UMA CONVERSA COM E SOBRE
SALETE MARIA DA SILVA
A CONVERSATION WITH AND
ABOUT SALETE MARIA DA SILVA
Salete Maria da Silva (Colaboradora)
Andrea Betnia (Pesquisadora)
Bruna Lucena (Pesquisadora)
Salete Maria da Silva , antes de qualquer
caracterizao, uma mulher com alma e ps de serto, que aprendeu a fazer
cordel com uma de suas avs, e, no por acaso, a vida de ns mulheres percorre
toda sua obra, seja a cordelstica – com forte teor feminista e
revolucionrio –, seja a acadmica, como professora do Bacharelado em
Estudos de Gnero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em
seus quase 30 anos dedicados criao de cordis feministas e libertrios,
publicou mais de uma centena de folhetos, muitos dos quais podem ser lidos em
seu blog Cordelirando. membra-fundadora da
Sociedade dos Cordelistas Mauditos ‒ importante coletivo de poetas,
cantadores e performers fundado no
ano 2000, em Juazeiro do Norte/CE.
Esta entrevista uma grande conversa da qual
participam quatro pessoas: a prpria Salete Maria, Andra Betnia, Bruna Lucena
e Jos Gomes, sendo a primeira a entrevistada; as duas seguintes, as
entrevistadoras; e o ltimo, o responsvel pela transcrio literal. Adotamos a
conversa como mtodo de realizao desta entrevista por acreditarmos ser [...]
uma convocao de saberes diferentes de modo no hierrquico, em que [...] o
conhecimento est sempre no plural, conhecimento(s), como defendem Maria Luiza
Sssekind e Raphael Pellegrini
Conversamos no dia 6 de outubro de 2020, em uma
videochamada repleta de histrias de vidas, de artes de ontens
e de agoras ancestrais, sobre sua presena
inquietante no cenrio cordelstico. Diante da impossibilidade de estabelecer
uma conversa linear com Salete ‒ o que entendemos como um ponto positivo
‒ tendo em vista a exposio de um pensamento que nos lembra um
palimpsesto, os assuntos abordados foram surgindo motivados no apenas por
nossa curiosidade como entrevistadora, mas, sobretudo, pelos motes com os quais
a entrevistada nos presenteava medida que tentava refazer sua trajetria
tanto pessoal quanto potica, seguindo uma rota que se deixava guiar por seu
modo inquieto e inquietante de estar no mundo.
Ao
optarmos por empregar, no ttulo dessa entrevista, com e sobre, sem nos
decidirmos por apenas um, trata-se menos de vontade de escolha e deciso, e
mais, muito mais, de vontade de dar conta do que a intimidade de dividir
palavras, escutas atentas, conhecimentos, bem como de dar a ver essa importante
cordelista de nosso aqui e agora.
Bruna
Lucena (BL)
‒ Ns estamos aqui com Salete Maria da Silva, cordelista, ativista,
professora e outras coisas sobre as quais falaremos adiante.
Andra
Betnia (AB)
– Boa tarde, Salete. Agradecemos mais uma vez sua disponibilidade e
generosidade ao se dispor para essa conversa. Sabemos que voc est muito
ocupada com a vida nesses tempos, mas vamos l. Salete, vamos comear falando
sobre sua trajetria?
Salete Maria (SM) – No estava no
meu horizonte ir para a universidade porque na minha famlia no existia essa
tradio, como de resto todos os meus contemporneos, os meus colegas l da
comunidade onde eu vivia. S que, no Ensino Mdio, fui fisgada por uma
militncia Marxista, por meio do Partido Comunista do Brasil, do Partido dos
Trabalhadores. Naquela poca existia uma espcie de recrutamento da juventude,
pra que nos organizssemos. E eu era muito ativa, gostava de ficar recitando
coisas nos eventos da escola. Nessa ocasio, embora ainda no entendesse nada
de Marxismo, de Socialismo, de nada, eu tinha uma revolta relacionada questo
de classe. Eu nasci em So Paulo, numa favela onde hoje est funcionando o
estdio de futebol que pertence ao Corinthians e, ali, na Zona Leste, eu morava
na rua chamada Estado do Cear porque todas aquelas ruas eram ocupadas, naquela
favela, por nordestinos, cearenses em sua maioria. E meus pais foram para l,
como tantos outros no final de 1950 e na dcada de 1960, em busca do Eldorado,
porque se buscava uma vida melhor. Ambos agricultores, meu pai nascido numa
cidade chamada Vargem Alegre, no Cear, e minha me, na menor cidade do Cear,
que se chama Granjeiro, especificamente na zona rural desse muncipio, que
ainda hoje o menor do Cear. Meu pai, embora agricultor, foi para So Paulo
trabalhar na construo civil. Minha primeira irm nasceu no Cear. Depois eu
nasci em So Paulo, depois eles voltaram para o Cear. Ao todo, somos seis
filhos: um em cada lugar. Ento, meu pai, como operrio, trabalhou na
construo civil. Grande parte daqueles prdios que tem na Avenida Paulista tem
o suor do meu pai.
Ento, eu tinha uma coisa
assim de questionar as desigualdades sociais e essa turma de esquerda do Ensino Mdio que
vai me despertar. E, uma vez, minha me, quando ela era faxineira do Palcio do
Governo, foi acusada de roubar um material de limpeza, uma coisa assim. Isso me
marcou muito. E embora nesse tempo eu j fosse muito apaixonada pela
literatura, porque meu melhor professor de todos os tempos foi um homem, um professor
chamado Sebastio, professor de letras: Literatura, Lngua Portuguesa e
Literatura l na Escola Jos Lins do Rgo, em So Paulo. Era 5 srie e depois
ele foi meu professor na 7 tambm, e esse professor me emprestava muitos
livros e eu participava de concursos de poesias, s que a escola no oferecia
possibilidade de falar da Literatura de Cordel. E meus pais tinham cordel em
casa e eu levava, esse professor era muito receptivo, mas nunca inseria no
programa, n? Enfim. O fato que eu queria fazer Letras, eu me inspirava
naquele professor que dava oportunidade, que estimulava a leitura, enfim. A a
histria era assim: no era exatamente pensando eu vou pra faculdade fazer
Letras; era pensando assim: eu quero ser uma escritora, eu quero ler mais, eu
quero escrever mais. Mas no era tipo: eu vou pra faculdade, n?
Depois, quando terminei o Ensino Mdio, eu j
fiz todo o Ensino Mdio, grande parte dele, no estado do Cear. Ento, eu j
estava militando no Partido Comunista e meu companheiro ‒ que o pai da
minha filha, n? ‒, meu companheiro da poca, ele era trotskista e atuava
numa ala do PT chamada Convergncia Socialista e ele disse: Eu vou fazer
faculdade, vou fazer Histria. A ele se inscreveu e eu fiquei na dvida. Eu
queria me inscrever em Letras, s que eu ainda tinha muita mgoa, muita revolta
pelo que aconteceu com minha me. Eu falei assim: Ah, ento acho que eu vou
fazer Direito porque eu quero atuar na rea do Direito do Trabalho. Ento, eu
fiz vestibular, n? Eu era muito autodidata e eu lia muito, e eu era a nica
mulher que atuava no Partido Comunista. Ento, assim, eu passei na faculdade de
Direito, apaixonada pelo Direto do Trabalho, mas quando chegou l eu me
encantei pelo Direito Constitucional, mas, paralelamente a isso, eu seguia
lendo e escrevendo muito, muita Literatura de Cordel sem publicar.
A, em 94, quando eu pari minha primeira e nica
filha, eu pari tambm um cordel. Ela nasceu em maro e eu pari o cordel e
publiquei. Eu tava desempregada, ento, eu escrevi,
n? Houve uma morte l no bairro e eu escrevi aquele cordel que de 94, a
primeira edio: Mulher Conscincia ‒ nem violncia, nem opresso.
Ento, eu mesma paguei. Tinha uma grfica l em Juazeiro do Norte, onde
publiquei quase a maioria dos meus cordis. Depois eu fui publicar na grfica
Lira Nordestina, que uma grfica assim... ela, hoje acho que est vinculada
Universidade Regional do Cariri, ainda est! Mas eu publicava em uma grfica de
fundo de quintal, ela nem tinha CNPJ, era de Seu Ccero, e a grfica Lderes.
Depois ele regularizou, muitos anos depois. Ento, eu publiquei esse cordel e
como eu era militante, eu discutia com as mulheres, conversava com elas e esse cordel
era sempre muito lembrado para dialogar sobre essas violncias. No eram os
documentos que eu aprendia na faculdade, no eram as regras, no eram os textos
acadmicos porque as minhas interlocutoras no eram acadmicas. Ento, esse
cordel foi a minha entrada no mundo da Literatura. Assim, minha entrada oficial, n? J que eu era uma leitora e
uma escritora, mas no publicava.
S que bvio que eu digo que a influncia da
militncia, ela foi importante pra mim, mas [pausa] antes mesmo de eu estar na
escola, eu tinha essa paixo pela Literatura de Cordel por causa da minha av.
Eu falo muito sobre isso em outras entrevistas e eu dei uma entrevista pra Caros
Amigos uma vez e eles deram a visibilidade que a minha av merecia naquela
entrevista porque comeam falando dela e o impacto dela na minha vida. Ela era
uma performer, eu no tinha essa noo, mas a minha av era miudinha. Eu
tenho um metro e cinquenta e dois [1,52m]; minha av era muito menor do que eu
e se agigantava diante de mim assim. No s porque eu era uma criana e ela era
uma adulta, mas porque eu via assim uma poetriz,
digamos assim, uma mulher que era fascinante. Ento, ela no sabia ler, n?
Durante um perodo da vida ela enxergava, mas depois ela ficou cega e ela era
apaixonada pela Literatura de Cordel. Todo mundo na minha famlia era, mas minha
v era a que tinha mais fora, n? A que nos unia em torno dessa literatura. E
a ela vivia na zona rural l de Granjeiro, num lugar chamado Canabrava,
Canabrava dos Gregrios, e essa mulher que amava a Literatura de Cordel exerceu
em mim essa influncia.
Ento, assim, eu conto isso num cordel chamado Feminismo
em Cordel: como foi que comeou? e l eu conto um pouco dessa coisa de eu
gostar muito de todos os cordis. L tinha um ba, cheio de cordis, embora
fosse numa casa que somente uma pessoa lia, que era minha tia Senhora, que
viva at hoje. Era a nica pessoa que lia, lia muito pouco, mas era ela a
pessoa responsvel por ler o cordel, os cordis ali [rpida pausa] e meu av,
quando ele ia pra cidade, fazendo compra – feira do ms. Eu brinco, acho
que no cordel Cordelirando [rpida pausa
novamente] eu conto isso e tambm nesse outro Feminismo e Cordel, eu
lembro que meu av, as vezes que eu ia pra l, porque vocs deveriam pensar:
Mas como assim, voc tava em So Paulo e no Cear ao
mesmo tempo?. A minha, a nossa vida era uma vida de idas e vindas. Meus pais
foram l por conta do xodo rural, tiveram uma filha, voltaram pro Cear: todas
as vezes que tinha uma crise econmica, que ficavam desempregados, que as
coisas apertavam porque o aluguel era caro e eles moravam, apesar de no
morarem numa casa, mas era um barraco alugado; e quando tambm a violncia
comeava a espreit-los, corriam de volta para o Cear. E l eles tinham as
casas dos parentes pra ficar, tinha roa, no faltava aonde eles serem
acolhidos. Ento, assim, havia frias em que eu estava na casa dos meus avs e
havia perodos em que eu morava na casa deles.
Ento, assim, meu av ia pra roa, pra feira e
ele levava um saco que era a bolsa que ele transportava a feira, a ele
trazia... eu costumava brincar que ele trazia os quatro efes: era o feijo, a
farinha, o fumo e foieto porque minha av nunca
chamou o cordel de Cordel, ela chamava os foieto,
n? Ento, ela tinha os clssicos: A histria de Joo Grilo, O
soldado jogador, ela tinha l A histria do Valente Joo Garcia, Z
Garcia ‒ no lembro agora. Ela tinha tudo, tudo, tudo, tudo. E meu av,
ele tava se alfabetizando, ento, ele ficava na roa
o dia inteiro, quando chegava tomava banho, jantava e depois sentava um pouco
l no terreiro, conversava com as pessoas. Mas, depois ele voltava e sentava
num tamborete e acendia uma lamparina e comeava: ‒Um B com A, BA; um B
com E, BE; tudo cantado. Eu ficava impressionada, n? De ver aquele homem...
Meu av tinha uma aparncia muito bonita, ele era um homem negro, baixinho,
cambota; e ele tinha essa coisa de querer estudar, ento, ele tinha a tabuada e
tinha a carta de ABC. E ento eu ficava observando aquele homem aprendendo a
ler.
E minha av, no! Nunca aprendeu a ler, mas ela
era quem articulava o... vamos chamar de sarau, que na poca ningum usava
esses termos, n? A l tinha um alpendre, na casa dela, ento, sentavam-se as
pessoas nas cadeiras, as crianas sempre no cho junto com os cachorros; mas os
adultos tinham cadeiras [risos] e tinha a muretinha
do alpendre onde vizinhos, compadres, conhecidos chegavam, conversavam sobre
vrios assuntos, mas sempre tinha o recital. E a minha tia Senhora, ela que
lia essas histrias, e minha av ficava a corrigindo porque minha av tinha de
cor; todos os folhetos minha av tinha decorado. E quando eu aprendi a ler de
verdade, minha me contava que eu j tava lendo
cordel e num sei o qu, e minha av dizia: Pois sente aqui na cadeira que eu
quero ver se voc sabe ler mesmo.
Ento, minha av era uma espcie de professora,
mesmo sem saber ler, sem decodificar palavras, letras etc. Eu lia os cordis
pra ela e ela me corrigia porque tinha a cadncia, n? Tinha toda uma coisa de
voc performatizar e eu ficava lendo ali como quem l
qualquer coisa, e minha av corrigia: No bem assim...; e claro, uma
criana s vezes num sabe ler direito e minha av ia me dizendo como era a
palavra e tal. A chegada do Lampio no Inferno foi o primeiro cordel que
eu lembro de ter lido; lido eu mesma – no ouvido, ouvi outros. A, eu
dizia: Um cabra de Lampio, a ela dizia: Por nome Pilo Deitado; e voltava
pra mim: Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado / Agora pelo
Serto anda causando viso / Fazendo mal-assombrado. A, ela dizia: Pare a,
no bem assim. A, ela voltava e dizia: Um cabra de Lampio / Por nome
Pilo Deitado / Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado[82]. Ento, ela imprimia
musicalidade, ela tinha uma coisa assim. E ela se levantava – se ela
tivesse sentada – e ela agitava os braos, aquela coisa, n?
Ento, assim, eu fui percebendo que no era s
uma escrita, era uma coisa de msica! Era uma articulao entre msica,
oralidade, escrita etc. etc. Mas nada de teoria, no tinha acesso s teorias e
at hoje no tenho muito conhecimento sobre Teoria Literria ou Oralidade ou
Cordel ou Tradio. Conheo vocs duas e tantas outras pesquisadoras que
conhecem bem, que tm domnio sobre essas questes, mas ali com ela, era uma
escola de teatro, digamos assim, n? Ento era uma coisa... E eu percebia o
seguinte: minha av tambm criava. Eu entrevistei minha av algumas vezes,
quando eu j estava adulta e minha av j estava bem velhinha. E eu entrevistei
naqueles gravadores antigos e parte dessas fitas cassetes eu cedi pra pesquisadora Fanka
e depois ela cedeu pra Ria e essas coisas desapareceram porque primeiro
eram mal condicionadas, o calor destrua, n? Enfim, mas l no Juazeiro do
Norte deve ter ainda alguma coisa.
Ento, minha av quando recitava para mim nas
entrevistas ou mesmo nas conversas comuns, eu no sabia quando era uma coisa
era dela ou era de algum autor clssico porque como a minha av no estava
preocupada em dar crditos e fazer referncias, tinha vez que ela mesclava as
coisas do imaginrio dela, da lembrana dela, do cotidiano dela, ento, quando
estava varrendo o terreiro – ela estava recitando alguma coisa ‒,
eu dizia: De quem esse Cordel, v? De quem esse folheto, v?. Essa
histria, n? A, ela dizia: Num sei, no. S sei que eu aprendi, n? Esse a
eu no sei de quem no. A em outro pedao ela dizia: Esse aqui meu. Foi
eu que inventei isso aqui. Ento, talvez por ela escutar tanto, tantos
folhetos e por ela tambm pensar sobre criar, ela no sabia mais o que era
dela, o que era dos outros e eu no sei explicar. Sei que isso a foi me
influenciando.
Ento, como diz Z Ramalho, naquela poca eu era
inocente, porm, besta; e eu achava que os cordis eram lindos e maravilhosos.
S que depois, essa coisa de racionalizar, de refletir sobre as desigualdades
sociais, me mobilizou a questionar aqueles folhetos que sempre tinham os homens
como protagonistas ou os homens como autores, n? E, ento, eu comecei a
prestar ateno no meu cotidiano. Eu sei que as histrias que minha av
apreciava e que tambm gostava, e que minha tia lia, eram sempre de pessoas de
outros pases ou ento eram narrativas assim... histrias imaginadas: O
Valente Z Garcia, A Princesa do Vai No Torna, O Pavo
Misterioso. Era muita coisa, assim, que no era da vida real, digamos
assim. Ento, eu comecei prestando ateno s coisas da vida real e na minha
vida real tinha muitas mulheres, dentre as quais eu me inclua, com vrios
problemas, e tinha tambm uma coisa de eu achar um pouco ofensivo e dialogar
com as mulheres do meu bairro, da minha famlia falando daquelas coisas, do
artigo 5 da Constituio. Eu no me sentia confortvel por estar falando sobre
o nosso cotidiano a partir dali.
Ento, em 94 eu estava no penltimo ano da
faculdade quando eu publiquei meu primeiro cordel. E nas rodas de conversas,
no s na militncia, mas com mulheres e ali no era uma conversa entre
feministas no, era entre mulheres de uma comunidade que estavam muito
impressionadas e muito, digamos assim, temerosas com a morte da vizinha Cristina,
que foi assassinada na poca. Ento, o cordel comeava assim: Os nmeros de
violncia tm crescido sem parar / Pra garantir resistncia preciso no
calar; a eu dizia: Do Cariri para o Brasil quero me manifestar. E comea
assim. Eu vou narrando uma srie de coisas e o Cordel tem uma influncia assim
marxista porque a explicao que eu dava na poca para isso tinha a ver com a
acumulao da propriedade em poucas mos, a violncia estava relacionada tambm
com a questo econmica, no era uma explicao totalmente baseada no
patriarcado. Era a influncia que eu tinha da poca, de que era uma leitura
ideolgica, ligada ao marxismo, num sei o qu. E ento eu levei esse Cordel
para a minha av, em 94, e ela morreu em 2002, parece.
Eu levei esse cordel para a minha av, eu li pra
ela e ela disse: Isso a no foieto, no. Isso a
no tem nada a ver com foieto. Ela no reconheceu
[risos], a eu falei: V, tem sim! Olha aqui a rima t bem direitinho.... Eu
acho, n? Achava! [continuao do dilogo] A rima t bem construda, eu t rimando bem aqui, . A ela disse assim: No, mas essa
histria muito feia, muito ruim, num tem uma coisa assim que prenda, num
tem... Quem a mulher dessa histria? Quem o homem? Quem a pessoa?, n?
A no tinha uma personagem especfica, que tivesse uma histria que tivesse
incio, meio e fim, porque falava de um monte de pessoas ao mesmo tempo, de
grupos sociais e tal. E a ela disse: De onde foi que voc tirou isso?. A,
eu disse: Da minha cabea, da minha cabea, mas foi porque morreu Cristina,
l na Rua So Bento, assim, assim, assado e tudo. A ela disse assim: Mulher
(mui, n? Que ela falava), mui,
num se mete com isso no. Ela sempre me dava vrios conselhos e ela achava que
eu j estava velha, que eu j deveria ter me casado. A, ela dizia: , minha
filha, arranja um dono pra tu; to feio uma mulher sem um dono. E ela dizia
assim, eu fui l pra me despedir dela, que eu ia viajar pra Fortaleza pra fazer
mestrado; a ela disse assim: Tu ainda vai estudar? Tu j leu os livros do
Juazeiro, do Crato e agora vai ler os livros de Fortaleza? Minha filha.... A
comeava a falar que era melhor eu me casar... A eu fui fazendo cordis,
problematizando tambm essa nossa matriz social, cultural; e vieram outros
folhetos e, enfim, quando chegou em 100 eu parei de contar. Mas o fato que a
maioria relacionada a essa nossa condio feminina, n? Eu digo nossa,
considerando a tambm toda a diversidade das mulheres.
E a o curioso que a velhice me chamava muita
ateno tambm. E eu escrevi o cordel O que velhice, o ttulo esse: O
que a Velhice? E a capa tem a foto de minha av; minha av com um paninho
assim no ombro, que ela sempre usava um paninho de prato assim no ombro o tempo
inteiro, exceto quando ela saa pra viajar ou pra missa. E ela est na porta da
casa dela nesse Cordel e eu vou perguntando o que a velhice, vou questionando
e trago vrios elementos porque tambm eu estava influenciada com a obra de
Simone de Beauvoir, que ela trata tambm dessa temtica da velhice, que o
lado menos conhecido de Simone de Beauvoir, n? E eu no era estudiosa de
Teoria Feminista, no era estudiosa de questes de gnero, no. Eu era uma
militante, uma comerciria na poca. Eu estudava, trabalhava, escrevia Cordel,
cuidava de minha filha e, enfim, no tinha muita abertura no Partido Comunista
pra os debates de gnero. Mas, curiosamente, tambm era atravs do Jornal,
desse editorial que vinha pra Juazeiro do Norte ‒ que a gente vendia,
tentamos recrutar outras pessoas ‒ que, vez por outra, no 8 de maro a
aparecia uma discusso sobre mulheres e vinha uma marxista l, Alexandra Kollontai, que s depois de 300 anos que eu vim estudar e
conhecer. Mas ela problematizava as mulheres no mundo do trabalho, no mundo
social, na poltica e tal e coisa.
Ento, eu tinha muita intuio que eu fui
desprezando aos poucos, por uma viso equivocada da racionalidade; e depois eu
passei a valorizar. Agora, nos ltimos 5 anos, eu t
muito f de intuio. Por exemplo, o cordel A Mulher de Sete Vidas, que
o mais longo cordel meu em termos de quantidade de pginas e de estrofes e
tal. Esse cordel foi escrito no momento em que eu estava questionando muito as
minhas convices polticas, filosficas e meio autobiogrfico. Embora, sendo
a mulher de sete vidas, e ela tem sete vidas [risos], e ela aparece com sete
experincias diferentes: uma hora ela uma meretriz, outra hora ela uma
artista. Ela tem vrias, eu no me lembro, ela tem vrias facetas e ali o
momento em que eu dialogo com o Espiritismo, com o Catolicismo Popular, trago
coisas do Budismo, alguma inspirao na questo da espiritualidade mesmo, nas
suas vrias nuances. Mas, assim, eu depois leio e digo assim: No fui eu quem
escreveu esse Cordel porque no o meu estilo, no eram as minhas questes,
entende? Ento isso, fui escrevendo...
Outro dia uma pessoa estava me chamando ateno
para algo que eu no percebia: que eu escrevia as personagens que estavam
todas ali na revista na regio do Cariri, mesmo depois que eu sa do Cariri e
mesmo depois que eu sa do Brasil ‒ os cordis feitos fora ‒, todos
esto de alguma maneira ali, como diz Belchior, Onde jaz meu corao, n?
Porque uma fora muito grande, uma relao muito forte que eu tenho com a
Chapada do Araripe, com a regio do Cariri cearense etc. Em que pese ter havido
alguns deslocamentos, porque depois que vim pra Bahia eu escrevi o cordel Trs
um Real porque andando muito de nibus aqui em Salvador eu via homens e
mulheres entrando no busu e gritando trs um
real, ento, uma histria que envolve dois vendedores: um homem e uma mulher.
E a eu digo: Ele entra e pede desculpa por atrapalhar o silncio da viagem,
ela entra e diz isso e eles vo vendendo produtos variados com uma pegada de
gnero. Geralmente ela traz produtos mais vinculados s [entre aspas]
necessidade das mulheres.
E a, a Minha Preta vem Para a Marcha eu
escrevi aqui em Salvador, mas um apelo minha me. Eu falo um pouco dessa
condio dela, de mulher negra, de trabalhadora sempre no espao privado e
quando foi trabalhar no espao pblico foi realizar no pblico o que ela fazia
no privado, n? Porque ela foi agricultora familiar ali no quintal da casa
dela. Ela nunca plantou numa roa como os meus tios que tinham uma roa fora de
casa, saam pela estrada pra ir pra roa. Minha me no: a roa de minha me
era no quintal da casa dela, dela e das irms dela. Depois ela vai para So
Paulo, trabalhou de domstica. Eu conto isso no Cordelirando,
o cordel chamado Cordelirando, que eu digo
que: Sendo filha de um pedreiro e de uma camponesa / A palavra companheiro me
foi servida mesa / Aprendi desde criana a ser eu minha fortaleza. Ento l
tem algumas estrofes... Eu no me lembro, no tenho vergonha de dizer que eu
no tenho de cor nenhum cordel meu, na ntegra. Eu no consigo, muita coisa,
ai, quando algum comea a recitar, eu puxo na memria, diferentemente da minha
av, e a uma pura intuio, considerando que ela no aprendeu a ler, talvez
ela tivesse uma memria e uma capacidade... No sei, vocs talvez tenham
melhores condies de me explicar isso. Mais capacidade de memorizar, de
armazenar, de organizar, de sistematizar aquilo. Eu no, pelo fato de ler
tantas coisas e meu crebro to cansado que [pequena pausa] eu leio, eu tenho
de cor cordis de outras pessoas, como o caso tipo A Casa que Me Morava,
como o caso de Lus Campos, que aquele meu cordel, um dos meus preferidos,
que A carta a Papai No, n? Como o caso de Patativa, como o caso
do cordel de Fanka, como o caso do cordel dos
Malditos de Hlio Ferraz, quando ele diz assim: 11 de setembro dia sem
precedentes na Histria / Aconteceu a vitria de Davi contra Golias / Impactou
a ousadia dessa gente Talib / E l na grande ma o capital ps no cho / E a
trupe o Alcoro meteu o kibe em Tio Sam. Ento, assim, esse um dos meus
cordis favoritos porque me inspira a trabalhar mais a musicalidade do meu
prprio texto.
E eu vinha numa pegada histrica de falar muito
das dores das mulheres, eu falei muito das dores, das mortes... Aquele cordel Mulheres
do Cariri: morte e perseguio, Embalando meninas em tempos de violncia,
Mulher Conscincia – Nem violncia, nem opresso, Basta de
Feminicdio, No cultura do estupro. Eu sempre tive,
contextualmente falando, uma produo que era [rpida pausa] uma denncia, pra
usar uma figura jurdica, era um libelo crime acusatrio, n? E depois eu
passei a ter necessidade de fazer anncios tambm porque seno eu ficava numa
coisa de no ter sada, n? De no espalhar esperana, ento, o Mulheres
fazem, por exemplo, j destoa um pouco. No Mulheres fazem eu t falando de protagonismo das mulheres em vrios
terreiros, em vrios lugares, em vrias coisas. Lugar de Mulher tambm,
n? Lugar de Mulher no t propriamente
falando de mortes ou de violncia etc. Ento, sem perceber e sem ser uma coisa
deliberada eu comecei a focar mais tambm naquilo que as mulheres so capazes
de fazer, no s no que fazem contra elas ou com elas, e a escrevi Minha
Preta Vem Pra Marcha, que tem uma hora que eu falo: Vem,
traz o doce de mamo, traz tambm a rapadura / Com tua f segue segura. Que
mais ou menos falando um pouco sobre minha me, essa marcha da vida dela e
tudo.
E a falei de Violeta Arraes, que foi Reitora da
universidade onde eu trabalhei e aquele Cordel... Eu fiz alguns cordis em
homenagem porque eu quase nunca escrevi sobre encomenda, eu sempre escrevi o
que eu quis, tanto que eu estava no Mxico recentemente e eu fiz um cordel, Minha
livre expresso, onde eu falo que, [pequena pausa] onde eu
intertextualizo com o poema de Cludia Rejane e eu digo: Minha obra ningum
tutela. Ento, eu sempre escrevi sobre o que eu quis, mas eu aceitei, poucas
vezes eu aceitei fazer alguma coisa sob encomenda porque a causa era justa e as
pessoas que me pediram eram pessoas que significavam muito pra mim. Um deles
foi Janana Dutra, ativista brasileira, que era uma homenagem primeira
travesti a obter uma carteira da OAB no Brasil, era uma ativista cearense,
faleceu depois e esse cordel foi feito pra abertura do filme Janana Dutra[83]. Tem um
sobrenome... tem um subttulo a, Janana Dutra num sei o que l, do
cineasta carioca Vagner de Almeida, que um grande amigo. Ento, eu fiz em
homenagem a Janana. Eu convivi com ela l no Cear, a gente se encontrou em
algumas atividades, ela mora ne Fortaleza, mas ela nasceu em Canind e foi at
ento – durante muitos anos – a nica ... ela se apresentava como
travesti, n? Em que pese ela no conseguiu exercer o direito do nome social
porque na carteira de OAB o nome dela era Jaime, n? O nome de nascimento, mas
ela era reconhecida socialmente como Janana Dutra e eu fiz esse cordel a
pedido! No vou nem dizer sob encomenda porque pode soar que algum disse: Diga
isso!, mas era a pedido.
E o outro foi a pedido de Orlando, um dos meus
maiores amigos ali na regio do Cariri. Orlando era um ativista, um homem gay
formado em Letras pela URCA, amante da literatura, amante dos cordis e do
cinema. Numa conversa com ele, eu j tava aqui na
Bahia, e numa dessas madrugadas insones, eu e ele conversando sobre zilhes de
coisas, ele disse: Vou fazer um filme!. Ele j tinha feito um filme chamado Tambm
sou teu povo, Senhor, que uma Drag descia a principal rua da cidade
com uma vela na mo cantando um bendito chamado: Tambm sou teu povo, senhor,
e estou nessa estrada [colaboradora canta como no filme]. Porque nossa vida
ali no Juazeiro do Norte era muito marcada pelas, n? Mesmo os ateus, mesmo as
pessoas de esquerda, elas tinham esse sentimento de pertena, n? Suas famlias
todas tinham a sala do santo. Todas, todas. At hoje minha me honra a memria
de minha av fazendo a renovao do santo, no dia 25 de dezembro. Ento, ele
disse: Salete, eu quero um filme baseado num cordel teu, mas eu queria uma
coisa nova, a, a gente dialogando, enfim, depois de muita conversa eu no
consegui dormir e fiquei escrevendo. Quando foi 8 horas da manh, o cordel
estava pronto e o cordel O Milagre Travesthriller:
A Histria da Travesti que (com f) engravidou. Essa histria muito
intertextual porque eu trago outras personagens de outros cordis meus e tambm
de outros contextos l do Cariri e dentro da histria tem uma outra histria
porque ela vai se basear na histria das macarenas, que eram umas beatas que
chupavam umas rosas lilases e nas suas catatumbas
elas bailavam e, enfim, era um cordel que era meio assim parecido com o Teatro
do absurdo. Depois que eu assisti uma pea do Teatro do absurdo, eu fiquei
muito impressionada com aquilo e aquelas imagens vinham, ento, tudo que eu
escrevo ainda que nem sempre eu me dei conta [rpida pausa], um dilogo com
as coisas que eu vejo, que eu leio, que eu aprendo. Ento, no Milagre Travesthriller, a personagem essa travesti que era
temente a Deus, que fez um milagre e que engravida. Ou seja, um debate
ps-moderno, pero no mucho, porque
ela no recorre s tecnologias de reproduo, ela recorre f no Padre Ccero
e ela engravida, mas ela dialoga nessa saga, nessa batalha por engravidar, vai
recorrer a vrias pessoas. Ento, ela vai dialogar com a feminista e a
feminista diz: Ah, mas todo mundo hoje a pauta do aborto e voc t preocupada
com essa questo. E vai dialogar com um homem gay amigo dela. Todas as
personagens ali so reais, s a Shirley Dayanna, que
o nome que eu dei pra personagem, que fictcia, mas todas as pessoas com
quem ela dialoga, inclusive o prprio Orlando.
Ento, assim, a eu vou saindo daquela mulher...
H um conjunto de mulheres que fazem parte da minha literatura, por exemplo, o
cordel Maria, Helena, que so duas mulheres [risos]: Maria vrgula
Helena; uma relao homoafetiva. uma relao lsbica entre duas mulheres
ali da regio do Cariri. claro que eu as imaginei como sendo duas vizinhas
l, que eram beatas e que trabalhavam na roa e moravam ali na cidade. Na
regio do Cariri, as pessoas tm [pequena pausa], digamos, esse privilgio de,
s vezes, morarem num bairro e serem agricultoras e irem pros seus trabalhos e
voltarem. Ento, uma coisa entre o urbano e o rural, n? E a na histria de Maria,
Helena falo desse amor entre elas, mas eu no trago nada de extraordinrio,
de tentar mexer naquele ambiente. Elas continuam frequentando a missa,
continuam fazendo as coisas delas.
J na histria da Shirley Dayanna
tem uma srie de debates envolvendo a Teoria Queer e num sei o qu l, mas nada
disso dizendo: Olha aqui uma teoria, como, por exemplo, O que ser
mulher?, que uma resposta, n? Uma resposta no! [colaboradora
demonstra contrariedade]. um dilogo com Simone de Beauvoir, n? Ento, eu
digo: Sobre a mulher j se disse / tudo que se imaginar / Duns eu j ouvi
tolices / Doutros, me pus a pensar / Mas este ser – a mulher – /
Afinal o que que ? / Quem se atreve a explicar?. E vou desenvolvendo... A
capa uma interrogao, n? A, eu depois vou desenvolvendo vrios argumentos
e em algum momento eu pergunto: E se um homem quiser / Ento mudar sua
forma?. Ento, um jeito de falar dessas teorias sofisticadas a partir dessa
linguagem, apesar de minha av no ter legitimado num primeiro momento, n?
Porque ela disse que isso no era um foieto e tal e
coisa.
Mas depois que eu li pra ela A Histria de Z
Leitor, que eu vim publicar bem depois. Mas eu escrevi ainda com ela em
vida, j t na terceira edio A Histria de Z Leitor, foi a histria
que ela mais gostou das minhas histrias, porque se trata de um homem que com
mais de 60 anos vai pra a EJA n, a Educao de Jovens e Adultos, e vai se
alfabetizar, e ele quer aprender a
ler e ele tem dificuldade ou tem hora que ele quer desistir, e a ele leva um
cordel de Patativa, Vaca Estrela e Boi Fub, e depois Fagner
musicou e etc.; e ele l esse cordel pra turma, e... enfim. Ali a apoteose
n, da alfabetizao dele, e o colega dele que pedreiro vai assistir, e a
esposa dele vai, todo mundo vai e enfim. Ento minha av achou a histria
linda, porque tinha uma famlia, tinha n [risos mais contidos] uma histria de
uma pessoa com incio, meio e fim, e o fim foi feliz e etc., enfim. Ento, ela
abenoou esse cordel digamos assim, n? Mas . Meninas, eu t
falando muito coisas sem s vezes nem ter uma conexo com a outra, mas o que
t me vindo as...
(AB) – Tem conexo
demais...
(SM) – Porque os fios
da conexo vocs que tm capacidade de articular porque eu t falando assim coisas que me vm memria. Eu tava falando dos cordis a pedido, n? Ento, a pedido de
Orlando, a pedido de Vagner Almeida, dois cineastas, e eu fiz o cordel pra
homenagear a Violeta Arraes. Eu homenageei Violeta Arraes, homenageei vrios
amigos l do Carari, uma amiga que fez uma cirurgia e
ela tava fazendo radioterapia, n? E eu chamei isso
de Mais uma dose de amor porque ela tinha que tomar mais Iodoradioterapia[84].
E recentemente eu homenageei uma pessoa que no
muito bem-vista entre as feministas baianas etc. porque s vezes ele
etiquetado de misgino e tal, mas um amigo querido que eu tenho aqui na
Bahia, se chama Luiz Mott e eu fiz um cordel sobre os 70, ou mais, anos dele.
Ele tava passando a pandemia l na Itlia e com medo
de morrer e num sei o qu, no olho do furaco, n? E eu fiz um cordel O Mott
Festejar! Ento, no foi exatamente um cordel que ele me pediu, mas ele
disse assim: Salete, vamos falar de Cordel, eu l no Mxico e ele l na
Itlia, e a gente lutando pra ter um voo de repatriao. Por que que eu t falando do Luiz Mott? Porque a pedido dele, h uns anos,
eu fiz um cordel sobre Tibira do Maranho, Santo Gay do Brasil. Ele, como um
Antroplogo, pesquisa essas coisas da Inquisio, e a ele descobriu l no
Maranho essa coisa do primeiro crime de homofobia do Brasil, que foi praticado
contra esse indgena chamado Tibira, ainda no incio n do sculo XVI e a ele
me passou a histria, a pesquisa dele e disse: Ah, seria legal ter um cordel e
tudo. E eu li a histria toda e contei isso num cordel que foi objeto de
pesquisa l no Rio de Janeiro, num grupo de Histria e tal. Ento, assim, mas
todo inspirado na pesquisa do Luiz Mott. A fonte do cordel a pesquisa do
Luiz e eu conto essa histria sobre por que o GGB – o Grupo Gay da Bahia
– fez um requerimento Santa S para reconhecer a santidade desse santo,
desse mrtir e como ele antes de morrer foi obrigado a se converter ao Catolicismo.
O Luiz Mott ironicamente diz: Ento, j que ele se converteu ao Catolicismo e
gente que foi martirizado, igual ou menos do que ele mereceu essa santificao,
vamos constranger a Santa S para reconhecer e tal e coisa.... Isso divide as
opinies porque tem muita gente que no est interessada em ter um santo gay,
muito menos na Igreja Catlica. Mas o fato que uma disputa poltica e achei
interessante contar essa histria porque a mim me interessava muito j que a
minha dissertao do mestrado foi sobre a igualdade jurdica na ao contra
pessoas LGBT. Ento, gostei muito de saber dessa histria. A, foi um cordel
que eu fiz a pedido do Luiz e submeti a ele e quando eu submeti, ele disse uma
coisa l... Ah, duas ou trs coisas que eu tinha dito que ele queria alterar,
ento eu disse: No, Luiz, no aceito que voc mexa no cordel e muito menos
que altere a minha rima porque o meu compromisso com a histria e o cordel
meu e a rima no vai ser alterada.... Era uma coisa l, mas ele compreendeu,
n? E a o cordel um outro cordel sob encomenda.
Mas, fora isso, eu vou escrevendo quando tenho
vontade. Tem tempos que eu no escrevo nada, fico travada, tem tempos que eu
escrevo. No Mxico eu escrevi 6 cordis em 3 meses. Ento, eu estava num desespero
assim.... eu tenho uma aproximao com minha vida aqui no Brasil e mais perto
com minhas... eu pedia a minha av, eu orava muito pra que ela me desse
inspirao pra eu no pirar, que eu tava ficando
maluca trancada dentro de uma casa e com medo de nunca mais voltar, enfim. A,
eu sei que eu escrevi o cordel Por amor, cuidem das vidas. Foi em maro,
n? todo sobre a pandemia e fazendo um apelo, um cordel denncia e anncio
e tudo. E eu no sei nenhuma estrofe dele [risos], t l no Blog, n? E escrevi
outros que eu no lembro agora, mas sei que foram 6 cordis. O outro foi sobre
Luiz Mott, fez aniversrio l na Itlia e enfim.
Ento, assim, so vrias mulheres que eu vou
trazendo, mas no s mulheres, n? Tem muitas figuras vinculadas feminilidade,
ento, voc tem a as travestis, voc tem os homens gays, voc tem a ... A
personagem mais austera, digamos, que eu j tive foi Z Leitor, mas na verdade
tem uma... [rpida pausa] pegada assim geracional e de classe.
Bruna
Lucena (BL)
– Tem o do seu pai, n, Salete?
(SM) – Ah, ok!
(SM) – Verdade, Bruna,
tem... Meu pai aquele cordel eu no consigo recit-lo porque eu comeo a
chorar. Ento, no dia do lanamento dele, eu tive de me socorrer de pessoas...
(BL) – Que lindo
aquele cordel...
(SM) – ...
(BL) – Por isso que eu
lembro, eu acho ele lindo... [risos]
(SM) – . uma
homenagem pro meu pai que eu fao, logo aps ele ter passado por um cncer
agressivssimo, n? E diz assim: Meu pai por seu um pedreiro... – a
nica estrofe que eu ainda lembro porque muito emocionante pra mim: Meu pai
por ser um pedreiro / Dele muito me orgulho / Sempre foi muito guerreiro /
Homem de muito barulho / Seja curando tormento / Seja mexendo cimento...
– [colaboradora tenta relembrar a rima]: Ele desata o embrulho. Ele diz
assim: Seja curando tormento / Seja mexendo cimento / Ele desata o embrulho.
A eu vou contando a histria dele, que ele saiu em 44 [1944]... Que ele nasceu
em 44 e depois ele saiu do Nordeste brasileiro ainda jovenzinho pra trabalhar
na construo civil, a ele brinca que subiu na vida, n? Ele deixou a lavoura
para subir num andaime, ele brinca assim. Tem essa boa lembrana.
Ento, Bruna, tem o do meu pai... Eu homenageei
alguns homens que eu considero importantes na minha vida. Ento o meu tio Z
Alexandre, recentemente, que eu nomeei o cordel dele de Vai nas asas dos
Arcanjos. O curioso que, um ms antes do meu tio falecer, eu liguei para
ele e ele disse assim: Olha, eu t deixando aqui uma
herana pra voc. A eu achei estranho aquela conversa e tudo... A ele: No,
eu t velho.... Porque em maro ele perdeu um neto e
ele tinha dito: , porque que Deus no me levou e deixou meu neto, to
jovem?. Ento, quando eu cheguei do Mxico, que eu liguei pra ele, ele disse
assim: Eu no tinha mais f que eu ia ver voc, no, ser que eu ainda lhe
vejo?. A gente conversando no telefone, a, eu disse assim: tio, num fala
um coisa dessa, num sei o qu.... A ele disse assim: Eu t
deixando aqui uma herana pra voc: um caderno de folhetos e a mquina de
escrever, mas ela t toda quebrada, as letras saindo fora de lugar e tudo....
A, eu disse: , num t gostando desse papo de
herana, mas em termos de presente eu estou adorando, ento quando essa
pandemia passar, eu vou a e a gente vai ver esses cordis e vai – ele
tambm no chama de cordel, chama de folheto – a gente vai publicar e num
sei o qu.... Enfim.
Ento, assim, minha herana t l, eu ainda no
pude ter contato, n? Quando passar essa pandemia eu vou atrs, mas ele sabia
que de todos os parentes a pessoa mais fissurada assim no cordel e na produo
dele e tudo, sou eu. Ele escreveu A Casa que Me Morava, que um
clssico, n? Fui visitar meu serto / Aonde morou meus pais / A saudade era
demais / Pra ver aquele torro / Atravessei o boqueiro e avistei a Canabrava /
Com tanta saudade eu tava pra ver aquela casinha /
Que hoje no mais minha / A casa que me morava [colaboradora recita o
cordel do tio]. E a ele vai desenvolvendo toda a histria de vrias passagens
da vida dos meus avs nessa casa etc., etc. Tem uma hora que ele diz: Tendo
dinheiro eu comprava / A casa que meu pai fez / Pra eu morar outra vez / Na
casa que me morava. lindo esse cordel, muito emocionante. E tem um muito
engraado que ele diz: Em cada dez brasileiros / Tem oito ou nove ladro; que
ele fez a num dos perodos a de campanha eleitoral, l comprou muitas
confuses, por isso o cordel no foi publicado assim em grande escala, mas era
assim uma outra inspirao pra mim. Era no, segue sendo, n? [pequena pausa]
Fiz o do meu primo tambm... Tem tanta coisa. O de Orlando muito emocionante
porque o Orlando faleceu sem ver o resultado do filme baseado no meu cordel. O
filme existe e se chama Travesthiller. O meu
cordel Milagre Travesthiller, mas o filme Travesthiller.
Ento, so cordis em que eu trago
majoritariamente a temtica das mulheres, falando da desigualdade de gnero,
trago en passant a questo da velhice,
a questo geracional, racial, mas a classe t muito presente porque de todas as
minhas conscincias a primeira foi a conscincia de classe, n? Ento, isso foi
o que me levou a me desviou de ser algum da rea de Letras pra ser algum do
Jurdico. Foi uma coisa de dizer assim: Ah, ento eu vou fazer faculdade de
Direito e eu vou me dedicar ao Direito do Trabalho porque eu no quero que
acontea com nenhuma pessoa, nenhuma mulher, o que aconteceu com minha me e
num sei o qu.
E de fato eu advoguei um tempo na rea do
Direito do Trabalho e depois eu me desencantei com essa coisa da advocacia
trabalhista. A, eu fiz cordis e nos atos processuais t l o qu que a Sammyra botou o cordel chamado Alvar Judicial, que
uma petio que eu fao em cordel pra que o juiz autorize que um agricultor
l de Cariri saque o resduo do FGTS, que ele chegou de So Paulo e tava desempregado e era agricultor, foi pra So Paulo
trabalhou um pouco com carteira assinada e estava desempregado e voltou. A, eu
fiz essa petio sabendo que ela no seria indeferida porque o juiz era um
poeta tambm: Doutor Pedro Bezerra. No era um poeta de cordel, mas era um
poeta e muito sensvel. Do ponto de vista legal, ele no teria como dizer que
eu tinha que escrever em prosa porque o cdigo do processo diz que tem que ser
na lngua verncula, n [risos]? A petio tem que ser em Lngua Portuguesa e
tem que dizer os fatos e dizer o direito. S que no tradio escrever em
poesia e a o pessoal escreve uma coisa com incio, meio e fim, mas qualquer
outro juiz poderia indeferir dizendo que no estava de acordo com a tradio
jurdica bl, bl, bl, bl. Ento, ele acolheu,
ficou muito emocionado e abriu vistas pro promotor de justia. O promotor
tentou fazer uma gracinha despachando em uma estrofe [risos], no conseguiu
rimar, mas despachou. O que vale a inteno. E esse senhor, chamado Jesus, t
l no folheto... E ainda era na mquina de datilografia. Se vocs olharem no Cordelirando, um scanner da pgina, do
processo, vo ver que ainda era no tempo da mquina de datilografia que eu
peticionei. S que eu recentemente percebi o seguinte: que aquilo para o que eu
menos me esforcei na vida algo que tem tido algum valor, entende?
Eu no fiz cordel pra me tornar famosa, eu no
fiz cordel pra ganhar dinheiro porque primeiramente eu pagava do meu bolso, por
isso que eu publiquei pouco na dcada de 90, que eu no tinha emprego. Eu vim
ter um emprego em 98, emprego assim que me deu condio de me sustentar porque
eu tralhava, obviamente, desde os quatorze, mas assim como comerciria, depois
como pesquisadora do SINE, depois como pesquisadora do IBGE, depois eu
trabalhei numa escolinha – mesmo sem eu ser formada ‒, eu fiz um
teste e fui professora infantil. Na poca eu fui professora da Educao
Infantil no Colgio Balo Mgico, ento no dava para eu sustentar o meu hobby,
digamos assim, ento, foi uma poca em que eu produzi muito e no publiquei
muito e... Teve coisa que eu produzi em 90 e s vi publicar no ano 2000. Ento,
por exemplo MARIA DE ARAJO e seu lugar na histria, que a beata
Beatitude, ele publicado em 2001, quando eu consegui recursos porque teve
tempo que eu publiquei pelo Cordel, ou o projeto SESCordel,
e a uma poltica; no nem uma poltica pblica porque o SESC que do
Sistema S, da Indstria e tal, comrcio. Mas o SESC tinha uma iniciativa, um
projeto de autoria de Fanka chamado SESCodel Novos Talentos, ento, eu me submeti
a esse edital chamados novos talentos l na Regio do Cariri. E eu cheguei a
publicar dois ou trs: o MEU PAI foi publicado pelo SESCodel
Novos Talentos.
Ento, s vezes, uma coisa publicada numa
dcada e ela foi produzida numa dcada anterior, mas faltava condies, no
tinha uma poltica pblica no estado do Cear, um edital, uma coisa... um
incentivo produo. Tinha incentivo leitura, mas o leitor e a leitora ia
ler o que j estava disponvel naquelas prateleiras. A, com esse projeto
criou-se uma Cordelteca e eu que no era s escritora
de cordel, mas era tambm leitora, frequentava pra ler os cordis das pessoas,
participava de uns saraus, recital etc. Os lanamentos eram lindos. Porque eu
sou anterior aos Mauditos, n? Ento, eu publico antes dos Mauditos
‒ que o grupo que eu ajudei a fundar junto com Fanka
e outras pessoas ‒, que alis vai sair um livro agora de autoria de
Cludia Rejane sobre os Mauditos. Eu quero at
confessar para vocs que deu o maior babado...
[Seguindo
a tnica dos folhetins, a continuao da entrevista ser publicada em outro
momento, de modo a manter aguada a curiosidade de nossas leitoras e leitores]
[82] Neste trecho da entrevista, a
colaboradora Salete Maria recita o cordel A chegada do Lampio no Inferno
numa tentativa de exemplificao das correes da av sofridas por ela na sua
infncia. Essa prtica se repetir ao longo da entrevista.
[84] A colaboradora se referia a mesma
terapia conhecida tambm como Iodoterapia ou mesmo Radioiodoterapia.