S
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 20181
REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL
ISSN 1980 4504
NÚMERO 26 (AGO-DEZ) 2018
A ORALIDADE E SEUS MÉTODOS DE PESQUISA
Organização
Alcione Corrêa Alves
(UFPI)
Mario Cezar Leite
(UFMT)
Edição
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
(ESTACIO/FAP)
Dr. Frederico Fernandes
(UEL)
Editoria Assistente e Revisão
Dra. Mauren Pavão Przybylski
(IFBAIANO)
Ms. Fernando Alves da Silva
(PPGLS-UFPA)
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 0
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL
Revista Boitatá é uma publicação semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e
Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística
(ANPOLL)
GT LITERATURA ORAL E POPULAR
BIÊNIO 2016/2018
COORDENADOR
Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Universidade Estácio de Sá / FAP
alexandre_ranieri@hotmail.com
VICE-COORDENADORA
Profa. Msa. Délcia Pombo
PPGLS-UFPA
delciauab@gmail.com
SECRETÁRIA
Profa. Msa. Dia Favacho
PPGLS-UFPA
favachodia1@gmail.com
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ISSN 1980 4504
NÚMERO 26 (AGO-DEZ) 2018
A ORALIDADE E SEUS MÉTODOS DE
PESQUISA
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecário: Marcos Moraes CRB: 9/1701
Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL [recurso eletrônico] / Universidade
Estadual de Londrina - n. 26 (ago./dez. 2018). Londrina: UEL, ANPOLL, 2018.
Semestral
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Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>
Texto em português
ISSN: 1980-4504
1. Literatura oral e popular 2. Oralidade métodos de pesquisa 3. Métodos de pesquisa
em literatura oral I. Alves, Alcione Corrêa. II. Leite, Mario Cezar. III. Universidade Estadual de
Londrina. IV. Título: Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL
CDU 82
Índice para o catálogo sistemático:
1.
Literatura oral e popular
2.
Literatura - métodos de pesquisa
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EXPEDIENTE
EDIÇÃO
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (Estácio/FAP)
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
EDITORIA ASSISTENTE
Dra. Mauren Pavão Przybylski (IFBAIANO)
Me. Fernando Alves da Silva Junior (PPGLS-UFPA)
ORGANIZAÇÃO
Dr. Alcione Corrêa Alves (UFPI)
Dr. Mario Cezar Leite (UFMT)
COMISSÃO EDITORIAL
Dra. Alai Garcia Diniz Universidade Latino Americana /
Universidade Federal de Santa Catarina
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Universidade Estácio de Sá / FAP
Dra. Anna Christina Bentes
Universidade Estadual de Campinas
Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dra. Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra. Cláudia Neiva de Mattos
Universidade Federal Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Eliana Mara de Freitas Chiossi
Universidade Federal da Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
Dra. Ivete Walty Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve (Portugal)
Dra. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa (Canada)
Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes
Universidade Federal do Pará
Dr. Luiz Roberto Cairo
Universidade Estadual Paulista (Assis)
Dra. Maria das Dores Capitão Vigário Marchi
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do Pará
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do Sul
Dra. Maria do Socorro Galvão Simões
Universidade Federal do Pará
Dr. Mário Cezar Silva Leite
Universidade Federal de Mato Grosso
Dr. Piers Armstrong
University of California (Estados Unidos)
Dr. Sílvio Renato Jorge
Universidade Federal Fluminense
Dra. Vanderci de Andrade Aguilera
Universidade Estadual de Londrina
PARECERISTAS DESTE NÚMERO
Dr. Alcione Corrêa Alves
Universidade Federal do Piauí
Dr. Alexandre Ranieri Ferreira
Universidade Estácio de Sá / FAP
Dra. Alessandra Bittencourt Flach
Colégio Militar de Porto Alegre
Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dra. Andréa do Nascimento Mascarenhas Silva
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Cláudia Freitas Pantoja
Faculdade do Vale do Ivaí
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade de Grandes Durados
Dra. Laura Regina dos Santos Dela Vale
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dra. Luciana Hartmann
Universidade de Brasília
Dra. Mauren Pavão Przybylski
Instituto Federal Baiano
Dra. Sônia Maria de Melo Queiroz
Universidade Federal de Minas Gerais
CRÉDITOS DA IMAGEM DE CAPA
Autor: Frederico Augusto Garcia Fernandes
CRÉDITOS DE FORMATAÇÃO E REVISÃO ABNT
Claudemir Sartori Jr.
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SUMÁRIO
APRESENAÇÃO
Alcione Correa e Mário Cézar Leite............................................................6
A
SEÇÃO TEMÁTICA
NA TRAMA NARRATIVA, OS LAÇOS DA VAQUEIRICE: A VOZ
QUE CONTA ENTRELAÇADA AOS SABERES NO CAMPO DO
TRABALHO
Délcia Pereira Pombo, Josebel Akel Fares, Fátima Cristina da Costa
Pessoa.........................................................................................................12
O ESTUDO DAS TRADIÇÕES ORAIS VIVAS: PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS EM DIFERENTES EXPERIÊNCIAS
VIVENCIADAS
Maria Ignez Novais Ayala ........................................................................25
A
ORALIDADES CORPORIFICADAS: PENSANDO O ENSINO DE
DANÇAS
Rodrigo Lemos Soares e Denise Marcos Bussoletti .................................36
SUJEITAS(OS) DE CONHECIMENTO, NOSSAS TEORIAS,
NOSSA VIOLÊNCIA EPISTÊMICA
Alcione Correa Alves..........................................................................................46
A
SEÇÃO LIVRE
A
A PERFORMANCE DA DEFESA TÉCNICA NO TRIBUNAL DO
JÚRI
Alexandre Ferreira Ranieri, Fernando Pessoa e Larissa Melo..................59
AS TRAMAS DO MITO DA B(Ô)TA NOS (DES)CAMINHOS DO
ROMANCE MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR
Zaline do Carmo dos Santos Wanzele, Josebel Akel Fares, Haelton
Antônio Serrão de Carvalho e Robervânia de Lima Sá Silva....................67
LITERATURA E CINEMA: AS FUNÇÕES NARRATIVAS DE
PROPP EM DUAS VERSÕES DO CONTO A BELA
ADORMECIDA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O CONTEXTO
ESCOLAR
Robervânia de Lima Silva, Érica de Cássia Mai e Zaline do Carmo dos
Santos Wanzeler........................................................................................78
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MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL NA MÚSICA CAIPIRA DA
PAULISTÂNIA
Geise Bernadelli.........................................................................................88
NOS (DES)CAMINHOS DA LITERATURA INDÍGENA NO RIO
GRANDE DO SUL: NARRATIVAS E NARRADORES GUARANIS
CONTEMPORÂNEOS
Daniela Gebelucha e Walmir Pereira........................................................98
A
VAQUEIROS: ENTRE LETRA, VOZ, RELAÇÕES DE GÊNERO
Fabíula Martins Ramalho e André Luís Gomes......................................108
A
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APRESENTAÇÃO
Na chamada a este presente número da revista Boitatá, visando a uma pergunta sobre
nosso fazer científico em nossos atuais contextos, sob nossas atuais circunstâncias, ante
nossos atuais problemas, Mário Cézar Leite nos enunciara que
métodos sempre foram a “pedra no sapato” de pesquisadores de todas as
áreas do conhecimento. “Pedras nos sapatos” porque se acredita, não sem
razão de certo modo, que são eles que definem e configuram o padrão de
legitimidade, pertinência, cientificidade, academicidade e competência das
pesquisas.
Recorrera, à ocasião, a uma epígrafe de Paul Feyerabend a fim de delinear os termos a
nosso chamamento, convidando a comunidade acadêmica em torno das Poéticas Orais a
estabelecer, mediante artigos circulantes em nossa comunidade científica, um par de
perguntas acerca de nosso fazer-ciência. Quando este autor, recorrente em nosso treinamento
nas lidas acadêmicas
1
, assinala o quanto nossa “invenção, elaboração e utilização de teorias”
desenha, [frequentemente], edifícios intelectuais “incompatíveis não apenas com outras
teorias, mas, ainda, com experimentos, com fatos e observações”, nos convida a visitar nosso
lugar desde onde fazemos ciência; nele, nosso lugar naquilo que Bhabha denominara equação
conhecimento-poder (BHABHA, 1998, p. 45), equação na qual as literaturas que
investigamos, as(os) sujeitas(os) que investigamos, por vezes resistem às roupas e às armas da
teoria, sem que ante isso saibamos como proceder. Feyerabend, na citação escolhida por
Leite, propõe um primeiro movimento: “podemos começar assinalando que nenhuma teoria
está jamais em concordância com todos os fatos conhecidos em seu domínio”.
Como iniciativas para trilhar, registrar e discutir este caminho ora proposto, este
número 26 da revista Boitatá nos apresenta outros três movimentos, na Seção Temática,
devidamente com outros seis movimentos na Seção Livre. Nesta primeira, o artigo de Maria
Ignez Novais Ayala discute nossos procedimentos metodológicos na investigação de
documentos orais (procedimento circulante em nossa comunidade científica das Poéticas
Orais), salientando, desde o resumo de seu artigo, o caráter interdisciplinar desta base de
procedimentos; como tônica do esforço metodológico proposto a este número, Ayala situa, ao
centro, o princípio motor de nosso fazer-ciência:
Antes de tudo, preciso informar que desde os primeiros contatos com artistas
populares em apresentações públicas no início dos anos 1970 até hoje o que
me atrai são as pessoas. (...) Mesmo quando a conversa era sobre cantos,
versos, histórias, essas pessoas se tornaram especiais por um toque de
humor, por um comentário inesperado, pelo negaceio, por seu modo de
entender o que está na vida, no mundo, às vezes tentando apontar o que é
misterioso.
Independentemente de nosso destino, cumpre ressaltar as(os) sujeitas(os) de
investigação ao centro, de modo a, partindo da precariedade de nosso lugar epistêmico, propor
ciência sobre e desde nossos lugares: Firma-se desde cedo a importância da escuta e da
observação direta. Também fica evidente que sempre experiência teórica resultante da
1
Naquela disciplina que, no campo dos Estudos Literários no Brasil, ainda timidamente, denominamos
epistemologia da teoria literária; onde, a seu lado, lemos os paradigmas de Thomas Kuhn, a falsificabilidade
da teoria científica de Karl Popper, o campo de Pierre Bourdieu, apostando em seu papel formador de bases a
nosso fazer científico, ao longo de nossa carreira acadêmica.
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combinação de várias leituras de autores de diferentes áreas que me levam a questionar, a
pensar de um modo empenhado e crítico”.
Por sua vez, o artigo de Rodrigo Lemos Soares, desde um horizonte transdiciplinar,
busca “identificar as presenças da oralidade em processos de ensino de danças, tendo como
local de observação seis terreiros de Quimbanda, da cidade de Rio Grande, no interior do Rio
Grande do Sul. A partir de experiências corpóreo-vocais, observo os aspectos mítico e
simbólico das tradições orais, próprias dos terreiros, entendendo-as como sua base”. Em
respeito ao “problema do método” por nós proposto, Lemos conclui a introdução de seu artigo
com o desenho de sua perspectiva à pergunta inicial:
(…) abordar a oralidade em nossas pesquisas ainda suscita alguns
questionamentos referentes à validação dos métodos, como se a maior parte
das metodologias não dependesse da narrativa, do relato, das experiências
dos (as) participantes (GIL, 1999). (…) Ter a oralidade como fundadora de
nossas ações, enquanto educadores (as), implica em assumirmos as
narrativas de todos (as) envolvidos (as) na comunidade escolar. (...) Por esse
viés, o ensino através da oralidade assume sentido de trocas, sejam elas
simbólicas, materiais ou ambas.
Ademais, o artigo de Lemos aponta ao [necessário] caráter transdisciplinar seja do
campo das Poéticas Orais, seja dos métodos de investigação aos quais recorremos, dentro do
que Leite preconizara na chamada ao número ora apresentado:
Sem método os resultados são duvidosos, inexatos, não científicos e, pior,
sem comprovação e sem estatuto de “conhecimento válido”. Óbvio é que
métodos e teorias implicam diretamente com a “ontologia”, “existência” e
circulação dos objetos.
De modo a construir o referido problema nos domínios da disciplina que tomamos
como Teoria Literária, o artigo subsequente, último da Seção Temática, busca, desde seu
resumo, situar ao centro o conhecimento produzido pelas(os) sujeitas(os) investigados em
nossa atividade científica; partindo de uma experiência de investigação sobre literaturas
negras americanas, o artigo toma de empréstimo “a hipótese do potencial epistemológico de
obras literárias (DURÃO, 2015) e dela [se] apropriando, (...) examina o potencial
epistemológico de obras literárias negras americanas e, por conseguinte, do conhecimento
produzido por sujeitas(os) negras(os) americanas(os), mediante exame de suas obras literárias,
no âmbito de nossa comunidade científica”. Como conclusão prevista, o referido artigo aponta
ao risco de violência epistêmica no âmago de nossas metodologias de investigação que, ao
tomar um formato recorrente de relação sujeito-objeto (sujeitas(os) e comunidades por nós
investigadas quando tomadas como um objeto de pesquisa), negam o estatuto de
conhecimento (em sua produção, discussão e circulação) a estes que denominamos Outro,
estabelecendo a Outridade como premissa a definir a natureza destas sujeitas(os) que
investigamos:
A comodificação da Outridade tem sido bem-sucedida porque é oferecida
cmo um novo deleite, mais intenso, mais satisfatório do que os modos
normais de fazer e de sentir. Dentro da cultura das commodities, a etnicidade
se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda
insossa que é a cultura branca dominante (hooks, 2019, p. 66; grifo da
autora).
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
De sua parte, esta noção de Outridade
2
, assim como a noção que lhe acompanha no
texto supracitado de bell hooks (a noção de commodity), nos oferece bases profícuas a uma
pergunta legítima sobre a relação sujeito-objeto no fazer-ciência das Poéticas Orais, naquilo
que ela nos expõe o risco de violência epistêmica contra quens investigamos. A estes que
denominamos Outro, por vezes lhes negamos, ao fim e ao cabo, o conhecimento enquanto
dado eminentemente humano. Nesta senda, recordamo-nos do alerta de Leite a este respeito,
ainda na chamada a este número: a relevância de uma pergunta pela legitimidade do método,
em Teoria Literária.
vai um pouco longe, pelo bem, o tempo em que os pesquisadores em
literatura oral, oralidade, culturas populares viam-se às voltas com
justificativas e mais justificativas para seus objetos e estudos nos variados
Programas de Pós-graduação. Principalmente aqueles pesquisadores e
pesquisadoras que não eram oriundos da Antropologia, Sociologia, Historia.
Era preciso provar seus estatutos “científico” e acadêmico e sua legitimidade
como arte e/ou conhecimento válido. O que surgiu de bom dessa necessidade
de justificativa é que investindo em métodos de outras áreas, adaptando-os,
reinventando-os e redimensionando-os ou mesmo buscando novas
possibilidades os estudos em culturas populares e literaturas orais
inseriram-se, com certa antecedência de outros campos do conhecimento,
nos estudos interdisciplinares.
Iniciando a Seção Livre, o artigo de Daniela Gebelucha e Walmir Martins dedica-se ao
tema da literatura guarani no Rio Grande do Sul, reconhecendo seu caráter refratário no atual
estágio dos estudos acadêmicos, no Brasil, seja sobre uma ideia de literatura nacional (ou,
particularmente, de uma “literatura nacional” sul-riograndense), seja sobre uma ideia de
literatura indígena. Centrando seu artigo no estudo de sujeitas(os) narradoras(es), o artigo, a
partir de “processos de oralidade e escritura das narrativas”, propõe uma literatura guarani
“compreendida como continuidade espaço temporal ameríndia e de valorização da tradição
ancestral, das histórias de contato e dos mitos do povo Guarani”.
Por sua vez, o segundo seguinte da Seção Livre, proposto por Geise Bernadelli, traça a
pregunta norteadora sobre o nero música caipira tomando, como recorte decisivo, “a cisão
que acometeu o gênero, assinalando as diferentes noções que se teve ao longo do tempo sobre
o ser caipira, sua cultura, seus valores e modo de vida”. Construindo uma história do gênero, a
articulista busca compreender “o trabalho que se vem empenhando no atual universo da
música caipira brasileira”, em seu percurso rumo à recuperação de “uma realidade, da riqueza
dessa cultura, de seus costumes, da peculiaridade de sua constituição”, tal quadro se
desenvolve à luz de uma hipótese, de que a referida recuperação se mostra “um dever de
memória, de lutar contra a força do esquecimento”.
O terceiro artigo da Seção Livre, composto e assinado a seis mãos por Robervânia de
Lima Silva, Érica de Cássia Mai e Zaline do Carmo dos Santos Wanzeler, serve-se do
modelo de análise narrativa de Wladmir Propp para empreender uma análise comparativa
entre dois textos de distintos gêneros: o conto protagonizado pela Bela Adormecida, com sua
primeira versão atribuída a Giambattista Basile; e o filme recente, Malévola, com roteiro de
Linda Woolverton e direção de Robert Stromberg, apresentado como uma versão
contemporânea do referido conto. Suas conclusões, com apoio em uma teoria do letramento
2
Em sua nota de tradução, também na página 66, Stephanie Borges nos expõe sua escolha pelo termo
Outridade: “Do inglês otherness. Aqui se trata de um 'outro' que não é psicanalítico nem etnográfico (ao qual
poderíamos nos referir falando em 'alteridade'), mas de uma pessoa às vezes próxima, da nossa convivência,
cujas diferenças que a constituem em termos de raça/gênero são tratadas como algo exótico”.
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literário, apontam a usos de ambos textos em sala de aula do ensino básico, a partir das
análises desenvolvidas no corpo do artigo.
O quarto artigo desta Seção, proposto por Fabíula Martins Ramalho e André Luís
Gomes, versa sobre a peça Vaqueiros, de Oswald Barroso, tomando, como eixo, o nero
enquanto categoria habilitada a interpretar as relações familiares na diegese da peça; contudo,
a chave de leitura do artigo solicita o trabalho de duas categorias, o gênero e a oralidade, com
vistas a uma compreensão do texto de Barroso, lido enquanto “uma linguagem híbrida,
metateatral baseada na cultura popular”. Como resultado, Ramalho e Gomes acionam
categorias circulantes na comunidade científica das Poéticas Orais, tais como
oralidade, escrita, tradição e teatro para realizar uma análise, ainda que
sucinta, de como a tradição oral e popular nordestina é incorporada à peça,
criada a partir das formas clássicas da tragédia grega, para representar as
vozes dissonantes das mudanças culturais e sociais que também ocorrem no
sertão.
De sua parte, o artigo de Alexandre Ferreira Ranieri, Fernando Pessoa e Larissa Melo,
propõem um compte rendu dos primeiros resultados do Projeto de Pesquisa A performance
oral dos operadores do Direito, Iniciação Científica desenvolvida na universidade de sua
atuação profissional, a Universidade Estácio FAP, ao longo do segundo semestre de 2018.
Tomando como eixo a noção de performance, o artigo examina a “importância da
performance no exercício da atividade jurídica pelos integrantes da defesa técnica no Tribunal
do Júri, instituição colegiada que agrega leigos em matéria jurisdicional”. Às análises
propostas, o recurso à noção circulante de teatralização agrega aos resultados de pesquisa
“ainda maior valor tendo em vista que os operadores precisam fazer com que, além de
defender as suas teses, os membros desse corpo de jurados entendam a norma, a doutrina e a
jurisprudência”.
No penúltimo artigo do número 26 da revista Boita, assinado a oito mãos, Zaline do
Carmo dos Santos Wanzele, Josebel Akel Fares, Haelton Antônio Serrão de Carvalho e
Robervânia de Lima Silva trazem à lume Marajó, obra de Dalcídio Jurandir, em uma
perspectiva comparada a narrativas orais coletadas por Wanzeler (2014), como parte do
estudo empreendido em sua dissertação de Mestrado, investigando narrativas orias na
comunidade de Tentém, área rural do município de Cametá, região nordeste do Pará O artigo,
como tertium comparationis entre ambos textos literários (o romance de Jurandir e as
narrativas orais coletadas), estabelece a B(ô)ta enquanto figura feminina própria ao
imaginário amazônida, à luz de ferramentas metodológicas oriundas da “História Oral, com
pressupostos da abordagem fenomenológica”, visando a uma compreensão das memórias
individuais colhidas por meio da entrevista oral semiestruturada e método de análise de
conteúdo”, enquanto condições de possibilidade ao exame das narrativas orais, bem como de
sua comparação possível ao texto de Jurandir.
Por fim, o último artigo evoca, desde seu resumo, uma tarefa ao centro de seu objetivo
geral, lançando a pergunta acerca do texto final da dissertação “Educação, memórias e saberes
amazônicos: vozes de vaqueiros marajoaras”, defendida em 2014; em um texto assinado a seis
os, Délcia Pereira Pombo, Josebel Akel Fares e Fátima Cristina da Costa Pessoa se
dedicam, em um estudo das narrativas orais dos vaqueiros marajoaras, “a apresentar a
metodologia empregada nesta investigação e os pressupostos teóricos que embasam o estudo
traçado a partir dos relatos desses profissionais no contar da labuta diária sobre o trabalho que
realizam pelos campos do Marajó”, estipulando a pergunta sobre nossos métodos de
investigação, naquilo que nos permitem estabelecer a escuta e a aprendizagem com as(os)
sujeitas(os) que investigamos, mediante exame de suas narrativas.
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Dentro da proposta estabelecida na chamada ao número 26 da revista Boita, em seu
oferecimento das Seções Temática e Livre, esperamos, na publicação de mais um número,
oferecer uma contribuição ao debate permanente, no interior da comunidade científica das
Poéticas Orais, acerca de nossos métodos e teorias de investigação enquanto sintomas de
como estabelecemos relação entre nossas investigações científicas e as(os) sujeitas(os) que
investigamos, com as(os) quais aprendemos.
Alcione Corrêa Alves (UFPI)
Mario Cezar Leite (UFMT)
REFERÊNCIAS
HOOKS, Bell. Comendo o outro: desejo e resistência. Olhares negros: raça e representação /
tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019, p. 64-95.
BHABHA, Homi K. O compromisso com a teoria. O local da cultura. Tradução de Myriam
Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2005, 3a. Reimpressão, p. 43-69 (Coleção Humanitas)
DURÃO, Fábio Akcelrud. Reflexões sobre a metodologia de pesquisa nos estudos literários.
DELTA [online], 2015, vol. 31, n. spe, p. 377-390. Disponível no sítio
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
44502015000300015&script=sci_abstract&tlng=pt>, último acesso em 21 de abril de 2018.
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 11
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SEÇÃO TEMÁTICA
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NA TRAMA NARRATIVA, OS LAÇOS DA VAQUEIRICE: A VOZ QUE CONTA
ENTRELAÇADA AOS SABERES NO CAMPO DO TRABALHO
Délcia Pereira Pombo
3
Josebel Akel Fares
4
Fátima Cristina da Costa Pessoa
5
RESUMO: As implicações teórico-metodológicas tratadas neste texto ilustram a contribuição das
narrativas de vida de cinco gerações de vaqueiros para a compreensão dos saberes do homem
marajoara no seu espaço de trabalho. Na abordagem epistemológica, a prática do trabalho é construída
por meio da voz desses profissionais valendo-se da escuta e coleta das narrativas contadas por eles
mesmos, sobre a lida e as experiências vividas na região dos campos do Marajó. Destaca-se a
relevância do uso das narrativas (auto)biográficas dos vaqueiros da família Vasconcelos, na
potencialidade e possibilidade desse instrumental metodológico na condução da pesquisa em
Educação, memórias e saberes amazônicos: vozes de vaqueiros marajoaras
6
. Este artigo visa,
portanto, a apresentar a metodologia empregada nesta investigação e os pressupostos teóricos que
embasam o estudo traçado a partir dos relatos desses profissionais no contar a labuta diária que
realizam pelos campos do Marajó.
Palavras-chave: Vaqueiro marajoara. Trabalho. Narrativas de vida.
ABSTRACT: The theoretical and methodological implications treated in this text illustrate the
contribution of the life narratives of five generations of cowboys to the understanding of the
knowledge of the marajoara man in his workspace. In the epistemological approach, the practice of
work is constructed through the voice of these professionals using the listening and collection of
narratives told by themselves, about the work and experiences lived in the region of the fields of
Marajó. The relevance of the use of (self) biographical narratives of the Vasconcelos family cowboys,
in the potentiality and possibility of this methodological instrument in the conduction of research in
Education, memories and Amazonian knowledge: voices of marajoaras cowboys, stands out. This
article aims, therefore, to present the methodology employed in this investigation and the theoretical
assumptions that underlie the study drawn from the reports of these professionals in telling the daily
toil they perform in the fields of Marajó.
Keywords: Cowboy marajoara. Job. Tales of life.
1. As estratégias de condução da pesquisa
Missunga distinguiu, na lonjura, os vaqueiros
a galope rompendo o aguaçal, atravessando as
lagunas, tocando os rebanhos para os tesos. A
luta para salvar o gado se tornava mais difícil.
3
Professora da Secretaria de Estado de Educação/PA e do Município de Concórdia do Pará, bolsista de doutorado
da CAPES. Doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFPA, Orientadora: Profa. Dra. Fátima Cristina da
Costa Pessoa. E-mail: delciauab@gmail.com
4
Professora titular da Universidade do Estado do Pará, Departamento de Língua e Literatura e Programa de Pós-
Graduação - Mestrado e Doutorado em Educação. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Culturas e Memórias
Amazônicas (CUMA). E-mail: belfares@uol.com.br
5
Professora Associada da Universidade Federal do Pará, Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras,
atuando principalmente na interface linguagem, discurso e trabalho. E-mail: fpessoa37@gmail.com
6
Título da dissertação de mestrado, com defesa em 05 de agosto de 2014, a bordo do catamarã Amazon Star,
durante o XVIII Encontro Internacional IFNOPAP/ VIII CAMPUS FLUTUANTE
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 13
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Trabalhavam nos atoleiros, famintos,
estropeados, doentes. Os jacarés, os sucurijus,
as arraias tocaiavam.
No Lago Arari, Orminda viu de repente a água
crescer em torno da palhoça e em toda a
beirada. Viu seu rosto refletido ondulando,
naquela água de inundação, seu corpo, seus
cabelos, pareciam morurés e olhava tanto para
as águas que Ramiro falou: Eh, pequena, tu
acaba flechada
7
(Dalcídio Jurandir)
8
.
Os instrumentos metodológicos condutores desta pesquisa têm como norte a História
Oral que permite uma combinação de diferentes técnicas. Os atos, as relações, os sentimentos,
as imagens, as memórias, os eventos, se operacionalizam por meio das narrativas de vida do
vaqueiro marajoara. Estas narrativas como técnicas de coleta implicam pensar nas histórias
familiares, nas atividades cotidianas de trabalho, nas conversas no curral, no tempo da ferra,
na tiração do leite, nas lidas diárias na fazenda,
São técnicas que se articulam com outros mecanismos e as potencializam, como a
observação participante e as conversas de convivência facilitadas pela interação com os
colaboradores da pesquisa que contribuíram com dados não somente restritos às entrevistas,
pois “a minha fonte de informação é geralmente a palavra solta no ar numa conversa informal
ou escutando algum caso” (GALLO, 1980, p. 199), uma atenção para outras escutas, outros
fatos em momentos paralelos às entrevistas narrativas. Ainda que a academia, tenha certa
restrição para essa forma de inserção nas coletas, o registro se deu no decorrer da pesquisa.
A escolha desta trajetória de investigação se deu na perspectiva etnossociológica, que
segundo Bertaux é uma “forma na qual se inscreve a utilização das narrativas de vida” (2010,
p. 23), com amparo na pesquisa de campo. O apoio incidiu no levantamento in loco de
informações que materializam a dinâmica das relações do vaqueiro como um ser social.
Imerso no contexto social do trabalho. Fez-se também o registro documental em imagens das
carteiras profissionais para anexar às fontes adquiridas anteriormente com outras técnicas.
Ressalta-se a diversidade de elementos textuais, observados nesse documento e, que a partir
de uma leitura mais atenta, pode-se perceber os conteúdos lá dispostos, como os cargos
ocupados pelos vaqueiros e o que mais se pode obter em termos de coleta de dados
correspondentes à pesquisa.
Esta é uma investigação que traz em seu bojo um método de procedimento concebido
por meio da voz do próprio sujeito da pesquisa tendo por base a descrição fundamentada na
história oral, e, conforme o exposto por Bourdieu, se preza por uma “linguagem simples, que
descreve a vida como um caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas [...],
seus ardis, até mesmo suas emboscadas” (1996, p. 183). Não aquela noção científica do senso
comum que a narrativa conduz, da ficção unificadora que discrimina o cater científico das
histórias de vida como o autor expõe na “Ilusão biográfica”, mas a linguagem que entrelaça os
saberes dos atores sociais no seu contexto sócio-histórico-cultural, imersos no seu tempo e
espaço.
7
Segundo Maués (1995, p. 194-196), flechada é uma ação maléfica dos encantados que vivem no fundo e na
mata. Concebidos como seres perigosos, podem provocar doenças nos seres humanos, além de outros males,
como a “flechada de bicho” podendo atingir qualquer parte do corpo, exceto a cabeça e as cruzes, provocando
fortes dores e, mesmo eventualmente, a morte.
8
(JURANDIR, 2008, p. 338). Extraí este excerto por entender que estabelece uma analogia com a metodologia
desenvolvida durante a pesquisa de mestrado, seja durante o inverno com os campos alagados, chuvas
constantes, as viagens de barco... ou no verão com muita poeira, sol a pino, viagens de carro que sacoleja sem
parar... Em cada uma os encantos e as dificuldades de acesso aos campos do Marajó.
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Os saberes da tradição da vaqueirice em uma transferência constante da atividade do
ramo da pecuária passando de geração em geração por meio de vozes pelas quais se
transmitiram ensinamentos e lições de vida, ao modo da versão do narrador de Benjamin
(1994). Por meio da observação da experiência de trabalho do narrador, às condições de vida
em seu próprio ambiente na lida pelos campos, o que requereu esperar o momento propício
para proceder às entrevistas narrativas em que “a experiência do real toma forma humana,
vida e voz” (BERTAUX, 2010, p. 69), no intuito de se fazer o registro pelo ato de contar.
E, no interesse de se aproximar do formato social onde vivem e labutam os vaqueiros
devem-se registrar as entrevistas e prestar atenção, tal qual recomenda Bosi, às “hesitações e
silêncios do narrador. Os lapsos e as incertezas das testemunhas são o selo da autenticidade”
(2003, p. 63-64). A autora recomenda no tópico Sugestões para um jovem pesquisador, do
cuidado dispensado à narrativa, técnica adequada ao estilo biográfico “Quando a narrativa é
hesitante, cheia de silêncios, ele [o pesquisador] não deve ter pressa de fazer interpretação
ideológica do que escutou, ou de preencher as pausas” (BOSI, 2003, p. 64-65).
Cabe ao narrador encadear os fatos à sua maneira, os momentos passados são seus e,
como esta pesquisa evoca lembranças de um velho vaqueiro pertencente à terceira geração da
família Vasconcelos, concorda-se com Bosi diante do fato de que “nos idosos, as hesitações,
as rupturas do discurso não são vazios, podem ser trabalhos da memória” (2004, p. 64, grifo
da autora) onde a autora revela passagens de uma vida que não seguem uma estrutura linear,
não há um encadeamento lógico dos fatos em virtude de que:
A expressão oral da memória de vida tem a ver mais com a música do que
com o discurso escrito. Há componentes musicais inerentes à expressão oral.
Os sons compõem um reino flutuante e o pensamento decompõe a superfície
da água em vagas e ondulações... frases, palavras... (BOSI, 2003, p. 45-46).
E isso pode ser captado nas gravações e no que se ouve depois e posterior
transcrição, atentando para cada mudança de expressão, ao som, às pausas, do que ficou
retido, o timbre da voz, do silêncio... Para Bertaux é necessário “considerar a operação de
retranscrição como um trabalho em si, destinado a reter não todas as palavras, mas uma
parte das entonações” (2010, p. 90). Nas digressões se evidencia a maneira como as
lembranças são seletivas e das quais se vale para dizer e manter aquilo que convém. Uma
seleção oportuna a serviço da construção da identidade do sujeito. São acontecimentos
recordados de uma história de vida em que uma seleção ao qual Joel Candau qualifica
como estética, pois,
permite ao narrador transformar a seus próprios olhos a narrativa de si
próprio em uma “bela história”, quer dizer, uma vida completa, rica em
experiências de toda natureza. Nesse sentido, todo aquele que recorda
domestica o passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua
marca em uma espécie de selo memorial que atua como significante da
identidade. (CANDAU, 2012, p. 74).
Mas, entre o chão e o mundo das ideias há um limite da construção teórica da
experiência de vida. Assim, o método qualitativo da pesquisa com base metodológica da
história oral é descrito por Lozano como:
Um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e
níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que
permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de
processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas
precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um
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papel importante. Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela
oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e na versão que
brotam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais.
(LOZANO, 1996, p. 16, grifo do autor).
Em se tratando de pesquisa qualitativa, mais reflexão e interação com o sujeito
participante uma vez que o interesse maior é compreendê-lo enquanto membro de uma
sociedade com valores, crenças, costumes, hábitos e práticas. O que significa, literalmente,
“meter o pé na lama”, ou a variação “meter o pé na várzea”, também pertinente, para conhecer
o homem dos campos do Marajó, como expõe Giovanni Gallo
Só vivendo aqui, em contato com a realidade do dia a dia, é possível
descobrir o que de fato é novo aqui, exclusivo. Não somente a natureza
(bichos e flores se encontram em toda parte): é o relacionamento, uma
dimensão nova, uma espécie de trama de conexões misteriosas que associam
homens e coisas, formando um mundo à parte, fora dos padrões, das
categorias gastas e habituais. (GALLO, 1980, p. 29).
Mas as leituras intermitentes não permitiam seguir o cronograma devidamente
planejado. Apesar das bases conceituais serem consistentes, as demais leituras
complementares se embaraçavam ao correlacioná-las com o objeto em face da construção, da
vivência o que emerge da experiência do vaqueiro do Marajó. Atender a premissa “só se
escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar” (GOLDENBERG, 2004, p. 14)
ainda estava longe para se concretizar de fato, por se tratar de um percurso que poderia ser
alterado a cada etapa.
A recomendação de Sánchez Gamboa acerca dos métodos na pesquisa em educação e
suas implicações epistemológicas suavizaram os anseios do percurso investigativo: “querer
traçar o caminho, antes de definir os pontos de partida e de chegada, de conhecer as condições
do trajeto, os recursos e os meios, é, como diz a expressão popular, ‘colocar a carroça na
frente dos bois” (2012, p. 65, grifo do autor). Daí a relevância dos estudos de Fares, que
explica essa intensa ocorrência ao traçar cartografias para representar o espaço onde o
vaqueiro vive e também se desloca visto que “o mapa iconiza o espaço [e] arquiva
conhecimentos de um grupo humano, memoriza a história, articula os espaços em uma
globalidade, projeta e direciona um itinerário. Renega o nômade, toma partido pela
estabilidade” (2011, p. 83). A intenção era que, de fato, se pudesse compreender e analisar o
fenômeno com foco no percurso metodológico desde o ponto de partida ao ponto de chegada,
a fim de uma compreensão mais elaborada do objeto.
Porém, o que se entendeu de imediato foi que as múltiplas atividades do vaqueiro
marajoara movimentaram o percurso da pesquisa. Tornava-se necessário mobilizar estratégias
para responder, nesse corpus, às indagações inerentes à pesquisa e estabelecer vínculos com
os processos de constituição, transmissão de conhecimentos e saberes e as aproximações com
a educação não formal que se constrói no âmbito da sociedade e da cultura marajoara. Febvre
auxilia o entendimento desse processo:
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles
existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos,
se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-
lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com
palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e
ervas daninha. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras
por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra,
com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o
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homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem. (FEBVRE, 1985, p. 249)
Nesse âmbito, faz-se recorrência ao preceito de Denise Simões Rodrigues, pois que é
“fundamental estabelecer como ponto de partida a elucidação do conceito de cultura, até
mesmo para entender as postulações dos atores sociais em busca do espaço socialmente
reconhecido” (2013, p. 14). Um discurso inicial acerca do estudo de cultura requer amparo
conceitual direcionado ao interesse no homem enquanto ser produtor de cultura, conceito que
Thompson rubrica com cuidado especial:
Embora possa haver pouco consenso em relação ao significado do conceito
em si, muitos analistas concordam que o estudo dos fenômenos culturais é
uma preocupação de importância central para as ciências sociais como um
todo. Isto porque a vida social, não é, simplesmente, uma questão de objetos
e fatos que ocorrem como fenômenos de um mundo natural: ela é, também,
uma questão de ações e expressões significativas, de manifestações verbais,
símbolos, textos e artefatos de vários tipos, e de sujeitos que se expressam
através desses artefatos e que procuram entender a si mesmos e aos outros
pela interpretação das expressões que produzem e recebem. Em sentido mais
amplo, o estudo dos fenômenos culturais pode ser pensado como o estudo do
mundo sócio histórico constituído como um campo de significados. Pode ser
pensado como o estudo das maneiras como expressões significativas de
vários tipos são produzidas, construídas e recebidas por indivíduos situados
em um mundo sócio histórico. Pensado desta maneira, o conceito de Cultura
se refere a uma variedade de fenômenos e a conjunto de interesses que são,
hoje, compartilhados por estudiosos de diversas disciplinas. (THOMPSON,
1995, p. 165)
Em meio à complexidade da metodologia do trabalho de campo, a condução
investigativa foi refeita e, dentre outros autores que auxiliaram esse processo, destaca-se a
pertinência das leituras de Bertaux para pontuar o trabalho com narrativas de vida, pois “elas
constituem um método que permite estudar a ação durante seu curso” (2010, p. 12, grifo do
autor). E as palavras se constituíram em fontes para a análise das narrativas de vida com
abordagem (auto)biográfica. O uso e o potencial das histórias de vida assim como as críticas a
elas associadas se compuseram em relevante recurso das interações originadas durante o
processo investigativo. Como, então, sistematizá-las?
A proposta se fundamentou nas entrevistas narrativas de Bertaux (2010, p. 80-81)
encorajando o vaqueiro a contar sua vida com temas ou assuntos que fluíssem livremente e,
atenta a um eventual assunto diferenciado, que por ventura surgisse, ter habilidade para
introduzir questões com possibilidade de exemplos, confirmando o exposto por ele. É certo
que um roteiro com listas de questões, previamente elaboradas, norteia o contexto de ação,
mas, neste caso, o recurso a Sônia Freitas (2002) com adaptação do questionário preparado
pela autora em História Oral: possibilidades e procedimentos, não se obteve o resultado, pois
ao aplicar o questionário tinha-se a impressão de que o vaqueiro estava peiado. A entrevista
com tipos de perguntas estruturadas segue “um roteiro padronizado, com perguntas
previamente estabelecidas, com o objetivo de obter, dos entrevistados, resultados uniformes
às mesmas perguntas” (OLIVEIRA; FONSECA; SANTOS, 2010, p. 45), porém, foi possível
perceber que o roteiro pré-estabelecido apresentou falhas, era um roteiro engessado. Coitado!
O vaqueiro acostumado às conversas informais, não sabia o que responder. Em um intervalo
da gravação da entrevista, ele já meio aflito perguntou: “O que a senhora quer que eu
responda?”. Na ânsia de ajudar, nesse momento da pesquisa, ele temia pouco contribuir por
achar-se aquém do esperado. Um profissional que “não é consciente da riqueza de que é dono
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e ao mesmo tempo artífice. Não querendo vender bagaço, se tranca”, como diz Gallo (1980, p.
173).
A busca de significados inerentes ao exercício da atividade pecuária e de traçar os
saberes desse profissional dos campos do Marajó se deu por meio de levantamento da
narrativa de vida como procedimento metodológico, e, a partir daí, um recorte biográfico das
fontes orais por considerar que a vivência se reveste da tradição. Nesse caso, a ação de contar
É costurada em torno da dimensão temporal que significado as
fases da infância, juventude, idade adulta etc. Através da ficção e
criatividade do narrador, esta biografia, objetivada pela fala, vai se
configurando e ganhando existência própria a partir do amálgama,
muitas vezes inconsciente ou não, que representa o conjunto de
experiências vividas (ATHAÍDE, 2006, p. 313).
Por isso, a opção metodológica com narrativas de vida de vaqueiros, dentre outras
técnicas de pesquisa, e isso implica um processo de compreensão dos fatos, das relações
sociais, das possibilidades de imbricar a diversidade de saberes que existem na cultura
marajoara.
2. A revisão: as buscas sobre o assunto em campo
Importante para este momento um mergulho inicial em trabalhos que contemplem a
temática relacionada ao vaqueiro, ou pelo menos visibilizam sua presença e importância. Os
títulos dos trabalhos por si constituíam um convite para que se fizesse uma leitura para
além do resumo devido à similitude com aspectos da educação, saberes, cultura e memória
do/no Marajó. Por se tratar de uma investigação com foco nos sujeitos, especificamente os
vaqueiros do Marajó, entende-se que uma leitura superficial dos textos o seria suficiente,
que era preciso ir mais além, como recomenda Paulo Freire em relação ao sujeito e ao objeto:
Daí a necessidade que temos, de um lado, de ir mais além da mera captação
da presença dos fatos, buscando assim, não a interdependência que
entre eles, mas também o que há entre as parcialidades constitutivas da
totalidade de cada um e, de outro lado, a necessidade de estabelecermos uma
vigilância constante sobre nossa própria atividade pensante. (FREIRE,
1982, p 135-136)
Um pensar que, segundo Bosi “é um relacionamento entre sujeito e objeto. É nessa
relação com o objeto que nos faz passar da opinião para o conhecimento [e] deve voltar-se
para o mundo e prover com objetos os seus conceitos” (2003, p. 121),. A sinuosidade dos rios
da Amazônia, por exemplo, requer de quem os trafega conhecimento e atenção constantes.
Por isso, os navegantes que aqui aportam, independente dos conhecimentos científicos e
tecnológicos dos quais dispõem, precisam da presença de um prático que os conduza pelos
canais e atraque a embarcação em segurança.
A maneira desse procedimento se também na construção do objeto de pesquisa,
com a valorização das práticas produtivas de um conhecimento focado no universo particular
com evidente estímulo à reflexão sobre os aspectos ligados aos saberes dos vaqueiros do
Marajó. O que se pode averiguar nas Teses, Dissertações, e Projetos de Pesquisa delineados a
partir de interlocuções e investigações que incidiram sobre o sujeito na práxis.
Assim, importa pesquisar o modo de vida do vaqueiro, que inclui, segundo Bourdieu
(1996), uma identidade civil, como individualidade socialmente constituída pelas relações
familiares e comunitárias, moradia, formas de sobrevivência, alimentação, lazer, atividades no
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campo, como cuidar do gado, encontros e enfrentamentos com perigos do mundo natural ou
sobrenatural, aprendizagem e ensinamentos dos saberes da experiência, entre outros aspectos
cotidianos, vivências e experiências a serem narradas pelos próprios vaqueiros. Uma
investigação que pretendeu também fortalecer a linha de pesquisa Saberes Culturais e
Educação na Amazônia, do Centro de Ciências Sociais e Educação/ Programa de Pós-
Graduação em Educação/UEPA e juntar-se às matrizes escritas no projeto A épica do
vaqueiro marajoara memória, narrativa e biografia no intuito de fomentar uma reflexão
sobre a importância da recuperação da memória imaterial e revigorar a ideia de que as
narrativas de vida são importantes produtores de conhecimentos para as ciências humanas,
letras e áreas afins, uma vez que, neste caso, biografar a história de um sujeito torna-se uma
atitude interdisciplinar urdida pela voz com que narram os vaqueiros do Marajó.
Dessa forma, os saberes em torno do vaqueiro costumam se revelar em pesquisas
diversas segundo os objetivos do pesquisador e a forma da abordagem em relação ao tema. Na
intenção de responder aos questionamentos suscitados é natural proceder à descrição e
caracterização do universo cultural marajoara e, a partir das análises impetradas em pesquisas
realizadas se expressam formas de se pensar e de ressignificar as atividades cotidianas do
vaqueiro, embora as atuais relações entre as formas de conhecimento precisam contemplar
outros modos de conhecer para assumir e reconhecer, de acordo com Santos
O perfil epistemológico das relações sociais não é fornecido por uma forma
epistemológica específica, nomeadamente a forma epistemológica do espaço
mundial (a ciência), mas sim pelas diversas constelações de conhecimentos
que as pessoas e os grupos produzem e utilizam em campos sociais
concretos. (SANTOS, 2003, p. 326)
Importa socializar, atrelar a esse conhecimento os saberes, as experiências que
revelam outros olhares para a cultura marajoara e se um passo para o reconhecimento da
identidade local com suas singularidades e similaridades. Como era de se esperar, durante o
levantamento da produção acadêmica há muitos trabalhos que tocam a região. Mas o objetivo,
por ora, não é fazer um levantamento geral da literatura e sim verticalizar os que contemplam
as histórias de vida dos vaqueiros marajoaras.
Então, o jeito é seguir a viagem pelo arquipélago do Marajó, e, durante a travessia,
refletir a respeito da capacidade de realização deste homem dos campos, das possibilidades
relativas ao seu potencial enquanto indivíduo de força e influência e não se apoiar em
conjeturas do que ele tem de diferente. Na bagagem, o equipamento necessário e a
disponibilidade para viver essa experiência com olhos e ouvidos atentos às diferentes
aprendizagens que cada indivíduo traz em “um lugar onde todos sabem tudo” (GALLO, 1980,
p. 22) e praticar a seleção, dentre os muitos itens que emergirem, segundo a rota de estudo
que cabe realizar no percurso traçado.
3. A seleção: da liberdade dos campos ao corredor da caiçara
9
Muitas foram as viagens às fazendas do Marajó. Em cada uma delas um aprendizado
se retinha por meio das conversas, gestos, produção de imagens, registro gravado e escrito,
gravação de vídeos, na observância das vivências do vaqueiro do Marajó. Um cenário tendo
em vista à “educação como cultura” de Brandão na possibilidade de que:
9
O sentido do termo caiçara aqui se refere ao cercado de madeira à margem de um rio ou igarapé navegável para
embarque de gado. As reses estão, inicialmente, em um espaço amplo e para embarcá-las passam pelo corredor
da caiçara que só comporta um animal de cada vez.
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Viver uma cultura é conviver com e dentro de um tecido de que somos e
criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as cores o desenho do bordado e
o tecelão. Viver uma cultura é estabelecer em mim e com os meus outros a
possibilidade do presente. A cultura configura o mapa da própria
possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder em si
mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa e a
outra são possíveis. (BRANDÃO, 2002, p. 24)
Panorama cuja preocupação epistemológica tem a tarefa de examinar o objeto a ser
investigado no lugar que se atribui ao sujeito e entender a realidade no momento que se torna
objeto a ser conhecido. A busca de novos conhecimentos, de novas interpretações, de outras
concepções de realidade encaminhou a pesquisa no início de 2002, à Fazenda Tapera, quando
se procurava conhecer mais sobre o léxico do vaqueiro marajoara e proceder à coleta para o
material de pesquisa no Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura em Letras.
Desde os primeiros contatos ocorridos desde 1994, as viagens às fazendas se tornaram
mais frequentes como lugar para interagir e coletar testemunhos de uma época que revelaram
e ainda revelam sentimentos, valores, costumes, crenças, conhecimento, a vida e as relações
culturais que se desenvolvem e se articulam em linguagem diferenciada, elementos
condutores das práticas sociais dos habitantes nos campos do Marajó. Uma linguagem que, no
estudo atual, difere da pesquisa da graduação, uma abordagem linguística e, agora, emerge em
outro viés vinculado à memória e à história oral, em costumes recém-criados ou que
permanecem com estrutura e significados próprios e contribuem para a tessitura da identidade
marajoara.
No percurso de uma das viagens em 2014, com saída de Soure, a intenção era de
observar o trabalho dos vaqueiros nas atribuições de um embarque de gado e, aproveitar a
oportunidade para falar com eles sobre a função que exercem na fazenda onde trabalham.
Após longa travessia pelo Rio Paracauari
10
, em canoa que faria o transporte de uma venda de
gado, a chegada ao porto da fazenda e a espera até embarcação atracar e poder subir com
segurança a escada que levava à caiçara. Uma breve caminhada pelo assoalho de madeira até
o encontro com o proprietário da fazenda, que estava no aguardo da visita, e seguimos
juntos até um reservado onde ficava a balança onde se pesaria o gado.
Às proximidades de onde estávamos era possível avistar na direção de uma porteira
nove vaqueiros montados em seus cavalos que ora entravam pelo meio do gado, ora
contornavam a boiada, mas não havia nenhum avanço na caminhada, nem de vaqueiros, nem
de animais. Indaguei o porquê da demora, uma vez que estávamos havia mais de uma
hora e nada de saírem do lugar. O fazendeiro falou da dificuldade de trabalhar com gado
branco
11
e que era mais difícil reunir todas as reses, pois volta e meia fugiam da malhada, o
que não aconteceria se fosse com búfalo, animal mais dócil e de fácil manejo. Uma pausa na
conversa porque havia movimento lá onde estava o gado.
E vimos quando, de repente, uma s saiu em alta velocidade e ganhou novamente os
campos. Imediatamente, um vaqueiro foi ao seu encalço e a reconduziu à malhada. Quando os
vaqueiros tangendo o gado se aproximaram da caiçara houve atenção mais acentuada para a
escuta atenta das ações que aconteciam ao redor: o som dos gritos, o estalar da língua, o
balançar das muxingas
12
e uma série de recursos que os vaqueiros empregavam para incitar o
gado a caminhar. E tudo estava tranquilo até que logo à entrada do curral, certos que
10
Rio Paracauari ou Igarapé-Grande “banha a cidade de Soure e Salvaterra tendo como afluente, pelo lado
esquerdo geográfico, o Rio do Saco, com seus afluentes Amparo, Bom Jardim, Prazeres e São Sebastião; e pela
margem direita, os Rios Sericari, Caranaoca, Cachoeira e Aturiá” (TEIXEIRA, 1953, p. 4).
11
O gado branco ou Nelore é uma raça bovina (Zebu) originária da Índia. Os primeiros exemplares da raça
chegaram ao Brasil no final do século XVIII, e se tornaram a raça de gado predominante no rebanho brasileiro.
12
Tipo de chicote entrelaçado por tiras de couro ou nylon e, normalmente, usado para tocar ou castigar animais.
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estavam da conclusão do serviço, os vaqueiros liberaram o grupo formado por bois de rede
13
,
e, novamente um animal fugiu. Dois vaqueiros saíram em perseguição, mas não conseguiram
trazê-lo até que mais dois companheiros levaram os bois de rede para ajudá-los e,
conseguiram, finalmente, entrar com todas as reses em um dos cercados do enorme barracão.
A respeito da precaução dos vaqueiros a ter um olhar sempre atento ao rebanho para
perceber se algum animal mais esperto querendo escapar do cerco e voltar à liberdade dos
campos, Barroso assim comenta:
Apesar da vigilância que os vaqueiros exercem sobre a malhada, algumas
reses na confusão, conseguem iludir a atenção, pela sua rapidez; saindo em
desabalada carreira. Os vaqueiros (quase sempre dois) saem-lhe logo ao
encalço. É bonito presenciar-se aquele “galope” doido, nessas perseguições.
A rês empina a cauda, abaixa a cabeça e vai rompendo o algodoal [...] e tudo
o que encontra pela frente, fazendo caminho para os seus perseguidores. O
vaqueiro joga o laço, mas é infeliz; a corda esbarra num cipó, num galho e
desvia-se; não desanima, colhe-a e continua a persegui-la, embora só a
alcance a alguns quilômetros. A rês vendo que vai perdendo terreno, cansada
e levada ao extremo a sua cólera, para bruscamente e enfrenta-os; mas estes
sempre vigilantes, mudam também de direção antes que seja tarde. [...].
Lançam-na com duas cordas, um vem na frente puxando-a, outro atrás para
que não chifre o seu condutor. E assim é reconduzida novamente à malhada.
(BARROSO, 1953, p. 165, grifo do autor)
E quando os vaqueiros se abeiravam a cerca, com o animal brabo dominado, tinha-
se a intenção de chegar mais perto e gravar a cena em vídeo. Seria interessante captar esse
momento dos bois de rede sendo conduzidos à malhada. No primeiro momento essa
aproximação não foi possível porque, embora fosse gado manso, era grande o risco de os
animais ficarem nervosos e de repente avançarem sobre nós. No segundo momento, a opção
foi de passar entre os frechais
14
da cerca, por onde entrariam os animais, e escalar um a um
até chegar lá no alto do cercado onde se ficou à espreita para os tão esperados cliques, mas se
tratava de gado arisco e, novamente, a tentativa não deu certo, eles entraram depois que o
local ficou livre dos curiosos que estavam interrompendo o andamento dos trabalhos.
Algo percebido e digno de nota é a solidariedade entre os vaqueiros como se percebeu
no momento que uma rês transpôs os cercados e, eles, dotados de extrema habilidade,
seguiram imediatamente galopando ao encalce do animal. Uma atitude que requer destreza e
confiança no companheiro para atuarem de comum acordo até conseguir capturar o animal.
Pode-se então notar que os vaqueiros incorporam suas próprias experiências as do grupo com
o qual convivem em lições de solidariedade e companheirismo por meio do ofício que os une.
Um exercício que implica troca como fator de crescimento cultural e de enriquecimento
mútuo, pois o contato nesses ambientes ocorre em meio a muita gritaria, risos, gestos e, nesse
caso, a tomada de decisão imediata para sair ao encalce do animal e obter êxito na tarefa, com
cuidado e atenção visando a proteger a si e ao companheiro de serem vítimas de um acidente
no trabalho.
Na ânsia de captar momentos dos vaqueiros em exercício pode-se acompanhar a
entrada das reses comercializadas no corredor da caiçara, e elas seguiram uma a uma por
aquele estreito corredor à custa de muito grito, cutucadas nos quartos até a balança. E,
conforme a arrumação do gado na entrada daquele cercado restrito, eles o pesados em lotes
de três, cinco, ou apenas um animal. Como são animais de venda, vão direto do porto da
13
Boi de rede, segundo Fabrício (5ª geração de vaqueiros da família Vasconcelos): “é boi manso, uns trinta bois,
mas tem que ser boi mesmo, animal castrado desde pequeno para esse tipo de serviço”.
14
Peça resistente de madeira usada em posição horizontal para cercar, nesse caso, currais e caiçaras.
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fazenda para o matadouro. Um procedimento observado antes do gado entrar na embarcação é
que os vaqueiros ferram o animal com a marca do comprador, e quando indagados sobre essa
atitude responderam para não haver troca no momento da matança que o couro, com a
marca registrada no lombo, possibilita a identificação do dono atual.
E o árduo trabalho dos vaqueiros continuou até colocarem todas as reses na canoa.
Agora vaqueiros e tripulantes agindo em parceria: cutucar os animais no estreito corredor da
manga para seguirem até a cabeceira da caiçara, s e mãos articulados em busca de apoio
para passar uma corda
15
em torno do chifre do animal que depois é puxado para cima por duas
talhas por onde a corda desliza. Para isso, é preciso da força de três pares de mãos para puxar
a corda e mais um par de mãos experientes, do chamado rabeteiro, para controlar a corda na
subida e descida do animal. Na subida, o deslocamento do animal da caiçara para o alto,
uma altura proporcional ao seu tamanho, até a descida ao porão da embarcação, esta ação é
controlada pelo rabeteiro auxiliado por um tripulante que precisa retirar o estropo da cabeça
do animal
16
e assim dar sequência ao trabalho.
Concluída essa parte do serviço pode-se, então, retornar a Soure, e, chegando,
desembarcar as reses que eram novamente suspensas no ar e depois soltas no curral do
matadouro municipal. Uma dinâmica de trabalho que ainda faz parte da cultura marajoara.
4. Na conclusão, as experiências e saberes na dinâmica do costume e da cultura
tradicional
É no dia a dia, no embate com os animais, na prática em domá-los, no
companheirismo entre os colegas, na consideração com a família, no respeito ao outro, no
comportamento, e no que o vaqueiro conta sobre os seus afazeres no campo que se
concentram estes estudos.
Nesta Era referente ao capítulo metodológico se juntaram as experiências de vida e
trabalho do vaqueiro, por se tratarem de aspectos relacionados à memória, aos saberes, à
execução das atividades em espaços que trazem as marcas de uma identidade profissional.
Essa atitude demonstra, segundo Bosi que “há, portanto, uma memória coletiva produzida no
interior de uma classe, mas com poder de difusão, que se alimenta de imagens, sentimentos
ideias e valores que dão identidade àquela classe” (1994, p. 18). Atenta às especificidades
inerentes ao vaqueiro, esta pesquisa se propõe a associar experiências e saberes, herança dos
antepassados, a fim de que possam transmiti-las às futuras gerações. Em Benjamin a
memória cria a corrente da tradição que passa um acontecimento de geração em geração”
(1994, p. 211), e isso abarca uma pluralidade de experiências cotidianas. Zumthor compartilha
da mesma opinião:
A memória implica um saber coletivo, ligado à preservação de laços sociais
atualizados através de rituais para assegurar as tradições, sobretudo as de
fatos ligados à cultura oral, visto que para o poeta tradição e memória são da
ordem da coletividade na medida em que instituem modelos, padrões de
comportamento mantendo a coerência, já que a memória do grupo tende
assegurar a coerência de um sujeito na apropriação de sua duração: gera a
perspectiva em que se ordena uma existência e, nesta medida, permite que se
mantenha a vida. (ZUMTHOR, 1997, p. 13-14)
15
Essa corda é chamada de estropo, um acessório utilizado para trabalho em altura que serve para içar o animal.
16
Quando o gado não tem chifre, seja por motivos genéticos ou pela extração, é chamado mocho e, nesse caso, o
estropo é passado atrás da orelha e por baixo do queixo do animal.
.
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No entendimento de que a cultura faz parte do existir no mundo na comunidade
rural onde vive o vaqueiro, registros de que toda sociedade comporta mecanismos e por
meio deles, segundo Silva, se transmite e se recria culturas
Eles constroem, se inserem ou se apropriam de seus ambientes pautando-se
por saberes acumulados e configurados por meio do trabalho e de outros
significados simbólicos que atribuem a determinados meios e que
transcendem a dimensão do trabalho. (SILVA, 2008 p. 55).
E assim, cada recurso empregado na condução da pesquisa constituiu a base para
realização deste estudo com observação atenta à predominância da voz, nas entrevistas
narrativas, a se entrelaçar em diversas áreas do conhecimento. Na descrição das lidas em
campo, nos saberes transmitidos pelas gerações, na pesquisa qualitativa, no traço cartográfico,
está o profissional vaqueiro imerso em uma sociedade com costumes e tradições. No ato de
contar se expressam os saberes da profissão, a labuta em campo e as tramas tecidas nessas
narrativas projetam estratégias que visam à compreensão dos fatos, às histórias de vida
(com)partilhadas. E que a manifestação da voz alcance um campo fértil, um espaço propício
as mais diversas formas de práticas educativas em torno da experiência de vida e de trabalho
do vaqueiro marajoara.
.
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O ESTUDO DAS TRADIÇÕES ORAIS VIVAS: PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS EM DIFERENTES EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
Maria Ignez Novais Ayala (UFPB)
RESUMO: Estudar documentos orais implica exercitar diferentes metodologias, optando por uma
interdisciplinaridade. É dado destaque para os artistas populares, para seus saberes e papel nas
comunidades, contribuindo-se para o conhecimento das culturas orais brasileiras de diferentes
maneiras. Além dos modos de narrar, das circunstâncias que propiciam ou propiciaram a criação de
versos, de situações de vida selecionadas como memoráveis, sobressaem as pessoas e suas histórias de
vida, suas vivências, o que permite entender algumas das múltiplas facetas da história cultural
brasileira, da memória do cotidiano e das poéticas orais. As análises apresentam-se em forma de
ensaio, com diferentes procedimentos junto com outros, bem como os resultados evidenciam como é
dirigido o olhar dos pesquisadores, antes de tudo, para as pessoas que fazem a cultura popular, que
comentam e explicam suas tradições. Tem importância fundamental a escuta e a observação direta.
Palavras-chave: Culturas Populares. Culturas Orais. Literatura de Cordel. Poéticas Orais.
Metodologia.
ABSTRACT: Studying oral documents implies experimenting a set of methodologies as a choice for
interdisciplinarity. It is given special emphasis to popular artists, to their knowledge and role in
communities, as a contribution to the knowledge of Brazilian oral culture in diverse ways. Besides the
narration modes, the circumstances that enable or enabled the creation of verses, of life situations
selected as memorable, it is reinforced some of multiple facets of the Brazilian cultural history, as well
as current events memory and oral poetics. The analysis are presented in an essay form using different
kinds of procedures in some arrangments, as well as the results outline how is focused the attention,
the view of researchers, above all to the people who actually make popular culture happen, the ones in
charge of describing and explaining their traditions. In this process, listening and direct observation
are fundamental skills and attitudes.
Keywords: Popular Culture. Oral Culture. Cordel Literature. Oral Poetics. Methodology.
1. Introdução
Fazer análise de documentos orais implica exercitar diferentes metodologias, optando
por uma interdisciplinaridade. Ao tratar os relatos de artistas populares e outras pessoas
comuns, ao dar destaque para as vozes dos colaboradores, para seus saberes e papel nas
comunidades, contribui-se para o conhecimento das culturas orais brasileiras de diferentes
maneiras. Além dos modos de narrar, das circunstâncias que propiciam ou propiciaram a
criação de versos, de situações de vida selecionadas como memoráveis, sobressaem as
pessoas e suas histórias de vida, suas vivências, o que permite entender algumas das múltiplas
facetas da história cultural brasileira, da memória do cotidiano e das poéticas orais.
Tenho desenvolvido pesquisas sobre as culturas populares brasileiras desde 1972,
quando, ainda bem jovem, tinha uma energia incansável e um desejo de conhecer as tradições
orais vivas, encontradas em festas de devoção popular como as festas do Divino, Santa Cruz,
Santos Reis, em pagamento de promessas como a Dança de São Gonçalo, em carnaval em
cidades do estado de São Paulo e do Nordeste, em cantorias de viola nordestinas. Munida de
caderneta para anotações, uma máquina fotográfica, gravador e muitas pilhas passava dias e
noites observando, escutando, anotando e conversando com os artistas populares. Tudo era
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feito para conhecer o que motivava os grandes escritores da Literatura Brasileira e que
acontecia em datas específicas, em tempos de festa de rua carnaval, quaresma, festas
juninas, festas de Natal.
Passados anos e décadas, estas e muitas outras observações diretas são a base para
minhas atividades principais de pesquisa acadêmica. A amplitude documental do acervo
gerado por pesquisas de campo, a opção por procedimentos metodológicos que dão destaque
às explicações dos artistas populares e delas partem para a caracterização da poesia, em
repentes, em cantos acompanhados ou não de dança, têm me levado à abordagem dos
contextos em que se realizaram os registros e à necessária textualização da forma de
expressão cultural estudada.
Tratados em forma de ensaio, diferentes procedimentos junto com outros, bem como
os resultados evidenciam como dirijo o olhar, antes de tudo, para as pessoas que fazem a
cultura popular, que comentam e explicam suas tradições. Firma-se desde cedo a importância
da escuta e da observação direta. Também fica evidente que sempre experiência teórica
resultante da combinação de várias leituras de autores de diferentes áreas que me levam a
questionar, a pensar de um modo empenhado e crítico.
Antes de tudo, preciso informar que desde os primeiros contatos com artistas
populares em apresentações públicas no início dos anos 1970 até hoje o que me atrai são as
pessoas. Essas pessoas me fascinaram e me fascinam de tal modo, que ainda é difícil explicar
o porquê. Cada qual me fisgou de um jeito, seja pelo modo de tocar, cantar, dançar, rezar, seja
durante a conversa. Mesmo quando a conversa era sobre cantos, versos, histórias, essas
pessoas se tornaram especiais por um toque de humor, por um comentário inesperado, pelo
negaceio, por seu modo de entender o que está na vida, no mundo, às vezes tentando apontar
o que é misterioso.
Não pensem com isso que em algum momento achei exótica qualquer prática cultural.
A concepção de beleza sempre foi observada em coisas miúdas.
Atualmente estou revisitando entrevistas antigas gravadas em áudio e transcrições que
contêm histórias encaixadas. A investigação está voltada para a memória de mestres que se
tornaram referências culturais de diferentes atividades artísticas. Serão estudados gêneros
discursivos memorialísticos (histórias de vida, relatos) como testemunhos de experiências
vivenciadas, em que se misturam gêneros poéticos e narrativos.
A partir da escuta pretendo encontrar as estruturas de encaixe das histórias à vida
testemunhada. Os resultados esperados, por sua vez, vão se configurar também como
testemunhos de experiências vivenciadas pela pesquisadora tanto por ter feito os registros,
quanto por ter se somado a eles pelos procedimentos metodológicos de escutar, observar,
analisar, narrar. Além do ensaio será apresentada uma forma narrativa aqui denominada de
crônica etnográfica, em que se destacam transições temporais do passado ao presente e vice-
versa, experimentando modos de justapor palavra, som e imagem.
2. Identificando a presente proposta
Passo a apresentar o projeto, com o qual dou continuidade ao estudo de formas de
expressão do Patrimônio Imaterial Brasileiro (poesia, narrativa, canto, música e dança), cujas
fontes principais são registros sonoros, audiovisuais e fotográficos resultantes de pesquisas de
campo, feitas no estado da Paraíba, em diferentes momentos do Século XX e primeiras
décadas do Século XXI.
Serão retomadas e aprofundadas análises anteriores, bem como serão realizadas novas
investigações na documentação oral e escrita reunida, de modo a concluir estudos acadêmicos
de longa duração que venho realizando na Universidade Federal da Paraíba, com diferentes
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formas de apoio e bolsas PQ, concedidas pelo CNPQ. O projeto está centrado em três eixos de
análise documental.
No primeiro eixo O legado de pesquisas de campo realizadas em três períodos
serão feitos estudos comparados do legado das pesquisas sobre saberes e fazeres tradicionais
de artistas populares, realizadas por Mário de Andrade em 1928/1929 e pela Missão de
Pesquisas Folclóricas, em 1938, especialmente na Paraíba, contrastando com documentação e
análises resultantes de projetos coletivos coordenados por Maria Ignez Novais Ayala e
Marcos Ayala (1992-2017). Ao buscar os herdeiros das tradições (remanescentes e
descendentes de grupos e artistas populares, mencionados nas pesquisas mais antigas), foram
reunidos muitos relatos e performances em bairros de João Pessoa e em outros municípios do
Estado da Paraíba, fundamentais para a análise das poéticas orais. Foram feitos estudos de
várias formas de expressão, a partir da documentação obtida por nossas pesquisas de campo,
mas faltam, ainda, estudos comparados para precisar o que ocorreu em termos de
permanências e mudanças nas poéticas orais durante este longo tempo. Além disso, será feita
uma justa homenagem às pesquisas e reflexões pioneiras de Mário de Andrade e da Missão de
Pesquisas Folclóricas, realizadas há noventa e oitenta anos, respectivamente, enfatizando suas
contribuições para estudos recentes. Procurar-se-á demonstrar também a importância da
observação direta em pesquisa de campo, procedimento metodológico valorizado nas três
pesquisas, bem como a organização dos dados reunidos que priorizam os brincantes e outros
colaboradores, mencionando seus nomes e contextualizando seus saberes e fazeres.
No segundo eixo Estudos sobre poéticas orais nordestinas e testemunhos de
experiência vivenciada a investigação enfoca as poéticas orais nordestinas e testemunhos
de experiências vivenciadas, recorrendo a documentos resultantes dos projetos individuais ou
coletivos, selecionados para as análise de algumas formas de expressão de artes verbais
tradicionais a serem realizadas, tais quais: folhetos da chamada literatura de cordel, cantados
ou declamados por integrantes do público ouvinte/leitor; repentes, poemas e canções,
notadamente a produção de mulheres repentistas. Também serão estudados gêneros
discursivos memorialísticos (histórias de vida, relatos) como testemunhos de experiências
vivenciadas, em que se misturam gêneros poéticos e narrativos.
No terceiro eixo Diferentes registros orais transcritos: textos escritos de ouvido
os estudos considerarão os registros de transmissão oral (relatos, narrativas e outros gêneros
discursivos e literários). Ao serem transcritos, tornam-se textos escritos “de ouvido”,
mantendo, entretanto, expressões e modos de falar, em que pulsa a oralidade. Será
evidenciada a importância da escuta para o estudo de artes verbais tradicionais contadas,
cantadas ou dramatizadas. Busca-se, também, expressar a poeticidade e os modos de narrar
dos mestres e experimentar formas textuais híbridas, mesclando ou justapondo trechos orais,
transcrições escritas e fotos.
Trata-se de um estudo síntese de questões que têm sido desenvolvidas ao longo de
minha vida acadêmica, que aprofundará e redimensionará perspectivas de análise. Sobretudo,
por oferecer a estudiosos e interessados não a oportunidade de acompanhar como se tem
analisado a documentação das culturas orais, mas também de ter em suas mãos e diante dos
olhos e ouvidos uma experiência compartilhada, através da documentação singular da
vivência de inúmeros artistas tradicionais de diferentes gerações, captados em suas vozes e
gestos por pesquisadores em diferentes tempos.
As análises apoiar-se-ão em documentos de diferentes formas de expressão de
literatura oral, várias delas com poesia junto com canto, música, dança e representação
dramática, documentação esta gerada por três pesquisas de campo, muitas vezes feitas em
comunidades em que as artes tradicionais se mantêm até a atualidade. Por outro lado, os
registros preservados testemunham a longa duração que os conhecimentos tradicionais orais
têm, permitindo-nos demonstrar, com a viva voz dos artistas populares, de que maneira várias
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gerações atualizam cantos, danças rituais, entre outros saberes. Neste caso, os estudos a serem
realizados vão destacar, ainda, a importância de procedimentos técnicos de preservação de
acervo, sem o que não teríamos acesso à palavra cantada em diferentes períodos nem à
performance dos atores, além de descrições e interpretações documentais dos pesquisadores.
Outra questão que justifica a realização deste projeto diz respeito à análise dos
processos de transcrição de entrevistas e conversas com mestres que se tornaram referências
culturais de diferentes práticas artísticas. A metodologia para a transcrição textual das artes
verbais tradicionais por transmissão oral, bem como as tentativas de ter expressiva
amostragem das vozes em performance, variaram com o tempo, tanto nos registros sonoros e
audiovisuais da Missão de Pesquisas Folclóricas, quanto na documentação reunida no Acervo
Ayala.
As análises de transcrições textuais, com marcas da oralidade, serão acrescidas, desta
vez, com novas abordagens metodológicas e novos questionamentos, relacionados com o fato
de textos orais tornarem-se textos escritos “de ouvido”. Afinal, sem a escuta, no momento de
captação dos registros sonoros, e as sucessivas escutas da documentação oral durante o
processo de transcrição da palavra oral o haveria o texto escrito, resultante da passagem da
oralidade à escrita. Saber ouvir, saber anotar as ocorrências durante a pesquisa e as
impressões dos pesquisadores, junto com a organização constante da documentação são
procedimentos metodológicos que aproximam e permitem que também se realizem os estudos
comparados programados, os quais valer-se-ão de registros sonoros feitos em uma mesma
região, com aproximadamente oitenta anos de distância temporal, pela Missão de Pesquisas
Folclóricas e por nós, que atuamos nas pesquisas coletivas do Laboratório de Estudos da
Oralidade da Universidade Federal da Paraíba. Os procedimentos metodológicos utilizados
neste projeto também permitirão evidenciar como as vidas dos artistas estão imbricadas com
as artes verbais tradicionais por eles praticadas, seja em gêneros discursivos memorialísticos
(histórias de vida, relatos e outros testemunhos de experiências vivenciadas), seja em gêneros
poéticos e narrativos.
Acredito ainda que o conjunto de experiências, antecedido por estudos de caso de
muitas formas de expressão tradicionais, e o aprofundamento de análises sobre as poéticas
orais brasileiras, aqui proposto, podem contribuir, de certo modo, para a percepção do diálogo
fecundo que escritores da Literatura Brasileira estabelecem com as artes verbais tradicionais.
Deste modo, pretendo fechar o circuito de minhas atividades de ensino, pesquisa e
orientação, ou seja, minhas produções acadêmicas regulares na Universidade Federal da
Paraíba, iniciada no Programa de Pós-Graduação em Letras (1983-2006), desenvolvida e em
conclusão no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING), em que atuo, desde
2006, como professora colaboradora aposentada.
3. Metodologia
O presente projeto será desenvolvido de modo a ampliar os estudos de registros
sonoros e audiovisuais existentes no Acervo Ayala, destacando a importância das fontes orais
e a necessidade de estudá-las como poéticas orais. Mesmo quando a produção oral tradicional
passa por um processo de transposição para a escrita, não se deve perder de vista que se trata
de uma “escrita de ouvido”, utilizando aqui a expressão de Librandi-Rocha (2014)
17
. As
culturas tradicionais em estudo têm a especificidade de serem orais ou, em outros casos,
escritas para serem oralizadas (cantadas ou declamadas) por participantes dessas culturas.
Estudos realizados e em desenvolvimento nos fazem considerar a oralidade como um
grande sistema cultural:
17
Valho-me do conceito de Marília Librandi-Rocha, adaptando-o para o contexto das culturas orais e estudo
etnográfico.
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A oralidade é entendida como forma de transmissão, mas, sobretudo, como
conjunto de sistemas culturais com visões de mundo, ões, normas e
valores estéticos e sociais que envolvem múltiplas temporalidades.
Encontrados em comunidades urbanas e rurais, indígenas e quilombolas,
esses sistemas também podem se valer de outras linguagens, como, por
exemplo, a da escrita, na assim chamada literatura de cordel, com seus
folhetos, poemas e canções; da xilogravura, pintura e escultura; de
encenação sério-cômica, mesclada com canto e dança, contendo elementos
poéticos, narrativos e épicos: contam histórias, mostram a ão de pessoas
ou de personagens. (AYALA; AYALA, 2015, p. 6)
Alguns procedimentos que orientam a realização de registros e estudos das tradições
orais vivas foram ressaltados no livro eletrônico acima citado, Metodologia para a pesquisa
das culturas populares (AYALA; AYALA, 2015), à disposição dos leitores no site
www.acervoayala.com.
Têm sido adotados conceitos de Patrimônio Imaterial, conforme as orientações do
IPHAN e UNESCO, privilegiando as culturas populares tradicionais, nas quais as formas de
conhecimento são repassadas por transmissão oral, em contraste com outras formas de
conhecimento alicerçadas na escrita. No que se refere ao “objeto” de pesquisa:
Os objetos culturais são importantes para a análise, mas a prioridade recai no
ponto de vista dos sujeitos que participam das culturas tradicionais. Mesmo
quando, através de um estudo comparativo de estruturas poéticas e
narrativas, suas práticas culturais pareçam não sofrer grandes mudanças, não
devem ser tratadas como “sobrevivência do passado no presente”, como
entendiam os antigos folcloristas
18
. Ao contrário, as comunidades e suas
atividades culturais são contemporâneas, fazem parte de um contingente
enorme da população, embora nem sempre sejam reconhecidas devidamente
como protagonistas de cultura. Devido à coexistência de múltiplas
temporalidades, nem sempre é fácil de ser compreendida como cultura, ou
seja, como aquilo que não identidade, no sentido de fazer a diferença,
como no sentido de fazer parte da vida das pessoas que manifestam suas
dores, suas alegrias, seus prazeres, enfim, se reconhecem como gente pelo
que fazem em grupo, em sociedade, em suas comunidades. (AYALA;
AYALA, 2015)
Para as análises será utilizada a fundamentação teórico-metodológica que atravessa
minha produção cultural nesta área de estudos, não desprezando a releitura de estudos teóricos
pioneiros, como os de Jakobson e Bogatyrev (1973), que, na primeira metade do século XX,
se preocuparam em caracterizar o que era específico da cultura oral russa; os de Mukařovský
(1971), também do Círculo Linguístico de Praga, com seu estudo das funções, normas e
valores estéticos como fatos sociais; além de Bakhtin (1979; 1988, 2003; 2010), que amplia
os estudos linguísticos e literários significativamente.
Ainda no que se refere à fundamentação teórica, serão levados em consideração os
trabalhos acadêmicos brasileiros que trazem contribuição relevante para os estudos culturais
contemporâneos. Dentre eles, os de Jerusa Pires Ferreira, estudiosa de literatura de cordel
(1991; 1993), principal divulgadora dos conceitos de Paul Zumthor, além de tradutora de
várias de suas obras, bem como os de Frederico Fernandes, como o livro A voz e o sentido
18
Esta questão está mais detalhada em Cultura popular no Brasil (AYALA; AYALA, 2008)
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(2007), em que é posta em prática a metodologia da voz em performance, o nomadismo da
voz e outros conceitos zumthorianos.
Quanto à base comunitária responsável, em grande parte, pela existência dessas
culturas orais, além de reiterar que a cultura tradicional é um fazer dentro da vida (AYALA,
2011), sempre vale retomar a leitura de Xidieh (1969; 1972; 1976) e de outros como Bastide
(1959) e Lima (1985). Ainda nos valemos de Bastide para refletir sobre a cultura de
migrantes, pois muitas práticas culturais de um lugar ou região são reconstruídas em outros,
mantendo, assim, hábitos com os quais eles se identificam. Neste sentido, é muito pertinente a
observação deste autor sobre migração e cultura:
O folclore é um pouco de terra que se deixa, é uma lembrança afetiva mais
do que intelectual e o primeiro cuidado dos homens exilados será o de
recriar, em sua nova pátria, a terra perdida. (BASTIDE,1959, p. 12)
Quanto ao estudo das poéticas populares, pretendo aprofundá-lo com questões
relacionadas à importância da escuta para trabalhos etnográficos. O estudo dessas fontes orais
requer um embasamento teórico-metodológico para os gêneros de testemunho cultural, que
me auxiliem a desenvolver análises de documentos orais. Destacam-se as obras de Thompson
(1992) e Portelli (2016) para a história oral, que consideram os depoimentos orais, a memória
individual, as lembranças, os testemunhos, bem como a de Honko (2000) para a textualização
das poéticas orais, entre outros autores.
Para o estudo de percepção profunda dos relatos de mestres tradicionais,
especialmente os mais velhos com sua experiência e vivência do trabalho, das práticas
culturais coletivas e do cotidiano, será retomada a bibliografia sobre cultura e memória com
Benjamin (1980; 1984; 1985; 2009), Bergson (1990; 2006; 2010; 2011), Halbwachs (1950;
1990) e, sobretudo, com Eclea Bosi, que se dedicou às narrativas do cotidiano de pessoas
comuns em vários livros. “A ‘vida privada’ constitui o testemunho de um tempo coletivo”
ressalta Ades (2004) em sua resenha sobre o livro de Eclea Bosi, O tempo vivo da memória.
Nesta obra, Bosi (2003) trata de muitas questões que afetam os pesquisadores de campo de
qualquer área das Ciências Humanas. Entre as sugestões, Ades menciona a necessidade de se
adquirir confiança, “formar laços de amizade” e que “estes laços são tão necessários quanto
inevitáveis” (ADES, 2004, p. 238).
Autores que participaram do evento Textualization of oral epics, ocorrido na
Finlândia, em 1996, cujos papers reunidos em livro por Honko (2000), fazem uma revisão de
estudos da oralidade em vários continentes e se propõem formas de textualizar representações
artísticas tradicionais orais diante de um público, revisando e ampliando procedimentos e
conceitos, como o de performance, com novas abordagens etnográficas.
Para os estudos sobre folhetos da chamada literatura de cordel dar-secontinuidade a
apresentações de trabalho e publicações, bem como ao trabalho conjunto com Rosangela V.
Freire (2010, 2011) sobre a biblioteca “falante e cantante”, metáfora que temos utilizado
quando nos referimos aos homens e mulheres que carregam em sua memória, desde a
infância, poemas narrativos inteiros, aprendidos a partir de leitura ou audição de folhetos
vendidos em feiras nordestinas. O conceito de “escrita de ouvido”, que tem sido desenvolvido
por Librandi-Rocha (2014), e o termo “mundo escutado” de Costa (2005) apontam para as
relações da literatura brasileira com a língua falada. A respeito da literatura brasileira em sua
relação com a comunicação oral, não podemos deixar de retornar a ensaios de Antonio
Candido em Literatura e sociedade (1967), em que nos é apresentada a ”tradição de
auditório” marcante entre nós desde o período colonial, adquirindo novas feições ao decorrer
do tempo:
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É preciso agora mencionar como circunstância sugestiva, a continuidade, da
“tradição de auditório”, que tende a mantê-la nos caminhos tradicionais da
facilidade e da comunicabilidade imediata, de literatura que tem muitas
características de produção falada para ser ouvida: daí a voga da retórica, da
melodia verbal, da imagem colorida. Em nossos dias, quando as mudanças
assinaladas indicavam um possível enriquecimento da leitura e da escrita
feita para ser lida, ― como é a de MACHADO DE ASSIS ― outras
mudanças no campo tecnológico e político vieram trazer elementos
contrários a isto. O rádio, por exemplo, reinstalou a literatura oral, e a
melhoria eventual dos programas pode alargar perspectivas neste sentido. A
ascensão das massas trabalhadoras propiciou, de outro lado, não apenas
maior envergadura coletiva à oratória, mas um sentimento de missão social
nos romancistas, poetas e ensaístas, que não raro escrevem como quem fala
para convencer e comover. (CANDIDO, 1967, p. 102)
O ensaio que se encerra com a citação acima, O escritor e o público, foi publicado
antes na obra coletiva dirigida por Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil, em 1955. Os
ensaios reunidos em Literatura e sociedade (1967), em sua maioria, foram publicados antes,
no período entre 1953 e 1961, em um contexto de fortes mudanças sociais e políticas no
Brasil. Questões constantes na atualidade também se referem à diferenciação de públicos, às
características estruturais, ao sentido que a criação literária tem para quem dela participa
como público ou como autor, a quem se destina, a relação texto contexto social, ao processo
de integração (isto é, “o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a
participação nos valores comuns da sociedade”) e de diferenciação (“o conjunto dos que
tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças entre uns e outros”), conforme Candido
(1967, p. 27). Os estudos de Antonio Candido são fundamentais para entendermos o que
ocorre com as formas de apropriação e troca entre sistemas culturais diferentes.
Estudos nas áreas de Literatura Brasileira, Teoria Literária e Literatura Comparada
sobre autores como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Clarice Lispector e João Guimarães
Rosa encontraram-se diante de vários achados “de ouvido”, que os levaram, cada qual a sua
maneira, a (re)criar a linguagem literária com a experimentação da linguagem verbal oral, por
escrito, a expor a cadência da fala, a evidenciar procedimentos de contaminação da fala
coloquial ou pela poética oral, por exemplo.
Parece-me pertinente, para os estudos das culturas tradicionais, atentar para o modo ou
os modos de representar a oralidade por escrito ao se fazer as transcrições que dão
materialidade à palavra falada ou cantada. Quanto à metodologia para o estudo dos registros
sonoros, recorre-se à elaboração de textos (transcrições do oral ao escrito, descrições,
narrações e análises, fundamentadas na documentação oral, fotográfica e audiovisual e em
anotações em cadernetas de campo), à seleção de exemplos em outras linguagens (verbal oral,
sonora, audiovisual) que permitam a outros pesquisadores acompanhar as permanências e
mudanças culturais.
Nos últimos anos tenho me esforçado para produzir textos analíticos que, postados na
Internet, passem a sensação de algo que foi escrito para ser lido e ouvido, mas também, para
ser fruído com comentários e músicas que podem ser ouvidos, fotos e desenhos a serem
vistos, de modo a aguçar a atenção dos leitores com a linguagem verbal escrita, a linguagem
verbal oral e sonora, como a palavra cantada e a música, e a imagem estática ou em
movimento, de modo a provocar múltiplas percepções sensoriais. Para este tipo de produção
textual híbrida ensaiei os primeiros passos, publicando em livro o relato de uma festa
popular A festa dos santos reis... do rádio, um exemplo de relato crítico, escrito por mim e
Marcos Ayala (AYALA; AYALA, 2015) e amostragem de áudio desta Festa de Santos Reis
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em sítio de Arujá em 09 de janeiro de 1976, em versão digital disponível em:
http://www.acervoayala.com/acervo/colecao-1972-1995/festa-de-santos-reis/.
Em outro artigo do referido e-book, O encontro com o carnaval de João Pessoa
(AYALA; AYALA, 2015), cruzam-se relatos etnográficos de Mário de Andrade, quando
esteve na Paraíba em 1929 e assistiu a um ensaio de cabocolinho, com o relato de Marcos
Ayala, em 1979. Marcos Ayala anotou em sua caderneta de campo sua impressão no
momento em que vimos pela primeira vez a dança dramática de um grupo, a Tribo
Carnavalesca Índios Africanos.
Neste artigo, tanto o relato de Mário de Andrade quanto o de Marcos Ayala estão
marcados por impressões pessoais do impacto provocado em cada um ao ver de perto esta
dança dramática paraibana. Ressalta-se a subjetividade no momento do encontro etnográfico
em que se revela um estranhamento diante da alteridade cultural, buscando construir uma
forma de ensaio em que se mesclam descrições constantes em relatos etnográficos e a
narração pontuada por diferentes temporalidades, aos moldes da crônica. A versão como
artigo digital multimídia ainda não foi concluída, pois falta o cruzamento de texto escrito com
fotos, sons e audiovisuais selecionados e postos em simultaneidade.
Estes exemplos demonstram que é preciso desenvolver uma produção sobre culturas
orais que possa contar com mídia física (publicação impressa) e digital (publicação digital
multimídia) para o leitor também ter a alternativa de se aproximar das vozes e gestos
corporais, sempre que possível, de modo a compartilhar esta representação da realidade oral,
captada em algum momento de uma época mais remota ou contemporânea. Nesta proposta
metodológica de produção textual, uma perspectiva intimista (da experiência vivenciada,
da lembrança, da recordação, da memória afetiva do convívio com várias pessoas comuns,
mediada pelas artes e costumes tradicionais), uma intencionalidade histórica e temporal, pois
se trata de documentos colhidos em épocas muito distantes entre si (anos 1920-30, anos 1990-
2017), em que se aborda o legado de uma documentação histórica da cultura popular a serviço
da memória cultural que hoje possui muitos registros materiais (sonoros, audiovisuais,
fotográficos). A partir das anotações em cadernetas de campo antigas, fotos, gravações
sonoras e audiovisuais tenho a intenção de criar um conjunto do que tenho denominado
crônica etnográfica.
As crônicas etnográficas vão se configurar como textos elaborados a partir de
anotações de campo, de reflexões posteriores a partir de manuscritos, observação direta,
primeiras análises e leituras relacionadas ao tema, marcados por diferentes temporalidades. A
denominação remete para a crônica devido ao tipo de narração fortemente marcada pelo
tempo e diferentes temporalidades, enquanto o adjetivo, aponta para as descrições presentes
em relato etnográfico, mas também está vinculada a propósitos de análise crítica de minhas
pesquisas atuais, relacionadas com memórias da cultura popular, em que a criação artística, a
poética, se compõe de palavra, voz, imagem e sentimentos vários.
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ORALIDADES CORPORIFICADAS: PENSANDO O ENSINO DE DANÇAS
Rodrigo Lemos Soares (UFPEL)
RESUMO: Este trabalho consiste em identificar as presenças da oralidade em processos de ensino de
danças, tendo como local de observação seis terreiros de Quimbanda, da cidade de Rio Grande, no
interior do Rio Grande do Sul. A partir de experiências corpóreo-vocais, observo os aspectos mítico e
simbólico das tradições orais, próprias dos terreiros, entendendo-as como sua base. A oralidade,
presente nas narrativas dos (as) participantes da pesquisa, apresenta-se nos pontos, na explicação dos
gestos e nas relações interpessoais, que orientam a presença e a manutenção das tradições de cada
local estudado. Além disso, o estudo possibilitou perceber a oralidade como uma rede a conectar
ancestralidades. As ancestralidades são reiteradas nos encontros, nos quais as danças o o meio de
comunicação entre os mundos carnal e espiritual. Por fim, afirmo que as oralidades estão
presentificadas em todos os processos de ensino dos terreiros, com a consciência de que as
aprendizagens são investidas nos corpos, principalmente no que diz respeito a esta proposta,
mediadora de reflexões sobre pedagogias para as danças.
Palavras-chave: Educação. Ensino de danças. Oralidades. Corporalidades. Terreiros.
ABSTRACT: This work aims to identify the orality presence in dance teaching processes, having as
place of observation six Quimbanda’s shrine in Rio Grande city, in the interior of Rio Grande do Sul
state. From vocal and corporal experiences, I analyze mythical and symbolic aspects descendant from
oral traditions experiences, wich are presente in those places, understanding that a the basis. Also, the
orality presente in these narratives from the research participants, appears on kind of songs which they
used to sing in their religious meetings, explanation of gestures, interpersonal relationships. All those
examples guide the presence and maintenance of tradicions from each place studied. Furthermore, this
study made it possible to realize that the orality can be recognized as a netwoek that connects
ancestries, wich are reiterated in meetings in which dances are a way of communication between two
worlds: carnal and spiritual. Finally, affirm that oral expressions are presente in all teaching process in
those shrines, understanding that all this learning is invested on bodies there, mainly when it comes to
this purpose, based on reflections about pedagogy related to dances.
Keywords: Education. Dance teaching. Oral expressions. Nickie Wang. Shrine.
1. Orações iniciais...
O presente texto constitui um recorte do estudo de tese em Educação, que versa sobre
os rituais de emolação na vertente religiosa Quimbanda
19
. Até aqui, meu trabalho tem-se
baseado na escrita de diários de campo (GIL, 1999), uma ferramenta que me auxilia na
mobilização de discussões as quais, de modos distintos, são desenvolvidas nas rotinas dos
terreiros
20
de Quimbanda, de Rio Grande, interior do Rio Grande do Sul (RS). Nesse sentido,
19
A Quimbanda “[...] é mais uma ramificação das disseminações religiosas brasileiras, sendo igualmente
denominada de Macumba, ou Linha Cruzada, pelos desdobramentos e fusões com a Umbanda, porém, tem
suas falanges específicas (SOARES, 2018, p.79).
20
Em Soares (2018), terreiros são as casas de santo onde se fundam os rituais, que possuem por base a
orientação religiosa africana. Nesses locais, a transmissão oral apresenta relações simbólicas entre o que se
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tenho-me voltado aos debates dirigidos às relações entre noções de corpos e multiplicidade
cultural, tendo como referência as práticas e experiências narradas acerca dos fazeres
ritualísticos, em sua natureza dinâmica. Contudo, tenho percebido marcas das ancestralidades,
ainda vivas e capazes de produzir conhecimentos e que, assim, desafiam uma pretensa
homogeneização cultural.
O aparato produzido está embasado na oralidade da referida manifestação religiosa.
Dito isso, proponho um estudo no sentido de identificar as presenças da oralidade em
processos de ensino de danças, tendo como local de observação seis terreiros de Quimbanda
da cidade de Rio Grande. Pensou-se, para o desenvolvimento da pesquisa, nos campos plurais
de ação, os quais o produzidos por meio de experiências e narrações do fazer, configurando
uma ideia de pluralidade de formas de fazer e de ensinar, no contexto das danças, no Brasil
(SANTOS, 1996). Observo as possibilidades de educar pela oralidade, uma vez que esta é
minha base e fonte da produção de dados.
Afirmo que a linguagem falada, nesta escrita, é produto e produtora de memórias, as
quais possibilitam experiências inscritas como oralidades corporificadas, pois as formas de
ensino, amplamente falando, e, em específico, o ensino de danças, atuam sobre os corpos,
entendidos como veículos das memórias, ou seja, locais de inscrição das vivências
(MARTINS,2002). É pelos corpos que as oralidades são manifestadas e, desse modo, os
ensinos são, também, possíveis ao serem inscritos nesses aparatos (SANT’ANA, 2005).
Ademais, destaco que, no cenário brasileiro, os “[...] textos de tradição oral e popular
são frequentes, tanto nos circuitos letrados, como no cotidiano de cada um de nós, seja na
forma de conto, provérbio, máxima, dito popular, trova, cordel, etc”. (FARES, 2010, p. 264).
Contudo, abordar a oralidade em nossas pesquisas ainda suscita alguns questionamentos
referentes à validação dos métodos, como se a maior parte das metodologias não dependesse
da narrativa, do relato, das experiências dos (as) participantes (GIL, 1999). Retomo Fares
(2010) ao expor a necessidade de que as poéticas orais sejam parte dos saberes a serem
ensinados. Segundo a autora:
[...] desqualificar este objeto é desconsiderá-lo como texto fundador, a
origem de todos os outros [...]. As poéticas orais fazem parte do universo
cultural dos discentes, sobretudo os moradores da zona rural do Brasil, das
zonas periféricas das grandes cidades, e os que (con)viveram nesses
territórios ou com seus habitantes. Trazer esta realidade para o sistema de
ensino, estabelecer relações de trocas simbólicas, é um dos sentidos da
educação (FARES, 2010, p. 265-266).
Ter a oralidade como fundadora de nossas ações, enquanto educadores (as), implica
em assumirmos as narrativas de todos (as) envolvidos (as) na comunidade escolar. Por essa
lógica, uma possibilidade de ação seria o exercício de uma escuta atenta das histórias a
respeito dos locais de origem desses sujeitos, observando seus mitos, folclores e suas lendas, a
fim de estimular as narrativas como item correlato às manifestações escritas, assim como as
fotografias, os desenhos, entre outras experiências possíveis. Por esse viés, o ensino através
da oralidade assume sentido de trocas, sejam elas simbólicas, materiais ou ambas. Ainda para
Fares (2010), pela voz, conferimos múltiplas possibilidades de alteridade às mensagens
dirigidas a quem as recebe, independente da finalidade.
faz hoje, especificamente no contexto interiorano do município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul (RS),
com uma premissa de memórias dos sujeitos africanos, aqui [Brasil] escravizados. São também entendidos
como lugares do sagrado, territórios que mantêm e desenvolvem conhecimento acerca dos saberes e fazeres
cotidianos das práticas religiosas, considerando sempre os contextos socioculturais e locais nos quais estão
inseridos (SOARES, 2018).
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2. Oralidades e os terreiros...
As tradições religiosas africanas são alguns dos demarcadores identitários do Brasil
(FAVERO, 2010). Elas são responsáveis por imprimir caracteres culturais concisos em nossa
sociedade (SANTOS, 1998). Ao abarcarem o solo brasileiro, como modo de manutenção e
resistência de seus preceitos e princípios éticos e estéticos, as cosmologias religiosas foram
sendo inscritas e mantidas em comunidades-terreiros (SANTOS, 1998). Parte significativa
dos processos de conservação desse bem cultural resistiu e chega à contemporaneidade por
meio da oralidade, enquanto um processo de transmissão de saberes, ainda mais evidente
quando tratamos de educação em terreiros (CAPUTO, 2012). Reconhecer a importância da
comunicação oral implica em assumir que, de alguma forma, ela possui influência sobre
nossas vidas, fortalecendo a ideia de multiculturalidade (FAVERO, 2010), presente no Brasil.
Mais que isso, é compreender que nossas formações identitárias são diversas, logo, não são
fixas. Assim, operando de forma intercambiante, oferecem a nós um arcabouço cultural
diverso.
Partindo da premissa de que as religiosidades são constituidoras de identidades, afirmo
que por meio de seus ritos e rituais essa constituição identitária torna-se possível de ser
observada. É pela prática e pela manutenção dos cultos, por vias da oralidade, que o
sincretismo da Quimbanda reverbera. São as rotinas de cada terreiro que falam sobre eles,
definindo, assim, o que cada local tem a dizer sobre suas características, como se apresentam
à sociedade (CAPUTO, 2012). Na esteira desse pensamento, a oralidade implica em modo de
sobrevivência ou, para além disso, o registro oral das práticas dos terreiros está presente nas
narrativas, nos pontos, nas mitologias das entidades, que constituem outras marcas identitárias
para esses locais (CAPUTO, 2012).
Contudo, cabe destacar que assumir esse entendimento implica em, também, dizer
que, ao manterem seus ritos e rituais, os sujeitos dos terreiros operam diretamente com uma
noção de ancestralidade, aquela movida ainda no tempo presente, pois é a todo instante
questionada, replicada e (re)elaborada, instituindo-se como mais uma presença nas rotinas
religiosas. Ancestralidades, no plural, é um posicionamento defendido a partir das ideias de
Canclini (2006), ao expor que os limiares culturais se imbricam pelo fato de encontrarem nas
memórias coletivas um arcabouço narrativo que possibilita o eu. Hoje percebemos, ou
entendemos, como culturas dos terreiros, os espaços movidos por crenças e experiências,
ritualísticas ou não, mas amplamente orientadas pelas ancestralidades, pelos saberes
difundidos através da oralidade (CANCLINI, 2006). Isso porque a palavra oralizada transmite
axé, emana as energias necessárias para que ocorram as conexões com o sagrado, por vias da
afetividade (SANTOS, 1996). Nesse contexto, Santos (2006) escreve que é pelas conexões
entre as ancestralidades oralizadas e “experienciadas” e pela (con)vivência que são
forjados os processos de produções identitárias das religiões afro-brasileiras. Nas tradições
africanas, a oralidade é considerada como uma ação de deusas e deuses e sem ela não existe
processo educacional. Não ter presença da fala implica em ausência de transmissão de
preceitos éticos-estéticos.
[...] a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de
um caráter sagrado vinculado à sua origem divina, às forças ocultas nela
depositadas [...]. Não era utilizada sem prudência [...] as primeiras
bibliotecas do mundo foram o cérebro do homem (HAMPATÊ BA, 2010,
p.180).
Segundo o excerto, a fala assume, no mínimo, função dupla: moralizar e estabelecer
ação disciplinar de prudência. Segundo os (as) participantes do presente estudo, tais funções
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são, ainda, pressupostos da fala, nos terreiros. Para aqueles (as) que são filhos (as) de santo
21
da casa a regra vale, inclusive, fora do contexto religioso. Segundo Dione da Maria Padilha
22
,
“[...] tua voz reverbera fora, então o que tu fala é o teu caráter, é o que tu és” (Diário de
campo de Dione da Maria Padilha 16 de jun. de 2018). Nesse mesmo dia, a participante
ainda reforçou a ideia, mencionando que não existe terreiro sem um sistema oral. Segundo
ela: “[...] a religião começa pela cozinha, sabem porquê? Por que primeiro a gente alimenta as
entidades e orixás, depois os nossos corpos e tudo isso a gente só sabe pela oralidade,
ninguém escreve, não aqui” (Diário de campo de Dione da Maria Padilha 16 de jun. de
2018). Logo, o que se coloca na narrativa dos sujeitos é a ideia de valoração moral e ética
destes. Diante desse posicionamento, reitera-se que “[...] a própria coesão da sociedade
repousa no valor e no respeito pela palavra” (HAMPATÉ BA, 2010, 182).
Dito isso, reitero que é pela oralidade, estabelecida nos rituais e concretizada por
vieses educativo-pedagógicos, que os terreiros fundamentam e estabelecem seus saberes. Seja
pela narrativa das mães de santo, dos pais de santo e, em alguns casos, de ambos, que se
ensina e educa para os diversos fins religiosos das casas de santo. Os mecanismos de ensino,
na esteira dessa constatação, pairam nas verbalizações daqueles saberes indispensáveis ao
funcionamento dos terreiros, orientando as relações interpessoais. Desde os rituais de
iniciação até os de renovação e formação religiosa, todos são assentados na e pela oralidade e,
além disso, as vozes que ensinam precisam ecoar nos corpos, culminando no gestual das
danças das entidades que se manifestam nos terreiros.
3. Oralidade, corpos e danças: inscrições narrativas...
Como fora registrado no item anterior, a oralidade é parte dos sistemas de organização
dos terreiros, ela é o primeiro fundamento desses locais. Tendo em vista o foco deste estudo,
no presente tópico exemplificarei, a partir dos dados, como ocorrem os ensinos de dança, por
vias da fala. Os excertos aqui apresentados, como já mencionei, foram retirados dos diários de
campo produzidos em diferentes visitas aos terreiros, que são minha base de dados, no estudo
de tese. Até o momento, apresento, como objeto ou corpus deste texto, a oralidade, assim
como tudo que se aproxima dela, através das categorias de análise utilizadas. Após serem
agrupados, os fragmentos foram observados pela técnica de Análise Cultural, a qual está
comprometida com “[...] pequenos recortes de negociações ocorridas no dia a dia, na
contingência das pessoas, tanto do social como do laboral e suas construções” (SANTOS,
2011, p. 65). Os dados foram subdivididos em duas subcategorias: recorrências e escapes, de
modo a “[…] interrogar a linguagem, não na direção à qual ela remete, mas na dimensão em
que é produzida e produz [...]. Trata-se de suspender, no exame da linguagem, não apenas o
ponto de vista do significado [...], mas também o do significante” (FOUCAULT, 2000,
p.129).
Uma vez que se lancem questões ancoradas em perspectivas pós-modernas
de análise, como a análise cultural, implica em entender e assumir que a
linguagem é constituinte daquilo que fala e, desse modo, a cultura está
imersa em um jogo de interdependência da narrativa e constituição do que
21
Filhos(as) de santo são aqueles (a) que seguem os preceitos de um terreiro. Em princípio, passa-se a ser filho
(a) de santo, após o batizado de ervas, o Amaci.
22
Os textos extraídos dos diários de campo estarão colocados ao longo do texto, com a mesma formatação de
todo o texto, porém, empreguei o itálico para diferenciar das demais citações. Aqueles com mais de três
linhas estão em formato de citação recuada. Além disso, apresento, entre parênteses, o nome de quem falou e
a data em que foi escrito o diário.
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foi dito. Assim, analisar culturalmente é, também, investigar os processos
culturais que possibilitam que se diga uma coisa e não outra (SOARES,
2018, p. 64).
O recorte teórico, neste momento, é justificado pela forma de escrita que assumo.
Como neste tópico irei operacionalizar os dados, compreendo como necessária a explicação
acerca das condições e possibilidades para fazer o texto deste modo e não de outro, ainda que
tenha deixado rastros ao longo de minha escrita até aqui. Um último destaque: estou
trabalhando apenas com a categoria “oralidades escapes”, tal escolha deve-se ao fato de
diversificar as possibilidades de ensino de danças, a partir de como os (as) participantes da
pesquisa pensam a utilização da fala.
Citadas as devidas considerações, acerca do método e da metodologia, inicio com uma
observação a ser considerada ao longo de todo tópico: o mover-se dos corpos parte de uma
premissa de universalidade (SANTOS, 1996). Sua presença está entendida como marca
histórica das diferentes nações do mundo e, por isso, o movimento assume figura central deste
item, pois através dele o ensino é possível ao escrever, inscrever e reiterar, mitologias,
conhecimentos e ancestralidades (SOARES, 2018ab). Se dançamos, estudamos, inventamos e
ensinamos danças, é porque desde muito tempo movimentamos os corpos, por diferentes
razões (SOARES, 2018ab). Afirmar estas questões, exige que eu evidencie que as Danças não
se limitam aos movimentos, mas têm neles um denominador comum. Pelo ato de movência,
colocamos em diálogo saberes como: oralidade, tradição, mitologias, ritos, práticas,
musicalidade, gestual, entre outros, e de diferentes modos (SOARES, 2018ab). Ao propormos
um intercambio desses saberes, agimos de forma inicial, com modos de ensinar, e nos
terreiros, os fazemos oralmente.
Observação feita, avanço para exemplificação de alguns pontos nos quais a oralização
e o ensino operam de modo imbricado. Vejamos a narrativa a seguir: “[...] Minha filha,
apenas deixa vibrar o teu corpo, a entidade sabe o que fazer, não é algo que tenha uma técnica
fechada, apenas sente teu corpo responder ao tambor [...]” (Diário de campo de Daiane da
Maria Quitéria - 23 de maio de 2018). Segundo a participante, é preciso sentir o corpo
manifestar-se e, a partir dessa sensação, a dança tende a ocorrer, uma vez que, para ela, não
existe uma técnica a ser ensinada, mas sim, uma sensibilização ao toque do (a) tamboreiro
(a)
23
. Nesse sentido, dialogo com Warschauer (2004), ao escrever que o ensino preconizado
em roda parte de uma premissa do sensível. Para a autora, este tipo de observação requer
fundamentos que escapem às lógicas de reprodução dos saberes, antes disso, é preciso sujeitos
envolvidos, afetados pelas propostas que estão na roda, no jogo. Tem de haver encantamento
pelo saber oralmente disposto na roda (WARSCHAUER, 2004). Desse modo, desenvolve-se
uma pedagogização por e pela sensibilidade (FORNEIRO, 1998).
Assim, penso as possibilidades de ensino de danças como linguagens do sensível. Uma
vez que, nos terreiros, parte dos saberes estão colocados nas imagens de gesso das entidades,
nas bandejas arriadas no chão, em frente ao conga ou quarto de santo, nos quadros de gesso,
nos utensílios das cozinhas. Esse conjunto de materiais possibilita múltiplas experimentações
as quais tendem a orientar os processos criativos, por meio da oralidade, constituindo o
arcabouço cultural das casas de santo (SOARES, 2018a). A partir desse conjunto de
colocações, os pais e mães de santo propõem diálogos para que cada filho (a) possa elaborar
seus saberes, considerando os estímulos dados. No entanto, a produção de conhecimentos está
23
Tamboreiro (a) é o (a) responsável pelo tambor e/ou atabaque. São eles (as) que conferem o tom das giras.
Representam um dos elos sagrados de comunicação entre os mundos: carnal e espiritual. Eles (as)
estabelecem uma comunicação, também, oralizada pela entoação dos pontos, por intermediarem algumas
situações dos terreiros e por promoverem momentos de descontração, pois, geralmente, brincam por meio de
jogos cantados com as entidades (SOARES, 2008).
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pautada nas inscrições corporais, pois tudo que é aprendido, e apreendido, é representado
pelos corpos, sendo eles, também, agentes da educação sensível. Com isso, apresento a
narrativa de Roberto do Pantera Negra, no momento em que ele afirma:
Vocês vão aos poucos entendendo que tem que cuidar de tudo, nos tempos
certos, sem avanços desnecessários [...]. Tem capa, cigarro, copo, gente e
tudo tem que ser cuidado, tem que ter zelo pelas coisas da casa, porque
gente, aqui é o nosso lugar, aqui estão as nossas histórias e tudo isso é parte
dos nossos rituais. Saibam disso e pensem nisso quando forem girar no
salão. Aqui é a nossa casa, e os corpos de vocês são os elos individuais, que
formam a nossa corrente
24
(Diário de campo de Roberto do Pantera Negra -
24 de maio de 2018).
Para o depoente, o ensino é processual, exige uma temporalidade para que se aprenda,
e também se ensine, determinados conhecimentos. Segundo ele, os usos dos materiais que
compõem os rituais precisam ser cuidados, a fim de zelarmos pelo ambiente. Saber essas
questões implica em estar em processo de encaminhamento nas aprendizagens dos terreiros, a
presença dos saberes reverberará nas danças ou giras nas rodas. Ele ainda menciona que todo
esse aparato age partindo da noção de que o terreiro é caça dos (as) fieis e que seus corpos são
os elos que possibilitam a existência da corrente. Pensar o ensino pelo exposto na narrativa de
Roberto, convoca à percepção de que “[...] o corpo é um portal que, simultaneamente,
inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo,
local, ambiente e veículo da memória” (MARTINS, 2002, p. 89). A noção de “oralidades
corporificadas” (título deste texto) emerge exatamente do contexto exposto, pois, essa locução
é forjada ao se considerar os rituais e as cenas que os constituem. Contudo, julgo necessário
destacar que existem, a partir de Highwater (1980), dois tipos de rituais:
O primeiro, estudado pelos etnologistas, que é familiar, é um ato
inconsciente sem deliberação estética, resultado da influência étnica de
muitas gerações que culmina num grupo com seu sistema fundamental. E o
segundo tipo, ou seja, um novo tipo de ritual, que é a criação do indivíduo
excepcional que transforma sua experiência através de um idioma metafórico
(HIGHWATER, 1980, p. 14).
Seja familiar ou com função de produzir os sujeitos de modo metafórico, os rituais
ocorrem porque os corpos estão presentes. Desse modo, a oralidade age concomitantemente
com eles, pois, ao longo dos rituais ocorrem as narrativas sobre o que e como fazer em cada
ato, o que esperar dos acontecimentos, seja com as danças ou com quaisquer outras
aprendizagens postas nestes momentos de ritualização. Oralidade e corpos se retroalimentam,
porém, os contextos de requerimento destes auxiliam na percepção dos momentos em que um
é mais acionado que outro. Assim, é possível pressupor que as mitologias, das entidades
requeridas nos rituais, também podem influenciar nos modos de ensino, nas alteridades das
narrativas, utilizadas para educar àqueles (as) que estão nos terreiros, seja para acompanhar
como fiel ou dos (as) que são parte das correntes. Para tanto, a ideia é aliar saberes
tradicionais e contemporaneidades, ressignificando essas abordagens, pelos corpos em
movimento, e recorrendo aos usos da oralidade, como mediadora dos processos pedagógicos,
envolvidos com as danças (SANTOS, 2006; 1996). O que defendo, nessa esteira, é que não
basta reproduzir, e sim fomentar diálogos acerca dos saberes dos terreiros, propiciando
24
Corrente é a denominação da roda na qual os(s) filhos de santo e pais e mães de santo colocam-se para
realizar os trabalhos. É em roda que a energia vital, o Ase condensa e produz os campos de comunicação
entre os mundos: material e espiritual (SOARES, 2018).
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experiências distintas ao longo dos processos de iniciação. Também, no que diz respeito à
formação fundamentada dos (as) participantes das casas, é essencial que sejam marcadas por
múltiplas vozes, consolidando a ideia de experiência participativa (SANTOS, 1986). Para
autora:
Estar iniciado significa aprender os elementos e valores de uma cultura
‘desde dentro’, mediante uma inter-relação dinâmica no seio do grupo, ao
mesmo tempo poder abstrair dessa realidade empírica os mecanismos do
conjunto e seus significados dinâmicos, suas relações simbólicas numa
abstração consciente ‘desde fora’ (SANTOS, 1986, p. 18).
Iniciar-se na Quimbanda pressupõe etapas de cozinha, batizados, rituais de emolação,
participação nos fazeres do terreiro (SOARES, 2018). Desse modo, é sugerido que filhos e
filhas de santo consigam, ainda que minimamente, correlacionar as experiências de vida,
externas ao terreiro, com os conhecimentos internos desses locais (CAPUTO, 2012). Mais
que isso, ocorre a necessidade de partilha das emoções e sensações com o grupo,
possibilitando que todos (as) percebam o quanto suas vidas e, por consequência, seus saberes
são dinâmicos, logo, não fixos (SOARES, 2018ab). Partindo dessa lógica, as pedagogias dos
terreiros são constituídas, dentre outras questões, pela orientação e pelas práticas dos
costumes tradicionais, por ora reelaborados pelas condições contexto-temporais. Tal
afirmativa pode ser percebida na narrativa seguinte: “[...] Filhos, vamos fazer uma percepção
do que são as nossas entidades, temos que saber as histórias delas, porque é isso que
dançamos. Olhem esses quadros nas paredes, as imagens, e busquem compreender o que elas
passam para vocês [...]” (Diário de campo de Daniel da Padilhinha - 27 de maio de 2018).
Outro ponto a ser considerado é o exposto por Marcelo do Tranca Ruas das Almas.
Segundo ele: “[...]Cada passo que vocês fazem aqui dentro tem um fundamento e vocês
precisam disso, dos fundamentos. É tradição isso. Para dançar seja para o exu ou pombagira
tem que ter conhecimento dos ritos que eles podem ou não fazer [...] (Diário de campo de
Marcelo do Tranca Ruas das almas - 14 de jun. de 2018). Na manifestação do participante, é
preciso ter fundamento para dançar. Logo, esses fundamentos significam os saberes, as
feituras ritualísticas que possibilitam, ou não, a ocorrência das danças das entidades. Eles, os
fundamentos, por sua vez, são reiterados pelas experiências vividas no terreiro (SANTOS,
1998). No entanto, no que tange ao ensino, ele é possível por recorrência às imagens, às
memórias, a fim de que não ocorra desconexão de saberes (SANTOS, 2006; 1996). Com isso,
a oralidade assume papel fundamental propiciando que os passos dados dentro dos terreiros
correspondam às ancestralidades que constituem esses lugares.
A partir das explicações expostas, apresento a narrativa de Dione da Maria Padilha,
próxima delas:
[...] pessoal, vamos para cozinha, uma conversa na cozinha que é onde tudo
começa, depois vamos para o salão [...]. Percebam se o corpo de vocês
manifesta alguma coisa quando sentem os cheiros e os gostos? Quais os
movimentos os corpos fazem quando sentem isso? [...]. Vocês sabem que as
entidades dançam em todos os rituais e, por isso, precisamos saber
reconhecer essas sensações que são básicas, porque é assim que sabemos
quando e como eles estão chegando. A gente usa a memória para lembrar
desse ensinamento (Diário de campo de Dione da Maria Padilha 16 de jun.
de 2018).
No excerto da depoente, é possível visualizar uma sequência para o ensino: primeiro a
cozinha, depois o salão. A participante também se utiliza de uma sensibilização para conduzir
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as aprendizagens de seus filhos e suas filhas de santo. Ela lança mão de questionamentos para
que se institua um espaço de ensino. Além disso, afirma que as entidades dançam, logo, é
necessário saber sentir para que os rituais ocorram. Ela amarra sua fala afirmando que é
preciso recorrer aos usos das memórias para lembrar dos fundamentos mencionados. Nessa
esteira de pensamentos, recorro a Halbwachs (2006), para quem a memória não significa um
todo coeso, mas sim um agrupamento de representações. Segundo ele: “[...] cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, esse ponto de vista muda conforme
o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar muda segundo às relações que mantenho com outros
meios” (HALBWACHS, 2006, p. 51).
Dito isso, destaco que as memórias são produzidas em meios às culturas, nas quais os
sujeitos estão inseridos e, por isso, os sentidos dados às culturas estão estritamente
correlacionados aos significados dos tempos e locais que os permeiam (GEERTZ, 2008).
Cultura é sempre relação, é disputa, é território (HALL, 2012) e, nesse caso, são os terreiros,
em seus papéis de resistência e existência, de manutenção e (re)elaboração das experiências
religiosas. Estabeleço, então, o pensamento de que tanto as culturas, quanto as memórias,
além de serem dependentes dos processos de oralização, são, também, produtoras de saberes e
processos de ensino, pautadas na agência dos corpos daqueles (as) que ensinam e, ao mesmo
tempo, aprendem. Esse entendimento constitui as pedagogias dos terreiros (CAPUTO, 2012).
De outra forma, José Carlos do Maioral expõe: “[...] Vocês são luz! Emanam luz e luz
é Axé. Sejam o axé das entidades de vocês, cuidem dos seus corpos, dos seus espíritos, para
dançarem emanando boas vibrações para assistência [...]” (Diário de campo de José Carlos do
Maioral - 16 de jun. de 2018). Para o pai de santo, os filhos e as filhas dele são seres que
emanam energias e estas precisam ser positivas. Para tanto, ele indica a necessidade de
cuidarem dos seus corpos e espíritos, desse modo, as danças ocorrerão como esperado,
espalhando Axé. A ideia de seres iluminados pressupõe a presença das entidades nos filhos e
nas filhas. Essa ideia dialoga com Hall (2012), por compreender que na relação sujeito mais
entidade, produzem-se identidades, que são fruto não desse diálogo, mas também de um
dinamismo maior. Ao emanarem, por meio deste ser híbrido (humano e entidade), coloca-se
em jogo a ideia de cultura, enquanto ação simbólica (GEERTZ, 2008).
4. Oralidades materializadas...
Vistas as exemplificações, ainda que momentâneas, reitero que nas possibilidades de
ensino em terreiros, especificamente nas estudadas aqui, ocorrem processos de ressignificação
dos saberes, por meio das oralidades. Pedagogizar nos terreiros é um ato intrinsicamente oral.
A oralidade, por meio das narrativas dos (as) participantes da pesquisa, se faz presente nos
pontos, na explicação dos gestos, nas relações interpessoais, que orientam as presenças e
manutenção das tradições de cada local estudado. Além disso, o estudo possibilitou perceber
que a oralidade se coloca como uma rede que conecta ancestralidades, que são reiteradas nos
encontros nos quais as danças são o meio de comunicação entre os mundos: carnal e
espiritual. Por fim, reafirmo que as oralidades estão presentificadas em todos os processos de
ensino dos terreiros e que as aprendizagens são investidas nos corpos, principalmente no que
diz respeito ao contexto deste estudo, que se propõe a reflexões sobre pedagogias para as
danças.
Relacionada ao campo metodológico, destaco o quanto a oralidade possui caracteres
que somente na presença da fala é que conseguimos captar, pois alguns sentimentos e
entonações podem modificar completamente o horizonte de análise de dados. A oralidade
propicia, além de diálogos, troca de experiências que somente pela audição, na posição de
quem recebe a mensagem, conseguimos compreender os processos de criação contidos em
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uma narrativa. Por fim, no que tange ao estudo em si, por se tratar de uma análise específica
dos trechos que sinalizam presença da oralidade, considero que ele abre espaços para que
outros estudos emanem a partir deste.
Com isso, ainda deixo em suspenso saberes desde sempre presentes (VEIGA-NETO,
2002), considerando os campos das oralidades como um complexo e dinâmico movimento, o
qual me permitiu essa escrita, tendo em vista que se trata de uma questão de olhar, pois “[...] é
o olhar que botamos sobre as coisas que, de certa maneira, as constitui. São os olhares que
colocamos sobre as coisas que criam os problemas do mundo” (VEIGA NETO, 2002, p.
30). A oralidade, para os (as) participantes da pesquisa não significava um problema, algo a
ser estudado, pois segundo eles (as) essa é uma questão naturalizada dentro dos terreiros.
Desse ponto em diante, sigo defendendo a potencialidade das tradições orais em prol da
Educação, no sentido de que esta seja pautada por pedagogias diversas, por métodos de ensino
plurais. É essencial que todos os processos de escolarização compreendam esses locais de
fala, enquanto constituintes da nossa sociedade, pois eles forjam identidades, reconfiguram
processos de relações interpessoais e culturais, definindo, na ordem dessas expressões, quais
os “problemas” entram no contexto das ordens discursivas ou não (VEIGA – NETO, 2002).
REFERÊNCIAS
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SUJEITAS(OS) DE CONHECIMENTO, NOSSAS TEORIAS, NOSSA VIOLÊNCIA
EPISTÊMICA
Alcione Correa Alves (UFPI)
RESUMO: Partindo da hipótese do potencial epistemológico de obras literárias (DURÃO, 2015) e
dela nos apropriando, o presente texto examina o potencial epistemológico de obras literárias negras
americanas e, por conseguinte, do conhecimento produzido por sujeitas(os) negras(os)
americanas(os), mediante exame de suas obras literárias, no âmbito de nossa comunidade científica.
Palavras-chave: Literaturas negras americanas. Violência epistêmica. Problemas modelares. Soluções
modelares.
ABSTRACT: Appropriating the hypothesis of epistemological potential of literary works (DURÃO,
2015), tis article proposes a epistemological potential of Black American literary works and therefore,
a knowledge produced by Black American people through literary works analysis in our scientific
community.
Keywords: Black american litteratures. Epistemic violence. Model problems. Model solutions.
A Lívia Natália Souza.
Enquanto índice da saúde da comunidade científica em torno do GT de Literatura Oral
e Popular, a observação da programação de seus debates, na reunião promovida no XXXIII
Encontro Nacional da ANPOLL, oferecera uma amostra da diversidade tanto de abordagens
de pesquisa circulantes entre a comunidade científica quanto de sujeitas(os) por nós
investigadas(os)
25
. Do ponto de vista de nosso fazer-ciência, nesta diversidade encontramos
terrno fértil a uma aprendizagem de literaturas (ou, dito de outro modo: de poéticas orais)
habilitadas a formular novas perguntas e limites ao atual estado da teoria literária em, ao
menos, dois aspectos: seja o atual estado de nossos recursos teóricos e metodológicos mais
diretamente relacionados à comunidade científica das Poéticas Orais, no Brasil (tema
explicitamente evocado na convocatória a este número da revista Boitatá); seja a um quadro
mais geral, no tocante ao corpo de conhecimentos reconhecido como Teoria Literária (para
muitos fins: teoria ocidental), enquanto disciplina estabelecida em nosso atual modelo
acadêmico. A partir de tal lugar de conhecimento, a comunidade científica das Poéticas Orais,
no Brasil, constitui uma amostra significativa ao campo dos Estudos Literários, em sua
capacidade de formular questões, contemporâneas, à natureza de nossos temas de estudo,
assim como à natureza de nossas produção, discussão e difusão de conhecimento, postulando
25
Como atores relevantes, no campo das Poéticas Orais, habilitados à demonstração de tal diversidade,
consideremos o GT de Literatura Oral e Popular (assim como as edições do Seminário de Poéticas Orais,
realizado em seu âmbito), bem como os 26 números já publicados da revista Boitatá.
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uma relação de mão dupla entre sujeitas(os) investigadas(os) e sujeitas(os) investigadoras(es)
e assumindo, frequentemente, os corolários da referida relação.
Em uma palavra: a observação dos trabalhos do GT de Literatura Oral e Popular,
levados a termo no XXXIII Encontro Nacional da ANPOLL, situam, de modo legítimo, o
quanto as pesquisas contemporâneas desenvolvidas pela comunidade científica das Poéticas
Orais, no Brasil, fornecem ao campo mais amplo dos Estudos Literários novos problemas
modelares, de relevância teórica e política, acerca de nosso fazer-ciência; e (central a este
artigo) acerca do lugar das(os) sujeitas(os) que investigamos naquilo que Homi K. Bhabha
denominara equação conhecimento-poder (BHABHA, 1998, p. 45). A isto, se dedica o
presente texto: no cenário ora delimitado, discutir possibilidades e limites da teoria literária
ante a hipótese de tomar a sujeitas(os) que investigamos, em vez de nossos Outros, enquanto
sujeitas(os) cognoscentes
26
. Partindo da hipótese do potencial epistemológico de obras
literárias (DURÃO, 2015) e dela nos apropriando, o presente texto propõe discutir, de modo
elementar, o lugar do conhecimento produzido pelas sujeitas(os) que investigamos, mediante
exame de suas obras literárias, no âmbito de nossa comunidade científica. Trata-se de uma
discussão de cunho teórico, calcada no recurso a alguns textos recorrentes no campo dos
Estudos Literários, no Brasil, acerca de problemas modelares de pesquisa em Literatura Oral
(ou, mais especificamente, Poéticas Orais). Como resultados esperados, formula-se uma
pergunta visando aos modos de apreensão, em nosso fazer-ciência, de nossos Outros (enquanto
objeto de investigação), assim como seu lugar na equação de produção e difusão de
conhecimento vigente neste momento de nossa comunidade científica. Como hipótese
norteadora, assinalamos o risco, da parte de nosso fazer-ciência, no estabelecimento da raça
de nossos Outros, isto é: da racialização como operação teórica e metodológica circulante no
atual estágio da comunidade científica debruçada sobre o tema; bem como da violência
epistêmica imbricada nesta operação.
O presente texto visa à formulação de uma pergunta sobre nossos usos da teoria e,
notadamente, nossos usos políticos do corpo de conhecimentos reconhecido como uma
disciplina estabelecida, a Teoria Literária, no âmbito de nossa comunidade científica
27
. De
maneira a apresentar os termos iniciais à referida pergunta, parte-se da formulação do
problema de pesquisa central a O local da cultura:
O que exige maior discussão é se as “novaslinguagens da crítica teórica
(semiótica, pós-estruturalista, desconstrucionista e as demais) simplesmente
26
A despeito de sua condição de discussão teórica, no âmbito do dossiê ora proposto, o presente texto
menciona a sujeitas(os) negras(os) americanas(os) não para limitar a estas(os) como tema privilegiado ou
mesmo exclusivo de investigação em Poéticas Orais mas, especificamente, para delimitar: o lugar de
enunciação científica do texto e de sua autoria (com base em uma trajetória de investigação em literaturas
negras americanas; e desde um compromisso político de enunciação de uma ciência negra); a contribuição de
um marco teórico de pensamento negro contemporâneo a nossas discussões epistemológicas próprias ao GT
de Literatura Oral e Popular. Em caso de êxito, a discussão fomentada neste texto apresentaria, ao fim, linhas
iniciais à apreciação de sujeitas(os) negras(os) americanas(os) e, de modo mais amplo, a sujeitas(os) que
investigamos em uma posição de produção, difusão e discussão conjunta de conhecimento por nós buscado,
desde nosso lugar acadêmico.
27
O presente artigo parte de texto anterior, intitulado Violência epistêmica, redes intelectuais, sujeitas(os)
cognoscentes”, originalmente divulgado no sítio do XXXIII ENANPOLL, realizado na cidade de Cuiabá, no
ano de 2018 (no presente artigo, referido como: ALVES, 2018). À ocasião, a discussão integrava a mesa
redonda intitulada “Internacionalização nas Letras e nas Linguísticas: em que línguas e com que parceiros?”,
em companhia da Profa. Dra. Maria Teresa Celada (USP), da Profa. Dra. Maria Laura Pardo (UBA
Argentina) e do Prof. Dr. Eric Fernández Hernández (Universidade de Havana Cuba), ademais deste
articulista. Deste texto prévio, provém a leitura e apropiação da hipótese de Fábio Durão Akcelrud, tomada
aqui aos fins da proposta deste dossiê.
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refletem aquelas divisões geopolíticas e suas esferas de influência. Serão os
interesses da teoria “ocidentalnecessariamente coniventes com o papel
hegemônico do Ocidente como bloco de poder? Não passará a linguagem da
teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada
para produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação
conhecimento-poder? (BHABHA, 1998, p. 45)
A título introdutório, propomos que, no estabelecimento da teoria enquanto
estratagema da elite ocidental, reside a necessidade de uma vigilância epistemológica ante o
caráter geopolítico da teoria, assim como uma necessária [e recorrente] identificação entre
Teoria e Ocidente
28
. Tal constatação nos leva a examinar, no interior de nossa comunidade
científica, o lugar da teoria em nossas formação e produção científicas; se trata, nos termos de
Bhabha, de um lugar geopolítico ao observar que, malgrado o adjetivo ocidental esteja
grafado entre aspas ao se reportar à teoria (ao corpo de conhecimentos de uma disciplina
estabelecida), se mostra grafado em sentido mais absoluto ao designar as relações de poder (o
papel hegemônico do Ocidente como bloco de poder; elite ocidental culturalmente
privilegiada) e aquilo que, particularmente, nos interessa ao longo deste texto: nos termos de
Bhabha, uma equação conhecimento-poder.
Não chega a ser ultrajante, penso eu, sugerir que a teoria literária, no sentido
mais estrito de Kambouchner, que toma por objeto o “texto em geral”, não é,
afinal de contas, algo com que precisemos ficar especialmente preocupados,
se nosso interesse estiver nas características peculiares do texto escrito
africano. Não decorre daí que devamos considerar desinteressante o projeto
da teoria literária, novamente no sentido forte de Kambouchner; longe disso.
Na medida em que a textualidade africana deixa de se conformar a uma
teoria literária nesse sentido forte, isso é um problema da teoria, revelando-a
como mais um princípio local que se faz passar por universal; e esse é um
problema que podemos começar a abordar, precisamente, através de uma
análise séria dos textos africanos (APPIAH, 1997, p. 99)
No que tange à prerrogativa de cada lugar; e naquilo que tal ideia de lugar nos permite
discutir os limites de uma universalidade das literaturas canônicas centroeuropeias (termo que
contribui a uma compreensão das aspas do adjetivo em uma teoria “ocidental”); Appiah nos
aponta, das ginas 96 a 108 de Na casa de meu pai, uma formulação modelar ao problema:
quanto a nosso conceito de teoria literária; quanto ao âmbito da teoria literária, enquanto
disciplina própria a um modelo acadêmico ocidental; quanto aos limites de uma perspectiva
pós-estruturalista no exame de literaturas não-canônicas [ou, seguindo a pista de Gayatri
Chakravorty Spivak, das literaturas de quens nós, Sujeitos, tomamos como nossos Outros].
Especificamente, o primeiro parágrafo da página 99 formula este problema, dois anos antes de
O local da cultura fornecendo-nos, ademais, elementos a dois princípos metodológicos:
- a primazia ontológica do texto ante a teoria ou, dito de outro modo, a primazia de
sujeitas(os) cognoscentes investigadas(os) mediante interpretação de seus textos literários,
uma vez que "na medida em que a textualidade africana deixa de se conformar a uma teoria
28
Mais adiante, no início da parte II deste mesmo capítulo, a teoria devém “teoria ocidental”, entre aspas;
contemporânea a esta linha argumentativa de Bhabha, podemos reconhecer um argumento similar na
introdução de Cultura e imperialismo, no momento em que Edward W. Said desenha sua hipótese de
pesquisa, a desenvolver ao longo de seu ensaio; no capítulo 1 de Introduction à une poétique du Divers, em
que Édouard Glissant, em diálogo com ambos textos, estabelece uma distinção entre Caribe e Ocidente -
arrimada na enunciação do droit à l´Opacité, logo nas três primeiras páginas de Le discours antillais; em que
Kwame Anthony Appiah discute o lugar da teoria ocidental na formulação de problemas teóricos acerca das
literaturas africanas contemporâneas, no capítulo 3 de Na casa de meu pai.
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literária nesse sentido forte [apropriado anteriormente de Denis Kambouchner], isso é um
problema da teoria, revelando-a como mais um princípio local que se faz passar por
universal";
- tomando em conta o questionamento a esta pretensão à universalidade, o início deste
parágrafo nos oferece uma postura, política, ante um corpo de teoria literária de matriz
centroeuropeia [que, dois anos depois, Bhabha sugeriria "teoria ocidental"] em sua pretensão
à universalidade; e em sua centralidade em nossa formação, no sentido mais amplo do termo.
Ao seguir o gesto de Appiah ao situar as obras literárias africanas (e, em um sentido
mais amplo, conforme à enumeração teórica anterior: as obras literárias não ocidentais),
observamos que, em artigo recente, Fábio Akcelrud Durão (2015) disserta acerca de uma
ideia, cara ao longo de todo este texto: o potencial epistemológico de obras literárias.
Em vista disso, torna-se óbvio o potencial epistemológico de obras literárias;
com efeito, é mesmo possível dizer que cada uma das vertentes atuais da
teoria, da hermenêutica ou estética da recepção até os queer studies,
passando New Historicism e pós-estruturalismo, projeta um modelo de
conhecimento específico a ser obtido a partir de textos ficcionais. A
semiótica encontra neles construções verbais complexas, que permitem uma
investigação aprofundada da natureza do signo; a desconstrução depara-se,
através deles, com um fértil espaço para a demonstração do auto-desfazer de
si da metafísica ocidental; o feminismo identifica tanto um veículo de
cristalização de posições de gênero, quanto sua possível subversão; o pós-
colonialismo, a consolidação de uma visão etnocêntrica ou a abertura para
vozes oprimidas, e assim por diante... Portanto, discutir teoria literária em
sua acepção mais ampla terá sempre como pressuposto a capacidade que a
literatura exibe para ser algo epistemologicamente produtivo (DURÃO,
2015, p. 378-379)
Para fins de proposição de nosso problema, se mostra relevante sublinhar o potencial
epistemológico de obras literárias. Para tanto, pressupomos 1) intercâmbios de pensamento
em uma via de mão dupla, entre nossos referenciais e as obras literárias que investigamos,
como condição necessária; e, como corolário, 2) a produção de conhecimento, por nossa
comunidade científica, calcada na possibilidade de que textos ficcionais produzidos e
difundidos por nossos Outros estejam habilitados, potencialmente, a um modelo de
conhecimento específico acessível a nosso trabalho científico. No interior de nossa
comunidade científica, uma resposta a nossa questão norteadora proporia a busca, constante,
de nossa parte, do estabelecimento de uma via de mão dupla entre investigadora( ) e texto
ficcional na qual a primeira parte da equação aludiria a uma( ) sujeita(o) de pesquisa; ao passo
que, nesta segunda parte da equação, na qual situamos o texto e suas culturas, o texto e suas
autorias, o texto e suas representações, o texto enquanto texto, o texto e seus Outros,
aludiríamos, igualmente, a sujeitas(os) de pesquisa (ALVES, 2018).
(...) la tentative d'approcher une réalité tant de fois occultée ne s'ordonne pas
tout de suite autour d'une série de clartés. Nous réclamons le droit à
l'Opacité. Par quoi notre tension pour tout dru exister rejoint le drame
planétaire de la Relation: l'élan des peuples néantisés qui opposent
aujourd'hui à l'universel de la transparence, imposée par l'Occident, une
multiplicité sourde du Divers (GLISSANT, 1997, p. 14)
A pós-colonialidade, em Bhabha, em contraposição à pós-modernidade, se apresenta
como sintoma ("um salutar lembrete", na tradução de O local da cultura) da permanência, da
vigência das relações coloniais, neocoloniais, na base das novas relações apresentadas como
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nova ordem mundial. A partir daí, Bhabha apresenta a possibilidade de construções
identitárias "de outro modo que não a modernidade" - especificamente, um modelo
centroeuropeu de modernidade. Ainda que em diálogo com uma fórmula (Ocidente x
_______ ), a proposta de Bhabha, ao menos na introdução de O local da cultura, soa por
vezes demasiado alta em sua aposta transgressora, ao que vale a pena po-la em debate com a
proposta de Glissant seja em Introduction à une poétique du Divers, no que este abre espaço à
provisoriedade das construções identitárias (das práticas desviantes), seja ao droit à l´Opacité
que, além de estabelecer os limites a um conceito de compreensão, recorda-nos, igualmente
“de modo salutar”, nossa posição desde um modelo de ciência ocidental sempre com o risco
de tomar a sujeitas(os) de investigação como nossos Outros, peuples néantisés, renovando um
ciclo de violência epistêmica imposée par l'Occident de modo a naturalizar, mediante
aplicação de um princípio local que se faz passar por universal, une multiplicité sourde du
Divers. Assinalando tal gesto de naturalização, eis a primeira nota de rodapé a Le discours
antillais, precisamente na menção a l'Occident: “L 'Occident n'est pas à l'ouest. Ce n'est pas
un lieu, c'est un projet”. Ao que caberia, neste ponto, a sugestão de um terceiro princípio
metodológico: uma vez aceita a primazia ontológica do texto e de sujeitas(os) cognoscentes
investigadas(os) mediante interpretação de seus textos literários, caberia postular uma
hipótese mais geral de nossas(os) sujeitas(os) de investigação, didaticamente, em posição
externa ao Ocidente (seja segundo Bhabha, Appiah ou Glissant; e ainda que, geograficamente,
estejam a oeste); em uma palavra, adotar a hipótese de que estas(es) sujeitas(os),
frequentemente, enunciam desde um lugar-outro do qual enuncia a teoria.
No esforço que Durão assinala ao discutir teoria literária em sua acepção mais ampla,
se justifica nosso recurso, no parágrafo anterior, ao termo referenciais: a acepção aqui
proposta de Teoria, em um sentido largo, pressuporia uma via de mão dupla na qual as(os)
sujeitas(os) negras(os) americanas(os), Outros de quens investigamos suas obras literárias,
gozariam da prerrogativa de sujeitas(os) cognoscentes, tomando parte no jogo de produção,
difusão e discussão de conhecimentos científicos acerca de suas [próprias] literaturas. Caso
pensemos na citação a Appiah: sujeitas(os) habilitadas(os) a apontar limites ao atual
desenvolvimento da teoria literária ocidental. Caso pensemos na citação a Glissant:
sujeitas(os) cognoscentes que podem, eventualmente, enunciar desde uma posição
impermeável às categorias disponíveis no atual desenvolvimento da teoria literária ocidental.
Isto posto, o presente artigo discute bases elementares a uma pergunta norteadora, centrada no
potencial epistemológico de obras literárias e, nos apropriando da expressão inicial de Durão,
no potencial epistemológico de sujeitas(os) que investigamos, mediante exame de suas obras
literárias. A título de resultados esperados, propomos uma nova questão epistemológica
(habilitada a inteligibilidade e circulação no interior de nossa comunidade científica) acerca
dos modos de apreensão, em nosso fazer-ciência, de nossos Outros (ou, doravante, ao longo
de todo este texto: de [quens tomamos como] nossos Outros quando objeto de investigação),
assim como de seu lugar na equação de produção e difusão de conhecimento, vigente neste
momento de nossa comunidade científica. Como uma das hipóteses de trabalho, se estabelece
que não apenas nós acadêmicas(os) – ou, em uma palavra: intelectuais – deslocamos e
estabelecemos deslocamentos como, igualmente, as teorias efetuam deslocamentos (“as
teorias deslizam”); e, uma vez compreendendo a teoria desde as obras que investigamos, as
obras (se) (nos) deslocam; e, especificamente desde meu lugar de enunciação ou desde o lugar
de minha teoria: as(os) sujeitas(os) das(os) quais as obras se mostram tributárias, igualmente,
(se) (nos) deslocam. Uma vez estabelecendo textos ficcionais negros americanos como base
de nosso corpus literário, a partir do qual nossa comunidade científica formula seus
problemas modelares ora vigentes, recapitulamos os dois corolários a nossa apropriação de
Durão, na base deste argumento e do programa de pesquisa nele imbricado:
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1) no exame de obras ficcionais negras americanas, busca-se intercâmbios de pensamento de
modo a estabelecer modos de produção, difusão e discussão de conhecimento entre
sujeitas(os) de pesquisa e sujeitas(os) investigadoras(es); e
2) postula-se que a produção de conhecimento, por nossa comunidade científica, se
fundamente na possibilidade de que textos ficcionais produzidos e difundidos por sujeitas(os)
negras(os) americanas(os) estejam habilitados, potencialmente, a um modelo de conhecimento
específico acessível a nosso trabalho científico de formulação de problemas, análises e
aferições (ALVES, 2018)
29
.
Cabe investigar o quanto temos proposto novos problemas e soluções modelares, em
nossa comunidade científica dos Estudos Literários no Brasil, visando à produção e difusão de
conhecimento científico desde um lugar de enunciação onde somos sujeitas(os) cognoscentes
e onde quens investigamos, igualmente, são sujeitas(os) cognoscentes; tal quadro nos leva a
um problema epistemológico, com o qual necessitamos interrogar nosso fazer-ciência.
Construir este problema implicaria uma concepção de ciência, antes de tudo, política, dizendo
ao lugar do qual se enuncia e, como seu corolário, dizendo a que(m) serve, em um uso do
verbo servir não em caráter axiológico, tampouco em uma posição utilitarista mas, de modo
político, visando à pergunta: por quem enuncia nossa ciência; desde onde a enuncia; e com
que(m) busca dialogar?
Si bien podemos reconocer la academia y sobre todo la academia asentada
en el norte como lugar de enunciación privilegiada, luego de escuchar a las
compañeras que están ubicadas en estos lugares, terminamos admitiendo que
‘el norteno es homogéneo como tampoco el sur’. Tanto en un lado como
en otro podemos encontrar compromisos con el pensamiento y el poder
hegemónico o con su destitución. De lo que se trata entonces es de reconocer
las especificidades de cada lugar y de potencializar articulaciones que
permitan avanzar en la concreción de los objetivos político-académicos de
un feminismo comprometido con la descolonialidad y 'el antirracismo
(MIÑOSO, 2014, p. 35)
Yuderkys Espinosa Miñoso (2014), no momento em que reconheçamos la academia y
sobre todo la academia asentada en el norte como lugar de enunciación privilegiada, permite
supor a violência epistêmica em nossos modos de compreender as literaturas de [quens
tomados como] nossos Outros, apontando-nos a necessidade de uma vigilância
epistemológica a reconhecer os lugares donde enunciam as(os) sujeitas(os) que investigamos;
prevenindo, destarte, compromisos con el pensamiento y el poder hegemónico identificados a
uma academia asentada en el norte como lugar de enunciación privilegiada. Convém,
todavia, em nossas análises literárias, prevenir a fixação de um lugar de enunciação
privilegiado, haja vista que “‘el norteno es homogéneo como tampoco ‘el sur’. Tanto en un
lado como en otro podemos encontrar compromisos con el pensamiento y el poder
hegemónico o con su destitución” (Idem, 2014): de um sul geográfico, não decorre,
necessariamente, um sul epistemológico. Dito de outro modo: a posição geográfica não
estipula condição suficiente à posição política. Como segundo elemento, a recusa a uma
homogeneidade de nosso lugar necessita acompanhar a recusa a uma homogeneidade do lugar
hegemônico. Dito de outro modo: da heterogeneidade do sul, não decorre, necessariamente, a
29
Ainda que o uso do termo aferições pareça estranho a este campo semântico, podemos encontrar seu sentido
ao acompanhar a proposta de Douwe Fokkema e Elrud Ibsch (2006) em sua exposição acerca da validação
argumentacional em ciência literária; como exemplo paradigmático do que propõem como investigação no
domínio da explicação de literaturas negras enquanto objeto de pesquisa, situemos a posição do texto de
Eduardo de Assis Duarte (2010) enquanto exame taxonômico e estabelecimento de categorias norteadoras a
investigações sobre literaturas negras brasileiras - em sua terminologia, afrobrasileiras.
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homogeneidade do norte (ALVES, 2018). Eis, reposicionada, a pergunta inicial sobre o lugar
do conhecimento (a “teoria ocidentalde Bhabha), assim como sobre nossa impermeabilidade
a estas producciones y difusiones otras del conocimiento:
O que esem jogo quando se chama a teoria crítica de “ocidental”? Essa é,
obviamente, uma designação de poder institucional e eurocentrismo
ideológico. (...) Esta é uma manobra familiar do conhecimento teórico, onde,
tendo-se aberto o abismo da diferença cultural, um mediador ou metáfora da
alteridade deverá conter os efeitos da diferença. Para que seja
institucionalmente eficiente como disciplina, deve-se garantir que o
conhecimento da diferença cultural exclua o Outro; a diferença e a alteridade
tornam-se assim a fantasia de um certo espaço cultural ou, de fato, a certeza
de uma forma de conhecimento teórico que desconstrua a “vantagem
epistemológica do Ocidente (BHABHA, 1998, p. 59)
A citação de Bhabha (obtida em um dos textos fundantes ao atual estado do campo dos
Estudos Literários, no Brasil), caso conduzida a suas últimas consequências, mostrar-nos-ia o
quanto nossa disciplina, nos atuais termos, ao fim e ao cabo necessitaria da manutenção de
[quens tomamos como] nossos Outros nesta posição, de modo imutável, enquanto pedra de
toque desta “certeza de uma forma de conhecimento teórico que desconstrua a 'vantagem'
epistemológica do Ocidente”. O deslocamento de nossos Outros traria em si o risco à
desestabilização do conhecimento que produzimos sobre estes Outros. Como caso
paradigmático de sujeitas(os) cognoscentes a questionar uma posição de alteridade na
produção de conhecimento, a introdução de Francesca Gargallo a sua edição de Feminismos
desde Abya-Yalá. Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América
(2014) retoma sua trajetória de estudo do feminismo americano, anteriormente desenvolvida
em sua obra Ideas feministas latinoamericanas (2006), assinalando o quanto, ao tomar
contato com feministas americanas não-ocidentais, percebe a centralidade de uma nova
pergunta, epistêmica, acerca de seu lugar científico de enunciação ante a pluralidade de
feminismos americanos – em seus próprios termos, desubicarse:
Gracias al diálogo que entablé con Maya desde el afecto y el respeto
mutuo, entendí que debía desubicarme del lugar de poder que me confiere la
universidad, el saber institucionalizado y las normas políticas de la nación
que se construye sobre la exclusión de los miembros que no quiere
reconocer. (…) No obstante, por ese diálogo caí en la cuenta que tenía que
desubicarme más, ir física y teóricamente al encuentro de las mujeres que
desde otras condiciones de vida piensan y actúan para construir una vida
mejor para las mujeres. Y que debía exponerme a ser aceptada o rechazada,
desconocida o considerada una interlocutora válida, a partir de una reflexión
sobre mi lugar como mujer blanca en la historia del racismo occidental y la
hegemonía que reviste en la construcción y transmisión de saberes
(GARGALLO, 2014, p. 20-21)
Em seu esforço de compreensão de feminismos americanos não-ocidentais, Gargallo
estabelece uma base à formulação de novos problemas modelares, indagando a seu próprio
lugar de produção de conhecimento sobre seus Outros: em nossas cartografias intelectuais,
quens tomamos [como nós] também, indubitavelmente, como sujeitas(os) cognoscentes?
Quens representam pontos no mapa e quens percorrem lugares conosco? Gargallo usa o verbo
desubicarse assinalando a naturalização de seu próprio lugar de intelectual (gozando da
prerrogativa à cartografia e à taxonomia dos feminismos americanos), de tal modo que a
pergunta esboçada em seu epílogo à obra de 2006 (“¿Hacia un feminismo no occidental?”)
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devém prólogo, em 2014, com vistas a compreender, desde o reconhecimento de seu lugar
acadêmico ocidental, a estas sujeitas cognoscentes não-ocidentais que investiga(mos). Ao
desubicarse, correntes de pensamento feminista americano não-ocidental poderiam nos ser
dados a conhecer, à luz de um princípio afim ao droit à l'Opacité de Glissant.
Embora não haja pesquisa sem interpretação, existe interpretação sem
pesquisa. Esta última requer rigor; na ciências exatas, ela exige
verificabilidade: reproduzindo-se fielmente as condições de um experimento,
o resultado será sempre o mesmo (DURÃO, 2015, p. 383-384)
Reconhecer um problema em nossa percepção e reconhecimento dos referenciais
teóricos de [quens tomamos como] nossos Outros nos remete à imagem dos micróbios ao
microscópio (nos moldes do que Costa Pinto propusera a Abdias do Nascimento, em sua
intervenção no I Congresso Brasileiro do Negro, em 1959): sob a égide de objetividade do
fazer científico (cenário no qual se justificaria nossa adoção de procedimentos atinentes a
ciências exatas, notadamente a verificabilidade mediante constância de condições de
experimentação), se alojaria a violência epistêmica contra sujeitas(os) negras(os) cujos textos
investigamos. Ao enunciar um princípio de verificabilidade a textos literários não-canônicos,
em oposição ao exercício de interpretação [como prerrogativa] a textos canônicos, subjacente
a esta distinção metodológica residiria um problema epistêmico: a textos não-canônicos,
escritos por [quens tomamos como] nossos Outros, nossa prática científica reserva o princípio
de verificabilidade pois “reproduzindo-se fielmente as condições de um experimento, o
resultado será sempre o mesmo (DURÃO, 2015; ALVES, 2018). Dadas tais condições, se
compreenderia nossa escolha de reservar às literaturas não-canônicas o domínio da explicação
(próprio às ciências exatas), reservando a compreensão (própria às ciências humanas) ao
exame das literaturas canônicas, mediante o método interpretativo. A literariedade, como
conceito a distinguir a natureza do que investigamos, devém critério de definição do literário
[aplicado por nós intelectuais, de modo discricionário] e, em última instância, como critério
do humano. Na ausência de literariedade, migra-se da compreensão à explicação.
Em tal quadro, como consequência, nosso acúmulo de conhecimento nos habilita a
generalizações, a taxonomias, a assertividade acerca de [quaisquer] literaturas não-canônicas,
assegurando a interpretação ao domínio de textos literários canônicos ou, em uma palavra, ao
que nós, Sujeitos (ou nós, intelectuais), reconhecemos como Literatura: em vez de
compreender as condições de possibilidade a uma fala de [quens tomamos como] nossos
Outros, corremos o risco de atualizar, o tempo todo, uma interdição de [quens tomamos
como] nossos Outros à posição de intelectuais; de sujeitas(os) cognoscentes; de formação de
redes intelectuais, em suas consequências epistemológicas e políticas.
Sendo assim, o subalterno é alvo da violência epistêmica, se constituindo
como o Outro do discurso colonial que ora deve estar por sua própria conta,
ora deve estar sob sua tutela. (...) Ou seja, o subalterno não é aquele que não
tem voz, mas é aquele que é continuamente falado pelo desejo do outro
(SOUZA, 2018)
Ao Sujeito se reserva a fragmentariedade, o deslocamento, a multiculturalidade, a
complexidade desde suas subjetividade e cultura híbridas; a [aqueles tomados como] nossos
Outros, se reserva o domínio de uma identidade natural[izada] que, desde sempre, a
conhecemos, identidade monolítica passível de explicação; cada indivíduo sempre se nos
mostraria em condição de representar ao conjunto de sua raça e, neste uso do conceito de
representação para compreender a este indivíduo enquanto conjunto da raça, passamos a falá-
lo, continuamente, por nosso desejo. A violência epistêmica encontra terreno neste recurso à
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racialização de um Outro apenas possível em nosso discurso de Sujeito, de intelectual: nas
palavras de Bhbaha (1998, p. 59), “o déspota turco de Montesquieu, o Japão de Barthes, a
China de Kristeva, os índos nhambiquara de Derrida, os pagão de Cashinaua de Lyotard”.
Frequentemente, assumimos que as pessoas com as quais trabalhamos, para
as quais ensinamos, com as quais deixamos nossos filhos na escola, que
sentam ao nosso lado, vão agir e sentir de maneira predefinida por
pertencerem a determinada categoria de raça, classe social ou gênero. Esses
julgamentos por categorias têm de ser substituídos por relações
completamente humanas que transcendam as diferenças criadas por raça,
classe e gênero como categorias de análise. Necessitamos de novas
categorias de conexão, novas visões de como podem ser nossas relações com
os outros (HILL COLLINS, 2015, p. 15)
Percebemos a ideia de vigilância epistemológica nesta citação de Patricia Hill Collins,
neste Sujeito enquanto “pedaço do opressor que está plantado profundamente em cada um de
nós”. Apenas a [aqueles tomados como] nossos Outros cabe falar de raça, ao passo que
atribuí-la ao Sujeito não faria o menor sentido: a racialização como natureza de [quens
tomamos como] nossos Outros; ao Sujeito, cabe homogeneizá-los haja vista sua prerrogativa
de complexidade; nossas hipóteses suporiam, dadas tais condições, que [quens tomamos
como] nossos Outros “vão agir e sentir de maneira predefinida por pertencerem a determinada
categoria de raça, classe social ou gênero”, em nome de um princípio de verificabilidade,
próprio a nossa legitimação como ciência (ALVES, 2018).
Reconhecendo o potencial epistemológico de obras literárias, avançando ao potencial
epistemológico das(os) sujeitas(os) que investigamos, mediante exame de obras literárias, tal
constatação nos levaria a propor um modelo de produção e difusão de conhecimento tributário
não de uma relação sujeito-objeto, mas de uma relação sujeita(o)-sujeita(o), aceitando e
enfrentando seus corolários no interior da teoria literária. Justifica-se o cuidado de Achille
Mbembe, na introdução a Crítica da razão negra (2014), ao demonstrar o quanto nosso
epistema ocidental, de base centroeuropeia, estipula o par Negro/raça para tratar
conceitualmente a diferença como problema científico; em tal modo de conceituar a diferença,
[aquilo que identificamos como] o Negro ocuparia uma posição necessária (ou um telos) de
Outro de uma Europa tomada a si própria de modo homogêneo.
Para apreender com mais exactidão a importância destes perigos e
possibilidades não é de mais recordar que, de uma à outra ponta de sua
história, o pensamento europeu sempre teve tendência para abordar a
identidade não em termos de pertença mútua (co-pertença) a um mesmo
mundo, mas antes na relação do mesmo ao mesmo, de surgimento do ser e
de sua manifestação em seu ser primeiro ou ainda, no seu próprio espelho
(MBEMBE, 2014, p. 10)
A partir de Mbembe, cumpre assinalar o quanto, em nosso fazer-ciência, corremos o
risco de adotar esta posição necessária de Outro às literaturas que investigamos, assim como
perceber nosso próprio lugar enquanto lugar natural[izada]mente ocidental, salvaguardando,
destarte, nossa prerrogativa de análise de [quens tomamos como] nossos Outros. Subsequente
ao par Negro/raça, Mbembe nos assinala dois aspectos a uma definição daquilo que tomamos
como Negro[/raça]: nem a definição do ser-negro, tampouco a pertença a este ser-negro,
competem às(aos) sujeitas(os) por elas categorizadas(os), ambas permanecendo prerrogativas
do Sujeito, da comunidade científica, do intelectual:
De seguida, deve-se ao facto de que ninguém nem aqueles que o
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inventaram nem os que foram englobados neste nome desejaria ser um
negro ou, na prática, ser tratado como tal. (…) Ao reduzir o corpo e o ser
vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, outorgando à pele e à cor
o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em
particular fizeram do Negro e da raça duas versões de uma única e mesma
figura, a da loucura codificada (Idem, p. 11)
Isto nos levaria a uma consequência política, subjacente a nossas escolhas de
referenciais teóricos, no exame de [quens tomamos como] nossos Outros: tal problema
repousaria na adoção de um epistema centroeuropeu (ou euro-americano, acompanhando o
termo de Mbembe) em nossa construção de problemas modelares, assim como de soluções
modelares no interior de nossa comunidade científica. Na base deste epistema, permaneceria a
justificação: de nossos referenciais teóricos; de tomar as literaturas investigadas,
necessariamente, como literaturas de nossos Outros; do Outro como aquele dotado de raça.
Isto posto, cabe promover um lugar no qual compreendamos nossas(os) sujeitas(os) de
investigação, mediante interpretação do potencial epistemológico de suas obras literárias,
enquanto sujeitas(os) cognoscentes com a prerrogativa de redes intelectuais; ademais, cabe
promover a compreensão de nosso lugar enquanto sujeitas(os) cognoscentes, com
prerrogativas similares. Destarte, a tarefa de pensar o potencial epistemológico de sujeitas(os)
negras(os) americanas(os), mediante exame de suas obras literárias, possibilitaria a
formulação de novos problemas modelares a nossa comunidade científica, de maneira a ler a
estas(es) intelectuais não como matéria-prima mas, notadamente, como sujeitas(os)
cognoscentes em agência, em devir.
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A PERFORMANCE DA DEFESA TÉCNICA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Alexandre Ranieri (Estácio-FAP/SEDUC-PA)
Fernando Pessoa (Estácio-FAP)
Larissa Melo (Estácio-FAP)
RESUMO: A partir dos primeiros resultados do projeto de pesquisa A performance oral dos
operadores do Direito desenvolvido junto à Universidade Estácio FAP por alunos de Iniciação
Científica que visitaram, durante o segundo semestre de 2018, o fórum criminal de Belém. O resultado
aqui apresentado trata da importância da performance no exercício da atividade jurídica pelos
integrantes da defesa técnica no Tribunal do Júri, instituição colegiada que agrega leigos em matéria
jurisdicional. Nesse sentido a teatralização alcança ainda maior valor tendo em vista que os operadores
precisam fazer com que, além de defender as suas teses, os membros desse corpo de jurados entendam
a norma, a doutrina e a jurisprudência.
Palavras-chave: Performance. Defesa. Júri. Teatralidade
ABSTRACT: Based on the first results of the research project The oral performance of the operators
of the Law developed by the Universidade Estácio FAP by students of Scientific Initiation who visited
during the second half of 2018. The result presented here deals with the importance of performance in
the exercise of the legal activity by the members of the technical defense in the Court of the Jury,
collegiate institution that aggregates laymen in jurisdictional matters. In this sense, theatricality
reaches even greater value in view of the fact that, in addition to defending their theses, the members
of this body of jurors must understand the norm, the doctrine and the jurisprudence.
Keywords: Performance. Defense. Jury. Theatricality
1. Introdução
A ideia deste artigo, feito a seis mãos, surgiu a partir dos estudos feitos durante o
projeto de pesquisa A performance oral dos operadores do Direito, desenvolvido na
Universidade Estácio de Sá (FAP) durante o segundo semestre de 2018.
A princípio pode parecer controverso associar as poéticas da voz aos estudos
Jurídicos. A suposta rigidez do Direito parece destoar tanto no que concerne aos métodos de
estudo quanto ao objeto de investigação.
O Direito é quase sempre associado à dureza das suas legislações, resumido no
brocardo latino Dura lex, sed lex (A Lei é dura, mas é a Lei), que se reverte nos seus estudos
teóricos ou na materialização de processos que se avolumam em órgãos públicos e escritórios
advocatícios.
Mas somos seres poéticos. Talvez até tenhamos que cunhar um termo para nos
designar: Homo Poeticus. E, por termos essa natureza, a todo momento nossas ações podem
extrapolar as situações performáticas orais tradicionais, adentrar nosso cotidiano e guiar
nossas vidas até mesmo em situações triviais como o ambiente de trabalho.
Nesse sentido, estudar a performance oral dos operadores do direito é entender que, no
cotidiano deles e em especial daqueles que atuam no Tribunal do Júri, uma maneira de
contar o que aconteceu do ponto de vista de uma das partes do processo e que para dar voz a
vítima e acusado é preciso também reviver os fatos e penetrar numa outra camada da
realidade que vai além das folhas do processo.
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Essas sustentações orais, bem como os textos jurídicos de uma maneira geral,
encontram-se dentro da Ciência do Direito, regida, segundo Miguel Reale Junior, por três
instâncias: Fato, Valor e Norma. O Fato é o ponto inicial de um processo; o Valor age como
ponto de vista de cada uma das partes e a Norma é responsável por determinar se a valoração,
de acordo com a ótica aplicada, confere ao fato apresentado, consistência jurídica (REALE,
1994).
Todavia, dentro da prática jurídica oral, a gestualidade, a teatralidade e a performance
oral são espécies de valorações que percorrem toda a sustentação dos operadores do direito.
A performance do advogado confere valoração ao texto oral, indicando o ponto de
vista deste, do início ao fim. Desde o entendimento do fato que, narrado pelo advogado, vai
ganhando contornos persuasivos com a gestualidade; passando pelo próprio valor, em si, até
chegar na teatralidade da sustentação oral que pode desembocar na aplicação da norma, agora
redimensionada pela performance oral.
É nesse sentido que reiteramos que existe uma poética do cotidiano que rege situações
formais e informais e que implica sincronia entre o corpo e a voz na produção de um instante
que convida o interlocutor a participar do momento performático. Dessa forma, a percepção
sensorial e estética leva ao fruir estético. Esse efeito teatral assemelha-se ao que Paul Zumthor
chama de mousikè, que se refere à dança, à música, vocal e instrumental, às estruturas
métricas do poema e a prosódia da palavra em conjunto (ZUMTHOR, 2005).
Através dessa energia vocal e corporal dispensada pelo operador performer é que se
pode promover o envolvimento do interlocutor e, por conseguinte, o convencimento.
Não por acaso Miguel Reale pergunta: “Que laços existem entre o fenômeno jurídico e
o fenômeno artístico?” (2002, p. 9). Assim como no ditado popular “a arte imita a vida” a
literatura imita a vida que é regida pelas Leis. Ao passo que a reciproca é verdadeira e a vida
pode acabar imitando a arte fazendo das sustentações orais jurídicas verdadeira matéria
artística.
No entanto, poderíamos ir mais a fundo e dizer que a própria vida é uma encenação. O
Homo Poeticus nos difere dos animais, que precisamos dessa capa social para nos
distinguirmos dos outros seres e assim nos destacarmos enquanto sociedade. Nossas pulsões
mais animalescas se reprimem quando nos investimos de nossos papéis cotidianos.
Com esse pensamento os pesquisadores do projeto adentraram o Fórum Criminal de
Belém Romão Azevedo durante o segundo semestre de 2018 para assistir alguns julgamentos
do Tribunal do Júri e a orientação inicial foi a de observarem tudo o que acontece, sentirem o
“clima” tanto dos representantes legais das partes, como das pessoas que compõem o Júri e a
plateia. Dessa forma é possível compreender essa situação de comunicação tão singular em
suas particularidades.
Preferimos não citar nomes de acusados, testemunhas, promotores, defensores, juízes
ou até mesmo casos por questões éticas, deixando assim, somente os nomes genéricos dos
papeis desempenhados durante a atuação. Escolhemos tratar, pelo menos a princípio, de
forma genérica apenas da atuação da defesa cnica (Defensores Públicos e Advogados de
Defesa)
Antes de tratarmos das performances é preciso entender como funciona o Tribunal do
Júri e o papel dos Operadores do Direito que nele atuam.
2. O Tribunal do Júri
A instância do Tribunal do Júri é prevista no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição
Federal (CF88), é um órgão especial do poder judiciário de primeira instância tendo
competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo eles tentados ou consumados.
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É composto por um juiz togado (juiz de direito), 25 jurados (juízes de fato), o
representante do ministério público, representado pela figura do Promotor. Pode-se, ainda, ter
a presença de um assistente de acusação. Por conseguinte, pode-se falar do advogado de
defesa ou Defensor Público, representando a Defensoria Pública, os Oficiais de Justiça,
Serventuários da Justiça, Secretários da Vara e os Policiais da Justiça. Dessa forma, devem
ser julgados pelo Tribunal do Júri, os acusados que cometerem os delitos previstos nos
Arts. de 121 a 127 do Código Penal Brasileiro (CP40).
São crimes dolosos contra a vida: homicídio; induzimento, instigação e auxílio ao
suicídio; infanticídio e aborto. Dessa forma, os sete jurados que compõem o conselho de
sentença, também conhecidos como “Juízes não togados” ou “Juízes de fato”, são sorteados
entre vinte cinco cidadãos escolhidos semestralmente.
Para realização do sorteio dos membros que irão compor esse conselho, é preciso
quórum mínimo de quinze jurados presentes, caso contrario, o júri é adiado. Os jurados que
não comparecem ao julgamento quando marcado, precisam justificar a ausência sob risco de
punição prevista em Lei (Lei nº 11.689/08).
Segundo a Lei 11.689/08 o tribunal é composto de cidadãos que são previamente
solicitados, através de oficio, pelo juízo. Este oficio é enviado para empresa, órgão publico e
demais lugares, que em seguida o responsável supracitado indica, seus funcionários que
tenham sua idoneidade comprovada. Ademais, pode-se, também, participar como jurados os
voluntários alistados previamente, que se apresentam em juízo, manifestando seu interesse.
Os requisitos para fazer parte do corpo de jurados são: a) ter entre no mínimo 18 anos
completos; b) não ter antecedentes criminais; c) estar em dia com suas obrigações eleitorais.
Além disso, essas pessoas devem concordar em prestar esse serviço gratuitamente. É
obrigação desse colegiado julgar o fato e não o Direito, ou seja, cabe somente ao Juiz de
Direito, como conhecedor da Lei, aplicar a pena de acordo com o veredito.
De acordo com o Art. 483 do Código Processual Penal (CPP), ao final do julgamento,
o colegiado responde aos seguintes quesitos:
I Materialidade do fato;
II Autoria ou participação;
III Se o acusado deve ser absolvido;
IV Se existe causa de diminuição da pena;
V Se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena
reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram
admissível a acusação. (Decreto-Lei n 3.689/41)
A materialidade tem a ver com a existência do fato, ou seja, se este está de acordo com
o que foi apresentado pela promotoria. Nesse caso, é preciso que os jurados decidam se houve
a comprovação da efetiva ocorrência do crime. Se não materialidade, o acusado não pode
ser considerado culpado, pois não há como saber se o crime realmente ocorreu.
Sobre as circunstâncias qualificadoras Rogério Greco afirma que:
[...] considera-se qualificado o crime quando, geralmente, as penas mínima e
máxima cominadas no parágrafo são superiores àquelas previstas no caput
do artigo. Dissemos que os limites mínimo e máximo devem, como regra,
ser superiores ao caput, uma vez que em algumas infrações penais pode
ocorrer tão somente o aumento ou da pena mínima, ou da pena máxima
cominada em abstrato, sendo, ainda assim, considerado como qualificado
(GRECO 2017, p. 228).
As qualificadoras se referem aos motivos que levaram o acusado a cometer o crime, os
meios que ele utilizou, os modos que executou e os fins por que cometeu o crime (GRECO,
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2017). A maioria dos crimes previstos no CP possuem qualificadoras. Em relação aos delitos
julgados pelo Tribunal em questão, podem estar relacionadas a homicídio qualificado.
Mas antes da instauração do corpo colegiado de “Juízes não togados” é preciso que
eles entendam alguns dos princípios que regem o Tribunal do Júri. São quatro os Princípios
Regentes: a presunção de inocência, a ampla defesa, a plenitude da defesa e a
incomunicabilidade. Esses princípios normalmente são explicados aos jurados antes de iniciar
cada sessão, sempre que houver algum membro novo no Tribunal do Júri.
O principio da presunção de inocência diz que todo e qualquer acusado deve ser
considerado inocente caso não tenha sido comprovada culpa. Ou seja, que a sentença não
tenha transitado em julgado, quando encerra-se o processo definitivamente em todas as suas
instâncias.
Por isso e levando em consideração o principio da igualdade, Art. 5
o
da CF88, todo
cuidado é pouco no momento da sustentação oral, pois em hipótese alguma a acusação ou a
defesa pode taxá-lo como culpado ou ferir sua honra.
O principio da ampla defesa é dividido em duas partes: a defesa técnica, segundo a
qual, na ausência da defesa (Advogado ou Defensor Público), o processo é suspenso ou até
anulável e a autodefesa do acusado, quando ele pode agir como o próprio advogado, ou ainda,
se preferir, ficar em silêncio para não se incriminar segundo o Art. 5, inciso LXIII da CF88.
O principio da plenitude de defesa, que ampara os representantes legais a utilizarem de
argumentos jurídicos e extrajurídicos, sendo que esses elementos extrajurídicos devem ter
conexão com o caso concreto.
Por fim, o principio da incomunicabilidade, que é de extrema importância para a
sustentação oral, pois os operadores de direito tem a missão de convencer e persuadir
individualmente cada jurado, que nenhum dos jurados, enquanto da vigência do
julgamento, não podem ter qualquer contato com outras pessoas, nem mesmo entre si.
Diferente do que ocorre nos Estados Unidos, onde os jurados podem conversar entre si para
chegar a uma única conclusão sobre o caso.
Portanto, tanto maior é a missão do advogado em sua performance. Ele não deve
convencer, nesse caso, os seus pares, conhecedores do Direito. Deve, por outro lado,
convencer os representantes da sociedade, pessoas leigas que pouco ou nada conhecem do
Ordenamento, da Jurisprudência ou da Doutrina Jurídicas.
Nesse sentido, a eloquência e a teatralidade tem papel ainda mais preponderante na
estratégia de valoração do discurso e do convencimento do interlocutor. Por isso, cada gesto
deve ser observado com cuidado. Mas, além dos gestos, deve-se estar atento às reações, os
olhares e às expressões dos membros do Júri e dos demais ouvintes. Cada um deles tem papel
importante na composição da paisagem oral que será formada (FERNANDES, 2007).
Segundo Frederico Fernandes “O auditório também é parte importante durante uma
performance. A título de exemplo, são comuns rituais entre os indígenas para contar mitos,
lendas e sonhos” (2002, p. 27). A troca de olhares e as expressões faciais, portanto, podem
interferir na estratégia de persuasão do operador.
3. O papel da defesa no Tribunal do Júri
Como visto anteriormente, são no mínimo três os operadores do direito que atuam
diretamente no Tribula do Júri: o Juiz, o Promotor e o Defensor Público ou Advogado de
Defesa. Em alguns casos, pode-se ter um advogado assistente, contratado pelos interessados
na acusação, auxiliando o Ministério Público.
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Ainda que o Juiz de Direito seja figura preponderante a guiar as ações e impor a
ordem sempre que necessário, neste artigo trataremos de duas figuras que atuam diretamente
na argumentação e persuasão do auditório: o Defensor Público e o Advogado de defesa.
O Defensor é um Servidor Público designado para defender os direitos e representar o
acusado quando este não possui os recursos necessários para custear sua própria defesa. Ele
tem que garantir assistência jurídica integral gratuita, aos legalmente necessitados, prestando a
orientação e a defesa em todos os graus e instâncias, de modo coletivo ou individual.
Já o Advogado de Defesa é um profissional contratado pela parte acusada, quando esta
tem poder aquisitivo suficiente para não depender dos serviços de um defensor público. O
Advogado de Defesa tem um contato maior com o réu e seus familiares.
Sua missão, tal qual a do Defensor Público, é resguardar os princípios constitucionais
e verificar se estes estão sendo aplicados corretamente em favor de seu cliente. Sobretudo,
defende também o processo, e o direito do processado. O advogado deve reivindicar, quando
a condenação, uma pena mais justa; resguardar o devido processo legal e garantir que seu
cliente seja ouvido.
Depois de examinar o função do Tribunal e o papel dos Operadores do Direito
responsáveis pela defesa, vamos analisar a performance destes frente ao Tribunal do Júri.
4. A performance da defesa no Tribunal do Júri
Antes de tratarmos da performance da defesa, alguns pressupostos e impressões devem
ser ilustrados para entender o desafio que esses profissionais têm em mãos.
O “clima” num ambiente como esse não é dos mais agradáveis. Houve um crime.
Morte. Famílias choram a perda de um ente, outras clamam pela absolvição de alguém que se
crê inocente. Não é uma atmosfera de paz como o de um templo. O choro não é o pedido de
uma providência divina. De todos os lados pede-se justiça. O ambiente é de “guerra”.
Além do clima tenso que perpassa toda a situação, de uma maneira geral, diríamos que
o pré-julgamento é uma falha comum ao ser humano. Todos nós temos algum tipo de “pré-
conceito” em menor ou maior grau. O noticiário político atual é prova disso. Toda hipótese
levantada gera uma enxurrada de críticas e acusações. O próprio ditado popular “onde
fumaça há fogo” ilustra esse defeito humano.
Nos arriscamos a dizer que nem mesmo o Juiz, com todo o seu conhecimento acerca
da matéria que julga pode ser completamente excluído desse defeito tão humano. Se nem ele
seria capaz de escapar a isso, os Operadores do Direito responsáveis pela defesa devem
trabalhar com a hipótese de que os membros do Tribunal do Júri em maior ou menor parte
pré-julgam o acusado pelo simples fato deste estar sendo julgado. Ainda mais sabendo que
antes dele fala o promotor de justiça, responsável por contar a versão dos fatos pela ótica da
acusação. Sua missão, portanto é desfazer essa possível imagem pré-concebida.
Outro pressuposto importante é o de que a defesa deve reconstituir os fatos de forma
desconstruir a versão exposta pela acusação e, para isso, devem usar todo o conhecimento que
possuem sobre o caso e performatizar o seu ponto de vista sem esquecer que as pessoas que
estão ali são leigas em matéria jurídica.
Em alguns casos é comum a defesa falar sobre a vida do acusado, sua rotina, o que faz
da vida, quem são seus amigos, onde estudou, tentando desmistificar a imagem do assassino e
trazer aos presentes a imagem de uma pessoa como outra qualquer.
Como dito na apresentação deste artigo, os pesquisadores do projeto foram ao Fórum
Criminal de Belém e observaram a performance oral dos personagens em questão.
Em relação ao papel do Representante da Defensoria Pública, observou-se que, devido
a grande demanda processual, não tem muito tempo para conhecer o acusado, a família e
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muitas vezes nem o processo profundamente. Esse profissional por outro lado e pelo mesmo
motivo, na maioria das vezes, possui uma maior experiência em tribunais em relação a
maioria dos Advogados particulares.
Estes, muitas vezes, têm a oportunidade de conhecer a família, conversar melhor com
o cliente e tentar fazer com que aquele ponto de vista seja alcançado. Que aquela forma de ver
a vida e o mundo transpasse para outra realidade, outra vivência. Que os que escutem tenham
a oportunidade de, por alguns momentos, simbolicamente, possam “calçar os chinelos”
daqueles que estão ali, processados pelo Estado.
Comparando a atuação da defesa técnica em relação à acusação (Promotores e
Assistentes de Promotoria) é interessante perceber a diferença no tom de voz. Enquanto a
acusação utiliza um tom de voz mais elevado a defesa normalmente fala num tom de voz mais
baixo em relação ao primeiro.
Acusar é sempre uma agressão ao outro. É por si só um ato violento. “Apontar o dedo”
a outra pessoa significa imputar-lhe culpa. Como cabe aos Promotores e Assistentes de
promotoria o papel de acusar, esse tom de voz mais elevado simboliza essa agressividade.
Por outro lado, quando a Defesa utiliza um tom de voz menos agressivo, é para tentar
desfazer a ideia inicial deixada pela promotoria e esvaziar a percepção de que aquele que está
sentado no banco dos réus, se não está lugar certo, pelo menos a ele não lhe cabe toda culpa.
5. Considerações finais
É comum na tradição oral situações de embate. Repentistas do nordeste, por exemplo,
trabalham com improvisos e disputam entre si utilizando rima, ritmo e musicalidade. Rappers
nos grandes centros duelam um contra o outro e ganham credibilidade nos seus grupos
sociais.
No entanto, não estamos falando de uma disputa. O duelo, nesse caso, não é de um
contra outro. O que se objetiva não é uma vitória interpessoal. Visa-se ao estabelecimento de
uma verdade jurídica que está longe de ser absoluta. Uma verdade para fins de pacificação
social e encerramento de um conflito.
O debate de ideias e argumentos pode levar, nesse caso ao encarceramento de um
inocente ou a absolvição de um culpado. Da mesma forma que a não observação de certos
atenuantes e agravantes pode gerar um aumento ou uma diminuição desmedida da pena.
Pode ser que “contra fatos não há argumentos” mas há sempre, no mínimo dois pontos
de vista diante de um fato jurídico e para dar voz às partes processuais é que existe a figura do
Advogado (ad = junto + vocare = chamar/convocar) aquele que é a voz ou empresta a sua
voz diante de um tribunal àqueles que desafortunadamente precisam.
Como a missão de advogar e dar voz ao ponto de vista representado, é que Defensores
Públicos e Advogados de defesa não podem apenas contar o que aconteceu. A performance,
como dito no início, valora o discurso, a argumentação e a contra-argumentação do início ao
fim, fazendo com que o dito possa ser melhor entendido.
Nesse processo não como peça processual, mas como procedimento é preciso
adentrar à vida das pessoas, lambuzar-se em suas vivências. Como nós pesquisadores das
Poéticas Orais vivamente tentamos nos embrenhar nas matas, nos campos e nos serrados,
vivenciando o dia a dia das pessoas na busca de entender o que dizem a partir de uma visão
aproximada a delas.
um jardim em cada um de nós que precisa ser explorado, mas também um
“Grande Sertão” que pulsa ininterruptamente. E como saber dessas “Veredas que se
bifurcam” olhando laudas de processos? Como fazer com que uma terceira pessoa, ou
terceiras pessoas, que não estavam no dia em que aconteceu o suposto delito, não
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presenciaram a situação, entendam o ocorrido, senão tentando mergulhar no profundo das
suas realidades e trazendo a tona em vozes e gestos os seus sentimentos e anseios?
É que entra a fruição como processo de percepção estética. Quando a arte imita a
vida (mimesis) e nos faz sentir como se estivéssemos (Catarsis). Esse “presencismo” nos
comove, nos induz e nos faz entender como a vida funciona (ARISTÓTELES, 2003).
Com isso, o Operador do Direito que tiver melhor oportunidade de aproximar a sua
ótica à parte que defende, tem maiores possibilidades de performatizar sua defesa (ou
acusação) no sentido de fazer com que o que se diga, toque, de fato, aqueles que escutam
passivamente sentados, com a difícil tarefa de julgar e tentar encontrar uma verdade que
encerre a questão.
Entretanto, não se pode ignorar que a técnica e o improviso são recursos que
profissionais experientes fazem uso quando não se consegue um aprofundamento prévio.
Portanto, aqueles que conseguem aliar aprofundamento e técnica possuem maiores
chances de terem suas teses aceitas perante, não somente o corpo de jurados, mas frente toda a
sociedade ali representada.
Para maior aprofundamento dos estudos referentes a pesquisa em questão pretendemos
analisar casos específicos, ou um conjunto de casos com a mesma temática para perceber se
há alguma singularidade nas performances apresentadas pelos operadores.
Outra possibilidade de exploração prevista no projeto seria de analisar casos
amplamente divulgados na mídia e tentar perceber se há uma performatização maior neste que
em outros por conta da exposição e notoriedade dos casos.
Acreditamos que este é um estudo que se vincula ao campo das poéticas da voz,
porque a análise vista deste ângulo nos permite entender essas manifestações como algo que
gera fruição e, com isso, prazer estético. Nesse envolvimento entre os operadores do direito e
seus interlocutores é que acreditamos realizar-se o convencimento.
Se a argumentação se quando termina o óbvio a performance pode ser encarada
como reforço ao processo suasório, agregando valor aos argumentos utilizados para
convencer o auditório da tese defendida.
Dessa forma, é possível impedir que um inocente seja considerado culpado, ou que um
possível culpado se livre solto. Mas o contrário não seria verdade, e a performance não
poderia ser usada para fins escusos? Em relação a isso, cabe ao operador e seu travesseiro
decidirem se fazem uso deste recurso argumentativo para o bem ou para o mal. Cape aos
profissionais do direito decidirem se valores éticos e morais devem estar acima do dinheiro.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES, Arte poética. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
BORGES. Jorge Luis. Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores S. A., 1956.
Código do processo Penal, 1941.
Código Penal, 1940.
Constituição Federal, 1988.
FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz e o sentido: a poesia oral em sincronia. São
Paulo: UNESP, 2007.
Decreto-Lei nº 3.689, 1941
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_______. Entre histórias e tererés: o ouvir da literatura pantaneira. São Paulo: UNESP,
2002.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. Niteroi, RJ: Impetus, 2017.
______. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II. Niteroi, RJ: Impetus, 2017.
Lei nº 11.689, 2008.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sonia
Queiroz. São Paulo: Ateliê, 2005.
______. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
[Recebido: 27 fev. 2019 Aceito: 07 jul. 2019]
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AS TRAMAS DO MITO DA B(Ô)TA NOS (DES)CAMINHOS DO ROMANCE
MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR
Haelton Antônio Serrão de Carvalho (UFPA)
Josebel Akel Fares (UEPA)
Robervânia de Lima Sá Silva (UFT)
Zaline do Carmo dos Santos Wanzeler
(UEPA)
RESUMO: O presente estudo tem como foco a B(ô)ta no romance Marajó de Dalcídio Jurandir,
enquanto representação da figura feminina do imaginário amazônida. Nesse caminho, propõe-se a
analisar esta figura mítica dotada de poderes zoomórficos no contexto das narrativas orais coletadas
por Wanzeler (2014) na comunidade de Tentém, área rural do município de Cametá, região Nordeste
do Estado do Pará, Brasil. E estabelecer um contraponto ao narrado por Dalcídio Jurandir no romance
Marajó. O procedimento metodológico segue o da História Oral, com pressupostos da abordagem
fenomenológica, a partir das memórias individuais colhidas por meio da entrevista oral
semiestruturada e método de análise de conteúdo. No plano teórico, o estudo mobiliza uma
bibliografia que incorpora as contribuições de Cascudo (1972 e 2002), Loureiro (2000) e Wanzeler
(2014) para contextualizar a narrativa da b(ô)ta em seus diferentes significados e auxiliar na
compreensão do que representa a personagem Orminda, em Jurandir (2008). Em sua concepção
empírica, nas narrativas orais coletadas, a b(ô)ta transfigura-se em mulher e, como na forma animal,
carrega a expressão do desejo, da volúpia, do gozo inexplicável que pode ser arrancado a força.
Orminda, em Marajó, é uma personagem bastante peculiar para representar a b(ô)ta como será
analisado neste artigo.
Palavras-chave: B(ô)ta. Romance Marajó. Narrativa oral. Amazônia.
ABSTRACT: The present study focuses on B(ô)ta in the novel Marajó de Dalcídio Jurandir, as a
representation of the female figure of the Amazonian imaginary. In this way, it is proposed to analyze
this mythical figure endowed with zoomorphic powers in the context of the oral narratives collected
by Wanzeler (2014) in the community of Tentém, rural area of the municipality of Cametá,
northeastern region of the State of Pará, Brazil. And establish a counterpoint to the narrated by
Dalcídio Jurandir in the novel Marajó. The methodological procedure follows that of Oral History,
with presuppositions of the phenomenological approach, from the individual memories collected
through the semi-structured oral interview and content analysis method. At the theoretical level, the
study mobilizes a bibliography that incorporates the contributions of Cascudo (1972 and 2002),
Loureiro (2000) and Wanzeler (2014) to contextualize the narrative of b (ô) ta in their different
meanings and help in understanding what represents the personage Orminda, in Jurandir (2008). In its
empirical conception, in the oral narratives collected, the b(ô)ta is transfigured into a woman and, as in
the animal form, carries the expression of desire, of voluptuousness, of inexplicable joy that can only
be wrested from strength. Orminda, in Marajó, is a very peculiar person to represent the b(ô)ta as will
be analyzed in this article.
Keywords: B(ô)ta. Romance Marajó. Oral narrative. Amazon.
1. Introdução
dizia Roland Barthes, semiólogo francês, “inumeráveis são as narrativas do mundo.
[...] A narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as
sociedades... internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida”
(BARTHES, 1971, p. 19-20). Sem dúvida, as histórias contadas são a principal maneira pela
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qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas como uma progressão que conduz
a algum lugar, quer ao dizer a nós mesmos o que está acontecendo no mundo. Assim sendo,
não resta dúvida de que a narrativa mitológica é uma forma de conhecimento, similar a
própria realidade, sendo “a voz que narra, a voz que educa o mundo” (PADINHA, 2009, p.
119).
Zeus, Hera, Poseidon, Afrodite, Ares, e uma série de figuras mitológicas do panteão
grego foram narradas, pesquisadas, estudadas e transportam ensinamentos sobre o homem
há séculos, mas a vez neste artigo é de um mito pouco exposto que serve de grande reflexão, e
que se torna universal por tratar de conflitos, dicotomias humanas, por ser fonte para a
educação de comunidades a beira de rios, lagos e florestas, dentro da América Latina, Brasil,
Amazônia, Pará. Conta-se sobre um animal que se transforma em mulher, provoca desejos,
volúpias e morre na certeza de que se não morrer, mata! Fala-se da b(ô)ta, a imagem feminina
do mito do boto, do caboclo Don Juan, o namorador de ribeirinhas.
Dalcídio Jurandir, um grande escritor marajoara, é quem traz a narrativa mitológica
com tanto primor, riqueza de detalhes, proximidade com a realidade, desta vez uma mitologia
amazônica, do povo amazônico, uma realidade anfíbia, em que o homem e a mulher vivem do
rio e da floresta, em que cidades são construídas com vista à água, casas levantadas com
canelas entre manguezais e barrancadas, um tempo estático como outrora dizia Loureiro
(2000, p. 64).
Na obra Marajó de Dalcídio Jurandir, a qual faz parte do Ciclo do Extremo Norte, escrita
entre 1939 e 1978, uma quebra com uma tradão literia sobre a Amazônia, marcada pela
grandiloqncia de imagens, na tentativa de revelar uma natureza opulenta e majestosa. O autor
tra um painel da Amazônia através do personagem Alfredo e sua parentela. No entanto, em
Marajó, é Missunga, filho de rico fazendeiro, o herdeiro da fortuna e das facetas insenveis do
proprierio que possui o bem, e mais bens agrega à cadeia de “deslimitespróprios dos donos de
tudo. então a primeira peculiaridade que chama a ateão para o texto: o é o esperado
Alfredo que apresenta as narrativas marajoaras, mas Missunga. E é a partir dele que o
adentramento ao universotico amanico, com suases-d’água, botos e cobras.
O interesse em estudar o mito da b(ô)ta
30
no contexto da obra Marajó de Dalcídio
Jurandir, surgiu durante o desenvolvimento da dissertação de Mestrado em Educação Boto
em gente, gente em boto: saberes, memória e educação na Amazônia”, orientada pela
prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares, defendida em 2014 fora dos muros da Universidade do Estado
do Pará, no Navio do IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da
Amazônia), uma das primeiras dissertações a serem apresentadas no Navio que carrega(va) o
imaginário marcante do mito do boto, com apresentações em performance e vários outros
trabalhos sobre a temática mítica.
No decorrer da construção da dissertação, uma das autoras deste artigo se deparou com
a análise de várias obras que envolviam a temática do mito do Boto, entre elas: Cobra Norato,
de Raul Bopp (2009); Chapéu Virado: a lenda do boto, de Salomão Larêdo (2001); Marajó,
de Dalcídio Jurandir (2008); Visagens, assombrações e encantamentos da Amazônia, de
Walcyr Monteiro (2005); O chapéu do boto e o bicho folharal, de Juraci Siqueira (2012);
Contos amazônicos: o baile do judeu, de Inglês de Sousa (1892); Cenas da vida Amazônica,
de José Veríssimo (2011). Dessas e de outros textos, a configuração do boto foi traçada com o
auxílio da memória oral de velhos moradores de Cametá, interior do Pará. A grande questão
era que na Mitopoética do Boto o que predominava, segundo a pesquisa, era a figura
masculina do mito, enquanto a feminina era comentada uma vez ou outra, em um texto ou
outro, com restrição e um tabu ainda maior que o masculino, o boto.
30
Optou-se pela forma linguística b(ô)ta para diferenciar o vocábulo que representa o mito feminino do boto,
por jugar que na sua forma bota pode haver uma confusão semântica e sonora com o calçado bota, por serem
homógrafas.
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Durante a coleta de dados realizada em 2013 por Wanzeler (2014), a memória oral
traçou um perfil de b(ô)ta que vai da figura de proteção materna, “bota parturiente”, à figura
desejada de mulher fatal”, aquela que “se parecia com mulher e quando morta na praia o
caboclo não poderia fugir à tentação (...). É por demais bom, mas bom mesmo que mata. Não
tem mulher igual. Mata. É uma areia gulosa” (JURANDIR, 2008, p. 117).
A partir desse momento, o interesse foi despertado, aguçado, incentivado, fertilizado
pelas várias possibilidades de interpretação mítica da personagem, que para Dalcídio Jurandir
era filha da Mãe-dágua ou filha de boto, a bela e sedutora Orminda. É ela quem deverá ser
morta para o homem reafirmar seu poder fálico de homem viril, a bota deve ser morta para
provocar o prazer no caboclo, algo como um impedimento ou ruptura sobre o poder
masculino na sociedade, como se para “dominar” uma mulher fosse preciso -la morta,
anulada, fragilizada, pois todo seu encanto é momentaneamente “quedrado”, seu poder sobre
o varão diminuído, mas como em uma antítese, o poder na morte é potencialmente elevado,
pois “mata o homem de prazer”. Essa é uma hipótese a ser seguida, mas que poderá ser
negada ou esmiuçada com novas leituras e releituras.
Afinal, Dalcídio Jurandir é mestre em revelar a majestosa natureza e seus mitos,
construindo, poderíamos dizer, uma mitopoética mais próxima da “realidade” cabocla do que
qualquer outro autor. Por isso virá dele, o analisar da literatura de expressão amazônica, em
seu universo ficcional, que além de arte, emoção e prazer, é um poderoso instrumento para a
sensibilização da consciência humana e para a expansão da análise do mundo e de conflitos
internos pouco (re)velados. É nele que podemos analisar o mito da b(ô)ta, sua descrição, seus
encantamentos e (re)velar traços e tabus engendrados na poética mitológica, “restrições do
dizer e do ouvir” que também nos levam a pensar o papel da mulher como coadjuvante até
mesmo no mito.
Do ponto de vista metodológico, este artigo é desenhado com o córpus coletado em
2013 por Wanzeler (2014), na comunidade de Tentém, área rural do município de Cametá,
região Nordeste do Estado do Pará, Brasil. Segue os caminhos da História Oral, com
pressupostos da abordagem fenomenológica, a partir das memórias individuais colhidas por
meio da entrevista oral, semiestruturada e método de análise de conteúdo. A escuta, coleta e
registro de narrativas orais contadas por populares cametaenses soma-se à existência de uma
produção de livros, artigos periódicos, dissertações e trabalhos publicados em diferentes
períodos que ajudam a conhecer e pensar as origens e os outros sentidos do mito do(a) boto(a)
na vida das populações da Amazônia paraense.
Assim, uma vez apresentados os elementos introdutórios, o trabalho segue composto
por outras três partes: As origens e caracterização do Boto e da Bota; “Orminda, é boa que só
bota”, tópico em que aprofundamento entre a configuração do mito da b(ô)ta e a
personagem Orminda do romance Marajó. Por fim, são feitas algumas considerações finais
acerca deste exercício interpretativo dos autores presentes.
2. As origens e caracterização do boto e da b(ô)ta;
Da Grécia Antiga até se deparar com o nado lascivo nos rios amazônicos, o boto
empresta o cio, luxúria, elegância e sedução de seu parente mais próximo, o golfinho páfio
que nada ao lado de figuras mitológicas como Afrodite (Vênus), a deusa do amor e da beleza
nascida do pênis decepado de Urano que caiu no oceano. Eros, deus do amor, segue a deusa
resplandecente cavalgado em um golfinho que pode ser encontrado junto ao tridente de
Posseidon (Netuno). Além disso, é a imagem do animal que deuses preferem se transfigurar
para envolverem sexualmente com os/as mortais. Também são considerados “piratas”
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castigados por Eros que arrependidos se tornaram amigos dos homens e conduzem os
náufragos à salvação (CASCUDO, 2002).
Em torno do delfim, encontram-se as predileções no panteão grego por amigos-rapazes
novos, inseparável de Afrodite e com os elementos clássicos do mediterrâneo. Mas o Boto
amazônico consagra-se nos ciclos de sedução ribeirinha, semelhantes a outros deuses, Júpiter
e Netuno que se transformavam em animais para namorar mulheres mortais da terra.
Empédocles, na doutrina de reencarnação dos pitagóricos, também lembrava um peixe que
saltava para fora do mar: “Vagabundo exilado da divina existência [...] fui outrora um rapaz e
uma rapariga, um arbusto e um pássaro, um peixe que salta para fora do mar” (LE GOFF,
2003, p. 434). Poderia ele lembrar o Boto? E o grande Oceano, Okeanós que Vernant (1973,
p. 73) diz ser irmão de Mnemosyne, deusa da memória, mãe das musas. Em Hesíodo (2012),
ele é o senhor dos oceanos e rios, morador de um palácio no fundo das águas, o que pode
lembrar a morada do Boto? (WANZELER, 2014).
Na Amazônia, não se trata mais de golfinho páfio, mas de boto sedutor, melindroso
que pode transfigurar-se em: Boto Don Juan da Amazônia; Boto Amante; Boto Diferente
(bissexual); Boto Casado; Filho do Boto; Bota (Sedutora e Parturiente); Boto Protetor;
Boto Melindroso e Bota (objeto de desejo). Observe como Wanzeler (2014) apresentou as
Configurações do Boto em sua dissertação de mestrado através das narrativas orais de velhos
cametaenses:
Fluxograma 1: As configurações do boto.
Fonte: Wanzeler (2014).
Não importa o (codi) nome, a Mitopoética Amazônica representada pela voz dos
intérpretes da pesquisa de Wanzeler (2014), associam em sua maioria a figura do boto a de
um sedutor de moças ribeirinhas nos principais afluentes do rio Amazonas, e é o pai de todos
os filhos de responsabilidade desconhecida. Nas primeiras horas da noite, transforma-se num
bonito rapaz, alto, branco, forte, grande dançador e bebedor, e aparece nos bailes, namora,
conversa, frequenta reuniões e comparece fielmente aos encontros femininos. Antes da
madrugada pula para a água e volta a ser Boto. Caráter típico do Don Juan da Amazônia.
3. Entre Cametá e Marajó: “Orminda é boa que só bota”
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Cametá é uma cidade do interior da Amazônia, localiza-se à margem esquerda do rio
Tocantins, no Nordeste paraense, conhecida como “Terra dos Romualdos”, “Pérola do
Tocantins”, “cidade invicta da Cabanagem” e mitológica por natureza, conserva um ar
tipicamente interiorano, com casarões antigos típicos da Belle Époque que se entrecruzam
com árvores e plantas. Os cametaenses são donos de um dialeto tipicamente paraense,
reconhecido por usos de expressões populares como: teteé (atoa), pit(odor característico do
peixe), parente (saudação típica), mundiar (seduzir), entre outras. São singulares em suas
tradições, pois ainda conservam, apesar da proximidade com a capital do Estado, Belém, uma
“lentidão” que se opõe a agitação da metrópole paraense. O tempo pelo interior passa
diferente da agitação das grandes cidades, a apreciação do relógio não “voa” como em Belém
(Loureiro, 2000, p. 69).
Nas catacreses do rio Tocantins, há braços, cotovelos, cabeça de rio e em uma dessas
partes fica a Comunidade de Tentém, com casas feitas geralmente com poucos cômodos,
quarto, sala/salão e cozinha quando não apenas um salão que funciona como o quarto, e uma
cozinha em que muitos contadores/as domésticos envolviam seus pupilos:
na Casa Grande... a casa era muito enorme... da minha mãe... minha mãe
era a mãe do Salú... era a filha da casa... muito grande a casa dela... tinha
capela (SANTA CRUZ, 2013).
A casa em que eu morava no Tentém era coberto com palha, era com miriti a
parede, assoalho de açaizeira que o papai tirava... era muito difícil. Sou a
filha mais velha (RAIMUNDA, 2013).
Nem casa nós tinha, era um pedaço de casa... morando na casa do outro.
Depois que nós trabalhemo junto, todos nós que compramos terreno e o
pedaço da casa que era do finado Dezampo, primeiro era uma barraca onde
nós morava. Nós morava junto com os dois velho. Eram três famílias. Era a
família do velho Quinina, era a família da Bineca, a família do papai e os
dois velhos... eram quatro famílias...[...] Quando nos se mudemos, já era casa
grande, depois ele mandou desmanchar. Ficamos num pedaço de casa,
quase caindo na nossa cabeça (MARIA ZÉLIA, 2013).
É neste ambiente de pertencimento que as vozes antigas de cametaenses natos narram
o boto, entrelaçam realidade e ficção, educam através da voz, falam com a memória e contam
um mundo que a voz é capaz de transmitir. Tecem o fio da vida, espalham a semente da
sabedoria, disseminam conhecimento, respiram mitos. começam a surgir os botos, iaras,
mães d’água que rondam o imaginário amazônico, em voz e canto.
Nas narrativas cametaenses coletadas por Wanzeler (2014, p.123 ), a b(ô)ta é uma
“personagem rara entre as narrativas do boto”. Um dos intérpretes da pesquisa, o senhor
Alchimidis diz:
-Tomara que uma bota se simpatize de mim! E se ela vier dormir comigo,
eu vou agarrar ela até de manhã, não tem dessa.” Mas só que comigo, nunca
a bota se manifestou porque [...] diziam que tanto o boto com a mulher,
como também que tinha bota que se simpatizava com os homens, né[...][Mas
tinha bota também?] Tinha, mas que, disque, era raro, né, só quando dava
(ALCHIMIDES, 2013)
De seis entrevistados, apenas um se propôs a falar da b(ô)ta, os demais não fizeram
comentários diretos sobre a presença da figura feminina do boto, mas confirmaram existir
quando indagados pela entrevistadora. Talvez por se tratar “dela”, a b(ô)ta, e não “dele”, o
boto. Encontra-se o tabu do poder fálico da mulher, que mata ou deve ser morta para que o
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equilíbrio se restabeleça, afinal a mulher numa sociedade patriarcal nunca deverá estar acima
da força do varão, do homem, do macho, pois o homem é o provedor, protetor do lar, o mais
forte. Ela, a mais fraca. Essa mulher tão livre, tão sensual não tem lugar naquela sociedade. É
ultrajada pelo desejo excessivo dos machos, é morta por despertar o desejo nos homens, bem
como a b(ô)ta.
Ela causa medo, fragiliza o masculino, pode matar o falo
31
, e com ele toda uma
sociedade, o poder masculino do falo com força na bota deixa de ser uma passiva do desejo e
passa a ser a sedução em forma de mulher, o poder agora da mulher, o poder da figura
feminina e não mais do falo masculino. Com força, garra, coragem e “afeto” com olhar de
cobra, corpo de serpente e órgão genital com grande contração. E é precisamente assim que
Dalcídio tece os encantos da personagem Orminda em Marajó. Parece haver na figura de
Orminda um quê de b(ô)ta e Dalcídio configura o imaginário social através deste mito que tão
pouco é discutido nas academias e narrado nas rodas de contação de história.
Sabe-se que em Marajó, é vista a força da elite marajoara de latifundiários, nas
figuras de Coronel Coutinho e de seu filho, Missunga, em confronto com os pobres e
desamparados da região. Infere-se que, na produção dalcidiana, as personagens femininas ou
são oprimidas na comunidade em que estão inseridas, ou subvertem a forma como a
sociedade ordena que se comportem. No plano da narrativa, a personagem Orminda, filha de
Nhá Felismina, subverte à ordem social em que está inserida para livrar-se da opressão,
mesmo que tenha um final trágico. É ela que desperta a atração dos Coutinhos, pai e filho.
Para Furtado (2010, p. 214), Orminda é uma presença ostensiva no romance pelo tom
lendário que lhe dá o narrador, “a grande marca dessa mulher é o senso de liberdade que a faz
senhora de si, de seus atos, de suas escolhas, daí sua fama saltar e afrontar as fronteiras dos
Coutinhos” (Furtado 2010, p. 214). No nono capítulo, são enfatizados seu poder de atração e
seu lado irrequieto: “Contavam que Orminda foi achada na praia. Não nasceu da velha
Felismina. Orminda nasceu da mãe dágua” (JURANDIR, p. 81). Não é mulher para um
homem só, e é dona de suas vontades. Vive dos favores masculinos, mas sem abrir mão do seu
poder de escolha, por isso quando se nega a dançar com um macho, atrai a desgraça para si.
Um outro fato que aproxima Orminda do mito da b(ô)ta é de ter ido morar com a
pajé Nhá Leonardina, a qual teve como primeiro homem o boto. Observe o que Furtado
(2010, p. 219) diz sobre a personagem:
Orminda está presa a uma contradição: a lenda lhe tira as algemas da prisão
terrena, da coerência, da plausibilidade, mas também faz com que represente
a prisão a que a sociedade local subjuga a mulher. O sinal do corpo de
Orminda ficou na torre da igreja; a princesa está presa no castelo. Essa
prisão ganha caráter metafórico do destino das mulheres locais. Queria ela
uma segunda lua? O brilho de Orminda ficou preso na caixa (...)
(FURTADO, 2010, p. 219).
Gilbert Durand considera o mito como um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e
esquemas, sistema dinâmico, que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em
narrativa. O mito é também um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso,
no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias (DURAND, 2012, p.
31
Lacan se concentra na função do falo como significante da falta e diferença sexual. O falo na teoria
lacaniana não deve ser confundido com o órgão genital masculino, embora claramente carregue essas
conotações. O falo é antes de tudo um significante e no sistema de Lacan um significante particularmente
privilegiado. O falo opera em todos os três registros de Lacan o imaginário, o simbólico e o real e como
seu sistema se desenvolve, torna-se a um único indivisível significante que ancora a cadeia de significação.
Na verdade, é um significante particularmente privilegiado porque ele inaugura o processo de significação
em si.
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62-63). Deveras, as imagens, os símbolos e os arquétipos podem mesmo condensar narrativas
míticas. Os mitos primitivos, que diziam respeito à humanidade como um todo, reduzem-se a
imagens individuais, que guardam relação com o imaginário coletivo. Nessas imagens e
símbolos, presentes na literatura, é que se revela a permanência do pensamento mítico.
Outrossim, a representação entre homem e natureza é marca do caboclo dalcidiano.
A paisagem, as fantasmagorias, os mitos, os costumes e o manancial de construções sobre a
vida amazônica tornam Jurandir um dos poucos a trabalhar a figura feminina do boto e a
personificar em essência. Digo isso, devido ter sido um dos poucos escritores pesquisados na
dissertação de mestrado a darem um NOME e uma PERSONAGEM ao mito da b(ô)ta,
apresentando mesmo que de forma coadjuvante um grau de importância ao feminino tão
renegado nas narrativas orais coletadas no interior da Amazônia paraense. É no romance
Marajó, livro da mocidade do autor e segundo livro que compõe o Ciclo do Extremo Norte,
publicado em 1947, que antecede a viagem de ida ao Rio de Janeiro, que encontramos com
tanta riqueza de detalhes o mito do boto, sem antes passar pela b(ô)ta Orminda, ou seria Mãe
d’água Orminda? “Orminda é boa que bota. Da feita que um infeliz cai naquele bicho
arrancando à força.” (JURANDIR, 2008, p. 249).
Segundo Marlí Furtado (2010, p. 15), com o ciclo, o escritor paraense rompeu com a
tradição literária dessa região, na qual os personagens eram marcados “pelo embate com uma
Natureza grandiosa, mítica, na maioria das vezes invencível”, pois nas obras dalcidianas “os
personagens eram, em grande parte, pobres e decaídos, produzidos e cerceados pela própria
sociedade burguesa em que se inserem (...) corroídos, num ambiente também corroído”.
Na dissertação de mestrado de Moreira (2015), várias recepções críticas literárias
ao romance Marajó, e um dos corpus analisados compreende que a intenção de Dalcídio em
destacar a verossimilhança entre os aspectos sociais e culturais da ilha, por ele vistos, e a
representação desses elementos no romance, reforça o argumento de que o livro genuinamente
documenta a realidade objetiva de Maracom seus costumes, lendas, mitos e modo de vida
da população (MOREIRA, 2015, p. 105). Mas não para por aí, ratifica-se com o autor de que
ao tratar sobre o Marajó e seus conflitos e ambientes, Dalcídio universaliza o marajoara que
passa a representar o paraense, amazônida, nortista, brasileiro, americano. Por isso, estudá-lo
está além do Marajó, está para a representação de conflitos humanos, consciência e
sensibilização do homem e da mulher.
Além disso, soma-se o fato de se terem poucas produções científicas, dissertações e
teses sobre o romance Marajó. Foram encontradas no banco de dados da UFPA, sob a
orientação da prof.ª Drª Marlí Tereza Furtado, apenas estas dissertações: A ética e a estética
em Marajó, de Dalcídio Jurandir, de Gerson de Sousa Mendonça; A crítica literária aos
romances Chove nos Campos de cachoeira”, “Marajó” e Três casas e um rio” na
imprensa do Rio de Janeiro, de Alex Santos Moreira; Tra[D]ição e o jogo da diferença em
Marajó, de Dalcídio Jurandir, de Luiz Guilherme Santos Júnior. Estas trabalham cada uma
com um elemento-chave do romance, no entanto nenhuma trabalhou com a mitopoética na
obra Marajó ou traçou um perfil dos mitos presentes no romance.
Já dissertações sobre o mito do boto foram oito, como consta em Wanzeler (2014), nas
mais diversas áreas da ciência e sobre a b(ô)ta, nenhuma. Veja abaixo o Estado da Arte da
autora.
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Quadro 1 : Dissertações do banco de dados da CAPES no período de 2000 a 2011 sobre as narrativas do Boto.
Fonte: Wanzeler (2014, p.16)
Quadro 02: Dissertações do banco de dados de Mestrado em Letras -UFPA, 1990 a 2006, narrativas do Boto.
Fonte: Wanzeler (2014, p.19)
Relativamente poucas o as dissertações de mestrado acerca da mitopoética do boto,
e absolutamente nenhuma específica para a sua figura feminina. Em cada uma dessas
dissertações, a b(ô)ta era mencionada como amuleto, e algumas vezes citadas em um ou dois
parágrafos, mas não passava disso.
Encontra-se, portanto, um objeto singular de pesquisa. Um mito que parece ter uma
restrição de estudo, um número tão ínfimo que apenas livros de literatura de expressão
amazônica o narram mesmo que com restrição de palavras, haja vista que tanto no livro
Marajó quando nas narrativas de Wanzeler (2014), um ou outro que tem a empáfia de contar
sobre os acontecimentos acerca da b(ô)ta.
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4. Considerações finais
A partir da perspectiva mítica, a b(ô)ta suscita muitas questões sobre a vivência nas
regiões amazônicas, especialmente Cametá e Marajó. Através da riqueza narrativa encontrada
no romance Marajó de Dalcídio Jurandir e nas narrativas orais cametaenses, a figura feminina
do mito do boto parece cumprir na condição humana, a repetição das condutas
inconscientemente espelhadas em mitos que transcendem épocas e que se fazem representar
por mudanças do ser. Falar da personagem Orminda e do mito da b(ô)ta traz a originalidade
da pesquisa, embora não o suficiente.
Traços como o corpo sedutor de Orminda, sua empáfia, seu jeito de tratar os homens e
sua origem duvidosa acrescidos do aguçar dos desejos masculinos em possuí-la sexualmente,
tanto em casos provavelmente incestuosos como do Coronel Coutinho e Missunga,
aproximam a personagem de Marajó ao que o intérprete Alquimes (WANZELER, 2014) diz
na sua entrevista: “Da feita que um homem cai naquele bicho, consegue sair a força
mesmo”.
O olhar, outro contraponto com a narrativa cametaense e a marajoara. “Olho de boto”
é usado como um talismã para atrair e temer, na b(ô)ta o “olhar é fatal”, seduz, mundia,
enfeitiça e mata. É dele que advém uma espécie de portal do mundo real ao fantasioso. Da
sombra dos mitos, aos desejos mais profundos da alma humana, ninguém consegue traduzir o
imaginário que cerca esse portal entre mundos e que une o mito feminino ao masculino,
ambos atraem, e representam fortemente o poder sobre quem se permite ou sem forças, se
entrega a olhar, desejar, querer. Como no mito da Medusa, o olhar empedra, solidificar,
endurece. Simbolicamente, Medusa era trágica, solitária e figura uma mulher incapaz de amar
e ser amada, no entanto, se for encarada, faz com que homens e mulheres ficassem, imóveis,
rendem-se a morte, consumação do desejo e rendição aos encantos. “Deve-se evitar olhar para
o bicho” (ALQUIMES, 2013).
A parte do animal representativo em Dalcídio e que encontra relação nas narrativas
dos intérpretes da pesquisa é o órgão sexual, conhecido como “paca da Bota”. Segundo
Cascudo (2002) e Fares (1996), o boto-fêmea na sua forma animal pode ser objeto de desejo
em virtude do poder de sedução realizado pelos amuletos de partes do animal. Pode
proporcionar intenso prazer ao homem. Tocantins (2000, p. 238) diz que “os órgãos sexuais
da fêmea [do boto] são notavelmente semelhantes aos da mulher e proporcionam prazer tão
intenso ao homem, diz-se, que se o animal não o afastar de si ele prosseguirá em coito até
morrer”. Observem a semelhança: “Da feita que um infeliz cai naquele bicho arrancando à
força.” (JURANDIR, 2008, p. 249).
Ainda nesse viés de ter a mea do Boto a forma animal, bicho e homem se mostram
dignos um do outro, na força do prazer e na agilidade, mas se tornam inimigos não de mesmo
porte, pois no combate, após o prazer, o homem mata a fêmea que se entregou passivamente
ao desejo masculino. Nenhuma conciliação é possível. A distância homem x animal, o
desgarramento, a dissolução sentimental. O homem é superior, porque mata a bota; mas, ao
fazer isso, age também como animal, igualando-se ao ser que tanto despreza. Assim, seu lado
animal prevalece e a força do instinto força-o a matá-la para não levar no ventre um filho do
homem.
O interdito pode não ser efetuado com a morte, mas no momento do prazer, o proibido
é aceito como permitido, homem e animal encontram-se como unos na relação sexual. Ele
entra, a penetra e ela suga-o proporcionando o gozo intenso que, segundo a tradição desse
mito, uma fêmea-humana nunca proporcionaria, porque não tem o número de “contrações” da
Bota durante o ato sexual. Durante a relação, a natureza harmoniza-se com o homem, mas a
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ideia do romantismo cai na água junto com o corpo do animal morto; o homem não será capaz
de se harmonizar com a natureza criadora.
Josse Fares (1996) analisa a presente configuração e esclarece que na relação homem
x Bota, o encantamento não se efetua porque a Bota morre após a cópula. Não elevação da
Bota à condição humana. uma relação física entre homem e animal. O humano relaciona-
se sexualmente com o animal, uma zoofilia. Não há processo encantatório. Depois do prazer a
Bota sofre com a morte. Isso parte, sem sombra de dúvidas pela crença, principalmente dos
pescadores, de o órgão sexual da Bota animal ser semelhante a da mulher, porém com
maiores contrações musculares que da fêmea humana. Cascudo (1972, 2002), Veríssimo
(1887), Larêdo (2001), Tocantins (2000), Fares (1996), entre outros, confirmam ter
encontrado quem usasse a paca da bota (vagina da bota) como talismã para seduzir aquele a
quem a mulher desejasse.
Portanto, há fortes semelhanças entre a personagem do romance Marajó e as narrativas
orais coletadas no interior da Amazônia. O que poderá ser narrado em próximas histórias...
Até a próxima.
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[Recebido: 27 fev. 2019 Aceito: 20 abr. 2019]
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LITERATURA E CINEMA: AS FUNÇÕES NARRATIVAS DE PROPP EM DUAS
VERSÕES DO CONTO A BELA ADORMECIDA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O
CONTEXTO ESCOLAR
Robervânia de Lima Sá Silva (IFPA)
Érica de Cássia Mai (UFT)
Zaline do Carmo dos Santos Wanzeler (IFPA)
Resumo: Os contos, independentemente de sua classificação, exercem e sofrem grande influência
advinda do contexto cultural e social, uma vez que sua criação está diretamente relacionada a eles,
devido originarem-se de tradições orais. Dessa maneira, as várias adaptações que são elaboradas
levando em consideração as muitas transformações ocorridas no contexto do leitor o provas de que
eles são de extrema importância para a sociedade e para o ensino em ambientes escolares. Dessa
forma, a presente pesquisa tem como objetivo principal, analisar sob a ótica do modelo funcional de
Propp para narrativas,a primeira versão escrita do conto a Bela Adormecida, de Giambattista Basile
cujo título era Sol, Lua e Tália e a última versão cinematográfica para o conto, Malévola, que
apresenta roteiro de Linda Woolverton e direção de Robert Stromberg, e ainda, discutir uma forma de
aplicação em sala de aula.A pesquisa desenvolvida se classifica como qualitativade cunho
bibliográfico. Para realizar a discussão utilizamos como abordagem teórico-metodológica no campo da
pesquisa científica, os trabalhos de Bortone-Ricardo (2008), Fachin (2001) e Gil (1999), no campo da
teoria literária, adotamos os estudos de Propp(2006), no campo do ensino da literatura,Souza e Cosson
(s/d) e Cosson(2009) foram os autores investigados.
Palavras chave: Teoria literária. Conto. Adaptação cinematográfica.
Abstract: The tales, regardless of their classification, exert and suffer great influence coming from the
cultural and social context, since their creation is directly related to them, due to originating from oral
traditions. Thus, like several adaptations that are elaborated taking into account the many
transformations occurred in the context of the reader, the tests are considered of extreme relevance for
society and for school teaching. Thus, the present research has as main objective, the analysis from the
perspective of the functional model of Purpose for the narratives, a first version of the story sleeping
Beautyof Giambattista Basile, whose title was the old era Sun, Moon and Talia and the third film
version for the short story, Malévola, which features screenplay by beauty Woolverton and direction
by Robert Stromberg, and is a form of application in the classroom. The research is classified as
qualitative of bibliographic character. In order to carry out the research we use the theoretical-
methodological approach in the field of scientific research, the works of Bortone-Ricardo (2008),
Fachin (2001) and Gil (1999), in the field of literary theory, adopting studies by Propp (2006) , in the
field of literature, Souza and Cosson (s / d) and Cosson (2009) were the authors investigated.
Key words: Literary Theory. Tale. Filmadaptation.
1. Introdução
O conto “A Bela Adormecida”é um dos mais conhecidos da literatura ocidental.
Publicado pela primeira vez em 1634 no Pentamerone, um livro italiano que reúne 50 contos,
dentre eles, a primeira versão do conto em estudo.O autor da obra é Giambattista Basile que,
assim como, os irmãos Grimm e Charles Perralt, recolheu as histórias de seu livro ouvindo a
comunidade de sua época, para posterior adaptação e publicação das narrativas orais
populares que se tornaram ainda mais conhecidas.
A primeira versão da Bela Adormecida foi publicada com o título de “Sol, Lua e
Tália” e apresenta fatos bem distintos das versões romantizadas de Grimm e Perralt, uma vez
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que expõe cenas de violência contra a mulher, enquanto que Malévola, também se difere
bastante das demais versões, pois seu roteiro gira em torno não somente da princesa, mas
principalmente da bruxa-fada. O mesmo não apresenta violência sexual, mas,como em quase
todos os contos, o bem custa a alcançar seus objetivos.
2. Metodologia
Elaborar um trabalho de cunho científico exige a adoção de um método que atenda aos
objetivos da pesquisa, caso contrário, ela pode ficar limitada ao senso comum. De acordo com
Fachin (2001) O método científico caracteriza-se pela escolha de procedimentos sistemáticos
para descrição e explicação de uma determinada situação sob estudo e sua escolha deve estar
baseada em dois critérios básicos: a natureza do objetivo ao qual se aplica e o objetivo que se
tem em vista no estudo. Gil (1999, p.26) ratifica essa informação ao afirmar que a pesquisa
científica faz uso de um conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos sistematizados em
busca dos objetivos traçados.
Assim sendo, de acordo com os objetivos desse estudo que são: a) Realizar uma
análise comparativa da primeira versão do conto “A bela Adormecida” com a última versão
cinematográfica deste, a saber, Malévola, levando em consideração as funções narrativas de
Propp e b) Tratar a respeito de sua utilidade em sala de aula; a pesquisa qualitativa de cunho
interpretativista parece ser a mais adequada ao alcance das metas traçadas. De acordo com
Bortoni Ricardo (2013, p. 33) os pressupostos interpretativistas podem ser definidos como
“um conjunto de métodos e práticas empregados na pesquisa qualitativa”. Assim sendo,
podemos perceber que a pesquisa bibliográfica qualitativa interpretativista é a que melhor
atende as demandas desse trabalho.
3. Fundamentação Teórica
As histórias de tradição oral estão presentes em praticamente todas as civilizações,
desde os tempos remotos. Elas são testemunhos, verídicos ou não, que são transmitidos em
forma de contos, provérbios, baladas, entre outras. Dessa maneira, os contos tradicionais que
conhecemos foram recolhidos por pesquisadores que fizeram seu registro escrito, por vezes
fidedigno, às vezes, nem tanto, para que as mesmas não se perdessem ao longo do tempo e se
tornassem conhecidas por outras regiões e até mesmo nações distintas.
A princípio, os contos recolhidos não tinham um público específico, como ocorre hoje
em dia em que os mesmos são organizados e classificados de acordo com a faixa etário do
público.Segundo Áries (1979, p. 156) “na sociedade medieval a criança, a partir do momento
em que passava a agir sem solicitude de sua mãe, ingressava na sociedade dos adultos e não
se distinguia mais destes", isto é, as classificações do desenvolvimento, como infância e
adolescência que existem atualmente eram conceitos inexistentes para o período em que a
primeira versão do conto foi lançada.
Naquela época, não havia se quer o conceito de infância como concebemos hoje, de
acordo com Paula (2005 p.1) antes "a criança inexistia ou ficava adstrita a escassos
momentos”. Devido a isso, a violência e a sexualidade eram tratadas nos contos com
naturalidade, pois somente os adultos eram considerados no momento da coleta ou elaboração
dos textos que seriam publicados. Contudo, hoje é possível percebermos que a infância
passou a existir na literatura.
De acordo com Áries (1979 p. 14) "a 'aparição' da infância se a partir do século
XVI e XVII na Europa, quando o mercantilismo, altera o sentimento e as relações frente à
infância, modificado conforme a própria estrutura social". Assim sendo, as transformações
sociais e econômicas influenciaram diretamente a forma de olhar e perceber a criança. Esse
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novo olhar influenciou os contos que passaram a vislumbrar o público infantil e juvenil,
mudando as atitudes dos personagens, o cenário dos eventos entre outras características.
Diferentemente do período medieval em que as crianças eram apenas “complementos” nas
histórias, hoje, é possível vislumbramos crianças protagonistas em vários contos.
3.1. Sol, Lua e Tália
A primeira versão do conto “A Bela adormecida”foi lançado em uma coletânea
denominada Pentamerone em 1634 e tem como título “Sol, Lua e Tália”. De origem italiana,
o livro reúne 50 contos coletados da tradição oral por Giambattista Basile.
O conto tem início com o relato da história do nascimento da filha de um grande
senhor (uma outra forma de denominar um rei naquela época). Na ocasião do nascimento,o rei
convoca, como de costume na época, os sábios e adivinhos para saber a sorte de Tália, sua
filha recém nascida. O rei se entristece ao saber que a mesma corre perigo devido a uma farpa
de linho enfeitiçada, manda destruir todas as rocas do reino, mas o previsto acontece. Tália
fere seu dedo com uma farpa de linho que fica presa embaixo de sua unha. Seu pai a deixa
adormecida em seu castelo e vai embora com todos os súditos para bem longe do reino no
intuito de não ver o fim de sua filha.
A história prossegue e depois de muitos anos outro rei sai para caçar e,por acaso,
encontra Tália no Castelo, o mesmo sente um forte desejo por ela e abusa sexualmente da
princesa que está em sono profundo. Depois de nove meses, Tália, mesmo inconsciente, a
luz, com a ajuda de algumas fadas, aos gêmeos Sol e Lua. Certo dia, as crianças querendo
mamar não conseguem alcançar os seios de sua mãe, por isso, sugam-lhe o dedo até que a
farpa de linho se desprende e a princesa Tália desperta de seu sono gico, isto é, de sua
maldição. Depois de algum tempo o rei se lembra da jovem, volta ao palácio e começa um
relacionamento extraconjugal com a moça. No entanto, sua esposa não fica satisfeita com o
ocorrido e tenta assassinar Tália e seus filhos. O plano da rainha falha e Tália assume seu
lugar no castelo e na vida do rei tornando-se oficialmente uma rainha.
3.2. Malévola
A mais nova versão cinematográfica da Bela Adormecida, cujo título é Malévola, é
narrada pela própria princesa Aurora, idosa. Seu inicio é marcado pela presença de uma
fada boa que vive em um reino encantado que faz divisa com um reino de humanos. Ainda
menina, Malévola conhece Stefan, um menino pobre por quem se apaixona. A princípio, ele
também demonstra algum sentimento por ela, mas seu desejo por riqueza, bem como seu
objetivo de um dia tornar-se rei faz com que ele priorize sua ambição ao invés de seu amor.
Em uma das batalhas entre os dois reinos, isto é, o reino das fadas e o reino dos humanos,
Malévola consegue vencer com vantagem e ainda fere o rei. Este, por sua vez, promete a
sucessão de seu trono aquele que conseguir matá-la. Stefan enche ainda mais seu coração de
cobiça e procura Malévola, faz com que ela beba uma substância que a faz adormecer, com o
propósito de assassiná-la, no entanto, não consegue tirar sua vida, por isso, corta suas asas
com uma corrente de ferro, único metal capaz de ferir uma fada, e as entrega ao rei afirmando
que conseguiu tirar sua vida. Ao despertar, Malévola fica irada e amargurada pela traição de
Stefan e transforma seu reino em um lugar de escuridão. Na tentativa de saber como vivia
Stefan em seu castelo, a fada transforma um corvo em um ser humano, Diaval. Este sofre
várias transformações ao longo da trama para ajudar Malévola. Um dia, ele avisa a fada que o
rei dará uma festa para comemorar o nascimento de sua filha, Aurora. Malévola, então,
encontra uma forma de se vingar de Stefan e comparece ao baile sem ter sido convidada. A
mesma, amaldiçoa a princesa, que deverá picar seu dedo em um fuso ao completar 16 anos e
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cair em sono profundo, até que ganhe um beijo de amor verdadeiro. O rei tenta destruir todas
as rocas de fiar do reino, confia a criação de aurora, em seus primeiros dezesseis anos a três
fadas desastradas que moram no mesmo reino de Malévola. A criança vai crescendo e aos
poucos vai conquistando o amor de Malévola, até que completa certa idade e resolve procurá-
la imaginando ser esta sua fada madrinha. Malévola, ao perceber que se apegou a menina,
tenta desfazer seu encanto de diversas formas, contudo, sem sucesso algum. Aurora conhece
um príncipe que está se dirigindo ao castelo de seu pai e se interessa por ele. O fato, traz ao
coração de Malévola, uma grande esperança de quebrar sua maldição.
Contudo, ao completar 16 anos de idade, Aurora decide morar com sua “fada
madrinha”, mas, as outras três fadas ficam enciumadas e contam a princesa, sobre o feitiço
que Malévola havia lançado sobre ela. Devido a isso, a princesa fica entristecida e volta para
o castelo de Stefan, seu pai. Lá, ela fura seu dedo em uma roca de fiar e a maldição se
concretiza. Malévola, vai ao castelo levando consigo Philip, o príncipe que Aurora conhecera
no reino das fadas, na intenção de salvá-la de sua própria maldição, mas seu plano falha, pois
não havia amor verdadeiro entre os dois. A fada chora tristemente por imaginar que a princesa
estará para sempre condenada à maldição e ela mesma lhe um beijo. Aurora desperta, pois
recebeu um beijo de amor verdadeiro da fada. Ao perceber o ocorrido, a princesa luta ao lado
de Malévola contra seu próprio pai, pois percebe o que ele é uma pessoa má. Alias, é a
princesa quem descobre onde as asas da fada estão guardadas e as devolve. Ao receber suas
asas, Malévola recupera todo o seu poder e vence o rei, bem como, todo o seu exército.
Aurora se torna a rainha e passa a governar os dois reinos.
Observemos a seguir, uma análise das duas versões do conto em estudo, a luz de
Vladimir Propp, em sua obra, a Morfologia dos contos de fadas.
4. As funções de Propp e as duas versões da Bela Adormecida
Vladimir Propp foi um estudioso que procurou analisar a forma como os contos se
organizam, por meio de um estudo analítico de 100 contos russos. Sua pesquisa deu origem a
obra “A Morfologia dos Contos de Fadas” na qual o autor sistematiza sete classes de
personagens, seis estágios de evolução das narrativas e trinta e uma funções narrativas. Para
Propp (2006, p. 26) “Por função, compreende-se o procedimento de um personagem, definido
do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação”, ou seja, as funções de cada
personagem são as partes essenciais dos contos. Nem sempre, os contos apresentam as trinta e
uma funções, mas as que aparecem na narrativa sempre seguem a sequência de narrativas
propostas pelo autor.
Dessa maneira, passaremos agora a verificar quais funções estão presentes na primeira
versão do conto “A Bela Adormecida”, cujo título era “Sol, Lua e Tália” de
GiambattistaBasile e na última versão do conto para o cinema, “Malévola”, roteiro de Linda
Woolverton e direção de Robert Stromberg. Vejamos a análise de acordo com a sequência de
funções elencadas por Propp:
4.1. Afastamento
Segundo o Propp a “função de afastamento pode ser de uma pessoa da geração mais
velha e as formas habituais de afastamento são: para o trabalho, para a mata, para dedicar-se
ao comércio, para a guerra, ou a negócios” (PROPP, 2006, p.19).
No conto original, a primeira função de Propp é representada por Tália, a Bela que
viria a adormecer ao se tornar crescida. A mocinha avistou pela janela do castelo uma velha
que fiava.Muito curiosa, solicitou que a mesma viesse até ela para que pudesse aprender a
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fiar. No filme, a função 01 é vivida pela princesa Aurora que foge do reino encantado dos
Moors para voltar ao reino dos humanos no qual seu pai é o rei.
4.2. Interdição
Nas palavras do autor “Impõe-se ao Herói uma Proibição” (PROPP, 2006, p.19).
Segundo o teórico, a interdição também pode parecer sob a forma de um pedido ou até
mesmo de um conselho.
A interdição do conto está no fato de que Tália não poderia entrar em contato com
uma roca de fiar, pois a farpa de linho representava grande perigo à princesa. No filme ocorre
o mesmo, a bela adormecida na poderia entrar em contato com uma roca de fiar. O que acaba
acontecendo nas duas versões.
4.3.Transgressão
Para o autor transgressão é sinônimo de interdito, assim, “as formas de transgressões
correspondem às formas de interdito. As funções II e III constituem um elemento par. O
segundo membro pode existir, às vezes sem o primeiro”. (PROPP, 2006, p.20).
Dessa maneira, na primeira versão do conto, o convite de Tália à velha que fiava é a
raiz de suas dificuldades, ou seja, a transgressão, pois seu pai havia proibido tal ofício no
reino, no entanto, a moça o desobedece. No filme, Aurora, por sua vez, também desobedece
às ordens das fadas e de Malévola e volta para o reino dos humanos entrando em contato com
a roca, objeto que desencadeia sua maldição.
4.4.Interrogação
De acordo com Propp (2006, p. 20) “O interrogatório tem por finalidade descobrir o
lugar onde se encontram as crianças, às vezes objetos preciosos etc.”
No conto,esta função é desenvolvida pela antagonista que é representada pela rainha,
enquanto que no filme é por Stefan, um jovem menino que ao crescer usa Malévola para se
tornar rei. Contudo, vale ressaltar que se a história do conto transcorresse nos dias atuais, o rei
também poderia ser considerado um vilão, pois abusou sexualmente de Tália enquanto esta se
encontrava inconsciente, dormindo um sono profundo.
1.5. Informação
Nesta função, o “Antagonista Recebe Informações sobre a sua Vítima” (PROPP, 2006,
p.20). Assim, as informações a respeito de Tália são conseguidas por meio de um suborno que
a rainha oferece ao secretário oficial do rei. Em Malévola, o informante é o corvo em forma
de homem, Diaval. Ele é quem fornece todas as informações necessárias a bruxa, para que ela
arquitete seus planos.
1.6. Engano
Aqui, “o Antagonista Tenta Ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de seus
bens” (PROPP, 2006, p.20).
No filme, Stefan volta ao reino de malévola para supostamente protegê-la, no entanto,
ele a ataca e rouba suas asas para conseguir se tornar rei. Por sua vez, no conto, a agressora é
a rainha traída que manda recados enganosos a Tália, na intenção de tirar-lhe a vida.
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1.7. Cumplicidade
Nesta função Propp, (2006, p.21) afirma que “a vítima se deixa enganar, ajudando
assim, involuntariamente, seu inimigo”. No caso do filme, Malévola acredita no amor de
Stefan, enquanto que no conto, Tália se deixa enganar pela rainha por meio do recado do
secretário do rei.
1.8. Dano/vilania
De acordo com o autor,
Esta função é extremamente importante, porque é ela na realidade que
movimento ao conto maravilhoso. O afastamento, a infração ao interdito, a
informação e o êxito do embuste preparam esta função, tornam-na possível
ou simplesmente a facilitam. Por isso, as sete primeiras funções podem ser
consideradas como parte preparatória do conto maravilhoso, enquanto que o
nó da intriga está ligado ao dano.(PROPP, 2006, p.21).
No conto, Tália é levada para o palácio e é agredida pela rainha que tenta tirar sua
vida, enquanto que no filme, Malévola enfeitiça a filha do rei.
1.9. Mediação
Nesta função, “É divulgada a notícia do dano ou da carência” (PROPP, 2006, p.24).
Dessa maneira, Malévola é ao mesmo tempo heroína e vilã, pois enfeitiça a bela adormecida e
cuida para que não aconteça nada de mal a menina, o que significa uma oposição a ela
própria. A divulgação do dano ocorre quando as três fadas enciumadas contam a Aurora
acerca da maldição lançada pela bruxa.
1.10. Início da ação contrária
“Este momento é característico somente dos contos onde o herói é o buscador. Os
heróis expulsos, mortos, enfeitiçados, substituídos, não tem a vontade de libertar-se; e então
este elemento está ausente”. (PROPP, 2006, p.25).
O início da ação contrária no filme é representado por Malévola que tentar salvar
Aurora de seu próprio feitiço. No conto, esta função é representada pelo rei que condena sua
esposa a morte para proteger Tália.
1.11. Partida
Conforme nos explica o autor, “Esta partida representa algo diferente do afastamento
temporário, designado acima” (PROPP, 2006, p.25). Isso pode ser visto no filme, onde
malévola parte para o castelo com um jovem príncipe na esperança de desfazer seu feitiço
com um beijo de amor verdadeiro e também no conto, em que o rei se lembra da jovem que
abusou a alguns anos atrás e vai à sua procura.
1.12. Função do doador
Neste quesito o doador põe a prova o herói da narrativa. Dessa forma, no filme, é um
corvo transformado em homem quem exerce a função de doador. No conto, esse papel fica a
cargo do cozinheiro do palácio do rei, que protege os filhos de Tália de serem mortos cozidos.
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1.13. Reação do herói
Neste caso, “O herói reage diante das ações do futuro doador” (PROPP, 2006, p.26).A
função de reação ao herói é representada pelo corvo que se torna informante e ajudante de
Malévola em meio a algumas batalhas. No conto, o cozinheiro do palácio do rei desobedece a
rainha e não cozinha os filhos de Tália conforme ordenado por ela.
1.14. Recepção do objeto mágico
Propp nos esclarece que nessa função o meio mágico passa às mãos do herói. No
filme, são as asas de Malévola que fornecem seus poderes. Elas lhe são devolvidas por Aurora
quando a menina descobre a vilania de seu pai. No conto, esta função não se aplica.
1.15. Deslocamento
Nesta função,
O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o
objeto que procura[...]. Geralmente o objeto da busca se encontra em outro
reino. Este reino pode-se encontrar bem distante em linha horizontal ou bem
em cima ou embaixo em linha vertical. Os meios de comunicação podem ser
os mesmos em todos os casos, mas existem formas específicas para viajar
para as alturas ou para as profundezas.(PROPP, 2006, p.30).
Dessa forma, no filme, Malévola parte para o castelo para salvar a Bela Adormecida.
No conto, o rei se dirige ao local aonde Tália seria queimada.
1.16. Luta
Nesta função os personagens principais, isto é, o herói e o antagonista se enfrentam em
combate direto. No filme, isso ocorre quando a presença de Malévola (dentro do castelo
inimigo) é percebida pelo rei que a ataca. No conto, podemos observar tal fato quando Tália é
atacada pela rainha que tenta matá-la queimada.
1.17. Marca
Nesta função, o herói é marcado fisicamente. No filme, Malévola fica com
queimaduras devido ao metal utilizado pelo rei. Não é possível notar essa função no conto.
1.18. Vitória
Aqui, o protagonista vence o antagonista. No filme, essa função é representada pelo
beijo de amor que salva A Bela Adormecida do sono profundo e que é dado por Malévola,
enquanto que no conto, o que salva Tália do sono profundo é o sugar de seu filho em seu
dedo.
1.19. Reparação
Tanto, Tália no conto, como a Bela Adormecida no filme, despertam do encanto.É
esse despertar que representa a função reparadora de Propp, que “forma uma parelha com o
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momento em que aconteceu o dano ou a carência dentro do da intriga”. (PROPP, 2006,
p.31).
1.20. Volta
Malévola volta para seu reino de fantasia, isto é, o reino das fadas, o que representa
um regresso, que é um retorno ao lugar que lhe foi retirado de alguma forma. Para Propp:
O regresso se realiza geralmente, da mesma forma que a chegada. Mas não é
preciso fixar aqui uma função particular que segue o regresso, pois este já
implica num domínio do espaço; e nem sempre é assim no momento da
partida. Esta é seguida pela transmissão do objeto mágico (cavalo, guia etc.),
quando ocorre o voo ou outras formas de deslocamento. A volta, então,
acontece em seguida e quase sempre da mesma forma que a partida.
(PROPP, 2006, p. 33).
É importante ressaltar que tanto o conto original, quanto a última versão para o cinema
não apresentam as funções 21 a 31 respectivamente.
2. As duas versões do conto e suas implicações
A comparação do conto escrito com a versão cinematográfica pode proporcionar
momentos ricos de reflexão em sala de aula, pois fornece visões distintas para a mesma
história. Além disso, contribui de forma significativa para o letramento em leitura dos alunos
da educação básica, o que constitui uma das maiores necessidades da escola, pois ler e
escrever é fundamental para o desenvolvimento de nossa sociedade. Devido a isso, a literatura
assume um papel importante: incentivar aprendizes a praticar a leitura literária.
De acordo com Cosson (2006, p. 17) é papel da literatura “[...]tornar o mundo
compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e
formas intensamente humanas”. E é justamente isso que podemos observar nos contos.
Malévola, apresenta uma história antiga contada de forma diferente, ou seja, a história é
narrada sob a ótica da bruxa-fada.
Dessa forma, o professor pode orientar seu trabalho com os contos, por meio dos
estudos de Rildo Cosson que sugere que as aulas de literatura se organizem por meio de
Sequências Didáticas.
Ainda de acordo com Souza e Cosson:
O letramento literário enquanto construção literária dos sentidos se faz
indagando ao texto quem e quando diz, o que diz, como diz, para que diz e
para quem diz. Respostas que podem ser obtidas quando se examinam os
detalhes do texto, configura-se um contexto e se insere a obra em um diálogo
com outros tantos textos. Tais procedimentos informam que o objetivo desse
modo de ler passa pelo desvelamento das informações do texto e pela
aprendizagem de estratégias de leitura para chegar à formação do repertório
do leitor. (SOUZA e COSSON, 2010, p. 103).
Assim sendo, o trabalho com os contos, tanto na versão escrita, quanto na audiovisual
deve se orientar levando-se em consideração a tais indagações, pois elas contribuem para uma
melhor compreensão e apropriação do gênero textual abordado pelo professor que deve
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perceber se seus alunos estão fazendo uso adequado de estratégias de leitura, uma vez que
estas são essenciais a compreensão do texto.
Segundo Pressley (2002) apud, Souza e Cosson (s/d p.104) para ler, o aluno necessita
dominar sete estratégias, são elas: conhecimento prévio, conexão, inferência, visualização,
perguntas ao texto, sumarização e síntese; caso contrário, seu entendimento fica
comprometido.
Portanto, o professor ao elaborar suas sequências didáticas deve levar em conta
também as estratégias de leitura.
O modelo funcional de Propp também pode contribuir para que o aluno possa
visualizar a importância de cada personagem que compõe a narrativa. Ele auxilia o educando
em momentos de produção de texto, sobretudo, nas revisões, pois permite verificar que
personagens e elementos sua produção não dispõe em relação aos modelos literários
existentes e estudados por ele, pois o conto atribui ações iguais a personagens distintos, isto é,
o aluno poderá criar o personagem que quiser, contudo, a função deste é sempre a mesma.
3. Considerações Finais
Por meio da presente análise e comparação foi possível verificar que os contos se
transformam e ressurgem a medida que a sociedade evolui e se modifica. Foi possível
percebermos que o modelo funcional de Propp se enquadra tanto no conto em versão escrita,
quanto, na versão audiovisual. Apesar das transformações apresentadas em cada versão, as
funções permanecem as mesmas e ainda estão presentes na sociedade moderna, ou seja,
nomes foram trocados, assim como suas características, mas as ações que cada função
desempenha permanecem inalteradas.
O modelo de Propp permitiu a identificação de todas as ações do conto escrito e do
filme. Algumas personagens aparecem em mais de uma função, como é caso de Malévola, as
vezes protagonista, as vezes antagonista, ainda assim, as funções são evidentes e favorecem
uma melhor compreensão das estruturas textuais pesquisadas.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. A História Social da Infância e da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
BORTONI RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução a pesquisa
qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de educação fundamental. Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF. 1998.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. São Paulo: saraiva. 2001.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.
PAULA, Elaine de. Crianças e Infâncias: Universos a Desvendar. Programa de Mestrado
em Educação da UFSC. I semestre de 2005. Disponível em: www.scielo.br. Acessado em 18
de Dezembro de 2014.
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PROPP, V. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006
(1928).
SOUSA. Renata Junqueira; COSSON, Rildo. Letramento Literário: uma proposta para a
sala de aula. Universidade Estadual Paulista UNESP. Disponível em:
http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.pdf. Acessado em
05 de Janeiro de 2015.
[Recebido: 20 jan. 2019 Aceito: 06 jul. 2019]
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MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL NA MÚSICA CAIPIRA DA PAULISTÂNIA
Geise Bernadelli (UnB)
RESUMO: A proposta desse artigo é percorrer as origens da música caipira e perpassar o início de
sua trajetória até a cisão que acometeu o gênero, assinalando as diferentes noções que se teve ao longo
do tempo sobre o ser caipira, sua cultura, seus valores e modo de vida. Compreendido o objeto, busca-
se caracterizar a identidade social do caipira por meio das lembranças dos anciãos, das que são
evocadas pela música, pelos causos e pelas tradições culturais, tomando-se por base relatos de velhos
mestres violeiros e de jovens inseridos na cultura caipira, constatando-se a presença viva desta e
interpelando-se sobre sua continuidade e representação nos dias atuais.
Palavras-chave: Caipira. Viola. Valores. Lembranças. Identidade social.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to investigate the origins of Brazilian caipira music and go
through the beginning of its trajectory to the break that affected the genre, pointing out the different
notions that have had over time about the being caipira, its culture, its values and way of life. After to
know the object, we intend to characterize the social identity of the caipira through the memories of
the ancients, those evoked by music, cultural narratives and traditions, based from reports of old viola
masters and young people inserted in Brazilian caipira culture, being verified the alive presence of this
one and questioning on its continuity and representation in the present days.
Keywords: Caipira. Viola. Values. Memories. Social identity.
A música popular brasileira designada pelo termo sertanejo foi originada na música
caipira, ou de raiz, como também é nomeada. Quem a criou foram habitantes dos estados de
São Paulo, Minas Gerais (especificamente triângulo mineiro e sul), Goiás (incluindo parte do
Tocantins que fora Goiás), Mato Grosso do Sul, parte de Mato Grosso e a metade norte do
Paraná, portanto, a região a que Antonio Candido
32
definiu como Paulistânia, que é todo o
eixo de expansão e difusão da cultura bandeirante. Nesta região se fixou o que entendemos
por cultura caipira e seus valores, sendo as pessoas que ali habitavam denominadas caipiras,
espécie de bandeirantes atrofiados como nomeia Candido. A palavra caipira é oriunda do tupi
e significa “habitante do mato”. As explicações etimológicas para sua origem partem de
ka'apir ou kaa-pira - cortador de mato”; ka'a pora - “habitante do mato”. O termo foi
utilizado pelos indígenas para designar os colonizadores que chegaram à região onde hoje se
situa o estado de São Paulo, já que cortar o mato era uma função dos recém-chegados
exploradores. Com o passar do tempo a palavra tornou-se sinônimo de homem simples do
interior, gente da roça (PIUNTI, 2011).
findos de 1800 os caipiras, esses habitantes do interior dos estados acima relatados,
moravam e trabalhavam no campo, cultivavam sobretudo as lavouras de café de Minas e São
Paulo e cuidavam principalmente de pecuária em Goiás e Mato Grosso. Sua música era uma
expressão artística produzida espontaneamente, por prazer, estabelecendo relações de suas
vidas com o que lhes acontecia no cotidiano, sendo restrita ao ambiente rural e conhecida
apenas de boca em boca por pequenas comunidades, sem interesses comerciais, segundo
pesquisas de André Piunti (2011). O jornalista afirma ainda que cantavam para declamar as
alegrias e dificuldades da vida no campo, para celebrar um fato importante enquanto
trabalhavam na roça ou quando se reuniam para alguma devoção religiosa. Essas canções, as
32
Os parceiros do Rio Bonito é a obra fruto da tese de doutoramento de Candido, em que se dedicou a estudar
o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida (CANDIDO, 2010).
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primeiras a serem chamadas de música caipira, eram essencialmente vinculadas a alguma de
suas atividades, no que diz respeito ao seu trabalho ou às suas crenças. São dos caipiras os
belos versos de devoção das canções folclóricas de Folia de Reis - Deus te sarve oratóro /
Cum todo seus ornamento / Deus te sarve as estampinha / E as image qu’estão dentro.”
33
Em 1914, sob a alcunha de Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, a figura do
típico matuto ficou conhecida nacionalmente. O escritor o representou de maneira caricatural
e jocosa, num tom de crítica por julgá-lo resistente à modernidade e desinteressado pelo
conhecimento. Seu conto intitulado “Velha Praga”, que foi publicado no jornal O Estado de
São Paulo, tornou-se posteriormente um dos capítulos de seu livro Urupês. Nele, de forma até
mesmo agressiva, Lobato se mostrou assombrado e irritado pela figura desse caipira, também
chamado caboclo, que ele considerava ser um parasita da terra, uma praga nacional, devido ao
progresso ter avançado sobre o campo, com vias férreas, com chegada de imigrantes italianos
e surgimento de maquinários, ao passo que o caboclo recuava calado, fechava-se e resistia aos
novos tempos, mantendo hábitos terríveis e incompreensíveis aos seus olhos, como as
queimadas para limpar a roça. Apenas uma década depois essa sua visão sobre o caipira cedeu
lugar a uma análise social das condições daquela gente. Após conhecer mais a fundo a
realidade do caboclo, sua vulnerabilidade às doenças da época como o amarelão, suas
precárias condições de higiene, moradia e subsistência, Lobato começou a vê-los como
vítimas da sociedade e do governo, que não tinha interesse em seu desenvolvimento nem em
sua situação de pobreza e fome. Tornou-se, a partir de então, uma personalidade engajada na
luta pelos direitos sociais essenciais, como saúde e saneamento básico, também pela
modernização do país e nacionalização do petróleo. Retratou-se com o caipira a partir da
edição de Urupês - É essa bicharia cruel que te fez papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa
disso? Claro que não.” (LOBATO, 2007, p. 12).
o obstante as condições adversas de vida, o acuamento dessas pessoas e sua
simplicidade, a criação musical não parou. Aquela gente sofrida continuava cantando suas
rotinas e suas crenças.
Admirador dessa música e sua cultura, o jornalista Cornélio Pires desempenhou papel
muito importante para a história da música caipira, pois acreditava que aquelas canções não
poderiam ficar restritas ao povo que as produzia e investiu nelas. Sendo assim, em 1929
gravou os primeiros discos do gênero, em 78 rotações, com canções, anedotas e desafios de
vários artistas reunidos por ele. Foram 6 discos diferentes, produzidos em maio daquele ano,
com prensagem audaciosa de 5 mil cópias cada, totalizando 30 mil exemplares que apenas ele
pode vender ou distribuir. As primeiras gravações assinalam o início da produção de músicas
caipiras com intuitos comerciais, sendo aquela data considerada o ano de seu nascimento.
As cidades do interior paulista foram as precursoras do estilo, sobretudo o chamado
triângulo da música caipira, composto pelas cidades de Piracicaba, Sorocaba e Botucatu.
Também cidades do interior mineiro, goiano e mato grossense se destacavam pelas produções
musicais e pela ascensão de artistas cujo principal atributo era a potência das vozes (Caçula e
Mariano, Zico Dias e Sorocabinha, das primeiras gravações) e a habilidade de pontear a viola,
instrumento típico da música sertaneja de raiz
34
. Toadas e pontilhados de viola começaram a
surgir e a ganhar mais admiradores, os violeiros se apresentavam em circos, feiras
agropecuárias, eventos de pequenas cidades e no rádio. As potentes vozes ganharam as
33
Canção declamada na tradicional Folia de reis de Patrimônio do Rio do Peixe, distrito do município de Prata
- MG. Observou-se a notação da letra escrita pelo contramestre num pedaço amarelado de papel, com essa
exata grafia. A folia é promovida anualmente no decorrer do mês de janeiro, a tradição é mantida pela
companhia de folia e patrocinada pelos moradores da região.
34
A música caipira (ou moda de viola, ou música sertaneja de raiz) é denominada pela característica de
apresentar, original e essencialmente, a combinação acústica de um dueto de vozes em terças e ponteados,
rasqueados e emboladas de viola, também catiras e sons corporais, sem a presença de instrumentos
eletrônicos (VILELA, 2011).
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estradas e algumas emissoras, difundindo a cultura caipira e, devagar, conquistando
consideração dentro do que se aceitava por música naquela época e tornando-se,
posteriormente, o gênero musical mais popular no Brasil.
Dos anos 20 e 30, início e projeção do estilo musical, aos anos 50, sua consolidação e
período de maior sucesso, as modas sertanejas reinaram nas rádios e eram apreciadas em
todos os extratos sociais. No entanto, o êxodo rural e o crescimento das grandes cidades
trouxeram avanços tecnológicos e aceleração do ritmo de vida das pessoas, aumento do
consumo e das necessidades de luxo. Tais padrões, claramente opostos à singeleza e ao
compasso lento do homem do campo, contribuíram para a estigmatização e formação de
preconceitos sobre essas canções que as relegaram a um patamar depreciativo, transferindo
seu lugar de destaque nas salas das casas para os quintais, como relata a jornalista Rosa
Nepomuceno (1999). Na década de 60 o cenário nacional rotulava a música caipira como a
arte do atraso e, desde então, ainda carrega resquícios de ser uma prática marginalizada e tida
como menor.
No final dos anos 70 do século XX a viola começou a figurar nos instrumentos das
composições da bossa nova, gênero que imperava nas rádios FM, enquanto a música
sertaneja, a esta altura, frequentava apenas as frequências AM. Musicistas como Renato
Andrade, Geraldo Ribeiro e Theodoro Nogueira, alçaram a viola ao patamar da música erudita
clássica levando-a ao Teatro Municipal de São Paulo, momento em que Ribeiro registrara seu
“Bach na Viola Brasileira”. No entanto, a modernidade urgia e não voltava seus olhos para o
antigo, seja ele o popular ou o erudito, e a iniciativa foi apreciada somente pelos poucos que
se agradaram da mistura. O sertanejo renasceu verdadeiramente para o cenário nacional
depois que, em 1973, Renato Teixeira apresentou a Elis Regina sua composição Romaria, e a
voz feminina mais aclamada da época levou o país todo a cantar “sou caipirapirapora”
(PIUNTI, 2011).
Fora um momento de reacendimento dos ânimos dos cantores e compositores de raiz,
mas também de tensão. Buscando ascensão social e dispostos a atender às demandas das
gravadoras por modernização, muitas duplas incorporaram modismos da cidade, tanto nas
canções com novas temáticas e a integração de instrumentos eletrônicos, como guitarras,
teclados e baterias, e de estilos diversos como o rock e o country americano, quanto nas
vestimentas, acessórios e presença de palco. O que ocorreu, por exemplo, com Léo Canhoto e
Robertinho, que mudaram seu estilo musical e visual após estreia na gravadora RCA, em
1969, aparecendo de motos e guitarras e trajando roupas misto de boiadeiro com roqueiro
(NEPOMUCENO, 1999).
Na contramão das intenções de Renato Teixeira e dos tradicionais caipiras, que
desejavam recuperar o protagonismo da música de raiz, de trazer a poesia do matuto para
seduzir o homem da cidade, os novos sertanejos se adaptavam à demanda comercial. Assim,
os cantores e compositores de raiz “picavam a mula pro mato
35
”, enquanto a nova corrente do
sertanejo encontrava seu lugar ao sol no cenário musical nacional. Assim deu-se a maior cisão
dentro do gênero, separando-o nas vertentes: música caipira e música sertaneja.
o obstante a cisão e, apesar de o gênero sertanejo ter sido o filão de sucesso e
visibilidade nacional e internacional, a música caipira permaneceu em seu lugar, tanto
regionalmente localizada quanto com relação aos temas, valores e modo de vida cantados.
Em março de 1980 surge o programa Viola minha viola, na TV Cultura, uma tentativa
de reafirmação e valorização das práticas sociais caipiras para um público que ainda era
cativo do ritmo. Os criadores do programa foram o radialista Moraes Sarmento e o
compositor Nonô Basílio, posteriormente ganhou a presença da cantora, atriz, compositora e
pesquisadora Inezita Barroso. 35 anos no ar, ininterruptamente, o Viola minha viola é o
35
Picar a mula pro mato é uma expressão caipira que significa sair de ou ir a algum lugar dando esporadas na
mula para ir depressa.
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mais antigo programa musical da TV brasileira e divulga as variações culturais decorrentes da
música caipira, tais como os cateretês
36
, rasqueados, catiras, recortados e embolados, tendo
sido o palco de grupos folclóricos regionais e o berço de grandes nomes da música sertaneja
brasileira. Com o sucesso do programa e da divulgação da cultura caipira, na década de 90 a
viola voltou ao centro da cena cultural e mais atrações regionais foram criadas para divulgar
esse trabalho, como exemplo: o Programa Brasil Caipira, no ar desde 1990 (RIBEIRO, 2015).
Na recente produção musical do gênero sertanejo, percebe-se um localizado
movimento de reafirmação da música de raiz, como é possível notar em algumas canções de
duplas expoentes na mídia, embora não deixem os recursos tecnológicos de que dispõem,
talvez resquícios longínquos de sua origem. No entanto, caminhando a léguas de distância
desse gênero hoje midiaticamente posicionado, está a música caipira, em franca produção,
muitas ainda aos moldes naturais e longe dos holofotes. Surgem novas composições
resgatando a mesma temática do início, exaltando o ritmo de vida do homem do campo,
pregando seus valores e costumes, contando seus causos e histórias, músicas que exprimem
elementos característicos tais como expressões orais e referências a locais e a hábitos que
não existem ou que se restringem a regiões e épocas determinadas (como as Folias de Reis).
Esbrangente, CD gravado em 2002 por Roberto Corrêa, Badia Medeiros e Paulo
Freire (CORRÊA, 2002), apresenta uma mostra significativa do trabalho que vem sendo
empenhado por músicos envolvidos com a cultura de raiz, são acústicos de viola e de viola de
cocho
37
, sobretudo em afinações rio abaixo e rio acima
38
, composições novas e antigas,
cateretês, causos, contos e os certeiros desafios de Badia, mestre catireiro.
A gente vivida que labuta com essa música relata que suas recordações pessoais,
sobretudo as de infância, cruzam-se com as temáticas e com as várias histórias retratadas nas
composições caipiras. Essas pessoas vivenciaram grande parte dos costumes nelas cantados e
sabem, com as lembranças presentificadas ao ouvi-las, como transcorreu sua infância, como
eram as festas nas fazendas, as folias de reis, as celebrações de semeaduras e colheitas e como
a música significava mais que festejos, marcava em narrativas, muitas vezes longas e
complexas, os costumes das pessoas e as histórias de suas regiões. Elas contam ainda que a
música era orgulho para os homens do campo, que inventavam terços e novenas para fazer
festejos regados a danças, apresentações de violeiros, catiras e desafios de moda de viola.
Relatam como a alimentação era farta a partir da produção de subsistência, dos pés de frutas
típicos de cada localidade, dos alimentos característicos como doces de casca e em calda,
compotas, carnes de lata. Lembram-se de costumes perdidos pelo tempo, como o das
mulheres amamentarem o filho da vizinha de fazenda, cujo leite havia secado, ou o de receber
uma nova família de colonos
39
com um prato de comida. Trazem vivas na memória as
lembranças daquele tempo que afloram ao escutar as modas de viola. Muitas vezes trazem
presentes em seus hábitos os feitios caipiras, com detalhes do modo de falar e expressões
(angu de caroço, ponhá reparo, ovo atravessado, malemá), de palavras que designam objetos
(cueiro, carro de boi, tuia, arapuca, tapera) e medidas de peso, distância e tempo às quais não
se tem mais notação, por terem caído em desuso (légua, braça, grosa, fardo). Algumas letras
mais antigas apresentam um vocabulário regional tão específico que, se não for catalogado,
36
Cateretês e catiras são coreografias que acompanham e, muitas vezes, desafiam a viola. As origens dessa
dança foram apontadas por Mario de Andrade em seus estudos sobre a história da música popular brasileira.
(ANDRADE, 1980).
37
A viola de cocho é tipicamente fabricada nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, tem como
principal característica ser esculpida inteiriça do tronco de uma árvore, o que lhe proporciona um som
característico (VILELA, 2011).
38
As afinações de viola são muitas e com variações, as tradicionais são: rio acima, rio abaixo, cebolinha,
cebolão e cana verde (VILELA, 2011).
39
Colonos era o nome que se dava aos trabalhadores de uma terra que não era própria, mas prestavam serviço
ao dono da fazenda em troca do cultivo de uma parte da área para sua subsistência (CANDIDO, 2010).
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podem perder-se e ficar sem equivalência para as próximas gerações.
O trabalho que se vem empenhando no atual universo da música caipira brasileira visa
recuperar uma realidade, da riqueza dessa cultura, de seus costumes, da peculiaridade de sua
constituição, e é também um dever de memória
40
, de lutar contra a força do esquecimento.
Aparentemente, tais ações são empreendidas por pequenos grupos ou indivíduos e
localizadas nas cidades do interior. No entanto, em maio de 2017, em Belo Horizonte,
realizou-se o seminário Violas: o fazer e o tocar em Minas Gerais, no qual reuniu-se grande
diversidade de mestres violeiros, tocadores e fazedores de viola, luthiers e também
pesquisadores, catireiros, mestres de folia ou meros admiradores do instrumento e das práticas
culturais que o envolvem. O objetivo foi promover uma imersão na história e no universo
cultural e simbólico da viola no Brasil, mas sobretudo em Minas Gerais, buscando
compreender as relações deste instrumento com as vivências coletivas, religiosas e identitárias
do povo mineiro. O evento integrou as ões de pesquisa do Instituto Estadual do Patrimônio
Histórico e Artístico de Minas Gerais Iepha para reconhecimento dos saberes e formas de
expressões ligadas à viola como patrimônio cultural imaterial do estado.
41
Por meio de detalhados cadastros do maior número possível de violeiros e artesãos da
viola em atividade na região, o Iepha conseguiu, em junho de 2018, tornar o Registro dos
Saberes, Linguagens e Expressões Musicais da Viola em Minas Gerais, um patrimônio
cultural imaterial do Estado, tamanha a importância de seus valores históricos, socioculturais
e identitário para Minas. A riqueza cultural da viola deve-se por estar presente em expressões
artísticas como a Folia, o Congado, a Roda de Viola, a Dança de São Gonçalo, a Catira do
Triângulo e Sul de Minas, o Batuque e o Lundu, presentes na região Norte, além de ser o
principal instrumento que simboliza e identifica a música caipira.
Na esteira das vivências desse seminário, busquemos explorar alguns dos temas
apresentados à luz dos estudos sobre memória e identidade social a partir das abordagens de
Maurice Halbwachs, Paul Ricoeur e Michael Pollak.
1. Identidade social a partir de lembranças
No documentário Os Caipiras (2001) da TV Cultura, Antonio Candido fala da extensa
pesquisa que empreendeu sobre o caipira em seu Os parceiros do Rio Bonito. Num
determinado ponto, o crítico afirma que aquelas figuras que pesquisou e seu modo de vida
estão extintos, não mais existem daquela forma que presenciou, devido ao avanço do tempo e
advento da modernidade, mesmo no ambiente rural.
Podemos afirmar, então, que os caipiras que ainda existem são ou espécies de
resistentes que mantém sua cultura viva, ainda que modificada, ou descendentes que
empreendem a tarefa de rememorar e garantir a permanência dessa cultura, como um dever de
memória?
O Seminário Violas, referido acima, foi um evento em que pude confirmar tais
suspeitas. Dezenas de violeiros, fazedores de violas, mestres foliões e admiradores da cultura
caipira se encontraram naqueles dias para compartilhar seu modo de construir e de tocar o
instrumento, para compreender a origem da viola no Brasil e sua importância na cultura
40
Dever de memória, termo cunhado por Ricoeur, remete à necessidade de não se deixar esquecer algo, algum
acontecimento, e está, portanto, submetido à problemática do esquecimento e dos usos e abusos da memória,
relacionando-se de forma complicada com a história, com a memória coletiva e com o perdão. O dever de
não esquecer é normalmente associado às tragédias, mas, neste caso, a valores culturais positivos que não se
quer deixarem perder. (RICOEUR, 2007)
41
Em ambiente digital o evento criou a página https://www.facebook.com/events/bdmg-
cultural/semin%C3%A1rio-violas-o-fazer-e-o-tocar-em-minas-gerais-16-e-17-maio/249008778898621/,
onde constam alguns registros em vídeo.
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caipira, para trazer ao palco e cultuar o saber ancestral dos mestres mais antigos e ainda vivos,
para trazer ao palco também a nova geração de violeiros que, mesmo nascidos em metrópoles,
admiram, identificam-se, celebram e divulgam o modo de vida caipira.
Foram atentamente ouvidos e fervorosamente aplaudidos Seu Domingos de São
Francisco e Odorino Siqueira, mestres de folia, bem como Moizés Montes e Virgílio Martins,
fazedores de viola, e também Vergílio Lima, luthier
42
, todos já idosos, cada qual contando sua
história de vida com a viola e sua maneira de lidar com esse instrumento. Várias pessoas da
plateia comoveram-se com essas falas e ouvi de um violeiro emocionado: “São os nossos
mais antigos mestres ainda vivos, pode ser a última vez que os vimos tocar”.
Seu Domingos contou como que, desde criança, a folia foi parte de sua vida, como
esse festejo guia sua memória e estruturou sua rotina e de sua família. Emocionado, relatou
uma lembrança de quando pequenino, noite de lua clara, acordou assustado com o barulho e
sentiu pela primeira vez aquele som estrondoso dentro do peito, depois um outro mais
estridente e uma melodia cadenciada, cantada por uma gente simples, mas bem adornada, que
se vinha chegando à sua casa. Conta que não compreendia o que se passava, mas via que as
pessoas estavam muito certas do que faziam e o som era inebriante e lhe tomava todo o corpo.
Somente depois, quando carregava as bandeiras dos santos, Seu Domingos foi entendendo
a composição e o papel de cada um naquela orquestra, os tambores, a rabeca, as estampas, os
palhaços, os bastiões, o contramestre, o festeiro, o próprio motivo da festa, tudo foi se
encaixando na medida em que ganhava sentido para aquele que foi se criando um caipira.
Marimbondo Chapéu, nome artístico do rabequeiro Ivanildo Silva, de 36 anos, levou
ao palco seu pai, Antônio Preto, um renomado folião do Vale do Jequitinhonha, para contar
como os dois constroem uma viola. O causo começou pela escolha do lugar onde procurar a
madeira certa, um local de difícil acesso, mas onde poderiam encontrar uma boa madeira. As
dificuldades na retirada da tora, o transporte da mesma feito numa motocicleta, as várias
quedas e paradas que tiveram que fazer, tudo foi relatado em detalhes cuja plateia absorvia
com compreensão justa e algumas risadas, como todo bom causo exige. Do tratamento dado à
tora para que se tornasse uma caixa acústica, à escolha de madeiras específicas para cada
parte da rabeca ou da viola, e aos entalhes finais e afinação, tudo em detalhes caprichosos
contados por um e arrematado por outro, o velho e o novo, numa fraternidade de
conhecimentos tão respeitado por todos ali que pude compreender quando Marimbondo,
emocionado, fez reverência a quem o ensinou tal arte, Zé Coco do Riachão
43
, fechando sua
parte no seminário tocando com sua rabeca “Não me deixe só”, composição caprichosa do
mestre.
Sendo a memória algo imaterial e representação do passado feita no momento
presente, como nos afirma Halbwachs (2006), sob esse aspecto o seminário foi um evento de
partilha de memória, onde velhos violeiros e mestres contaram suas histórias e puderam
confirmar uns aos outros a comunhão de seus hábitos, de suas manifestações culturais e de
seu modo de vida que orgulhosamente cantam, atestando sua existência, talvez até sua
resistência, e reafirmando seus valores e sua cultura, essencialmente oral.
42
Cabe ressaltar a distinção que os próprios caipiras fazem entre os luthiers e os fazedores de viola, estes são
pessoas que aprenderam com antigos mestres violeiros e de forma rústica a produzir seus próprios
instrumentos, de acordo com as ferramentas e o material de que dispõem. Aqueles são artesãos, normalmente
pessoas que estudaram a construção dos instrumentos como a uma arte. Nesse universo, ambos nutrem pelo
trabalho um do outro profundo respeito e reverência.
43
José dos Reis Barbosa dos Santos, nascido numa folia de reis em janeiro de 1912, falecido em 1998, é
conhecido por Zé Coco do Riachão, mas ganhou fama nacional e internacional depois de gravar suas músicas
em disco, o que ocorreu somente em 1980 por obra de Téo Azevedo, violeiro e produtor cultural. no
primeiro disco Coco se destacou pela autenticidade, sendo aclamado por críticos de renome como José
Ramos Tinhorão, que lhe dedicou calorosos elogios. Desde então, além de ser a sumidade da rabeca e da
viola caipira, ele é também conhecido como o “Beethoven do sertão” (NEPOMUCENO, 1999, p. 43).
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No entanto, havia muita gente jovem, tanto na plateia entre os admiradores e violeiros
quanto no palco entre os convidados palestrantes, pessoas que provavelmente nasceram nas
cidades e que, pela faixa etária, mesmo que nascidos no campo, não presenciaram o modo de
vida caipira de que trata as músicas. Como compreender a comunhão que manifestaram com
os causos e temas das modas dos velhos violeiros? Como explicar a autenticidade da música
caipira de uma violeira e compositora de 20 anos de idade, como é o caso de Letícia Leal? O
que explica a dedicação de Ivan Vilela à pesquisa da música caipira, um professor,
compositor e violeiro de apenas 55 anos? Porque os jovens netos do Sr. José Maria, do Grupo
de Catira Pedro Pedrinho, se interessam por essa dança folclórica e treinam diariamente,
participam de eventos e mantém aulas para crianças no grupo numeroso de catira em
Martinho Campos?
Uma justificativa é que, ainda segundo Halbwachs, a memória é moldada pelas
influências sociais e coletivas a que o ser é submetido. Sendo assim, buscando-se conhecer a
história de vida dessas pessoas verifica-se que alguém de seu convívio, alguém próximo ou
mesmo uma comunidade, foi responsável por apresentar a elas e inseri-las nesse universo
caipira. No entanto, apenas o conhecimento ou convívio com uma cultura não nos torna parte
dela, é preciso haver algo além, uma identificação mais profunda e uma prática que torne o
ser verdadeiramente a ela integrado.
Essa identificação profunda pode ser compreendida pelos três sujeitos de atribuição da
lembrança: eu, os coletivos, os próximos (RICOEUR, 2007). Segundo o filósofo
fenomenologista, além das lembranças que a própria pessoa possui ou elabora, os coletivos, o
grupo de pertencimento, também é um atribuidor de lembranças, visto que pode confirmar ou
corrigir algo de que se lembra e foi partilhado, bem como o grupo pode trazer à tona uma
lembrança de que o sujeito não tem clareza mas que bebe nessa fonte para completar a sua
própria. Os próximos, aqueles que atestam nossa existência, nos atribuem lembranças como
espécies de testemunhas e são os responsáveis por nos inserir num contexto social, daí a
relevância de sua memória para confirmar a minha. Mesmo que a lembrança de um
acontecimento seja intransferível de um ser para o outro, pois cada um que se lembra o faz
sob o seu ponto de vista, o “lembrar-se de algo é lembrar-se de si” (RICOEUR, 2007). Sendo
assim, e voltando às questões colocadas anteriormente, a constituição de um sujeito, seja
material ou social, passa necessariamente por suas origens, portanto, a atribuição de
lembranças de um próximo é também fator de constituição de quem sou eu e busco em suas
lembranças algo em que eu possa me identificar.
O jovem que está inserido na cultura caipira, quando não é nativo do ambiente rural, o
faz porque algo nela lembra-o de si próprio, mesmo que essa lembrança seja, na verdade, de
alguém próximo, seja de um acontecimento vivido “por tabela” (POLLAK, 1992) por alguém
com quem o laço afetivo foi estruturante para a formação de seu caráter. Neste quesito a
cultura oral ocupa lugar de destaque, pois é passada de geração a geração, olhos nos olhos, o
que evidencia sua natureza afetiva. Essa afetividade da cultura oral creio ser o que constitui a
base comum relatada por Halbwachs.
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS apud POLLAK, 1989,
p. 4).
A cultura caipira, que é impressa nas músicas pelos instrumentos utilizados, pelo teor
das composições, pelas manifestações culturais que as rodeiam, pelos temas que canta, pode
ser então considerada uma memória coletiva? Certo que sim, se considerarmos a concepção
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desse sociólogo (HALBWACHS, 2006) de que a força dos diferentes pontos de referência
que estruturam nossa memória, como os costumes, o folclore, a música e até mesmo as
tradições culinárias, é o que a insere na memória da coletividade. Mais ainda, a música caipira
é, certamente, um elemento de coesão social em que sua adesão se dá por afetividade,
formando-se em torno dela o que Halbwachs nomeia de “comunidade afetiva”, sendo esta a
base comum mencionada acima e que compõe a identidade social que é o ser caipira.
O interesse por estudar essa cultura oral e a paixão que nutro pela sica caipira
surgiu por atribuição de lembranças dos meus próximos, sobretudo meu pai e minha avó
materna. Não fui criada na roça, não vivenciei a lida no campo nem suas típicas manifestações
culturais, mas meus próximos sim, tive apenas algumas experiências em fazendas de parentes,
que foram suficientes para atestar a legitimidade de seus relatos. Quando ouço suas
recordações de infância e mocidade e vejo a emoção que sentem ao ouvirem as modas que
cantam seu antigo modo de vida, é como se minhas também fossem essas lembranças, eu as
elaboro mentalmente tal qual me foram descritas várias e várias vezes. Obviamente que suas
lembranças não foram transferidas a mim, tal a impossibilidade de que trata Ricoeur,
mencionada acima. Mas, estando integrada a esse universo por intermédio das lembranças dos
meus próximos, tendo recebido deles seus valores, suas crenças, tendo apreendido seu modo
de vida a ponto de reproduzi-lo muitas vezes naturalmente, identifico-me com a identidade
social caipira. É claro também que, inserida num contexto de metrópole e de ritmo de vida
acelerado, num ambiente extremamente diverso do rural, essa identificação fica reservada ao
campo afetivo, das lembranças, do que propriamente ao material, mas aflora como uma
erupção quando meus ouvidos captam um ponteado de viola e o peito aperta de saudade de
algo que não vivi, mas que meus próximos queridos comigo partilharam.
Buscando respostas para meus questionamentos iniciais e do porquê sinto saudade de
algo que não vivi, numa conversa com o violeiro Wilson Dias tive o privilégio de uma
epifania a partir de uma frase sua: “Tive a ideia de fazer Mucuta
44
ao me lembrar claramente
de um dia em que, eu menino, me acordei de madrugada com a folia chegando em casa.
Foram imagens sonoras, eu me lembrava de alguma coisa e uma melodia me vinha.”
Consternada pelo que significava o termo imagens sonoras, me lembrava dos estudos
que fizera sobre as definições de lembrança pura e lembrança imagem de Bergson,
problematizadas por Ricoeur pelo que nomeou de forma correspondente de lembrança certa e
lembrança do tempo passado, respectivamente. Afirma Bergson que “uma lembrança, à
medida que se atualiza, provavelmente tende a viver numa imagem, […]” (BERGSON apud
RICOEUR, 2007, p. 68). No caso de Wilson a lembrança vive numa imagem com som, com
melodia, e essa melodia traduz algo. Essa representação da lembrança, sem dúvidas, é
interessante.
Posteriormente, ao ouvir o álbum completo lendo as histórias do encarte e, mais
especificamente, a faixa que leva o mesmo nome, Mucuta, pude compreender melhor do que
o violeiro falava. A melodia é chorosa, mas firme, com um ponteado de viola em tom de
lamento, rica em harmonia e complexidade de acordes. O sentido da melodia se completa com
a narrativa de que aquela era uma lembrança da época de Wilson moleque, quando morava
num sítio com a família numerosa e de poucos recursos, e duas meninas vizinhas vinham
sempre na “hora do comer”. A mesa era regrada, mas sua mãe não deixava as meninas sem
comida e ainda lhes dava o que levar aos demais.
Era a hora da mucuta, um saco com punhadinhos de arroz, feijão, farinha
Wilson as acompanhava pelo caminho, observando o cachorro que tropeçava
ao andar. Só depois de homem feito, compreendeu completamente o gesto da
44
Mucuta é um álbum de música instrumental autoral, as tais imagens sonoras, e seu encarte narra as histórias,
lugares e pessoas que surgiram nas lembranças de Wilson (DIAS, 2011).
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mãe e compôs Mucuta em ação de graças. (DIAS, 2011, p. 7).
Uma poesia em forma de canção que surge de uma lembrança do tempo passado em
imagem sonora. As outras faixas do álbum dialogam harmonicamente com as narrativas
equivalentes e fazem muito sentido para mim, que identifico aquelas práticas sociais com as
lembranças que meus próximos partilharam. inúmeros exemplos de composições que
representam um momento passado e que, apesar de serem recentes, integram também essa
memória coletiva da cultura caipira.
ainda um diálogo vivo entre essa música que é parte de uma cultura oral e uma
parcela de nossa literatura que estabeleceu suas bases em narrativas orais regionais, como é o
caso envolvendo Guimarães Rosa. Téo Azevedo, violeiro e produtor cultural mencionado
aqui por ter descoberto Zé Coco do Riachão, conta que sempre ouvira que seu mundo musical
era o mundo de Guimarães, até que resolveu conhecer a obra do escritor e percebeu que a
identificação era real, o universo do violeiro e o do escritor era o mesmo, o sertão das gerais e
o modo de vida catrumano
45
. Único a obter autorização da família, Téo é o violeiro que
musicou versos de Guimarães Rosa extraídos de suas mais diversas obras, Grande Sertão,
Veredas; Sagarana; Ave palavra; Manuelzão e Miguilin; Urubuquaquá no Pinhém, dentre
outras, uma trajetória contada em detalhes no encarte do álbum Guimarães Rosa Mineirada
Roseana, “Comecei a gostar de Guimarães Rosa, mesmo sem entender direito […] fui
aprendendo aos poucos. […] a Thaís [de Almeida Dias, escritora, poetisa e produtora] me
disse uma coisa que nunca mais saiu da minha cabeça: 'Você é o único no Brasil que tem
simplicidade musical para musicar os poemas de Guimarães Rosa com o sabor e o cheiro do
Cerrado do Grande Sertão Veredas!'” (AZEVEDO, 2015). A relação da música caipira com a
literatura é muito rica, objeto para um outro ensaio.
Percorrida essa investigação e almejando ter elucidado algumas dúvidas, coloco-me,
por fim, diante de um último questionamento que retoma o início dessa jornada: a afirmação
de Antônio Candido, de que o caipira que pesquisou e seu modo de vida estão extintos,
pode ser considerada completamente correta? Diante do que aqui foi relatado não podemos
pensar que o caipira resiste? Ou que uma diferente configuração do ser caipira, mas que
existem ainda vivos alguns antigos resistentes e que eles conseguiram transmitir seus valores
e tradições aos descendentes que, por sua vez, embora inseridos no universo urbano,
re(a)presentam as práticas sociais caipiras do passado por serem elas constituintes de uma
identidade social afetiva e de uma memória coletiva para si e, mais, projetam-nas para o
futuro como um dever de memória? Acredito que as respostas sejam afirmativas e me
empenharei num diálogo com o mestre Candido. O caipira de hoje não está mais se isolando,
está buscando o mundo com o olhar do violeiro, o olhar de encantamento pela natureza, pela
riqueza de suas raízes.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Pequena história da música. 8. ed. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1980.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
45
Termo muito utilizado por Guimarães Rosa, sobretudo em Grande Sertão: Veredas, para designar aquele
caipira mais rudimentar, mais rústico.
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LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora Globo, 2007.
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed. 34, 1999.
PIUNTI, André. Música sertaneja uma paixão brasileira. Vol. II. São Paulo: Ed. Talismã,
2011.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, vol. 5, nº 10, p. 200
212. Rio de Janeiro, 1992.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, vol.2, 3, p.
3 15. Rio de Janeiro, 1989.
RIBEIRO, José Hamilton. Música caipira: as 270 melhores modas. 2. ed. Santos: Realejo
Edições, 2015.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
VILELA, Ivan. Cantando a própria história. Tese (Doutorado em Psicologia) Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 351. 2011.
Referências Audiovisuais
AZEVEDO, Téo & Convidados. Guimarães Rosa Mineirada Roseana. Montes Claros:
Independente, 2015.
CORRÊA, Roberto; FREIRE, Paulo; MEDEIROS, Badia. Esbrangente. Brasília: Zen Studio,
2002. 1 CD.
DIAS, Wilson. Mucuta. Belo Horizonte: Estúdio Rio Abaixo, 2011.
OS CAIPIRAS, por Antonio Candido. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Produção: Zita
Carvalhosa. Documentário, 20'08''. Brasil: TV Cultura e Arte, 2001. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=COgTtPtMaTc. Acesso em dezembro de 2017.
[Recebido: 20 jan. 2019 Aceito: 20 mar. 2019]
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NOS (DES)CAMINHOS DA LITERATURA INDÍGENA NO RIO GRANDE DO SUL:
NARRATIVAS E NARRADORES GUARANIS CONTEMPORÂNEOS
Daniela Gebelucha (UFRGS)
Walmir Pereira (UNISINOS)
RESUMO: Esse artigo aborda, introdutoriamente, a literatura indígena Guarani no Rio Grande do Sul,
enfocando suas narrativas e seus narradores. Nosso objetivo consiste em refletir sobre processos de
oralidade e escritura das narrativas nas coletividades em tela. O estudo encontra abrangência em
análises de natureza literária e interdisciplinar (Cf. MELIÀ, 1984; CLASTRES; 1990; PEREIRA,
2012; GRAÚNA, 2013). Nossos resultados parciais indicam a permanência das práticas narrativas
orais entre os Guarani contemporâneos, textualidade que expressa etnosaberes e cosmovisão milenares
dessas coletividades originárias. Na investigação em curso, consideramos que a literatura indígena
demanda ser compreendida como continuidade espaço temporal ameríndia e de valorização da
tradição ancestral, das histórias de contato e dos mitos do povo Guarani.
Palavras-chave: Oralidade. Literatura indígena. Guarani.
ABSTRACT: This article broaches the literature of the Guarani indigenous people in Rio Grande do
Sul, focusing on their narratives and narrators. Our objective is to reflect on the processes of orality
and writing of the narratives in these indigenous collectivities. The study is circumscribed in literary,
anthropological and historical analyzes (Cf. MELIÀ, 1984; CLASTRES, 1990; PEREIRA, 2012,
GRAÚNA, 2013). Our previous results indicate the permanence of the oral narrative practices among
the contemporary Guarani in Rio Grande do Sul, a textuality that expresses millenial ethnic knowledge
of these native indigenous collectives. In these terms, we conjecture that indigenous research demands
that indigenous literature be understood as a possibility of continuity of time and valorization of the
ancestral tradition, of the worldview and of the stories and myths of the Guarani people.
Keywords: Orality. Indigenous literature. Guarani.
1. Introdução
Desde o princípio do século XVI até o presentíssimo contemporâneo a literatura
brasileira e regional sul rio-grandense com caráter, especificamente, indígena esteve
obliterada ou sem reconhecimento nos campos acadêmico e sociocultural.
Na investigação em tela, nominamos a arte procedimental do saber fazer a
narratividade ameríndia de literatura indígena. No que respeita à conformação e difusão
literária da mesma, partimos do axioma segundo o qual a tradição e a cultura dos povos e
coletividades
46
indígenas são comunicadas de geração para geração por meio da oralidade
cultivando vivas as narrativas nativas. Contemporaneamente, circunscrevemos o processo
social histórico de constituição da literatura indígena à presença material e simbólica da
escrita que registra e documenta as memórias, os mitos, os valores, as tradições culturais e as
histórias de contato dos povos e coletividades indígenas originários da terra brasilis.
46
Segundo o Dicionário Aurélio, é a qualidade do coletivo; grupo de pessoas organizado para um mesmo fim; a
totalidade dos indivíduos de determinada área ou região, em um dado tempo, se considerado como todo.
(COLETIVIDADES..., 2011).
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Corroborando a assertiva anterior, no presente artigo
47
, a literatura indígena dialogará
com aportes e contributos antropológicos, históricos e literários, por meio da análise de duas
narrativas Guarani produzidas por indígenas no espaço social e territorial regional
problematizando as transformações e o pensar essa literatura frente à sua relação com a
oralidade e a escrita. Apresentaremos questionamentos que sulearão
48
o estudo em tela como,
por exemplo, qual é o espaço tempo ocupados nas/pelas narrativas, qual o contorno das
narrativas guarani, quem são os narradores dessas narrativas, para quem elas se destinam, qual
a natureza da relação entre a oralidade e a escrita no contexto sociocultural dos Guarani no
Rio Grande do Sul.
2. Acostamentos antropológicos, históricos e literários
Os estudos do antropólogo e linguista Bartomeu Melià (1984) indicam que os Guarani
se transladaram para o atual território do Rio Grande do Sul por volta do século V da era
cristã, assentando-se nas cercanias do rio Jacuí. Tradicionais agricultores do mato, ao mesmo
tempo praticavam atividades de caça e pesca. Em período histórico ulterior remataram a
ocupação das bacias dos rios Uruguai e Jacuí, e, posteriormente, Ijuí, Piratini, Ibicuí, Pardo e
Taquari. As famílias extensas e os coletivos guarani produziram vastos deslocamentos
territoriais, mormente nos períodos em que as áreas de terras inicialmente colonizadas pelos
nativos perderam condição agricultável e faunística de plena sustentabilidade. Entretanto não
entendemos adequada a caracterização do povo Guarani como população nômade, mas sim
como “grandes caminhadores”
49
que reconhecem seu território ancestral tradicional
movimentando-se continuamente em seu interior.
De acordo com Clastres (1990), era distante do mundo euro referenciado que a
verdadeira vida dos indígenas se desenrolava: nas florestas continuava a reinar os antigos
deuses, sendo a substância espiritual marca indelével dos Guarani. Em sua perspectiva, caso o
ancoradouro religioso submergisse, a sociedade desmoronaria, pois é na fé que encontramos o
ethos desse povo indígena, reanimando-os a um espírito de resistência.
Para Rodrigues (2010)
50
, o século XVIII configurou momentos decisivos na história
dos povos indígenas e do Brasil Colônia. Um desses momentos foi a edição do Tratado de
Madri em 1750, pois, a partir de sua consecução, o então Continente de São Pedro tornou-se
palco da dizimação genocida de indígenas e das coletividades Guarani missioneiras em
confronto com os exércitos ibéricos na Guerra Guaranítica (1753-1756), com saldo brutal de
milhares de indígenas mortos.
A experienciação de existir e viver dos Guarani ao sul da América do Sul incide em
seu território de ocupação tradicional.
51
Segundo Meliá (2010), este povo indígena traz à baila
47
O presente artigo constitui um recorte da pesquisa realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso
intitulada “Nos (Des)Caminhos da Literatura Indígena Guarani no Rio Grande do Sul: Narrando ou
escrevendo...”
48
Sulear significa construir paradigmas alternativos em que o sul se coloca no centro da reinvenção da
emancipação social. (ADAMS, 2008, p. 397).
49
Em entrevista ao IHU On-line, Melià (2010) define os Guarani como “grandes caminhadores”, pois caminhar
é um “hábito que rememora a migração e também faz parte da vida espiritual do guarani”.
50
Aryon Dall'Igna Rodrigues (1925-2014) - linguista brasileiro.
51
De acordo com dados da SESAI (2015), existem aproximadamente 2.500 Guarani no RS, em sua maioria
pertencentes aos Mbya. O conjunto da população Guarani contemporânea do RS se reconhece como
descendente dos Guarani missioneiros, por se identificar com a experiência missioneira e (res)significar em
seus próprios termos a história das ruínas das reduções dos Sete Povos da Missões.
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uma concepção de território como o lugar em que o indígena e seu grupo familiar podem
viver seus costumes, tradições e o modo de ser Guarani:
[...] o guarani se refere ao seu território como ‘tekoha’. Pois bem, se o ‘teko’
é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o ‘tekoha’ é o lugar
e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser
guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem
‘tekoha’ não ‘teko’. O ‘tekoha’ ideal é um monte preservado e pouco
perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas
silvestres. [...]. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da
boa terra guarani. (MELIÀ, 2010, p. 1).
Na perspectiva difundida em Melià (2010), ‘tekoha’
52
e ‘teko’ conformam conceitos
indígenas interconectados; visto que o território e o modo de ser Guarani transcendem
gerações. Ademais, sem o território ficam inviabilizadas as condições materiais e simbólicas
de viver em culminância a milenar cultura Guarani. É na “tekoha” que as coletividades vivem
a plenitude da vida junto à natureza, cultivando as tradições e ensinamentos de seus
ancestrais. Melià (2010) assevera, também, que uma ‘tekoha’ não é um lugar qualquer, mas
um lugar escolhido pela intervenção dos espíritos que orientam o referente espiritual guarani,
isto é, o xamã (karaí e kunha karaí)).
Os xamãs e os narradores indígenas têm participação fundamental no que respeita à
existencialidade da literatura indígena, pois ensinamentos, tradições, mitos e as cosmovisões
ancestrais ameríndias são transmitidos de geração para geração por intermédio das narrativas
que são narradas e vivenciadas nas coletividades. Essa tradicionalidade espaço temporal
constitui o fio condutor da literatura contemporânea do povo indígena Guarani.
Em análise dos estudos realizados sobre a literatura indígena contemporânea Graúna
(2013)
53
pontua dois momentos singulares de manifestações literárias produzidas por autores
indígenas no Brasil: o clássico refere-se à tradição oral, ocorrendo no âmbito coletivo, que
permanece no tempo com as narrativas míticas e o contemporâneo referenciado à tradição
escrita individual e coletiva, por intermédio da poesia, da narração de histórias aportadas
nas narrativas míticas e na história processo, enfatizando o ponto de vista indígena.
Segundo Fernandes (2002)
54
, existem diferenças entre narradores e contadores de
história:
A diferença principal entre o contador de histórias e o narrador está no fato
de que o primeiro é um ator, que tem por objetivo principal a interpretação; o
segundo é um membro da comunidade narrativa que está compartilhando
experiências. Para o narrador, a potencialidade de materialização do texto é
menos significativa do que a mensagem que ele visa comunicar. [...].
(FERNANDES, 2002, p. 329.).
52
Melià faz uso do termo “tekoha” em ngua espanhola. No Brasil, “tekoá”. No texto, quando a expressão
“tekoha” for utilizada, famenção ao autor .
53
Graça Graúna Doutora em Teoria Literária (UFPE) e Pós-Doutora em Educação, Literatura e Direitos
Indígenas (UMESP). Escritora Indígena - descendente do povo Potiguara (RN).
54
Frederico Fernandes Doutor Teoria Literária (UNESP), Pesquisador de narrativas e oralidade pantaneira.
Professor na Universidade Estadual de Londrina UEL.
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Para Graúna (2013), em termos da literatura contemporânea e tratando-se de literatura
indígena, as definições e os conceitos formatados esbarram em um preconceito literário que
mascara polêmicas doutrinais. No cânone, essa literatura indígena sequer aparece enquanto
corpus narrativo dotado de singularidade, dado que está à margem e raros autores,
pesquisadores e críticos literários percebem sua existência. Mesmo com a falta de
reconhecimento, a autora reconhece que as vozes dos indígenas não se calam, eles, os sujeitos
narrativos indígenas, continuam a narrar e a escrever. Os textos literários de autoria indígena
tratam de problemas e perspectivas que tangenciam e reafirmam as identidades e as culturas
indígenas, pois o espaço da literatura indígena potencializa um lugar de um outro mundo
possível. Visto que a construção desse novo mundo se confronta com questões de natureza
identitaria, as quais devem ser discorridas, esclarecidas e confrontadas com os textos de não
indígenas.
De acordo com Graúna (2012), a palavra que o indígena proferiu ecoa e ecoará como
um sinal de permanência cultural e luta contra as subversões suscitadas pela cultura
dominante. Para a autora, uma das formas de permanência da tradição nas coletividades
indígenas sobrevém pela literatura, pois nela se reafirma o modo de ser, estar e viver no
mundo. Graça Graúna (2012) assevera que a literatura é, também, um instrumento para
refletir sobre os massacres cometidos pelos colonizadores contra os povos indígenas. Assume
assim, essa literatura indígena contemporânea, uma forma de cantar a paz e a esperança de
dias melhores para a população indígena e compartilhar as histórias de resistências porque a
palavra indígena sempre existiu, antes mesmo da colonização.
3. Ao encontro das narrativas indígenas
A rigor, para uma história ser narrada precisamos de um narrador; aquele que narra
deixa transparecer ao ouvinte, não somente o seu conhecimento, mas o que transcende ao seu
redor, não bastando unicamente a trama dos eventos e a história, necessitando sensibilizar
quem escuta.
De acordo com Pereira (2012), o pensamento e a ação social histórica Guarani,
manifestos em narrativas e tradições orais gravadas na memória coletiva ancestral, vem sendo
atualizados e (res)significadas nas práticas sociais presenteístas. Conforme o autor, por meio
das memórias e experiências vivenciais dos Guarani, etnosaberes milenares instaurados no
cotidiano ameríndio acabam (res)significados pela leitura contemporânea das narrativas e dos
mitos de origem indígena.
Com intuito de dialogar e perceber alguns aspectos presentes nas narrativas indígenas
Guarani no RS, recorremos ao corpus literário/científico específico que foi coletado por
integrantes de organização não governamental com reconhecida experiência de atuação junto
aos povos e coletividades indígenas
55
. Esse corpus contém narrativas que serviram como base
para a publicação do Caderno Semana dos Povos Indígenas 2009 Modo de Ser Guarani
Mbya Reko Regua, pela referida instituição.
56
Quem narra esses textos, relata aspectos relevantes das narrativas presentes nas aldeias
indígenas, conforme podemos observar na narrativa 01:
55
Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), instituição que pertence à Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
56
Duas dessas narrativas, na íntegra, foram incorporadas a este artigo que nos propiciaram algumas discussões
pertinentes: a narrativa 01 que foi narrada por um professor indígena da Tekoá Anhentegua (Aldeia
Verdadeira), Porto Alegre/RS e a narrativa 02 que foi narrada pelo referente político da Tekoá Andú Vera
(Aldeia Mato Preto) Erebango/RS
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Eu sou Jackson Alexandre Ramos. Moro na comunidade indígena Guarani
chamada Anhetengua. O nome da aldeia significa Aldeia Verdadeira. Ela
fica em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Quando, junto com meus
parentes, escolhemos o assunto educação para o caderno da Semana dos
Povos Indígenas, pensamos em contar para as crianças, os jovens e também
para os adultos, como o povo Guarani educa os seus filhos. Na nossa aldeia
valorizamos muito os conselhos que nossos avós nos dão. Todos os dias de
manhã os guaranis visitam os avôs e as avós da comunidade para ouvir os
conselhos deles. Nestes conselhos os idosos ensinam a viver de maneira
certa. Explicam que devemos fazer o bem para as pessoas. Pedem que todos
respeitem as outras pessoas. Aconselham a ajudar a cuidar dos idosos, por
exemplo. Esses conselhos são valores do povo Guarani. Em todas as aldeias
Guarani, ouvimos estes mesmos conselhos dos idosos. Eles estão
preocupados com o futuro do povo Guarani, por isto aconselham muito os
jovens. No futuro estes jovens serão idosos e irão aconselhar os jovens
também. Assim estes valores nunca irão se perder. As pessoas idosas da
nossa aldeia à noite contam histórias. Falam da sua juventude e de como
viviam e seguiam os conselhos dos seus avós. Contam, também, histórias de
animais para as crianças [kiringue] conhecerem e muitas delas para as
crianças rirem. Eu sou pai e quero muito que minha filha cresça no jeito de
ser Guarani. No momento em que ela entender as palavras, devo dar
conselhos a ela. Tenho as orientações guardadas, pois as recebi dos meus
avós. Para vocês, crianças e jovens, gostaria de dar um conselho: visitem
mais seus avós para ouvir as aprendizagens que eles têm para passar para
vocês e ouçam as histórias que eles têm para contar. Para os adultos, pais e
mães, gostaria de sugerir que usem mais tempo para conviver e aconselhar as
suas filhas e os seus filhos. Na educação das crianças e jovens é importante
ter tempo e paciência. Devemos dar conselhos todos os dias e também
acompanhar as crianças e os jovens para ver como fazem as coisas. Olhar
para a criança e acompanhá-la naquilo que faz. A criança e o jovem
precisam de liberdade para aprender, mas os adultos devem estar por perto
para orientar e aconselhar. Nós, o povo Guarani, por exemplo, usamos o
ambá para que a criança aprenda a caminhar. A sociedade não indígena
chama o ambá de andador (ver foto...). O ambá fica no pátio, fora de casa,
junto às árvores. É uma segurança para a criança, pois ela pode segurar-se
nele. Ao mesmo tempo, a criança não fica presa. Pode sair dali para outro
lugar. O pai e a mãe colocam a criança no ambá e observam ela. Mas ela
caminha sozinha e tem liberdade de sair e voltar dali. O ambá é como os
conselhos dos idosos, que ajudam os guaranis a viver e caminhar de maneira
certa. (NARRATIVA 01).
Segundo Fernandes (2002), “[...] o narrador é membro da comunidade narrativa que
está compartilhando experiência [...]” (FERNANDES, 2002, p. 329), diferente do contador
que é um ator. Destarte, avocamos como narrador o indígena guarani que imprime
comunicação às narrativas, neste caso o narrador 01 integrante da tekoá Anhetengua. O
Guarani narrador fez parte e, em muitos casos, viveu o que narrou ou narrou algo que lhe foi
transmitido por seus antepassados. Compreende-se que o narrador da narrativa 01 refere-se a
outros narradores quando menciona: as pessoas idosas da aldeia, avôs e avós. Essas pessoas
narram histórias para as kiringue Guarani e outros indígenas da aldeia, pela tradição oral,
evocando o modo de ser Guarani.
Identificamos, na narrativa 01, que as histórias narradas encerram temáticas variadas
como a vivência da juventude, os ensinamentos dos antepassados e de como o Guarani pode
viver o tekó. Quando o narrador relata “[...] nesses conselhos ensinam a viver de maneira
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certa [...].” Observamos que as narrativas persistentes nas tekoás, igualmente, têm caráter de
aconselhamento aos jovens e de orientação sobre a organização da vida e do modo de ser
Guarani, mediante exemplos narrados pelos mais velhos. Essas experiências em que o
narrador narra um fato tem o intuito de estabelecer relações com o que ele viveu e com sua
capacidade de transmitir, designadamente, um ensinamento sobre a cultura ancestral Guarani.
Quanto aos conselhos e ensinamentos narrados nas coletividades: [...] pedem que
todos respeitem as outras pessoas. Aconselham a ajudar cuidar dos idosos, [...].” Constata-se
que os conselhos dos mais velhos são muito importantes para os indígenas. Uma vez que
existe uma grande preocupação desses narradores mais velhos com relação ao respeito para
com as outras pessoas e com o cuidado para com as pessoas idosas, dado que estão
preocupados com o futuro dos indígenas e, por isso, aconselham os mais jovens e as crianças.
No fragmento: [...] eu sou pai e quero muito que minha filha cresça no jeito de ser Guarani.
No momento em que ela entender as palavras, devo dar conselhos a ela. Tenho as
orientações guardadas, pois as recebi dos meus avós [...]”, verificamos que o narrador dessa
narrativa se preocupa com o futuro de sua filha e manifesta o desejo de que ela cresça sendo
aconselhada e conhecendo os valores de sua cultura, assim como ele, que também, recebeu as
orientações de seus avós, aconselhará sua filha como uma forma de continuidade da tradição.
Também, podemos observar que a partir do momento do entendimento das palavras, a criança
deve ser orientada e aconselhada, ou seja, desde pequena, a criança estabelece a relação de
sentido e de orientação social e cultural por meio dos pais e avós.
A fim de apreender aspectos relacionados ao espaço-tempo e às características do
território tradicional Guarani, estabeleceremos algumas conexões possíveis a partir da
narrativa 02:
Meu nome em português é Joel Pereira, em guarani é Kuaray. Eu moro na
Aldeia de Mato Preto (Erebango/RS). Nós somos uma aldeia, onde moram
dezenove famílias, são todos guarani, são todos da mesma família. Eu vou
falar um pouco dessa importância do espaço guarani, para uma comunidade
guarani. A gente sempre está refletindo, que sem tekoa não existe teko. O
espaço para o guarani é muito importante, porque ali ele consegue construir
a vida do guarani, mostrando para as crianças, essas crianças vão ser o futuro
do povo guarani. Então, o espaço no passado não existia um espaço
delimitado. Não existia nenhum tipo de limite para o guarani viver. Hoje
existe esses limites de espaços. que prejudica, um pouco, a cultura. Esses
espaços são cercados, na maioria, pelas grandes cidades, pelas plantações de
soja. É onde existe a maior dificuldade, em se buscar, em viver esse tekoa.
Às vezes, as próprias crianças, a maioria sai fora, e trazem as coisas ruins
para dentro das aldeias. Então, por isso é importante que se tenha um espaço
para construir um bom tekoa, para continuar mostrando essa cultura que vem
desde o passado, desde os nossos avôs, que hoje está correndo risco, devido
aos pequenos espaços que se têm. Para se buscar onde tem espaço, para se
viver, construir o tekoá, é sempre através dos mais velhos. São os mais
velhos que lembram das histórias, que também, com certeza, através de
nhanderú. Na maioria das aldeias hoje tem o karaí, que é o rezador, ele
está sempre se comunicando com nhanderú. Ele sempre fala onde é o lugar
bom. Mesmo que o lugar for devastado, que não tem mais mata, que foi
devastado pelos colonos, mas ele acha que aquele lugar, quando for
construído o tekoá, ela pode voltar tudo aquilo que foi devastado. Por
exemplo, pode voltar a mata, pode voltar as nascentes de rio, os animais,
tudo isso ele prevê. Prevê através de histórias, de comunicação com
nhanderú. Para ter um espaço bom, um bom tekoá, onde as comunidades
possam viver o seu teko, precisa onde tenha uma boa mata, um bom rio,
nascentes e é isso. Para viver um bom teko precisa de tudo isso. E para ver
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onde é que tem que ser construído o tekoa, não é qualquer um que prevê, é
através de nhanderú, junto com os karaí, os mais velhos. [Qual é a relação de
um tekoa com outro tekoa? Vocês estão aqui no norte do RS, como fica a
relação de vocês com o pessoal que está próximo de Porto Alegre, Estrela
Velha, ... Como vocês vêem isso, é um único tekoa, ou são vários tekoá?
Qual a importância em se ter esses vários espaços para a comunidade
guarani? Em que isso ajuda nesse jeito, nessa identificação guarani, que
vocês constroem junto a esses espaços?] Essa relação, no passado já existiam
várias tekoa. Nessas várias tekoa existia, por exemplo: se houvesse alguma
aldeia hoje, na minha aldeia em Mato Preto, tem familiares que moram na
região de Porto Alegre; então existe esse contato direto. Como eu falei no
começo, não existia um certo limite, como existe hoje. Não existia esse
limite no passado. Então, as famílias faziam diretamente o contato, quando
precisam iam para outro tekoa. Assim, essa é uma das coisas muito
importantes terem vários tekoa. Não existe nenhuma diferença de um tekoa
para outro. Porque o modo de vida é tudo igual. Diferencia, um pouco, nessa
questão de subsistência, que algumas aldeias sobrevivem de artesanato, e
algumas aldeias, por exemplo, na minha aldeia, as famílias vivem mais de
plantação, plantas de milho tradicional, batata doce, e essas coisas. É isso.
(NARRATIVA 02).
Após a sua apresentação o narrador 02 começa afirmando que “[...] Nós somos uma
aldeia [...]. Essa afirmação permite-nos constatar que a cosmovisão do indígena está
conectada ao pensamento e a inclusão do ser indígena no coletivo. Na narrativa 02, a aldeia é
o espaço em que as famílias moram e vivem sua cultura e seus costumes. Esse espaço é o
lugar de reflexão no qual [...] a gente sempre está refletindo, que sem tekoa não existe
tekó[...]. Essa maneira de pensar do Guarani aparece reafirmada em Melià (2010), o qual
salienta que o território em que esses indígenas habitam é chamado de “tekoha” e o “teko” diz
respeito ao modo de ser, as leis, aos costumes e a cultura desse povo. No fragmento: “[...] o
espaço para o guarani é muito importante, porque ali ele consegue construir a vida do
guarani, mostrando para as crianças, essas crianças vão ser o futuro do povo guarani [...],”
o narrador da narrativa 02 enfatiza a importância de mostrar para as crianças os ensinamentos
e como se constitui a vida dos Guarani, pois as kiringue são o futuro desse povo originário.
Percebe-se que o narrador faz menção à história dos povos indígenas antes da chegada dos
portugueses ao Brasil, à medida que afirma, que “[...] no passado não existia um espaço
delimitado [...]”, e que na contemporaneidade existem balizes demarcatórias para essas
coletividades viverem.
Quando o narrador narra “[...] para ter um espaço bom, um bom tekoa, onde as
comunidades possam viver o seu teko, precisa onde tenha uma boa mata, um bom rio,
nascentes e é isso. Para viver um bom teko precisa de tudo isso[...]”, constatamos a
importância de um bom espaço, na concepção guarani de mundo, para construir o tekoá, pois
o teko porã - bem viver - está em risco devido a essas delimitações que tornam o território
Guarani acanhado para viver, em plenitude, a cultura. Para examinar esse espaço, o indígena
escuta os mais velhos que ao lembrar-se das histórias de seus antepassados, os orientam no
espaço tempo.
De acordo com o narrador 02, o espaço-tempo é sentido através da figura do Karaí,
que pela comunicação espiritual orienta o indígena sobre o melhor lugar de construir a sua
tekoá. Embora haja a preferência por lugares com matas e nascentes, o Guarani recebe o
aconselhamento junto ao rezador e aos mais velhos da aldeia sobre o melhor espaço para
desenvolver o tekó. É no território Guarani que as narrativas são narradas. Elas constituem
parte do modo de ser, de viver e de cultivar as tradições. Conforme Clastres (1990), os
indígenas contemporâneos esperam revelações de Nhanderú para anunciar os novos tempos
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em que o homem possa transcender a sua condição, em busca da Terra sem Mal. Pois, se os
Guarani não estão em marcha, é porque estão à escuta de seus deuses. É por essa escuta que
ocorre a orientação da escolha da tekoá pelo Karaí. O espaço da escolha da tekoá relaciona-se
com o tempo do Karaí. Referente espiritual que por meio do sonho recebe o comunicado de
Nhanderú sobre o melhor lugar espaço - para construir tempo - a tekoá. Esse espaço,
também, se relaciona com tempo, à medida que o sonho ou a comunicação espiritual é narrada
aos Guarani, nas manhãs, no pátio da aldeia. O espaço se conecta com o tempo quando o
Guarani com sua família se põe a caminhar em busca do tekoá e da construção do mesmo,
assim como, na vivência do tekó e dos ensinamentos de seus antepassados.
4. E o caminho: continua...
Após a consecução da investigação compreendemos melhor que a trajetória dos
indígenas Guarani do Rio Grande do Sul está marcada por momentos de genocídio como
visivelmente demonstrado no caso dos Guarani missioneiros. Concomitantemente, a
dizimação dos povos indígenas e a imposição da Língua Portuguesa e da tradição eurocêntrica
significou a extinção de muitas línguas indígenas e muitos saberes milenares, devido à morte
de muitos narradores indígenas. Contudo, as narrativas indígenas Guarani vêm resistindo no
tempo espaço à margem do mundo constituído por não indígenas.
Na análise empreendida, constatamos que nas coletividades Guarani no RS existe a
presença de narradores que narram suas histórias, seus mitos, seus saberes e seus conselhos
entoados por intermédio da oralidade. Constatamos também que esses narradores realizam o
ato de narrar as narrativas nas tekoás para as pessoas de suas comunidades diariamente. Os
indígenas narradores vivem nas tekoás, e têm a preocupação de disseminar a cultura
originária, a tradição de seus antepassados e as narrativas. Esses narradores, comumente, são
pessoas idosas, os avós e avôs guarani, dirigentes espirituais, professores, pais de crianças que
têm como objetivo principal transmitir os saberes, as tradições culturais, as histórias de
contato, os mitos de origem para as crianças e os mais jovens da aldeia. Nesse movimento e
tradição milenar de transmitir os conhecimentos e saberes predomina a oralidade. Embora
haja a predominância da tradição de oralidade, já existem narradores indígenas que têm
publicações, mesmo que pouco (re)conhecidas no RS. Por conseguinte, asseveramos que a
literatura indígena acontece nas coletividades Guarani do RS, comumente, pela oralidade.
Ressaltamos, ademais, que o diálogo sobre literatura indígena na contemporaneidade
requer uma mudança de paradigma que instaure nos sujeitos indígenas e não indígenas -
uma (res)significação do espaço tempo de cada um na história, reconhecendo os processos
de identidade/identificação, de alterização e da cultura do outro. Essa necessidade de mutação
vem ao encontro da comunicabilidade entre a oralidade (ancestral dos povos originários) e a
escrita (sistema ocidental moderno) estabelecida ao longo da processualidade social histórica,
considerando que a oralidade é uma forma de potencializar a escrita.
O processo de interação das narrativas nas coletividades Guarani estabelece sentido
mediante o respeito e reconhecimento à alteridade do outro e aos saberes que se movem e se
transformam no mundo por intermédio da palavra, seja ela, falada ou escrita, pois é através
dela que o modo de ser, estar e viver do Guarani transcende as gerações. É pela palavra que o
Guarani narra suas narrativas e as (re)significa em seu cotidiano, dado que desde criança
estabelece relações de sentido à medida que passa a compreendê-las.
Em relação à literatura indígena Guarani no espaço social e geográfico do RS
indagações permanecem, pois, os estudos em torno desse objeto permanecem incipientes.
Destacamos a dificuldade de encontrarmos bases de análises que discorram sobre literatura
indígena Guarani, dado que a literatura brasileira atual escasseia em autores que focalizam a
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produção literária indígena para que a literatura indígena no Brasil, e no RS, consiga ocupar
seu espaço de reconhecimento e de (re)afirmação dentro da história literária, e não a margem
do sistema euro referenciado instaurado por não indígenas.
Constatamos, enfim, que as narrativas indígenas, intituladas aqui como literatura
indígena, se diferenciam da perspectiva literária eurocêntrica, cabendo, assim o seguimento da
investigação, pois o caminho da literatura indígena Guarani entre nós continua... O processo
de (re)significação e (re)conhecimento da literatura indígena vem ao encontro do respeito a
cultura, a identidade e humanidade dos povos indígenas originários. Nesses termos, em
consonância com Melià: “Se os índios são tratados mais humanamente, somos nós que nos
tornamos mais humanos. ” (MELIÀ, 1984, p. 27).
REFERÊNCIAS
ADAMS, T. Sulear (verbete). In: STRECK, D.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (Org.).
Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 396-398.
CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: Mitos e cantos sagrados dos índios guarani. Campinas:
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VAQUEIROS: ENTRE LETRA, VOZ, RELAÇÕES DE GÊNERO
Fabíula Martins Ramalho (UnB)
André Luís Gomes(UnB)
RESUMO: Vaqueiros é uma tragédia contemporânea escrita em 1999 pelo dramaturgo, poeta, artista
plástico, professor e pesquisador cearense Oswald Barroso e apresenta as relações conflituosas
vivenciadas por uma família diante das mudanças dos arquétipos estabelecidos para os papéis do
homem e da mulher na sociedade patriarcal sertaneja. Para apresentar o conflito familiar, focado na
relação de gênero, a peça utiliza narrativas oriundas da tradição oral e personagens do reisado de
caretas, folguedo popular nordestino, dando ao texto teatral uma linguagem híbrida, metateatral
baseada na cultura popular. Desse modo, abordaremos questões que envolvem oralidade, escrita,
tradição e teatro para realizar uma análise, ainda que sucinta, de como a tradição oral e popular
nordestina é incorporada à peça, criada a partir das formas clássicas da tragédia grega, para representar
as vozes dissonantes das mudanças culturais e sociais que também ocorrem no sertão.
Palavras-chave: Teatro. Oralidade. Cultura popular. Relação de gênero.
ABSTRACT: Vaqueiros is a modern tragedy written in 1999 by the playwright, poet, artist, professor
and researcher Oswald Barroso, and presents the conflictual relations experienced by a family in the
face of the changes of the archetypes established for the roles of man and woman in society patriarchal
country. In order to present the family conflict, focused on the relationship of gender, the play uses
narratives from the oral tradition and characters from the reisado de caretas, folguedo popular
northeastern, giving the theatrical text a hybrid language based on popular culture. In this way, we will
approach issues involving orality, writing, tradition and theater to carry out a succinct analysis of how
the oral and popular Northeastern tradition is incorporated into the play Vaqueiros, created from the
classic forms of Greek tragedy, to represent the dissonant voices of cultural and social changes that
also occur in the hinterland.
Keywords: Theater. Orality. Popular culture. Gender relationship.
1. Introdução: conhecendo o dramaturgo Oswald Barroso
Na história da formação do teatro brasileiro, a dramaturgia nordestina é uma
importante colaboradora para ampliar o cânone e as ideias teatrais no Brasil. No entanto,
apesar da produção ativa de dramaturgos, de atores, de encenadores e de grupos, nos diversos
estados , foi somente com o processo de nacionalização e de modernização do teatro brasileiro
que a produção teatral nordestina ganhou visibilidade nacional com a encenação da peça Auto
da Compadecida, em 1957, de Ariano Suassuna, no Rio de Janeiro.
Assim, “com um choque de brasilidade” (MAGALDI, 2002, p. 237), abriu-se
caminhos para as diversas vertentes do teatro nordestino. Nessa perspectiva, encontra-se o
teatro do dramaturgo, poeta, artista plástico, professor e pesquisador Oswald Barroso.
Nascido em Fortaleza, no dia 23 de dezembro de 1947, Barroso sempre esteve comprometido
com a pesquisa sobre a cultura popular, suas fontes e desdobramentos, atuando ativamente no
cenário artístico-cultural cearense. Seu pai, Antônio Girão Barroso era poeta, sua mãe era
professora, mas dedicou-se totalmente a educação dos filhos. Recebeu uma boa formação
educacional. Cresceu ouvindo histórias, indo ao teatro e vendo as manifestações populares
nordestinas, como o cortejo e o reisado. Aprendeu assim, desde a infância, a amar o seu povo
e suas manifestações culturais. Estreou no teatro, como dramaturgo, na década de 1970.
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Desde a sua primeira peça, “O Reino da Iluminura ou A Maldição da Besta-Fera”,
encenada pelo Grupo de Teatro Amador (GRITA), Barroso deixa claro a fonte do seu teatro: a
tradição popular nordestina, com suas narrativas, poetas, cantadores, espetáculos, danças,
folguedos, e o engajamento político, social e cultural.
A partir dessa nascente, o dramaturgo faz escolhas estéticas e simbólicas que trazem
reflexões para o texto teatral e para a cena, dando voz a tantos silenciados pelas circunstâncias
culturais, sociais e históricas:
Ao investir num teatro literário, mais do texto do que da experimentação
cênica, repleto de matéria popular, fortemente compromissado com as fontes
tradicionais, Oswald segue na mesma direção já apontada pelos pioneiros da
dramaturgia nordestina, fazendo-o é claro, à sua maneira, trilhando a vereda
que ele mesmo abriu a golpes de facão, e que, ao fim e ao cabo, é somente
sua. (NEWTON JÚNIOR, 2011, P. 14)
Tendo em vista esse contexto, o presente artigo pretende analisar como a peça
Vaqueiros, elaborada a partir das formas clássicas da tragédia grega, ao dialogar com os
personagens, as histórias, as imagens, a palavra e a voz provenientes da tradição oral e
popular do Nordeste, cria uma linguagem híbrida que representa vozes conflitantes em frente
as mudanças nas relações de gênero na estrutura social sertaneja. No entanto, antes da análise,
abordaremos brevemente as relações entre tradição, oralidade, escrita e teatro.
2. Vaqueiros: entre letra, voz e relações de gênero
Na cultura popular nordestina, observa-se uma forte tradição oral transmitida ao longo
do tempo. Todavia, a oralidade ultrapassa o sentido apenas linguístico de comunicação por
meio da fala, como diz o crítico literário: “A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão
do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro:
seja um gesto mudo, um olhar” (1997, p. 203).
Desse modo, usaremos aqui, com base em Zumthor, o termo vocalidade ao invés de
oralidade, pois segundo ele a “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso” (1993, p.
21). Portanto, a voz possui um lugar simbólico, uma relação eu-outro, uma linguagem, um
enunciador/ouvinte, um corpo, uma prática histórica e a cultural, permitindo que ela transite
entre disciplinas e encontre-se na base das mais diversas culturas e em diferentes suportes.
Nessa perspectiva, é possível integrar a voz ao escrito. Como afirma Zumthor: “Em
vez de ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma convergência entre os modos de
comunicação assim confrontados(1993, p. 114). Assim, a passagem do vocal para o escrito o
significa perda ou ausência da voz viva”, mas uma relação de troca que cria uma memória viva”,
portadora de uma tradição que se faz presente, se atualiza no tempo e no ato de comunicar-se.
É com a tradição que o teatro dialoga. Desde a Grécia antiga, a tradição oral está
presente no texto dramático e na encenação. A etimologia da palavra tragédia, por exemplo,
remete à ideia da voz, como canto, pois refere-se ao “coro de bodes” em honra a Baco”
(MOISÉS, 2004, p. 448), portanto, “um grupo de cantores vestido de bode, à maneira de
sátiros” (2004, p. 448).
O teatro, ao ligar-se com os ecos das tradições orais, torna a “palavra viva” seja por
meio da escritura teatral ou da performance. Assim, as narrativas orais não são somente
relatos de histórias passadas, lendas, mitos, folclore, mas são uma forma de diálogo com o
presente, um modo de renovar a visão de um “eu”, de uma coletividade, e da própria voz,
possibilitando o ressoar de novas vozes que mudam, se atualizam, se multiplicam, se recriam,
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no tempo e no espaço, pois “quando a voz é instrumento da tradição, o que nela domina é
variação, nunca um produto plenamente constituído e acabado” (ZUMTHOR, 2010, p. 15).
É dentro desse panorama de inacabamento das tradições orais que se encontra a
tragédia Vaqueiros. A peça é inspirada em Dona Dina, Mestra da Cultura do Ceará, que se
tornou vaqueira. Em uma profissão dominada por homens, Dona Dina sempre esteve à frente
do seu tempo, enfrentou a sociedade sertaneja machista, formou a Associação dos Vaqueiros,
Aboiadores e Pequenos Criadores dos Sertões do Canindé, nos anos 1980, e veio a ser a
primeira mulher presidente de uma associação de vaqueiros por seis mandatos.
A partir dessa história da vida real, que poderia ser contada num folheto de cordel, ou
por repentistas em uma feira do sertão, Barrroso cria os personagens e o enredo que compõem
Vaqueiros. Encenada em 2002 pela Companhia Boca Rica de Teatro
57
, a peça possui quatro
personagens que formam uma família: Mira (vaqueira), Carneiro (comissário de polícia e
esposo de Mira), Lua (filha de Mira e Carneiro) e Vulcano (ferreiro e pai de Mira). Os
membros desse núcleo familiar têm uma relação conflituosa, primeiramente, por Mira ser
vaqueira, presidente da associação de vaqueiros e tocar sanfona. Depois, pelas lembranças
referentes ao primeiro marido de Mira, Raimundo, que também era vaqueiro, morto
supostamente num acidente, que sempre surgem nas discussões que ocorrem entre ela, o seu
atual marido e seu pai.
É desse fio de reminiscências que numa noite, na ferraria, inicia-se uma trama
conflituosa marcada pela tragédia. Assim para colocar o leitor/espectador dentro desse clima
que permeia o texto teatral, Vaqueiros começa com Vulcano cantando uma narrativa popular
oriunda da tradição oral nordestina que anuncia, como uma profecia, os acontecimentos
futuros, trágicos, que envolvem a sua família:
Vulcano: (Cantarolando, com letra bem audível)
Guardando um silêncio profundo
Mais fundo que um poço de dor
A infanta procura os pais
Por fim junto ao quarto chegou.
E mesmo co’a porta fechada
Sem ver o que lá se passou
Sentiu junto ao peito a pontada
Aviso de grande terror.
Gritou co’a voz engasgada
Prevendo o desfecho fatal:
Aqui só me cheira tragédia
Aqui me fede sangue real. (BARROSO, 2011, p. 25-26)
Nessa narrativa inserida logo no início da peça, em que a infanta se depara com o
destino fatal de seus pais, encontramos uma marca de oralidade, como a expressão co’a, e a
clara indicação que o ferreiro está cantarolando-a, “com letra bem audível”, mostrando a
importância da letra não somente escrita, mas falada de forma bem perceptível, que ela se
tornará corpo no momento da encenação
58
. Aqui também se revela a posição do dramaturgo,
57
A Companhia Boca Rica de Teatro foi fundada em Fortaleza, em 1995, com o objetivo de colocar na prática
teatral “um trabalho artístico e sociocultural” baseado “na pesquisa e na recriação das tradições cênicas
populares”. É formada por pesquisadores, artistas, professores, atores, dançarinos, acrobatas, músicos.
58
É preciso salientar que texto teatral, apesar do seu caráter literário, tem como função principal a sua
encenação, ou seja, o seu ato performático em que palavras ganham um corpo vivo, irradiando novos
significados e novas leituras.
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enquanto ser responsável pela autoria, que para ele letra e voz, assim como para Zumthor,
estão em trânsito de convergência.
A voz representada nessa narrativa poeticamente dialoga com a tradição do teatro,
porque, assim como na tragédia clássica, no prenuncio inicial desvela-se o destino inevitável
dos personagens principais, no caso Mira e Carneio: a morte trágica. Este desfecho ocorrerá
devido aos embates vivenciados pelo casal que revelará os conflitos das relações na sociedade
patriarcal sertaneja, marcada pelo arcaísmo e opressão e resistente as transformações sociais
da contemporaneidade. Desse modo, ao observar as vozes da experiência trágica em
Vaqueiros, compreende-se “mais a fundo o contorno e a conformação de uma cultura
específica” (WILLIAMS, 2002, p. 69).
Por isso, o título da peça ao se referir ao vaqueiro, trata daquele homem que na cultura
do sertaneja é vista como herói. “Guerreiro encourado”, filho rude da caatinga”, homem
destemido, forte, valente, ele permeia o imaginário popular pela sua heroicidade se tornando o
cavaleiro do sertão:
Foi ele a personagem central da chamada civilização do couro, baseada na
pecuária, ciclo econômico que dominou todo o Ceará colonial. Sob sua
liderança, à frente dos rebanhos de gado, deu-se a ocupação de seu território
e estruturou-se sua organização social. Não como negar que vem dele
nossa natureza nômade, nosso jeito despojado de viver, nosso individualismo
sem peias, nossa vocação para o ócio criativo e a imaginação, porque o
vaqueiro é o cavaleiro andante do sertão, o herói de cordel e cantorias.
59
As características e acontecimentos épicos do vaqueiro ganham nova expressão na voz
da vaqueira Mira. Ela não é nenhuma heroína. É uma mulher comum, sertaneja, que deseja ter
o seu espaço reconhecido na família e na sociedade. Então ao assumir o seu posto de
vaqueira, ela representa a voz feminina que enfrenta o machismo para realizar tarefas
consideradas inadequadas para uma mulher e ser livre para fazer aquilo que quiser nos
diversos âmbitos sociais.
Contudo ao se tornar vaqueira, Mira não está somente buscando afirmar-se como
mulher, num espaço predominantemente masculino, ou lutando para ocupar um novo lugar no
ambiente sócio-familiar, ela também quer realizar um desejo de Raimundo: “[...] Toquei
sanfona, toquei, até ele morrer. Só quando morreu fiz a vontade dele, ser vaqueira” (2011, p. 28).
Mira não consegue se libertar da memória do marido morto e consequentemente do
amor que sente por ele. Raimundo está nos seus pensamentos e até no seu modo de se vestir,
pois ela veste o gibão de couro que era dele como forma de identificar-se como mulher
vaqueira e líder dos vaqueiros, de romper com os padrões estabelecidos, e de tornar a figura
do ex-marido presente mesmo na sua ausência total e definitiva.
Este posicionamento de Mira incomoda profundamente Carneiro. Ele sabe que no
fundo não é objeto do amor da mulher e nem a referência para o clã familiar, que até na
hora de acalentar a filha, ela canta um abaio
60
que narra a história de Raimundo, enaltecendo
suas qualidades:
59
Esta citação foi retirada do folder da exposição permanente intitulada Vaqueiros que retrata a vida do
vaqueiro no sertão e tudo o que permeia o seu universo. Organizada por Oswald Barroso, em 1999, a
exposição encontra-se no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em Fortaleza.
60
Canto típico do nordeste brasileiro, é um canto sem palavras, entoado pelo vaqueiro ao conduzir o gado para
o curral ou durante o trabalho de guia-lo para a pastagem. Possui melodia lenta, adaptada ao andar vagaroso
dos animais. também o aboio em verso. Nesse caso, são poemas com temas agropastoris provavelmente
de origem moura e que deve ter chegado ao Brasil por meio dos escravos mouros da Ilha da Madeira,
território pertencente a Portugal.
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Mira: Feito um barbatão formoso
Era o vaqueiro Raimundo.
No seu alazão famoso
Cortou mata, correu mundo.
Era um boi misterioso
Do segredo mais profundo.
Belo como um reis de mouro
Sua espada era um facão
Sua coroa era de couro
De marfim seu coração.
Mas numa tarde de agosto
Raimundo foi derrubado.
Um galho bateu em seu rosto
Do cavalo foi jogado.
Morreu com grande desgosto
O cavaleiro encourado.
Êêêêôôôô vida de gado! Êêê... (2011, p. 37)
Esta atitude de Mira incomoda profundamente Carneiro, que está sempre
demonstrando seu descontentamento e seu ciúme: “Olhe o que ela canta, Vulcano, para
adormecer a menina! fala nele, pensa nele” (2011, p. 37). O canto rimado de Mira
expressa a sua ligação profunda com Raimundo e exterioriza a lembrança sempre presente do
marido morto a ponto de querer que ele seja um exemplo de valentia e coragem para a sua
filha. O ato de cantar realizado por ela gera uma vocalidade que traz a voz do passado, ou
seja, de Raimundo, corporificando-a sob o enfoque da experiência presente. Um morto com
presença viva.
Isso levará Carneiro a um ciúme cego do vaqueiro já falecido. Este sentimento que faz
Mira sempre salientar ainda mais a sua admiração por Raimundo gera incompreensões e
diálogos conflituosos entre os dois.
Uma forma de estabelecer um canal de comunicação minimamente pacífica entre eles
ocorre, primeiramente, por meio da contação de uma história de cordel, que simboliza, dentro
do texto teatral, a diferença de olhar diante da realidade do casal: uma princesa que vivia
triste, chorosa, saudosa do seu príncipe morto antes dela dar-lhe um filho. Um dia ela
encontra o filho de um pescador e conta a causa da sua tristeza. Então para se casar como
princesa e recuperar a sua alegria, o menino humilde aceita tornar-se igual ao príncipe amado
por ela. Eles se casam e têm uma filha. A história termina com uma final feliz na narração de
Mira, mas, ao continuar o relato, ganha um desfecho um infeliz no relato de Carneiro:
Mira: A princesa acabou amando o menino pobre, filho do pescador, ele se
desencantou e a princesa recuperou a sua alegria. Aí acabou a história.
Carneiro:que a história continuou. Acontece, que a princesa nunca tirou
seu antigo príncipe da cabeça. Só falava nele, para tristeza do filho do
pescador, que mesmo casado com a princesa nunca teve seu coração.
Continuou encantado e seu consolo era sua filhinha, que ele também amava
muito e parecia com a mãe. (2011, p.44)
A partir da história de cordel inserida no texto teatral, portanto, oralizada na
performance, Carneiro se depara com sua própria voz, reflexo da tristeza sentida por não ter o
seu amor correspondido, revelando aquilo que habita em seu ser. Mira chega a se comover, no
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entanto, como diz o ditado popular, ela “não o braço a torcer” e permanece firme no seu
posicionamento.
Assim, ao utilizar uma história de cordel, geralmente contada, dentro da peça, o
dramaturgo mostra que as narrativas escritas ou vocalizadas não são somente uma prática
cultural de uma região específica, mas elas também são vozes que representam as
divergências na relação entre o eu e o outro.
Na escritura do texto teatral, o dramaturgo ou o artista “não dispõe de meios para fazer
escutar a voz” (1993, p. 125), sentida e ouvida no seu potencial máximo na performance,
“mas pelo menos a cita intencionalmente naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de
sugerir ao ouvido a realidade sonora” (1993, p. 125).
Nesse sentido, entre “letra e voz”, a tessitura dramatúrgica é construída e nela, para o
clímax trágico da peça, insere-se um entremeio
61
do Reisado de Caretas
62
, folguedo
tradicional da cultura popular nordestina. No Reisado, as linguagens artísticas, canto, dança,
música, voz, máscara, teatro entrelaçam-se, sendo que o entremeio do Boi é o mais
importante. Por isso, não é por acaso, que o dramaturgo o coloca na escritura teatral dando ao
texto teatral linguagem híbrida e metateatral.
O entremeio do Boi, além de dialogar com o título da peça, com a personagem
principal e ser um teatro dentro do teatro, portanto um metateatro, torna-se uma metáfora da
situação conflituosa vivenciada pela família. Nesse caso podemos dizer que, em Vaqueiros,
uma metateatralidade que tende a assumir um papel metafórico em relação ao embate que
ocorre devido ao apego de Mira pela memória de Raimundo e a sua mudança de
comportamento diante do marido machista e da sociedade patriarcal sertaneja: “Uma
metateatralidade que se debruça sobre si mesma para olhar para fora e, consequentemente,
conduzir o olhar, nesse espiralar, para dentro da própria linguagem” (NOSELLA, 2012, p. 4).
Então com Lua puxando um boi de brinquedo, Mira e Carneiro usando máscaras,
formando o composto pela velha careta e pelo velho careta
63
e Vulcano como Babau
64
,
começa o espetáculo, a brincadeira do boi, com Mira cantando:
Mira: Anda pra frente boi velho,
dá um berro e cheira o chão,
pois está relampeando, boi velho,
tá chovendo no sertão.
Pois está relampeando, boi velho,
tá chovendo no sertão. (2011, p. 48)
A palavra cantada por Mira e escrita no texto teatral nos mostra, como afirma Ong,
que “todos os textos devem de algum modo, estar diretamente ou indiretamente relacionados
ao mundo sonoro, habitat natural da linguagem, para comunicar seus significados” (1988, p.
61
De acordo com Barroso, o Reisado “se estrutura na forma de um cortejo de brincantes, representando a
peregrinação dos Reis Magos à Belém, e se desenvolve, em autos, como uma rapsódia de cantos, danças e
entremeses incluindo obrigatoriamente o episódio do boi” (2013, p. 25).
62
De acordo com Barroso, “entremeios são quadros cênicos que compõem o Reisado. Seus personagens não
fazem parte da estrutura fixa da brincadeira, entram apenas na que lhes cabe (2013, p. 103).
63
O velho careta é casado com a velha careta. Eles formam o casal cômico na brincadeira do boi. São chefes da
família dos Caretas, cada qual com sua profissão.
64
“O Babau é um cara mascarado, com a roupa de estopa e uma palhona de palmeira, ele escanchado naquela
palhona, fazendo toda latomia, ali, com aquele pessoal. Rinchando que nem um animal, com uma cabeça de
burro ou cavalo” (BARROSO, 2013, p. 236)
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16). É buscando essa comunicação que o uso das máscaras por Mira e Carneiro, para
representar a velha careta e o velho careta, ganha novos sentidos.
A máscara era um elemento usado na tragédia grega. Novamente, o dramaturgo
delineia o seu ponto de partida, mostra com qual tradição está dialogando para à sua maneira
representar um universo de sentimento preciso. Em Vaqueiros, podemos observar que a
máscara não é apenas um objeto artístico, indicado no texto escrito e essencial na
performance, para cobrir o rosto de uma personagem, mas é um meio de dinamizar o jogo
dramático, fortalecer as linhas de discussões estabelecidas, ressaltar a mensagem que se
deseja transmitir, pois segundo Peter Brook, “uma máscara se constitui sempre numa via de
mão dupla; envia uma mensagem para dentro e projeta uma mensagem para fora (1994, p.
292). Nessa mensagem pode-se ter um ressoar de voz, dando-a a quem não tem ou a quem
precisa dela para se reafirmar como sujeito individual e coletivo como percebemos na peça.
Nesse sentido, o folguedo com todos os seus elementos dentro da peça - máscaras,
cantos, personagens, diálogos salpicados com pitada de humor - é uma forma que possibilita
um ressoar das vozes de Mira, Carneiro e Vulcano, a fim que eles possam transmitir uma
mensagem própria e se afirmarem como sujeitos individuais e coletivos. O folguedo também
um caráter lúdico a escritura teatral, aliviando por um momento a relação conflituosa e
tensa do casal ao mesmo tempo que prepara o leitor/espectador para os acontecimentos
trágicos que se aproximam por meio de um jogo teatral permeado de gestos, símbolos, signos.
Por estarem mascarados, Mira e Carneiro brincam, se auto representam, apropriam-se
de outras vozes, porém continuam portadores de vozes identitárias, dissonantes, que irão até
as consequências irremediáveis para defender o seu ponto de vista na família e na sociedade.
Vozes em embate com as lembranças e as transformações nas relações de gênero. Como diz
Zumthor: “a voz não cessa de cobrir e descobrir um sentido que ela ultrapassa, submerge,
afoga, projeta, e que parasita seu maior poder” (1993, p. 158).
Durante o folguedo, assim como na peça, há uma luta entre o boi e velho careta. Logo,
em seguida, aparece Babau, representado por Vulcano, “um velho encaretado, com paletó
velho”, gravata, sem camisa, e um facão na o” (2011, p. 50). Ele conversa com a velha
careta (Mira) e o velho careta (Carneiro) sobre o boi. Durante o diálogo percebe-se que a
representação é sobre os dilemas da vida conjugal da vaqueira e do comissário de polícia: a
presença de Raimundo, vaqueiro morto, como um fantasma no relacionamento deles e o
trabalho inaceitável de Mira como vaqueira não somente pelo fato dela ser mulher, mas
também por essa profissão ser uma herança do marido morto e ligá-la cotidianamente a sua
memória. Então com expressão comumente utilizadas na linguagem sertaneja, como “seu
cabra”, “alma danada de boi”, Babau diz que vai matá-los. Prenúncio do irrevogável do
destino de Mira e Carneiro:
Vulcano (Como Babau): Você quer matar meu boi, não é seu cabra sem
vergonha? Pois vai ser eu quem vou lhe matar. Vou matar você e essa negra
atrevida que ficou lhe atentando.
Mira (Como velha careta): E quem é você, seu velho infeliz?
Vulcano (Como Babau): Eu sou a mandinga desse boi que vocês quiseram
matar.
Carneiro (Como velho careta): Pois eu acabo com essa alma danada de boi.
Vulcano (como Babau): Você não me mata porque eu sou também um
vaqueiro. E você não é. Nem você, sua atrevida, porque você pensa que é
vaqueira como eu e não é. Vou matar vocês dois. (2011, p. 50)
Ao final da conversa, como Lua fica assustada, até com medo, Vulcano, Mira e
Carneiro tiram as máscaras e encerram a peça dentro da peça. No caso de Vaqueiros pode-se
afirmar que a metateatralidade não é apenas uma característica inerente, ela é utilizada como
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forma dialógica e reflexiva, tornando-se um instrumento do debate e permuta de ideias e de
visões de mundo irreconciliáveis.
Nessa trilha, a peça se encaminha para o seu desfecho trágico com uma descoberta
impactante: Carneiro revela a Mira que, na verdade, Vulcano matou Raimundo, como um
modo de vingar-se por sentir inferior e menosprezado na sua própria casa:
Carneiro: Diga a ela, Vulcano. No corpo do Raimundo descobriram uma
marca de ferro, no lombo, como uma rês.
Vulcano: Seu corno sujo. Por que foi inventar isso?
Carneiro: Pra ela saber, o que eu sabia. E nem precisou encomenda do
velho Justino. Decisão dele mesmo empurrar o homem. Derrubar com o
ferrão. (2011, p. 56)
Mira pede ao pai para sair. Sozinha com Carneiro, diante da forja, inicia-se uma nova
briga, porém a derradeira. Sabendo a verdade sobre a morte de Raimundo, ela parece se sentir
livre para manifestar a Carneio, de forma clara, os seus verdadeiros sentimentos. Depois de
uma sequência de violência verbal em que a “voz e letra” expõe ainda mais as chagas abertas,
Mira faz um discurso longo em que o orgulho de Carneiro, como homem, é ferido
brutalmente:
Mira: Pois quer saber, pois quer saber, eu amo Raimundo sim, e ainda mais
agora, sabendo disso. Trago ele dentro de mim. vendo meu gibão,
vendo meu guarda-peito, vendo minhas esporas, minhas luvas, minhas
perneiras? Pois são as dele. Quer saber porque eu nunca mudei meu
sobrenome, porque me chamo Pereira, como ele? Porque é pau que não
enverga muito homem. Sim, eu amo esse homem. É ele que ainda hoje me
faz ser alguém, me faz terem respeito por mim. Eu, em cima do cavalo, feito
um guerreiro encourado, o corpo seco pelo sol, queimado que nem a
caatinga, a cara dura, o corpo feito um mourão, uma estaca, sem dobra, se
confundindo com o cavalo.
Mira: [...] É por isso que você me quer, Carneiro, porque eu sou vaqueiro,
uma mulher valente, que enfrenta careta de qualquer um, que monta cavalo
brabo, derruba barbatão, você se apaixonou por mim, porque eu sou uma
vaqueira admirada como Raimundo era. Você morre de inveja dele, porque
você não é como ele, nunca soube montar um cavalo como gente, como
homem do sertão. Só deu mesmo pra ser Vice-Presidente, um secretário, um
burocrata que escreve o livro de atas. Ou então um polícia, que só faz
serviço sujo, bate em preso. Mas você queria ser assim como eu sou, como o
Raimundo era. Você está olhando pra mim e pensa que eu sou eu, que você
está me vendo aqui, mas quem está aqui é o Raimundo, vivinho da silva.
Meu pai não conseguiu mata-lo quanto mais você. (2011, p. 57-58)
Sentindo-se completamente humilhado, Carneiro quer honrar a sua hombridade
ameaçando Mira e dizendo que ele também sabe “ferrar gado”. Ela não acredita na ameaça do
marido. Contudo, ele não está para brincadeira e diz: “vou marcar o que é meu. Vou mostrar
quem é vaqueiro aqui” (2011, p. 59). Mira, mesmo temorosa, fala que ele não tem coragem,
intensificando o ódio sentido por Carneiro. Então ela pega uma faca dizendo: “Tá certo,
primeiro a gente tem que derrubar o boi, pra depois marcar, não é?” (2011, p. 59). Em
seguida, ele esfaqueia Mira. Não satisfeito com a morte da mulher, ele pega um ferro em
brasa e marca o rosto dela. Vulcano, ao se deparar com a filha morta, parte para cima de
Carneiro e o mata também com uma faca. Todo esse acontecimento trágico é visto por Lua. A
pequena menina vive a tragédia anunciada, o destino irrevogável dos pais. Após “um grito
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alto e longo”, ela junta o corpo da mãe e o corpo do pai. Agora somente com a morte, o que
não deixa de ser uma contradição, eles estão juntos e em paz. Então, Lua canta o romance de
abertura da peça, em que a infanta também com “voz engasgadapresenciou uma tragédia e
viu o sangue real.
Portanto, Vaqueiros é uma tragédia contemporânea que começa e termina com uma
narrativa marcada pela tradição oral. Demonstrando que essa tradição é um instrumento de
diálogo diante das mudanças sociais que permeiam a relação entre homem e mulher na
contemporaneidade.
Diante desse fato, o dramaturgo ao colocar na escritura do texto teatral a “vocalidade”
da tradição popular nordestina possibilita que letra e voz convivam em diferentes graus de
interação no tecido textual, representando tensões, vozes dissonantes e “oposições conflitivas”
daquele ser que deseja o reconhecimento e a escuta, enquanto sujeito individual e coletivo,
para ocupar o seu lugar no tempo, no espaço, na história, na vida e assim ser uma presença
da voz” e da palavra na sociedade.
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[Recebido: 20 jan. 2019 Aceito: 15 jun. 2019]