Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria do homem que levou os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a cantoria

 

 

Brief prose with Ariano Suassuna or The story of the man who took singers to the theater and showed other directions for singing

 

 

Andra Betnia da Silva (Pesquisadora)

https://orcid.org/0000-0003-3316-0812

 

Ariano Suassuna (Colaborador/em memria)

 

 

Ariano Suassuna, poeta, romancista e dramaturgo, segundo sua prpria definio, no apenas era um homem do serto como fez desse espao seu lugar escolhido como representao do povo brasileiro. Essa entrevista, realizada em sua casa, em Recife, Pernambuco, no dia 24 de maio de 2013, apenas 1 ano antes de sua partida, como parte da pesquisa desenvolvida sobre a cantoria de improviso, revela como atuava junto aos poetas populares alm das fronteiras do campo literrio, ficcional, e em que medida (embora imensurvel) sua proximidade desde criana, ainda em Tapero, na Paraba, com as prticas populares o motivou a agir como um estandarte, cuja flmula atraa ateno de pblicos to distintos, ecoando pelos quatro cantos sua escrita que bebia em fontes orais.

A conversa que ora se apresenta resultado do desafio de entrevistar um homem paradoxal, em vrios sentidos, com conhecimento to vasto e tempo to diminutivo para o que no lhe despertava paixes. Se tive acesso ao senhor Ariano, vi em seus olhos o menino Ariano, caminhando com seus sonhos, inquieto e inquietante desde sempre.

 

 

Andra – Boa tarde. Agradeo a disponibilidade e a gentileza para a cesso dessa entrevista. Fao um doutorado no qual pesquiso os Festivais de Violeiros e estudo a partir do p de parede quais so as transformaes que vo surgindo at que a gente chegue nos Festivais de Violeiros. Todas as pessoas que eu entrevistei at agora apontam o senhor como uma das primeiras pessoas a ter promovido um evento de violeiros no teatro, no Teatro Santa Isabel.

 

Ariano – Eu acho que uma das primeiras no. Eu acho que foi a primeira [risos], no ? Pra promover cantador assim, no teatro, eu acho que fui o primeiro.

 

Andra* – Ento, eu estou aqui justamente hoje para a gente conversar sobre isso.

 

Ariano – Pode ser.

 

Andra – Eu queria que o senhor me falasse sobre a sua relao com a cantoria, sobre o que lhe motivou.

 

Ariano – Minha filha, para comear, j que voc fez referncia a essa primeira mostra dos cantadores aqui, eu vou comear por a. Eu tive uma surpresa porque eu j conhecia a tradio do romanceiro, principalmente por causa Primeiro porque como sertanejo eu vi um desafio de viola com um dos maiores cantadores que o Brasil, o Nordeste e o Brasil tiveram, que foi Antnio Marinho, que era um grande, um grande cantador. E ele escrevia tambm folhetos, era um poeta popular. E eu vi, eu vi, tive a sorte de ver aos sete ou oito anos de idade, por a, eu vi um desafio de violeiros com Antnio Marinho, l na minha terra, em Tapero, no serto da Paraba. Mas depois eu peguei l na biblioteca de meu pai livros sobre cantadores. Papai, meu pai era um grande admirador da poesia popular nordestina. Ele tinha uma memria muito boa, sabia de cor vrios, muitos versos. E por isso ele se tornou amigo de um pesquisador, hoje meio esquecido, mas que eu tenho feito tudo para restaurar, trazer nova luz sobre o trabalho dele, ele se chamava Leonardo Mota, era cearense e ele era muito amigo de meu pai. Ele dedicou um dos livros dele, Serto Alegre, ele dedicou a cinco pessoas, entre as quais foi meu pai. E ele, no corpo do livro, ele cita meu pai como uma das fontes em que ele se baseava, ele diz, ele fala da memria do meu pai, ele disse que o meu pai forneceu a ele muitos versos. Ento, eu atravs dos livros de meu pai eu tinha tomado conhecimento dessa tradio do romanceiro popular do Nordeste. Depois eu vim muito menino estudar no Recife, fiquei por aqui, fui ficando, vim morar aqui aos 15 anos. Eu vim estudar aos 10, mas depois, quando estava com 15 anos, a minha famlia toda se mudou para c. Ento, eu no tive mais contato nenhum e eu pensava que a tradio tinha se extinguido. A, quando foi em 1946, eu fiz uma viagem ao serto do Cear e l tive a oportunidade de conhecer um grande cantador pernambucano, de So Jos do Egito, chamado Dimas Batista. Ele era um dos trs irmos Batista que eram cantadores. Eram trs irmos, todos os trs cantadores: Lourival, que era o mais velho, Dimas e Otaclio, que era o mais moo. A eu fiz amizade com Dimas, fiquei deslumbrado com o talento extraordinrio de Dimas e alm do mais com a pessoa, que ele era uma pessoa extraordinria, acima do comum, um camarada tranquilo, calmo, gigante, alto, ele era alto e forte, com esse jeito manso de gigante manso. Ento, eu me impressionei com a rapidez do improviso de Dimas, fiquei encantado. Ele cantou sozinho, no cantou em dupla. Mas a eu, por intermdio dele, eu tive conhecimento desses dois irmos dele que existiam e outros cantadores, ele me falou de muita gente e eu fiquei impressionado. A, nesse tempo eu era do primeiro ano na Faculdade de Direito do Recife. A, quando eu cheguei aqui, de volta, eu pertencia ao diretrio, a falei com o pessoal do diretrio e resolvemos trazer, fazer essa cantoria no Santa Isabel. Ento, eu trouxe trs poetas, que eram os trs irmos Batista e mais um, um poeta popular que no improvisava, mas escrevia folhetos, ele se chamava Manoel de Lira Flores. Ento, fizemos essa cantoria e teve uma repercusso enorme no municpio, o Teatro Santa Isabel ficou lotado. Ento, um cantador que tinha muito senso de organizao, ele se chamava Rogaciano Leite, era de So Jos do Egito, ele a, animado com essa cantoria que eu fiz, resolveu fazer o primeiro Congresso, o primeiro Festival de Violeiros daqui, foi dois anos depois dessa cantoria. Eu fiz essa cantoria em setembro de 1946 e Rogaciano Leite organizou o primeiro Festival no Santa Isabel, onde eu tinha feito, s que, a princpio, causou uma estranheza muito grande. O diretor quase no permite, t entendendo? Quase no permite, mas a depois do sucesso com a cantoria e coisa etc., abriu o caminho e a ainda tivemos outra sorte porque Dr. Arraes, que era um sertanejo como eu e gostava de cantoria, era Secretrio da Fazenda do governo aqui de Pernambuco. A, Dr. Arraes bancou o festival, a Secretaria da Fazenda pagou as despesas e fez o I Congresso, que foi extraordinrio! Foi um sucesso enorme tambm. E ento, da em diante, depois ele organizou o segundo, dois anos depois, eu no tenho certeza, depois a... A espalhou-se. Depois desse primeiro congresso, inclusive, ele, Rogaciano Leite, viajou com Dimas, Dimas e Otaclio. Acho que Lourival no foi, no. No tenho certeza, mas foram para o Rio de Janeiro e foram recebidos na Academia Brasileira de Letras, e Manuel Bandeira escreveu um pequeno poema sobre os dois, tanto que t publicado nos livros dele hoje. Eu me lembro que ele disse: Sa de l convencido Ento, voc v por a que teve uma repercusso imediata. E outra coisa, outra coisa que foi muito importante do ponto de vista do prestgio do cantador nos meios intelectuais foi o fato curioso. No sei se voc sabe, mas na poca parnasiana tinha-se o costume de eleger o prncipe dos poetas brasileiros. O primeiro, se eu no me engano, foi Olavo Bilac, que foi escolhido como prncipe dos poetas brasileiros. Quando ele morreu, parece que se escolheu Alberto de Oliveira. Quando Alberto de Oliveira morreu, escolheram um paulista chamado Guilherme de Almeida. A, quando Guilherme de Almeida morreu, comeou a haver um movimento para se eleger Drummond, a Drummond escreveu um artigo dizendo que ele no merecia, no, que quem merecia era Leandro Gomes de Barros, n? E isso deu uma... Ele saltou de mais de mil folhetos e disse: Esse um poeta do povo brasileiro mesmo. A ele fez essa citao que eu achei muito boa.

 

Andra – Quais as motivaes que o senhor tinha naquela poca, quando participava do Movimento Estudantil, para promover esse Encontro de Cantadores? Porque at ento no era algo frequente. At ento, levar os cantadores para o teatro no era possvel.

 

Ariano – No, no, isso no havia, no. E eu lhe no contei isso, mas j tenho contado a, em outras ocasies, o diretor do teatro a princpio recusou. Ele disse para mim: Mas voc quer trazer pro palco do Teatro Isabel, onde j foram recitar seus versos Castro Alves, Tobias Barreto, onde Joaquim Nabuco fez seu discurso, voc quer trazer cantador de viola? A eu disse: Doutor, eu gostaria de ouvir a opinio, eu no digo de Joaquim Nabuco, eu no sei, no [riso]. Mas Castro Alves e Tobias Barreto, eu tenho certeza de que eles iriam gostar, est certo? A, ele fez assim porque metade da renda ia ser dada aos cantadores e a outra metade ia ser dada ao abrigo dos cegos que tinha aqui. Ele ento disse: Eu vou ressalvar a minha responsabilidade. Veja como era considerado um ato nocivo, vergonhoso, ele ia se envergonhar. A, ele botou assim: Deferido, tendo em vista a destinao filantrpica de metade da renda. Quer dizer, ele achou que podia sem se manchar, ele podia deferir, mas por causa da destinao filantrpica do abrigo dos cegos.

 

Andra – Influenciou o fato de seu pai, h muitos anos, ter levado os cantadores para o Palcio do Governo da Paraba?

 

Ariano – Sim, sim, eu tinha conhecimento desse fato, n? E foi uma das coisas que me abriu o caminho.

 

Andra – Mas eu fico imaginando se naquela poca havia uma proximidade entre os estudantes da universidade e a cultura popular.

 

Ariano – Sim.

 

Andra – O senhor se lembra quais eram os objetivos daquele perodo?

 

Ariano – Olha, isso a, o que eu posso dizer, inclusive sem vangloria, porque no fui eu, para mim no era assim, no. Isso, isso para mim foi decorrente do trabalho de Hermnio Borba Filho, que era o diretor do Teatro de Estudantes. Ele era mais velho do que ns, ele era dez anos mais velho do que eu, Hermnio. Entrou na faculdade de Direito para a gente organizar, reorganizar o Teatro do Estudante de Pernambuco. Pois bem, Hermnio, eu digo sempre, voc veja, essa diferena de dez anos hoje no nada porque um homem de 80 anos e um homem de 70, eles conversam de igual para igual. Mas no tempo eu tinha 18 anos e ele tinha 28, era uma diferena enorme, est entendendo? Ele j era casado, j tinha um emprego, j tinha uma estrada longa e tinha uma bela biblioteca em casa e ele era um grande leitor. Era um grande leitor e era hermenutico, quer dizer, foi a primeira pessoa que eu encontrei assim, um escritor, um autor, um diretor de teatro que eu encontrei que dava literatura popular uma importncia muito grande, cultura popular, poesia popular, uma importncia muito grande, e ele, por sua vez, j se mirava no exemplo de Garcia Lorca, no ? Que era um altssimo poeta, como voc sabe.

 

Andra – Claro!

 

Ariano – E ele era muito interessado em teatro. Organizou um teatro ambulante, l na Espanha, tanto que a gente organizou um tambm, seguindo o exemplo de Lorca e a gente colocou o mesmo nome, o nome do grupo dele era La Barraca, porque ele andava com uma barraca ambulante. Ento, a gente conseguiu uma barraca aqui, fizemos o grupo com o nome de A Barraca em homenagem a ele. Estreamos no dia do aniversrio da morte dele, do Lorca, n? Para protestar contra a morte dele, j era tarde, mas protestamos e para prestar uma homenagem de gratido a ele por essa inspirao que ele tinha nos dado. E voc sabe que Lorca tem um livro de poemas chamado Romanceiro Cigano, quer dizer, onde ele fez com o Romanceiro Cigano o mesmo que a gente pretendia fazer aqui com o Romanceiro Popular, est certo?

 

Andra – Que interessante!

 

Ariano – Ento, foi nesse exemplo que ns nos baseamos e que ns comeamos essa jornada. Termino como comandante e alguma saudade.

 

Andra – E, a partir disso, o senhor vai influenciando algumas pessoas.

 

Ariano – sim.

 

Andra – Conversei com o Brulio Tavares e ele disse que s passou de fato a valorizar a cultura popular quando ele teve acesso s suas obras.

 

Ariano – . Ele tem dito isso em outras ocasies e eu acho muito engraado. Eu no sei se lhe mostrei isso, Samarone[106]. Ele disse que aos 18 anos, ele foi para...

 

Andra – Para Belo Horizonte.

 

Ariano – Para Belo Horizonte estudar Cinema, no ?

 

Andra – Isso.

 

Ariano – No incio, ele no ligava pra nada. Depois, a ele s ligava pro cinema de Godard, essas coisas. Bom, a ele disse que ficava chateado de ter nascido em Campina Grande. Ele diz: Mas, meu Deus, com tanto lugar interessante [riso] para eu nascer, ele disse Tinha tanto lugar interessante para eu nascer, eu fui nascer em Campina Grande. Ele dizia que olhava jumento na feira ou um matuto com chapu de couro, carregadores carregando um balaio de ovos l, a ele a disse que foi quando ele leu A Pedra do Reino e disse que era o pai dele que estava aqui no Recife comeou a escrever para ele: Olha que coisa interessante!

 

Andra – Isso mesmo que ele conta!

 

Ariano – A comeou a mandar entrevistas minhas e outras coisas, a ele disse que comprou o romance dA Pedra do Reino, a ele disse: Quando eu comprei, que abri, eu voltei para a Paraba e ele disse: Eu descobri, por causa dA Pedra do Reino que a Paraba era a Grcia antiga, eu achei timo! Que a Paraba, ela tinha tudo, tinha uma mitologia, tinha tudo aquilo l. Foi uma das declaraes que me deixaram mais orgulhoso, foi essa de Brulio.

 

Andra – E ele fala isso extremamente emocionado, n?

 

Ariano – .

 

Andra – Ele diz A obra de Ariano foi a obra que mudou a minha vida. At ento, ser nordestino para mim era um peso. Eu fugia disso. E por isso eu procurava Cinema, eu procurava as influncias que eram estrangeiras e negava tudo que tinha. E a, a partir disso, ele comea a se envolver tambm com os Festivais de Violeiros de Campina Grande. E ele comea a fazer um trabalho muito parecido com o seu, inclusive. O Movimento Estudantil de l da poca se aproxima, os cantadores convocam os estudantes e eles comeam a organizar.

 

Ariano – Muito bom.

 

Andra – Ento, de 1974 at 1980, mais ou menos, eles ficam frente juntamente com os cantadores. S que tem uma entrevista com Jos Alves Sobrinho.

 

Ariano – Sim.

 

Andra – Tem uma entrevista com ele, nos anos 80, na qual ele aponta o seu evento de 1946, mas a ele diz que Rogaciano teria feito um Congresso em 1946, em Fortaleza.

 

Ariano – Ah, eu no sei. No sabia.

 

Andra – E depois ele teria feito um aqui.

 

Ariano – Ah, no sabia, no. No sabia, no. Eu s tomei conhecimento de Rogaciano em 1948.

 

Andra – Do daqui, no ?

 

Ariano – . Ele trouxe, inclusive, uma coisa que me comoveu muito. Ele trouxe o Cego Aderaldo e eu conheci o Cego Aderaldo pessoalmente, que para mim era uma figura mtica, no ? A, eu estive no Cear agora, h pouco tempo, ns estamos fazendo um documentrio nos estados do Nordeste, promovido pelo SESC e eu comprei essa histria que, inclusive, o cego Aderaldo, alm do grande cantador que era, o Cego Aderaldo, ele era o que eu sonhei ser, est entendendo? Ele era o dono, ele tinha um circo. Tinha um circo e ele, alm de cantador, ele era um ator, ele tinha o domnio do palco que eu nunca vi uma coisa daquela. E ele cantava uma msica tocando viola ou violo, eu no lembro bem porque ele tocava viola, violo e rabeca. A, chamava-se A gargalhada. A, ele cantava uma quadra, e a ele, no ritmo do acompanhamento do baio com o qual ele acompanhava cada quadra, ele comeava a rir, uma risada propositadamente artificial, est entendendo? E, pois bem, no dava vinte segundos, ningum no teatro se aguentava, todo mundo estava rindo com ele. Era uma coisa extraordinria! Ele dizia assim [canta] Minha comadre borboleta/ Meu compadre gafanhoto/ Venha ver compadre grilo/ T dando com os ps nos outros. Vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora, vai. E ele, a, dava uma gargalhada Hahaha!, mas, olhe, era engraadssimo isso. Ele tinha uma garganta forte, no tinha essa besteira com ele, no. Muito bom! E eu tive a alegria de conhecer o Cego Aderaldo apresentado por Rogaciano Leite.

 

Andra – Nesse evento que aconteceu no Santa Isabel havia uma disputa entre os cantadores ou eles eram apenas convidados?

 

Ariano – No, no. Eu no gosto muito disso no, est entendendo?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Eu gosto mais de ver cantoria, ento, eu no fiz... Num Congresso que se faz isso, cada dupla tem que ser assim, porque tem que mostrar muito, cada dupla tem tantos minutos. Todo mundo que j ouviu uma cantoria sabe, a cantoria tem altos e baixos. Vai esquentando e a fraca aproveita incidentes, o que uma coisa muito boa. Severino Pinto, por exemplo, tava cantando um dia e ele disse: Eu sou Severino Pinto/ Grande cantador do espao, na hora em que ele disse isso, o galo cantou [riso] no poleiro da fazenda. E ele disse Meu galo, no cante agora/ Me deixe eu cantar sossegado/ Que o pai que arremeda o filho/ muito mal-educado [risos]. Como o nome dele era Pinto, no ? A, quer dizer, ento, a cantoria tem isso. E se voc estabelece um horrio, voc pode pegar 20, 10 minutos de cantoria ruim. Por acaso os nossos cantadores no estavam muito bem e pode ser um grande cantador e se sair mal, compreendeu? Ento, eu no fiz isso, no, eu fiz uma cantoria. L o cantador cantava vontade, est entendendo? O cantador cantava vontade e eram trs irmos, ento, no tinha isso, no. E todos os dois, Dimas e Otaclio, tinham uma admirao muito grande pelo Lourival, que era o mais velho, eles consideravam Lourival o maior. Eu, pessoalmente, gostava mais do Dimas, eu achava Dimas... Lourival tinha um improviso bom, extraordinrio, mas o Dimas era um cantador mais seguro e eu achava mais igual, t me entendendo? E ele era mais, no sei, mais profundo, talvez, do que Lourival. Pois bem, ento, eles cantaram. Agora, inclusive teve uma coisa muito interessante porque aquilo que eu digo do aproveitamento do momento. Porque apareceram trs ou quatro estudantes paulistas l, e eu no sei se eles ficaram se sentindo diminudos pelo sucesso que os cantadores estavam fazendo l e eles tinham bebido tambm e resolveram entrar no palco para fazer isso que hoje se chamaria uma performance.

 

Andra – Nossa!

 

Ariano – Est entendendo?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Ento, a entraram os dois no palco. E eu no sei se voc j viu essa porcaria, eu j vi mais de uma vez. Aconteceu o seguinte: entrava um assim, em p, e ficava em p assim, com as mos no bolso, est entendendo? O outro vinha por trs, abraava ele assim, passava os braos aqui por baixo assim, ento, ficava ele pra frente e os braos do que estava atrs. E a graa era a gesticulao no ter nada a ver com o que a boca estava dizendo. Bom, quando eles terminaram l, a a plateia ficou assim meio fria, mas aplaudiu assim educadamente e friamente. Isso a foi que eles no sabiam com quem tavam mexendo. Lourival, que era o sujeito mais sem vergonha do mundo, a eles comearam a cantar um estilo que chamam Gemedeira porque entre o sexto e o stimo verso a pessoa faz ai, ai, ui, ui ou ento, ai, ai meu Deus. Pois bem, a ele fez um verso, at achei que estava numa posio meio estranha, a disse... Eles cantaram vrios, eu me lembro dessa Sextilha em que ele disse assim... Sim, porque teve um momento em que os estudantes l viram que no estava fazendo sucesso e eles resolveram apelar, a deram uma banana assim, deram uma banana para o pblico. O pblico a ficou acanhado. Ento, Lourival disse assim: O de trs dava banana/ O da frente discursava/ Quanto mais um se enxeria/ Mais o outro se encostava/Atrs ainda tinha um jeito/Ai, ai, meu Deus/ Na frente que eu no ficava [risos]. Rapaz, foi umO teatro quase veio abaixo na hora. Quer dizer, esse era um momento que, esse era um grande momento da cantoria, n? Quando aproveita-se o que aconteceu ali e a o pessoal v que improvisado mesmo.

 

Andra – Claro! Muitos cantadores tm apontado a presena do balaio, que o senhor deve conhecer.

 

Ariano – Hein?

 

Andra – O senhor conhece o balaio? A estrutura que os cantadores levam escrita, que no improvisada, decorada, e apresentam como se fosse cantoria?

 

Ariano – Sim, sim, sim. No sabia que chamava-se balaio, no.

 

Andra – , eles chamam de balaio. E os cantadores tm apontado isso como possibilidade de enfraquecimento da cantoria porque iria para um Festival ou para um p de parede sem o improviso, que o que caracteriza esse tipo de produo. Ento, medida que o balaio vai sendo introduzido, voc vai colocando uma produo escrita no lugar de uma produo oral.

 

Ariano – No da improvisao, no ?

 

Andra – . Isso de fato tem mudado muito. Eu tenho visto que a cantoria tem mudado muito de uns tempos para c, tanto no formato quanto na performance.

 

Ariano – Eu no vou, eu no vou a congresso de cantadores, no, que eu no gosto. Eu no gosto. Inclusive por isso, pelo artificialismo e depois tem outra coisa que eles fazem que eu tenho horror, uma tal de uma Poesia Matuta, compreende? Que no era uma tradio do cantador nem da poesia popular. Pelo contrrio. Isso foi introduo de poeta de classe mdia que Olha, eu acho isso uma falta de respeito ao povo, est entendendo? Voc repare bem. Em primeiro lugar, a linguagem, e eu estou falando aqui de teatro de modo geral. A linguagem escrita no corresponde linguagem falada, outra coisa, est certo? Nem a pronncia. A linguagem escrita tem muita coisa de conveno, no ?

 

Andra – Sim.

 

Ariano – Tem muita coisa que conveno. Pois bem, se eu entrar com um personagem de uma pea de teatro, eu digo, eu pronuncio como todo nordestino, eu no digo Ns. Eu digo Nis, no verdade? Pois bem, se ele me bota como personagem apesar de eu dizer Nis, eles colocam l N--s e acento. E quando um homem do povo eles querem botar N-o-i-s com acento, Nis, Nis vai, entendeu? Isso uma falta de respeito, uma discriminao contra o povo, porque eu no conheo ningum no Nordeste que diga Ns a no ser padre e pastor protestante [risos]. No ? Padre e pastor protestante dizem Jesus na cruz cercado de luz [risos]. No ? Mas gente normal, no. No ? Diz Jesuis na cruiz cercado de luiz. Mas quando um homem do povo eles botam o i, est entendendo? Pois bem, na poesia matuta que eles fazem assim. Aqui tem um rapaz talentoso, muito talentoso, mas eu no gosto do que ele faz. Eu t dizendo isso porque ele sabe, ele at j declarou isso. Ele se chama Jessier Quirino. Eu no gosto, no. Pois bem, nos congressos de cantadores deram para botar essa tal poesia matuta. Quem inventou isso foi um pernicioso, um maranhense pernicioso chamado Catulo da Paixo Cearense. Apesar de se chamar Catulo da Paixo Cearense, ele era maranhense [risos]. Pois bem, esse camarada foi quem inventou isso. Agora voc veja, ns tnhamos aqui um grande poeta popular, Idelette[107] deve conhecer, no ? Ele paraibano como eu e mora em Pernambuco como eu. Ele se chama Jos Costa Leite. Pois bem, ele um grande poeta e um grande gravador. Ele faz as gravuras dos prprios folhetos, ele que faz. Pois bem, Jos Costa Leite, ele fez um folheto baseado em um poema de Catulo da Paixo Cearense. E ele corrigiu os erros todinhos de Catulo. Que lio, no ? Est vendo? O poeta popular de verdade, ele escreve da maneira que ele acha mais correta, no pode sair melhor a coisa porque ele no sabe, mas procurar deliberadamente o erro...

 

Andra – . O que a gente acaba aprendendo que a oralidade feia, no ?

 

Ariano – .

 

Andra – E que a escrita que bonita porque polida, recortada.

 

Ariano – , , exatamente. Agora o que pior deturpar a escrita partindo de uma falsa interpretao da linguagem falada. Quando eu encenei o Auto da Compadecida, eu chamava ateno para isso, procure um erro de Portugus e no tem. Eu acho que errado a pessoa mudar a letra da linguagem popular. A pessoa tem que atingir o esprito, mas tambm de uma forma que aquilo ali se esconda e ningum note, que ningum saiba.

 

Andra – Compreendo. Naquela poca, no teatro, qual era o pblico que foi ver essa cantoria? O senhor lembra?

 

Ariano – No, no sei, no. Porque inclusive eu pedi, como eu disse, a ajuda do diretrio e fizemos. Ns combinamos isso e fizemos com entrada paga, que era pra dar pros cantadores. Mas ns mesmos, os estudantes, samos vendendo. Eu me lembro bem, vendi para toda gente da minha famlia, a era o normal, mas vendi para os vizinhos todos, compraram e foi muita gente de vrios tipos. Agora tinha muito estudante.

 

Andra – Nessa poca, os cantadores cantavam muito com a bandeja, no ?

 

Ariano – . No. A cantoria normal era com a bandeja.

 

Andra – O p de parede?

 

Ariano – . L no. L no foi, no. Porque fizemos com entrada paga na bilheteria do teatro mesmo. E encheu o teatro, encheu literalmente. Sobrou gente. Foi muito bom!

 

Andra – A partir disso, o senhor continuou tendo iniciativas deste tipo?

 

Ariano – No. Eu fiz isso por entusiasmo, est certo? Mas quando apareceu Rogaciano, eu fiquei muito aliviado e eu disse: Voc agora v em frente. E eu no organizei mais, no.

 

Andra – Mas o senhor se d conta de como isso foi importante para mudanas dentro do sistema da cantoria?

 

Ariano – Hoje estou mais ou menos consciente, na poca no tive medida, no. Eu fiquei muito feliz de ver aquele povo que foi naquele dia gostar, comprar entrada e aplaudir os cantadores.

 

Andra – Mas foi realmente uma atitude muito desafiadora.

 

Ariano – Foi.

 

Andra – Tirar os cantadores do lugar onde eles costumavam se apresentar e mudar para um lugar de elite, que era o teatro.

 

Ariano – Foi. Mas sempre sou assim. Ainda hoje, no sou mais aquele estudante, no, mas eu ainda hoje tomo essa deciso. Olha, essa deciso, que eu tive de sair com o meu circo, que eu fundei um circo, ligado secretaria, sa pelo serto. Foi uma deciso corajosa, na verdade, porque eu no sabia. Primeiro diziam que o jovem no ia me ligar por estar viciado pela cultura de massas. E eu queria que voc visse como , assim de gente.

 

Andra – Eu vi sua apresentao em Vitria da Conquista.

 

Ariano – Ah, voc viu.

 

Andra – Eu vi o entusiasmo dos meninos.

 

Ariano – sempre assim.

 

Andra – Sempre lotado.

 

Ariano – E isso foi uma deciso desafiadora do mesmo jeito que foi a do Festival em 1946.

 

Andra – Como que essa cantoria tem influenciado diretamente a sua obra? Eu no digo a cantoria em si, mas esses elementos da cultura popular.

 

Ariano – Olha, voc veja, por exemplo, eu uso, ainda hoje, eu tenho grande admirao pelo ritmo do Martelo agalopado. Ainda hoje eu uso. Eu escrevi a por 1900 e quanto? No sei. 1958 ou 1960, eu escrevi um Martelo agalopado em homenagem a Cames, est certo? Em homenagem a Cames. E ento, eu uso, eu sou poeta, alm de romancista e dramaturgo, eu sou poeta e como poeta eu uso muito, eu uso Soneto, que uma forma italianizante, mas que foi introduzida na literatura de lngua portuguesa por Cames, n? Ele tinha grande admirao por Petrarca. Ento, na minha poesia mais lrica, eu uso o Soneto. Mas eu gosto muito da forma fixa, coisa que depois da Semana de Arte Moderna considerado arcaico, mas eu gosto muito, est certo? Eu gosto muito. Eu gosto muito do verso musical, nisso sou o oposto de meu amigo e grande poeta, que era Joo Cabral de Mello Neto. Ele tinha horror musicalidade na poesia. E eu, eu s gosto de poesia musical. Quer dizer, tenho grande admirao por Lorca, e Lorca era um poeta de uma musicalidade, inclusive tocava piano e compunha, no ? Era amigo do maior compositor espanhol do sculo XX, que foi Leonel de Faglia, ele era amicssimo, os dois fizeram juntos o trabalho de pesquisa do Cancioneiro Espanhol, no ? Pois bem, e eu ento, peguei Veja bem, eu acho a forma, a forma pica, o gnero pico da poesia. Isso na poesia de lngua portuguesa no sculo de Cames a oitava, que ele herdou da poesia italiana tambm, Cames. Ento, voc v aquela forma usada nOs Lusadas era a oitava. Eu acho o Martelo, como ritmo, como gnero e como forma muito mais bonito do que a oitava, est certo? bonito. E eu uma vez, eu peguei os versos de Dante e traduzi. Em vez de usar o terceto, a Divina Comdia escrita em tercetos. Eu, em vez de usar o terceto, eu peguei mais de um terceto e juntei e fiz um Martelo. No meu entender, ficou mais bonito [riso]. No que eu seja melhor poeta do que Dante, no, que o ritmo do Martelo mais bonito. E ento, eu passei Ainda hoje eu uso. Eu sustento sempre que Olha, para mim tem uma coisa que o pessoal diz que eu sou arcaico e diz que o serto uma coisa localizada e eu sou um localista. E sou. Agora, acontece que eu acho que, aquilo que Paulo diz, eu acho que o ser humano o mesmo aqui, na China, nos idos do sculo XIII, ou agora, ou no futuro. Outro dia um camarada me disse: Ariano disse ele, disse a, por a: Ariano precisa tomar conhecimento do fato de que o homem sertanejo no anda mais a cavalo, no. Anda de moto. A, eu disse: E ele precisa tomar conhecimento de que ande de moto ou ande a cavalo o mesmo. Me diga uma coisa, o homem que anda de moto sofre? Sofre. Tem cime? Tem. Se apaixona? Se apaixona. Ele o mesmo homem. O fato de andar de moto ou a cavalo no interessa, no. Isso somente um veculo de se andar, n?

 

Andra – Inclusive, o vaqueiro tem feito o aboio hoje com moto, no usa mais o cavalo em todos os lugares, mas ele continua fazendo o aboio.

 

Ariano – Ele continua fazendo o aboio e continua sendo o mesmo ser humano. Se eu pinto o vaqueiro Pois bem, baseado nisso, eu acho que o Brasil o serto do mundo, t certo? O nordeste o serto do Brasil e o serto o osso do Nordeste. T certo? Ento, eu fiz um... Eu vou dizer para voc ouvir o ritmo do Martelo. Vou ver se eu sei decorado, se eu digo decorado: O Galope sem freio dos cavalos/ Os punhais reluzentes do cangao/ As primas e bordes no seu transpasso/ O pipoco do rifle e seus estralos/ O sino com seus toques de badalo/ E as onas com seus olhos amarelos/ O lajedo que trono e que castelo/ O ressono do mundo / O vento sai, o sol e a madrugada/ E eu tiro no galope do Martelo. T vendo? No um ritmo bonito?

 

Andra – sim.

 

Ariano – Eu acho. E um ritmo pico.

 

Andra – Os cantadores dizem que o Martelo agalopado o vestibular do cantador.

 

Ariano – E .

 

Andra – Que o gnero mais difcil.

 

Ariano – mais do que isso, o doutorado.

 

Andra – um doutorado [risos]. verdade.

 

Ariano – [risos]

 

Andra – J estamos terminando, eu queria aproveitar para lhe agradecer e falar da importncia da sua contribuio para o meu trabalho e para os estudos sobre cultura popular. E s para finalizar: o senhor possui material dessa poca? Alguma fotografia, qualquer coisa que remeta a esse perodo que eu poderia ver?

 

Ariano – Eu no tenho, no. Agora, um jornal aqui chamado Jornal Pequeno, voc pode encontrar na biblioteca, eu levei os cantadores, porque eu queria fazer propaganda da cantoria. Ento, uns dois dias antes ou um antes, eu no me lembro bem, eu acho que foi uns dois dias antes, eu no me lembro bem, eu levei os cantadores ao Jornal Pequeno na redao e eles tiraram fotografia dos cantadores e deram notcia da cantoria. E tem palavras minhas l, no me lembro se tem...

 

Andra – Muitssimo obrigada!

 

Ariano – Certo. Obrigado. Eu fico muito contente tambm.

 

 

[Recebida 21 dez 2021]



[106] Dirige-se ao jornalista e escritor Samarone Lima, seu assessor de imprensa, presente em sua casa no momento da entrevista.

[107] Referncia pesquisadora Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.