Desde a sua primeira peça, “O Reino da Iluminura ou A Maldição da Besta-Fera”,
encenada pelo Grupo de Teatro Amador (GRITA), Barroso deixa claro a fonte do seu teatro: a
tradição popular nordestina, com suas narrativas, poetas, cantadores, espetáculos, danças,
folguedos, e o engajamento político, social e cultural.
A partir dessa nascente, o dramaturgo faz escolhas estéticas e simbólicas que trazem
reflexões para o texto teatral e para a cena, dando voz a tantos silenciados pelas circunstâncias
culturais, sociais e históricas:
Ao investir num teatro literário, mais do texto do que da experimentação
cênica, repleto de matéria popular, fortemente compromissado com as fontes
tradicionais, Oswald segue na mesma direção já apontada pelos pioneiros da
dramaturgia nordestina, fazendo-o é claro, à sua maneira, trilhando a vereda
que ele mesmo abriu a golpes de facão, e que, ao fim e ao cabo, é somente
sua. (NEWTON JÚNIOR, 2011, P. 14)
Tendo em vista esse contexto, o presente artigo pretende analisar como a peça
Vaqueiros, elaborada a partir das formas clássicas da tragédia grega, ao dialogar com os
personagens, as histórias, as imagens, a palavra e a voz provenientes da tradição oral e
popular do Nordeste, cria uma linguagem híbrida que representa vozes conflitantes em frente
as mudanças nas relações de gênero na estrutura social sertaneja. No entanto, antes da análise,
abordaremos brevemente as relações entre tradição, oralidade, escrita e teatro.
2. Vaqueiros: entre letra, voz e relações de gênero
Na cultura popular nordestina, observa-se uma forte tradição oral transmitida ao longo
do tempo. Todavia, a oralidade ultrapassa o sentido apenas linguístico de comunicação por
meio da fala, como diz o crítico literário: “A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão
do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro:
seja um gesto mudo, um olhar” (1997, p. 203).
Desse modo, usaremos aqui, com base em Zumthor, o termo vocalidade ao invés de
oralidade, pois segundo ele a “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso” (1993, p.
21). Portanto, a voz possui um lugar simbólico, uma relação eu-outro, uma linguagem, um
enunciador/ouvinte, um corpo, uma prática histórica e a cultural, permitindo que ela transite
entre disciplinas e encontre-se na base das mais diversas culturas e em diferentes suportes.
Nessa perspectiva, é possível integrar a voz ao escrito. Como afirma Zumthor: “Em
vez de ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma convergência entre os modos de
comunicação assim confrontados” (1993, p. 114). Assim, a passagem do vocal para o escrito não
significa perda ou ausência da “voz viva”, mas uma relação de troca que cria uma “memória viva”,
portadora de uma tradição que se faz presente, se atualiza no tempo e no ato de comunicar-se.
É com a tradição que o teatro dialoga. Desde a Grécia antiga, a tradição oral está
presente no texto dramático e na encenação. A etimologia da palavra tragédia, por exemplo,
remete à ideia da voz, como canto, pois refere-se ao “coro de bodes” em honra a Baco”
(MOISÉS, 2004, p. 448), portanto, “um grupo de cantores vestido de bode, à maneira de
sátiros” (2004, p. 448).
O teatro, ao ligar-se com os ecos das tradições orais, torna a “palavra viva” seja por
meio da escritura teatral ou da performance. Assim, as narrativas orais não são somente
relatos de histórias passadas, lendas, mitos, folclore, mas são uma forma de diálogo com o
presente, um modo de renovar a visão de um “eu”, de uma coletividade, e da própria voz,
possibilitando o ressoar de novas vozes que mudam, se atualizam, se multiplicam, se recriam,