A palavra cantada nos rituais da Unio do Vegetal (UDV): um estudo de poticas orais [1]

 

 

The sung word in the rituals of the Unio do Vegetal (UDV): a study of oral poetics

 

 

Neila Tatiane Santana da Cruz Fariello[2]

https://orcid.org/0000-0001-7419-5435

Edil Silva Costa[3]

https://orcid.org/0000-0001-5327-3502

 

 

Resumo: Compondo uma pesquisa mais ampla, o presente artigo pretende estudar as poticas orais presentes nos rituais do Centro Esprita Beneficente Unio do Vegetal (CEBUDV), a partir do uso da msica lato sensu. Tal assunto, embora seja de interesse do universo acadmico, tem recebido pouca ateno da literatura at o momento (LABATE & PACHECO, 2009, p. 14).  Assim msica e experincia religiosa instigam esse trabalho, tendo como foco a Unio do Vegetal, que uma religio de fundamentao crist reencarnacionista, criada na floresta amaznica, por Jos Gabriel da Costa, que utiliza em seus rituais um Ch de nome Hoasca, tambm chamado de Vegetal, considerado sagrado por seus adeptos (outras religies ou grupos que fazem uso dessa bebida a intitulam de Ayahuasca, um termo que se popularizou no meio acadmico e na mdia). Sob efeito desse Ch, durante os rituais, os participantes das Sesses de Vegetal entram em um estado ampliado de conscincia em que podem ter a oportunidade de receber revelaes, atravs de miraes ou de um mergulho profundo na memria, possveis de provocar transformaes em suas vidas. Esses rituais so organizados, desde a origem desta instituio, de forma a privilegiar a tradio oral, buscando desenvolver a memria. Nesse contexto, a msica se faz presente, formando uma antologia prpria dessa religio, seja atravs das Chamadas — categoria nativa que designa uma espcie de cnticos sagrados evocados durante os rituais —, seja atravs de seleo criteriosa de algumas canes do universo popular brasileiro. Para auxiliar nessa empreitada, sero utilizadas, como base terica, as ideias de Edil Silva Costa, Hampate BA, Paul Zumthor, Jean-Nol Pelen, dentre outros que compem essa vasta epistemologia sobre as poticas orais e sobre as religies Ayahuasqueiras.

Palavras-Chave: Unio do Vegetal; Hoasca; Msica; Chamadas; Ritual.

Abstract: Composing a broader research, the present article intends to study the oral poetics present in the rituals of the Beneficent Spiritist Center Unio do Vegetal (CEBUDV), from the use of lato sensu music. This subject, although of interest to the academic world, has received little attention in the literature so far (LABATE & PACHECO, 2009, p. 14). Thus, music and religious experience instigate this work, focusing on the Unio do Vegetal, which is a religion with a reincarnationist Christian foundation, created in the Amazon rainforest, by Jos Gabriel da Costa, who uses in his rituals a Tea called Hoasca, also called Vegetable, considered sacred by its adherents (other religions or groups that make use of this drink call it Ayahuasca, a term that has become popular in academia and the media). Under the influence of this tea, during the rituals, the participants of the Vegetal sessions enter an expanded state of consciousness in which they can have the opportunity to receive revelations, through mirations or a deep dive into memory, possible to bring about transformations in their lives.           These rituals are organized, since the origin of this institution, in order to privilege the oral tradition, seeking to develop memory. In this context, music is present, forming an anthology of this religion, either through the Chamadas - a native category that designates a kind of sacred chants evoked during the rituals -, or through a careful selection of some songs from the Brazilian popular universe. To assist in this endeavor, the ideas of Edil Silva Costa, Hampate BA, Paul Zumthor, Jean-Nol Pelen, among others that make up this vast epistemology on oral poetics and Ayahuasqueira religions will be used as a theoretical basis.

Keywords: Unio do Vegetal; Hoasca; Song; Chamadas; Ritual.

 

 

No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princpio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

Joo 1:1-4

 

A palavra oral, mormente a cantada, fonte de inspirao desse artigo o qual, compondo uma pesquisa mais ampla, visa estudar as poticas orais a partir da msica lato sensu utilizada nos rituais do Centro Esprita Beneficente Unio do Vegetal (CEBUDV), doravante Unio do Vegetal, Unio ou UDV.

Sabemos que a literatura oral capaz de expressar e dar manuteno s regras e espaos de uma comunidade preservando sua memria. Existe um campo epistemolgico que trata desse assunto e que vem trazendo contribuies significativas, ao longo dos tempos, o qual est servindo de referencial para essa pesquisa.

A partir de fatos histricos da Unio do Vegetal, pretende-se apresentar o contexto musical no qual est inserida esta religio, perpassando por elementos estruturantes do rito[4], como as Chamadas — categoria nativa que designa uma espcie de cnticos considerados sagrados —, at chegar a canes do universo popular brasileiro, consideradas elementos suplementares, usados como auxiliar no desenvolvimento dos trabalhos espirituais.

Assim surge o questionamento: qual a natureza, a funo e o lugar que a palavra cantada (msica, canto, voz) ocupa nessa comunidade? Essa e outras questes, que surgem no decorrer das leituras, esto sendo exploradas nesse trabalho com o objetivo central de analisar as msicas e as canes como parte do ritual na UDV, do ponto de vista da potica.

A Unio do Vegetal uma sociedade religiosa, cujos ensinamentos e doutrinas so transmitidos por meio oral, atravs da pedagogia boca-ouvido, e que traz em si um rico manancial no que se refere s poticas orais. Em seus rituais, os associados, de livre e espontnea vontade, bebem o Ch Hoasca[5] com o objetivo de chegar a um estado profundo de concentrao mental.

A UDV foi criada no seringal Sunta, na fronteira do Brasil com a Bolvia, em 22 de julho de 1961, por Jos Gabriel da Costa — conhecido por Mestre Gabriel — e sua famlia. Mestre Gabriel nasceu em 10 de fevereiro de 1922, no municpio de Corao de Maria, prximo Feira de Santana, na Bahia. Como muitos outros cidados sobreviventes da seca do nordeste, esperanosos por um futuro melhor, ele saiu do serto nordestino, em 1944, para se integrar ao exrcito da borracha[6], indo trabalhar em seringais no norte do pas, posteriormente seguindo para Porto Velho[7], que era a capital do Territrio Federal do Guapor, conhecido hoje como o Estado de Rondnia. L enfrentou muitos desafios, a Floresta Amaznica e o contexto poltico e econmico pelo qual passava o pas, naquela poca, faziam daquele lugar, segundo Patrick Walsh, um ambiente hostil e catico (WALSH, 2017, p.21), entretanto, foi ali onde o Mestre Gabriel iniciou seu trabalho em busca do desenvolvimento espiritual do ser humano. Naquela poca, os seringueiros tambm faziam uso do Ch, mas com outras finalidades

Naquele perodo j existia as doutrinas do Daime e da Barquinha em Rio Branco-AC. No entanto, nos seringais onde Mestre Gabriel bebeu o Ch pela primeira vez no existia essas doutrinas. Os seringueiros tinham conhecido e aprendido a fazer o Ch com os ndios da regio, mas no seguiam o uso ritualstico. Muitos deles se referiam aos efeitos do Ch como cinema de ndio em aluso as vises provocadas pelos efeitos do Ch (WALSH, 2017, p. 21).

O Mestre Gabriel bebeu o Vegetal pela primeira vez[8], em 1959, das mos de um seringueiro chamado Chico Loureno, a partir da, junto aos primeiros discpulos que o seguiam, iniciou um processo de legalizao da instituio a fim de superar as perseguies policiais que comearam a surgir por conta do uso do Ch considerado, por muitos, entorpecente. Desde o incio, o Mestre Gabriel j buscou organizar o ritual, incorporando, de acordo com as necessidades que se apresentavam, os seus elementos, formando o corpo doutrinrio bsico da Unio do Vegetal (LABATE & PACHECO, 2009, p. 53).

Em todas as Sesses da Unio do Vegetal, desde a origem da instituio, a oralidade a principal forma de transmisso dos ensinamentos deixados pelo Mestre Gabriel. Nesse contexto, a msica se faz presente formando uma antologia prpria dessa religio, seja atravs das Chamadas, seja atravs de seleo criteriosa de algumas canes do universo popular brasileiro, ou mesmo de msicas instrumentais.

 

 

Msica e espiritualidade - o despertar de sentimentos

 

Sim, a msica um afluente da memria, a quem enche de vida e de quem se torna to ntima quanto o respirar. Ela traz em si o fino cristal, o lume da recordao.

Edson Lodi

 

imemorial o uso da msica em rituais religiosos. Do oriente ao ocidente, a grande maioria dos grupos sociais, que busca a espiritualidade, se utiliza dela como elo com o sagrado. O jornalista, poeta e pesquisador de msica nos rituais da UDV, Edson Lodi Campos Soares, em seu livro intitulado Cantiga de viola – relicrio de sons do serto (2018), escreveu a respeito dessa ancestralidade

Seja em forma de mantras, cantos gregorianos, incaicos, hinrios, chamadas, seja em outras manifestaes ritualsticas, de diferentes povos e culturas. De que so exemplo os povos indgenas que utilizam a Hoasca, aos quais creditamos a preservao da memria do uso desse sacramento, para que chegasse idade contempornea. (LODI, 2018, p. 26)

Alm disso, diversas reas do saber como a antropologia, a etnomusicologia etc tem observado a existncia marcante da msica no universo religioso, bem como a funo que esta representa. Por sua presena em uma grande diversidade de contextos e por despertar amplo interesse de estudos no meio acadmico, so tambm profusos os conceitos que a palavra msica possui. Para atender ao que se prope nessa pesquisa, valho-me do conceito apresentado pelo pesquisador Tiago de Oliveira Pinto - Diretor do Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha – ICBRA, que, ao estudar a msica a partir de uma antropologia sonora, diz:

Aqui msica no entendida apenas a partir de seus elementos estticos, mas, em primeiro lugar, como uma forma de comunicao que possui, semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus prprios cdigos. Msica manifestao de crenas, de identidades, universal quanto sua existncia e importncia em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo singular e de difcil traduo, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural (PINTO, 2001, p. 223).

Diversos grupos, antigos ou mais contemporneos, que fazem uso do Ch Hoasca em seu contexto religioso, utilizam a msica em seus rituais conforme observaram Bia Labate e Gustavo Pacheco no livro Msica Brasileira de Ayahuasca (2009)

Essa relao estreita entre msica e uso de Ayahuasca pode ser claramente observada nas religies ayahuasqueiras brasileiras – Santo Daime (nas vertentes Alto Santo e Cefluris), Barquinha e Unio do Vegetal – que desenvolveram formas especficas de manejar a msica na prtica ritual, incluindo a criao de um vasto repertrio musical prprio composto por hinos (Santo Daime), salmos (Barquinha) e chamadas (Unio do Vegetal). (LABATE & PACHECO, 2009, p. 10)

Dessa forma, a msica utilizada nos rituais da UDV configura parte do uso das poticas orais em seus ritos, contribuindo, junto a outros elementos dessa oralidade, para a disseminao e manuteno de sua cultura, preservando a memria coletiva. Noel Pelen fala da importncia da oralidade para a existncia e permanncia de uma comunidade, pois ela o meio mais direto da construo e manuteno das regras daquele lugar, A literatura oral a expresso dessas regras, das exigncias e saberes da memria da comunidade, e, ao mesmo tempo, ela que as instaura, as ratifica, e ela que a memria. (PELEN, 2001, p. 55).

R. Murray Schafer (1997), em seu livro A afinao do Mundo, fala de dois mitos gregos que apresentam a origem da msica: as Doze Odes Pticas, onde a msica se apresenta como emoo subjetiva (SCHAFER, 1997, p.21), e o Hino Homrico em louvor a Hermes, em que a msica Ҏ resultado da descoberta das propriedades sonoras dos materiais do universo (Ibidem) e diz que todas as teorias de msica, a partir da, esto aliceradas sobre esses fundamentos. A partir dessa origem, o conceito de msica de Tiago Oliveira Pinto tambm pode ser considerado uma extenso desses fundamentos, pois, ao considerar msica como som e movimento num sentido lato (PINTO, 2001, p. 22) ele apresenta diversas possibilidades de compreenses. Aos valores estticos e fsicos que a msica possui, ele acrescenta a dimenso cultural, que tambm subjetiva e diz respeito manifestao, manuteno e transmisso de conhecimentos de determinada comunidade. O que, em certa medida, aumenta a complexidade da compreenso de msica, pois ao passo em que leva em considerao aspectos tradicionais (ao observar, por exemplo, a funo da msica em um ritual, ou numa sociedade indgena), considera tambm caractersticas volteis, quando considerada fora do seu contexto de origem. O pesquisador traz ainda uma contrapartida aos estudos ocidentais tradicionalistas sobre msica afirmando que por sua vez, esta verso histrica da musicologia se ocupa, primordialmente, da msica erudita de cunho ocidental e de suas extenses em territrios no europeus, excluindo manifestaes de tradio oral e mesmo popular (PINTO, 2001, p. 226).

Alm desse elo com as divindades, a msica, utilizada em ritos religiosos, desperta sentimentos profundos, muitos dos quais esquecidos no corao humano. Quem jamais guardou em si uma cano? Com essa questo, Edson Lodi nos instiga a pensar sobre o efeito da msica na memria, como um instrumento auxiliar de recordaes. 

Quem Jamais guardou em si uma cano? Ao ouvi-la, certamente emocionou-se uma vez mais com o caudal de lembranas que emergem da memria, verdadeiras ilhas que permanecem ao longo dos anos, dcadas, e que, a um leve toque, abrem-se em conchas de sonoridade mpar, recordaes de um tempo que se viveu. E que faz reviver um amor, um lugar, uma paisagem, qualquer coisa preciosa que se guardou para sempre no corao. (SOARES, 2018, p. 21-2)

A msica est presente desde sempre. A natureza, com sua infinitude e exuberncia, compe divinas sinfonias. O ar, o mar, as florestas com seus encantos, seus bichos e rios, tudo isso j produzia msica mesmo antes do homem comear a confeccionar instrumentos que buscassem reproduzir os sons naturais.

            A questo apresentada na introduo desse trabalho constitui o cerne dessa pesquisa, pois, atravs dela, pode-se refletir sobre a relao entre msica, espiritualidade e cultura. Para tentar responde-la, buscarei conceituar alguns elementos bsicos presentes nos rituais da UDV. A comear pela natureza das Sesses. Existe uma diversidade de tipos de Sesses na Unio do Vegetal, as regulares ocorrem nos primeiros e terceiros sbados de cada ms, so as chamadas de Sesses de Escala, destinadas a todos os scios da UDV, iniciam sempre as 20:00h, com a ingesto do Ch e paralisam, no mximo, meia-noite e quinze. Tm-se tambm as Sesses de Escala Anual, tambm liberadas para todos os scios, as quais celebram datas especficas uma vez por ano, so elas: Sesso de Reis, dia seis de janeiro; aniversrio do Mestre Gabriel, dia dez de fevereiro; ressurreio do Mestre, vinte e sete de maro; So Joo, vinte e trs de junho; recriao da Unio do Vegetal, vinte e dois de julho; So Cosmo e So Damio, vinte e sete de setembro; Confirmao da Unio no astral superior, primeiro de novembro e Sesso de Natal, vinte e quatro de dezembro. Alm da Sesso Instrutiva, as quais ocorrem ao meio dia e onde s se permite a participao de scios do grau instrutivo, das Sesses Extras e dos Preparos de Vegetal, ritual que dura em torno de trs dias, onde se produz o Ch Hoasca e todos os scios esto autorizados a participar.

Nas Sesses de escala (tanto as mensais quanto as anuais), aps a ingesto do Ch Hoasca por todos os presentes, so lidos documentos (boletins e estatuto) que orientam a conduta do discpulo dentro e fora da Unio, nas demais Sesses, essa leitura no realizada. No obstante, em qualquer tipo de Sesso da UDV a msica se faz presente, mormente em forma de Chamadas.  As escalas acontecem no templo ou, a depender da quantidade de participantes (em algumas escalas anuais pode acontecer de ter muitos visitantes em um Ncleo), podem acontecer no barraco. Nesses supracitados casos, tem-se uma mesa grande, geralmente com quatro ou seis cadeiras ladeadas, que so ocupadas por scios[9] de diversos graus e uma ao centro, onde senta-se a pessoa responsvel por conduzir os trabalhos, chamada de Mestre dirigente, que pode ser homem ou mulher de qualquer grau hierrquico dentro da UDV e escolhido pelo Mestre Representante. Cada pessoa que ocupa um desses lugares tem uma funo especfica durante o ritual. A pessoa que senta ao lado direito do Mestre Dirigente, na ponta da mesa, realiza a leitura dos documentos. Aps a concluso da leitura desses documentos, o scio que est sentado ao lado esquerdo do dirigente, prximo a ele, faz uma breve explanao do que foi lido, na inteno de auxiliar conduo dos trabalhos. Nesse momento, o Ch que foi ingerido no incio do ritual j tem o seu efeito iniciado[10], considerando que cada experincia sempre nica e individual. Todas as demais pessoas presentes permanecem sentadas durante quase todo o tempo de Sesso, levantando-se apenas para fazer alguma pergunta ou para sair do salo, sempre que possvel, pedindo licena ao Mestre Dirigente para quaisquer aes durante o ritual.

Aps a explanao, o Mestre Dirigente inicia uma sequncia de Chamadas (as quais no so acompanhadas de instrumentos), que abrem os trabalhos — so as Chamadas de abertura da Sesso —. Regularmente as Chamadas de abertura seguem uma ordem que prope tanto uma graduao na apresentao das foras que esto sendo chamadas, por exemplo, a primeira, intitulada de Sombreia, vem pedindo sombra e luz para auxiliar na chegada da burracheira[11], quanto uma graduao na compreenso dos participantes.

Aps a abertura da Sesso, feitas as primeiras Chamadas, o Mestre Dirigente d continuidade ao ritual fazendo a ligao da burracheira, perguntando aos presentes se tem burracheira e luz. Trata-se de um momento considerado sagrado, assim como toda a Sesso, mas que tem suas particularidades por ser o veculo atravs do qual se faz a ligao com o superior, abrindo os trabalhos, usando uma categoria nativa, o momento em que se abre o oratrio com o divino. Assim, os participantes mantm silncio para poder receber (outra categoria nativa que quer dizer que a pessoa sente a presena de uma fora superior) a fora do Vegetal que est sendo evocada naquele momento.

As Chamadas fazem parte do corpo doutrinrio da Unio do Vegetal, grande seu valor espiritual. Nessa religio, acredita-se que elas tem origem divina e foram trazidas pelo Mestre Gabriel e as pessoas que recebem uma Chamada se colocam como porta voz desse Mestre, acontece, como disse o professor Jos Jorge de Carvalho, ao escrever o prefcio do livro Msica Brasileira de Ayahuasca, um transbordamento espiritual desse limite humano para o fazer musical, pois aprendemos que a prpria substncia preparada com a planta sagrada que ensina canes aos Mestres e organiza a msica praticada no ritual de bebida e devoo (CARVALHO, Apud Labate e Pacheco. 2009, p. 10). Nesse mesmo livro, Labate e Pacheco afirmam que:

por meio das chamadas, evoca-se o auxlio das foras espirituais para o bom andamento da Sesso, sendo frequentes os pedidos por luz, fora, socorro, serenidade, sade etc. Considera-se que as chamadas tm origem divina, no sendo, portanto, criadas por alguns indivduos, mas sim trazidas – diz-se, por exemplo, o Mestre Gabriel trouxe essa chamada. (LABATE & PACHECO, 2009, p 62).

Em entrevista realizada pelo Mestre Edson Lodi, intitulada Uso das Chamadas exige critrio, publicada no Informativo Alto Falante de 1996, o Mestre Monteiro (uns dos Mestres integrantes do Conselho da Recordao dos Ensinos do Mestre Gabriel - CREMG), ao ser questionado sobre a funo da Chamada, respondeu que H Chamadas cuja funo conduzir as pessoas na burracheira. H Chamadas que conduzem com a clareza. Outras trazem mais Fora para a Sesso, e h outras que fazem a gente viajar no tempo (MONTEIRO, 1996, p.4). Isso mostra o cuidado que se deve ter ao trazer uma Chamada durante uma Sesso com o Vegetal, pois ela pode auxiliar a tirar uma pessoa de alguma situao indesejada, mas pode tambm trazer mais fora para a Sesso, aumentando a burracheira, por isso que o uso de Chamadas, durante uma Sesso, exige critrio. Na Unio do Vegetal, as Chamadas so conhecimentos reservados aos seus scios, devendo ser estudadas apenas em rituais religiosos, onde a fora da burracheira, potencializada pela ingesto da Hoasca, permite o adequado estudo e compreenso desses e de outros elementos.

Na UDV, assim como em outras religies, sejam de matriz africana, rituais indgenas, cristos etc, a palavra tem um lugar especial na (re)ligao do homem como o divino, tanto a palavra falada quanto a cantada. Nessa religio, a palavra cantada funciona como um instrumento auxiliar do Mestre na suplementao de doutrinas, de ensinos e mesmo para despertar sentimentos profundos muitas vezes esquecidos no corao humano. Quando se trata de Chamada, conforme j fora apresentado, ela pode ser considerada elemento estruturante dos rituais, considerando que sempre est presente, seja qual for a natureza da Sesso. No tocante s demais msicas (instrumentalizadas) que so tocadas em rituais, no h obrigatoriedade do seu uso, por isso trata-se de um recurso suplementar do Mestre.

            A partir de pesquisas em documentos do acervo do Departamento de Memria e Comunicao (DMC) do Ncleo Corao de Maria (localizado na cidade de Corao de Maria – BA), o qual eu sou scia, e da Sede Geral (localizada em Braslia), disponibilizados via site da Organizao, jornais e informativos antigos, tambm a partir de conversas com pessoas mais antigas e observando as minhas prprias experincias com a burracheira, ao longo de dez anos, percebo que qualquer msica pode ser tocada durante um ritual da Unio do Vegetal, desde a rainha do xaxado – Marins -, passando por Roberto Carlos, Elis Regina, Bach, at o pai do rock brasileiro – Raul Seixas, dentre outras. Seja qual for a msica escolhida para a composio do trabalho espiritual, durante a burracheira, o que importa, ao responsvel pela sua execuo, ter conscincia da natureza, funo e lugar que ela ocupa no rito. Esses elementos exigem certa sensibilidade e o dirigente de uma Sesso, sabendo da importncia deles, procurar propor uma cano que atenda s necessidades apresentadas no ritual a qual, por exigir ateno e critrio, dever ser autorizada pelo Mestre Representante. Existe ainda a possibilidade de um participante da Sesso, seja qual for o seu grau, sugerir a audio de alguma cano, isso tambm passa pelo crivo do Mestre Representante.

 

 

Consideraes Finais

 

Considerando a oralidade como importante via na elaborao de pensamento e transmisso de ensinamentos, um dos principais ensinos que venho guardando comigo, desde que iniciei essa pesquisa (de maneira formal), uma 'palavra' que minha orientadora escutou da sua orientadora, Jerusa Pires Ferreira, e transmitiu a mim: ningum pesquisa o que no est dentro de si!. Como que trabalhando a minha memria, despertando sentimentos e aes, esse valioso ensino vem me impulsionando, me dando fora e coragem.

Pesquisar um assunto estando dentro dele no tarefa fcil, por mais que as mentalidades estejam se transformando e a academia esteja abrindo suas portas, o pensamento cartesiano ainda insiste em querer colocar cada coisa num nico lugar.

Sob os olhares desconfiados de alguns membros da Instituio em estudo, os quais temem uma exposio perigosa, e, ainda, sob a crtica de algumas elites acadmicas, as quais no acreditam que possvel se distanciar para enxergar seu "objeto" sem proselitismo, eu me aventuro nessa tnue linha de fronteira, me posicionando como pesquisadora nativa.

Assim, esse artigo intencionou apresentar o esboo de um trabalho maior, onde a constante busca por mais informaes renderam uma dissertao de Mestrado. Espera-se com esse trabalho estreitar os laos entre a academia e Unio do Vegetal, apresentando e analisando aspectos de seu ritual, a partir das poticas orais presentes nesse contexto.

 

 

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[1] A primeira verso desse artigo foi produzida como trabalho final de disciplina do Mestrado em Crtica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e trata-se tambm de um recorte do projeto de dissertao do referido curso.

[2]  Mestre em Crtica Cultural pelo Ps Crtica. E-mail: neiletras@gmail.com.

[3] Doutora em Comunicao e Semitica pela PUC-SP, professora permanente do Ps Crtica.  E-mail: escosta@uneb.br.

[4] rito entendido aqui como uma ao que abarca o grupo social, definindo-lhe papis funcionais e, ao mesmo tempo, assegurando ao grupo relaes tranqilizadoras com o outro mundo, a divindade, as foras diante das quais o homem se sente dependente" (Zumthor, 2005, p. 99).  

[5] Trata-se de uma bebida feita a partir da decoco de duas plantas de origem amaznica: as folhas de um arbusto de nome Chacrona (Psychotria viridis) e um cip de nome Mariri (Banisteriopsis caapi). A ingesto dessa bebida proporciona um estado de conscincia ampliada (EAC).

[6] Refere-se a um momento sombrio da histria do Brasil, entre 1942 e 1945, pouco ou nada divulgado, onde, atendendo a interesses blicos, morreram mais de 30 mil dos 55 mil homens que se alistaram para extrair a seringa, que era a matria prima utilizada na produo da borracha empregada na confeco de armas a serem utilizadas durante a segunda Guerra Mundial.

[7] Cf. Centro Esprita Beneficente Unio do Vegetal (1989), site oficial da UDV: www.udv.org.br.

[8] Cf. Ruy Fabiano, 2012.

[9] Scios so os membros da instituio que decidem se associar assumido algumas responsabilidades perante instituio como zelar pelo ncleo o qual frequenta, participar regularmente das Sesses, trajar o uniforme completo nas Sesses etc.

[10] O efeito do Ch varia de pessoa a pessoa, alm de questes orgnicas, existe o mistrio espiritual que s pode ser apreendido dentro da experincia.

[11] Categoria nativa que se refere ao efeito que o Ch provoca em quem bebe - significa Fora Estranha.