UMA CONVERSA COM E SOBRE SALETE MARIA DA SILVA

 

A CONVERSATION WITH AND ABOUT SALETE MARIA DA SILVA

 

Salete Maria da Silva (Colaboradora)

Andrea Betnia (Pesquisadora)

Bruna Lucena (Pesquisadora)

 

Salete Maria da Silva , antes de qualquer caracterizao, uma mulher com alma e ps de serto, que aprendeu a fazer cordel com uma de suas avs, e, no por acaso, a vida de ns mulheres percorre toda sua obra, seja a cordelstica – com forte teor feminista e revolucionrio –, seja a acadmica, como professora do Bacharelado em Estudos de Gnero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em seus quase 30 anos dedicados criao de cordis feministas e libertrios, publicou mais de uma centena de folhetos, muitos dos quais podem ser lidos em seu blog Cordelirando. membra-fundadora da Sociedade dos Cordelistas Mauditos ‒ importante coletivo de poetas, cantadores e performers fundado no ano 2000, em Juazeiro do Norte/CE.

Esta entrevista uma grande conversa da qual participam quatro pessoas: a prpria Salete Maria, Andra Betnia, Bruna Lucena e Jos Gomes, sendo a primeira a entrevistada; as duas seguintes, as entrevistadoras; e o ltimo, o responsvel pela transcrio literal. Adotamos a conversa como mtodo de realizao desta entrevista por acreditarmos ser [...] uma convocao de saberes diferentes de modo no hierrquico, em que [...] o conhecimento est sempre no plural, conhecimento(s), como defendem Maria Luiza Sssekind e Raphael Pellegrini

Conversamos no dia 6 de outubro de 2020, em uma videochamada repleta de histrias de vidas, de artes de ontens e de agoras ancestrais, sobre sua presena inquietante no cenrio cordelstico. Diante da impossibilidade de estabelecer uma conversa linear com Salete ‒ o que entendemos como um ponto positivo ‒ tendo em vista a exposio de um pensamento que nos lembra um palimpsesto, os assuntos abordados foram surgindo motivados no apenas por nossa curiosidade como entrevistadora, mas, sobretudo, pelos motes com os quais a entrevistada nos presenteava medida que tentava refazer sua trajetria tanto pessoal quanto potica, seguindo uma rota que se deixava guiar por seu modo inquieto e inquietante de estar no mundo.

Ao optarmos por empregar, no ttulo dessa entrevista, com e sobre, sem nos decidirmos por apenas um, trata-se menos de vontade de escolha e deciso, e mais, muito mais, de vontade de dar conta do que a intimidade de dividir palavras, escutas atentas, conhecimentos, bem como de dar a ver essa importante cordelista de nosso aqui e agora.

Bruna Lucena (BL) ‒ Ns estamos aqui com Salete Maria da Silva, cordelista, ativista, professora e outras coisas sobre as quais falaremos adiante.

Andra Betnia (AB) – Boa tarde, Salete. Agradecemos mais uma vez sua disponibilidade e generosidade ao se dispor para essa conversa. Sabemos que voc est muito ocupada com a vida nesses tempos, mas vamos l. Salete, vamos comear falando sobre sua trajetria?

Salete Maria (SM) – No estava no meu horizonte ir para a universidade porque na minha famlia no existia essa tradio, como de resto todos os meus contemporneos, os meus colegas l da comunidade onde eu vivia. S que, no Ensino Mdio, fui fisgada por uma militncia Marxista, por meio do Partido Comunista do Brasil, do Partido dos Trabalhadores. Naquela poca existia uma espcie de recrutamento da juventude, pra que nos organizssemos. E eu era muito ativa, gostava de ficar recitando coisas nos eventos da escola. Nessa ocasio, embora ainda no entendesse nada de Marxismo, de Socialismo, de nada, eu tinha uma revolta relacionada questo de classe. Eu nasci em So Paulo, numa favela onde hoje est funcionando o estdio de futebol que pertence ao Corinthians e, ali, na Zona Leste, eu morava na rua chamada Estado do Cear porque todas aquelas ruas eram ocupadas, naquela favela, por nordestinos, cearenses em sua maioria. E meus pais foram para l, como tantos outros no final de 1950 e na dcada de 1960, em busca do Eldorado, porque se buscava uma vida melhor. Ambos agricultores, meu pai nascido numa cidade chamada Vargem Alegre, no Cear, e minha me, na menor cidade do Cear, que se chama Granjeiro, especificamente na zona rural desse muncipio, que ainda hoje o menor do Cear. Meu pai, embora agricultor, foi para So Paulo trabalhar na construo civil. Minha primeira irm nasceu no Cear. Depois eu nasci em So Paulo, depois eles voltaram para o Cear. Ao todo, somos seis filhos: um em cada lugar. Ento, meu pai, como operrio, trabalhou na construo civil. Grande parte daqueles prdios que tem na Avenida Paulista tem o suor do meu pai.

Ento, eu tinha uma coisa assim de questionar as desigualdades sociais e essa turma de esquerda do Ensino Mdio que vai me despertar. E, uma vez, minha me, quando ela era faxineira do Palcio do Governo, foi acusada de roubar um material de limpeza, uma coisa assim. Isso me marcou muito. E embora nesse tempo eu j fosse muito apaixonada pela literatura, porque meu melhor professor de todos os tempos foi um homem, um professor chamado Sebastio, professor de letras: Literatura, Lngua Portuguesa e Literatura l na Escola Jos Lins do Rgo, em So Paulo. Era 5 srie e depois ele foi meu professor na 7 tambm, e esse professor me emprestava muitos livros e eu participava de concursos de poesias, s que a escola no oferecia possibilidade de falar da Literatura de Cordel. E meus pais tinham cordel em casa e eu levava, esse professor era muito receptivo, mas nunca inseria no programa, n? Enfim. O fato que eu queria fazer Letras, eu me inspirava naquele professor que dava oportunidade, que estimulava a leitura, enfim. A a histria era assim: no era exatamente pensando eu vou pra faculdade fazer Letras; era pensando assim: eu quero ser uma escritora, eu quero ler mais, eu quero escrever mais. Mas no era tipo: eu vou pra faculdade, n?

Depois, quando terminei o Ensino Mdio, eu j fiz todo o Ensino Mdio, grande parte dele, no estado do Cear. Ento, eu j estava militando no Partido Comunista e meu companheiro ‒ que o pai da minha filha, n? ‒, meu companheiro da poca, ele era trotskista e atuava numa ala do PT chamada Convergncia Socialista e ele disse: Eu vou fazer faculdade, vou fazer Histria. A ele se inscreveu e eu fiquei na dvida. Eu queria me inscrever em Letras, s que eu ainda tinha muita mgoa, muita revolta pelo que aconteceu com minha me. Eu falei assim: Ah, ento acho que eu vou fazer Direito porque eu quero atuar na rea do Direito do Trabalho. Ento, eu fiz vestibular, n? Eu era muito autodidata e eu lia muito, e eu era a nica mulher que atuava no Partido Comunista. Ento, assim, eu passei na faculdade de Direito, apaixonada pelo Direto do Trabalho, mas quando chegou l eu me encantei pelo Direito Constitucional, mas, paralelamente a isso, eu seguia lendo e escrevendo muito, muita Literatura de Cordel sem publicar.

A, em 94, quando eu pari minha primeira e nica filha, eu pari tambm um cordel. Ela nasceu em maro e eu pari o cordel e publiquei. Eu tava desempregada, ento, eu escrevi, n? Houve uma morte l no bairro e eu escrevi aquele cordel que de 94, a primeira edio: Mulher Conscincia ‒ nem violncia, nem opresso. Ento, eu mesma paguei. Tinha uma grfica l em Juazeiro do Norte, onde publiquei quase a maioria dos meus cordis. Depois eu fui publicar na grfica Lira Nordestina, que uma grfica assim... ela, hoje acho que est vinculada Universidade Regional do Cariri, ainda est! Mas eu publicava em uma grfica de fundo de quintal, ela nem tinha CNPJ, era de Seu Ccero, e a grfica Lderes. Depois ele regularizou, muitos anos depois. Ento, eu publiquei esse cordel e como eu era militante, eu discutia com as mulheres, conversava com elas e esse cordel era sempre muito lembrado para dialogar sobre essas violncias. No eram os documentos que eu aprendia na faculdade, no eram as regras, no eram os textos acadmicos porque as minhas interlocutoras no eram acadmicas. Ento, esse cordel foi a minha entrada no mundo da Literatura. Assim, minha entrada oficial, n? J que eu era uma leitora e uma escritora, mas no publicava.

S que bvio que eu digo que a influncia da militncia, ela foi importante pra mim, mas [pausa] antes mesmo de eu estar na escola, eu tinha essa paixo pela Literatura de Cordel por causa da minha av. Eu falo muito sobre isso em outras entrevistas e eu dei uma entrevista pra Caros Amigos uma vez e eles deram a visibilidade que a minha av merecia naquela entrevista porque comeam falando dela e o impacto dela na minha vida. Ela era uma performer, eu no tinha essa noo, mas a minha av era miudinha. Eu tenho um metro e cinquenta e dois [1,52m]; minha av era muito menor do que eu e se agigantava diante de mim assim. No s porque eu era uma criana e ela era uma adulta, mas porque eu via assim uma poetriz, digamos assim, uma mulher que era fascinante. Ento, ela no sabia ler, n? Durante um perodo da vida ela enxergava, mas depois ela ficou cega e ela era apaixonada pela Literatura de Cordel. Todo mundo na minha famlia era, mas minha v era a que tinha mais fora, n? A que nos unia em torno dessa literatura. E a ela vivia na zona rural l de Granjeiro, num lugar chamado Canabrava, Canabrava dos Gregrios, e essa mulher que amava a Literatura de Cordel exerceu em mim essa influncia.

Ento, assim, eu conto isso num cordel chamado Feminismo em Cordel: como foi que comeou? e l eu conto um pouco dessa coisa de eu gostar muito de todos os cordis. L tinha um ba, cheio de cordis, embora fosse numa casa que somente uma pessoa lia, que era minha tia Senhora, que viva at hoje. Era a nica pessoa que lia, lia muito pouco, mas era ela a pessoa responsvel por ler o cordel, os cordis ali [rpida pausa] e meu av, quando ele ia pra cidade, fazendo compra – feira do ms. Eu brinco, acho que no cordel Cordelirando [rpida pausa novamente] eu conto isso e tambm nesse outro Feminismo e Cordel, eu lembro que meu av, as vezes que eu ia pra l, porque vocs deveriam pensar: Mas como assim, voc tava em So Paulo e no Cear ao mesmo tempo?. A minha, a nossa vida era uma vida de idas e vindas. Meus pais foram l por conta do xodo rural, tiveram uma filha, voltaram pro Cear: todas as vezes que tinha uma crise econmica, que ficavam desempregados, que as coisas apertavam porque o aluguel era caro e eles moravam, apesar de no morarem numa casa, mas era um barraco alugado; e quando tambm a violncia comeava a espreit-los, corriam de volta para o Cear. E l eles tinham as casas dos parentes pra ficar, tinha roa, no faltava aonde eles serem acolhidos. Ento, assim, havia frias em que eu estava na casa dos meus avs e havia perodos em que eu morava na casa deles.

Ento, assim, meu av ia pra roa, pra feira e ele levava um saco que era a bolsa que ele transportava a feira, a ele trazia... eu costumava brincar que ele trazia os quatro efes: era o feijo, a farinha, o fumo e foieto porque minha av nunca chamou o cordel de Cordel, ela chamava os foieto, n? Ento, ela tinha os clssicos: A histria de Joo Grilo, O soldado jogador, ela tinha l A histria do Valente Joo Garcia, Z Garcia ‒ no lembro agora. Ela tinha tudo, tudo, tudo, tudo. E meu av, ele tava se alfabetizando, ento, ele ficava na roa o dia inteiro, quando chegava tomava banho, jantava e depois sentava um pouco l no terreiro, conversava com as pessoas. Mas, depois ele voltava e sentava num tamborete e acendia uma lamparina e comeava: ‒Um B com A, BA; um B com E, BE; tudo cantado. Eu ficava impressionada, n? De ver aquele homem... Meu av tinha uma aparncia muito bonita, ele era um homem negro, baixinho, cambota; e ele tinha essa coisa de querer estudar, ento, ele tinha a tabuada e tinha a carta de ABC. E ento eu ficava observando aquele homem aprendendo a ler.

E minha av, no! Nunca aprendeu a ler, mas ela era quem articulava o... vamos chamar de sarau, que na poca ningum usava esses termos, n? A l tinha um alpendre, na casa dela, ento, sentavam-se as pessoas nas cadeiras, as crianas sempre no cho junto com os cachorros; mas os adultos tinham cadeiras [risos] e tinha a muretinha do alpendre onde vizinhos, compadres, conhecidos chegavam, conversavam sobre vrios assuntos, mas sempre tinha o recital. E a minha tia Senhora, ela que lia essas histrias, e minha av ficava a corrigindo porque minha av tinha de cor; todos os folhetos minha av tinha decorado. E quando eu aprendi a ler de verdade, minha me contava que eu j tava lendo cordel e num sei o qu, e minha av dizia: Pois sente aqui na cadeira que eu quero ver se voc sabe ler mesmo.

Ento, minha av era uma espcie de professora, mesmo sem saber ler, sem decodificar palavras, letras etc. Eu lia os cordis pra ela e ela me corrigia porque tinha a cadncia, n? Tinha toda uma coisa de voc performatizar e eu ficava lendo ali como quem l qualquer coisa, e minha av corrigia: No bem assim...; e claro, uma criana s vezes num sabe ler direito e minha av ia me dizendo como era a palavra e tal. A chegada do Lampio no Inferno foi o primeiro cordel que eu lembro de ter lido; lido eu mesma – no ouvido, ouvi outros. A, eu dizia: Um cabra de Lampio, a ela dizia: Por nome Pilo Deitado; e voltava pra mim: Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado / Agora pelo Serto anda causando viso / Fazendo mal-assombrado. A, ela dizia: Pare a, no bem assim. A, ela voltava e dizia: Um cabra de Lampio / Por nome Pilo Deitado / Que morreu numa trincheira / Num certo tempo passado[82]. Ento, ela imprimia musicalidade, ela tinha uma coisa assim. E ela se levantava – se ela tivesse sentada – e ela agitava os braos, aquela coisa, n?

Ento, assim, eu fui percebendo que no era s uma escrita, era uma coisa de msica! Era uma articulao entre msica, oralidade, escrita etc. etc. Mas nada de teoria, no tinha acesso s teorias e at hoje no tenho muito conhecimento sobre Teoria Literria ou Oralidade ou Cordel ou Tradio. Conheo vocs duas e tantas outras pesquisadoras que conhecem bem, que tm domnio sobre essas questes, mas ali com ela, era uma escola de teatro, digamos assim, n? Ento era uma coisa... E eu percebia o seguinte: minha av tambm criava. Eu entrevistei minha av algumas vezes, quando eu j estava adulta e minha av j estava bem velhinha. E eu entrevistei naqueles gravadores antigos e parte dessas fitas cassetes eu cedi pra pesquisadora Fanka e depois ela cedeu pra Ria e essas coisas desapareceram porque primeiro eram mal condicionadas, o calor destrua, n? Enfim, mas l no Juazeiro do Norte deve ter ainda alguma coisa.

Ento, minha av quando recitava para mim nas entrevistas ou mesmo nas conversas comuns, eu no sabia quando era uma coisa era dela ou era de algum autor clssico porque como a minha av no estava preocupada em dar crditos e fazer referncias, tinha vez que ela mesclava as coisas do imaginrio dela, da lembrana dela, do cotidiano dela, ento, quando estava varrendo o terreiro – ela estava recitando alguma coisa ‒, eu dizia: De quem esse Cordel, v? De quem esse folheto, v?. Essa histria, n? A, ela dizia: Num sei, no. S sei que eu aprendi, n? Esse a eu no sei de quem no. A em outro pedao ela dizia: Esse aqui meu. Foi eu que inventei isso aqui. Ento, talvez por ela escutar tanto, tantos folhetos e por ela tambm pensar sobre criar, ela no sabia mais o que era dela, o que era dos outros e eu no sei explicar. Sei que isso a foi me influenciando.

Ento, como diz Z Ramalho, naquela poca eu era inocente, porm, besta; e eu achava que os cordis eram lindos e maravilhosos. S que depois, essa coisa de racionalizar, de refletir sobre as desigualdades sociais, me mobilizou a questionar aqueles folhetos que sempre tinham os homens como protagonistas ou os homens como autores, n? E, ento, eu comecei a prestar ateno no meu cotidiano. Eu sei que as histrias que minha av apreciava e que tambm gostava, e que minha tia lia, eram sempre de pessoas de outros pases ou ento eram narrativas assim... histrias imaginadas: O Valente Z Garcia, A Princesa do Vai No Torna, O Pavo Misterioso. Era muita coisa, assim, que no era da vida real, digamos assim. Ento, eu comecei prestando ateno s coisas da vida real e na minha vida real tinha muitas mulheres, dentre as quais eu me inclua, com vrios problemas, e tinha tambm uma coisa de eu achar um pouco ofensivo e dialogar com as mulheres do meu bairro, da minha famlia falando daquelas coisas, do artigo 5 da Constituio. Eu no me sentia confortvel por estar falando sobre o nosso cotidiano a partir dali.

Ento, em 94 eu estava no penltimo ano da faculdade quando eu publiquei meu primeiro cordel. E nas rodas de conversas, no s na militncia, mas com mulheres e ali no era uma conversa entre feministas no, era entre mulheres de uma comunidade que estavam muito impressionadas e muito, digamos assim, temerosas com a morte da vizinha Cristina, que foi assassinada na poca. Ento, o cordel comeava assim: Os nmeros de violncia tm crescido sem parar / Pra garantir resistncia preciso no calar; a eu dizia: Do Cariri para o Brasil quero me manifestar. E comea assim. Eu vou narrando uma srie de coisas e o Cordel tem uma influncia assim marxista porque a explicao que eu dava na poca para isso tinha a ver com a acumulao da propriedade em poucas mos, a violncia estava relacionada tambm com a questo econmica, no era uma explicao totalmente baseada no patriarcado. Era a influncia que eu tinha da poca, de que era uma leitura ideolgica, ligada ao marxismo, num sei o qu. E ento eu levei esse Cordel para a minha av, em 94, e ela morreu em 2002, parece.

Eu levei esse cordel para a minha av, eu li pra ela e ela disse: Isso a no foieto, no. Isso a no tem nada a ver com foieto. Ela no reconheceu [risos], a eu falei: V, tem sim! Olha aqui a rima t bem direitinho.... Eu acho, n? Achava! [continuao do dilogo] A rima t bem construda, eu t rimando bem aqui, . A ela disse assim: No, mas essa histria muito feia, muito ruim, num tem uma coisa assim que prenda, num tem... Quem a mulher dessa histria? Quem o homem? Quem a pessoa?, n? A no tinha uma personagem especfica, que tivesse uma histria que tivesse incio, meio e fim, porque falava de um monte de pessoas ao mesmo tempo, de grupos sociais e tal. E a ela disse: De onde foi que voc tirou isso?. A, eu disse: Da minha cabea, da minha cabea, mas foi porque morreu Cristina, l na Rua So Bento, assim, assim, assado e tudo. A ela disse assim: Mulher (mui, n? Que ela falava), mui, num se mete com isso no. Ela sempre me dava vrios conselhos e ela achava que eu j estava velha, que eu j deveria ter me casado. A, ela dizia: , minha filha, arranja um dono pra tu; to feio uma mulher sem um dono. E ela dizia assim, eu fui l pra me despedir dela, que eu ia viajar pra Fortaleza pra fazer mestrado; a ela disse assim: Tu ainda vai estudar? Tu j leu os livros do Juazeiro, do Crato e agora vai ler os livros de Fortaleza? Minha filha.... A comeava a falar que era melhor eu me casar... A eu fui fazendo cordis, problematizando tambm essa nossa matriz social, cultural; e vieram outros folhetos e, enfim, quando chegou em 100 eu parei de contar. Mas o fato que a maioria relacionada a essa nossa condio feminina, n? Eu digo nossa, considerando a tambm toda a diversidade das mulheres.

E a o curioso que a velhice me chamava muita ateno tambm. E eu escrevi o cordel O que velhice, o ttulo esse: O que a Velhice? E a capa tem a foto de minha av; minha av com um paninho assim no ombro, que ela sempre usava um paninho de prato assim no ombro o tempo inteiro, exceto quando ela saa pra viajar ou pra missa. E ela est na porta da casa dela nesse Cordel e eu vou perguntando o que a velhice, vou questionando e trago vrios elementos porque tambm eu estava influenciada com a obra de Simone de Beauvoir, que ela trata tambm dessa temtica da velhice, que o lado menos conhecido de Simone de Beauvoir, n? E eu no era estudiosa de Teoria Feminista, no era estudiosa de questes de gnero, no. Eu era uma militante, uma comerciria na poca. Eu estudava, trabalhava, escrevia Cordel, cuidava de minha filha e, enfim, no tinha muita abertura no Partido Comunista pra os debates de gnero. Mas, curiosamente, tambm era atravs do Jornal, desse editorial que vinha pra Juazeiro do Norte ‒ que a gente vendia, tentamos recrutar outras pessoas ‒ que, vez por outra, no 8 de maro a aparecia uma discusso sobre mulheres e vinha uma marxista l, Alexandra Kollontai, que s depois de 300 anos que eu vim estudar e conhecer. Mas ela problematizava as mulheres no mundo do trabalho, no mundo social, na poltica e tal e coisa.

Ento, eu tinha muita intuio que eu fui desprezando aos poucos, por uma viso equivocada da racionalidade; e depois eu passei a valorizar. Agora, nos ltimos 5 anos, eu t muito f de intuio. Por exemplo, o cordel A Mulher de Sete Vidas, que o mais longo cordel meu em termos de quantidade de pginas e de estrofes e tal. Esse cordel foi escrito no momento em que eu estava questionando muito as minhas convices polticas, filosficas e meio autobiogrfico. Embora, sendo a mulher de sete vidas, e ela tem sete vidas [risos], e ela aparece com sete experincias diferentes: uma hora ela uma meretriz, outra hora ela uma artista. Ela tem vrias, eu no me lembro, ela tem vrias facetas e ali o momento em que eu dialogo com o Espiritismo, com o Catolicismo Popular, trago coisas do Budismo, alguma inspirao na questo da espiritualidade mesmo, nas suas vrias nuances. Mas, assim, eu depois leio e digo assim: No fui eu quem escreveu esse Cordel porque no o meu estilo, no eram as minhas questes, entende? Ento isso, fui escrevendo...

Outro dia uma pessoa estava me chamando ateno para algo que eu no percebia: que eu escrevia as personagens que estavam todas ali na revista na regio do Cariri, mesmo depois que eu sa do Cariri e mesmo depois que eu sa do Brasil ‒ os cordis feitos fora ‒, todos esto de alguma maneira ali, como diz Belchior, Onde jaz meu corao, n? Porque uma fora muito grande, uma relao muito forte que eu tenho com a Chapada do Araripe, com a regio do Cariri cearense etc. Em que pese ter havido alguns deslocamentos, porque depois que vim pra Bahia eu escrevi o cordel Trs um Real porque andando muito de nibus aqui em Salvador eu via homens e mulheres entrando no busu e gritando trs um real, ento, uma histria que envolve dois vendedores: um homem e uma mulher. E a eu digo: Ele entra e pede desculpa por atrapalhar o silncio da viagem, ela entra e diz isso e eles vo vendendo produtos variados com uma pegada de gnero. Geralmente ela traz produtos mais vinculados s [entre aspas] necessidade das mulheres.

E a, a Minha Preta vem Para a Marcha eu escrevi aqui em Salvador, mas um apelo minha me. Eu falo um pouco dessa condio dela, de mulher negra, de trabalhadora sempre no espao privado e quando foi trabalhar no espao pblico foi realizar no pblico o que ela fazia no privado, n? Porque ela foi agricultora familiar ali no quintal da casa dela. Ela nunca plantou numa roa como os meus tios que tinham uma roa fora de casa, saam pela estrada pra ir pra roa. Minha me no: a roa de minha me era no quintal da casa dela, dela e das irms dela. Depois ela vai para So Paulo, trabalhou de domstica. Eu conto isso no Cordelirando, o cordel chamado Cordelirando, que eu digo que: Sendo filha de um pedreiro e de uma camponesa / A palavra companheiro me foi servida mesa / Aprendi desde criana a ser eu minha fortaleza. Ento l tem algumas estrofes... Eu no me lembro, no tenho vergonha de dizer que eu no tenho de cor nenhum cordel meu, na ntegra. Eu no consigo, muita coisa, ai, quando algum comea a recitar, eu puxo na memria, diferentemente da minha av, e a uma pura intuio, considerando que ela no aprendeu a ler, talvez ela tivesse uma memria e uma capacidade... No sei, vocs talvez tenham melhores condies de me explicar isso. Mais capacidade de memorizar, de armazenar, de organizar, de sistematizar aquilo. Eu no, pelo fato de ler tantas coisas e meu crebro to cansado que [pequena pausa] eu leio, eu tenho de cor cordis de outras pessoas, como o caso tipo A Casa que Me Morava, como o caso de Lus Campos, que aquele meu cordel, um dos meus preferidos, que A carta a Papai No, n? Como o caso de Patativa, como o caso do cordel de Fanka, como o caso do cordel dos Malditos de Hlio Ferraz, quando ele diz assim: 11 de setembro dia sem precedentes na Histria / Aconteceu a vitria de Davi contra Golias / Impactou a ousadia dessa gente Talib / E l na grande ma o capital ps no cho / E a trupe o Alcoro meteu o kibe em Tio Sam. Ento, assim, esse um dos meus cordis favoritos porque me inspira a trabalhar mais a musicalidade do meu prprio texto.

E eu vinha numa pegada histrica de falar muito das dores das mulheres, eu falei muito das dores, das mortes... Aquele cordel Mulheres do Cariri: morte e perseguio, Embalando meninas em tempos de violncia, Mulher Conscincia – Nem violncia, nem opresso, Basta de Feminicdio, No cultura do estupro. Eu sempre tive, contextualmente falando, uma produo que era [rpida pausa] uma denncia, pra usar uma figura jurdica, era um libelo crime acusatrio, n? E depois eu passei a ter necessidade de fazer anncios tambm porque seno eu ficava numa coisa de no ter sada, n? De no espalhar esperana, ento, o Mulheres fazem, por exemplo, j destoa um pouco. No Mulheres fazem eu t falando de protagonismo das mulheres em vrios terreiros, em vrios lugares, em vrias coisas. Lugar de Mulher tambm, n? Lugar de Mulher no t propriamente falando de mortes ou de violncia etc. Ento, sem perceber e sem ser uma coisa deliberada eu comecei a focar mais tambm naquilo que as mulheres so capazes de fazer, no s no que fazem contra elas ou com elas, e a escrevi Minha Preta Vem Pra Marcha, que tem uma hora que eu falo: Vem, traz o doce de mamo, traz tambm a rapadura / Com tua f segue segura. Que mais ou menos falando um pouco sobre minha me, essa marcha da vida dela e tudo.

E a falei de Violeta Arraes, que foi Reitora da universidade onde eu trabalhei e aquele Cordel... Eu fiz alguns cordis em homenagem porque eu quase nunca escrevi sobre encomenda, eu sempre escrevi o que eu quis, tanto que eu estava no Mxico recentemente e eu fiz um cordel, Minha livre expresso, onde eu falo que, [pequena pausa] onde eu intertextualizo com o poema de Cludia Rejane e eu digo: Minha obra ningum tutela. Ento, eu sempre escrevi sobre o que eu quis, mas eu aceitei, poucas vezes eu aceitei fazer alguma coisa sob encomenda porque a causa era justa e as pessoas que me pediram eram pessoas que significavam muito pra mim. Um deles foi Janana Dutra, ativista brasileira, que era uma homenagem primeira travesti a obter uma carteira da OAB no Brasil, era uma ativista cearense, faleceu depois e esse cordel foi feito pra abertura do filme Janana Dutra[83]. Tem um sobrenome... tem um subttulo a, Janana Dutra num sei o que l, do cineasta carioca Vagner de Almeida, que um grande amigo. Ento, eu fiz em homenagem a Janana. Eu convivi com ela l no Cear, a gente se encontrou em algumas atividades, ela mora ne Fortaleza, mas ela nasceu em Canind e foi at ento – durante muitos anos – a nica ... ela se apresentava como travesti, n? Em que pese ela no conseguiu exercer o direito do nome social porque na carteira de OAB o nome dela era Jaime, n? O nome de nascimento, mas ela era reconhecida socialmente como Janana Dutra e eu fiz esse cordel a pedido! No vou nem dizer sob encomenda porque pode soar que algum disse: Diga isso!, mas era a pedido.

E o outro foi a pedido de Orlando, um dos meus maiores amigos ali na regio do Cariri. Orlando era um ativista, um homem gay formado em Letras pela URCA, amante da literatura, amante dos cordis e do cinema. Numa conversa com ele, eu j tava aqui na Bahia, e numa dessas madrugadas insones, eu e ele conversando sobre zilhes de coisas, ele disse: Vou fazer um filme!. Ele j tinha feito um filme chamado Tambm sou teu povo, Senhor, que uma Drag descia a principal rua da cidade com uma vela na mo cantando um bendito chamado: Tambm sou teu povo, senhor, e estou nessa estrada [colaboradora canta como no filme]. Porque nossa vida ali no Juazeiro do Norte era muito marcada pelas, n? Mesmo os ateus, mesmo as pessoas de esquerda, elas tinham esse sentimento de pertena, n? Suas famlias todas tinham a sala do santo. Todas, todas. At hoje minha me honra a memria de minha av fazendo a renovao do santo, no dia 25 de dezembro. Ento, ele disse: Salete, eu quero um filme baseado num cordel teu, mas eu queria uma coisa nova, a, a gente dialogando, enfim, depois de muita conversa eu no consegui dormir e fiquei escrevendo. Quando foi 8 horas da manh, o cordel estava pronto e o cordel O Milagre Travesthriller: A Histria da Travesti que (com f) engravidou. Essa histria muito intertextual porque eu trago outras personagens de outros cordis meus e tambm de outros contextos l do Cariri e dentro da histria tem uma outra histria porque ela vai se basear na histria das macarenas, que eram umas beatas que chupavam umas rosas lilases e nas suas catatumbas elas bailavam e, enfim, era um cordel que era meio assim parecido com o Teatro do absurdo. Depois que eu assisti uma pea do Teatro do absurdo, eu fiquei muito impressionada com aquilo e aquelas imagens vinham, ento, tudo que eu escrevo ainda que nem sempre eu me dei conta [rpida pausa], um dilogo com as coisas que eu vejo, que eu leio, que eu aprendo. Ento, no Milagre Travesthriller, a personagem essa travesti que era temente a Deus, que fez um milagre e que engravida. Ou seja, um debate ps-moderno, pero no mucho, porque ela no recorre s tecnologias de reproduo, ela recorre f no Padre Ccero e ela engravida, mas ela dialoga nessa saga, nessa batalha por engravidar, vai recorrer a vrias pessoas. Ento, ela vai dialogar com a feminista e a feminista diz: Ah, mas todo mundo hoje a pauta do aborto e voc t preocupada com essa questo. E vai dialogar com um homem gay amigo dela. Todas as personagens ali so reais, s a Shirley Dayanna, que o nome que eu dei pra personagem, que fictcia, mas todas as pessoas com quem ela dialoga, inclusive o prprio Orlando.

Ento, assim, a eu vou saindo daquela mulher... H um conjunto de mulheres que fazem parte da minha literatura, por exemplo, o cordel Maria, Helena, que so duas mulheres [risos]: Maria vrgula Helena; uma relao homoafetiva. uma relao lsbica entre duas mulheres ali da regio do Cariri. claro que eu as imaginei como sendo duas vizinhas l, que eram beatas e que trabalhavam na roa e moravam ali na cidade. Na regio do Cariri, as pessoas tm [pequena pausa], digamos, esse privilgio de, s vezes, morarem num bairro e serem agricultoras e irem pros seus trabalhos e voltarem. Ento, uma coisa entre o urbano e o rural, n? E a na histria de Maria, Helena falo desse amor entre elas, mas eu no trago nada de extraordinrio, de tentar mexer naquele ambiente. Elas continuam frequentando a missa, continuam fazendo as coisas delas.

J na histria da Shirley Dayanna tem uma srie de debates envolvendo a Teoria Queer e num sei o qu l, mas nada disso dizendo: Olha aqui uma teoria, como, por exemplo, O que ser mulher?, que uma resposta, n? Uma resposta no! [colaboradora demonstra contrariedade]. um dilogo com Simone de Beauvoir, n? Ento, eu digo: Sobre a mulher j se disse / tudo que se imaginar / Duns eu j ouvi tolices / Doutros, me pus a pensar / Mas este ser – a mulher – / Afinal o que que ? / Quem se atreve a explicar?. E vou desenvolvendo... A capa uma interrogao, n? A, eu depois vou desenvolvendo vrios argumentos e em algum momento eu pergunto: E se um homem quiser / Ento mudar sua forma?. Ento, um jeito de falar dessas teorias sofisticadas a partir dessa linguagem, apesar de minha av no ter legitimado num primeiro momento, n? Porque ela disse que isso no era um foieto e tal e coisa.

Mas depois que eu li pra ela A Histria de Z Leitor, que eu vim publicar bem depois. Mas eu escrevi ainda com ela em vida, j t na terceira edio A Histria de Z Leitor, foi a histria que ela mais gostou das minhas histrias, porque se trata de um homem que com mais de 60 anos vai pra a EJA n, a Educao de Jovens e Adultos, e vai se alfabetizar,  e ele quer aprender a ler e ele tem dificuldade ou tem hora que ele quer desistir, e a ele leva um cordel de Patativa, Vaca Estrela e Boi Fub, e depois Fagner musicou e etc.; e ele l esse cordel pra turma, e... enfim. Ali a apoteose n, da alfabetizao dele, e o colega dele que pedreiro vai assistir, e a esposa dele vai, todo mundo vai e enfim. Ento minha av achou a histria linda, porque tinha uma famlia, tinha n [risos mais contidos] uma histria de uma pessoa com incio, meio e fim, e o fim foi feliz e etc., enfim. Ento, ela abenoou esse cordel digamos assim, n? Mas . Meninas, eu t falando muito coisas sem s vezes nem ter uma conexo com a outra, mas o que t me vindo as...

(AB) – Tem conexo demais...

(SM) – Porque os fios da conexo vocs que tm capacidade de articular porque eu t falando assim coisas que me vm memria. Eu tava falando dos cordis a pedido, n? Ento, a pedido de Orlando, a pedido de Vagner Almeida, dois cineastas, e eu fiz o cordel pra homenagear a Violeta Arraes. Eu homenageei Violeta Arraes, homenageei vrios amigos l do Carari, uma amiga que fez uma cirurgia e ela tava fazendo radioterapia, n? E eu chamei isso de Mais uma dose de amor porque ela tinha que tomar mais Iodoradioterapia[84].

E recentemente eu homenageei uma pessoa que no muito bem-vista entre as feministas baianas etc. porque s vezes ele etiquetado de misgino e tal, mas um amigo querido que eu tenho aqui na Bahia, se chama Luiz Mott e eu fiz um cordel sobre os 70, ou mais, anos dele. Ele tava passando a pandemia l na Itlia e com medo de morrer e num sei o qu, no olho do furaco, n? E eu fiz um cordel O Mott Festejar! Ento, no foi exatamente um cordel que ele me pediu, mas ele disse assim: Salete, vamos falar de Cordel, eu l no Mxico e ele l na Itlia, e a gente lutando pra ter um voo de repatriao. Por que que eu t falando do Luiz Mott? Porque a pedido dele, h uns anos, eu fiz um cordel sobre Tibira do Maranho, Santo Gay do Brasil. Ele, como um Antroplogo, pesquisa essas coisas da Inquisio, e a ele descobriu l no Maranho essa coisa do primeiro crime de homofobia do Brasil, que foi praticado contra esse indgena chamado Tibira, ainda no incio n do sculo XVI e a ele me passou a histria, a pesquisa dele e disse: Ah, seria legal ter um cordel e tudo. E eu li a histria toda e contei isso num cordel que foi objeto de pesquisa l no Rio de Janeiro, num grupo de Histria e tal. Ento, assim, mas todo inspirado na pesquisa do Luiz Mott. A fonte do cordel a pesquisa do Luiz e eu conto essa histria sobre por que o GGB – o Grupo Gay da Bahia – fez um requerimento Santa S para reconhecer a santidade desse santo, desse mrtir e como ele antes de morrer foi obrigado a se converter ao Catolicismo. O Luiz Mott ironicamente diz: Ento, j que ele se converteu ao Catolicismo e gente que foi martirizado, igual ou menos do que ele mereceu essa santificao, vamos constranger a Santa S para reconhecer e tal e coisa.... Isso divide as opinies porque tem muita gente que no est interessada em ter um santo gay, muito menos na Igreja Catlica. Mas o fato que uma disputa poltica e achei interessante contar essa histria porque a mim me interessava muito j que a minha dissertao do mestrado foi sobre a igualdade jurdica na ao contra pessoas LGBT. Ento, gostei muito de saber dessa histria. A, foi um cordel que eu fiz a pedido do Luiz e submeti a ele e quando eu submeti, ele disse uma coisa l... Ah, duas ou trs coisas que eu tinha dito que ele queria alterar, ento eu disse: No, Luiz, no aceito que voc mexa no cordel e muito menos que altere a minha rima porque o meu compromisso com a histria e o cordel meu e a rima no vai ser alterada.... Era uma coisa l, mas ele compreendeu, n? E a o cordel um outro cordel sob encomenda.

Mas, fora isso, eu vou escrevendo quando tenho vontade. Tem tempos que eu no escrevo nada, fico travada, tem tempos que eu escrevo. No Mxico eu escrevi 6 cordis em 3 meses. Ento, eu estava num desespero assim.... eu tenho uma aproximao com minha vida aqui no Brasil e mais perto com minhas... eu pedia a minha av, eu orava muito pra que ela me desse inspirao pra eu no pirar, que eu tava ficando maluca trancada dentro de uma casa e com medo de nunca mais voltar, enfim. A, eu sei que eu escrevi o cordel Por amor, cuidem das vidas. Foi em maro, n? todo sobre a pandemia e fazendo um apelo, um cordel denncia e anncio e tudo. E eu no sei nenhuma estrofe dele [risos], t l no Blog, n? E escrevi outros que eu no lembro agora, mas sei que foram 6 cordis. O outro foi sobre Luiz Mott, fez aniversrio l na Itlia e enfim.

Ento, assim, so vrias mulheres que eu vou trazendo, mas no s mulheres, n? Tem muitas figuras vinculadas feminilidade, ento, voc tem a as travestis, voc tem os homens gays, voc tem a ... A personagem mais austera, digamos, que eu j tive foi Z Leitor, mas na verdade tem uma... [rpida pausa] pegada assim geracional e de classe.

Bruna Lucena (BL) – Tem o do seu pai, n, Salete?

(SM) – Ah, ok!

(SM) – Verdade, Bruna, tem... Meu pai aquele cordel eu no consigo recit-lo porque eu comeo a chorar. Ento, no dia do lanamento dele, eu tive de me socorrer de pessoas...

(BL) – Que lindo aquele cordel...

(SM) – ...

(BL) – Por isso que eu lembro, eu acho ele lindo... [risos]

(SM) – . uma homenagem pro meu pai que eu fao, logo aps ele ter passado por um cncer agressivssimo, n? E diz assim: Meu pai por seu um pedreiro... – a nica estrofe que eu ainda lembro porque muito emocionante pra mim: Meu pai por ser um pedreiro / Dele muito me orgulho / Sempre foi muito guerreiro / Homem de muito barulho / Seja curando tormento / Seja mexendo cimento... – [colaboradora tenta relembrar a rima]: Ele desata o embrulho. Ele diz assim: Seja curando tormento / Seja mexendo cimento / Ele desata o embrulho. A eu vou contando a histria dele, que ele saiu em 44 [1944]... Que ele nasceu em 44 e depois ele saiu do Nordeste brasileiro ainda jovenzinho pra trabalhar na construo civil, a ele brinca que subiu na vida, n? Ele deixou a lavoura para subir num andaime, ele brinca assim. Tem essa boa lembrana.

Ento, Bruna, tem o do meu pai... Eu homenageei alguns homens que eu considero importantes na minha vida. Ento o meu tio Z Alexandre, recentemente, que eu nomeei o cordel dele de Vai nas asas dos Arcanjos. O curioso que, um ms antes do meu tio falecer, eu liguei para ele e ele disse assim: Olha, eu t deixando aqui uma herana pra voc. A eu achei estranho aquela conversa e tudo... A ele: No, eu t velho.... Porque em maro ele perdeu um neto e ele tinha dito: , porque que Deus no me levou e deixou meu neto, to jovem?. Ento, quando eu cheguei do Mxico, que eu liguei pra ele, ele disse assim: Eu no tinha mais f que eu ia ver voc, no, ser que eu ainda lhe vejo?. A gente conversando no telefone, a, eu disse assim: tio, num fala um coisa dessa, num sei o qu.... A ele disse assim: Eu t deixando aqui uma herana pra voc: um caderno de folhetos e a mquina de escrever, mas ela t toda quebrada, as letras saindo fora de lugar e tudo.... A, eu disse: , num t gostando desse papo de herana, mas em termos de presente eu estou adorando, ento quando essa pandemia passar, eu vou a e a gente vai ver esses cordis e vai – ele tambm no chama de cordel, chama de folheto – a gente vai publicar e num sei o qu.... Enfim.

Ento, assim, minha herana t l, eu ainda no pude ter contato, n? Quando passar essa pandemia eu vou atrs, mas ele sabia que de todos os parentes a pessoa mais fissurada assim no cordel e na produo dele e tudo, sou eu. Ele escreveu A Casa que Me Morava, que um clssico, n? Fui visitar meu serto / Aonde morou meus pais / A saudade era demais / Pra ver aquele torro / Atravessei o boqueiro e avistei a Canabrava / Com tanta saudade eu tava pra ver aquela casinha / Que hoje no mais minha / A casa que me morava [colaboradora recita o cordel do tio]. E a ele vai desenvolvendo toda a histria de vrias passagens da vida dos meus avs nessa casa etc., etc. Tem uma hora que ele diz: Tendo dinheiro eu comprava / A casa que meu pai fez / Pra eu morar outra vez / Na casa que me morava. lindo esse cordel, muito emocionante. E tem um muito engraado que ele diz: Em cada dez brasileiros / Tem oito ou nove ladro; que ele fez a num dos perodos a de campanha eleitoral, l comprou muitas confuses, por isso o cordel no foi publicado assim em grande escala, mas era assim uma outra inspirao pra mim. Era no, segue sendo, n? [pequena pausa] Fiz o do meu primo tambm... Tem tanta coisa. O de Orlando muito emocionante porque o Orlando faleceu sem ver o resultado do filme baseado no meu cordel. O filme existe e se chama Travesthiller. O meu cordel Milagre Travesthiller, mas o filme Travesthiller.

Ento, so cordis em que eu trago majoritariamente a temtica das mulheres, falando da desigualdade de gnero, trago en passant a questo da velhice, a questo geracional, racial, mas a classe t muito presente porque de todas as minhas conscincias a primeira foi a conscincia de classe, n? Ento, isso foi o que me levou a me desviou de ser algum da rea de Letras pra ser algum do Jurdico. Foi uma coisa de dizer assim: Ah, ento eu vou fazer faculdade de Direito e eu vou me dedicar ao Direito do Trabalho porque eu no quero que acontea com nenhuma pessoa, nenhuma mulher, o que aconteceu com minha me e num sei o qu.

E de fato eu advoguei um tempo na rea do Direito do Trabalho e depois eu me desencantei com essa coisa da advocacia trabalhista. A, eu fiz cordis e nos atos processuais t l o qu que a Sammyra botou o cordel chamado Alvar Judicial, que uma petio que eu fao em cordel pra que o juiz autorize que um agricultor l de Cariri saque o resduo do FGTS, que ele chegou de So Paulo e tava desempregado e era agricultor, foi pra So Paulo trabalhou um pouco com carteira assinada e estava desempregado e voltou. A, eu fiz essa petio sabendo que ela no seria indeferida porque o juiz era um poeta tambm: Doutor Pedro Bezerra. No era um poeta de cordel, mas era um poeta e muito sensvel. Do ponto de vista legal, ele no teria como dizer que eu tinha que escrever em prosa porque o cdigo do processo diz que tem que ser na lngua verncula, n [risos]? A petio tem que ser em Lngua Portuguesa e tem que dizer os fatos e dizer o direito. S que no tradio escrever em poesia e a o pessoal escreve uma coisa com incio, meio e fim, mas qualquer outro juiz poderia indeferir dizendo que no estava de acordo com a tradio jurdica bl, bl, bl, bl. Ento, ele acolheu, ficou muito emocionado e abriu vistas pro promotor de justia. O promotor tentou fazer uma gracinha despachando em uma estrofe [risos], no conseguiu rimar, mas despachou. O que vale a inteno. E esse senhor, chamado Jesus, t l no folheto... E ainda era na mquina de datilografia. Se vocs olharem no Cordelirando, um scanner da pgina, do processo, vo ver que ainda era no tempo da mquina de datilografia que eu peticionei. S que eu recentemente percebi o seguinte: que aquilo para o que eu menos me esforcei na vida algo que tem tido algum valor, entende?

Eu no fiz cordel pra me tornar famosa, eu no fiz cordel pra ganhar dinheiro porque primeiramente eu pagava do meu bolso, por isso que eu publiquei pouco na dcada de 90, que eu no tinha emprego. Eu vim ter um emprego em 98, emprego assim que me deu condio de me sustentar porque eu tralhava, obviamente, desde os quatorze, mas assim como comerciria, depois como pesquisadora do SINE, depois como pesquisadora do IBGE, depois eu trabalhei numa escolinha – mesmo sem eu ser formada ‒, eu fiz um teste e fui professora infantil. Na poca eu fui professora da Educao Infantil no Colgio Balo Mgico, ento no dava para eu sustentar o meu hobby, digamos assim, ento, foi uma poca em que eu produzi muito e no publiquei muito e... Teve coisa que eu produzi em 90 e s vi publicar no ano 2000. Ento, por exemplo MARIA DE ARAJO e seu lugar na histria, que a beata Beatitude, ele publicado em 2001, quando eu consegui recursos porque teve tempo que eu publiquei pelo Cordel, ou o projeto SESCordel, e a uma poltica; no nem uma poltica pblica porque o SESC que do Sistema S, da Indstria e tal, comrcio. Mas o SESC tinha uma iniciativa, um projeto de autoria de Fanka chamado SESCodel Novos Talentos, ento, eu me submeti a esse edital chamados novos talentos l na Regio do Cariri. E eu cheguei a publicar dois ou trs: o MEU PAI foi publicado pelo SESCodel Novos Talentos.

Ento, s vezes, uma coisa publicada numa dcada e ela foi produzida numa dcada anterior, mas faltava condies, no tinha uma poltica pblica no estado do Cear, um edital, uma coisa... um incentivo produo. Tinha incentivo leitura, mas o leitor e a leitora ia ler o que j estava disponvel naquelas prateleiras. A, com esse projeto criou-se uma Cordelteca e eu que no era s escritora de cordel, mas era tambm leitora, frequentava pra ler os cordis das pessoas, participava de uns saraus, recital etc. Os lanamentos eram lindos. Porque eu sou anterior aos Mauditos, n? Ento, eu publico antes dos Mauditos ‒ que o grupo que eu ajudei a fundar junto com Fanka e outras pessoas ‒, que alis vai sair um livro agora de autoria de Cludia Rejane sobre os Mauditos. Eu quero at confessar para vocs que deu o maior babado...

[Seguindo a tnica dos folhetins, a continuao da entrevista ser publicada em outro momento, de modo a manter aguada a curiosidade de nossas leitoras e leitores]



[82] Neste trecho da entrevista, a colaboradora Salete Maria recita o cordel A chegada do Lampio no Inferno numa tentativa de exemplificao das correes da av sofridas por ela na sua infncia. Essa prtica se repetir ao longo da entrevista.

[83] O filme chama-se Janana Dutra: Uma Dama de Ferro. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=zdtNOHia1qA. Acesso em: 10 jul. 2020.

[84] A colaboradora se referia a mesma terapia conhecida tambm como Iodoterapia ou mesmo Radioiodoterapia.