BOITATÁ, Londrina, n. 29, jan.- jun. 2020

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504















REVISTA DO GT DE LITERATURA ORAL E POPULAR DA ANPOLL

Revista Boitatá é uma publicação semestral, de acesso livre, do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL)


GT LITERATURA ORAL E POPULAR

BIÊNIO 2018/2020

COORDENADOR

Prof. Dr. Alexandre Ranieri Ferreira

Secretaria Estadual de Educação do Pará

alexandre_ranieri@hotmail.com

VICE-COORDENADORA

Profa. Ma. Délcia Pombo

PPGL-UFPA

delciauab@gmail.com

SECRETÁRIA

Profa. Ma. Dia Favacho

PPGED-UEPA

favachodia1@gmail.com







IDADE MÉDIA

ORALIDADE E PERFORMANCE






Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecário: Marcos Moraes – CRB: 9/1701





Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL [recurso eletrônico] / Universidade Estadual de Londrina - n. 29 (jan. /jun. 2020). – Londrina: UEL; Brasília: ANPOLL, 2020.



Semestral

Requisitos do sistema: Adobe Reader.

Modo de acesso: < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/index>

ISSN: 1980-4504



1. Literatura oral e popular 2. Oralidade - Documentação I. Ferreira, Alexandre Ranieri. II. Universidade Estadual de Londrina. III. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística. IV. Título: Boitatá: Revista do GT de Literatura Oral e Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística - ANPOLL


CDU 82


Índice para o catálogo sistemático:

1.

Literatura oral e popular

82.085

2.

Oralidade – Documentação

82:025


EXPEDIENTE


EDIÇÃO


Dr. Alexandre Ranieri Ferreira (SEDUC-PA)

Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)



EDITORIA ASSISTENTE


Dra. Andréa Betânia da Silva (UNEB)



ORGANIZAÇÃO


Dra. Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal (IFBaiano)

Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez (UNAM)

Dra. Marline Araújo Santos (IFBaiano)



COMISSÃO EDITORIAL


Dra. Anna Christina Bentes

Universidade Estadual de Campinas


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez

Universidad Nacional Autónoma de México


Dra. Cláudia Neiva de Mattos

Universidade Federal Fluminense


Dra. Edil Silva Costa

Universidade Estadual da Bahia


Dr. Eudes Fernando Leite

Universidade Federal da Grande Dourados


Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

Universidade Estadual de Londrina


Dr. J. J. Dias Marques

Universidade do Algarve (Portugal)


Dr. Jorge Carlos Guerrero

University of Ottawa (Canada)


Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes

Universidade Federal do Pará


Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Pará


Dra. Lisana Bertussi

Universidade de Caxias do Sul


Dra. Maria do Socorro Galvão Simões

Universidade Federal do Pará


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso


Dr. Ronald Ferreira da Costa

Professor do Instituto Federal do Paraná


Dr. Sílvio Renato Jorge

Universidade Federal Fluminense


Dra. Vanderci de Andrade Aguilera

Universidade Estadual de Londrina


Dra. Vera Lúcia Medeiros

Universidade Federal do Pampa



PARECERISTAS DESTE NÚMERO


Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Berenice Araceli Granados Vásquez

Universidad Nacional Autónoma de México


Dra. Cláudia Freitas Pantoja

Faculdade do Vale do Ivaí


Dr. João Evangelista do Nascimento Neto

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Janaína Marques Ferreira Rocha
Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Laura Regina dos Santos Dela Valle

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Dra. Lênia Márcia Mongelli

Universidade de São Paulo 


Dra. Maria Incoronata Colantuono

Universitat Autònoma de Barcelona


Dra. Maria Isabel Morán Cabanas

Universidade de Santiago de Compostela


Dra. Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal

Instituto Federal Baiano


Dr. Nerivaldo Alves Araújo

Universidade Estadual da Bahia


Dra. Yara Frateschi Vieira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo



PROJETO E ENSAIO VISUAL


Dr. Alberto Ricardo Pessoa

Universidade Federal da Paraíba


Jéssica Araújo

Universidade Federal da Paraíba



REVISÃO

Maria Nazaré Mota de Lima



SUMÁRIO



APRESENTAÇÃO

Mauren Pavão Przybylski, Berenice Araceli Granados Vásquez...............................................................................6



DOSSIÊ

A pedagogia artesã de Maragogipinho: experiências de autoria poética

Joseane Costa Santana, Cynthia de Cássia Santos Barra ...............................................................12



El Laboratorio Nacional de Materiales Orales, conceptos, antecedentes, código de ética y protocolo de documentación

Santiago Cortés Hernández, Berenice Araceli Granados Vázquez................................................31



Da oralidade à voz hipermédia

Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal, Jenifer Paola Pisso Concha..........................................56



SEÇÃO LIVRE

A história do "Buraco Fundo" contada por diferentes gerações da cidade de Restinga Seca, RS
Emanuelle Tronco Bueno, Sylvie Dion.....................................................................................75



A romaria no Círio de Nazaré: interação social, reciprocidade e um olhar etnográfico sobre a peregrinação

Luiz dos Santos Guilherme, Danieli dos Santos Pimentel...........................................................93



As representações da literatura oral nas esculturas de Mestre Nêgo

Carolina Reichert do Nascimento....................................................................................................108



Por campos da Península Ibérica e do sertão tocantinense, cavaleiros e jagunços tecem narrativas

Maria de Fátima Rocha Medina..................................................................................................123



Quelle est votre tribu?” Identidade, diferença e modernização na República Democrática do Congo

Ari Lima Lima.............................................................................................................................138





Refletindo sobre as articulações da literatura e cultura popular presentes na tradição oral caxiense: a lenda da Veneza como viés de abordagem

Odilene Silva do Nascimento Almeida, Algemira de Macêdo Mendes........................................160



Voz e gesto na actio retórica

Manuel Francisco Ramos..............................................................................................................172








Apresentação


Os materiais orais podem ser definidos como “ todas aquelas produções de discurso que geram atos comunicativos, em que estão presentes o emissor e o receptor em um mesmo espaço-tempo, as quais têm como suporte a voz, o corpo e a memória. O significado  destes materiais, de natureza efêmera, depende não só das emissões linguísticas, mas também da interação entre o verbal, o não-verbal e os fatores contextuais” (www.lanmo.unam.mx).  Muitas áreas do conhecimento têm utilizado esta fonte complexa de informação como matéria prima para suas investigações. Em nossas conversas cotidianas, no que contamos, no que cantamos e na maneira como fazemos estão codificadas as chaves culturais para entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas e, inclusive, uma boa parte do modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica. Devido à sua natureza efêmera e dispersa, as investigações que os utilizam sempre enfrentaram limitações importantes para seu registro e manuseio. 

Tendo tido como abordagem formas  metodológicas de tratamento de materiais orais em sua documentação, processamento ou análise, textos que versassem sobre o processo de gestão e registro de informação no trabalho de campo, sistematização e resguardo de materiais orais, apresentação de repositórios,  catálogos e coleções de materiais orais, assim como modelos analíticos que procurem explicar uma realidade a partir destes, o artigo que abre este número e a sessão “Materiais orais: metodologias” é de co-autoria de uma de suas organizadoras, Berenice Araceli Granados Vázquez, juntamente com Santiago Cortés Hernandez. Isso não foi escolhido à toa, ou simplesmente por querer privilegiar-nos. Nosso intuito foi o de começarmos pela reflexão que impulsionou o número 29 e a criação dessa equipe de organização: a metodologia para tratamento de materiais orais.

Em reflexão intitulada El Laboratorio Nacional de Materiales Orales, conceptos, antecedentes, código de ética y protocolo de documentación, os pesquisadores, que também são coordenadores do laboratório, apresentam alguns resultados do trabalho de sistematização que vêm realizando. Fazem um percurso histórico do LANMO e suas bases teóricas, para depois apresentar os dois instrumentos originados dele: um código de ética e um protocolo para documentação de materiais orais em trabalho de campo.

O segundo artigo da sessão, Da oralidade à voz hipermedia, em que Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal, também à frente deste número, colabora com a autora principal, Jennifer Paola Pisso Concha, objetiva focar-se em uma comunidade indígena (os Misak no departamento de Cauca, Colômbia) e em um sujeito periférico (Marco Almeida, o Maragato, na Restinga, Porto Alegre, Brasil), com o intuito de não só contribuir no processamento de materiais orais na documentação e análises da informação, mas também refletir acerca das diversas formas de narrar o mundo. As autoras esperam “ estimular diversos olhares frente as novas narrativas contemporâneas: cibernarrativas e aproximar-se de narradores/força modalizante que possam fornecer e amadurecer o trabalho de campo e o processamento de materiais orais para os pesquisadores ou interessados no assunto”.

Passando a uma perspectiva mais tradicional da cultura popular, a seção Questões épicas e ibéricas em narrativas orais contará com dois artigos de grande relevância para o tema:

Por campos da Península Ibérica e do Sertão Tocantinense, cavaleiros e jagunços tecem narrativas , de autoria de Maria de Fátima Medina, apresenta El cantar de Mío Cid, cuja cópia mais recente de que se tem notícia é do copista Per Abbat e a Serra dos Pilões (1995), romance de Moura Lima, analisando suas personagens desde a perspectiva bakthniana do cronotopo. A autora conclui que “ No percurso de caminhos desconhecidos, ao ocuparem o lugar social de quem se preocupava com a justiça, sob leis régias ou na ausência do Estado, personagens de ambas as narrativas agiram, passaram por transformações e revelaram seres humanos singularizados. E, no grande tempo, são construídos novos significados”.

Já Manuel Francisco Ramos, em Voz na Actio Retórica, analisa o surgimento da figura do ator no teatro grego, e a actio/pronuntiatio (representação), que foi separada da composição teatral. Explora, assim, a partir de ensinamentos dos Padres, como S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Gregório; a teoria da voz, os gestos e rosto com grande inovação, a qual completa e dá plenitude à teoria retórica antiga.

A última sessão, intitulada Narrativas orais: perspectivas etnográficas, apresenta artigos que passeiam entre as lendas e a perspectiva do pesquisador participante, flâneur, que divide suas vivências e experiências.

Em “Quelle est votre tribu?”, Identidade, diferença e modernização na República Democrática do Congo, Ari Lima, pautado em inquietações e desejos pessoais, embarca em uma viagem autofinanciada que se torna objeto de estudo, ao observar as construções e desconstruções identitárias na República Democrática do Congo. Dividindo o artigo em três tópicos, traz algumas questões sobre como o continente africano é visto e interpretado a partir do território geopolítico brasileiro. Neste primeiro tópico, nos vemos imersos em um relato de viagem, um diário de bordo cheio de cores, com uma leitura fluida que nos abraça e envolve. No segundo tópico, ao traçar o percurso histórico-político da RDC, descreve os impactos da colonização e da luta pela independência da RDC e como a crueldade capitalista tem contribuído para a crescente invasão de igrejas evangélicas neopentecostais, com o discurso de progresso e salvação para uma população que sofre, há décadas, com a exploração de seus corpos e territórios. Ao concluir, descrevendo situações da realidade atual observadas nas cidades de Lubumbashi e Kamina, o autor faz uma crítica sóbria e pertinente sobre como a identidade dos africano-congoleses se constrói a partir de perspectivas distintas do afro-brasileiro, embora ambos sejam constantes em situações opressivas impostas pela colonialidade do poder capitalista.

Joseane Costa Santana e Cyntia de Cássia Santos Barra, em A pedagogia artesã de Maragogipinho: experiências de autoria poética, abordam, a partir da experiência em Maragogipinho (BA), relações entre artesanato, repetição-recriação e ensino, tomando o primeiro como um ato de resistência que se constitui em patrimônio cultural material e imaterial e tendo, no/a artesão/ã, o sujeito constituído na e constituinte da tradição. As autoras destacam que, “ao relatar encontros com Mestres e Mestras da Tradição Artesanal de Maragogipinho, por meio de uma experiência de autoria com estudantes do Curso integrado em Agroecologia e Agropecuária do Instituto Federal Baiano (campus Valença), buscou-se refletir sobre potências de repetição-criação-recriação, de modos de ensino e de pesquisa na Educação Básica e no Ensino Superior. As olarias e os vários labirintos das peças (artefatos) da arte do barro e da memória narrativa dos/as Mestres e Mestras de Maragogipinho são espaços abertos ao encontro e à educação dialógica.”

As representações da literatura oral nas esculturas de Mestre Nêgo, de Carolina Reichert do Nascimento, apresenta-nos uma abordagem de pesquisa que reflete sobre a vida e a obra do escultor Mestre Nêgo, residente em Barreiras, Bahia. A autora analisa a relação entre a produção artística escultórica e a literatura oral. Investiga três esculturas de lendas brasileiras do artista, apoiadas nos enredos das memórias relatadas ao longo de entrevistas realizadas na Casa das Artes, atelier do artista.

Por fim, A peregrinação de romeiros para o Círio de Nazaré, na cidade de Belém-PA, se torna objeto de estudo para os pesquisadores Luiz Guilherme dos Santos Júnior e Daniele dos Santos Pimentel, em “A romaria no Círio de Nazaré: interação social, reciprocidade e um olhar etnográfico sobre a peregrinação”, ao analisarem as interações sociais entre pessoas de diferentes visões e credos. Na voz e no caminhar dos peregrinos são encontrados os percursos desse trabalho etnográfico. Entrevistando os sujeitos da pesquisa em plena caminhada, pesquisadores, peregrinos e romeiros participam das interações e trocas simbólicas que a festa religiosa oferece. Tendo a reciprocidade como elemento marcante desse período na cidade de Belém, a pesquisa revela como as pessoas se envolvem direta ou indiretamente na culminação do Círio de Nazaré. Em uma celebração não restrita a um credo, mas de fé, amor e alegria como aspectos da humanidade, bem como elemento constitutivo da tradição local e da cultura popular, a pesquisa olha para o fenômeno social religioso como marco de uma sociedade e representativo de uma cultura.

A sessão livre, que encerra o número 29, nos apresenta dois artigos que enfocam narrativas a partir de seus aspectos históricos e lendários.

Em “Refletindo sobre as articulações da literatura e cultura popular presentes na tradição oral caxiense: a lenda da Veneza como viés de abordagem”, ao examinarem sobre literatura e cultura popular na tradição oral de Caxias-MA, Odilene Silva do Nascimento Almeida e Algemira de Macêdo Mendes trazem à tona a Lenda da Veneza, uma história perpetuada nas narrativas orais e memória coletiva da cidade. A partir de um local físico que se configura como cartão postal da cidade, o Balneário Veneza, sendo ponto turístico e recebendo inúmeros visitantes em busca de sua lama medicinal, os moradores de Caxias contam e recontam a história da cidade bem como seus encantos e particularidades. A menina Veneza, cujo corpo negro é transformado em lama com poder curativo, é simbólico na luta e resistência de um povo. Marco da história local, a Lenda da Veneza representa a memória coletiva de um grupo social, fazendo da oralidade parte da sua tradição cultural.

Finalmente, Emanuelle Tronco Bueno e Sylvie Dion, na reflexão intitulada A história do “Buraco Fundo” contada por diferentes gerações da cidade de Restinga Sêca, RS fazem um aprofundamento dos relatos históricos e lendários de uma comunidade situada em Restinga Sêca (RS). As pesquisadoras se valeram da leitura de referenciais teóricos, pesquisa documental e aplicação da entrevista semidirigida. Ao final, concluíram que é possível, a partir de tal abordagem, disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo. As pesquisadoras concluem, com seu estudo, a possibilidade de se disseminar e manter traços culturais e memórias da cidade, desvelando a importância da oralidade na representação da história de um povo.

Assim, os 10 artigos desse número, divididos em 3 sessões, nos apresentam a pluralidade da voz e da literatura. Para além disso, percebe-se a importância dos sujeitos pesquisados, do respeito que se deve a eles e ao tratamento dos materiais. As narrativas, tendo elas sido contadas por narradores vivos ou registradas por etnógrafos e/ou autores da literatura tradicional, são capazes, através da voz, do corpo, da performance de retirar da invisibilidade diversos indivíduos e a nós, pesquisadores da área dos estudos literários, cabe sensibilidade, seriedade e ética, sobretudo – e principalmente – quando estamos em contato com sujeitos advindos de espaços periféricos (sejam eles indígenas, de comunidades de favela, tradicionais).

Esperamos que este número, nos moldes do que pensa o LANMO, nos auxilie a entender dinâmicas sociais, formas de comunicação, estruturas de pensamento, conformação de saberes locais, práticas tradicionais, manifestações artísticas mas, principalmente, o modo como percebemos o mundo, a partir de uma perspectiva cientifica.



Boa leitura!




Berenice Araceli Granados Vázquez

Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal

Marline Araújo Santos
















DOSSIÊ

A PEDAGOGIA ARTESÃ DE MARAGOGIPINHO: EXPERIÊNCIAS DE AUTORIA POÉTICA



THE ARTISAN PEDAGOGY IN MARAGOGIPINHO: EXPERIENCES OF POETIC OUTHORSHIP




Joseane Costa Santana

http://orcid.org/0000-0001-6468-9589



Cynthia de Cássia Santos Barra

https://orcid.org/0000-0002-4308-0421



RESUMO


O presente ensaio propõe abordar relações entre artesanato, repetição-recriação e ensino. Nesta abordagem, tomamos o artesanato como ato de resistência, constituindo-se em patrimônio cultural material e imaterial e o/a artesão/ã como sujeito constituído na, e constituinte da, tradição. Há, no distrito de Maragogipinho/BA, um modo de ensino artesanal, fundado na ancestralidade indígena-luso-africana, na repetição secular e inventiva, do fazer cerâmica; assim como há Mestres e Mestras de Saberes e Fazeres, em convergência com o conceito de Notório Saber (CARVALHO, 2016). Nesse contexto, a discussão teórica que apresentamos compreende o artesanato a partir da perspectiva das pedagogias culturais, que preservam e ressignificam culturas e comunidades, e dialoga com a dimensão epistêmica e pedagógica do Encontro de Saberes (CARVALHO, 2016; 2019). Ao relatar encontros com Mestres e Mestras da Tradição Artesanal de Maragogipinho, por meio de uma experiência de autoria com estudantes do Curso integrado em Agroecologia e Agropecuária do Instituto Federal Baiano (campus Valença), buscou-se refletir sobre potências de repetição-criação-recriação, de modos de ensino e de pesquisa na Educação Básica e no Ensino Superior. As olarias e os vários labirintos das peças (artefatos) da arte do barro e da memória narrativa dos/as Mestres e Mestras de Maragogipinho são espaços abertos ao encontro e à educação dialógica.


Palavras-chave: Artesanato de Maragogipinho. Pedagogia Artesã. Ensino e Aprendizagem. Encontro de Saberes. Mestres de Oralidade Plena.


ABSTRACT


This article offers to approach the relationship between crafts, creation-recreation and teaching. In this approach, we acknowledge handicraft as na act of resistance, constituting in cultural heritage material and immaterial and the artisan as a constituted subject in and a constituent of tradition. In the district of Maragogipinho/BA there is a way of teaching artisanal, founded on Afro-indigenous ancestry, on the inventive repetition of making pottery; as well as there are Masters of Knowledge and Practice, in convergence with the concept of Notorious Knowledge (CARVALHO, 2016). In this context, the theoretical discussion that we present comprises crafts from the perspective of cultural pedagogies, which preserve and transform cultures and communities and dialogues with the epistemic and pedagogical dimension of knowledge connection (CARVALHO, 2016; 2019). When reporting meetings with masters of the Maragogipinho craft tradition, through an experience of authorship with students of the Integrated Course in Agroecology and Agriculture at Instituto Federal Baiano (campus Valença), we sought to reflect on the powers of repetition-creation-recreation, of teaching and research modes in Basic Education and Higher Education. The workshops and the diverse labyrinths of clay art objects and the narrative memory of the Masters of Maragogipinho are open to specially connect with the art and the artisan but it’s also open to encounter the dialogical education.


Keywords: Craft. Artisan Pedagogy. Teaching and learning. Knowledge connection. Masters of Full Orality.



INTRODUÇÃO


Como trajetória argumentativa, este ensaio traz, no primeiro momento, uma apresentação que versa sobre a comunidade artesã de Maragogipinho/BA e discorre sobre o artesanato como resistência; em seguida, é apresentado o que sejam pedagogias culturais e, especificamente, os estudos sobre pedagogia artesã, feitos em diálogo com essa comunidade; depois, há breve descrição de uma atividade pedagógica realizada com os alunos do Instituto Federal Baiano, campus Valença, que resultou em um livro, intitulado Mãos que inspiram poesia: a arte de Maragogipinho traduzida em versos e ilustrações (2018); e, por fim, tenta-se perspectivar alcances pedagógicos e epistêmicos de uma proposta de produção, via pesquisa-criação-ensino, de livro co-autoral com os Mestras e Mestres de Maragogipinho (desenho do projeto de mestrado profissional de uma das autoras deste artigo, iniciado em 2019 e ainda em curso).


COMUNIDADE ARTESÃ


Do contato das mãos de homens e mulheres com o barro, surge a arte da cerâmica, que é umas das formas de expressão cultural mais antigas da humanidade e que, por séculos, representa o cotidiano da comunidade de Maragogipinho/BA, distrito de Aratuípe, localizado a 220km de Salvador. Maragogipinho é, hoje, o maior produtor de cerâmica da América Latina, com aproximadamente 150 olarias.

Habitam esse universo do barro algumas centenas de mulheres e homens, muitos nascidos na região e outros que vieram e tomaram para si o ato ceramista, de modo artesanal/manual, como meio de expressão e de atualização da memória e como artefato de referência das vivências cotidianas na comunidade, bem como de aspectos relacionados ao aprendizado do ofício, à produção das peças de barro e a sua comercialização. Esse círculo produtivo e formativo, em sua totalidade e cotidianidade, forja marcas identitárias específicas e consolida-se como oficio tradicional, sobrevivente em meio à sociedade moderna, com práticas de ensino sistematizadas pelo tempo da Tradição, mas não legitimadas pelas Culturas hegemônicas (ÁLVARES, 2015).

O artesanato de barro que se conserva e que se transforma, herança cultural milenar dos indígenas Tupinambá que habitavam a região antes da chegada dos europeus, é tido como uma das principais formas de testemunho da existência secular da arte de Maragogipinho. Urânia Mota (2011) relata:


[...] tupinambás, vale dizer, foram os primeiros índios (sic) a conviver com os colonos portugueses e sua contribuição nos legou a sabedoria de dormir em redes e utilizar as talhas, moringas e portes em barro, além do uso de gamelas em madeira e canoas, dentre outros utensílios de madeira. É corrente a versão de que esta nação indígena foi a mãe do mundialmente famoso artesanato de Maragogipinho. (MOTA, 2011, p. 148-149)


Retratar a trajetória contemporânea de artesãos e artesãs ceramistas é ato complexo. É primordial perceber o processo de construção de cada ceramista, carregado de valores e sentidos a serem identificados caso a caso. Na pesquisa desenvolvida por Álvares (2015) sobre o trabalho artesanal em Maragogipinho, é destacado um dos processos que todo artesão ceramista vive cotidianamente: o processo de repetição. Mas a repetição é ressignificada pelo ceramista Vitorino, um dos oleiros do lugar, como ato de fazer de novo para se chegar ao novo:


O oleiro Vitorino, de 95 anos, me explicou que o fato de repetir formas não o impedia de inventar coisas novas como moringas com formato de frutas, azulejos com texturas. Foi ele quem criou o reconhecido boi-bilha, adaptando a tradicional bilha portuguesa à forma de boi (ÁLVARES, 2015, p. 273).


Ao mesmo tempo, a identidade de artesão parece estar “estremecida”, pois as gerações mais novas não desejam dar continuidade ao oficio, mesmo sabendo da importância da tradição familiar secular na qual se inserem, dentro da comunidade, em função do pouco reconhecimento financeiro deste trabalho com o barro. De todo modo, a mestria de seu Vitorino permite-nos compreender que conhecimentos da cerâmica compõem o patrimônio cultural material e imaterial de Maragogipinho. Os mestres artesãos compreendem o universo do qual fazem parte e também ensinam, posto que cotidianamente reinventam e fazem dialogar saberes de uma arte secular, se tomada como referência a chegada dos portugueses, e milenar, quando se evidencia a presença das marcas da nação indígena Tupinambá nos artefatos.

Ao refletir sobre a identidade dos ceramistas, Álvares (2019) afirma que

a atividade manual fortalece as relações sociais, engendrando princípios de solidariedade. Do esteio na família, da cooperação na vizinhança ao pertencimento à comunidade como um todo, a constituição da vida é tecida nas práticas do fazer artesanal. (ÁLVARES, 2019, p.3)


Garantindo lembranças dos que vieram antes e pulsação viva do passado no presente, nas ruas labirínticas da vila, podem ser encontrados potes, talhas, travessas, bonecas, imagens sacras, animais, sandálias, cofres em formato de porco, panelas, abajures, caxixis, adornos florais e diversos outros utensílios domésticos fabricados à base de barro. Esses objetos testemunham antigos modos de fazer e técnicas de criação de peças que são socializados e retransmitidos, de geração a geração, por meio do ensino da arte ceramista e da sua aprendizagem. Os processos de preservação e de atualização de um legado sócio-histórico-cultural faz de Maragogipinho um lugar geográfico e poético, estruturado pelos saberes sobre o barro, tornado arte ceramista; um lugar em que sujeitos, saberes e práticas se reformulam incessantemente, por vezes, de modo agonístico.



MARAGOGIPINHO


O distrito de Maragogipinho, pertencente ao município de Aratuípe-BA, é, como já assinalado anteriormente, considerado o maior polo cerâmico da América Latina. Tem seu surgimento datado no século XVI, como um lugarejo inicialmente organizado para fins de catequização indígena, tendo ficado conhecido no período colonial como “Aldeamento de Santo Antônio” (MOTA, 2011).

Com o passar do tempo, em que pese o agressivo processo de colonização que perpassa toda a história do Bahia e do Brasil e, como indicado, a própria conformação original do local, o que se observa é que muitos costumes afro-indígenas-lusitanos foram incorporados na organização da comunidade ao longo dos séculos, sobretudo nos hábitos cotidianos, culturais e linguísticos, bem como no desenvolvimento da atividade artesã com a argila, que veio a se tornar o principal meio de subsistência dos moradores da localidade.

Maragogipinho é uma comunidade tradicional, um lugar representativo do trabalho ceramista. Um distrito com cerca de 3 mil habitantes, e uma média de 150 olarias. Uma produção artesanal constituída pela colaboração múltipla de quatro mãos (masculinas e femininas): os extratores do barro, os amassadores, os que constroem as peças nos tornos seculares (movidos com os pés) e, por fim, as mulheres, que são responsáveis pelo brunir das peças (polimento) e pela pintura.

As olarias, oficinas em que a referida atividade artesanal ocorre e as peças de barro são produzidas, manifestam sua origem indígena, notadamente na organização tradicional da construção das mesmas, que se assemelha ao de ocas, estando distribuídas de modo circular, como em aldeias indígenas, em torno de um referencial que, no caso dessa comunidade hoje, é a Igreja Matriz.



FIGURA 1: Olaria Santo Antônio

Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 2: Igreja Matriz de Maragogipinho


Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



Ademais, os referidos espaços estão organizados em corredores estreitos, tendo como plano de fundo um manguezal e as águas do rio Maragogipinho, um afluente do rio Jaguaripe, importante rio que banha cidades do Recôncavo Baiano e do Baixo Sul. As olarias são galpões erguidos em estrutura de madeira, com paredes de barro e cobertas de palha de piaçava, o que facilita a iluminação e a circulação de ar, importante para o processo de secagem das peças.





FIGURA 3: Secagem das peças


Fonte: Fotografias de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 4: Um forno dentre da olaria

Fonte: Fotografias de Joseane Costa Santana,

2018 (acervo da pesquisa).



À beira deste rio é que os moradores se estabeleceram e compuseram a referida comunidade, oficialmente reconhecida como tradicional pelo governo federal. As peças produzidas são comercializadas em feiras e mercados populares em todo o país e também marcam presença na Feira de Caxixi, a maior feira de cerâmica da América Latina, que ocorre há mais de um século na cidade vizinha de Nazaré, no Recôncavo Baiano, durante a Semana Santa. Em 2004, Maragogipinho conquistou o reconhecimento internacional, quando ganhou, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Menção Honrosa de “maior centro cerâmico da América Latina”, tendo concorrido ao prêmio na categoria “Artesanato para América Latina e Caribe”.


FIGURA 5:

Peças expostas para venda



Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana

2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 6:

Pequenos bonecos



Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

,2018 (acervo da pesquisa).


F
IGURA 7
: Oleiro na produção de jarro

Fonte: Fotografia de Joseane Costa Santana,

,2018 (acervo da pesquisa).



FIGURA 8: Imagem Sacra