalecimento da
produção literária local. A parceria com a Secretaria de Educação e Cultura da cidade de
Cambé e com as escolas também amplia a rede de relações estabelecidas no sarau de sua casa
para toda a comunidade local.
Além disso, a rede estabelecida a partir do sarau permite o compartilhamento de
novas formas de fazer poético e novas maneiras de pensar literatura, contribuindo com a
formação da literatura londrinense, a partir de uma subjetividade atravessada por outras
subjetividades e de uma liberdade do fazer poético que caracteriza a poesia atual.
Hoje, os saraus estão cada vez mais presentes no meio literário, cada dia surgem
novos saraus sendo organizados em Londrina e região. A grande importância desses eventos
para a literatura e para o escritor pode ser verificada por meio das atas em vários momentos
em que os participantes do sarau discutem acerca das reuniões. Um metassarau acontece em
algumas reuniões em que o tema a ser discutido é o próprio sarau, o sarau tratando do próprio
sarau.
[...] os trabalhos foram iniciados às 21:00 horas com a discussão do tema da
noite sugerido na última reunião pela Márcia que foi “Que espaço ocupa um
sarau nos dias de hoje?” Para Clayton significa fomentar a cultura de
maneira mais ampla. É um momento de reflexão para se discutir a arte.
Márcia diz que é uma necessidade hoje, pois atualmente as pessoas não saem
não se encontram. O sarau é fundamental para a reunião das pessoas. Para
Felipe é algo nostálgico. Poeticamente o sarau ocupa o espaço de uma
pérola. É como se estivéssemos numa redoma. O sarau resgata o olho no
olho. (SARAU ARTÍSTICO E LITERÁRIO DE CAMBÉ, Ata de reunião do
dia 10 de agosto de 2010, livro 1, p. 55)
Nesses momentos de discussão do metassarau, registrados nas atas, em que o sarau
discute o próprio sarau, bem como com a participação nos encontros na casa de Leonilda, é
possível perceber o quanto a performance afeta todos os que participam desses eventos.
Alguns participantes descrevem o sarau como “terapêutico”, “que possui um efeito catártico”,
“encontros que só engrandecem”, o que leva a perceber até mesmo por meio das atas o quanto
o sarau e a performance evocam sensações e emoções em todos os que estão presentes.
O sarau artístico e Literário de Cambé é um mecanismo de fomento, de
fortalecimento, de divulgação e visibilidade do texto poético na atualidade, que permite a
utilização de várias linguagens e faz da performance um espaço de ressignificação do texto
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impresso. Portanto, infere-se que atualmente a presença dos saraus está cada vez mais
presentes no meio artístico literário local devido ao seu alcance e à capacidade que esses
eventos possuem de estabelecer e colocar em funcionamento as redes estabelecidas.
Considerações finais
No cenário atual, os saraus são uma realidade, funcionando como mecanismo de
divulgação, visibilidade e estratégia de inserção do texto poético, por meio da performance
que é o cerne desses eventos.
O sarau artístico e literário de Cambé tem um modus operandi próprio, criado por
Leonilda Bissochi que permite uma relação mais estreita e mais íntima com seus
participantes. Seu formato pressupõe uma organização de falas, o que quebra um pouco a
espontaneidade de interação direta do público. No entanto, existem espaços para convívio e
troca de ideias entre os participantes, ao final, no café oferecido por Leonilda.
A documentação das atas, que servem como registro histórico, e as discussões
realizadas durante as reuniões são pontos que contribuem para a formação literária local, a
partir de reflexões de temas importantes que interferem diretamente no fazer poético e na
teoria literária. Esses registros possibilitam uma nova forma de pensar a literatura
contemporânea, que congrega a liberdade do fazer poético, a expressão por meio de múltiplas
linguagens (performance) e novos meios de divulgação do texto para além do impresso.
O “sarau da Leonilda” ocupa um espaço de grande importância na produção literária
londrinense, pois atua no polissistema literário e corrobora para a formação, ampliação e
criação de sistemas de redes que formam a produção literária atual.
O estudo do “Sarau artístico e literário de Cambé” e dos saraus de um modo geral
contribui para que a teoria literária tome novos rumos de análise na literatura contemporânea,
possibilitando pensar a literatura atual e sua formação por meio deles e das redes de relações
estabelecidas a partir deles.
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SEÇÃO LIVRE
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AS SINGULARIDADES DA PESQUISA COM CRIANÇAS: ÉTICA, SENSIBILIDADE
E VISIBILIDADE DAS INFÂNCIAS
LAS SINGULARIDADES DE LA INVESTIGACIÓN CON NIÑOS: ÉTICA,
SENSIBILIDAD Y VISIBILIDAD DE LA INFANCIA
Tânia Regina Lobato dos Santos (PPGED-UEPA)
36
Nilza Maria Ribeiro (SEMEC-Ananindeua)
37
Adelice Braga (PPGED-UEPA)
38
Resumo: O presente artigo visa refletir sobre a pesquisa com crianças como um instrumento
de escuta sensível e de visibilidade das vozes das crianças e de suas infâncias, destacando as
especificidades e as singularidades dos procedimentos éticos do pesquisador no
desenvolvimento do estudo. Configura-se como uma pesquisa bibliográfica e documental, que
toma a experiência do pesquisador como suporte para a reflexão. O referencial é a Sociologia
da Infância, a partir especialmente dos estudos de Sarmento (2011), Corsaro (2011) e Sirota
(2011). A pesquisa com crianças exige sensibilidade, amorosidade, paciência e eticidade do
pesquisador para possibilitar que as vozes das crianças e suas infâncias ecoem por meio da
pesquisa. As vivências com as crianças nos permitem evidenciar que a pesquisa com crianças
é uma atitude necessária para revelar a qualidade de vida, o respeito e o valor que elas
possuem como sujeitos legítimos de direitos.
Palavras-chave: Infância. Ética. Escuta Sensível. Pesquisa com Crianças.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la investigación con niños
como un instrumento para la escucha sensible y la visibilidad de las voces de los niños y su
infancia. Destacando las especificidades y singularidades de los procedimientos éticos del
investigador en el desarrollo de la investigación. Está configurado como una investigación
bibliográfica y documental que toma la experiencia del investigador como un soporte para la
reflexión. La referencia a la Sociología de la Infancia, especialmente de los estudios de
Sarmento (2011), Corsaro (2011) y Sirota (2011). La investigación con niños requiere
sensibilidad, amor, paciencia y ética del investigador para permitir que las voces de los niños
y su infancia resuenen a través de la investigación. Las experiencias nos permiten resaltar que
la investigación con niños es una actitud necesaria para revelar la calidad de vida, el respeto y
el valor que tienen como sujetos legítimos de derechos.
Palabras clave: Infancia. Ética. Escucha sensible. Investigación con niños.
36
Doutorado em Educação PUC/SP. Professora Titular da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e do
Programa de Mestrado e Doutorado em Educação CCSE/Uepa. E-mail: tania02lobato@gmail.com
37
Mestrado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.
Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Ananindeua Pará. E-mail: nipedag@gmail.com
38
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.
Professora Adjunto IV da Universidade Federal do Pará. E-mail: adelicebraga@ufpa.br
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Introdução
Crianças pequenas podem participar de pesquisas científicas? É possível -las como
protagonistas, esse tipo de produção acontece? Mesmo as bem pequenas têm condições de
expressarem anseios e necessidades? A despeito das dúvidas que pairam em relação à
pesquisa em que é protagonista, acreditamos que, desde a mais tenra idade, a criança expressa
anseios, necessidades e opiniões. No entanto, a depender da concepção que fundamenta o
trabalho, as respostas a essas perguntas podem ser diversas, principalmente quanto à
compreensão de como acontece a participação delas nesse processo. Daí a necessidade de
ações éticas, sensíveis e de respeito por parte do pesquisador.
Considerar o ponto de vista da criança implica que o pesquisador deve se libertar de
juízo de valores preconcebidos que o impedem de compreendê-la como ser histórico e
singular. Molon (2008, p. 57) enfatiza que a “historicidade e a singularidade são vistas como
mutuamente constitutivas no sujeitos e não à parte dele”. Isto nos convida a olhar para a
criança e para a infância sem perder de vista o contexto histórico e social em que estão
inseridas as concepções presentes sobre ambas, e entender que essas perspectivas foram se
modificando ao longo do tempo como resultado de lutas de diferentes segmentos sociais.
Nesse sentido, podemos considerar que os estudos de Fernandes (2004), As Trocinhas
do Bom Retiro: contribuições ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos
infantis, abriram um vislumbre sobre a beleza de ouvi-las, saber o que elas têm a nos dizer,
conhecer suas perspectivas de mundo e sua cultura em relação à cultura do adulto; entretanto
“há outros elementos na cultura infantil. Nem tudo corresponde a coisas relativas ou
provenientes da cultura dos adultos” (FERNANDES, 2004, p. 247).
Pamphylio (2010), Silva Junior (2011), Gouvêa (2011), Nascimento (2014), Lima
(2014), Macedo (2014), Nascimento (2015),Weber (2015), Aviz (2016) e Gonçalves (2018),
que se comprometem em ouvir as perspectivas das crianças, mostram que dar visibilidade às
suas vozes em estudos acadêmicos é permitir que seus dizeres ecoem, sensibilizem e retornem
em aspectos e atitudes respeitosas às infâncias e em qualidade de vida.
A escuta das crianças em estudos vem se constituindo como uma forma respeitosa de
enxergar e dar visibilidade a elas como seres sociais, protagonistas em suas culturas, tempos
históricos, sociais e contemporâneos.
Na condição de pesquisadoras da infância, devemos compartilhar a experiência que
vivenciamos ao realizar investigações nas quais as protagonistas são as crianças, o contato
com saberes de um universo singular aquele vivido pela infância, o qual é entremeado de
surpresas, encanto, beleza e respostas, para além do que podemos imaginar. A pesquisa com
crianças é a possibilidade de “vestir-se” e de vivenciar a ética, a sensibilidade, a amorosidade,
a humanidade e o respeito às suas múltiplas vozes e infâncias.
É sobre o caminhar ético e sensível que nos propomos a conversar neste artigo, sobre
situações que não podem passar despercebidas pelo pesquisador ao realizar seu estudo com
crianças. É sobre a sensibilidade de reconhecer-se como uma delas, como um aprendiz, em
essência e humildade, é sobre saber que, para escutá-las, é necessário tocar a sua alma com a
linguagem delas, que é carregada da ludicidade expressa nas suas brincadeiras, também
tornar-se uma delas, brincar como elas, brincar e se aproximar o máximo possível de seus
olhares, enxergando o mundo como elas enxergam.
Assim, fazer pesquisa com crianças é revestir-se de eticidade, pois este é o segredo
para aprender a escutar o que elas têm a nos dizer, ou seja, possibilitar que suas vozes ecoem
e alcancem lugares inimagináveis, mas almejados por todos os que pesquisam a infância
possibilitar que nossas investigações tragam qualidade de vida.
Nessa perspectiva, problematizamos: singularidades metodológicas nas pesquisas
com crianças que possibilitam escutas sensíveis e a visibilidade das crianças e de suas
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infâncias? Destacamos, neste artigo, alguns aspectos dessas singularidades com ênfase nas
suas especificidades metodológicas, estratégias e questões éticas, a postura do pesquisador
dentro de uma comunidade especial as crianças que frequentam ou não as escolas da
infância.
O objetivo é refletir sobre este tipo de estudo como um instrumento de visibilidade das
vozes da infância e das singularidades dos procedimentos éticos do pesquisador. Sendo esta
uma pesquisa bibliográfica e documental (RODRIGUES; FRANÇA, 2010), sua construção se
a partir de produções citadas anteriormente e do referencial teórico da Sociologia da
Infância, especialmente os estudos de Sarmento (2011), Corsaro (2011) e Sirota (2011), à luz
das Resoluções 466/2012 (BRASIL, 2012) e a Resolução 510/2016 (BRASIL, 2016) do
Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos.
Destacamos, ainda, que a reflexão se sustenta na prática de pesquisador e a construção teórica
se a partir da leitura e análise dos textos contidos na literatura da área e nos documentos
legais.
Apresentamos aqui a importância da realização de estudos com crianças como
instrumento de seu reconhecimento enquanto seres de direitos e, ao mesmo tempo, como
instrumento de visibilidade de suas vozes. Em seguida, apresentamos algumas concepções
teóricas da Sociologia da Infância e a compreensão da criança como protagonista e
construtora de história e cultura. Por fim, alguns aspectos que singularizam este tipo de
pesquisa, destacando os aspectos éticos que devem ser considerados pelos pesquisadores que
realizam estas investigações.
Pesquisa com e sobre crianças
Segundo Sarmento e Pinto (1997) são pesquisas emergentes que desvelam e
reconhecem os conhecimentos das pequenas e miúdas. Nesta perspectiva, a concepção de
criança e de infância é social e histórica, sendo ambas consideradas como socioculturais. Os
autores ainda destacam que essas investigações levam em conta os elementos sociais,
históricos e culturais vivenciados por elas pelo fato de compreenderem tanto o jeito de ser
criança como o de viver a infância, não de forma isolada, voltada ao seu contexto histórico,
social e cultural.
Dessa forma, defendemos a produção realizada com e não sobre as crianças,
considerando serem elas participantes e colaboradores diretos das investigações, pois
dialogam com os pesquisadores e apresentam suas percepções de vida e de mundo.
A pesquisa com crianças, em Ciências Humanas, tem sido um marco legal, inovador,
de visibilidade e de respeito com as diversas infâncias. É também uma expressão de
configuração e respeito político e social assegurado por lei em 1959, em Genebra, na
Declaração dos Direitos das Crianças. Esta declaração reforçou e exaltou os direitos que
devem ser assegurados em todas as instâncias, dentre os quais está explícito, no artigo 13,
que:
1. A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito
compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e
ideias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma
oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à
escolha da criança. (UNICEF,1990, p.13).
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Compreender as pequenas como protagonistas de seu tempo histórico e social,
construtoras de cultura, possibilita a visibilidade de suas vozes nas produções acadêmicas,
como também lhes garante o direito que possuem enquanto sujeitos sociais e de direitos.
Defendemos que, enquanto sujeitos ativos e inteligentes, as crianças precisam ser
ouvidas sobre seus modos de vida, o que pensam sobre seu mundo e o que esperam da
sociedade. Assim, fazer pesquisa na qual sejam participantes diz respeito a sua qualidade de
vida, pois nela se sugere a criação de políticas públicas que vão ao encontro das suas
necessidades, sendo um convite ‘audível’ para assegurar o respeito aos seus direitos.
Como bem nos lembra Sirota (2011, p. 6), “[...] são entre as minorias as menos
protegidas, porque elas não são suas próprias porta-vozes”. As pesquisas com as suas
participações tornam-se, portanto, um meio para que elas sejam ouvidas e suas múltiplas
infâncias sejam reveladas.
A Sociologia da Infância, como nosso referencial teórico, ajuda-nos a perceber e
encontrar na sua voz um ser humano que sabe que enxerga o mundo e nos auxilia a trazer
respostas e contribuições para que os direitos e os processos de socialização possam ser
enriquecidos nas práticas pedagógicas.
Sirota (2001, p.13) defende que: [...] crianças devem ser consideradas como atores
em sentido pleno e o simplesmente como seres em devir. As crianças o ao mesmo tempo
produtos e atores dos processos sociais [...]”. Reconhecemos, assim, que esta pesquisa é um
instrumento também de visibilidade, de suas vozes, seus dizeres.
A perspectiva da Sociologia da Infância a compreende como ator social, de pleno
direito, que é histórico e cultural; ainda que seja influenciada pelo seu contexto histórico,
pelos adultos que lhes cerca, também age sobre esta realidade com criatividade, reinventando
a cultura da infância, que é expressa em suas brincadeiras, na ludicidade, na interatividade
com seus pares e na fantasia, situação revelada principalmente no “faz de conta”.
A participação em pesquisas é um direito amplamente assegurado a elas; a Convenção
dos Direitos da Criança (UNICEF, 1990) afirma a importância da valorização das suas vozes.
Existe a necessidade de ouvirmos o que têm a nos contar e não apenas deixar que outrem, os
professores, seus pais e/ou outros adultos, conte sobre elas; é essencial possibilitar que elas
próprias relatem suas histórias e infâncias, e a pesquisa com crianças é esta possibilidade na
atualidade.
Ouvir o que têm a nos contar é uma atitude necessária e prioritária. Escutá-las é saber
de seus medos, compreender seus sentimentos e saber de suas alegrias, tristezas e sonhos.
Nós, investigadores envolvidos com estes segmentos, precisamos compreender que devemos
ser éticos, sensíveis, amorosos e respeitosos em relação ao seu pensar e seus modos de vida.
Neste sentido, aspectos que precisam ser conhecidos antes da entrada no campo de
pesquisa, é preciso ter a clareza de que, como participantes, as crianças precisam assumir uma
atitude essencialmente ética em relação a sua história de vida, seus desejos, seus anseios e
suas aflições.
Entretanto, temos a compreensão da abrangência e importância desta temática como
um campo de estudo profundo e complexo, portanto esclarecemos que as discussões aqui
entrelaçadas são convites para novas reflexões, que se refazem no cotidiano do fazer da
pesquisa.
É necessário que, como pesquisadores, sejamos capazes de ter a clareza e a
sensibilidade de entender que as infâncias são diversas, assim como múltiplas são as vozes, os
dizeres e os saberes, as perspectivas de mundo; logo, cabe-nos ter a consciência de que, ao
realizar pesquisa com crianças, devemos aproximar nossa alma de pesquisador dos corações
das crianças e de suas infâncias, aproximando-nos de suas brincadeiras e de seus fazeres a fim
de que aprendamos a ouvi-las e a respeitá-las, fazendo de nossos estudos instrumento de
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escuta, de afirmações de direitos, de valorização e de respeito às suas vozes e às suas vidas.
Concordamos que,
[...] para poder estudar a criança, é preciso tornar-se criança. Quero com isso
dizer que não basta observar a criança, de fora, como também, não basta
prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que
dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o
brinquedo. (FERNANDES, 2004, p.230).
As experiências de pesquisas realizadas têm apontado que, em relação à criança, em
geral,há uma reação de aceitação e compartilhamento. Em relação à ação do pesquisador, a
situação é diferente, este precisa romper com algumas posturas preconcebidas, entre as quais,
segundo Sarmento (2004), a visão “adultocêntrica”, que o impede de considerá-las como
centro do processo, a “infantocêntrica”, que considera apenas a perspectiva do adulto, e a
“uniformidade”, ao não considerar a diversidade dos grupos infantis.
Os procedimentos éticos na pesquisa com criança
O percurso em pesquisa com as pequenas deve ser um caminho atento, cuidadoso e
permeado pela eticidade. O pesquisador deve garantir que se sintam seguras ao participar,
tenham alegria e prazer, sintam-se livres para demonstrar sua individualidade; precisa estar
atento às suas necessidades e emoções, preocupar-se e assumir atitude empática, pois estas
são opções éticas a serem estabelecidas no diálogo com estas participantes.
Assim, antes de iniciar, o pesquisador deve ter como aportes os saberes vinculados às
legislações que orientam este tipo de estudo, submetendo seu projeto ao CEP Comitê de
Ética em Pesquisa.
Em nosso país, existem alguns amparos legais, mas aqui destacamos as Resoluções
466/2012 e a 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, instrumentos reguladoresque
recomendam procedimentos a serem considerados na pesquisa que envolve seres humanos.
Estas resoluções regem os procedimentos éticos que resguardam os participantes de pesquisas
científicas assegurando que tenham todos os seus direitos observados, e o Comitê de Ética
tem essa responsabilidade de garantir os direitos do participante.
A Resolução 466/2012 (BRASIL,2012,cap. III, p.3) destaca como princípios éticos e
científicos:
a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia,
reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e
permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa,
livre e esclarecida;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais,
individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e
o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados;
d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos
interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio
humanitária. (BRASIL, 2012, p. 3).
A Resolução 510/2016 apresenta um conjunto de normatizações e cuidados a serem
assegurados em todos os processos da pesquisa, considerando as singularidades dos
participantes, as especificidades de metodologias, histórias, formas de expressão e cultura, de
forma a assegurar que sejam protegidos e tenham seus direitos assegurados em todo o
processo como atores plenos de direitos.
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Assim, ao realizar pesquisa com crianças, há a necessidade de um respaldo documental
a fim de garantir que elas serão respeitadas em suas singularidades e especificidades. Neste
sentido, destacamos a autorização do CEP como primordial para dar início ao estudo, sendo
uma exigência ética explícita que as pesquisas só devem ser iniciadas após o aceite do CEP.
Art. 12. Deverá haver justificativa da escolha de crianças, de adolescentes e de
pessoas em situação de diminuição de sua capacidade de decisão no protocolo
a ser aprovado pelo sistema CEP-CONEP. (BRASIL, 2016, p. 5).
Nesta mesma direção, destacamos a importância do TCLE (Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido), documento assinado pelos pais e/ou responsáveis autorizando que as
crianças participem, assim como é imprescindível que manifestem seu interesse em participar
por meio do TALE (Termo de Assentimento Livre e Esclarecido), um termo obrigatório e
essencial, que deve ser claro em relação aos procedimentos a serem realizados, os direitos
assegurados, durante e depois da conclusão do estudo. Vale ressaltar que o TALE precisa ter
uma linguagem acessível podendo ser construído em formato de história, cartilha ou outra
forma de fácil compreensão pela criança.
Em relação a este aspecto, a Resolução 510/2016 enfatiza no:
Art 15. O registro do Consentimento e do Assentimento é o meio pelo qual é
explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante ou de seu
responsável legal, sob a forma escrita, sonora, imagética, ou em outras
formas que atendam às características da pesquisa e dos participantes,
devendo conter informações em linguagem clara e de fácil entendimento
para o suficiente esclarecimento sobre a pesquisa. (BRASIL, 2016, p. 5).
Outro aspecto essencialmente ético é assegurar ao participante o acesso aos resultados,
como uma atitude respeitosa às informantes, garantindo sua condição de protagonistas e
partícipes do processo. Este compartilhamento dos resultados pode acontecer de maneira que
alcance o universo infantil, seja por meio da ludicidade, história, arte, teatro ou desenho,
respeitando suas perspectivas e maneiras de enxergar o mundo.
A arte e a ludicidade: a escuta sensível
Ao pesquisarem parceria com as crianças, precisamos estar atentos ao que lhes encanta
e interessa, às realidades de vida, e ao que mais lhes importa em suas vidas, do que as
brincadeiras. Assim, o pesquisador deve ter consciência de que as respostas para a sua
problemática somente serão alcançadas se ele obedecer a premissa básica: saber que as
brincadeiras movem a vida da infância. Sobre o papel das brincadeiras, Vigotski (2008)
afirma:
A relação entre a brincadeira e o desenvolvimento deve ser comparada com
a relação entre a instrução e o desenvolvimento. Por trás da brincadeira estão
as alterações das necessidades e as alterações do caráter mais geral da
consciência. A brincadeira é a fonte de desenvolvimento e cria a zona de
desenvolvimento iminente. A ação num campo imaginário, numa situação
imaginária, a criação de uma intenção voluntária, a formação de um plano de
vida, de motivos evolutivos tudo isso surge na brincadeira, colocando-a
num nível superior de desenvolvimento, elevando-a para a crista da onda e
fazendo dela a onda decúmana (maior de todas) do desenvolvimento na
idade pré-escolar que se eleva das águas mais profundas, porém
relativamente calmas. (VIGOTSKI, 2008, p.35).
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Vigotski (2008) nos chama a atenção para o importante papel das brincadeiras para as
crianças. As brincadeiras são um instrumento humanizador, educador e promovedor de
desenvolvimento. É pelas brincadeiras que compartilham seus saberes, suas vivências entre
seus pares, aprendem e ensinam mutuamente. Este autor também considera que as
brincadeiras são permeadas de regras, não formuladas previamente, que se constroem ao
longo das brincadeiras e que promovem desenvolvimento.
Na perspectiva socio-histórica, consideramos as especificidades e singularidades do
universo e vivências infantis na pesquisa com crianças, considerando a sensibilidade da arte,
das brincadeiras e da cultura da infância para a aproximação do pesquisador nas relações com
elas. Sendo assim, defendemos que as aproximações mais positivas são aquelas que se
realizam por meio da “capacidade artística, brincadeira, criação e imaginação das
crianças”(KRAMER; SANTOS, 2011, p.24).
Nesse sentido, entendemos que este tipo de pesquisa necessita de metodologias
próprias que atendam as especificidades das crianças participantes e do empoderamento por
parte do pesquisador para que use técnicas e procedimentos que se aproximem intimamente
da “alma” e do “coração” delas, atentando para a sensibilidade infantil, seus sentimentos e
suas falas; maneiras lúdicas e singulares para ver e escutar “o dito e o não dito” por elas em
seus contextos cultural, social e histórico.
Assumir a pesquisa com crianças na perspectiva da Sociologia da infância e pelo leque
que nos abre a teoria sócio-histórica significa dispor de um instrumento que se delineia contra
o silenciamento de suas vozes ao longo da história; é uma atitude de reafirmação da criança
como sujeito de história e de cultura. É preciso ter consciência que a opção pelos caminhos
do sensível e da experimentação em alguns momentos podem nos levar a dúvidas e crises,
situações que parecem sem sentido, caso não a encaremos como outras vias de raciocínio
possíveis” (OLIVEIRA; SILVA, 2016, p. 54).
Assim, a arte nos auxilia, enquanto pesquisadores, a apreender com perspicácia as
representações simbólicas que possuem sobre a vida, sobre como estase revela para elas,
sobre como compreendem o mundo. “Na análise das ações infantis, o entendimento da
capacidade imaginativa da criança por meio dos instrumentos simbólicos, tais como a fala, o
desenho, o gesto, a imitação, se caracterizam como elementos mobilizadores de compreensão
e relação com o mundo. [...]” (KRAMER; SANTOS, 2011, p.29). Assim, abordagens e
instrumentos devem respeitar as suas singularidades, suas culturas e suas formas de enxergar
o mundo.
A arte e a ludicidades e constituem também como aliadas na obtenção de respostas
para as diversas problemáticas; por meio dos jogos simbólicos, da contação de histórias, das
oficinas de desenhos, informam-nos sobre seu mundo, perspectivas de vida e sobre o que
pensam a respeito de tantas coisas que permeiam a sua vida.
Concordamos com Kramer e Santos (2011, p. 30) ao considerar que: “Na pesquisa
com crianças, os jogos, os brinquedos, as brincadeiras são fontes reveladoras de cultura”.
Sendo assim, o olhar sensível que a arte nos remete auxilia-nos, pois ela ocupa uma posição
fundamental no processo investigativo:
[...] a sensibilidade em ver e ouvir as crianças se beneficia também da
produção cultural artística: a literatura, o cinema, o teatro, a música, as artes
plásticas ajudam os pesquisadores (tal como ajuda o profissional que atua
com crianças) a delinearem uma visão de infância que leva em conta o olhar
infantil, o ponto de vista das crianças. O conhecimento teórico (quer dizer
científico) se concilia assim com a arte. [...] As relações com livros,
brinquedos, com a música, o teatro, os objetos revelam tanto o que as
crianças aprenderam e apreenderam do contexto cultural como também a
suas possibilidades de re/criação. (KRAMER;SANTOS, 2011,p.24).
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Ao realizar pesquisas deste tipo, portanto, o pesquisador deve saber que a metodologia
deve se configurar de maneira que alcance as subjetividades das participantes, que venham ao
encontro de suas singularidades e suas infâncias, disponibilizando de técnicas diversas que
envolvam o universo infantil e a ludicidade tão própria desse segmento social. Narração de
histórias, pintura e desenhos, dramatização e expressão musical, jogos e brincadeiras, oficinas
criativas, rodas de conversa, assim como ações e produções infantis são materiais de pesquisa
e precisam ser inventariados, registrados e fotografados.
Corsaro (2011, p. 343) enfatiza que “o futuro da infância é o presente”. Sim, as
crianças têm muito a nos contar sobre suas contemporaneidades. Dessa forma, é necessário
escutá-las, aprender com elas e ser como elas.
A interação pesquisador-criança
Ao pesquisador caberá aproximação com a realidade das crianças na perspectiva de
identificar: quem são? Como vivem? Que significados e valores são atribuídos à infância e às
crianças? Essas são perguntas constantes na prática do pesquisador que desenvolve
investigações tendo como referências crianças e infâncias.
Para Sarmento e Pinto (1997), elas sempre existiram, entretanto a infância é uma
construção social, então, uma diversidade de crianças, uma diversidade de infâncias.
Sarmento (2008) explica que é preciso considerar a infância como condição humana e
categoria sociológica geracional.
Realizar pesquisa com crianças é uma ação que acarreta muitas exigências ao
pesquisador. Como discorremos, aspectos que são essencialmente inerentes a este tipo de
investigação. Outra situação, o responsável pelo estudo deve estar atento à maneira como ele
se relaciona com elas. Corsaro (2011) considera que um bom relacionamento entre
pesquisador e criança é fundamental para o sucesso ao dizer que: “[..] as crianças são
motivadas a dar respostas verdadeiras e cuidadosas se o entrevistador e a criança tiverem um
bom relacionamento e se a criança se sentir segura quanto a confidencialidade das respostas”
(CORSARO, 2011, p.60).
Uma relação de amizade e confiaa, como um participante do grupo, brincando e se
envolvendo com as rotinas e vivências conjuntamente, é fundamental para que se sintam
seguras para contar suas visões de mundo, perspectivas de vida e para que suas vozes se
tornem visíveis para s pesquisadores. Pensamos que talvez um dos mais complexos
exercícios na pesquisa seja a sensibilidade de deixar vozes, movimentos, acontecimentos,
minúcias terem visibilidade e, talvez, voz e ação na condução da investigação” (OLIVEIRA e
SILVA, 2016, p.63).
Larrosa (2010, p. 184) nos aponta a complexidade dessa ação de pesquisa ao dizer
que a infância desestabiliza “a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas
práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de
acolhimento”.
O olhar do pesquisador e sua sensibilidade são fundamentais para captar, identificar,
conhecer e compreende as crianças durante a observação, a escuta sensível, as filmagens, a
realização de fotografias, de rodas de conversa, a participação em suas brincadeiras, nos
jogos, na interação com objetos materiais e/ou simbólicos, na construção, na organização, nas
diversas formas com que elas se interessam e lidam com o conhecimento, na expressão de
emoções e de sentimentos de todos esses momentos no decorrer do processo de pesquisa,
todas são ações fundamentais do pesquisador.
É compreensível que a ação seja essencialmente desafiadora, já que as crianças vêem
naturalmente os adultos como aqueles que detêm autoridade. Como bem considera Corsaro
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(2011, p.64), conquistar a aceitação nos mundos infantis é especialmente desafiador, dado
que os adultos são fisicamente maiores, mais poderosos e muitas vezes vistos como tendo
controle sobre o comportamento infantil”.
Apresentar-se como alguém que se importa com elas, que brinca junto, que colabora,
desenvolvendo uma relação de amizade em inimizando o máximo sua autoridade, configura-
se também como uma atitude ética e respeitosa ao se fazer investigações com as crianças. O
pesquisador deve possuir clareza que estabelecer uma relação fincada na amizade, na
igualdade de relações horizontais de amor, é ter ciência de sua postura ética inerente ao
trabalho de investigação.
Considerações finais
A pesquisa com crianças é permeada de singularidades, é um percurso de desafios,
mas é também uma ferramenta de possibilidades, de sensibilidade ética e estética, de escuta e
de garantia de direito, de voz. Pressupõe a participação necessária das crianças e de suas
vozes, que devem estar obrigatoriamente impressas e impregnadas nos livros e na sociedade.
Fazse necessário dizer que não pretendemos compartilhar respostas, mas criar
possibilidades de perguntas e de reflexões que ampliem nossa visão enquanto pesquisadores
para, assim, alcançar ainda que de longe o vislumbre dos sonhos e das esperanças das
crianças, e contribuir para a sua qualidade de vida a partir da presença ética, respeitosa e
sensível em relação às crianças e suas infâncias.
Nossa vivência com os pequenos nos permite assegurar com clareza e leveza que as
pesquisas com eles são instrumentalizações de visibilidade de suas vozes. É levá-los onde não
podem ir, é fazer ecoar suas vozes e gerar transformações por meio de políticas públicas que
valorizem suas vidas e respeitem suas culturas. É um convite ou, poderíamos dizer, um grito
da urgência de atenção as suas necessidades por qualidade de vida.
Com base nas nossas experiências como pesquisadoras e no referencial teórico,
defendemos que existem singularidades metodológicas que possibilitam escutas sensíveis e a
visibilidade da infância. Assim, destacamos neste artigo alguns aspectos dessa singularidade,
nas quais a metodologia tende a assumir um caráter experimental e sensível, as estratégias
asseguram a aproximação e o levantamento sensível dos anseios, dos interesses e da
compreensão de mundo das crianças.
A postura do pesquisador, portanto, deve ser ética, respeitosa, pois as pesquisas com
crianças são instrumentos de visibilidade das vozes das crianças e da infância ao reconhecer
as singularidades e especificidades de sua cultura.
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[Recebido: 14 jan 2020 Aceito: 21 jan. 2020]
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MEMÓRIA POLÍTICA DO PARÁ NA VOZ POÉTICA DE ABGUAR BASTOS:
ROMANCE SAFRA, UM ECO DA RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA
PARÁ'S POLITICAL MEMORY IN THE POETIC VOICE OF ABGUAR BASTOS:
ROMANCE SAFRA, AN ECO OF RESISTANCE IN THE AMAZON
Dinalva da Silva Corrêa
39
Denise Simões Rodrigues
40
Resumo: Este artigo objetiva estudar um dos romances da Série Os dramas da Amazônia de
Abguar Bastos. No romance Safra, (1937) o autor, como um historiados da Amazônia,
dedica-se a denunciar mazelas da região, neste caso o drama da cultura da castanha. O texto,
dividido em três partes, apresenta aspectos da vida e obra de Abguar Bastos; a memória
política do escritor e por fim, discute sobre o romance “Safra”, que em muitos aspectos revela
a posição política do autor, na representação de personagens e no problema social da
espoliação vivida no cenário amazônico da cada de 30. Dessa forma, o texto se caracteriza
do ponto de vista metodológico como uma pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica e
documental e se fundamenta, nos teóricos ligados ao campo da memória, como Halbwachs
(1990), Bosi (1994), Pollack (1989), da literatura, entre eles como Cândido (2006), Furtado
(2008), Araújo, além de entrevistas concedidas pelo autor em vida e trabalhos acadêmicos
sobre o romance em estudo.
Palavras-chave: Abguar Bastos. Educação. Memória. Política. Safra
Abstract: This article aims to study one of the novels in the series The dramas of the Amazon
by Abguar Bastos. In the novel Safra, (1937) the author, as a historian of the Amazon, is
dedicated to denouncing the region's ills, in this case the drama of the chestnut culture. The
text, divided into three parts, presents aspects of the life and work of Abguar Bastos; the
political memory of the writer and, finally, discusses the novel “Safra”, which in many
aspects reveals the political position of the author, in the representation of characters and in
the social problem of plunder experienced in the Amazonian scenario of the 1930s. this article
is characterized from the methodological point of view as a qualitative research of the
bibliographic and documentary type and is based, in the theorists connected to the field of
memory, as Halbwachs (1990), Bosi (1994), Pollack (1989), of the literature, among such as
Cândido (2006), Furtado (2008), Araújo, in addition to interviews given by the author in life
and academic works on the novel under study.
Keywords: Abguar Bastos. Education. Political Memory. Safra.
39
Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação de Educação-PPGED-UEPA. E-mail:
correadinalva@gmail.com
40
Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEPA.E-mail:
dssr@uol.com.br
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Introdução
Abguar Bastos não era somente um dos muitos escritores que apresentou a realidade
da Amazônia em seus romances, privilegiando aspectos referentes à cultura da região, mas
também pela escritura, que conquista o leitor pela poeticidade do texto. A obra de Abguar tem
sido objeto de muitos estudos, especialmente, na academia, nos cursos de graduação e pós-
graduação em Letras. Ele deixou um grande legado para a literatura brasileira de expressão
amazônica, destacando-se a trilogia dos romances “Terra de Icamiaba”, “Safra” e “Certos
caminhos do mundo”, que ele denominou de Série Os Dramas da Amazônia.
Em relação à Série Os dramas da Amazônia, se percebe, que as posições políticas de
Abguar, de alguma forma, estão representadas nas obras. Desse modo, ao fazer um
levantamento sobre o estudo da arte que abordasse pesquisas envolvendo a temática da
política em Abguar Bastos, deparamo-nos com a dissertação de mestrado intitulada O
pensamento social e político de Abguar Bastos, de Jefrey Luiz Sevalho Miller (2013). Neste
trabalho, o autor aborda os estudos e debates em torno do processo revolucionário brasileiro a
partir da análise e interpretação da obra “História da Política Revolucionária do Brasil” (I e
II), de Abguar Bastos. Em nossa pesquisa, investigaremos como o homem Abguar Bastos
influenciou politicamente o romancista, em especial, no “Safra”.
Este artigo, divididos em três partes, abordaremos breve aspectos da vida e obra de
Abguar Bastos; a memória política do escritor, destacando a participação na Revolução de
1930 e, por fim, discutimos sobre o romance “Safra”, demonstrando a influência política na
obra.
Abguar Bastos: um vândalo do Apocalipse
41
O escritor não é um negociante de ideias. Não é um
mercador de ilusões, mas autêntico anunciador de boas
novas e, ao mesmo tempo, o que tem a coragem de
protestar contra as tiranias, de denunciar explorações e
usurpações, e o que tem o compromisso social de
marchar na vanguarda das transformações”
(Abguar Bastos, em 1987, por ocasião do recebimento
do Troféu Juca Pato).
41
O grupo “os vândalos do apocalipse“ se formou a partir de dois grupos que existiam: "Academia do Peixe
Frito”, intelectuais de origem mais pobre, que se reuniam em barracas no Ver-o-peso nos anos de 1920 e 21 e a
“Academia ao ar livre”, que se reunia no terraço do “Grande Hotel”, onde, hoje, localiza-se outro hotel,
localizado na Praça da República, em Belém. “Estes grupos tinham interesses comuns, como renovação das
letras, quebrar regras clássicas que eles chamavam de ‘passadismo literário’, e se rebelaram contra a ditadura do
parnasianismo, corrente literária muito forte na virada do século XIX para o XX. Esses dois grupos se
organizaram e se aproximaram e, deles, surgiu o grupo ‘Vândalos do Apocalipse’”. (FIGUEIREDO, Aldrin
Moura de. Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará nos anos 20.Belém: Instituto
de Artes do Pará, 2012).
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Abguar Damasceno Bastos nasceu em 22 de novembro de 1902 e faleceu em São Paulo, em
26 de março de 1995, filho de Antônio Álvares Damasceno e Maria Ferreira Bastos. Após os
estudos primário e secundário nos colégios Progresso Paraense, Moderno e Paes de Carvalho,
no período de 1921 a 25, estudou na Faculdade de Direito do Amazonas. Sempre se destacou
por sua intelectualidade e pela diversidade de áreas de atuação na sociedade, dedicando-se
especialmente ao jornalismo e a política.
Como escritor, Abguar iniciou na Literatura como poeta e se tornou um escritor
multifário. Foi romancista, poeta, folclorista, ensaísta, crítico, sociólogo, escritor, jornalista,
político revolucionário, dentre outros. Em 1927, elaborou o Manifesto Flami-n’-assu
42
que,
segundo alguns críticos, lançou o Movimento Modernista, na Amazônia (BARREIROS,
1987). Foi integrante da Academia do Peixe Frito
43
e da Associação dos Novos.
Ainda conforme Barreiros (1987), Abguar estreou na Literatura Brasileira, com o
romance A Amazônia que ninguém sabe (1930). Quatro anos depois publicou, no Rio de
Janeiro, nova edição do livro com outro título definitivo: Terra de Icamiaba (1934, romance
da floresta), Certos caminhos do mundo (1936, romance do Acre, ou ainda, romance do
homem e do rio) e Safra (1937 e 1958, romance da Vila). Safra teve uma publicação
Argentina, em 1959, Zafra.
No fragmento, abaixo, Abguar, em entrevista concedida a Ruy Barata e Vasti Araújo,
no seu apartamento, em São Paulo, relata como surgiu a ideia para a escritura dos romances,
da Série Os Dramas da Amazônia:
[...] eu andei pelo Acre, pelos confins todos, etc., viajei o Madeira, viajei o
Purus, viajei o...o Juruá, Tocantins essa coisa toda. E isso tudo serviu para eu
ter uma visão, não só mais ampla da Amazônia, como do sofrimento do povo
da Amazônia. E disso tudo resultaram meus três romances,não digo
primeiros, os três únicos. O último está ainda pronto, mas não publiquei
ainda. O Safra, terra de ica...do...do o Terra de Icamiaba, o Safra e o ...e
o...[...] os sete caminhos do mundo
44
(BASTOS, 1990, p.17.apud SANTOS,
2016, p.34).
Abguar, além da Série, escreveu inúmeros livros, dentre eles, 23 obras inéditas e
inúmeras antologias.
A memória política de Abguar Bastos: um eco da resistência na Amazônia
“[...] e essa atuação política minha é consequente a
minha atuação da Revolução de 30. A Revolução de
30, ela tinha um programa básico, mas nós
42
Flami-n’-assu, do tupi significa a grande chama. Trata-se de uma proposta estética representativa
literariamente da realidade linguística, cultural popular e histórica, revestida de uma poética modernista para
Amazônia (MILLER, 2013, p.37).
43
A Academia do Peixe Frito era o encontro de jovens jornalistas, literatos, músicos que ansiavam por uma arte
(sobretudo literária), diferente dos moldes tradicionais. Ali nos arredores do mercado do Ver-o-Peso, em Belém
do Pará, começaram a se reunir para refletir acerca do assunto e dar os primeiros passos rumo a uma nova
estética. Esses poetas-jornalistas, na sua maioria, eram jovens pobres, negros, autodidatas, autodidatas,
provenientes da periferia de Belém, que assumiam profissões variadas para ganhara a vida. (FIGUEIREDO,
2001; COELHO, 2003; LARÊDO, 2012; NUNES; COSTA, 2016 apud PEREIRA, C.Set al., 2018.Revista Asas
da Palavra.v.15 nº1.p.49-58..Jul.2108).
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achávamos que ela ia evoluir mediante um processo,
que ela ia crescendo na medida do poder em abrir
maiores caminhos, a favor do povo, a favor da classe
operária, etc. Mas isso foi brecado por Getúlio. Esse
desenvolvimento foi brecado e ao contrário veio a
reação contra as reivindicações [...]”.
(BASTOS, Abguar. Entrevista ao Museu da Imagem e
do Som, em 19/08/1981).
Antônio Cândido (2006), em “Literatura e sociedade”, enumerou cinco modalidades mais
comuns em estudos do tipo sociológico em Literatura, conforme critérios oscilando entre a
Sociologia, a História e a crítica de conteúdo. Para a presente pesquisa sobre memória
política, dentre as tipologias propostas por Cândido, destaco a quinta em que o autor salienta a
importância da sociedade, a proposta política da obra e o relacionamento entre a condição
social do autor e a sociedade a qual pertence.
Conforme Joel Cardoso (2007), Abguar era comprometido com os ideais da Aliança
Nacional Liberadora-ANL, movimento nacional fundado por estudantes e operários, pregava
um governo popular nacional revolucionário, sob a orientação de Luís Carlos Prestes. O lema
da ANL era “Pão, Terra e Liberdade”. A extinção da ANL, por Getúlio Vargas, em 1935, deu
ensejo a uma atitude de protesto iniciada pelos líderes militares do movimento. A
conspiração, nos quartéis, ficou conhecida como a “Intentona Comunista”, de 1935.
Segundo Flávio de Leão Bastos Pereira, neto de
Abguar Bastos, escreveu no blog: Inteligência, Literatura e História
45
, que o avô, a época,
Deputado Federal, era um dos fundadores da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e que
havia recebido uma carta de ameaça, datada em 04.08.1937, firmada por um membro do
Movimento Integralista, segundo o neto “versão tupiniquim dos movimentos nazifascistas
europeus”. Entre outras ameaças, pode-se ler no documento abaixo:
Abguar Bastos,
Estais novamente tramando contra a Pátria aliado aos inimigos do Brasil.
Muitos brasileiros dignos estão acompanhando os teus passos, assim como
eu. Oh! Judas do século XX. Os seus amigos também são vigiados em todos
os passos. Eu também te aviso que com brasileiro, homem do povo, massa
anônima a qual dizes pertencer. Eu te eliminarei na primeira investida que
fizeres. Serei um Manso de Paiva
46
de 1937. Um fanático contra ti e ao
célebre e miserável Café Filho. Contra a bala e o punhal não é preciso
imunidades parlamentares. Assino-me patriota. Somos conhecidos e
conheço vossos planos. (Essas duas últimas frases estão escritas na carta em
vertical) (PEREIRA, 2011. grifos nossos).
Abguar Bastos participou da Revolução de 30, no Pará, tomando parte, como elemento
civil, na rebelião do 26º Batalhão de Caçadores de Belém, deflagrada em outubro do mesmo
ano, sob o comando do tenente Joaquim Cardoso Magalhães Barata. Antes do final do mês,
45
PEREIRA, Flávio de Leão Bastos. Abguar Bastos. Inteligência, Literatura e História. Publicado em
28/09/2011. Disponível em: http://escritorabguarbastos.blogspot.com/. Acesso em: 13/07/2019.
46
Francisco Manso de Paiva Coimbra foi um criminoso brasileiro autor da morte do senador Pinheiro Machado
com uma punhalada nas costas, no saguão do Hotel dos Estrangeiros, um hotel de luxo no Rio de Janeiro, em 8
de setembro de 1915. Informação disponível em: https://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj20.htm. Acesso em:
16/07/2019.
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foi preso pela força pública em Bragança (PA) e recambiado à capital do Estado. Com a
vitória da Revolução de 1930, foi nomeado secretário da junta governativa do Pará, tornando-
se chefe de gabinete de Magalhães Barata, nomeado interventor federal. Permaneceu no cargo
até 1931, quando se retirou por discordar da orientação política da interventoria
9
.
A Revolução de 30 foi um movimento armado iniciado no dia 3 de outubro de 1930,
sob a liderança civil de Getúlio Vargas e sob a chefia militar do tenente-coronel Pedro Aurélio
de Góis Monteiro, com o objetivo imediato de derrubar o governo de Washington Luís e
impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República em de março anterior. O
movimento tornou-se vitorioso em 24 de outubro e Vargas assumiu o cargo de presidente
provisório a 3 de novembro do mesmo ano.
Conforme Bastos (1969), Getúlio Vargas anunciara o propósito de convocar uma
Constituinte, mas não estabeleceu uma data e os políticos oposicionistas não acreditavam no
prometido. Cansados de esperar, rias vozes começaram a criticar o governo
provisório como Partido Comunista, a Aliança Nacional Libertadora, os paulistas, etc.
Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som (MIS), em 19/08/1981, Abguar narra a
participação na Revolução de 1930 e destaca o momento em que havia sido preso com os
demais companheiros:
Participei da Revolução de 1930. Fiz uma campanha cheia de peripécias no
Piauí a serviço de um amigo Alves Coelho Rodrigues, filho do Conselho
Coelho Rodrigues que não podia participar da campanha por ser oficial de
Marinha e depois, após isso, ocupei vários postos junto às juntas militares
que se formaram após a revolução como chefe de gabinete, secretário, etc.
Depois disso, fui eleito deputado Federal pelo Pará. Vim para o Rio. Vim
como elemento da situação, porque eleito pelo partido Liberal que era o
partido da revolução. Mas quando cheguei no Rio, vi a situação tão diferente
daquilo que eu pensava: espancamentos, prisões, violências, que eu acabei
rompendo com a situação e aderindo a Aliança Nacional Libertadora que era
o núcleo dos tenentes, os chamados tenentes da revolução, de que eu tinha
participado, dissidentes dos métodos adotados então por Getúlio Vargas no
poder. Após isso, sofri uma prisão. O governo decretou estado de guerra.
Com este estado de guerra, fui preso com João Mangabeira, Domingos
Velasco, Senador Chermont e Otávio da Silveira. Passamos um ano e pouco
presos. Depois o Tribunal de exceção nos julgou
47
e é claro, que condenou,
mas já tínhamos cumprido a pena. Voltamos à Câmara. Em novembro, novo
estado de guerra. O governo fechou a câmara. Foi quando eu vim para São
Paulo e aqui fiquei exercendo várias atividades entre as quais a de
Jornalismo.
Detalhadamente, Flávio Bastos Pereira, neto de Abguar Bastos, também narrou a
passagem do dia em que o avô havia sido preso, logo após o fechamento do Congresso
Nacional, pelo Presidente Getúlio Vargas. A capital federal, na época, era o Rio de Janeiro.
Segunda metade da década de 30, no exercício do mandato de deputado
federal. Chegava em casa, vindo das reuniões políticas no Congresso.
Percebi o quarteirão onde era localizado meu apartamento, cercado pela
polícia de Felinto Muller. Logo pensei: vieram me prender. Não podia
47
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/abguar-bastos-damasceno.
Acesso em: 20.08.2019.
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recuar, pois minha esposa (Isaura) estava com as crianças no apartamento.
Decidi subir. Lá, tomando café servido por minha esposa, inclusive de forma
bem polida e educada, encontrava-se a polícia política do Estado Novo. Dois
ou três agentes. Levaram-me, sem resistência. Ao ser conduzido à
carceragem, ouvi uma voz oriunda de uma das celas: 'deputado Abguar
Bastos!!!'; 'deputado Abguar Bastos!!!'...era Jorge Amado, também preso.
A atitude do neto de Abguar ao apresentar para o público a perseguição política
sofrida pelo avô nos remete ao pensamento de Pollak (1989, p.9), em “Memória,
Esquecimento, Silêncio”, quando diz que “o problema que se coloca em longo prazo para as
memórias clandestinas e inaudíveis é o da sua transmissão intacta até o dia em que elas
possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do ‘não-dito’, à
constatação e à reivindicação”. Em relação ao governo de Vargas, evidenciamos a narrativa
da memória política de um das oito intérpretes, entrevistados por Bosi (1994, p.384-385), a
Sra. Risoleta, que trabalhava para patrões ricos que lutavam contra Getúlio em 30 e 32:
São Paulo era contra o Getúlio, os revolucionários lutavam com os
legalistas, mas eu era a favor do Getúlio, achava ele bom. As coisas
que ele criou para o pobre vigoraram até hoje. Não tinha
aposentadoria pra ninguém, quem criou foi ele. Foi por causa da tal
Carta Magna que mataram ele. Ele andava na rua e falava com os
pobres, apoiava os pobres.
A partir das entrevistas com os velhos, Bosi depreende que a ação trabalhista do
governo Vargas aparece como uma dádiva, a que opõem o estado de carência e insegurança
econômica do próprio assalariado durante a República velha. A autora indaga: “Não teríamos
aqui um estrato daquela memória coletiva, de Halbawachs, no caso a memória das classes
pobres, dos operários e domésticos não articulados em grupos políticos?” (BOSI, 1994,
p.457).
Ainda de acordo com a autora, a imagem de Vargas é como o “pai dos pobres”, aquele
que implementou as leis trabalhistas. Essas lembranças perpassam a memória de todos os
velhos que a autora entrevistou. Conforme Halbawachs (1990, p. 34), “É aliás, difícil dizer
em que momento uma lembrança coletiva desapareceu, e se decididamente deixou a
consciência do grupo, precisamente porque, basta que se conserve numa parte limitada do
corpo social, para que possamos encontrá-la sempre ali”.
Dessa forma, encerramos esta seção com a memória de Abguar Bastos, na sua própria
voz, em entrevista ao MIS, em 19/08/1981:
A minha vida sempre foi voltada para a defesa do povo, das liberdades
democráticas e quando entrei na Revolução de 30 foi consciente de que s
estávamos fazendo uma revolução pela liberdade, pelo menos do direito do
voto à mulher, o voto secreto, da legislação para os trabalhadores, que, aliás,
medidas que foram efetivadas. Mas, havia outras medidas: o combate às
oligarquias e então eu entrei na Revolução por causa disso; e esse meu
comportamento ao lado da defesa das igualdades públicas sempre foi
mantida, felizmente, até os dias em que eu exerci ativamente atividades
políticas.
“Safra”: a miséria em carne viva
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Safra é o terceiro romance da Série Dramas da Amazônia, composto por 26 partes,
encadeadas, interdependente, mas que até poderiam ser lidos isoladamente como contos. Cada
personagem e tema renderiam estudos e análises bastante complexas, tamanha sua riqueza,
daí desfilam importantes temáticas e personagens ligadas à cultura da Amazônia estão
presentes, como por exemplo:
a mitopoética, no capítulo Filhos de Boto
Chico Polia não se espanta. Conhecia a lenda dos botos. O povo acredita que em
certas épocas les se transformam em formosos rapazes. Assim disfarçados, entram
nas festas, infestam as salas e dançam com as jovens. Donos de irresistível atrativo,
de olhos negros e hipnóticos, seduzem as moças e elas aparecem grávidas, meses
depois, sem jamais encontrar os misteriosos rapazes. Os filhos crescem. São filhos
de boto. (BASTOS, 1958,p. 38)
a conhecida sátira a Mário de Andrade no capítulo a Rainha do Café
48
.
- Então é Mario d’Almada? Conheço-o muito de nome. Muita honra! honra! O
senhor tem um belo espírito revolucionário, ainda que eu não entenda bastante do
segredos de sua escola. Futurismo, cubismo, dadaísmo, não importa meu caro. O
senhor é parente do Oswald de Andrade, o romancista? (BASTOS, 1958, p. 136)
Todavia a decisão de enfocar as questões politicas diz respeito à relevância do tema no
romance e aos estudos particulares desenvolvidos por nós.
Em entrevista a Luiz Lima Barreto (1987), Abguar Bastos declarou sua a preferência
pelos romances que escreveu: “Gosto mais de Safra. Terra de Icamiaba é o romance do
homem e da floresta. Certos caminhos do mundo é o do homem e o rio, e Safra é o do homem
e a economia extrativista, não mais da borracha, mas a da castanha”. De acordo com Araújo
(2008), “Safra” segue os moldes da segunda geração modernista que trazia como
característica principal a denúncia das mazelas sociais. O quadro social, econômico e político,
que se verificava no Brasil e no mundo, no início da cada de 30, levam os artistas e
intelectuais a uma tomada de posição ideológica, o que resulta numa arte engajada, de clara
militância política.
“[No Safra] faço uma descritiva da miséria da Amazônia e da exploração do
homem pelo homem. Exploração do latifúndio pelo produtor pobre, que ele
asfixia, esmaga, toma a terra, etc. Bom, eu faço aquele traço, aquele
panorama da fome, daquela coisa toda” (BASTOS, 1990, p.17 apud
ARAÚJO, 2008, p.79).
48
Refere-se a viagem de Mário de Andrade à Amazônia, em que veio como secretário de uma paulista,
conhecida dama do café, chamada Olivia Penteado.
Todos os homens andam
curvados, procurando na terra o
alimento. Na verdade, os que
pensam estar em liberdade
também são prisioneiros, sejam
da mata, do rio, da lama ou do
barro” (BASTOS, Abguar. Safra,
p.31).
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O contexto amazônico vivia o período de decadência do ciclo da Borracha. De acordo
com Almeida (2015), após o declínio da borracha, em 1920, a castanha-do-Pará passou a ser
explorada para exportação. Importa compreender que a produção regional fundava-se no
extrativismo florestal e sua exportação se dirigia aos mercados europeus, tendo os contatos
com o resto do Brasil se mantido fracos até meados deste século.
Assim como foi o ciclo econômico da borracha, de igual forma se deu o ciclo da
castanha concernente ao sistema de compra e venda. Conforme Weinstein (1993), a
preservação do sistema de aviamento era sustentada pelos seringueiros, os castanheiros e
também indígenas, pois a garantia em relação ao acesso a alimentos e bens manufaturados era
extrair borracha ou coletar castanhas-do-Pará e revendê-las ao aviador local.
Em uma vila, na região de Coari, no rio Solimões, o romance “Safra” centra-se no
drama de Valentim, um pequeno produtor que lutava pela sobrevivência nos castanhais. Tinha
um filho doente, o Manduca e a esposa, Aninha. Certo dia encontra Bento, aliado de Dalvino,
e Valentim é avisado que Bento estava desviando e vendendo suas castanhas. Valentim acaba
assassinando Bento e vai preso. Inconformado com as injustiças do mundo, Chico não
aceita o que acontece com Valentim, pois na Vila, os detentos podiam sair da cadeia para
fazer pequenos serviços ao Juiz, ao Delegado, Promotor, exceto Valentim, que ficava o dia
todo na prisão por causa da influência de Dalvino, pois “A Vila tem dois chefes políticos: o
Dalvino, que é da situação, e o major Leocádio, que é da oposição” (BASTOS, 1958, p.41).
Conforme Farias (2010), eles o os grandes castanheiros da região. Entre os dois havia uma
inimizade por causa de uma suspeita, que um pensava que estava roubando as sementes do
outro. Donos de uma vastidão de terras, cada um se intitulava dono de uma parte do rio.
Quando se sentiam prejudicados pelo adversário, fechavam os rios e todos os outros
produtores ficavam impossibilitados de se navegar.
Ao analisar a presença da influência política de Abguar, em “Safra”, destacamos, na
seara da educação, algumas passagens da obra a partir da representação de dois personagens:
Chico Polia e Teotônio Póvoas Neri.
Chico Polia, guarda da prisão, é um dos personagens centrais da obra. Apesar de não
ter muito estudo, informava-se dos acontecimentos. Conheceu o marinheiro Tobias, que
havia andado na Europa, América do Norte e nas Áfricas e se ilustrava com ele. Chico foi
num Lloyd para Manaus com promessa de um trabalho na Polícia, porém:
Como soldado, ganho aqui mais do que em Manaus, porque a prefeitura
gratifica. Porém já estou enjoado, talvez volte pra faxina, no quartel de
Manaus. Em dois meses serei cabo, mais um ano serei sargento. Afinal, sei
ler, escrever e entendo um pouco de aritmética. Tenho minhas aptidões. Já li
muito livro bom, no tempo de aprendiz de tipógrafo. Já estou arrependido de
ter vindo. Podia estar na escola do quartel, estava no fim do curso [...]
Verdade é que tenho vontade de estudar, aprender. (BASTOS,1958,
p.11, grifos nossos).
Na seção anterior, vimos o quanto Abguar lutou pela justiça e era a favor dos pobres e
oprimidos. De acordo com Farias (2010), Chico é a voz de denúncia do romance. Abguar fez
de Chico Polia uma voz que critica os acontecimentos errados do mundo, da religião e da
política e denuncia não somente a situação da população pobre, o sistema de compra e vendas
da castanha, mas também, a exploração dos frades em relação ao trabalho escravo indígena:
-E por que tratam os índios como escravos? -Os índios não são pessoas como
nós?
Os índios não são obrigados a ficar nas Missões. (BASTOS, 1958, p.20).
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algum índio nas escolas? Não vê. Vive por dormindo na floresta,
comendo peixe e capivara. Vê índio soldado? índio padre? Vê índio
encostar na vila o batelão e vender castanha poros sírios? Não vê. Por que
os frades não ensinam aos indiozinhos de modo a igualarem com agente na
atividade e no conhecimento? Quando índio aprende ofício de pedreiro,
marceneiro ou carpinteiro, sabe, é pra trabalhar na Missão. O índio é
convencido de que se não trabalhar na Missão via pro Inferno [...]
(BASTOS, 1958, p.23).
Para Araújo (2008), não há personagens centrais, podendo-se dizer que o sofrimento e
a fome dos trabalhadores são os personagens principais no romance. De acordo com Furtado
(2008, p.102),
Cabe a Chico Polia o filtro das digressões do autor. Ao invés de colocar o
narrador em digressão para apresentar o retrato das injustiças e das misérias
locais, como o fizera nos romances anteriores, o narrador filtra essas
digressões por meio do pensamento dos personagens, via discurso indireto
ou indireto livre. Assim, Chico Polia, o soldado, ganha a mesma importância
de Valentim na condução do enredo, pois que abre e fecha a narrativa, a
refletir sobre as injustiças locais. Dessa forma, além de densidade nas
personagens e narrativa, Abguar consegue dar maior unidade à obra, sem
cair no pitoresco dos outros anteriores.
Mergulhado na memória, o soldado relata a Valentim, na cadeia, a injustiça que
sofrera desde o tempo de escola. Chico, menino órfão, é julgado inadequado no espaço
escolar, no convívio com as demais crianças. O excerto, a seguir, promove uma reflexão da
relação constituída de opressão econômica, social e política. Nesse processo de dominação, o
pobre não tem vez e nem voz.
Uma vez quando eu estava na escola, a mestra me botou de castigo porque
cheguei atrasado. Outra vez porque esqueci da tabuada. E outra vez porque
eu não soube a casa dos 3, da multiplicação. Dias depois, o filho do Coletor
chegou atrasado e não foi de castigo. O filho do Tabelião não levou a
tabuada. O filho do Promotor levou uma semana na casa do 2, também da
multiplicação e não foi de castigo. Minha mãe era muito pobre, batia roupa
o dia inteiro e de noite caía no ferro de engomar. Eu quando ficava de
castigo chegava muito tarde em casa, visto sair uma hora depois dos
outros. De modo que muitas vêzes minha mãe é que tinha que levar as
trouxas de roupa, nas casas dos fregueses, pra não se atrasar; ia nas vendas,
ia buscar água no rio. Minha mãe me ralhava porque eu não cumpria com
minhas obrigações. Uma noite lhe contei que a mestra só botava de castigo a
mim, enquanto os outros nada sofriam. Minha mãe foi falar com a mestra.
Eu fui falar com ela. Era um domingo e a mestra vinha chegando da Igreja.
Mamãe disse: ‘Dona Benta, me desculpe se passo de intrometida, mas eu
vinha pedir à senhora que não soltasse o Chico muito tarde, porque ele é que
me ajuda em casa’. A mestra me olhou muito superior, como se eu fosse
uma lombriga. Respondeu: ‘Ora, dona Constança, é melhor seu filho não vir
mais. Ele não dá pra nada. É muito vadio, esquece tudo e gosta de se
misturar com os meninos de família que frequentam a minha escola.
[...]’Meu filho não tem vícios, não anda sujo, nem rôto. É pobre, mas não é
por isso que os outros s e esquivam dêle. E eu, D. Benta, vivo tão
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honradamente como qualquer uma dessas da sociedade. [...] Minha mãe
estava exaltada e chorou muito. E nessa noite me disse: Meu filho, justiça
não tem neste mundo. Mas se um dia fores alguma coisa, nunca faças
pouco de ninguém, nem pratiques uma injustiça, porque é o que mais
di neste mundo[...] (BASTOS, 1958, p.17-18, grifos nossos).
Em vista da assertiva acima, Arroyo (2014, p.13), parte das seguintes inquietações:
Como ser educadores (as) de sujeitos que carregam esse peso desumanizante dessas
pedagogias que tentaram fazê-los e convencê-los de serem inferiores, subalternos? Quantos
fracassos escolares têm como origem ignorar que os outros educandos são as vítimas dessas
pedagogias de subalternização/opressão?
Nada fácil a uma tradição pedagógica que ainda pensa os grupos populares e
seus (suas) filhos(as) como inferiores, ignorantes, incultos, sem valores, com
problemas morais e de aprendizagem a serem civilizados, moralizados
quando essa visão ainda prevalece, a chegada das crianças e adolescentes,
dos jovens e adultos na escolas será vista com receio, os tratos serão
pautados por preconceitos inferiorizantes (ARROYO (2014, p.15).
Outro personagem que tem rastros da influência política de Abguar é o Teotônio
Póvoas Neri, advogado, mas era também “amador de clínica”, pois tinha uma farmácia. As
pessoas o tinham como o médico da Vila. Também se concentrava em estudos de astrologia e
línguas. Era encarregado do posto meteorológico e ganhava 50 mil réis por mês da Prefeitura.
Na casa do bacharel, os livros se amontoavam nas três estantes, nas mesas,
nos bancos, no chão, embaixo da cama, em baixo da rede, atrás das portas
em todo lugar onde Teotônio cismava que havia espaço.
E ele explicava aos
consulentes aquela desordem: -
Minha casa dá sempre a impressão de que acaba de ser visitada por gatunos.
Em parte essa impressão é real. Eu sou o ladrão da ciência (BASTOS, 1958,
p.78).
Teotônio era um homem de sabedoria, honesto e sem interesses. Quiseram até fazer
dele vereador, coletor e até prefeito, porém ele respondia: “Prefiro ser advogado e acudir os
meus pobres doentes. A política é a lepra da sociedade” (BASTOS, 1958, grifos nossos,
p.79). Teotônio reconhece que, no caso de Valentim, tratava-se de uma perseguição
política. Chico planeja a fuga do preso por ocasião do Natal. No entanto, Valentim volta para
a cela, porque não quer colocar o amigo Chico em má situação.
Enfim,
O presente estudo procurou dar visibilidade aos escritos de Abguar Bastos, em
especial, ao romance “Safra”, que retrata a exploração do homem pelo próprio homem, a
miséria, a fome, os conflitos entre os castanheiros e os donos dos castanhais, expondo, dessa
maneira, os dramas da Amazônia. Bastos deixou transparecer suas posições políticas por meio
do personagem Chico Polia e o advogado Teotônio, ambos não se conformavam com a prisão
de Valentim, pois os outros presos trabalhavam livremente para as autoridades locais, porém
era subjugado pelo poder local. A obra tem um olhar denunciador da imagem social,
econômico e política que se verificava na década de 30, levando o escritor a uma tomada de
posição ideológica, resultando numa arte engajada, de clara militância política. Em “Safra”,
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percebemos o relevo dado às mazelas vividas pelos povos da Amazônia, retrato em que
imperam, a miséria, a ignorância, a injustiça, a opressão nas relações de trabalho e a política.
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[Recebido: 30 set 2019 Aceito: 21 jan. 2020]