A potica do retalho

 

 

The poetic of retail

 

 

Joo Evangelista do Nascimento Neto[101]

https://orcid.org/0000-0003-4937-7311

 

 

Resumo: Neste artigo, discute-se a construo de leituras tendo como analogia uma colcha de retalhos. A partir de cada retalho – constelao, rizoma, intertextualidade, arquivo e semiologia –, possvel traar os percursos de compreenso do texto, tendo como exemplo o Auto da Compadecida, obra que alinhava traos da cultura popular e seu dilogo interartes. Essa potica da leitura aqui apresentada constitui-se somente enquanto uma das mltiplas possiblidades de interao com o texto literrio. Cada leitor, certamente, costurar seu cobertor de leituras.

Palavras-chave: Potica; Leitura; Popular.

 

 

Abstract: In this article, the construction of readings is discussed using a patchwork quilt as an analogy. From each patch: constellation, rhizome, intertextuality, archive and semiology, it is possible to trace the paths of understanding the text, taking, as an example, the Auto da Compadecida, a work that aligned traits of popular culture, and its interart dialogue. This poetics of reading presented here constitutes only one of the multiple possibilities of interaction with the literary text. Every reader will, of course, sew their blanket of readings.
Keywords: Poetics; Reading; Popular.

 

 

Como fazer uma coberta de taco (ou colcha de retalhos)

 

Material necessrio:

 

- Pedaos de panos os mais variados possveis;

- Linha de costura;

- Agulha;

- Tesoura.

 

Instrues:

 

Aps ter mo todos os materiais, separa os retalhos de pano e, com a tesoura, acerta os pedaos para que fiquem com tamanhos semelhantes. Depois, com linha e agulha, costura um pedao a outro para materializar-se, enfim, a coberta. O tamanho dela depende de sua escolha em ser ela para cobrir uma cama de casal ou de solteiro, o que pode ser medido no prprio leito. O toque final feito costurando-se as extremidades do cobertor, a fim de no desfiar ou rasgar. A est pronta a coberta, muito usada no vero por ser leve, alm de deixar o ambiente agradvel por suas multicores.

 

 

De como uma coberta de taco pode ter relao com as leituras

 

Ler um processo contnuo e de carter somatrio. A leitura, termo genericamente usado no singular, na verdade, feita de leituras. Se um homem resultado de suas leituras, essas surgem em decorrncia das mltiplas escritas, de inmeros textos que se assomam s leituras da vida, s leituras do Outro e de Si.

Para se fazer uma coberta de taco, necessrio adquirir uma srie de retalhos. Do mesmo modo, para se estabelecer um homem, preciso ver o mosaico de leituras que o construram.

Esse artigo constitui-se em um processo de costura, dia aps dia, quando da apropriao de cada retalho, de cada texto, unido a outro artesanalmente, com linha e agulha, como o raciocnio humano. Este texto representa as semelhanas afetivas do leitor com suas referncias de vida, suas escolhas literrias, assim como a costureira estabelece uma relao afetuosa com a colcha que elabora com o esforo de suas mos.

Cada taco, cada retalho somado a outro representa a multiplicidade de eus que permeiam o leitor, que habitam o escritor. O resultado final da coberta, bela por sua variedade, a analogia ao leque de leituras de um ser humano.

O homem contemporneo o ser detentor de uma identidade mltipla, lquida, ps-moderna. Esse homem fragmentado, esse ser estilhaado, ao contrrio do que os mais tradicionais podem supor, no deve ser visto com desvantagem; ao contrrio, a vida humana um sucessivo catar de fragmentos, um constante trabalho de alfaiataria. O que est rasgado pode ser novamente costurado. Se o retalho est desgastado, pode ser cerzido. O homem um ser inacabado, em construo. Cada retalho que adquire em sua vida pode ser acrescido a seu cobertor. Essa manta no precisa ter tamanho exato, determinado. sempre possvel adicionar mais um taco a ela.

O narrador, nesse instante, pede licena ao leitor para usar a 1 pessoa do singular, j que ele falar de si prprio. Assim, o ele deve ceder espao ao eu, para particularizar aquilo que relata pela sua memria, o instrumento de que dispe, para descrever o que sente, quem , mesmo, felizmente, sendo um produtor inacabado, ainda h mais para trilhar, e pretende, com xito, acrescentar mais tacos colcha da sua vida.

 

 

1 retalho: a constelao

 

Eu inicio o relato, em primeira pessoa, citando O menino que carregava gua na peneira, de Manoel de Barros:

Tenho um livro sobre guas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava gua na peneira.
A me disse que carregar gua na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmos.
A me disse que era o mesmo que catar espinhos na gua
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropsitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

 

[...]

 

A me reparava o menino com ternura.
A me falou: Meu filho voc vai ser poeta.
Voc vai carregar gua na peneira a vida toda.
Voc vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vo te amar por seus despropsitos.[102]

Carregar gua na peneira, criar peixe no bolso, costurar pedaos de panos. A priori, atividades vs, sem fins prticos ou de pouca valia. Mas pensa dessa forma quem nunca sentiu o prazer de levar a gua na peneira e molhar-se com ela, refrescando-se num dia quente de vero. Quem considera um ato insano criar um peixe no bolso, no experimentou a satisfao de peg-lo e senti-lo perto, sempre junto, como um amigo que est ali mo para todo intento. Aquele que pondera ser loucura costurar tacos de panos sem fim, no pressente que de meros pedaos de restos de tecidos pode surgir uma colcha capaz de aquecer algum numa noite mais fria.

Eu persigo os despropsitos da literatura, encanto-me com eles, seduzo-me por eles. Pela literatura, possvel olhar alm, porque se pode enxergar para dentro. Atravs do texto literrio, eu tambm cato os espinhos na gua que levo em minha peneira (creio que todos os seres humanos possuem suas peneiras com gua para levar por sua vida, mas alguns a abandonam no meio do caminho). Eu sei que o mundo contemporneo, com sua velocidade, seu tempo reduzido, exige, de cada um, praticidade, mas eu insisto em parar, muitas vezes, para recolher tais espinhos, mesmo furando os dedos, da peneira que levo, em meio gua que dela escorre e que torno a encher. No me esquivo da tarefa de pegar os espinhos, nem do trabalho de buscar remdio para sarar as feridas, paradoxalmente, na mesma peneira e com a mesma gua.

Esses despropsitos enchem a alma, conduzem a vida, e do olhos de lince. Olhar para o interior o mais difcil tipo de viso que existe. Olhar para dentro enxergar a si prprio, com todas as suas idiossincrasias, reconhecendo os seus eus. Ao ver intrinsecamente, eu aprendo a ver melhor o Outro.

Da, com agulha e linha, eu costuro a minha coberta. Todo dia, eu junto a ela um retalho diferente do outro que juntei anteriormente. Diferentemente de Penlope, ao esperar seu amado, a coberta no desfeita, mas acrescida, complementada. O cobertor um emaranhado de tecidos, como o cu uma profuso de estrelas. Ao olhar a abbada celeste, no sei quando uma estrela est viva, ou ali apenas o seu brilho que chega at mim, mas ela, a estrela, aproxima-se, lana sua luz, deixa seu rastro.

Olhar estrelas no cu tem relao com fazer uma coberta de taco. Perceber as inmeras estrelas que habitam o firmamento, observar sua luz, determinar cada origem, to despropsito quanto procurar a origem de cada retalho. por isso que a literatura se prope aos despropsitos. A cincia esquiva-se daquilo que, para ela, irracional, procura provar e comprovar suas teorias, seus tratados. A literatura busca o ser, aposta no sentir. Nesses despropsitos, eu me lano, eu me perco no meio das estrelas, eu me absorvo por entre os pedaos de pano. Ao perder-me, encontro-me, para perder-me novamente, a fim de conhecer outras facetas de mim mesmo.

Para Maurice Blanchot, a Constelao nasce daquilo que no conhecido, do espao da prpria obra. E falo de estrelas e assemelho-as literatura. Esse vazio deixado por toda obra o espao a ser preenchido pelo leitor. Sou eu, leitor, que preciso seguir os rastros de luz deixados pelos textos, que so fachos no lineares, so luzes que fazem ziguezagues, que se entrelaam com outras fascas, como os textos fazem relaes a outros textos, como leituras da contemporaneidade dizem sobre textos medievais, assim como as pginas escritas podem falar tanto do homem, dialogar comigo, sobre mim. Para o autor,

a essncia da literatura escapa a toda determinao essencial, a toda afirmao que a estabilize ou mesmo que a realize; ela nunca est ali previamente, deve ser sempre reencontrada ou reinventada. (BLANCHOT, 2005, p. 294).

Como os pedaos de pano precisam ser reinventados para tornarem-se, juntos, mas sem ordem a ser seguida, sem estabelecimento de comeo ou fim, apenas uma combinao aleatria, uma colcha; as estrelas so reinventadas pelo rastro que deixa no cu. A literatura deixa seus rastros. O leitor segue-os, refazendo os caminhos, abrindo picadas, forjando estradas. Muitos desses caminhos no so abertos pelo escritor, mas pelo prprio leitor, ao seguir os rastros que ficam, ao sair procura dos retalhos, mas tambm seguindo sua intuio, seus anseios, enxergando-se atravs dos rastros, materializando-se na juno de cada taco de pano, no processo de coautoria do texto: A leitura operao, obra que se cumpre suprimindo-se, que se prova confrontando-se com ela mesma e se suspende ao mesmo tempo que se afirma (BLANCHOT, 2005, p. 357-358).

A leitura um estar em movimento ao permanecer esttico. Um devir interior, que promove a transformao do mundo. Meu mundo se suprime, comprime-se diante do texto, mas expande-se, num processo contrrio, como o universo o faz (ou fez um dia, segundo alguns cientistas). o inverso do reverso de mim, abenoado pelos deuses da literatura, plainando sobre mim, a sussurrar em meus ouvidos cantos poticos de amor, louvores inquietude de meu ser, mas tambm amaldioado pelos demnios que habitam em mim, que voam sob minhalma, defenestrando meus sonhos, enxertando novos ideais. Ler um texto sentir as palavras com o corao divino ressoarem na pele com prazer diablico.

Segundo Roland Barthes,

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, d euforia; aquele que vem da cultura, no rompe com ela, est ligado a uma prtica confortvel da leitura. Texto de fruio: aquele que pe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez at um certo enfado), faz vacilar as bases histricas, culturais, psicolgicas do leitor, a consistncia de seus gestos, de seus valores e de suas lembranas, faz entrar em crise sua relao com a linguagem (BARTHES, 2010, p. 20-21).

Para o terico, a Babel literria benquista, bem-vinda, recebida com festa, com glrias. O texto de prazer abre espao para o texto de fruio. Um deixa o leitor acomodado, o outro cutuca, incomoda, tira o sono. O primeiro nina o leitor em suas pginas, o segundo tira-lhe o sono. H textos que exercem as duas funes: eles apresentam-me os meus deuses e diabos cotidianos. Esses textos no podem ser classificados genericamente, dependem do olhar pessoal de cada leitor. E assim, vai-se fazendo a literatura, com linha de algodo mercerizado ou linha mista (mais usadas em costuras) e uma agulha para acolchoar (que costura com mais preciso e rapidez), ideologias so questionadas, novos pensamentos costurados, entrelaados a tantas outras ideias, alegrias somadas a tristezas vividas. Assim sou eu, assim o ser humano, assim a literatura, a mais perfeita criao do imperfeito homem.

 

 

2 retalho: o rizoma

 

O manguezal um ecossistema costeiro, que transita entre os ambientes terrestre e marinho. Existe nas regies tropicais e subtropicais, possvel encontr-lo em foz de rios. No mangue, encontram-se vegetao tpica e vida animal em abundncia, aves, peixes, mamferos, rpteis e invertebrados, como os apreciados siris e caranguejos. Seu solo rico em nutrientes, por isso as rvores desenvolvem-se com facilidade, mas, com solo lodoso, as plantas precisam adaptar-se, para tal, utilizam-se de razes areas, para facilitar a oxigenao, mas bem fincadas no cho.

Na botnica, as razes que se fasciculam so chamadas de rizomas. Os rizomas funcionam como rgos de reproduo dos vegetais. Da raiz principal, surgem outras razes em diferentes direes, fazendo brotar outras plantas. Em um momento, ao leigo, difcil perceber qual a raiz principal, j que outras germinam dela. Assim a raiz da vegetao do manguezal. Ela um emaranhado de razes, que se confundem umas as outras. Num mangue, no h, primeira vista, como estabelecer uma separao. O mangue resiste pela unio de sua vegetao, pela fora de suas razes que, juntas, so mais fortes. O mangue resiste gua e ao solo arenoso, fluido. O manguezal um local de reproduo de vrias espcies animais e vegetais, atuando como manuteno do equilbrio da natureza. O mangue fora vital, seus rizomas, com mltiplas entradas, geram outras vidas, sustentam existncias. A rvore o que se v, aquilo que se contempla majestosa, mas ela nada seria sem a sua raiz, principalmente numa regio de manguezal.

Uma colcha de retalhos como um manguezal. Cada pedao de pano, rizomtico, une-se a outro, tambm rizomtico, formando um todo onde cada parte ainda perceptvel, mas indissocivel. Numa coberta de taco, os elementos, de tamanhos diferentes, de cores peculiares, de estampas especficas, simbolizam aquilo que o mangue evidencia: a unio das diferenas. Conforme Jlia Kristeva, todo texto um mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de outro texto (KRISTEVA, 1974, p. 64). Todo texto , portanto, como as razes de um manguezal, ou como uma colcha de retalhos.

Uma coberta de taco um texto, mltiplo em sua unidade, formada por rizomas, seguindo o conceito de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Para os autores,

uma das caractersticas mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre mltiplas entradas [...]. Ele no feito de unidades, mas de dimenses, ou antes de direes movedias.

[...]

Um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22. 37).

Um texto rizomtico remete o leitor a outros textos que o direcionam a demais leituras, numa estrutura fascicular interminvel. Meu contato com um rizoma se deu por intermdio da microssrie O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, que foi ao ar em 1999, pela Rede Globo. Com quatro captulos, a adaptao do texto teatral, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado pela primeira vez em Recife no ano de 1957, acenou para mim como um intertexto que pulsava vida, que possua fora e falava aos meus ouvidos, tocava na minha alma.

Percebi, durante os quatro captulos da srie, a Literatura de Cordel emergindo das vozes de cada personagem. Em cada situao narrada, o cheiro do serto nordestino passeava por meu corpo, subia as minhas narinas, chegava ao meu crebro. Mas cada texto de cordel usado por Suassuna, em sua pea, tambm evoca outros textos. O prprio autor paraibano deixa-se tomar, em sua pena, por obras portuguesas, como as do autor Gil Vicente, ou de resqucios cavalheirescos de Miguel de Cervantes, ou ainda do humor social de Molire. adaptao, para a televiso e posteriormente para o cinema, ainda se acresce William Shakespeare. Enfim, o rizoma se faz com o dilogo sem comeo estabelecido, sem fim aparente, como as razes de um manguezal, como os tecidos que formam uma colcha de retalhos.

 

 

3 retalho: a intertextualidade

 

Se fosse possvel resumir o Auto da Compadecida em uma s palavra, esta seria, certamente, a intertextualidade. Os textos de cordis, fonte primeira de inspirao do autor, ajudam na temtica de cada ato da pea.

O folheto O dinheiro (O testamento do cachorro), de Leandro Gomes de Barros, possui, como enredo, as peripcias de um dono para sepultar seu co com um ritual fnebre. O texto, de cunho religioso e moralizante, esfora-se por associar a imagem da avareza e da ganncia como os males da humanidade:

O dinheiro neste mundo

No h fora que o debande,

Nem perigo que o enfrente,

Nem senhoria que o mande.

Tudo est abaixo dele

S ele quem grande.

[...]

Eu j vi narrar um fato

Quer fiquei admirado,

Um sertanejo me disse

Que nesse sculo passado

Viu enterrar um cachorro

Com honras de um potentado.

(BARROS, 2005, p. 1. 5).

Por dinheiro, que constava no testamento deixado pelo co, o Vigrio da parquia e o Bispo concordam com a celebrao estapafrdia. O enterro teve ladainha e encomendao do corpo. Segundo o narrador, nem todo ser humano tinha o privilgio de tantas honrarias em seu sepultamento. Aqui, a Igreja condenada por seus desvios. Embora no haja um desejo de destruir a instituio, seus membros so expostos ao ridculo, a fim de haver um conserto desses que deveriam ser os guias espirituais do povo.

            Ariano Suassuna adapta o folheto de Leandro Gomes de Barros acrescendo a ele a celebrao do fretro em latim, como exigncia da esposa do padeiro:

JOO GRILO: Chic, o padre tem razo. Quem vai ficar engraado ele e uma coisa benzer o motor do Major Antnio Moraes e outra benzer o cachorro do Major Antnio Moraes.

PADRE (mo em concha no ouvido): Como? [...]. E o dono do cachorro de quem vocs esto falando Antnio Moraes? [...]. No vejo mal nenhum em se abenoar as criaturas de Deus (SUASSUNA, 2004, p. 23-24).

Suassuna intensifica a denncia contra o clero, pois, para o autor, a religio um meio de reforma social. Protestante convertido ao catolicismo, o teatrlogo condena os vcios humanos, atribuindo-lhes as causas da degenerescncia tica e moral humana.

Em A histria do cavalo que defecava dinheiro, tambm de Leandro Gomes de Barros, a histria se passa entre dois compadres, de situao financeira bastante distinta. O pobre vinga-se do rico por sua sovinice, vendendo-lhe um cavalo que defeca moedas:

Na cidade de Maca

Antigamente existia

Um duque velho invejoso

Que nada o satisfazia

Desejava possuir

Todo objeto que via

Esse duque era compadre

De um pobre muito atrasado

Que morava em sua terra

Num rancho todo estragado

Sustentava seus filhinhos

Na vida de alugado

[...]

Foi na venda de l trouxe

Trs moedas de cruzado

Sem dizer nada a ningum

Para no ser censurado

No fiof do cavalo

Foi o dinheiro guardado.

(BARROS, 2006, p. 1-2).

Como forma de punio pela sovinice, o compadre pobre atia a cobia do amigo, vendendo-lhe o animal que descome dinheiro, em seguida, uma rabeca que ressuscita mortos. Desse modo, obtm sua vingana e livra-se do vizinho avaro.

No Auto da Compadecida, o cavalo foi trocado, por questes de montagem teatral, por um gato. A rabeca transforma-se em gaita e utilizada na cena em que Severino de Aracaju intenta matar Grilo e seu companheiro Chic:

GRILO: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chic.

CHIC: Na minha, no!

GRILO: Deixe de moleza, Chic. Depois eu toco na gaita e voc fica vivo de novo! [Murmurando, a Chic.] A bexiga, a bexiga! (SUASSUNA, 2004, p. 113).

A artimanha para enganar Severino no d certo. Embora iludido em ver o Padre Ccero, e retornar vida, o cabra do Capito mata Grilo, dando origem ao ltimo ato da pea, o julgamento das personagens.

No texto O Castigo da soberba, annimo, o baro e sua esposa so julgados por sua avareza, tendo seus atos expostos no julgamento celestial. Os dois personagens, no folheto, encarnam os sete pecados capitais, sendo defendidos por Nossa Senhora:

(Alma) – Rainha, Me Amorosa,

Esperana dos mortais,

Quem recorre a vosso nome

Sei que no desamparais,

Eu, pegando em vossos ps

Sei que no largo eles mais.

 

(Maria) – Pois, alma, demora a,

Enquanto eu vou consultar,

Fazer pedido a meu Filho,

Ver se eu posso te salvar,

Ver se teus grandes pecados

Tem grau de se perdoar.

(Co) – Como esta tal Maria

Eu mesmo nem nunca vi:

Uns pedem por interesse,

Pedem porque pra si,

Mas ela pede pros outros,

No se enjoa de pedir...

(MOTA, 1955, p. 175).

A alma consegue a justificao atravs da sua advogada de defesa, Nossa Senhora, que intercede junto ao juiz, Jesus Cristo, a fim de obter a redeno de seu cliente, o homem. O Co, promotor nesse julgamento, envergonhado e no logra xito em seus intentos.

No texto suassuniano, a cena do julgamento dura todo o terceiro (e ltimo) ato da pea. Todos os personagens ficam diante do juiz Manuel que, negro, ainda encontra espao para discutir questes de discriminao racial:

 

De repente, Joo ajoelha-se, como que levado por uma fora irresistvel e fica com os olhos fixos fora. Todos vo-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para no ver o Cristo que vem entrando. um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura. Todos esto de joelhos, com o rosto entre as mos.

ENCOURADO: [de costas, grande grito, com o brao ocultando os olhos] Quem ? Manuel?

MANUEL: Sim, Manuel, o Leo de Jud, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vo ser julgados (SUASSUNA, 2004, p. 136-137).

O ato do julgamento conta com Joo Grilo intermediando a ponderao feita pelo Encourado para cada ru, a saber: o Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa. Severino livra-se do inferno por seu passado de sofrimento. E Grilo consegue retornar ao serto, angariando uma segunda oportunidade de remisso.

A personagem da pea fora retirada do folheto Proezas de Joo Grilo, de Joo Ferreira de Lima. Retratado como um garoto sem atributos fsicos, mas dotado de uma grande inteligncia. Grilo doutora-se em realizar golpes, transformando-se no mais famoso pcaro do Nordeste:

Joo grilo foi um ente

Que nasceu antes do dia

Criou-se sem formosura

Mas tinha sabedoria

E morreu depois das horas

Pela arte que fazia.

[...]

Joo Grilo tinha um costume

Pra toda parte que ia

Era alegre e satisfeito

No convvio da alegria

Joo Grilo fazia graa

Que todo mundo sorria.

(LIMA, 1979, p. 1. 5).

O Grilo, de Suassuna, aps sair de Portugal, integrou-se ao Nordeste do Brasil, povoando o imaginrio brasileiro. Suas histrias so contadas, seus feitos repassados por jovens e velhos, por ricos e pobres. O riso que surge do rosto de quem ouve concorre com a alegria que nasce do semblante do contador. O cmico existente nos contos, diversos folhetos, histrias infantis, pea de teatro, mantm vivo, no leitor/espectador, o desejo de uma vida mais justa.

H, no serto brasileiro, uma relao ntima com o medievo. As histrias relatadas, os causos vivenciados, ainda exercem uma intimidade com costumes cristalizados na cultura local. Essa manuteno de um pensamento, de certos costumes pode ser vista no texto de Suassuna:

A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, atravs da tcnica do teatro pico cristo, com suas modalidades especficas e seus personagens estereotipados. [...] sendo a cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca atua como uma espcie de fonte para o prprio romanceiro, onde o aspecto religioso se refora no s por causa da religiosidade popular da regio como tambm pela opo pessoal da crena do autor, convertido ao catolicismo na maturidade (VASSALLO, 1993, p. 29-30).

 

Esse tom moralizante proporciona um discurso, muitas vezes, maniquesta. H o certo e o errado, o bem e o mal. Esse discurso, muito recorrente no medievo, encontra altos ecos ainda em vrios lugares do Nordeste.

O texto de Suassuna, suas fontes no cordel e sua influncia do catolicismo popular remetem discusso empreendia por Deleuze e Guattari (1977, p. 25. 28) ao defenderem que

Uma literatura menor no a de uma lngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior.

[...]

As trs caractersticas da literatura menor so de desterritorializao da lngua, a ramificao do individual no imediato-poltico, o agenciamento coletivo de enunciao. Vale dizer que menor no qualifica mais certas literaturas, mas as condies revolucionrias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).

O Auto da Compadecida faz parte de uma discusso sobre literatura universal e literatura regional. A concepo de literatura menor atribuda levando-se em considerao, como afirmaram Deleuze e Guattari, questes ideolgicas, polticas e lingusticas. O lugar de onde se fala importante para o estabelecimento de uma classificao. O Nordeste um lugar ideologicamente de subalternidades. Mesmo Suassuna, um erudito, um escritor regional, segundo o cnone, por ter cedido literatura popular.

Politicamente, o serto ainda visto como um lugar de coronis, cujo povo segue dominado, no pensa, no produz cultura. Todas as expresses feitas pelo sertanejo surgem como subcultura, reinando no campo do folclore, de uma tradio esttica, portanto, morta.

Toda classificao arbitrria. Todo hermetismo revela uma incompletude, uma insatisfao. Um texto no cabe em uma caixa, no se sente cmodo em um cofre. Os folhetos de cordel ou a pea Auto da Compadecida so textos regionais, mas no somente isso, tambm se constituem obras nacionais, mas tambm no so apenas isso. Um texto o tudo e o nada:

a obra somente obra quando ela se converte na intimidade aberta de algum que a escreveu e de algum que a leu, o espao violentamente desvendado pela contestao mtua do poder de dizer e do poder de ouvir (BLANCHOT, 1987, p. 29).

Uma obra um compndio com lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Esse que no respeita, necessariamente, as nomeaes e classificaes oficiais. Literatura menor, universal, nacional, homoertica, de gnero, tnica. Talvez nomenclaturas que defendam um espao de fala, mas tambm que excluem tantas outras. Para o leitor, para mim, leitor, o texto um mundo a ser descoberto, um espao que precisa ser nomeado. Sou eu, leitor, quem o fao. As palavras esto ali, mas preciso penetrar surdamente nesse ambiente espera do que h por vir. imprescindvel entregar-se a este mundo, a este tempo. Nesse instante, no importam cnones, classificaes so indiferentes. a obra, sou eu e o mundo a desvendar.

 

 

4 retalho: o arquivo

 

O mundo processa uma srie de informaes, produz conhecimentos que precisam ser guardados. Existe armazenamento para tudo na contemporaneidade. Em uma empresa, a vida de cada funcionrio arquivada. Na Igreja, h o rol de membros de seus fiis. No clube, existe a relao de associados com suas informaes pessoais. Para cada livro publicado no Brasil, uma cpia envida para a Biblioteca Nacional. Enfim, o arquivo lugar de lembrana e de esquecimento. Representa o esttico, o imutvel. a memria e a tradio, o espao do tempo perdido.

Cada retalho um arquivo em potencial. Cada taco fez parte de uma pea especfica de pano, que foi utilizado para a confeco de uma roupa, cujas sobras foram relegadas a segundo plano. Mas at chegar ao abandono, teve impressa em si a ideia de tecido, o prottipo de uma roupa. Ao ser utilizado em uma colcha de retalhos, adiciona a si mais uma impresso, somada a tantas outras de diversos tacos.

Por isso, no compreendo o arquivo como algo morto, inerte. H, certamente, a possibilidade de um conhecimento estar engavetado, abandonado, esquecido, mas o arquivo , alm disso, e talvez o mais importante, o lugar de onde se pode dispor de saberes.

Eu recorro memria, enquanto arquivo individual ou coletivo, para ativar conhecimentos. Ao faz-lo, tal conhecimento re-elaborado, re-visto. O carter de passividade no se sustenta. O prprio livro pode ser compreendido como um arquivo: Um texto s um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composio e a regra de seu jogo. Um texto permanece, alis, sempre imperceptvel. (DERRIDA, 2005, p. 7).

Enquanto arquivo que, talvez nunca se mostre, o livro precisa ser tocado por mim, leitor, e vice-versa, no para dissec-lo, mas para que eu, enquanto leitor, busque o meu saber, encontre as respostas para os meus questionamentos e, inclusive, suscite outras dvidas sobre mim e sobre o mundo.

            Os arquivos so um depsito em estado de latncia. O arquivista quem lhe d sentido. O livro um ser espera do encontro. O domnio do arquivo est nas mos de quem o ordena, daquele que o consulta. O livro foge do poder de seu autor, escapa por entre seus dedos. Ao autor, cabe o escrever, o finalizar a escrita. Sou eu, leitor, quem a continuo:

O domnio do escritor no est na mo que escreve [...]. O domnio sempre obra da outra mo, daquela que no escreve, capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lpis e de o afastar. Portanto, o domnio consiste no poder de parar de escrever, de interromper o que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade decisiva no instante (BLANCHOT, 1987, p. 15-16).

Crendo nessa concepo de arquivo, como algo que exerce duas foras concomitantes, de um lado, a fora intrnseca, que mantm a tradio, do outro, a extrnseca, que promove o novo, que percebo no Auto da Compadecida um arquivo vivo, impregnado da presena de textos diversos, de pocas diferentes, que dialogam com a pea teatral do autor paraibano.

Ler o texto de Suassuna deparar-me com a influncia do texto vicentino. Assim como o autor lusitano, Ariano Suassuna apoia seu texto na rgida moral crist medieval. H uma relao entre a trilogia da Barca com o Auto, quando do julgamento dos personagens por seus atos cometidos por toda a vida. Em Gil Vicente, no entanto, reina um cristianismo oficial, no cedendo espao para inseres de crenas populares, como no texto brasileiro.

O onzeneiro, a alcoviteira, o fidalgo, o sapateiro so exemplos de classes sociais representadas nO Auto da Barca do Inferno. NO Auto da Barca do Purgatrio, tem-se personagens da classe popular, como um pastor, uma mexeriqueira, um blasfemador. Aqui, o purgatrio, espao intermedirio entre o cu o inferno, o caminho do meio, a via alternativa para a sentena divina. J nO Auto da Barca da Glria, as personagens pertencentes aristocracia, Papa, Bispo, Duque, so perdoadas mediante arrependimento.

Nesses textos, cada personagem personifica um pecado capital. Tais falhas precisam ser expurgadas do seio da sociedade, como meio de reeducar o ser humano. A religio como forma de ensino, elemento de represso do mal que habita o ntimo do homem. H toda uma construo, em Gil Vicente, para amedrontar os espectadores de suas peas. Diabos, inferno e purgatrio, seres e espaos mticos que povoam o imaginrio medieval e que se materializam na vida cotidiana daquele perodo:

Comena a declarao e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per fora havemos de passar em um de dous batis que naquele porto esto, scilicet, um deles passa pera o paraso e o outro pera o inferno: os quais batis tem cada um seu arrais na proa: o do paraso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro (VICENTE, 1965, p. 27).

O cu, o inferno e o purgatrio tambm so evocados no Auto da Compadecida. Mas em Suassuna, tais espaos j foram impregnados pelo catolicismo popular, permeados de influncias do espiritismo, bem como das culturas negra e indgena:

O catolicismo popular se exprime mediante elementos culturais, e as culturas populares, por meio de elementos religiosos. A simbiose, em alguns casos, to forte que no fcil distinguir o que pertence religio do que pertence cultura (GOIS, 2004, p. 11).

No Auto, durante o julgamento que Joo Grilo exercita toda sua retrica. Convence Manuel a enviar os rus para o Purgatrio, Severino direcionado ao cu e ele, autor de todas as mentiras e trapaas de Tapero, usa de um discurso de autopunio para garantir a misericrdia da Compadecida:

A COMPADECIDA: Joo foi um pobre como ns, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre com a nossa. No o condene.

[...]

Peo-lhe ento, muito simplesmente, que no condene Joo. [...]. D-lhe ento outra oportunidade.

MANUEL: Como?

A COMPADECIDA: Deixe Joo voltar.

MANUEL: Voc se d por satisfeito?

JOO GRILO: Demais. [...] (SUASSUNA, 2004, p. 170. 172).

O Amarelo ludibria as divindades, e seu retorno ao serto promete mais picardias, j que justificava seus atos pela m distribuio de renda no pas, pela no efetivao de uma vida crist, quando ele, o prximo, era esquecido, humilhado por uma sociedade excludente.

A construo da personagem Joo Grilo segue o prottipo do heri picaresco, ou anti-heri, que sobrevive s custas de seus pequenos golpes. O pcaro no pensa em um futuro distante, preocupa-se com o hoje, pois carece alimentar-se. Como est s margens da sociedade, o anti-heri vinga-se de quem o exclui trapaceando, mentindo. No segue uma moral especfica, nem regras rgidas, o pcaro a tudo subverte em nome de uma sobrevida diria. O Lazarillo de Tormes, texto annimo espanhol do sculo XVI, traz ao mundo o prottipo de pcaros que se seguem ao longo da literatura burlesca mundial:

Vuestra Merced debe saber primero que todos me llaman Lzaro de Tormes, hijo de Tom y de Antona Prez, de Tejares, pueblo de Salamanca. Mi nacimiento fue dentro del ro Tormes y por esta razn tom mi apellido. Mi padre trabajaba en el molino de agua que haba en aquel ro, desde haca ms de quince aos. Y ocurri que all le lleg a mi madre una noche la hora de traerme al mundo, y naci yo. De manera que con verdad me puedo decir nacido en el ro (LAZARILHO DE TORMES, 1994, p. 09).

Lzaro no possui fora bruta, nem autonomia financeira. S pode usar a inteligncia e a perspiccia. O intrigante ter que alimentar uma mentira com outra mentira. Ao ser descoberto, resta-lhe fugir e recomear seu ciclo de picardias.

No texto teatral de Suassuna, Grilo o pcaro que habita o serto nordestino. V a vida como um palco, onde precisa atuar para sobreviver. Conforme Derrida (2005, p. 12), a escritura j, , portanto, encenao, por isso mesmo, a vida, que imita a arte em diversos momentos, deve adaptar-se s mais diferentes situaes. Grilo o resultado do meio em que vive:

JOO GRILO: Muito pelo contrrio, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Trs dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dՇgua me mandaram. [...] a qualquer hora acerto com o patro! Eu conheo o ponto fraco do homem, Chic! (SUASSUNA, 2004, p. 26).

A vingana o nico caminho a trilhar, visto que o nico que conhece. Ao conviver com avaros, egostas, hipcritas, torna-se tambm um, por meio de um reforo negativo. O Amarelo age, no fim das contas, como um daqueles que trapaceia, pois v nisso a nica forma de viver e suportar as agruras do mundo em que vive.

De todas as formas, a avareza o pecado capital mais combatido em textos com pcaros. Pela avareza, os homens perdem as suas almas, afastam-se da divindade, separam-se da religio. Pela sovinice, Harpago, da obra O Avarento, de Molire, promove casamentos arranjados para seus filhos, comanda um regime de conteno de despesas em casa, racionando a comida, escondendo seu tesouro. conhecido por todos pela sua mesquinhez, como afirma seu servo:

MESTRE TIAGO: Senhor, j que assim quereis, dir-vos-ei francamente que troam de vs por toda a parte; que vos lanam, de todos os lados, mil zombarias e que s ficaro satisfeitos quando vos derem um pontap; e inventam, constantemente, histrias sobre a vossa mesquinhice. [...]. Enfim, quereis saber? No se vai a lado nenhum que no se oua dizer de vs o pior possvel. Sois o motivo de troa e de risos de todos, e s vos tratam por avarento, mesquinho, desprezvel usurrio (MOLIRE, 1971, p. 62).

O Padeiro e sua Esposa so os maiores sovinas que Tapero j viu. Exploram seus empregados, Grilo e Chic, que, por sua vez, buscam explorar a quem encontram. Mas h avareza em outros personagens do Auto da Compadecida. O Padre e o Bispo guerreiam pelo testamento do cachorro. Severino invade a vila e saqueia a todos. Pela avareza, o autor observa os outros pecados aproximarem-se do homem e tomarem conta de seu esprito. Da avareza do casal de patres, surge o sentimento de vingana de Grilo, que s possui sua mente e sua voz como armas para combater os mais fortes:

JOO GRILO: homem sem vergonha! [Chic][103] Inda pergunta? Est esquecido que ela [A mulher do padeiro][104] deixou voc? Est esquecido da explorao que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que so o co s porque enriqueceram, mas um dia ho de me pagar. E a raiva que eu tenho porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. At carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, Joo Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo (SUASSUNA, 2004, p. 39).

O final do texto de Ariano Suassuna aponta para uma possvel remisso de Joo Grilo, mas ele retorna mais pobre do cu do que quando fora julgado. Na verdade, nesse instante, o autor est, atravs do Palhao, o narrador e condutor da pea, chamando a ateno do expectador, para que este possvel Grilo que esteja no recinto afaste-se de uma vida de picardias.

Esses retalhos, acrescidos colcha do Auto da Compadecida, so exemplos de um arquivo que se pretende mvel, dialogando com outros tacos, conversando com o leitor.

Em cada retalho montado, um rastro estelar me chega aos olhos. Em cada imbricamento de textos, uma nova raiz fasciculada gera outras conexes textuais, musicais, visuais, enfim, prazerosamente, abro o arquivo e retiro dele a coberta de taco do Auto da Compadecida, com ela, tantos outros ecos de tantas outras histrias em despropsitos sem fim.

 

 

5 retalho: a semiologia

 

Segundo Blanchot (1987, p. 12),

A obra literria solitria: isso no significa que ela seja incomunicvel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l entra nessa afirmao da solido da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solido.

O texto literrio, solitrio por natureza, pode aproximar-se de outras linguagens. Dentre essas, a cinematogrfica. Pelo olhar do cinema, a literatura ganha outros olhares, novas sensaes, outros pblicos. O Auto da Compadecida um dos textos do sculo XX mais recorridos grande tela. Pelas lentes das cmeras, Grilo e seus companheiros recebem interpretaes pela caneta dos roteiristas e adquirem semblantes conhecidos em todo o pas e tambm fora dele.

A primeira adaptao flmica, A Compadecida, foi dirigida por George Jonas e estrelada por Regina Duarte, Antonio Fagundes e Armando Bogus. a adaptao mais parecida com o texto literrio e seu roteiro foi escrito pelo prprio Suassuna, que acompanhou toda a filmagem, aprovando-a.

Mas de todas as trs adaptaes, essa, de 1969, a que possui o enredo mais arrastado, j que h uma tentativa clara de fazer teatro no cinema. Todas as aes da pea so transpostas para a pelcula, mas o time do humor no teatro no segue o mesmo tempo na frente das cmeras.

A segunda adaptao, de 1987, foi dirigida por Roberto Farias. Intitulada Os Trapalhes no Auto da Compadecida, foi protagonizada pelo quarteto de humoristas famoso na televiso e no cinema com seus filmes leves e de riso frouxo.

Com a inteno de agradar a crtica, Ariano Suassuna foi convidado por Renato Arago para coassinar o roteiro da adaptao, que mantm a figura do Palhao, como o narrador que unifica os trs enredos: a morte do cachorro, o gato que descome dinheiro e o Julgamento Final. Contudo, o pblico no assimilou o filme estar associado a um texto srio. Apesar de ter sido exibido, inclusive em Portugal, foi uma das menores bilheterias dos Trapalhes, embora tenha recebido boas crticas.

O texto de Suassuna foi adaptado para a televiso em parte, inserido em novelas, montado para o teatro incontveis vezes. Tem trechos de seu texto utilizado em livros didticos como exemplo de literatura dramtica. Sua linguagem leve assimilada com facilidade pelos leitores e espectadores.

Em 2000, por meio de uma reduo da microssrie exibida um ano antes, estreou nos cinemas brasileiros O Auto da Compadecida[105], dirigida por Guel Arraes. Protagonizada por Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Melo, Marco Nanini e outros, a pelcula foi uma das mais vistas naquele ano.

Guel Arraes e os roteiristas Adriana Falco e Joo Falco acrescentam ao texto de Suassuna trechos de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, alm de personagens de outras peas do autor paraibano, como Torturas de um corao. O roteiro gil e prende o espectador atravs do riso gerado pelas astcias de Grilo e pela covardia de Chic.

Essa ltima adaptao a mais popular de todas. Embora suavize o discurso maniquesta do texto literrio, mantm com este um dilogo constante, respeitando as diferenas de signos que os constituem.

Tais filmes tambm contribuem para formar a colcha de retalhos com suas especificidades. Cada roteiro, cada leitura do diretor, cada interpretao dos autores no reduz, como muitos crticos pensam, a obra literria ou por que o filme no mantm uma pretensa fidelidade, sendo devedor da literatura. Ao contrrio, conversa com esta. No h o superior e o inferior, h os diferentes, e o sero sempre, como cada retalho de pano um do outro. Para Robert Stam,

Ns ainda podemos falar em adaptaes bem feitas ou mal feitas, mas desta vez orientados no por noes rudimentares de fidelidade mas sim, pela ateno transferncia de energia criativa, ou s respostas dialgicas especficas, a leituras e crticas e interpretaes e re-elaborao do romance original, em anlises que sempre levam em considerao a lacuna entre meios e materiais de expresso bem diferentes (STAM, 2006, p. 51).

Retomo agora a coberta de taco que venho cosendo diligentemente. Escolho cada retalho, os mais variados, somo-o a outros. Nessa colcha, somam-se livros, peas de teatro, contos, msicas, filmes. Nessa profuso de cores, escritas e sons, todos coexistem unidos entre si, sem a pretenso de estabelecer hierarquias.

 

 

6 retalho: o retalho por vir

 

Em Edward W. Said, encontro a afirmao:

Longe de serem algo unitrio, monoltico ou autnomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos estrangeiros, alteridades e diferenas do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).

Todo retalho que li, seja o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, sejam O Avarento, de Molire, ou O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, ou ainda as Barcas de Gil Vicente, ou O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro, O castigo da soberba, folhetos de cordis, sejam A Compadecida, Os Trapalhes no Auto da Compadecida, O Auto da Compadecida, filmes brasileiros. Sejam Derrida, Foucault, Blanchot, em tudo que leio, vejo uma manifestao cultural. O homem um ser que produz cultura em tudo que faz.

Se creio nisso, abomino a ideia de cultura superior dominando as outras, mas acredito no embate cultural, numa nsia constante de tomada de lugar entre os expoentes culturais.

Defendo um maior espao para as culturais subalternizadas, ditas populares, mas tambm visualizo as constantes trocas culturais. Vejo que o Eu quer estabelecer-se, mas observo que isso se d em consonncia com o Outro, para formar, muitas vezes o Ns, o Tu, o Eles.

A semelhana se d por meio da diferena, porque cada homem um ser que se conhece, outro que se d a conhecer e muitos seres estranhos povoando os espaos vazios da existncia. Espaos muitas vezes ocupados pela literatura, que a materializao desses seus que vagueiam por a procura da plenitude do Nada.

Cresci em meio aos livros, mas a maior lio que aprendi que os livros que esto dentro de mim. Eu sou uma colcha de retalhos, eu sou um homem feito de pedaos, belos tacos que, unidos, formam o que sou. No me sinto formado, no pretendo ser o dono da verdade, j que as creio mltiplas, e persigo-as e as uso, uma hoje, outra amanh. E disponho de cada retalho, e retomo meus retalhos, e me leio, procura daquilo que sou e tambm do que nunca virei a ser.

Estou aqui, eu, espera dos prximos retalhos, dos textos de fruio, das leituras de prazer. Espero fazer minhas conexes constelatrias, meus enxertos rizomticos. Eu, assim como o menino de Manuel de Barros, levo gua na peneira, molhando-me nela, sentindo-a, sentindo-me.

Encontro-me aqui, nesse instante, com um pedao de colcha, inacabada, uma srie de retalhos, agulha e linha nas mos.

 

 

Referncias

 

BARROS, Leandro Gomes de. O cavalo que defecava dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.

 

_________. O dinheiro (O testamento do cachorro). Fortaleza: Tupynanquim, 2005.

 

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 5. ed. So Paulo: Perspectiva, 2010.

 

BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

 

_________. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

MOTA, Leonardo. Castigo da soberba. In: _________. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1955.

 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil plats – capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurlio Guerra Neto e Clia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

 

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Kafka – por uma literatura menor. Trad. Julio Guimares. Rio de Janeiro: imago, 1977.

 

DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Trad. Rogrio da Costa. So Paulo: Iluminuras, 2005.

 

_________. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Trad. Cludia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001.

 

GOIS, Joo de Deus. Religiosidade popular. So Paulo: Edies Loyola, 2004.

 

KRISTEVA, Julia. Introduo semanlise. So Paulo: Perspectiva, 1974.

 

LAZARILLO de Tormes. Madrid: Santillana/Universidad de la salamanca, 1994.

 

LIMA, Joo Ferreira de. Proezas de Joo Grilo. So Paulo: Luzeiro, 1979.

 

MOLIRE. O Avarento. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

 

STAM, Robert. Teoria e prtica da adaptao: da fidelidade intertextualidade. Ilha do Desterro, Florianpolis, n. 51, jul./dez. 2006, p. 19-53.

 

SAID, Edward. W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. comemorativa de 50 anos. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

 

VASSALO, Lgia. O serto medieval: origens europias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

 

VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irmo, 1965.

 

 

[Recebido: 23 ago 2021]



[101] Possui graduao em Licenciatura em Letras Vernculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1998), mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2006) e doutorado em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente professor Titular A da Universidade do Estado da Bahia e professor do Mestrado Profissional em Letras da Universidade do Estado da Bahia, atuando, ainda como Diretor do Departamento de Cincias Humanas, Campus V, da UNEB. Tem experincia na rea de Letras, com nfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura e outras artes, identidade, afrodescendncia e cultura. 

 

[102] Disponvel em: www.poetriz.wordpress.com/2006/01/11/0-menino-que-carregava-agua-na-peneira/ Acesso em: 3 jan. 2012, s 15h.

[103] Acrscimo nosso.

[104] Acrscimo nosso.

[105] Disponvel em: www.atualfilmes.onsugar.com/Download-O-Auto-da-Compadecida-6193160. Acesso em: 15 nov. 2010, s 16h.