Breve prosa com Ariano Suassuna ou A histria do homem que levou
os cantadores ao teatro e mostrou outros rumos para a cantoria
Brief prose with Ariano Suassuna or The story of
the man who
took singers to the theater
and showed other directions for singing
Andra Betnia da Silva
(Pesquisadora)
https://orcid.org/0000-0003-3316-0812
Ariano Suassuna (Colaborador/em
memria)
Ariano Suassuna, poeta,
romancista e dramaturgo, segundo sua prpria definio, no apenas era um homem
do serto como fez desse espao seu lugar escolhido como representao do povo
brasileiro. Essa entrevista, realizada em sua casa, em Recife, Pernambuco, no
dia 24 de maio de 2013, apenas 1 ano antes de sua partida, como parte da
pesquisa desenvolvida sobre a cantoria de improviso, revela como atuava junto
aos poetas populares alm das fronteiras do campo literrio, ficcional, e em
que medida (embora imensurvel) sua proximidade desde criana, ainda em
Tapero, na Paraba, com as prticas populares o motivou a agir como um
estandarte, cuja flmula atraa ateno de pblicos to distintos, ecoando
pelos quatro cantos sua escrita que bebia em fontes orais.
A conversa que ora se
apresenta resultado do desafio de entrevistar um homem paradoxal, em vrios
sentidos, com conhecimento to vasto e tempo to diminutivo para o que no lhe
despertava paixes. Se tive acesso ao senhor Ariano, vi em seus olhos o menino
Ariano, caminhando com seus sonhos, inquieto e inquietante desde sempre.
Andra – Boa tarde.
Agradeo a disponibilidade e a gentileza para a cesso dessa entrevista. Fao
um doutorado no qual pesquiso os Festivais de Violeiros e estudo a partir do p
de parede quais so as transformaes que vo surgindo at que a gente chegue
nos Festivais de Violeiros. Todas as pessoas que eu entrevistei at agora
apontam o senhor como uma das primeiras pessoas a ter promovido um evento de
violeiros no teatro, no Teatro Santa Isabel.
Ariano – Eu acho que uma
das primeiras no. Eu acho que foi a primeira [risos], no ? Pra promover
cantador assim, no teatro, eu acho que fui o primeiro.
Andra* – Ento, eu estou
aqui justamente hoje para a gente conversar sobre isso.
Ariano – Pode ser.
Andra – Eu queria que o
senhor me falasse sobre a sua relao com a cantoria, sobre o que lhe motivou.
Ariano – Minha filha,
para comear, j que voc fez referncia a essa primeira mostra dos cantadores
aqui, eu vou comear por a. Eu tive uma surpresa porque eu j conhecia a
tradio do romanceiro, principalmente por causa Primeiro porque como
sertanejo eu vi um desafio de viola com um dos maiores cantadores que o Brasil,
o Nordeste e o Brasil tiveram, que foi Antnio Marinho, que era um grande, um
grande cantador. E ele escrevia tambm folhetos, era um poeta popular. E eu vi,
eu vi, tive a sorte de ver aos sete ou oito anos de idade, por a, eu vi um
desafio de violeiros com Antnio Marinho, l na minha terra, em Tapero, no
serto da Paraba. Mas depois eu peguei l na biblioteca de meu pai livros
sobre cantadores. Papai, meu pai era um grande admirador da poesia popular
nordestina. Ele tinha uma memria muito boa, sabia de cor vrios, muitos
versos. E por isso ele se tornou amigo de um pesquisador, hoje meio esquecido,
mas que eu tenho feito tudo para restaurar, trazer nova luz sobre o trabalho
dele, ele se chamava Leonardo Mota, era cearense e ele era muito amigo de meu
pai. Ele dedicou um dos livros dele, Serto Alegre, ele dedicou a cinco
pessoas, entre as quais foi meu pai. E ele, no corpo do livro, ele cita meu pai
como uma das fontes em que ele se baseava, ele diz, ele fala da memria do meu
pai, ele disse que o meu pai forneceu a ele muitos versos. Ento, eu atravs
dos livros de meu pai eu tinha tomado conhecimento dessa tradio do romanceiro
popular do Nordeste. Depois eu vim muito menino estudar no Recife, fiquei por
aqui, fui ficando, vim morar aqui aos 15 anos. Eu vim estudar aos 10, mas
depois, quando estava com 15 anos, a minha famlia toda se mudou para c.
Ento, eu no tive mais contato nenhum e eu pensava que a tradio tinha se
extinguido. A, quando foi em 1946, eu fiz uma viagem ao serto do Cear e l
tive a oportunidade de conhecer um grande cantador pernambucano, de So Jos do
Egito, chamado Dimas Batista. Ele era um dos trs irmos Batista que eram
cantadores. Eram trs irmos, todos os trs cantadores: Lourival, que era o
mais velho, Dimas e Otaclio, que era o mais moo. A eu fiz amizade com Dimas,
fiquei deslumbrado com o talento extraordinrio de Dimas e alm do mais com a
pessoa, que ele era uma pessoa extraordinria, acima do comum, um camarada tranquilo,
calmo, gigante, alto, ele era alto e forte, com esse jeito manso de gigante
manso. Ento, eu me impressionei com a rapidez do improviso de Dimas, fiquei
encantado. Ele cantou sozinho, no cantou em dupla. Mas a eu, por intermdio
dele, eu tive conhecimento desses dois irmos dele que existiam e outros
cantadores, ele me falou de muita gente e eu fiquei impressionado. A, nesse
tempo eu era do primeiro ano na Faculdade de Direito do Recife. A, quando eu
cheguei aqui, de volta, eu pertencia ao diretrio, a falei com o pessoal do
diretrio e resolvemos trazer, fazer essa cantoria no Santa Isabel. Ento, eu
trouxe trs poetas, que eram os trs irmos Batista e mais um, um poeta popular
que no improvisava, mas escrevia folhetos, ele se chamava Manoel de Lira
Flores. Ento, fizemos essa cantoria e teve uma repercusso enorme no
municpio, o Teatro Santa Isabel ficou lotado. Ento, um cantador que tinha
muito senso de organizao, ele se chamava Rogaciano
Leite, era de So Jos do Egito, ele a, animado com essa cantoria que eu fiz,
resolveu fazer o primeiro Congresso, o primeiro Festival de Violeiros daqui,
foi dois anos depois dessa cantoria. Eu fiz essa cantoria em setembro de 1946 e
Rogaciano Leite organizou o primeiro Festival no
Santa Isabel, onde eu tinha feito, s que, a princpio, causou uma estranheza
muito grande. O diretor quase no permite, t entendendo? Quase no permite,
mas a depois do sucesso com a cantoria e coisa etc., abriu o caminho e a
ainda tivemos outra sorte porque Dr. Arraes, que era um sertanejo como eu e
gostava de cantoria, era Secretrio da Fazenda do governo aqui de Pernambuco.
A, Dr. Arraes bancou o festival, a Secretaria da Fazenda pagou as despesas e
fez o I Congresso, que foi extraordinrio! Foi um sucesso enorme tambm. E
ento, da em diante, depois ele organizou o segundo, dois anos depois, eu no
tenho certeza, depois a... A espalhou-se. Depois desse primeiro congresso,
inclusive, ele, Rogaciano Leite, viajou com Dimas,
Dimas e Otaclio. Acho que Lourival no foi, no. No tenho certeza, mas foram
para o Rio de Janeiro e foram recebidos na Academia Brasileira de Letras, e
Manuel Bandeira escreveu um pequeno poema sobre os dois, tanto que t publicado
nos livros dele hoje. Eu me lembro que ele disse: Sa de l convencido
Ento, voc v por a que teve uma repercusso imediata. E outra coisa, outra
coisa que foi muito importante do ponto de vista do prestgio do cantador nos
meios intelectuais foi o fato curioso. No sei se voc sabe, mas na poca
parnasiana tinha-se o costume de eleger o prncipe dos poetas brasileiros. O
primeiro, se eu no me engano, foi Olavo Bilac, que foi escolhido como prncipe
dos poetas brasileiros. Quando ele morreu, parece que se escolheu Alberto de
Oliveira. Quando Alberto de Oliveira morreu, escolheram um paulista chamado
Guilherme de Almeida. A, quando Guilherme de Almeida morreu, comeou a haver
um movimento para se eleger Drummond, a Drummond escreveu um artigo dizendo
que ele no merecia, no, que quem merecia era Leandro Gomes de Barros, n? E
isso deu uma... Ele saltou de mais de mil folhetos e disse: Esse um poeta do
povo brasileiro mesmo. A ele fez essa citao que eu achei muito boa.
Andra – Quais as
motivaes que o senhor tinha naquela poca, quando participava do Movimento
Estudantil, para promover esse Encontro de Cantadores? Porque at ento no era
algo frequente. At ento, levar os cantadores para o teatro no era possvel.
Ariano – No, no, isso
no havia, no. E eu lhe no contei isso, mas j tenho contado a, em outras
ocasies, o diretor do teatro a princpio recusou. Ele disse para mim: Mas voc quer trazer pro
palco do Teatro Isabel, onde j foram recitar seus versos Castro Alves, Tobias
Barreto, onde Joaquim Nabuco fez seu discurso, voc quer trazer cantador de
viola? A eu disse: Doutor, eu gostaria de ouvir a opinio, eu no digo de
Joaquim Nabuco, eu no sei, no [riso]. Mas Castro Alves e Tobias Barreto, eu
tenho certeza de que eles iriam gostar, est certo? A, ele fez assim porque
metade da renda ia ser dada aos cantadores e a outra metade ia ser dada ao
abrigo dos cegos que tinha aqui. Ele ento disse: Eu vou ressalvar a minha
responsabilidade. Veja como era considerado um ato nocivo, vergonhoso, ele ia
se envergonhar. A, ele botou assim: Deferido, tendo em vista a destinao
filantrpica de metade da renda. Quer dizer, ele achou que podia sem se
manchar, ele podia deferir, mas por causa da destinao filantrpica do abrigo
dos cegos.
Andra – Influenciou o
fato de seu pai, h muitos anos, ter levado os cantadores para o Palcio do
Governo da Paraba?
Ariano – Sim, sim, eu
tinha conhecimento desse fato, n? E foi uma das coisas que me abriu o caminho.
Andra – Mas eu fico
imaginando se naquela poca havia uma proximidade entre os estudantes da
universidade e a cultura popular.
Ariano – Sim.
Andra – O senhor se
lembra quais eram os objetivos daquele perodo?
Ariano – Olha, isso a,
o que eu posso dizer, inclusive sem vangloria, porque no fui eu, para mim no
era assim, no. Isso, isso para mim foi decorrente do trabalho de Hermnio
Borba Filho, que era o diretor do Teatro de Estudantes. Ele era mais velho do
que ns, ele era dez anos mais velho do que eu, Hermnio. Entrou na faculdade
de Direito para a gente organizar, reorganizar o Teatro do Estudante de
Pernambuco. Pois bem, Hermnio, eu digo sempre, voc veja, essa diferena de
dez anos hoje no nada porque um homem de 80 anos e um homem de 70, eles
conversam de igual para igual. Mas no tempo eu tinha 18 anos e ele tinha 28,
era uma diferena enorme, est entendendo? Ele j era casado, j tinha um
emprego, j tinha uma estrada longa e tinha uma bela biblioteca em casa e ele
era um grande leitor. Era um grande leitor e era hermenutico, quer dizer, foi
a primeira pessoa que eu encontrei assim, um escritor, um autor, um diretor de
teatro que eu encontrei que dava literatura popular uma importncia muito grande,
cultura popular, poesia popular, uma importncia muito grande, e ele, por
sua vez, j se mirava no exemplo de Garcia Lorca, no ? Que era um altssimo
poeta, como voc sabe.
Andra – Claro!
Ariano – E ele era muito
interessado em teatro. Organizou um teatro ambulante, l na Espanha, tanto que
a gente organizou um tambm, seguindo o exemplo de Lorca e a gente colocou o
mesmo nome, o nome do grupo dele era La
Barraca, porque ele andava com uma barraca ambulante. Ento, a gente
conseguiu uma barraca aqui, fizemos o grupo com o nome de A Barraca em
homenagem a ele. Estreamos no dia do aniversrio da morte dele, do Lorca, n?
Para protestar contra a morte dele, j era tarde, mas protestamos e para
prestar uma homenagem de gratido a ele por essa inspirao que ele tinha nos
dado. E voc sabe que Lorca tem um livro de poemas chamado Romanceiro Cigano,
quer dizer, onde ele fez com o Romanceiro Cigano o mesmo que a gente pretendia
fazer aqui com o Romanceiro Popular, est certo?
Andra – Que
interessante!
Ariano – Ento, foi
nesse exemplo que ns nos baseamos e que ns comeamos essa jornada. Termino
como comandante e alguma saudade.
Andra – E, a partir
disso, o senhor vai influenciando algumas pessoas.
Ariano – sim.
Andra – Conversei com o
Brulio Tavares e ele disse que s passou de fato a valorizar a cultura popular
quando ele teve acesso s suas obras.
Ariano – . Ele tem dito
isso em outras ocasies e eu acho muito engraado. Eu no sei se lhe mostrei
isso, Samarone[106]. Ele
disse que aos 18 anos, ele foi para...
Andra – Para Belo
Horizonte.
Ariano – Para Belo
Horizonte estudar Cinema, no ?
Andra – Isso.
Ariano – No incio, ele
no ligava pra nada. Depois, a ele s ligava pro cinema de Godard, essas
coisas. Bom, a ele disse que ficava chateado de ter nascido em Campina Grande.
Ele diz: Mas, meu Deus, com tanto lugar interessante [riso] para eu nascer,
ele disse Tinha tanto lugar interessante para eu nascer, eu fui nascer em
Campina Grande. Ele dizia que olhava jumento na feira ou um matuto com chapu
de couro, carregadores carregando um balaio de ovos l, a ele a disse que foi
quando ele leu A Pedra do Reino e disse que era o pai dele que estava
aqui no Recife comeou a escrever para ele: Olha que coisa interessante!
Andra – Isso mesmo que
ele conta!
Ariano – A comeou a
mandar entrevistas minhas e outras coisas, a ele disse que comprou o romance dA
Pedra do Reino, a ele disse: Quando eu comprei, que abri, eu voltei para
a Paraba e ele disse: Eu descobri, por causa dA Pedra do Reino que a
Paraba era a Grcia antiga, eu achei timo! Que a Paraba, ela tinha tudo,
tinha uma mitologia, tinha tudo aquilo l. Foi uma das declaraes que me
deixaram mais orgulhoso, foi essa de Brulio.
Andra – E ele fala isso
extremamente emocionado, n?
Ariano – .
Andra – Ele diz A obra
de Ariano foi a obra que mudou a minha vida. At ento, ser nordestino para mim
era um peso. Eu fugia disso. E por isso eu procurava Cinema, eu procurava as
influncias que eram estrangeiras e negava tudo que tinha. E a, a partir
disso, ele comea a se envolver tambm com os Festivais de Violeiros de Campina
Grande. E ele comea a fazer um trabalho muito parecido com o seu, inclusive. O
Movimento Estudantil de l da poca se aproxima, os cantadores convocam os
estudantes e eles comeam a organizar.
Ariano – Muito bom.
Andra – Ento, de 1974
at 1980, mais ou menos, eles ficam frente juntamente com os cantadores. S
que tem uma entrevista com Jos Alves Sobrinho.
Ariano – Sim.
Andra – Tem uma
entrevista com ele, nos anos 80, na qual ele aponta o seu evento de 1946, mas a
ele diz que Rogaciano teria feito um Congresso em
1946, em Fortaleza.
Ariano – Ah, eu no sei.
No sabia.
Andra – E depois ele
teria feito um aqui.
Ariano – Ah, no sabia,
no. No sabia, no. Eu s tomei conhecimento
de Rogaciano em 1948.
Andra – Do daqui, no
?
Ariano – . Ele trouxe, inclusive, uma coisa que me comoveu
muito. Ele trouxe o Cego Aderaldo e eu conheci o Cego Aderaldo pessoalmente,
que para mim era uma figura mtica, no ? A, eu estive no Cear agora, h
pouco tempo, ns estamos fazendo um documentrio nos estados do Nordeste,
promovido pelo SESC e eu comprei essa histria que, inclusive, o cego Aderaldo,
alm do grande cantador que era, o Cego Aderaldo, ele era o que eu sonhei ser,
est entendendo? Ele era o dono, ele tinha um circo. Tinha um circo e ele, alm
de cantador, ele era um ator, ele tinha o domnio do palco que eu nunca vi uma
coisa daquela. E ele cantava uma msica tocando viola ou violo, eu no lembro
bem porque ele tocava viola, violo e rabeca. A, chamava-se A gargalhada.
A, ele cantava uma quadra, e a ele, no ritmo do acompanhamento do baio com o
qual ele acompanhava cada quadra, ele comeava a rir, uma risada
propositadamente artificial, est entendendo? E,
pois bem, no dava vinte segundos, ningum no teatro se aguentava, todo mundo
estava rindo com ele. Era uma coisa extraordinria! Ele dizia assim [canta]
Minha comadre borboleta/ Meu compadre gafanhoto/ Venha ver compadre grilo/ T
dando com os ps nos outros. Vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te
embora Joo, vai-te embora, Joo, vai-te embora Joo, vai-te embora, Joo,
vai-te embora, Joo, vai-te embora, vai. E ele, a, dava uma gargalhada Hahaha!, mas, olhe, era engraadssimo isso. Ele tinha uma
garganta forte, no tinha essa besteira com ele, no. Muito bom! E eu tive a
alegria de conhecer o Cego Aderaldo apresentado por Rogaciano
Leite.
Andra – Nesse evento
que aconteceu no Santa Isabel havia uma disputa entre os cantadores ou eles
eram apenas convidados?
Ariano – No, no. Eu
no gosto muito disso no, est entendendo?
Andra – Sim.
Ariano – Eu gosto mais
de ver cantoria, ento, eu no fiz... Num Congresso que se faz isso, cada dupla
tem que ser assim, porque tem que mostrar muito, cada dupla tem tantos minutos.
Todo mundo que j ouviu uma cantoria sabe, a cantoria tem altos e baixos. Vai esquentando e a fraca aproveita incidentes,
o que uma coisa muito boa. Severino Pinto, por exemplo, tava
cantando um dia e ele disse: Eu sou Severino Pinto/ Grande cantador do
espao, na hora em que ele disse isso, o galo cantou [riso] no poleiro da
fazenda. E ele disse Meu galo, no cante agora/ Me deixe eu cantar sossegado/
Que o pai que arremeda o filho/ muito mal-educado [risos]. Como o nome dele
era Pinto, no ? A, quer dizer, ento, a cantoria tem isso. E se voc
estabelece um horrio, voc pode pegar 20, 10 minutos de cantoria ruim. Por
acaso os nossos cantadores no estavam muito bem e pode ser um grande cantador
e se sair mal, compreendeu? Ento, eu no fiz isso, no, eu fiz uma cantoria.
L o cantador cantava vontade, est entendendo? O cantador cantava vontade
e eram trs irmos, ento, no tinha isso, no. E todos os dois, Dimas e
Otaclio, tinham uma admirao muito grande pelo Lourival, que era o mais
velho, eles consideravam Lourival o maior. Eu, pessoalmente, gostava mais do
Dimas, eu achava Dimas... Lourival tinha um improviso bom, extraordinrio, mas
o Dimas era um cantador mais seguro e eu achava mais igual, t me entendendo? E
ele era mais, no sei, mais profundo, talvez, do que Lourival. Pois bem, ento,
eles cantaram. Agora, inclusive teve uma coisa muito interessante porque
aquilo que eu digo do aproveitamento do momento. Porque apareceram trs ou
quatro estudantes paulistas l, e eu no sei se eles ficaram se sentindo
diminudos pelo sucesso que os cantadores estavam fazendo l e eles tinham
bebido tambm e resolveram entrar no palco para fazer isso que hoje se chamaria
uma performance.
Andra – Nossa!
Ariano – Est
entendendo?
Andra – Sim.
Ariano – Ento, a
entraram os dois no palco. E eu no sei se voc j viu essa porcaria, eu j vi
mais de uma vez. Aconteceu o seguinte: entrava um assim, em p, e ficava em p
assim, com as mos no bolso, est entendendo? O outro vinha por trs, abraava
ele assim, passava os braos aqui por baixo assim, ento, ficava ele pra frente
e os braos do que estava atrs. E a graa era a gesticulao no ter nada a
ver com o que a boca estava dizendo. Bom, quando eles terminaram l, a a
plateia ficou assim meio fria, mas aplaudiu assim educadamente e friamente. Isso a foi que eles no sabiam com quem tavam mexendo. Lourival, que era o sujeito mais sem
vergonha do mundo, a eles comearam a cantar um estilo que chamam Gemedeira
porque entre o sexto e o stimo verso a pessoa faz ai, ai, ui, ui ou ento,
ai, ai meu Deus. Pois bem, a ele fez um verso, at achei que estava numa
posio meio estranha, a disse... Eles cantaram vrios, eu me lembro dessa
Sextilha em que ele disse assim... Sim, porque teve um momento em que os
estudantes l viram que no estava fazendo sucesso e eles resolveram apelar, a
deram uma banana assim, deram uma banana para o pblico. O pblico a ficou
acanhado. Ento, Lourival disse assim: O de trs dava banana/ O da frente
discursava/ Quanto mais um se enxeria/ Mais o outro se encostava/Atrs ainda
tinha um jeito/Ai, ai, meu Deus/ Na frente que eu no ficava [risos]. Rapaz,
foi umO teatro quase veio abaixo na hora. Quer dizer, esse era um momento que,
esse era um grande momento da cantoria, n? Quando aproveita-se o que aconteceu
ali e a o pessoal v que improvisado mesmo.
Andra – Claro! Muitos
cantadores tm apontado a presena do balaio, que o senhor deve conhecer.
Ariano – Hein?
Andra – O senhor
conhece o balaio? A estrutura que os cantadores levam escrita, que no
improvisada, decorada, e apresentam como se fosse cantoria?
Ariano – Sim, sim, sim.
No sabia que chamava-se balaio, no.
Andra – , eles chamam
de balaio. E os cantadores tm apontado isso como possibilidade de
enfraquecimento da cantoria porque iria para um Festival ou para um p de
parede sem o improviso, que o que caracteriza esse tipo de produo. Ento,
medida que o balaio vai sendo introduzido, voc vai colocando uma produo
escrita no lugar de uma produo oral.
Ariano – No da
improvisao, no ?
Andra – . Isso de fato
tem mudado muito. Eu tenho visto que a cantoria tem mudado muito de uns tempos
para c, tanto no formato quanto na performance.
Ariano – Eu no vou, eu
no vou a congresso de cantadores, no, que eu no gosto. Eu no gosto. Inclusive por isso, pelo
artificialismo e depois tem outra coisa que eles fazem que eu tenho horror,
uma tal de uma Poesia Matuta, compreende? Que no era uma tradio do cantador
nem da poesia popular. Pelo contrrio. Isso foi introduo de poeta de classe
mdia que Olha, eu acho isso uma falta de respeito ao povo, est entendendo?
Voc repare bem. Em primeiro lugar, a linguagem, e eu estou falando aqui de
teatro de modo geral. A linguagem escrita no corresponde linguagem falada,
outra coisa, est certo? Nem a pronncia. A linguagem escrita tem muita coisa
de conveno, no ?
Andra – Sim.
Ariano – Tem muita coisa
que conveno. Pois bem, se eu entrar com um personagem de uma pea de
teatro, eu digo, eu pronuncio como todo nordestino, eu no digo Ns. Eu digo Nis, no
verdade? Pois bem, se ele me bota como personagem apesar de eu dizer Nis, eles colocam l N--s e
acento. E quando um homem do povo eles querem botar N-o-i-s com acento, Nis, Nis vai, entendeu? Isso
uma falta de respeito, uma discriminao contra o povo, porque eu no conheo
ningum no Nordeste que diga Ns a no ser padre e pastor protestante [risos].
No ? Padre e pastor protestante dizem Jesus na cruz cercado de luz [risos].
No ? Mas gente normal, no. No ? Diz Jesuis na cruiz cercado de luiz. Mas
quando um homem do povo eles botam o i, est entendendo? Pois bem, na
poesia matuta que eles fazem assim. Aqui tem um rapaz talentoso, muito
talentoso, mas eu no gosto do que ele faz. Eu t
dizendo isso porque ele sabe, ele at j declarou isso. Ele se chama Jessier Quirino. Eu no gosto, no. Pois bem, nos
congressos de cantadores deram para botar essa tal poesia matuta. Quem
inventou isso foi um pernicioso, um maranhense pernicioso chamado Catulo da
Paixo Cearense. Apesar de se chamar Catulo da Paixo Cearense, ele era
maranhense [risos]. Pois bem, esse camarada foi quem inventou isso. Agora voc
veja, ns tnhamos aqui um grande poeta popular, Idelette[107] deve
conhecer, no ? Ele paraibano como eu e mora em Pernambuco como eu. Ele se
chama Jos Costa Leite. Pois bem, ele um grande poeta e um grande gravador.
Ele faz as gravuras dos prprios folhetos, ele que faz. Pois bem, Jos Costa Leite, ele fez um folheto
baseado em um poema de Catulo da Paixo Cearense. E ele corrigiu os erros
todinhos de Catulo. Que lio, no ? Est vendo? O poeta popular de verdade,
ele escreve da maneira que ele acha mais correta, no pode sair melhor a coisa
porque ele no sabe, mas procurar deliberadamente o erro...
Andra – . O que a
gente acaba aprendendo que a oralidade feia, no ?
Ariano – .
Andra – E que a escrita
que bonita porque polida, recortada.
Ariano – , ,
exatamente. Agora o que pior deturpar a escrita partindo de uma falsa
interpretao da linguagem falada.
Quando eu
encenei o Auto da Compadecida, eu chamava ateno para isso, procure um
erro de Portugus e no tem. Eu acho que errado a pessoa mudar a letra da
linguagem popular. A pessoa tem que atingir o esprito, mas tambm de uma forma
que aquilo ali se esconda e ningum note, que ningum saiba.
Andra – Compreendo. Naquela
poca, no teatro, qual era o pblico que foi ver essa cantoria? O senhor
lembra?
Ariano – No, no sei,
no. Porque inclusive eu pedi, como eu disse, a ajuda do diretrio e fizemos.
Ns combinamos isso e fizemos com entrada paga, que era pra dar pros
cantadores. Mas ns mesmos, os estudantes, samos vendendo. Eu me lembro bem,
vendi para toda gente da minha famlia, a era o normal, mas vendi para os
vizinhos todos, compraram e foi muita gente de vrios tipos. Agora tinha muito
estudante.
Andra – Nessa poca, os
cantadores cantavam muito com a bandeja, no ?
Ariano – . No. A
cantoria normal era com a bandeja.
Andra – O p de parede?
Ariano – . L no. L
no foi, no. Porque fizemos com entrada paga na bilheteria do teatro mesmo. E
encheu o teatro, encheu literalmente. Sobrou gente. Foi muito bom!
Andra – A partir disso,
o senhor continuou tendo iniciativas deste tipo?
Ariano – No. Eu fiz
isso por entusiasmo, est certo? Mas quando apareceu Rogaciano,
eu fiquei muito aliviado e eu disse: Voc agora v em frente. E eu no
organizei mais, no.
Andra – Mas o senhor se
d conta de como isso foi importante para mudanas dentro do sistema da
cantoria?
Ariano – Hoje estou mais
ou menos consciente, na poca no tive medida, no. Eu fiquei muito feliz de
ver aquele povo que foi naquele dia gostar, comprar entrada e aplaudir os
cantadores.
Andra – Mas foi
realmente uma atitude muito desafiadora.
Ariano – Foi.
Andra – Tirar os
cantadores do lugar onde eles costumavam se apresentar e mudar para um lugar de
elite, que era o teatro.
Ariano – Foi. Mas sempre
sou assim. Ainda hoje, no sou mais aquele estudante, no, mas eu ainda hoje
tomo essa deciso. Olha, essa deciso, que eu tive de sair com o meu circo, que
eu fundei um circo, ligado secretaria, sa pelo serto. Foi uma deciso
corajosa, na verdade, porque eu no sabia. Primeiro diziam que o jovem no ia
me ligar por estar viciado pela cultura de massas. E eu queria que voc visse como , assim de
gente.
Andra – Eu vi sua
apresentao em Vitria da Conquista.
Ariano – Ah, voc viu.
Andra – Eu vi o
entusiasmo dos meninos.
Ariano – sempre assim.
Andra – Sempre lotado.
Ariano – E isso foi uma
deciso desafiadora do mesmo jeito que foi a do Festival em 1946.
Andra – Como que essa
cantoria tem influenciado diretamente a sua obra? Eu no digo a cantoria em si,
mas esses elementos da cultura popular.
Ariano – Olha, voc
veja, por exemplo, eu uso, ainda hoje, eu tenho grande admirao pelo ritmo do Martelo
agalopado.
Ainda hoje
eu uso. Eu escrevi a por 1900 e quanto? No sei. 1958 ou 1960, eu escrevi um Martelo
agalopado em homenagem a Cames, est certo? Em
homenagem a Cames. E ento, eu uso, eu sou poeta, alm de romancista e
dramaturgo, eu sou poeta e como poeta eu uso muito, eu uso Soneto, que uma
forma italianizante, mas que foi introduzida na
literatura de lngua portuguesa por Cames, n? Ele tinha grande admirao por
Petrarca. Ento, na minha poesia mais lrica, eu uso o Soneto. Mas eu gosto
muito da forma fixa, coisa que depois da Semana de Arte Moderna considerado
arcaico, mas eu gosto muito, est certo? Eu gosto muito. Eu gosto muito do
verso musical, nisso sou o oposto de meu amigo e grande poeta, que era Joo
Cabral de Mello Neto. Ele tinha horror musicalidade na poesia. E eu, eu s
gosto de poesia musical. Quer dizer, tenho grande admirao por Lorca, e Lorca
era um poeta de uma musicalidade, inclusive tocava piano e compunha, no ? Era
amigo do maior compositor espanhol do sculo XX, que foi Leonel de Faglia, ele era amicssimo, os dois fizeram juntos o
trabalho de pesquisa do Cancioneiro Espanhol, no ? Pois bem, e eu ento,
peguei Veja bem, eu acho a forma, a forma pica, o gnero pico da poesia.
Isso na poesia de lngua portuguesa no sculo de Cames a oitava, que ele
herdou da poesia italiana tambm, Cames. Ento, voc v aquela forma usada nOs
Lusadas era a oitava. Eu acho o Martelo, como ritmo, como gnero e como
forma muito mais bonito do que a oitava, est certo? bonito. E eu uma vez, eu
peguei os versos de Dante e traduzi. Em vez de usar o terceto, a Divina
Comdia escrita em tercetos.
Eu, em vez
de usar o terceto, eu peguei mais de um terceto e juntei e fiz um Martelo. No
meu entender, ficou mais bonito [riso]. No que eu seja melhor poeta do que
Dante, no, que o ritmo do Martelo mais bonito. E ento, eu passei Ainda
hoje eu uso. Eu sustento sempre que Olha, para mim tem uma coisa que o pessoal
diz que eu sou arcaico e diz que o serto uma coisa localizada e eu sou um localista.
E sou. Agora, acontece que eu acho que, aquilo que Paulo diz, eu acho que o ser
humano o mesmo aqui, na China, nos idos do sculo XIII, ou agora, ou no
futuro. Outro dia um camarada me disse: Ariano disse ele, disse a, por a:
Ariano precisa tomar conhecimento do fato de que o homem sertanejo no anda
mais a cavalo, no. Anda de moto. A, eu disse: E ele precisa tomar
conhecimento de que ande de moto ou ande a cavalo o mesmo. Me diga uma
coisa, o homem que anda de moto sofre? Sofre. Tem cime? Tem. Se apaixona? Se
apaixona. Ele o mesmo homem. O fato de andar de moto ou a cavalo no
interessa, no. Isso somente um veculo de se andar, n?
Andra – Inclusive, o
vaqueiro tem feito o aboio hoje com moto, no usa mais o cavalo em todos os
lugares, mas ele continua fazendo o aboio.
Ariano – Ele continua
fazendo o aboio e continua sendo o mesmo ser humano. Se eu pinto o vaqueiro
Pois bem, baseado nisso, eu acho que o Brasil o serto do mundo, t certo? O
nordeste o serto do Brasil e o serto o osso do Nordeste. T certo? Ento, eu fiz um... Eu vou dizer para voc ouvir
o ritmo do Martelo. Vou ver se eu sei decorado, se eu digo decorado: O Galope
sem freio dos cavalos/ Os punhais reluzentes do cangao/ As primas e bordes no
seu transpasso/ O pipoco do rifle e seus estralos/ O
sino com seus toques de badalo/ E as onas com seus olhos amarelos/ O lajedo
que trono e que castelo/ O ressono do mundo / O vento sai, o sol e a
madrugada/ E eu tiro no galope do Martelo. T vendo? No um ritmo bonito?
Andra – sim.
Ariano – Eu acho. E um
ritmo pico.
Andra – Os cantadores
dizem que o Martelo agalopado o vestibular do
cantador.
Ariano – E .
Andra – Que o gnero
mais difcil.
Ariano – mais do que
isso, o doutorado.
Andra – um doutorado [risos].
verdade.
Ariano – [risos]
Andra – J estamos
terminando, eu queria aproveitar para lhe agradecer e falar da importncia da
sua contribuio para o meu trabalho e para os estudos sobre cultura popular. E
s para finalizar: o senhor possui material dessa poca? Alguma fotografia,
qualquer coisa que remeta a esse perodo que eu poderia ver?
Ariano – Eu no tenho,
no. Agora, um jornal aqui chamado Jornal Pequeno, voc pode encontrar
na biblioteca, eu levei os cantadores, porque eu queria fazer propaganda da
cantoria. Ento, uns dois dias antes ou um antes, eu no me lembro bem, eu acho
que foi uns dois dias antes, eu no me lembro bem, eu levei os cantadores ao Jornal
Pequeno na redao e eles tiraram fotografia dos cantadores e deram notcia
da cantoria. E tem palavras minhas l, no me lembro se tem...
Andra – Muitssimo
obrigada!
Ariano – Certo. Obrigado. Eu fico muito contente tambm.
[Recebida
21 dez 2021]