A po�tica do retalho

 

 

The poetic of retail

 

 

Jo�o Evangelista do Nascimento Neto[101]

https://orcid.org/0000-0003-4937-7311

 

 

Resumo: Neste artigo, discute-se a constru��o de leituras tendo como analogia uma colcha de retalhos. A partir de cada retalho – constela��o, rizoma, intertextualidade, arquivo e semiologia –, � poss�vel tra�ar os percursos de compreens�o do texto, tendo como exemplo o Auto da Compadecida, obra que alinhava tra�os da cultura popular e seu di�logo interartes. Essa po�tica da leitura aqui apresentada constitui-se somente enquanto uma das m�ltiplas possiblidades de intera��o com o texto liter�rio. Cada leitor, certamente, costurar� seu cobertor de leituras.

Palavras-chave: Po�tica; Leitura; Popular.

 

 

Abstract: In this article, the construction of readings is discussed using a patchwork quilt as an analogy. From each patch: constellation, rhizome, intertextuality, archive and semiology, it is possible to trace the paths of understanding the text, taking, as an example, the Auto da Compadecida, a work that aligned traits of popular culture, and its interart dialogue. This poetics of reading presented here constitutes only one of the multiple possibilities of interaction with the literary text. Every reader will, of course, sew their blanket of readings.
Keywords: Poetics; Reading; Popular.

 

 

Como fazer uma coberta de taco (ou colcha de retalhos)

 

Material necess�rio:

 

- Peda�os de panos os mais variados poss�veis;

- Linha de costura;

- Agulha;

- Tesoura.

 

Instru��es:

 

Ap�s ter � m�o todos os materiais, separa os retalhos de pano e, com a tesoura, acerta os peda�os para que fiquem com tamanhos semelhantes. Depois, com linha e agulha, costura um peda�o a outro para materializar-se, enfim, a coberta. O tamanho dela depende de sua escolha em ser ela para cobrir uma cama de casal ou de solteiro, o que pode ser medido no pr�prio leito. O toque final � feito costurando-se as extremidades do cobertor, a fim de n�o desfiar ou rasgar. A� est� pronta a coberta, muito usada no ver�o por ser leve, al�m de deixar o ambiente agrad�vel por suas multicores.

 

 

De como uma coberta de taco pode ter rela��o com as leituras

 

Ler � um processo cont�nuo e de car�ter somat�rio. A leitura, termo genericamente usado no singular, na verdade, � feita de leituras. Se um homem � resultado de suas leituras, essas surgem em decorr�ncia das m�ltiplas escritas, de in�meros textos que se assomam �s leituras da vida, �s leituras do Outro e de Si.

Para se fazer uma coberta de taco, � necess�rio adquirir uma s�rie de retalhos. Do mesmo modo, para se estabelecer um homem, � preciso ver o mosaico de leituras que o constru�ram.

Esse artigo constitui-se em um processo de costura, dia ap�s dia, quando da apropria��o de cada retalho, de cada texto, unido a outro artesanalmente, com linha e agulha, como � o racioc�nio humano. Este texto representa as semelhan�as afetivas do leitor com suas refer�ncias de vida, suas escolhas liter�rias, assim como a costureira estabelece uma rela��o afetuosa com a colcha que elabora com o esfor�o de suas m�os.

Cada taco, cada retalho somado a outro representa a multiplicidade de �eus� que permeiam o leitor, que habitam o escritor. O resultado final da coberta, bela por sua variedade, � a analogia ao leque de leituras de um ser humano.

O homem contempor�neo � o ser detentor de uma identidade m�ltipla, l�quida, p�s-moderna. Esse homem fragmentado, esse ser estilha�ado, ao contr�rio do que os mais tradicionais podem supor, n�o deve ser visto com desvantagem; ao contr�rio, a vida humana � um sucessivo catar de fragmentos, um constante trabalho de alfaiataria. O que est� rasgado pode ser novamente costurado. Se o retalho est� desgastado, pode ser cerzido. O homem � um ser inacabado, em constru��o. Cada retalho que adquire em sua vida pode ser acrescido a seu cobertor. Essa manta n�o precisa ter tamanho exato, determinado. � sempre poss�vel adicionar mais um taco a ela.

O narrador, nesse instante, pede licen�a ao leitor para usar a 1� pessoa do singular, j� que ele falar� de si pr�prio. Assim, o �ele� deve ceder espa�o ao �eu�, para particularizar aquilo que relata pela sua mem�ria, o instrumento de que disp�e, para descrever o que sente, quem �, mesmo, felizmente, sendo um produtor inacabado, ainda h� mais para trilhar, e pretende, com �xito, acrescentar mais tacos � colcha da sua vida.

 

 

1� retalho: a constela��o

 

Eu inicio o relato, em primeira pessoa, citando �O menino que carregava �gua na peneira�, de Manoel de Barros:

Tenho um livro sobre �guas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava �gua na peneira.
A m�e disse que carregar �gua na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irm�os.
A m�e disse que era o mesmo que catar espinhos na �gua
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em desprop�sitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

 

[...]

 

A m�e reparava o menino com ternura.
A m�e falou: Meu filho voc� vai ser poeta.
Voc� vai carregar �gua na peneira a vida toda.
Voc� vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas v�o te amar por seus desprop�sitos.[102]

Carregar �gua na peneira, criar peixe no bolso, costurar peda�os de panos. A priori, atividades v�s, sem fins pr�ticos ou de pouca valia. Mas pensa dessa forma quem nunca sentiu o prazer de levar a �gua na peneira e molhar-se com ela, refrescando-se num dia quente de ver�o. Quem considera um ato insano criar um peixe no bolso, n�o experimentou a satisfa��o de peg�-lo e senti-lo perto, sempre junto, como um amigo que est� ali � m�o para todo intento. Aquele que pondera ser loucura costurar tacos de panos sem fim, n�o pressente que de meros peda�os de restos de tecidos pode surgir uma colcha capaz de aquecer algu�m numa noite mais fria.

Eu persigo os desprop�sitos da literatura, encanto-me com eles, seduzo-me por eles. Pela literatura, � poss�vel olhar al�m, porque se pode enxergar para dentro. Atrav�s do texto liter�rio, eu tamb�m cato os espinhos na �gua que levo em minha peneira (creio que todos os seres humanos possuem suas peneiras com �gua para levar por sua vida, mas alguns a abandonam no meio do caminho). Eu sei que o mundo contempor�neo, com sua velocidade, seu tempo reduzido, exige, de cada um, praticidade, mas eu insisto em parar, muitas vezes, para recolher tais espinhos, mesmo furando os dedos, da peneira que levo, em meio � �gua que dela escorre e que torno a encher. N�o me esquivo da tarefa de pegar os espinhos, nem do trabalho de buscar rem�dio para sarar as feridas, paradoxalmente, na mesma peneira e com a mesma �gua.

Esses desprop�sitos enchem a alma, conduzem a vida, e d�o olhos de lince. Olhar para o interior � o mais dif�cil tipo de vis�o que existe. Olhar para dentro � enxergar a si pr�prio, com todas as suas idiossincrasias, reconhecendo os seus �eus�. Ao ver intrinsecamente, eu aprendo a ver melhor o Outro.

Da�, com agulha e linha, eu costuro a minha coberta. Todo dia, eu junto a ela um retalho diferente do outro que juntei anteriormente. Diferentemente de Pen�lope, ao esperar seu amado, a coberta n�o � desfeita, mas acrescida, complementada. O cobertor � um emaranhado de tecidos, como o c�u � uma profus�o de estrelas. Ao olhar a ab�bada celeste, n�o sei quando uma estrela est� viva, ou ali apenas � o seu brilho que chega at� mim, mas ela, a estrela, aproxima-se, lan�a sua luz, deixa seu rastro.

Olhar estrelas no c�u tem rela��o com fazer uma coberta de taco. Perceber as in�meras estrelas que habitam o firmamento, observar sua luz, determinar cada origem, � t�o desprop�sito quanto procurar a origem de cada retalho. � por isso que a literatura se prop�e aos desprop�sitos. A ci�ncia esquiva-se daquilo que, para ela, � irracional, procura provar e comprovar suas teorias, seus tratados. A literatura busca o ser, aposta no sentir. Nesses desprop�sitos, eu me lan�o, eu me perco no meio das estrelas, eu me absorvo por entre os peda�os de pano. Ao perder-me, encontro-me, para perder-me novamente, a fim de conhecer outras facetas de mim mesmo.

Para Maurice Blanchot, a Constela��o nasce daquilo que n�o � conhecido, do espa�o da pr�pria obra. E falo de estrelas e assemelho-as � literatura. Esse vazio deixado por toda obra � o espa�o a ser preenchido pelo leitor. Sou eu, leitor, que preciso seguir os rastros de luz deixados pelos textos, que s�o fachos n�o lineares, s�o luzes que fazem ziguezagues, que se entrela�am com outras fa�scas, como os textos fazem rela��es a outros textos, como leituras da contemporaneidade dizem sobre textos medievais, assim como as p�ginas escritas podem falar tanto do homem, dialogar comigo, sobre mim. Para o autor,

a ess�ncia da literatura escapa a toda determina��o essencial, a toda afirma��o que a estabilize ou mesmo que a realize; ela nunca est� ali previamente, deve ser sempre reencontrada ou reinventada. (BLANCHOT, 2005, p. 294).

Como os peda�os de pano precisam ser reinventados para tornarem-se, juntos, mas sem ordem a ser seguida, sem estabelecimento de come�o ou fim, apenas uma combina��o aleat�ria, uma colcha; as estrelas s�o reinventadas pelo rastro que deixa no c�u. A literatura deixa seus rastros. O leitor segue-os, refazendo os caminhos, abrindo picadas, forjando estradas. Muitos desses caminhos n�o s�o abertos pelo escritor, mas pelo pr�prio leitor, ao seguir os rastros que ficam, ao sair � procura dos retalhos, mas tamb�m seguindo sua intui��o, seus anseios, enxergando-se atrav�s dos rastros, materializando-se na jun��o de cada taco de pano, no processo de coautoria do texto: �A leitura � opera��o, � obra que se cumpre suprimindo-se, que se prova confrontando-se com ela mesma e se suspende ao mesmo tempo que se afirma� (BLANCHOT, 2005, p. 357-358).

A leitura � um estar em movimento ao permanecer est�tico. Um devir interior, que promove a transforma��o do mundo. Meu mundo se suprime, comprime-se diante do texto, mas expande-se, num processo contr�rio, como o universo o faz (ou fez um dia, segundo alguns cientistas). � o inverso do reverso de mim, aben�oado pelos deuses da literatura, plainando sobre mim, a sussurrar em meus ouvidos cantos po�ticos de amor, louvores � inquietude de meu ser, mas tamb�m amaldi�oado pelos dem�nios que habitam em mim, que voam sob minh�alma, defenestrando meus sonhos, enxertando novos ideais. Ler um texto � sentir as palavras com o cora��o divino ressoarem na pele com prazer diab�lico.

Segundo Roland Barthes,

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, d� euforia; aquele que vem da cultura, n�o rompe com ela, est� ligado a uma pr�tica confort�vel da leitura. Texto de frui��o: aquele que p�e em estado de perda, aquele que desconforta (talvez at� um certo enfado), faz vacilar as bases hist�ricas, culturais, psicol�gicas do leitor, a consist�ncia de seus gestos, de seus valores e de suas lembran�as, faz entrar em crise sua rela��o com a linguagem (BARTHES, 2010, p. 20-21).

Para o te�rico, a Babel liter�ria � benquista, bem-vinda, recebida com festa, com gl�rias. O texto de prazer abre espa�o para o texto de frui��o. Um deixa o leitor acomodado, o outro cutuca, incomoda, tira o sono. O primeiro nina o leitor em suas p�ginas, o segundo tira-lhe o sono. H� textos que exercem as duas fun��es: eles apresentam-me os meus deuses e diabos cotidianos. Esses textos n�o podem ser classificados genericamente, dependem do olhar pessoal de cada leitor. E assim, vai-se fazendo a literatura, com linha de algod�o mercerizado ou linha mista (mais usadas em costuras) e uma agulha para acolchoar (que costura com mais precis�o e rapidez), ideologias s�o questionadas, novos pensamentos costurados, entrela�ados a tantas outras ideias, alegrias somadas a tristezas vividas. Assim sou eu, assim � o ser humano, assim � a literatura, a mais perfeita cria��o do imperfeito homem.

 

 

2� retalho: o rizoma

 

O manguezal � um ecossistema costeiro, que transita entre os ambientes terrestre e marinho. Existe nas regi�es tropicais e subtropicais, � poss�vel encontr�-lo em foz de rios. No mangue, encontram-se vegeta��o t�pica e vida animal em abund�ncia, aves, peixes, mam�feros, r�pteis e invertebrados, como os apreciados siris e caranguejos. Seu solo � rico em nutrientes, por isso as �rvores desenvolvem-se com facilidade, mas, com solo lodoso, as plantas precisam adaptar-se, para tal, utilizam-se de ra�zes a�reas, para facilitar a oxigena��o, mas bem fincadas no ch�o.

Na bot�nica, as ra�zes que se fasciculam s�o chamadas de rizomas. Os rizomas funcionam como �rg�os de reprodu��o dos vegetais. Da raiz principal, surgem outras ra�zes em diferentes dire��es, fazendo brotar outras plantas. Em um momento, ao leigo, � dif�cil perceber qual a raiz principal, j� que outras germinam dela. Assim � a raiz da vegeta��o do manguezal. Ela � um emaranhado de ra�zes, que se confundem umas as outras. Num mangue, n�o h�, � primeira vista, como estabelecer uma separa��o. O mangue resiste pela uni�o de sua vegeta��o, pela for�a de suas ra�zes que, juntas, s�o mais fortes. O mangue resiste � �gua e ao solo arenoso, fluido. O manguezal � um local de reprodu��o de v�rias esp�cies animais e vegetais, atuando como manuten��o do equil�brio da natureza. O mangue � for�a vital, seus rizomas, com m�ltiplas entradas, geram outras vidas, sustentam exist�ncias. A �rvore � o que se v�, aquilo que se contempla majestosa, mas ela nada seria sem a sua raiz, principalmente numa regi�o de manguezal.

Uma colcha de retalhos � como um manguezal. Cada peda�o de pano, rizom�tico, une-se a outro, tamb�m rizom�tico, formando um todo onde cada parte ainda � percept�vel, mas indissoci�vel. Numa coberta de taco, os elementos, de tamanhos diferentes, de cores peculiares, de estampas espec�ficas, simbolizam aquilo que o mangue evidencia: a uni�o das diferen�as. Conforme J�lia Kristeva, �todo texto � um mosaico de cita��es, todo texto � absor��o e transforma��o de outro texto� (KRISTEVA, 1974, p. 64). Todo texto �, portanto, como as ra�zes de um manguezal, ou como uma colcha de retalhos.

Uma coberta de taco � um texto, m�ltiplo em sua unidade, formada por rizomas, seguindo o conceito de Gilles Deleuze e F�lix Guattari. Para os autores,

uma das caracter�sticas mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre m�ltiplas entradas [...]. Ele n�o � feito de unidades, mas de dimens�es, ou antes de dire��es movedi�as.

[...]

Um rizoma n�o come�a nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22. 37).

Um texto rizom�tico remete o leitor a outros textos que o direcionam a demais leituras, numa estrutura fascicular intermin�vel. Meu contato com um rizoma se deu por interm�dio da micross�rie O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, que foi ao ar em 1999, pela Rede Globo. Com quatro cap�tulos, a adapta��o do texto teatral, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado pela primeira vez em Recife no ano de 1957, acenou para mim como um intertexto que pulsava vida, que possu�a for�a e falava aos meus ouvidos, tocava na minha alma.

Percebi, durante os quatro cap�tulos da s�rie, a Literatura de Cordel emergindo das vozes de cada personagem. Em cada situa��o narrada, o cheiro do sert�o nordestino passeava por meu corpo, subia as minhas narinas, chegava ao meu c�rebro. Mas cada texto de cordel usado por Suassuna, em sua pe�a, tamb�m evoca outros textos. O pr�prio autor paraibano deixa-se tomar, em sua pena, por obras portuguesas, como as do autor Gil Vicente, ou de resqu�cios cavalheirescos de Miguel de Cervantes, ou ainda do humor social de Moli�re. � adapta��o, para a televis�o e posteriormente para o cinema, ainda se acresce William Shakespeare. Enfim, o rizoma se faz com o di�logo sem come�o estabelecido, sem fim aparente, como as ra�zes de um manguezal, como os tecidos que formam uma colcha de retalhos.

 

 

3� retalho: a intertextualidade

 

Se fosse poss�vel resumir o Auto da Compadecida em uma s� palavra, esta seria, certamente, a intertextualidade. Os textos de cord�is, fonte primeira de inspira��o do autor, ajudam na tem�tica de cada ato da pe�a.

O folheto O dinheiro (O testamento do cachorro), de Leandro Gomes de Barros, possui, como enredo, as perip�cias de um dono para sepultar seu c�o com um ritual f�nebre. O texto, de cunho religioso e moralizante, esfor�a-se por associar a imagem da avareza e da gan�ncia como os males da humanidade:

O dinheiro neste mundo

N�o h� for�a que o debande,

Nem perigo que o enfrente,

Nem senhoria que o mande.

Tudo est� abaixo dele

S� ele � quem � grande.

[...]

Eu j� vi narrar um fato

Quer fiquei admirado,

Um sertanejo me disse

Que nesse s�culo passado

Viu enterrar um cachorro

Com honras de um potentado.

(BARROS, 2005, p. 1. 5).

Por dinheiro, que constava no testamento deixado pelo c�o, o Vig�rio da par�quia e o Bispo concordam com a celebra��o estapaf�rdia. O enterro teve ladainha e encomenda��o do corpo. Segundo o narrador, nem todo ser humano tinha o privil�gio de tantas honrarias em seu sepultamento. Aqui, a Igreja � condenada por seus desvios. Embora n�o haja um desejo de destruir a institui��o, seus membros s�o expostos ao rid�culo, a fim de haver um conserto desses que deveriam ser os guias espirituais do povo.

            Ariano Suassuna adapta o folheto de Leandro Gomes de Barros acrescendo a ele a celebra��o do f�retro em latim, como exig�ncia da esposa do padeiro:

JO�O GRILO: � Chic�, o padre tem raz�o. Quem vai ficar engra�ado � ele e uma coisa � benzer o motor do Major Ant�nio Moraes e outra � benzer o cachorro do Major Ant�nio Moraes.

PADRE (m�o em concha no ouvido): Como? [...]. E o dono do cachorro de quem voc�s est�o falando � Ant�nio Moraes? [...]. N�o vejo mal nenhum em se aben�oar as criaturas de Deus (SUASSUNA, 2004, p. 23-24).

Suassuna intensifica a den�ncia contra o clero, pois, para o autor, a religi�o � um meio de reforma social. Protestante convertido ao catolicismo, o teatr�logo condena os v�cios humanos, atribuindo-lhes as causas da degeneresc�ncia �tica e moral humana.

Em A hist�ria do cavalo que defecava dinheiro, tamb�m de Leandro Gomes de Barros, a hist�ria se passa entre dois compadres, de situa��o financeira bastante distinta. O pobre vinga-se do rico por sua sovinice, vendendo-lhe um cavalo que defeca moedas:

Na cidade de Maca�

Antigamente existia

Um duque velho invejoso

Que nada o satisfazia

Desejava possuir

Todo objeto que via

Esse duque era compadre

De um pobre muito atrasado

Que morava em sua terra

Num rancho todo estragado

Sustentava seus filhinhos

Na vida de alugado

[...]

Foi na venda de l� trouxe

Tr�s moedas de cruzado

Sem dizer nada a ningu�m

Para n�o ser censurado

No fiof� do cavalo

Foi o dinheiro guardado.

(BARROS, 2006, p. 1-2).

Como forma de puni��o pela sovinice, o compadre pobre ati�a a cobi�a do amigo, vendendo-lhe o animal que �descome� dinheiro, em seguida, uma rabeca que ressuscita mortos. Desse modo, obt�m sua vingan�a e livra-se do vizinho avaro.

No Auto da Compadecida, o cavalo foi trocado, por quest�es de montagem teatral, por um gato. A rabeca transforma-se em gaita e utilizada na cena em que Severino de Aracaju intenta matar Grilo e seu companheiro Chic�:

GRILO: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chic�.

CHIC�: Na minha, n�o!

GRILO: Deixe de moleza, Chic�. Depois eu toco na gaita e voc� fica vivo de novo! [Murmurando, a Chic�.] A bexiga, a bexiga! (SUASSUNA, 2004, p. 113).

A artimanha para enganar Severino n�o d� certo. Embora iludido em ver o Padre C�cero, e retornar � vida, o cabra do Capit�o mata Grilo, dando origem ao �ltimo ato da pe�a, o julgamento das personagens.

No texto O Castigo da soberba, an�nimo, o bar�o e sua esposa s�o julgados por sua avareza, tendo seus atos expostos no julgamento celestial. Os dois personagens, no folheto, encarnam os sete pecados capitais, sendo defendidos por Nossa Senhora:

(Alma) – �Rainha, M�e Amorosa,

Esperan�a dos mortais,

Quem recorre a vosso nome

Sei que n�o desamparais,

Eu, pegando em vossos p�s

Sei que n�o largo eles mais.�

 

(Maria) – �Pois, alma, demora a�,

Enquanto eu vou consultar,

Fazer pedido a meu Filho,

Ver se eu posso te salvar,

Ver se teus grandes pecados

Tem grau de se perdoar.�

(C�o) – �Como esta tal Maria

Eu mesmo nem nunca vi:

Uns pedem por interesse,

Pedem porque � pra si,

Mas ela pede � pros outros,

N�o se enjoa de pedir...�

(MOTA, 1955, p. 175).

A alma consegue a justifica��o atrav�s da sua advogada de defesa, Nossa Senhora, que intercede junto ao juiz, Jesus Cristo, a fim de obter a reden��o de seu cliente, o homem. O C�o, promotor nesse julgamento, � envergonhado e n�o logra �xito em seus intentos.

No texto suassuniano, a cena do julgamento dura todo o terceiro (e �ltimo) ato da pe�a. Todos os personagens ficam diante do juiz Manuel que, negro, ainda encontra espa�o para discutir quest�es de discrimina��o racial:

 

De repente, Jo�o ajoelha-se, como que levado por uma for�a irresist�vel e fica com os olhos fixos fora. Todos v�o-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para n�o ver o Cristo que vem entrando. � um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura. Todos est�o de joelhos, com o rosto entre as m�os.

ENCOURADO: [de costas, grande grito, com o bra�o ocultando os olhos] Quem �? � Manuel?

MANUEL: Sim, � Manuel, o Le�o de Jud�, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois v�o ser julgados (SUASSUNA, 2004, p. 136-137).

O ato do julgamento conta com Jo�o Grilo intermediando a pondera��o feita pelo Encourado para cada r�u, a saber: o Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa. Severino livra-se do inferno por seu passado de sofrimento. E Grilo consegue retornar ao sert�o, angariando uma segunda oportunidade de remiss�o.

A personagem da pe�a fora retirada do folheto Proezas de Jo�o Grilo, de Jo�o Ferreira de Lima. Retratado como um garoto sem atributos f�sicos, mas dotado de uma grande intelig�ncia. Grilo doutora-se em realizar golpes, transformando-se no mais famoso p�caro do Nordeste:

Jo�o grilo foi um ente

Que nasceu antes do dia

Criou-se sem formosura

Mas tinha sabedoria

E morreu depois das horas

Pela arte que fazia.

[...]

Jo�o Grilo tinha um costume

Pra toda parte que ia

Era alegre e satisfeito

No conv�vio da alegria

Jo�o Grilo fazia gra�a

Que todo mundo sorria.

(LIMA, 1979, p. 1. 5).

O Grilo, de Suassuna, ap�s sair de Portugal, integrou-se ao Nordeste do Brasil, povoando o imagin�rio brasileiro. Suas hist�rias s�o contadas, seus feitos repassados por jovens e velhos, por ricos e pobres. O riso que surge do rosto de quem ouve concorre com a alegria que nasce do semblante do contador. O c�mico existente nos contos, diversos folhetos, hist�rias infantis, pe�a de teatro, mant�m vivo, no leitor/espectador, o desejo de uma vida mais justa.

H�, no sert�o brasileiro, uma rela��o �ntima com o medievo. As hist�rias relatadas, os �causos� vivenciados, ainda exercem uma intimidade com costumes cristalizados na cultura local. Essa manuten��o de um pensamento, de certos costumes pode ser vista no texto de Suassuna:

A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, atrav�s da t�cnica do teatro �pico crist�o, com suas modalidades espec�ficas e seus personagens estereotipados. [...] sendo a cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca atua como uma esp�cie de fonte para o pr�prio romanceiro, onde o aspecto religioso se refor�a n�o s� por causa da religiosidade popular da regi�o como tamb�m pela op��o pessoal da cren�a do autor, convertido ao catolicismo na maturidade (VASSALLO, 1993, p. 29-30).

 

Esse tom moralizante proporciona um discurso, muitas vezes, manique�sta. H� o certo e o errado, o bem e o mal. Esse discurso, muito recorrente no medievo, encontra altos ecos ainda em v�rios lugares do Nordeste.

O texto de Suassuna, suas fontes no cordel e sua influ�ncia do catolicismo popular remetem � discuss�o empreendia por Deleuze e Guattari (1977, p. 25. 28) ao defenderem que

Uma literatura menor n�o � a de uma l�ngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma l�ngua maior.

[...]

As tr�s caracter�sticas da literatura menor s�o de desterritorializa��o da l�ngua, a ramifica��o do individual no imediato-pol�tico, o agenciamento coletivo de enuncia��o. Vale dizer que �menor� n�o qualifica mais certas literaturas, mas as condi��es revolucion�rias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).

O Auto da Compadecida faz parte de uma discuss�o sobre literatura universal e literatura regional. A concep��o de literatura menor � atribu�da levando-se em considera��o, como afirmaram Deleuze e Guattari, quest�es ideol�gicas, pol�ticas e lingu�sticas. O lugar de onde se fala � importante para o estabelecimento de uma classifica��o. O Nordeste � um lugar ideologicamente de subalternidades. Mesmo Suassuna, um erudito, � um escritor regional, segundo o c�none, por ter �cedido� � literatura popular.

Politicamente, o sert�o ainda � visto como um lugar de coron�is, cujo povo segue dominado, n�o pensa, n�o produz cultura. Todas as express�es feitas pelo sertanejo surgem como subcultura, reinando no campo do folclore, de uma tradi��o est�tica, portanto, morta.

Toda classifica��o � arbitr�ria. Todo hermetismo revela uma incompletude, uma insatisfa��o. Um texto n�o cabe em uma caixa, n�o se sente c�modo em um cofre. Os folhetos de cordel ou a pe�a Auto da Compadecida s�o textos regionais, mas n�o somente isso, tamb�m se constituem obras nacionais, mas tamb�m n�o s�o apenas isso. Um texto � o tudo e � o nada:

a obra somente � obra quando ela se converte na intimidade aberta de algu�m que a escreveu e de algu�m que a leu, o espa�o violentamente desvendado pela contesta��o m�tua do poder de dizer e do poder de ouvir (BLANCHOT, 1987, p. 29).

Uma obra � um comp�ndio com lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Esse que n�o respeita, necessariamente, as nomea��es e classifica��es oficiais. Literatura menor, universal, nacional, homoer�tica, de g�nero, �tnica. Talvez nomenclaturas que defendam um espa�o de fala, mas tamb�m que excluem tantas outras. Para o leitor, para mim, leitor, o texto � um mundo a ser descoberto, um espa�o que precisa ser nomeado. Sou eu, leitor, quem o fa�o. As palavras est�o ali, mas � preciso �penetrar surdamente� nesse ambiente � espera do que h� por vir. � imprescind�vel entregar-se a este mundo, a este tempo. Nesse instante, n�o importam c�nones, classifica��es s�o indiferentes. � a obra, sou eu e o mundo a desvendar.

 

 

4� retalho: o arquivo

 

O mundo processa uma s�rie de informa��es, produz conhecimentos que precisam ser guardados. Existe armazenamento para tudo na contemporaneidade. Em uma empresa, a vida de cada funcion�rio � arquivada. Na Igreja, h� o rol de membros de seus fi�is. No clube, existe a rela��o de associados com suas informa��es pessoais. Para cada livro publicado no Brasil, uma c�pia � envida para a Biblioteca Nacional. Enfim, o arquivo � lugar de lembran�a e de esquecimento. Representa o est�tico, o imut�vel. � a mem�ria e a tradi��o, o espa�o do tempo perdido.

Cada retalho � um arquivo em potencial. Cada taco fez parte de uma pe�a espec�fica de pano, que foi utilizado para a confec��o de uma roupa, cujas sobras foram relegadas a segundo plano. Mas at� chegar ao abandono, teve impressa em si a ideia de tecido, o prot�tipo de uma roupa. Ao ser utilizado em uma colcha de retalhos, adiciona a si mais uma impress�o, somada a tantas outras de diversos tacos.

Por isso, n�o compreendo o arquivo como algo morto, inerte. H�, certamente, a possibilidade de um conhecimento estar engavetado, abandonado, esquecido, mas o arquivo �, al�m disso, e talvez o mais importante, o lugar de onde se pode dispor de saberes.

Eu recorro � mem�ria, enquanto arquivo individual ou coletivo, para ativar conhecimentos. Ao faz�-lo, tal conhecimento � re-elaborado, re-visto. O car�ter de passividade n�o se sustenta. O pr�prio livro pode ser compreendido como um arquivo: �Um texto s� � um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composi��o e a regra de seu jogo. Um texto permanece, ali�s, sempre impercept�vel. (DERRIDA, 2005, p. 7).

Enquanto arquivo que, talvez nunca se mostre, o livro precisa ser tocado por mim, leitor, e vice-versa, n�o para dissec�-lo, mas para que eu, enquanto leitor, busque o meu saber, encontre as respostas para os meus questionamentos e, inclusive, suscite outras d�vidas sobre mim e sobre o mundo.

            Os arquivos s�o um dep�sito em estado de lat�ncia. O arquivista � quem lhe d� sentido. O livro � um ser � espera do encontro. O dom�nio do arquivo est� nas m�os de quem o ordena, daquele que o consulta. O livro foge do poder de seu autor, escapa por entre seus dedos. Ao autor, cabe o escrever, o finalizar a escrita. Sou eu, leitor, quem a continuo:

O dom�nio do escritor n�o est� na m�o que escreve [...]. O dom�nio � sempre obra da outra m�o, daquela que n�o escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do l�pis e de o afastar. Portanto, o dom�nio consiste no poder de parar de escrever, de interromper o que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade decisiva no instante (BLANCHOT, 1987, p. 15-16).

Crendo nessa concep��o de arquivo, como algo que exerce duas for�as concomitantes, de um lado, a for�a intr�nseca, que mant�m a tradi��o, do outro, a extr�nseca, que promove o novo, � que percebo no Auto da Compadecida um arquivo vivo, impregnado da presen�a de textos diversos, de �pocas diferentes, que dialogam com a pe�a teatral do autor paraibano.

Ler o texto de Suassuna � deparar-me com a influ�ncia do texto vicentino. Assim como o autor lusitano, Ariano Suassuna apoia seu texto na r�gida moral crist� medieval. H� uma rela��o entre a �trilogia� da Barca com o Auto, quando do julgamento dos personagens por seus atos cometidos por toda a vida. Em Gil Vicente, no entanto, reina um cristianismo oficial, n�o cedendo espa�o para inser��es de cren�as populares, como no texto brasileiro.

O onzeneiro, a alcoviteira, o fidalgo, o sapateiro s�o exemplos de classes sociais representadas n�O Auto da Barca do Inferno. N�O Auto da Barca do Purgat�rio, tem-se personagens da classe popular, como um pastor, uma mexeriqueira, um blasfemador. Aqui, o purgat�rio, espa�o intermedi�rio entre o c�u � o inferno, � o caminho do meio, a via alternativa para a senten�a divina. J� n�O Auto da Barca da Gl�ria, as personagens pertencentes � aristocracia, Papa, Bispo, Duque, s�o perdoadas mediante arrependimento.

Nesses textos, cada personagem personifica um pecado capital. Tais falhas precisam ser expurgadas do seio da sociedade, como meio de reeducar o ser humano. A religi�o como forma de ensino, elemento de repress�o do mal que habita o �ntimo do homem. H� toda uma constru��o, em Gil Vicente, para amedrontar os espectadores de suas pe�as. Diabos, inferno e purgat�rio, seres e espa�os m�ticos que povoam o imagin�rio medieval e que se materializam na vida cotidiana daquele per�odo:

Comen�a a declara��o e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per for�a havemos de passar em um de dous bat�is que naquele porto est�o, scilicet, um deles passa pera o para�so e o outro pera o inferno: os quais bat�is tem cada um seu arrais na proa: o do para�so um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro (VICENTE, 1965, p. 27).

O c�u, o inferno e o purgat�rio tamb�m s�o evocados no Auto da Compadecida. Mas em Suassuna, tais espa�os j� foram impregnados pelo catolicismo popular, permeados de influ�ncias do espiritismo, bem como das culturas negra e ind�gena:

O catolicismo popular se exprime mediante elementos culturais, e as culturas populares, por meio de elementos religiosos. A simbiose, em alguns casos, � t�o forte que n�o � f�cil distinguir o que pertence � religi�o do que pertence � cultura (GOIS, 2004, p. 11).

No Auto, � durante o julgamento que Jo�o Grilo exercita toda sua ret�rica. Convence Manuel a enviar os r�us para o Purgat�rio, Severino � direcionado ao c�u e ele, autor de todas as mentiras e trapa�as de Tapero�, usa de um discurso de autopuni��o para garantir a miseric�rdia da Compadecida:

A COMPADECIDA: Jo�o foi um pobre como n�s, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre com a nossa. N�o o condene.

[...]

Pe�o-lhe ent�o, muito simplesmente, que n�o condene Jo�o. [...]. D�-lhe ent�o outra oportunidade.

MANUEL: Como?

A COMPADECIDA: Deixe Jo�o voltar.

MANUEL: Voc� se d� por satisfeito?

JO�O GRILO: Demais. [...] (SUASSUNA, 2004, p. 170. 172).

O Amarelo ludibria as divindades, e seu retorno ao sert�o promete mais picardias, j� que justificava seus atos pela m� distribui��o de renda no pa�s, pela n�o efetiva��o de uma vida crist�, quando ele, o pr�ximo, era esquecido, humilhado por uma sociedade excludente.

A constru��o da personagem Jo�o Grilo segue o prot�tipo do her�i picaresco, ou anti-her�i, que sobrevive �s custas de seus pequenos golpes. O p�caro n�o pensa em um futuro distante, preocupa-se com o hoje, pois carece alimentar-se. Como est� �s margens da sociedade, o anti-her�i vinga-se de quem o exclui trapaceando, mentindo. N�o segue uma moral espec�fica, nem regras r�gidas, o p�caro a tudo subverte em nome de uma sobrevida di�ria. O Lazarillo de Tormes, texto an�nimo espanhol do s�culo XVI, traz ao mundo o prot�tipo de p�caros que se seguem ao longo da literatura burlesca mundial:

Vuestra Merced debe saber primero que todos me llaman L�zaro de Tormes, hijo de Tom� y de Antona P�rez, de Tejares, pueblo de Salamanca. Mi nacimiento fue dentro del r�o Tormes y por esta raz�n tom� mi apellido. Mi padre trabajaba en el molino de agua que hab�a en aquel r�o, desde hac�a m�s de quince a�os. Y ocurri� que all� le lleg� a mi madre una noche la hora de traerme al mundo, y naci yo. De manera que con verdad me puedo decir nacido en el r�o (LAZARILHO DE TORMES, 1994, p. 09).

L�zaro n�o possui for�a bruta, nem autonomia financeira. S� pode usar a intelig�ncia e a perspic�cia. O intrigante � ter que alimentar uma mentira com outra mentira. Ao ser descoberto, resta-lhe fugir e recome�ar seu ciclo de picardias.

No texto teatral de Suassuna, Grilo � o p�caro que habita o sert�o nordestino. V� a vida como um palco, onde precisa atuar para sobreviver. Conforme Derrida (2005, p. 12), �a escritura j�, �, portanto, encena��o�, por isso mesmo, a vida, que imita a arte em diversos momentos, deve adaptar-se �s mais diferentes situa��es. Grilo � o resultado do meio em que vive:

JO�O GRILO: Muito pelo contr�rio, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Tr�s dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dՇgua me mandaram. [...] a qualquer hora acerto com o patr�o! Eu conhe�o o ponto fraco do homem, Chic�! (SUASSUNA, 2004, p. 26).

A vingan�a � o �nico caminho a trilhar, visto que � o �nico que conhece. Ao conviver com avaros, ego�stas, hip�critas, torna-se tamb�m um, por meio de um refor�o negativo. O Amarelo age, no fim das contas, como um daqueles que trapaceia, pois v� nisso a �nica forma de viver e suportar as agruras do mundo em que vive.

De todas as formas, a avareza � o pecado capital mais combatido em textos com p�caros. Pela avareza, os homens perdem as suas almas, afastam-se da divindade, separam-se da religi�o. Pela sovinice, Harpag�o, da obra O Avarento, de Moli�re, promove casamentos arranjados para seus filhos, comanda um regime de conten��o de despesas em casa, racionando a comida, escondendo seu tesouro. � conhecido por todos pela sua mesquinhez, como afirma seu servo:

MESTRE TIAGO: Senhor, j� que assim quereis, dir-vos-ei francamente que tro�am de v�s por toda a parte; que vos lan�am, de todos os lados, mil zombarias e que s� ficar�o satisfeitos quando vos derem um pontap�; e inventam, constantemente, hist�rias sobre a vossa mesquinhice. [...]. Enfim, quereis saber? N�o se vai a lado nenhum que n�o se ou�a dizer de v�s o pior poss�vel. Sois o motivo de tro�a e de risos de todos, e s� vos tratam por avarento, mesquinho, desprez�vel usur�rio (MOLI�RE, 1971, p. 62).

O Padeiro e sua Esposa s�o os maiores sovinas que Tapero� j� viu. Exploram seus empregados, Grilo e Chic�, que, por sua vez, buscam explorar a quem encontram. Mas h� avareza em outros personagens do Auto da Compadecida. O Padre e o Bispo guerreiam pelo testamento do cachorro. Severino invade a vila e saqueia a todos. Pela avareza, o autor observa os outros pecados aproximarem-se do homem e tomarem conta de seu esp�rito. Da avareza do casal de patr�es, surge o sentimento de vingan�a de Grilo, que s� possui sua mente e sua voz como armas para combater os mais fortes:

JO�O GRILO: � homem sem vergonha! [Chic�][103] Inda pergunta? Est� esquecido que ela [A mulher do padeiro][104] deixou voc�? Est� esquecido da explora��o que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que s�o o c�o s� porque enriqueceram, mas um dia h�o de me pagar. E a raiva que eu tenho � porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. At� carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, Jo�o Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo (SUASSUNA, 2004, p. 39).

O final do texto de Ariano Suassuna aponta para uma poss�vel remiss�o de Jo�o Grilo, mas ele retorna mais pobre do c�u do que quando fora julgado. Na verdade, nesse instante, o autor est�, atrav�s do Palha�o, o narrador e condutor da pe�a, chamando a aten��o do expectador, para que este poss�vel Grilo que esteja no recinto afaste-se de uma vida de picardias.

Esses retalhos, acrescidos � colcha do Auto da Compadecida, s�o exemplos de um arquivo que se pretende m�vel, dialogando com outros tacos, conversando com o leitor.

Em cada retalho montado, um rastro estelar me chega aos olhos. Em cada imbricamento de textos, uma nova raiz fasciculada gera outras conex�es textuais, musicais, visuais, enfim, prazerosamente, abro o arquivo e retiro dele a coberta de taco do Auto da Compadecida, com ela, tantos outros ecos de tantas outras hist�rias em desprop�sitos sem fim.

 

 

5� retalho: a semiologia

 

Segundo Blanchot (1987, p. 12),

A obra liter�ria � solit�ria: isso n�o significa que ela seja incomunic�vel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l� entra nessa afirma��o da solid�o da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solid�o.

O texto liter�rio, solit�rio por natureza, pode aproximar-se de outras linguagens. Dentre essas, a cinematogr�fica. Pelo olhar do cinema, a literatura ganha outros olhares, novas sensa��es, outros p�blicos. O Auto da Compadecida � um dos textos do s�culo XX mais recorridos � grande tela. Pelas lentes das c�meras, Grilo e seus companheiros recebem interpreta��es pela caneta dos roteiristas e adquirem semblantes conhecidos em todo o pa�s e tamb�m fora dele.

A primeira adapta��o f�lmica, A Compadecida, foi dirigida por George Jonas e estrelada por Regina Duarte, Antonio Fagundes e Armando Bogus. � a adapta��o mais parecida com o texto liter�rio e seu roteiro foi escrito pelo pr�prio Suassuna, que acompanhou toda a filmagem, aprovando-a.

Mas de todas as tr�s adapta��es, essa, de 1969, � a que possui o enredo mais arrastado, j� que h� uma tentativa clara de fazer teatro no cinema. Todas as a��es da pe�a s�o transpostas para a pel�cula, mas o time do humor no teatro n�o segue o mesmo tempo na frente das c�meras.

A segunda adapta��o, de 1987, foi dirigida por Roberto Farias. Intitulada Os Trapalh�es no Auto da Compadecida, foi protagonizada pelo quarteto de humoristas famoso na televis�o e no cinema com seus filmes leves e de riso frouxo.

Com a inten��o de agradar a cr�tica, Ariano Suassuna foi convidado por Renato Arag�o para coassinar o roteiro da adapta��o, que mant�m a figura do Palha�o, como o narrador que unifica os tr�s enredos: a morte do cachorro, o gato que descome dinheiro e o Julgamento Final. Contudo, o p�blico n�o assimilou o filme estar associado a um texto �s�rio�. Apesar de ter sido exibido, inclusive em Portugal, foi uma das menores bilheterias dos Trapalh�es, embora tenha recebido boas cr�ticas.

O texto de Suassuna foi adaptado para a televis�o em parte, inserido em novelas, montado para o teatro incont�veis vezes. Tem trechos de seu texto utilizado em livros did�ticos como exemplo de literatura dram�tica. Sua linguagem leve � assimilada com facilidade pelos leitores e espectadores.

Em 2000, por meio de uma redu��o da micross�rie exibida um ano antes, estreou nos cinemas brasileiros O Auto da Compadecida[105], dirigida por Guel Arraes. Protagonizada por Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Melo, Marco Nanini e outros, a pel�cula foi uma das mais vistas naquele ano.

Guel Arraes e os roteiristas Adriana Falc�o e Jo�o Falc�o acrescentam ao texto de Suassuna trechos de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, al�m de personagens de outras pe�as do autor paraibano, como Torturas de um cora��o. O roteiro � �gil e prende o espectador atrav�s do riso gerado pelas ast�cias de Grilo e pela covardia de Chic�.

Essa �ltima adapta��o � a mais popular de todas. Embora suavize o discurso manique�sta do texto liter�rio, mant�m com este um di�logo constante, respeitando as diferen�as de signos que os constituem.

Tais filmes tamb�m contribuem para formar a colcha de retalhos com suas especificidades. Cada roteiro, cada leitura do diretor, cada interpreta��o dos autores n�o reduz, como muitos cr�ticos pensam, a obra liter�ria ou por que o filme n�o mant�m uma pretensa fidelidade, sendo devedor da literatura. Ao contr�rio, conversa com esta. N�o h� o superior e o inferior, h� os diferentes, e o ser�o sempre, como cada retalho de pano � um do outro. Para Robert Stam,

N�s ainda podemos falar em adapta��es bem feitas ou mal feitas, mas desta vez orientados n�o por no��es rudimentares de �fidelidade� mas sim, pela aten��o � �transfer�ncia de energia criativa�, ou �s respostas dial�gicas espec�ficas, a �leituras� e �cr�ticas� e �interpreta��es� e �re-elabora��o� do romance original, em an�lises que sempre levam em considera��o a lacuna entre meios e materiais de express�o bem diferentes (STAM, 2006, p. 51).

Retomo agora a coberta de taco que venho cosendo diligentemente. Escolho cada retalho, os mais variados, somo-o a outros. Nessa colcha, somam-se livros, pe�as de teatro, contos, m�sicas, filmes. Nessa profus�o de cores, escritas e sons, todos coexistem unidos entre si, sem a pretens�o de estabelecer hierarquias.

 

 

6� retalho: o retalho por vir

 

Em Edward W. Said, encontro a afirma��o:

Longe de serem algo unit�rio, monol�tico ou aut�nomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos �estrangeiros�, alteridades e diferen�as do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).

Todo retalho que li, seja o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, sejam O Avarento, de Moli�re, ou O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, ou ainda as Barcas de Gil Vicente, ou O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro, O castigo da soberba, folhetos de cord�is, sejam A Compadecida, Os Trapalh�es no Auto da Compadecida, O Auto da Compadecida, filmes brasileiros. Sejam Derrida, Foucault, Blanchot, em tudo que leio, vejo uma manifesta��o cultural. O homem � um ser que produz cultura em tudo que faz.

Se creio nisso, abomino a ideia de cultura superior dominando as outras, mas acredito no embate cultural, numa �nsia constante de tomada de lugar entre os expoentes culturais.

Defendo um maior espa�o para as culturais subalternizadas, ditas populares, mas tamb�m visualizo as constantes trocas culturais. Vejo que o Eu quer estabelecer-se, mas observo que isso se d� em conson�ncia com o Outro, para formar, muitas vezes o N�s, o Tu, o Eles.

A semelhan�a se d� por meio da diferen�a, porque cada homem � um ser que se conhece, outro que se d� a conhecer e muitos seres estranhos povoando os espa�os vazios da exist�ncia. Espa�os muitas vezes ocupados pela literatura, que � a materializa��o desses seus que vagueiam por a� � procura da plenitude do Nada.

Cresci em meio aos livros, mas a maior li��o que aprendi � que os livros � que est�o dentro de mim. Eu sou uma colcha de retalhos, eu sou um homem feito de peda�os, belos tacos que, unidos, formam o que sou. N�o me sinto formado, n�o pretendo ser o dono da verdade, j� que as creio m�ltiplas, e persigo-as e as uso, uma hoje, outra amanh�. E disponho de cada retalho, e retomo meus retalhos, e me leio, � procura daquilo que sou e tamb�m do que nunca virei a ser.

Estou aqui, eu, � espera dos pr�ximos retalhos, dos textos de frui��o, das leituras de prazer. Espero fazer minhas conex�es constelat�rias, meus enxertos rizom�ticos. Eu, assim como o menino de Manuel de Barros, levo �gua na peneira, molhando-me nela, sentindo-a, sentindo-me.

Encontro-me aqui, nesse instante, com um peda�o de colcha, inacabada, uma s�rie de retalhos, agulha e linha nas m�os.

 

 

Refer�ncias

 

BARROS, Leandro Gomes de. O cavalo que defecava dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.

 

_________. O dinheiro (O testamento do cachorro). Fortaleza: Tupynanquim, 2005.

 

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 5. ed. S�o Paulo: Perspectiva, 2010.

 

BLANCHOT, Maurice. O espa�o liter�rio. Trad. �lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

 

_________. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Mois�s. S�o Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

MOTA, Leonardo. Castigo da soberba. In: _________. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1955.

 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F�lix. Mil plat�s – capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aur�lio Guerra Neto e C�lia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

 

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, F�lix. Kafka – por uma literatura menor. Trad. Julio Guimar�es. Rio de Janeiro: imago, 1977.

 

DERRIDA, Jacques. A farm�cia de Plat�o. Trad. Rog�rio da Costa. S�o Paulo: Iluminuras, 2005.

 

_________. Mal de arquivo: uma impress�o freudiana. Trad. Cl�udia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumar�, 2001.

 

GOIS, Jo�o de Deus. Religiosidade popular. S�o Paulo: Edi��es Loyola, 2004.

 

KRISTEVA, Julia. Introdu��o � seman�lise. S�o Paulo: Perspectiva, 1974.

 

LAZARILLO de Tormes. Madrid: Santillana/Universidad de la salamanca, 1994.

 

LIMA, Jo�o Ferreira de. Proezas de Jo�o Grilo. S�o Paulo: Luzeiro, 1979.

 

MOLI�RE. O Avarento. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

 

STAM, Robert. Teoria e pr�tica da adapta��o: da fidelidade � intertextualidade. Ilha do Desterro, Florian�polis, n. 51, jul./dez. 2006, p. 19-53.

 

SAID, Edward. W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. S�o Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. comemorativa de 50 anos. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

 

VASSALO, L�gia. O sert�o medieval: origens europ�ias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

 

VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irm�o, 1965.

 

 

[Recebido: 23 ago 2021]



[101] Possui gradua��o em Licenciatura em Letras Vern�culas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1998), mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2006) e doutorado em Letras pela Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente � professor Titular A da Universidade do Estado da Bahia e professor do Mestrado Profissional em Letras da Universidade do Estado da Bahia, atuando, ainda como Diretor do Departamento de Ci�ncias Humanas, Campus V, da UNEB. Tem experi�ncia na �rea de Letras, com �nfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura e outras artes, identidade, afrodescend�ncia e cultura. 

 

[102] Dispon�vel em: www.poetriz.wordpress.com/2006/01/11/0-menino-que-carregava-agua-na-peneira/ Acesso em: 3 jan. 2012, �s 15h.

[103] Acr�scimo nosso.

[104] Acr�scimo nosso.

[105] Dispon�vel em: www.atualfilmes.onsugar.com/Download-O-Auto-da-Compadecida-6193160. Acesso em: 15 nov. 2010, �s 16h.