Apresentao
A voz como territrio de
(re)existncia, em suas mltiplas corporificaes, existe
e resiste ao passar largo dos tempos, seja fazendo parte das trilhas dos nossos
corpos nas rodas em que nos encontrvamos em prosa (e que esperanamos por voltar
a assim viver), seja caminhando mais que veloz pelas redes invisveis, mas j
to presentes, das telas de celulares, computadores... E o que nasceu no calor
do afeto ganhou os sales, as salas, as escolas, as universidades, sendo, a um
s tempo, mdia, poesia, discurso, panfleto. J sabemos que no cabe mais falar
em morte do popular como muitos anunciaram, mas em reinveno contnua e viva
de uma tradio que se cria, recria e cria numa lemniscata infinita.
Este nmero da Revista Boitat apresenta
tudo isso, abrangendo diferentes espaos de interlocuo de pesquisas,
experincias e reflexes em torno das mltiplas manifestaes das poticas
orais, afetos e troca de saberes. Diferenas essas que se encontram e convergem
em vozes que (re)existem a despeito
de preconceitos e discriminaes escriptocntricas,
eurocntricas, racistas, elitistas, machistas e todos outros abismos.
Nesse sentido, a entrevista/conversa com e sobre
Salete Maria da Silva abre os dilogos a respeito da voz como um territrio de
(re)existncia, nos anunciando os diversos
enquadramentos tericos, metodolgicos, epistemologicos
e modos de entender as poticas das vozes que o conjunto de artigos desse
dossi abrange. A prpria histria da cordelista um captulo da grande
histria da oralidade.
Outro olhar sobre isso temos com Edilene Matos,
ao nos apresentar os autores Antnio Aleixo e Antnio Vieira que, embora
separados pelo alm-mar, mostram-se vinculados a partir da poeticidade presente
em suas obras, revelando os meandros entre oralidade e escrita que, em frico,
aproximam-se e tensionam-se.b Maurlio Antonio Dias de Sousa, por sua vez, nos mostra por dentro o
sistema editorial dos folhetos, em sua teia organizacional, destacando
elementos presentes na relao entre poeta e editor, na medida em que expe
como as culturas populares criam e gerem seus prprios modelos editoriais de
modo contra-hegemnico. Outro deslocamento contra-hegemnico feito no artigo
de Ria Lemaire, em que nos trazida uma nova
epistemologia que posiciona a as vozes das mulheres no centro de um debate
cujos elementos colaboram para o fortalecimento de um novo paradigma envolvendo
cordel e gnero.
Ainda sobre as vozes das mulheres, temos o
trabalho de Joel Vieira da Silva Filho e Cristian Souza de Sales sobre a
escrita de Eliane Potiguara em sua obra Metade
cara, metade mscara, evidenciando como a memria coletiva e a memria
individual encontram-se articuladas no texto autobiogrfico que descortina o
processo diasprico dessa escritora indgena, que
tambm mote do artigo de Renata Daflon Leite, em
que so trazidos cena o carter poltico e a potncia performtica presentes
nas obras de Eliane Potiguara, reforando o trnsito entre oralidade e escrita
presente na literatura indgena.
Estendendo compreenso da questo de gnero
nas poticas da oralidade, Maria Gislene Carvalho da Silva de Autobiografias de
mulheres cordelistas: uma contribuio para a nova historiografia do cordel,
nos convida a conhecer as obras das cordelistas Julie Oliveira, Izabel Nascimento
e Auritha Tabajara, esta uma indgena, expondo os
fios que conduzem as relaes de gnero no universo do cordel. A relao entre
autoria de mulheres e oralidade – tambm um lcus em que a voz um territrio de (re)existncia
– prestigiada no artigo de Fernanda Oliveira da Silva e Maria
Teresa Salgado, em que analisam Os
sapatos de T,
obra em que Elisabete Nascimento registra os textos orais de sua me Cremilda, uma griot, evidenciando
a memria como fio condutor para as denncias sociais apresentadas.
As vozes de mulheres negras
so reverenciadas tambm no texto de Railda
Maria da Cruz dos Santos e Edil Silva Costa, em que se debruam sobre as
poticas orais a partir da anlise das cantigas e das narrativas de mulheres
negras que capitaneiam um grupo de Lindro Amor, na
cidade de Maracangalha, expondo seus modos de (re)existncia em face da dinamicidade da prtica cultural
em questo.
Para encerrar a conversa aberta, ou mesmo para
adentrar outros espaos de dilogo, Adriana Aparecida de Jesus Reis prope um
paralelo entre uma das narrativas de Giambattista Basile, escritor napolitano, e um conto oral recolhido no
interior da Bahia e presente em uma das obras do escritor Marco Haurelio, evidenciando quais elementos populares podem ser
ativados na oralidade para a construo de contos maravilhosos de modo a
aproximar contextos culturais aparentemente to dspares.
Ao percorrer esses artigos, bem como as vidas,
vozes e poticas estudadas, observa-se que os territrios de (re)existncia esto em grande medida atrelados aos viveres,
fazeres e saberes das mulheres, especialmente daquelas cujos lugares de fala
so contra-hegemnicos, no se podendo olvidar que a prpria oralidade nos
estudos acadmicos significa por si s alguma dissonncia. Os aliados nessa
interlocuo somam-se s foras ancestrais dessas vozes, que se confluem e
atravessam no devir.
Andra Betnia da
Silva
Bruna Paiva de Lucena