O
maravilhoso amaznico, uma potica da alteridade
The Amazonian Marvellous,
Poetics of Alterity
Sylvia Maria Trusen[12]
https://orcid.org/0000-0003-4248-929X
Resumo:
De modo geral, as pesquisas em torno das narrativas tradicionais de
fundo maravilhoso assentam-se sobre a dicotomia real x fabuloso, natural x
sobrenatural, verossmel x inverossmel,
conforme lemos nas postulaes de Todorov (1975), Bessire
(1974), Max Lthi (1992), Hetmann
(1982), dentre outros. Contudo, quando tais teorizaes so confrontadas com o
corpus narrativo de tradio mtica e oral, recolhido na Amaznia Paraense,
elas revelam-se insuficientes para tratar da recepo do maravilhoso neste
territrio, uma vez que tais narrativas no se escoram na antinomia assinalada
acima. Partindo de tal constatao,
elegeu-se a categoria da alteridade, conforme proposio de Victor Bravo,
sugerindo, assim, possvel clave para o estudo do que nomeia-se aqui maravilhoso
amaznico. Desse modo, revistando os textos consagrados em torno do gnero,
tais como o Introduo literatura
fantstica (T. Todorov), Das europische Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit fantastique (I. Bessire), por um lado, e, por outro, a recolha de
narrativas da Amaznia paraense efetivada pelo Projeto O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares
da Amaznia Paraense, o artigo destaca a
categoria da alteridade como termo de importncia central para a leitura de
tais narrativas.
Palavras-Chave: Maravilhoso,
Alteridade, Amaznia
Abstract: In general, the research of the
traditional narratives with a background of the Marvellous
are based on the real dichotomy x fabulous, natural x supernatural, verossimel x unlikely, as we read in the postulations of
Todorov (1975), Bessire
(1974), Max Lthi (1992), Hetmann
(1982), among others. However, when such theories are confronted with the
narrative corpus collected in the Amazon Region of Par, they are insufficient
to deal with the reception of the marvellous in this
territory, since such narratives do not stand in the antinomy indicated above.
Starting from this observation, the category of alterity was chosen, according
to Victor Bravo's proposition, thus suggesting a possible key to its study. Thus, reviewing the established texts
around the genre, such as Introduction to fantastic literature (T.
Todorov), Das europische Volksmrchen (M. Luthi), Le rcit
fantastique (I. Bessire), on the one hand, and, on the other, another, the
collection of narratives from the Par Amazon carried out by the Project O
Imaginrio nas Formas Oral Narrativas Populares da Amaznia Par, the
article highlights the category of alterity as a term of central importance for
the reading of such narratives.
Keywords: Marvellous, Alterity, Amazon
O ttulo dado a este trabalho coloca a
quem o escreve e, possivelmente, a quem o l, diante de pelo menos duas
indagaes – o que o autor deste texto compreende por maravilhoso
amaznico, e qual o elo vislumbrado com o que se denomina potica da
alteridade.
O termo maravilhoso, recorrente na
teorizao que se debrua sobre as fronteiras da literatura do fantstico
(TODOROV, 1975) ou, de modo mais
abrangente, do inslito (GARCIA, 2012) frequentemente invocado para tratar de
uma multiplicidade de formas artsticas – no s literrias (SCHUHL,
1969) – que por si s demandaria uma vasta reviso bibliogrfica,
inexequvel nos limites de um artigo. Schuhl (1969)
j o anotou, advertindo que para dar conta de sua magnitude haveria que se
enveredar por sendas to diversas como as do maravilhoso religioso, ferico,
utpico, mtico, cientfico, etc. Todorov (1975), de modo mais conciso,
referiu-se a trs modos de representao do maravilhoso na literatura – o
extico, o hiperblico e o intelectual – ao passo que I. Chiampi (1980) teorizou acerca do realismo maravilhoso
estabelecendo as balizas para a distino do realismo mgico.
Face amplitude dos estudos e diante das
mltiplas configuraes que o gnero pode assumir, importa aqui ater-se apenas
aos trabalhos cuja leitura torna-se necessria para compreenso do que se
designa maravilhoso amaznico. Inevitvel no percurso deste texto o Introduo literatura fantstica, obra
na qual o fantstico descrito como gnero evanescente, provisoriamente
sustentado sobre as hesitaes das personagens (e, por extenso, do leitor
implcito), diante de uma realidade, tornada a seus olhos inverossmil ou
inacreditvel. O maravilhoso, por conseguinte, constituiria gnero, em que se
encena o sobrenatural sem que os fenmenos descritos despertem qualquer reao
de assombro por parte do leitor.
No
fim da histria fantstica, o leitor, quando no a personagem, toma, contudo,
uma deciso, opta por uma ou outra soluo saindo desse modo do fantstico. Se
ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os
fenmenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gnero: o estranho.
Se ao contrrio, decide que se devem admitir novas leis da natureza pela quais
o fenmeno pode ser explicado, entramos no gnero maravilhoso. (TODOROV, 1975,
p. 42)
Para Todorov, portanto, o maravilhoso,
como gnero literrio delimitado pelo fantstico, depende da presena ou
negao da credulidade (por parte da personagem e/ou leitor) diante de fenmeno inslito.
Tal descrio do fantstico, vale
assinalar, deve bem mais ao ensaio freudiano, O Estranho (FREUD, 1996a), do
que admite seu tratado. Conquanto o linguista e pensador blgaro faa
referncia explcita ao artigo de 1919, a meno pouco revela do fato de que
boa parte de sua fundamentao erige-se sobre este trabalho de Freud. Com
efeito, deve-se primeiramente ao psicanalista, em seu estudo sobre a novela de
Hoffmann, a diferenciao entre o maravilhoso ferico e o estranho, tomando por
base o contraste com a realidade construda pelo leitor. Assim, se o texto
freudiano j assinalara que o reino da fantasia depende, para seu efeito, do
fato de que o seu contedo no se submete ao teste de realidade (FREUD, 1996,
p. 266), ele antecipa muito das proposies de Todorov. Em ambos, entretanto, a descrio do
maravilhoso comparece sob a clave do fabuloso, extraordinrio, daquilo que no
se submete aos critrios de veracidade - aspecto que pode ser lido em uma
variedade de textos tericos produzidos a respeito, particularmente no
continente europeu. Assim tambm, por exemplo, o do suo Max Lthi ao distinguir os elementos constitutivos do conto
maravilhoso (Mrchen)[13],
que observa.
No
conto maravilhoso (Mrchen),
o heri que encontra um animal, planta, ou astro falante, no demonstra nem
medo nem espanto. Isto, no porque o animal ou planta falante lhe fosse
familiar; eles no integram seu habitat natural. Nada indica que ele soubesse
da existncia de tais animais falantes. Mas ele no se admira, e no teme: o
sentimento para o extravagante lhe falta. Para ele, tudo parece pertencer
mesma dimenso. (1992, p. 10) [14]
Assim, noes tais como fabuloso,
extraordinrio, sobrenatural so termos recorrentes na literatura que aborda
esse gnero descrito na regio limtrofe do fantstico, como se l tambm,
dentre outros, em Hetmann (1982) e Bessire (1974).
O problema, porm, como j se assinalou
anteriormente (TRUSEN, 2015) que tais categorias operam a partir de convenes
extremamente variveis e cada vez mais deslizantes na contemporaneidade. Se a
vasta literatura medieval, com suas ilhas venturosas, seus objetos mgicos e
protetores sugerem em seu amplo espectro a crena fincada no mirabilia (LE
GOFF, 1994), a compilao de narrativas amaznicas, no outro extremo temporal e
geogrfico, igualmente testemunha a incorporao do maravilhoso ao mundo
prosaico e cotidiano.
Assim, consideraes como as de Hetmann que, citando a Polivka e Bolte afirma que o conto maravilhoso (Mrchen) so histrias
extraordinrias no ancoradas nas condies de vida real, e que ouvimos com
maior ou menor prazer, embora as consideremos inacreditveis (1982, p. 12),
conquanto sejam apropriadas no contexto europeu, pouco auxiliam na compreenso
das narrativas do maravilhoso amaznico.
A impreciso de seus termos deriva
basicamente de dois fatores – o primeiro deles porque se referem a um
conjunto de textos que passou por percurso que se vem assinalando, em outros
trabalhos (TRUSEN, 2012), como processo de domesticao e alijamento do
maravilhoso ao mbito dos lares burgueses quando, a partir do surgimento do
pensamento ilustrado, assiste-se a crise da cosmologia crist que ter, como
efeito mais imediato, a emergncia do sujeito racional como entidade
privilegiada para o conhecimento das coisas no mundo. Efetivamente, pontua,
igualmente a respeito, David Roas:
A
rejeio ao sobrenatural se traduziu tambm em condenao de seu uso literrio
e esttico. As perspectivas ilustradas da segunda metade do sculo XVIII
enalteceram os conceitos de verossimilhana e mimese como armas fundamentais
para desterrar a presena do sobrenatural e do maravilhoso dos textos
literrios. (ROAS, 2006, p. 24) [15]
Explica-se, assim, que as teorizaes em
torno do inslito terminem, majoritariamente, a referir-se ao conto
maravilhoso, mediante sua identificao e circunscrio a rbita do
moralizante, anotando nele feio resignatria.
Ele
[o conto maravilhoso] usa o universo dos fantasmas e da no-coincidncia do acontecimento
com a realidade evidente, no para romper nossos vnculos com essa realidade,
mas para nos assegurar (nos tranquilizar) da nossa capacidade e da validade dos
meios (a moral, as leis da conduta e do conhecimento de nosso domnio prtico)
(BESSIRE, 1974, p. 57)
A afirmao parece, como visto,
respaldar-se em certa compreenso do maravilhoso que o vincula muito fortemente
funo que o gnero desempenharia. Nesse sentido, ele estaria voltado no
tanto para a ruptura com o que rodeia e ordena o mundo para o homem –
algo que, segundo a autora, seria bem mais perceptvel na literatura fantstica
– mas destinado harmonizar, ou melhor, a ajustar o indivduo ao seu
meio ambiente.
Postura bem similar a que lemos no
ensaio de Rosie Jackson:
As fantasias que penetram no reino do maravilhoso so as
nicas que tem sido toleradas e que tem alcanado uma ampla disseminao
social. A criao de mundos secundrios atravs do mito religioso, a magia ou a
fico cientfica se baseia em mtodos legalizados - a religio, a magia, a
cincia – para o estabelecimento desses outros mundos, que so
compensatrios, pois preenchem uma
lacuna a partir de uma apreenso da atualidade como algo desordenado e insuficiente
(...). Sua base novelesca d a entender que o universo , em ltima instncia,
um mecanismo autorregulado no qual a bondade, a estabilidade e a ordem acabaro
por impor-se. Essas fantasias,
pois, servem para estabilizar a ordem social ao minimizar a necessidade de
interveno humana em um mecanismo csmico organizado segundo um principio de
benevolncia. (JACKSON, 2002, p. 144)
, pois, nesse sentido que se vem
sustentando ser necessrio distinguir entre o uso, vale dizer, a
instrumentalizao que a cultura ocidental, em muitos momentos, empreendeu do
maravilhoso, e a potica que lhe prpria. Assim, por exemplo, a anlise da
compilao, realizada pelos Irmos Grimm, evidencia que o emprego do gnero a
servio de uma dada concepo de lar, implicou no s a domesticao do
maravilhoso, mas que, igualmente, significou, muitas vezes, reduo da potncia
que lhe prpria. Em outros termos, resultou no confinamento de um conjunto de
procedimentos criativos, cuja ordenao de ordem inversa ao cogito racional,
a um territrio frequentemente relacionado ao era uma vez dos contos
recolhidos e ajustados mentalidade burguesa crist, nos moldes da famlia dos
sculos XVIII e XIX.
Essa observao crtica a certa
teorizao sobre o maravilhoso, se talvez pertinente no contexto europeu,
faz-se to mais urgente quando confrontada com certo repertrio de narrativas
amaznicas, igualmente atravessas pelo mirabilia.
A urgncia dessa releitura resulta,
porm, de um segundo fator. A conceituao do maravilhoso identificando-o, ora
a um tempo perdido, ora ao aparecimento do que no se subjuga esfera do que
se concebe por natural, pouco ou nada se coaduna com as narrativas ouvidas e/ou
lidas em textos que transcrevem para o impresso o repertrio do imaginrio
amaznico. A referncia aqui particularmente aos relatos coligidos pelo
projeto integrado IFNOPAP (O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais Populares
da Amaznia Paraense), nas colees Santarm
conta...., Abaetetuba conta...., Belm conta...., Bragana conta.... , dentre outras, realizado na regio norte do
pas. Com efeito, ao leitor que se disponha a folhear algumas delas, logo se
evidenciar a dificuldade para o estudioso brasileiro de manejar tais
narrativas a partir de claves de leitura to pouco afeitas como as forjadas no
continente europeu. No s a indefinio de tempo e lugar revertida em favor
da localizao geogrfica do que se narra, mas sobretudo a oposio real x
irreal, natural x sobrenatural completamente suspensa em prol da aliana
entre termos considerados antagnicos, pelo pensamento ocidental moderno.
Que quando a minha me saiu do quarto. A, ela apareceu
grvida, s que j nasceu j diferente, j um pouco, sabe? Muita coisa ela j
trouxe. Eu queria que tu o visses, rapaz (..). Era jito
aquele, aquela [boquinha] [16]
digo, boquinha, sabe. Tinha tudo, aqueles leros do
boto, aquele jeito, tudo . (SIMES;
GOLDER, 1995, p. 24)
O fragmento acima, retirado da narrativa
contada por Manoel da Fonseca foi transcrito por Conceio Vasconcelos e
encontra-se na coletnea Abaetetuba
conta....., que rene causos, relatos, em narrativas do nordeste paraense,
no municpio de Abaetetuba, localidade situada s margens do rio Marataura, afluente do Tocantins. Nela, se leem os
indcios da gravidez de mulher seduzida por figura recorrente nas histrias da
regio, que, como a Cobra Grande, emprenha as mulheres. Se aqui a concepo
pelo golfinho sugerida com naturalidade, em outras, a palavra do narrador
certifica a veracidade do relato.
Bom, ento a minha palavra que eu vi, isso (...) . Agora,
os antigos diziam que existia esse navio encantado, entre vspera de So Joo,
[que o navio aparecia]. Muita gente, teve gente que quis atirar, mas no teve
coragem, porque dizem, assim, se atirassem desencantava. Mas, temiam no
desencantar, n? (SIMES; GOLDER,
1995, p. 99)
Ambos os fragmentos servem para ilustrar
no s o frtil imaginrio da regio, mas tambm para sublinhar a recorrente
marca de testemunhos – amigos, familiares, o prprio narrador –
e/ou locais e situaes, de modo a
certificar o ouvinte e provvel leitor de que o narrado corresponde verdade dos
fatos. Contudo, se o registro da autenticidade se faz necessrio, porque ele
se tece na fronteira com a suposta (in)credulidade do interlocutor. Resulta da
um curioso liame entre a percepo de que aquilo que se narra extraordinrio,
porm crvel, dado que verdadeiro, como asseguram seus narradores. De todo
modo, invocada a confiabilidade, tais narrativas parecem contradizer a
literatura sobre o maravilhoso que opera a partir das antinomias aqui
assinaladas.
Esta relao peculiar entre o campo do
natural e do sobrenatural faz assomar memria certa descrio do maravilhoso
na literatura do continente americano. No prlogo do El reino de este mundo, Carpentier postula sua teoria do
maravilhoso americano em que se entretece uma dada percepo do continente,
cedida pelos primeiros cronistas, com uma reinveno da escrita latino
americana, como bem o anotou o estudo de Irlemar Chiampi (1980). Com efeito, no manifesto, Carpentier
procurando definir os meandros dessa elaborao sincrtica, traada a partir da
conjuno da histria haitiana com o universo do mirabilia, tambm prope as
balizas para uma escritura para o continente, demarcada pelo encontro entre o
prprio e o alheio.
Havia respirado a atmosfera criada por Henri Christophe,
monarca de incrveis realizaes, muito mais surpreendentes que as de todos os
surrealistas, muito afeitos a tiranias imaginrias, ainda que no padecidas. A
cada passo encontrava-me com o real
maravilhoso [grifo do autor]. Mas, pensava, ademais, que essa presena e
vigncia no era privilgio nico do Haiti, seno patrimnio da Amrica inteira
(). (CARPENTIER, 1975, p. 55) [17]
Tentador, portanto, resgatar a
conceituao do escritor cubano para compreender as narrativas da regio
amaznica brasileira, em que se nota a indistino entre o terreno do
excepcional e do ordinrio, entre o fabuloso e o verdico. Contudo, um rpido
exame logo identificar a impossibilidade do nexo. O conceito proposto por
Carpentier deriva de uma proposta ontolgica para a Amrica, no s resultante
do entrelaamento entre mito e histria, como tambm deriva de perspectiva
realista, cedida pelo extraliterrio (o real maravilhoso caracterstico da
realidade haitiana (CHIAMPI, 1980. p. 37 e passim). As narrativas a que se faz
aluso aqui no encenam a conjuno pleiteada por Carpentier entre mito e
histria – embora suspendam as relaes de antinomia – tampouco
constituem elaboraes ficcionais de um escritor particular, mediatizadas por
uma dada perspectiva do real. Parece-lhe, todavia, ser caracterstica a
presena de elementos do maravilhoso, fortemente fincadas em figuras mticas
(Boto, Cobra Grande, Matintaperera, Nau encantada, dentre outros) que revelam
uma relao especfica com o espao – a floresta e os rios.
Outrossim, essas narrativas que aqui nomeia-se maravilhoso
amaznico denotam marcas de testemunho em relatos que admitem, como forma
discursiva inversa racionalidade moderna, a relao harmoniosa, isto , no
excludente entre contrrios, mediante metamorfoses que assumem ora a forma
humana, ora a animal.
E, finalmente, um terceiro aspecto a ser
considerado que muitas das figuras mticas a presentes situam-se na
interseco entre natureza e civilizao, a exemplo da Cobra Grande e do Boto,
resultante de sua natureza errante entre rios e vilarejos.
A direo da argumentao aqui, conduz,
como se v, noo de alteridade, operador com que o pensamento filosfico do
sculo XX e a psicanlise, a partir de Freud, e sobretudo desde Lacan
(SPIELMANN, 2000), tm destacado a relao no excludente entre pares
contrrios (Mesmo/Outro, Civilizao/Natureza, Razo/Loucura, Dentro/Fora,
Masculino/Feminino, Natural/Sobrenatural). Efetivamente, se o termo oriundo do
latim altarǐtas aponta para as relaes de contraste (HOUAISS,
2001) ele designa no s o que diverso, mas sobretudo a relao entre
dois seres ou entidades distintas ou supostas como tal. Nesse sentido, a alteridade o contrrio da
identidade, como o outro o contrrio do mesmo. Poder-se-ia fazer disto um
princpio: toda coisa sendo idntica a si mesma (princpio da identidade)
tambm diferente de todas as outras (princpio da alteridade).
(COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 53). [18]
Donde, a noo de alteridade, significando e abrangendo a ideia da diferena
efetiva-se dialogicamente – isto , na relao entre termos opostos, mas
no excludentes, uma vez que o Outro s pode ser apreendido como tal em relao
ao Mesmo. Compreendida a alteridade, portanto, como categoria imprescindvel
para o entendimento das relaes humanas no campo inter
e intrasubjetivo, ela passou a ocupar lugar central
no somente entre os cientistas sociais, mas tambm no meio psicanaltico e nos
estudos literrios. Concernente a esses ltimos, cabe aqui assinalar os nomes
de Octavio Paz e o de Victor Bravo, com os quais pretende-se, por fim,
estabelecer o lao final entre o que se designou maravilhoso amaznico e uma
potica prpria, enunciadora da alteridade humana e literria.
O crtico literrio venezuelano em obra
que est ainda aguardando traduo para o portugus e urgente reedio,
partindo da noo de alteridade dada pelo poeta e pensador mexicano, bem como
dos estudos de Foucault, observa que a cultura judaico-crist operou, no
Ocidente, por um sistemtico repdio s formas culturais que se antagonizaram
razo, ou para usar a terminologia do autor, s formas do Mesmo. Com efeito, na
obra citada por Bravo, Conjunciones y Disyunciones,
O. Paz, tratando das polivalncias abrigadas sob a picardia, aponta para o
problema da metfora e as faces que a compe – o lugar da civilizao e o
princpio da realidade, por um lado, e, por outro, o territrio do desgoverno,
e o princpio do prazer. Nesse sentido, anota o poeta e ensasta mexicano, a
picardia, e a gargalhada, que dela resulta, ordenam uma sntese que traduz duas
caras – o Eu e o Outro [19]
– que nos (des)governam. Nesse sentido, a
picardia desvelaria e simultaneamente mascararia os segredos, face ao nosso dia-a-dia
do mundo civilizado.
L-lo
participar de um segredo. Em que consiste este segredo? Este livro nos ensina
nossa outra cara, a oculta e inferior. O que digo deve entender-se
literalmente: falo da realidade que est abaixo da cintura e que a roupa nos
cobre. Refiro-me a nossa cara animal, sexual: ao cu e aos rgos genitais (PAZ,
1969, p. 12) [20]
Se bem verdade que o problema foi
abordado bem anteriormente por Freud, em Os
chistes e sua relao com o inconsciente, este enlace pe em relevo a articulao
Mesmo/Outro, Civilizao/Natureza, indicando a dinmica de alteridade, a mesma
que serve ao crtico Victor Bravo para pensar a literatura do fantstico e do
maravilhoso.
O
drama de toda cultura o intento de reduzir o irredutvel, a alteridade,
tranquilidade ideolgica do Mesmo, da Identidade. A alteridade parece ser o
insuportvel. A ordem que toda cultura de alguma maneira sacraliza a inteno
de reduzir a alteridade s formas do Mesmo.
(BRAVO, 1985, p. 16) [21]
Assim, se a alteridade assinala a relao
no excludente entre pares antinmicos, ela aponta igualmente para a dinmica
subjacente dolorosa experincia humana de saber-se racional, sujeito da
cultura, e, simultaneamente, Outro – ser primitivo, intuitivo,
desgovernado - malgrado os ditames da razo.
H, todavia, assinala o Los poderes de la ficcin (BRAVO, 1985) formas literrias que pem a
descoberto, de modo mais ou menos flagrante, tanto a alteridade humana, como
aquela que constitui o prprio discurso literrio, em seu processo mimtico de
reproduzir e simultaneamente desrealizar o mundo
emprico. Com efeito, se o texto literrio sobrevive no tnue liame entre a
representao especular das coisas circundantes e a encenao de sua prpria
espessura literria, o fantstico e o maravilhoso, para Bravo, constituem os
modos discursivos que mais evidenciam a alteridade prpria do homem e das
narrativas por ele produzidas. Dito em outros termos, se a literatura vive da
complexa e tensa relao com a realidade que lhe exterior, entre
representar-se a si prpria e o representar o mundo, o texto fantstico o que
expe de modo mais inquietante a possiblidade de transgresso entre essas
fronteiras. Contudo, como pondera o venezuelano em seu debate com o Introduo literatura fantstica de
Todorov, se o fantstico deriva da experincia limtrofe entre esses
territrios, o maravilhoso o lugar da alteridade como espetculo.
Quando
o limite persiste e um mbito outro se pe em cena sem atender s
verossimilhanas das certezas do real e sem penetrar estas certezas e question-las,
quando o limite persiste deslindando o mbito outro do mbito do real, estamos
em presena do maravilhoso. Poderia dizer-se que no fantstico o outro uma
irrupo, e, no maravilhoso, um espetculo. [22]
(Bravo, 1985, p. 244)
Nesse
sentido, a noo de fronteira, como eixo no qual se deparam noes tidas como
antagnicas e apartadas pela civilizao - por exemplo, natural e sobrenatural,
real e fabuloso, verdico e inveridco – adquire relevncia na
argumentao de V. Bravo que eleva o problema da alteridade como conceito a
partir do qual possvel pensar esses gneros literrios. Nesta outra proposio, o maravilhoso
redimensionado e pensado para alm dos antagonismos constatados nas teorizaes
forjadas pelo pensamento europeu.
Assim,
se o maravilhoso o tema do mundo s avessas, universo outro que desde o
perodo medieval manifesta-se como potncia de insurreio, o maravilhoso que se
apresenta em narrativas mticas ao norte do pas, que aqui nomeamos como
maravilhoso amaznico, ao suspender as relaes de antinomia
prprias da cilivizao moderna, que reduzem e solapam a alteridade humana sob as
formas do Mesmo, deve ser pensado sob a clave da alteridade. Suas narrativas, efetivamente,
conciliando o sobrenatural e o natural, o animal e o humano, a natureza e a
civilizao, tecidas que so para alm da fronteira, representam uma potica da
alteridade. E, para no encerrar, poder-se-ia ademais acrescentar que, em sendo
o inconsciente o lugar por excelncia da alteridade – pois nele os
contrrios no se excluem (FREUD, 1996b)-, tais narrativas encenam a
resistncia do inconsciente toda forma de subjugao. Mas isso j outra
histria.
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[https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/13010/9510] Acesso
em: 03 maio 2018.
[Recebido:
20 dez 21 – Aceito: 20 jan 21]
[12] Doutorado em Letras pela
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil(2006). Professor
Associado II da Universidade Federal do Par , Brasil
[13]
Em outros
trabalhos, j se anotou os problemas envolvidos no traslado do termo Mrchen, algumas vezes traduzidos para o
portugus por conto de fadas,
outras, por conto maravilhoso. Optou-se por esta ltima variante, em razo da
etimologia do termo. (TRUSEN, 2012)
[14] Trad nossa de Im Mrchen
zeigt der Held, der sprechenden Tieren, Winden oder Gestirnen begegnet, weder
Verwunderung noch Angst. Dies nicht, weil ihm das sprechende Tier oder Gestirn
von Haus aus vertraut wre; es gehrt durchaus nicht zu der ihm gewohnten
Umwelt, nichts deutet an, dass er von der Existenz solcher sprechenden Tiere
auch nur gehrt hat. Aber er verwundert sich nicht, und frchtet sich nicht:
das Gefhl fr das Absonderliche fehlt ihm. Ihm
scheint alles zur selben Dimension zu gehren.
[15] Trad nossa de
El rechazo de lo sobrenatural se tradujo tambin en la condena de su uso
literario y esttico. Las perspectivas ilustradas de la segunda mitad del siglo
XVIII enarbolaron los conceptos de verosimilitud y mmesis como armas fundamentales
para la presencia de lo sobrenatural y lo maravilloso de los textos literarios.
[16] Conforme nota explicativa,
o projeto procurou manter tanto quanto possvel os ndices de oralidade,
utilizando-se, quando necessrio, dos colchetes para indicar expresses ou
palavras que suscitaram dvida por parte do transcritor.
[17]
Trad nossa de :
Haba respirado la atmosfera creada por Henri
Christophe, monarca de increble empeos, mucho ms sorprendente que todos los
reyes inventados por los surrealistas, muy afectos a tiranas imaginarias,
aunque no padecidas. A cada paso
hallaba lo real maravilloso [grifo do
autor]. Pero pensaba, adems. que esa presencia y vigencia de lo real
maravilloso no era privilegio nico de Haiti, sino patrimonio de la Amrica
entera (...)
[18]
Trad. nossa de Cest le contraire de lidentit, comme lautre est le contraire du mme.
On pourrait en faire un principe : toute chose tant identique soi
(principe didentit) est aussi diffrente de toutes les autres (principe daltrit).
[19] No original, La
carcajada es un sntesis (provisional) entre el alma y el cuerpo, el yo y el otro.(PAZ, 1969, p. 15)
[20] Trad. nossa de Leerlo
es participar en el secreto. En qu consiste ese secreto? Este libro nos
ensea nuestra otra cara, la oculta e inferior. Lo que digo debe entenderse
literalmente: hablo de la realidad que est debajo de la cintura y que la ropa
cubre. Me refiero a nuestra cara animal, sexual: al culo y los rganos
genitales.
[21]
Trad. nossa de El
drama de toda cultura (....) es el intento de reducir lo irreductible, la
alteridad, hacia la tranquilidad ideolgica de lo Mismo, de la Identidad. La
alteridad parece ser lo insoportable. El orden que toda cultura de alguna
manera sacraliza, es el intento de reducir la alteridad hacia las formas de lo
Mismo.
[22] Trad nossa de Cuando el limite persiste y un mbito otro se pone
en escena sin atender a las verosimilitudes de las certezas de lo real, y sin
penetrar estas certezas y cuestionarlas, cuando el lmite persiste deslindando
el mbito otro del mbito de lo
real, estamos en presencia de lo maravilloso. Podra decir-se que en lo
fantstico lo otro es una irrupcin y, en lo maravilloso, un espectculo.