partir da vivência que o olhar do eu lírico o desenha. O olhar do eu lírico passa a ser o olhar
do eu, porque ele vê não através dos olhos do outro, nem por seu reflexo, e sim com o seu
olhar próprio, incorporando-os; assim como Mikhail Bakhtin (2007) teoriza sobre a criação da
identidade: o eu conhece-se, porque se vê no olhar do outro. O “ver-se” no olhar do outro não
corresponde a um mecanismo nem de atravessar, nem de se refletir, mas de incorporar a
imagem como se ela fosse do eu. Quando o eu lírico criado por Leonardo Tonus (2018) diz
que não há beleza na violência, o eu-leitor enxerga, como o eu lírico, a própria violência: “A
faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca”. Nesse verso, sente-se a lâmina cortar a
carne do corpo. Não se trata mais de uma mulher desconhecida, porque o leitor agora,
tomando o olhar do eu lírico, toma para si o corpo cortado. Desse modo, trata-se de que a
violência não consiste apenas de uma negação do material da poesia, porque consiste de uma
matéria sensível e capaz de aprendizado, porquanto a dor da mulher é a dor do eu lírico e é a
dor do eu, que é o leitor. Novamente verifica-se a citação do filósofo antigo Aristóteles sobre
a condição catártica da poesia, uma vez que a catarse não significa pura e simplesmente a
purgação de emoções, pois a catarse se refere à vivência de emoções que atingem o
aprendizado e, consequentemente, o conhecimento. A poesia de Tonus (2018) entrega ao
leitor justamente o conhecimento do mundo marginalizado, transformando o hipotético não
poético, o não belo, em palavra concreta para o leitor, que é o eu, aprender a ver. Conforme
Carlos Felipe Moisés (2007), a poesia ensina o leitor a ver, indiferentemente se o visto já fora
enxergado, pois ela ensina a ver de outra perspectiva, como se fosse a primeira vez: “O
excêntrico modo de ver, ensinado pela poesia, incita-nos a encarar o objeto (ou coisa ou ideia)
sobejamente visto, como se nunca o tivéssemos visto antes” (MOISÉS, 2007. p. 20).
A visão da poesia é ligada diretamente à sensação que ela provoca, a catarse; afinal o
leitor olha não como mais uma informação de casos de violência, e sim como a violência é, de
dentro dela, da faca que corta o corpo da mulher, da mulher que sente a lâmina, do negro que
é rechaçado por sua etnia. Tudo se transforma em corpo material e de sensibilização; pela
primeira vez, o leitor vê a violência.
O texto de Leonardo Tonus (2018) prossegue com o ritmo de desnudamento do real, o
que não é belo, nem poético, e, ainda assim, fazendo-se de poesia: “Não há poesia nos
genocídios”; “No refúgio não há epifanias” (TONUS, 2018, p. 14). Todavia, aos poucos, a
voz lírica que, antes, havia dito aquilo que não é, o ato de negação, cede para uma voz que
afirma a sua identidade: “Eu perdi a voz/ ao sair” (TONUS, 2018, p. 14).
A perda da voz do eu lírico não se faz da ausência de voz, porque não se ausenta, se
presentifica em um tom de desesperança e de distopia, como ouvimos e lemos na voz poética
escrita e cantada pelo compositor-poeta Renato Russo, líder e intérprete da banda brasileira de
rock Legião Urbana. Renato Russo, no álbum A tempestade ou o livro dos dias (1996),
apresenta uma voz poética que representa a dualidade em constante diálogo de um real criado
na canção e do sonho do eu poético, sendo que, no caso do real, a imagem figura-se sempre
como a distopia, enquanto o sonho, como a utopia. Seu eu poético ainda transita por temas
sociais e existenciais que podem se debater e se chocar. Por ser canção poética, a voz da
poesia não se perde, com o eu lírico de Leonardo Tonus (2018), porque se encontra no texto
musical, o que lhe permite ganhar mais força de expressão. Em suma, o real em Renato Russo
é construído sobre a imagem da distopia, em que o caos, o feio, a desordem, a solidão, a
violência e a indiferença sobrepõem-se a tudo, restando um mundo em decadência. No poema
“Um corpo sobre a areia” (TONUS, 2018, p. 14-15), observa-se a mesma ideia construtiva da
distopia conforme Renato Russo, pois o mundo não existe como uma unidade, porquanto
sobrevive de indivíduos marginalizados e violentados, posto que há a mulher estuprada, o
negro discriminado, os mortos em massa, as pessoas traficadas, o corpo de uma criança
refugiada e encontrada morta na areia: