A po�tica do retalho
The poetic
of retail
Jo�o Evangelista do Nascimento Neto[101]
https://orcid.org/0000-0003-4937-7311
Resumo:
Neste artigo, discute-se a constru��o de leituras tendo como analogia uma
colcha de retalhos. A partir de cada retalho – constela��o, rizoma,
intertextualidade, arquivo e semiologia –, � poss�vel tra�ar os percursos
de compreens�o do texto, tendo como exemplo o Auto da
Compadecida, obra que alinhava tra�os da cultura popular e seu
di�logo interartes. Essa po�tica da leitura aqui apresentada constitui-se
somente enquanto uma das m�ltiplas possiblidades de intera��o com o texto
liter�rio. Cada leitor, certamente, costurar� seu cobertor de leituras.
Palavras-chave:
Po�tica; Leitura; Popular.
Abstract: In this article, the construction of readings is discussed using a patchwork quilt as an analogy. From each patch: constellation, rhizome, intertextuality, archive and semiology, it is possible to trace the paths of understanding the text, taking, as an example, the Auto da Compadecida, a work that aligned traits of popular culture, and its interart dialogue. This poetics of reading presented here constitutes only one of the multiple possibilities of interaction with the literary text. Every reader will, of course, sew their blanket of readings.
Keywords: Poetics; Reading; Popular.
Como fazer uma coberta
de taco (ou colcha de retalhos)
Material necess�rio:
- Peda�os de panos os mais variados poss�veis;
- Linha de costura;
- Agulha;
- Tesoura.
Instru��es:
Ap�s ter � m�o todos os materiais, separa os
retalhos de pano e, com a tesoura, acerta os peda�os para que fiquem com
tamanhos semelhantes. Depois, com linha e agulha, costura um peda�o a outro
para materializar-se, enfim, a coberta. O tamanho dela depende de sua escolha
em ser ela para cobrir uma cama de casal ou de solteiro, o que pode ser medido
no pr�prio leito. O toque final � feito costurando-se as extremidades do
cobertor, a fim de n�o desfiar ou rasgar. A� est� pronta a coberta, muito usada
no ver�o por ser leve, al�m de deixar o ambiente agrad�vel por suas multicores.
De como uma coberta de taco pode ter rela��o com
as leituras
Ler � um processo cont�nuo e de car�ter
somat�rio. A leitura, termo genericamente usado no singular, na verdade, �
feita de leituras. Se um homem � resultado de suas leituras, essas surgem em
decorr�ncia das m�ltiplas escritas, de in�meros textos que se assomam �s
leituras da vida, �s leituras do Outro e de Si.
Para se fazer uma coberta de taco, � necess�rio
adquirir uma s�rie de retalhos. Do mesmo modo, para se estabelecer um homem, �
preciso ver o mosaico de leituras que o constru�ram.
Esse artigo constitui-se em um processo de
costura, dia ap�s dia, quando da apropria��o de cada retalho, de cada texto,
unido a outro artesanalmente, com linha e agulha, como � o racioc�nio humano.
Este texto representa as semelhan�as afetivas do leitor com suas refer�ncias de
vida, suas escolhas liter�rias, assim como a costureira estabelece uma rela��o
afetuosa com a colcha que elabora com o esfor�o de suas m�os.
Cada taco, cada retalho somado a outro
representa a multiplicidade de �eus� que permeiam o
leitor, que habitam o escritor. O resultado final da coberta, bela por sua
variedade, � a analogia ao leque de leituras de um ser humano.
O homem contempor�neo � o ser detentor de uma
identidade m�ltipla, l�quida, p�s-moderna. Esse homem fragmentado, esse ser
estilha�ado, ao contr�rio do que os mais tradicionais podem supor, n�o deve ser
visto com desvantagem; ao contr�rio, a vida humana � um sucessivo catar de
fragmentos, um constante trabalho de alfaiataria. O que est� rasgado pode ser
novamente costurado. Se o retalho est� desgastado, pode ser cerzido. O homem �
um ser inacabado, em constru��o. Cada retalho que adquire em sua vida pode ser
acrescido a seu cobertor. Essa manta n�o precisa ter tamanho exato,
determinado. � sempre poss�vel adicionar mais um taco a ela.
O narrador, nesse instante, pede licen�a ao
leitor para usar a 1� pessoa do singular, j� que ele falar� de si pr�prio.
Assim, o �ele� deve ceder espa�o ao �eu�, para particularizar aquilo que relata
pela sua mem�ria, o instrumento de que disp�e, para descrever o que sente, quem
�, mesmo, felizmente, sendo um produtor inacabado, ainda h� mais para trilhar,
e pretende, com �xito, acrescentar mais tacos � colcha da sua vida.
1� retalho: a
constela��o
Eu inicio o relato, em primeira pessoa, citando �O
menino que carregava �gua na peneira�, de Manoel de Barros:
Tenho um livro sobre �guas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava �gua na peneira.
A m�e disse que carregar �gua na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irm�os.
A m�e disse que era o mesmo que catar espinhos na �gua
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em desprop�sitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
[...]
A m�e reparava o menino com ternura.
A m�e falou: Meu filho voc� vai ser poeta.
Voc� vai carregar �gua na peneira a vida toda.
Voc� vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas v�o te amar por seus desprop�sitos.[102]
Carregar �gua na peneira, criar peixe no bolso,
costurar peda�os de panos. A priori,
atividades v�s, sem fins pr�ticos ou de pouca valia. Mas pensa dessa forma quem
nunca sentiu o prazer de levar a �gua na peneira e molhar-se com ela,
refrescando-se num dia quente de ver�o. Quem considera um ato insano criar um
peixe no bolso, n�o experimentou a satisfa��o de peg�-lo e senti-lo perto,
sempre junto, como um amigo que est� ali � m�o para todo intento. Aquele que
pondera ser loucura costurar tacos de panos sem fim, n�o pressente que de meros
peda�os de restos de tecidos pode surgir uma colcha capaz de aquecer algu�m
numa noite mais fria.
Eu persigo os desprop�sitos da literatura,
encanto-me com eles, seduzo-me por eles. Pela literatura, � poss�vel olhar
al�m, porque se pode enxergar para dentro. Atrav�s do texto liter�rio, eu
tamb�m cato os espinhos na �gua que levo em minha peneira (creio que todos os
seres humanos possuem suas peneiras com �gua para levar por sua vida, mas
alguns a abandonam no meio do caminho). Eu sei que o mundo contempor�neo, com
sua velocidade, seu tempo reduzido, exige, de cada um, praticidade, mas eu
insisto em parar, muitas vezes, para recolher tais espinhos, mesmo furando os
dedos, da peneira que levo, em meio � �gua que dela escorre e que torno a
encher. N�o me esquivo da tarefa de pegar os espinhos, nem do trabalho de
buscar rem�dio para sarar as feridas, paradoxalmente, na mesma peneira e com a
mesma �gua.
Esses desprop�sitos enchem a alma, conduzem a
vida, e d�o olhos de lince. Olhar para o interior � o mais dif�cil tipo de
vis�o que existe. Olhar para dentro � enxergar a si pr�prio, com todas as suas
idiossincrasias, reconhecendo os seus �eus�. Ao ver
intrinsecamente, eu aprendo a ver melhor o Outro.
Da�, com agulha e linha, eu costuro a minha
coberta. Todo dia, eu junto a ela um retalho diferente do outro que juntei
anteriormente. Diferentemente de Pen�lope, ao esperar seu amado, a coberta n�o
� desfeita, mas acrescida, complementada. O cobertor � um emaranhado de
tecidos, como o c�u � uma profus�o de estrelas. Ao olhar a ab�bada celeste, n�o
sei quando uma estrela est� viva, ou ali apenas � o seu brilho que chega at�
mim, mas ela, a estrela, aproxima-se, lan�a sua luz, deixa seu rastro.
Olhar estrelas no c�u tem rela��o com fazer uma
coberta de taco. Perceber as in�meras estrelas que habitam o firmamento,
observar sua luz, determinar cada origem, � t�o desprop�sito quanto procurar a
origem de cada retalho. � por isso que a literatura se prop�e aos desprop�sitos.
A ci�ncia esquiva-se daquilo que, para ela, � irracional, procura provar e
comprovar suas teorias, seus tratados. A literatura busca o ser, aposta no
sentir. Nesses desprop�sitos, eu me lan�o, eu me perco no meio das estrelas, eu
me absorvo por entre os peda�os de pano. Ao perder-me, encontro-me, para
perder-me novamente, a fim de conhecer outras facetas de mim mesmo.
Para Maurice Blanchot,
a Constela��o nasce daquilo que n�o � conhecido, do espa�o da pr�pria obra. E
falo de estrelas e assemelho-as � literatura. Esse vazio deixado por toda obra
� o espa�o a ser preenchido pelo leitor. Sou eu, leitor, que preciso seguir os
rastros de luz deixados pelos textos, que s�o fachos n�o lineares, s�o luzes
que fazem ziguezagues, que se entrela�am com outras fa�scas, como os textos
fazem rela��es a outros textos, como leituras da contemporaneidade dizem sobre
textos medievais, assim como as p�ginas escritas podem falar tanto do homem,
dialogar comigo, sobre mim. Para o autor,
a ess�ncia da literatura escapa a toda determina��o
essencial, a toda afirma��o que a estabilize ou mesmo que a realize; ela nunca
est� ali previamente, deve ser sempre reencontrada ou reinventada. (BLANCHOT,
2005, p. 294).
Como os peda�os de pano precisam ser
reinventados para tornarem-se, juntos, mas sem ordem a ser seguida, sem
estabelecimento de come�o ou fim, apenas uma combina��o aleat�ria, uma colcha;
as estrelas s�o reinventadas pelo rastro que deixa no c�u. A literatura deixa
seus rastros. O leitor segue-os, refazendo os caminhos, abrindo picadas,
forjando estradas. Muitos desses caminhos n�o s�o abertos pelo escritor, mas
pelo pr�prio leitor, ao seguir os rastros que ficam, ao sair � procura dos
retalhos, mas tamb�m seguindo sua intui��o, seus anseios, enxergando-se atrav�s
dos rastros, materializando-se na jun��o de cada taco de pano, no processo de
coautoria do texto: �A leitura � opera��o, � obra que se cumpre suprimindo-se,
que se prova confrontando-se com ela mesma e se suspende ao mesmo tempo que se
afirma� (BLANCHOT, 2005, p. 357-358).
A leitura � um estar em movimento ao permanecer
est�tico. Um devir interior, que promove a transforma��o do mundo. Meu mundo se
suprime, comprime-se diante do texto, mas expande-se, num processo contr�rio,
como o universo o faz (ou fez um dia, segundo alguns cientistas). � o inverso
do reverso de mim, aben�oado pelos deuses da literatura, plainando sobre mim, a
sussurrar em meus ouvidos cantos po�ticos de amor, louvores � inquietude de meu
ser, mas tamb�m amaldi�oado pelos dem�nios que habitam em mim, que voam sob minh�alma, defenestrando meus sonhos, enxertando novos
ideais. Ler um texto � sentir as palavras com o cora��o divino ressoarem na
pele com prazer diab�lico.
Segundo Roland Barthes,
Texto de prazer: aquele que contenta,
enche, d� euforia; aquele que vem da cultura, n�o rompe com ela, est� ligado a
uma pr�tica confort�vel da leitura.
Texto de frui��o: aquele que p�e em estado de perda, aquele que desconforta
(talvez at� um certo enfado), faz vacilar as bases hist�ricas, culturais,
psicol�gicas do leitor, a consist�ncia de seus gestos, de seus valores e de
suas lembran�as, faz entrar em crise sua rela��o com a linguagem (BARTHES, 2010,
p. 20-21).
Para o te�rico, a Babel liter�ria � benquista,
bem-vinda, recebida com festa, com gl�rias. O texto de prazer abre espa�o para
o texto de frui��o. Um deixa o leitor acomodado, o outro cutuca, incomoda, tira
o sono. O primeiro nina o leitor em suas p�ginas, o segundo tira-lhe o sono. H�
textos que exercem as duas fun��es: eles apresentam-me os meus deuses e diabos
cotidianos. Esses textos n�o podem ser classificados genericamente, dependem do
olhar pessoal de cada leitor. E assim, vai-se fazendo a literatura, com linha
de algod�o mercerizado ou linha mista (mais usadas em costuras) e uma agulha
para acolchoar (que costura com mais precis�o e rapidez), ideologias s�o
questionadas, novos pensamentos costurados, entrela�ados a tantas outras
ideias, alegrias somadas a tristezas vividas. Assim sou eu, assim � o ser
humano, assim � a literatura, a mais perfeita cria��o do imperfeito homem.
2� retalho: o rizoma
O manguezal � um ecossistema costeiro, que
transita entre os ambientes terrestre e marinho. Existe nas regi�es tropicais e
subtropicais, � poss�vel encontr�-lo em foz de rios. No mangue, encontram-se
vegeta��o t�pica e vida animal em abund�ncia, aves, peixes, mam�feros, r�pteis
e invertebrados, como os apreciados siris e caranguejos. Seu solo � rico em
nutrientes, por isso as �rvores desenvolvem-se com facilidade, mas, com solo
lodoso, as plantas precisam adaptar-se, para tal, utilizam-se de ra�zes a�reas,
para facilitar a oxigena��o, mas bem fincadas no ch�o.
Na bot�nica, as ra�zes que se fasciculam s�o chamadas de rizomas. Os rizomas funcionam
como �rg�os de reprodu��o dos vegetais. Da raiz principal, surgem outras ra�zes
em diferentes dire��es, fazendo brotar outras plantas. Em um momento, ao leigo,
� dif�cil perceber qual a raiz principal, j� que outras germinam dela. Assim �
a raiz da vegeta��o do manguezal. Ela � um emaranhado de ra�zes, que se
confundem umas as outras. Num mangue, n�o h�, � primeira vista, como
estabelecer uma separa��o. O mangue resiste pela uni�o de sua vegeta��o, pela
for�a de suas ra�zes que, juntas, s�o mais fortes. O mangue resiste � �gua e ao
solo arenoso, fluido. O manguezal � um local de reprodu��o de v�rias esp�cies
animais e vegetais, atuando como manuten��o do equil�brio da natureza. O mangue
� for�a vital, seus rizomas, com m�ltiplas entradas, geram outras vidas,
sustentam exist�ncias. A �rvore � o que se v�, aquilo que se contempla
majestosa, mas ela nada seria sem a sua raiz, principalmente numa regi�o de
manguezal.
Uma colcha de retalhos � como um manguezal. Cada
peda�o de pano, rizom�tico, une-se a outro, tamb�m rizom�tico, formando um todo onde cada parte ainda �
percept�vel, mas indissoci�vel. Numa coberta de taco, os elementos, de tamanhos
diferentes, de cores peculiares, de estampas espec�ficas, simbolizam aquilo que
o mangue evidencia: a uni�o das diferen�as. Conforme J�lia Kristeva, �todo
texto � um mosaico de cita��es, todo texto � absor��o e transforma��o de outro
texto� (KRISTEVA, 1974, p. 64). Todo texto �, portanto, como as ra�zes de um
manguezal, ou como uma colcha de retalhos.
Uma coberta de taco � um texto, m�ltiplo em sua
unidade, formada por rizomas, seguindo o conceito de Gilles Deleuze e F�lix Guattari.
Para os autores,
uma das caracter�sticas mais importantes
do rizoma talvez seja a de ter sempre m�ltiplas entradas [...]. Ele n�o � feito
de unidades, mas de dimens�es, ou antes de dire��es movedi�as.
[...]
Um rizoma n�o come�a nem conclui, ele se
encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
22. 37).
Um texto rizom�tico
remete o leitor a outros textos que o direcionam a demais leituras, numa
estrutura fascicular intermin�vel. Meu contato com um rizoma se deu por
interm�dio da micross�rie O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, que foi ao ar em 1999, pela
Rede Globo. Com quatro cap�tulos, a adapta��o do texto teatral, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,
escrito em 1955 e encenado pela primeira vez em Recife no ano de 1957, acenou
para mim como um intertexto que pulsava vida, que possu�a for�a e falava aos
meus ouvidos, tocava na minha alma.
Percebi, durante os quatro cap�tulos da s�rie, a
Literatura de Cordel emergindo das vozes de cada personagem. Em cada situa��o
narrada, o cheiro do sert�o nordestino passeava por meu corpo, subia as minhas
narinas, chegava ao meu c�rebro. Mas cada texto de cordel usado por Suassuna,
em sua pe�a, tamb�m evoca outros textos. O pr�prio autor paraibano deixa-se
tomar, em sua pena, por obras portuguesas, como as do autor Gil Vicente, ou de
resqu�cios cavalheirescos de Miguel de Cervantes, ou ainda do humor social de
Moli�re. � adapta��o, para a televis�o e posteriormente para o cinema, ainda se
acresce William Shakespeare. Enfim, o rizoma se faz com o di�logo sem come�o
estabelecido, sem fim aparente, como as ra�zes de um manguezal, como os tecidos
que formam uma colcha de retalhos.
3� retalho: a
intertextualidade
Se fosse poss�vel resumir o Auto da Compadecida em uma s� palavra, esta seria, certamente, a
intertextualidade. Os textos de cord�is, fonte primeira de inspira��o do autor,
ajudam na tem�tica de cada ato da pe�a.
O folheto O
dinheiro (O testamento do cachorro),
de Leandro Gomes de Barros, possui, como enredo, as perip�cias de um dono para
sepultar seu c�o com um ritual f�nebre. O texto, de cunho religioso e
moralizante, esfor�a-se por associar a imagem da avareza e da gan�ncia como os
males da humanidade:
O dinheiro neste mundo
N�o h� for�a que o debande,
Nem perigo que o enfrente,
Nem senhoria que o mande.
Tudo est� abaixo dele
S� ele � quem � grande.
[...]
Eu j� vi narrar um fato
Quer fiquei admirado,
Um sertanejo me disse
Que nesse s�culo passado
Viu enterrar um cachorro
Com honras de um potentado.
(BARROS, 2005, p. 1. 5).
Por dinheiro, que constava no testamento deixado
pelo c�o, o Vig�rio da par�quia e o Bispo concordam com a celebra��o
estapaf�rdia. O enterro teve ladainha e encomenda��o do corpo. Segundo o
narrador, nem todo ser humano tinha o privil�gio de tantas honrarias em seu
sepultamento. Aqui, a Igreja � condenada por seus desvios. Embora n�o haja um
desejo de destruir a institui��o, seus membros s�o expostos ao rid�culo, a fim
de haver um conserto desses que deveriam ser os guias espirituais do povo.
Ariano
Suassuna adapta o folheto de Leandro Gomes de Barros acrescendo a ele a
celebra��o do f�retro em latim, como exig�ncia da esposa do padeiro:
JO�O GRILO: � Chic�,
o padre tem raz�o. Quem vai ficar engra�ado � ele e uma coisa � benzer o motor
do Major Ant�nio Moraes e outra � benzer o cachorro do Major Ant�nio Moraes.
PADRE (m�o em concha no ouvido): Como? [...].
E o dono do cachorro de quem voc�s est�o falando � Ant�nio Moraes? [...]. N�o
vejo mal nenhum em se aben�oar as criaturas de Deus (SUASSUNA, 2004, p. 23-24).
Suassuna intensifica a den�ncia contra o clero,
pois, para o autor, a religi�o � um meio de reforma social. Protestante
convertido ao catolicismo, o teatr�logo condena os v�cios humanos, atribuindo-lhes
as causas da degeneresc�ncia �tica e moral humana.
Em A
hist�ria do cavalo que defecava dinheiro, tamb�m de Leandro Gomes de
Barros, a hist�ria se passa entre dois compadres, de situa��o financeira
bastante distinta. O pobre vinga-se do rico por sua sovinice, vendendo-lhe um cavalo
que defeca moedas:
Na cidade de Maca�
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
Desejava possuir
Todo objeto que via
Esse duque era compadre
De um pobre muito atrasado
Que morava em sua terra
Num rancho todo estragado
Sustentava seus filhinhos
Na vida de alugado
[...]
Foi na venda de l� trouxe
Tr�s moedas de cruzado
Sem dizer nada a ningu�m
Para n�o ser censurado
No fiof� do cavalo
Foi o dinheiro guardado.
(BARROS, 2006, p. 1-2).
Como forma de puni��o pela sovinice, o compadre
pobre ati�a a cobi�a do amigo, vendendo-lhe o animal que �descome� dinheiro, em
seguida, uma rabeca que ressuscita mortos. Desse modo, obt�m sua vingan�a e
livra-se do vizinho avaro.
No Auto da
Compadecida, o cavalo foi trocado, por quest�es de montagem teatral, por um
gato. A rabeca transforma-se em gaita e utilizada na cena em que Severino de
Aracaju intenta matar Grilo e seu companheiro Chic�:
GRILO: Agora vou dar uma
punhalada na barriga de Chic�.
CHIC�: Na minha, n�o!
GRILO: Deixe de moleza, Chic�. Depois eu toco na gaita e voc� fica vivo de novo!
[Murmurando, a Chic�.] A bexiga, a bexiga! (SUASSUNA,
2004, p. 113).
A artimanha para enganar Severino n�o d� certo.
Embora iludido em ver o Padre C�cero, e retornar � vida, o cabra do Capit�o
mata Grilo, dando origem ao �ltimo ato da pe�a, o julgamento das personagens.
No texto O
Castigo da soberba, an�nimo, o bar�o e sua esposa s�o julgados por sua
avareza, tendo seus atos expostos no julgamento celestial. Os dois personagens,
no folheto, encarnam os sete pecados capitais, sendo defendidos por Nossa
Senhora:
(Alma) – �Rainha, M�e Amorosa,
Esperan�a dos mortais,
Quem recorre a vosso nome
Sei que n�o desamparais,
Eu, pegando em vossos p�s
Sei que n�o largo eles mais.�
(Maria) – �Pois, alma, demora a�,
Enquanto eu vou consultar,
Fazer pedido a meu Filho,
Ver se eu posso te salvar,
Ver se teus grandes pecados
Tem grau de se perdoar.�
(C�o) – �Como esta tal Maria
Eu mesmo nem nunca vi:
Uns pedem por interesse,
Pedem porque � pra si,
Mas ela pede � pros outros,
N�o se enjoa de pedir...�
(MOTA, 1955, p. 175).
A alma consegue a justifica��o atrav�s da sua
advogada de defesa, Nossa Senhora, que intercede junto ao juiz, Jesus Cristo, a
fim de obter a reden��o de seu cliente, o homem. O C�o, promotor nesse
julgamento, � envergonhado e n�o logra �xito em seus intentos.
No texto suassuniano, a
cena do julgamento dura todo o terceiro (e �ltimo) ato da pe�a. Todos os
personagens ficam diante do juiz Manuel que, negro, ainda encontra espa�o para
discutir quest�es de discrimina��o racial:
De repente, Jo�o ajoelha-se, como que
levado por uma for�a irresist�vel e fica com os olhos fixos fora. Todos v�o-se
ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para n�o ver
o Cristo que vem entrando. � um preto retinto, com uma bondade simples e digna
nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura. Todos
est�o de joelhos, com o rosto entre as m�os.
ENCOURADO: [de costas, grande grito, com
o bra�o ocultando os olhos] Quem �? � Manuel?
MANUEL: Sim, � Manuel, o Le�o de Jud�, o
Filho de Davi. Levantem-se todos, pois v�o ser julgados (SUASSUNA, 2004, p.
136-137).
O ato do julgamento conta com Jo�o Grilo
intermediando a pondera��o feita pelo Encourado para cada r�u, a saber: o Padre,
o Bispo, o Padeiro e sua Esposa. Severino livra-se do inferno por seu passado
de sofrimento. E Grilo consegue retornar ao sert�o, angariando uma segunda
oportunidade de remiss�o.
A personagem da pe�a fora retirada do folheto Proezas de Jo�o Grilo, de Jo�o Ferreira
de Lima. Retratado como um garoto sem atributos f�sicos, mas dotado de uma
grande intelig�ncia. Grilo doutora-se em realizar golpes, transformando-se no
mais famoso p�caro do Nordeste:
Jo�o grilo foi um ente
Que nasceu antes do dia
Criou-se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois das horas
Pela arte que fazia.
[...]
Jo�o Grilo tinha um costume
Pra toda parte que ia
Era alegre e satisfeito
No conv�vio da alegria
Jo�o Grilo fazia gra�a
Que todo mundo sorria.
(LIMA, 1979, p. 1. 5).
O Grilo, de Suassuna, ap�s sair de Portugal,
integrou-se ao Nordeste do Brasil, povoando o imagin�rio brasileiro. Suas
hist�rias s�o contadas, seus feitos repassados por jovens e velhos, por ricos e
pobres. O riso que surge do rosto de quem ouve concorre com a alegria que nasce
do semblante do contador. O c�mico existente nos contos, diversos folhetos,
hist�rias infantis, pe�a de teatro, mant�m vivo, no leitor/espectador, o desejo
de uma vida mais justa.
H�, no sert�o brasileiro, uma rela��o �ntima com
o medievo. As hist�rias relatadas, os �causos� vivenciados, ainda exercem uma
intimidade com costumes cristalizados na cultura local. Essa manuten��o de um
pensamento, de certos costumes pode ser vista no texto de Suassuna:
A medievalidade se faz
notar ainda, em Suassuna, atrav�s da t�cnica do teatro �pico crist�o, com suas
modalidades espec�ficas e seus personagens estereotipados. [...] sendo a
cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante,
aquela marca atua como uma esp�cie de fonte para o pr�prio romanceiro, onde o
aspecto religioso se refor�a n�o s� por causa da religiosidade popular da
regi�o como tamb�m pela op��o pessoal da cren�a do autor, convertido ao
catolicismo na maturidade (VASSALLO, 1993, p. 29-30).
Esse tom moralizante proporciona um discurso,
muitas vezes, manique�sta. H� o certo e o errado, o bem e o mal. Esse discurso,
muito recorrente no medievo, encontra altos ecos ainda em v�rios lugares do
Nordeste.
O texto de Suassuna, suas fontes no cordel e sua
influ�ncia do catolicismo popular remetem � discuss�o empreendia por Deleuze e
Guattari (1977, p. 25. 28) ao defenderem que
Uma literatura menor n�o �
a de uma l�ngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma l�ngua maior.
[...]
As tr�s caracter�sticas da
literatura menor s�o de desterritorializa��o da l�ngua, a ramifica��o do
individual no imediato-pol�tico, o agenciamento coletivo de enuncia��o. Vale
dizer que �menor� n�o qualifica mais certas literaturas, mas as condi��es
revolucion�rias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou
estabelecida).
O Auto da
Compadecida faz parte de uma discuss�o sobre literatura universal e
literatura regional. A concep��o de literatura menor � atribu�da levando-se em
considera��o, como afirmaram Deleuze e Guattari, quest�es ideol�gicas,
pol�ticas e lingu�sticas. O lugar de onde se fala � importante para o
estabelecimento de uma classifica��o. O Nordeste � um lugar ideologicamente de
subalternidades. Mesmo Suassuna, um erudito, � um escritor regional, segundo o
c�none, por ter �cedido� � literatura popular.
Politicamente, o sert�o ainda � visto como um
lugar de coron�is, cujo povo segue dominado, n�o pensa, n�o produz cultura.
Todas as express�es feitas pelo sertanejo surgem como subcultura, reinando no
campo do folclore, de uma tradi��o est�tica, portanto, morta.
Toda classifica��o � arbitr�ria. Todo hermetismo
revela uma incompletude, uma insatisfa��o. Um texto n�o cabe em uma caixa, n�o
se sente c�modo em um cofre. Os folhetos de cordel ou a pe�a Auto da Compadecida s�o textos regionais,
mas n�o somente isso, tamb�m se constituem obras nacionais, mas tamb�m n�o s�o
apenas isso. Um texto � o tudo e � o nada:
a obra somente � obra quando ela se
converte na intimidade aberta de algu�m que a escreveu e de algu�m que a leu, o
espa�o violentamente desvendado pela contesta��o m�tua do poder de dizer e do
poder de ouvir (BLANCHOT, 1987, p. 29).
Uma obra � um comp�ndio com lacunas a serem
preenchidas pelo leitor. Esse que n�o respeita, necessariamente, as nomea��es e
classifica��es oficiais. Literatura menor, universal, nacional, homoer�tica, de
g�nero, �tnica. Talvez nomenclaturas que defendam um espa�o de fala, mas tamb�m
que excluem tantas outras. Para o leitor, para mim, leitor, o texto � um mundo
a ser descoberto, um espa�o que precisa ser nomeado. Sou eu, leitor, quem o
fa�o. As palavras est�o ali, mas � preciso �penetrar surdamente� nesse ambiente
� espera do que h� por vir. � imprescind�vel entregar-se a este mundo, a este
tempo. Nesse instante, n�o importam c�nones, classifica��es s�o indiferentes. �
a obra, sou eu e o mundo a desvendar.
4� retalho: o arquivo
O mundo processa uma s�rie de informa��es,
produz conhecimentos que precisam ser guardados. Existe armazenamento para tudo
na contemporaneidade. Em uma empresa, a vida de cada funcion�rio � arquivada.
Na Igreja, h� o rol de membros de seus fi�is. No clube, existe a rela��o de
associados com suas informa��es pessoais. Para cada livro publicado no Brasil,
uma c�pia � envida para a Biblioteca Nacional. Enfim, o arquivo � lugar de
lembran�a e de esquecimento. Representa o est�tico, o imut�vel. � a mem�ria e a
tradi��o, o espa�o do tempo perdido.
Cada retalho � um arquivo em potencial. Cada
taco fez parte de uma pe�a espec�fica de pano, que foi utilizado para a
confec��o de uma roupa, cujas sobras foram relegadas a segundo plano. Mas at�
chegar ao abandono, teve impressa em si a ideia de tecido, o prot�tipo de uma
roupa. Ao ser utilizado em uma colcha de retalhos, adiciona a si mais uma
impress�o, somada a tantas outras de diversos tacos.
Por isso, n�o compreendo o arquivo como algo
morto, inerte. H�, certamente, a possibilidade de um conhecimento estar
engavetado, abandonado, esquecido, mas o arquivo �, al�m disso, e talvez o mais
importante, o lugar de onde se pode dispor de saberes.
Eu recorro � mem�ria, enquanto arquivo
individual ou coletivo, para ativar conhecimentos. Ao faz�-lo, tal conhecimento
� re-elaborado, re-visto. O
car�ter de passividade n�o se sustenta. O pr�prio livro pode ser compreendido
como um arquivo: �Um texto s� � um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao
primeiro encontro, a lei de sua composi��o e a regra de seu jogo. Um texto
permanece, ali�s, sempre impercept�vel. (DERRIDA, 2005, p. 7).
Enquanto arquivo que, talvez nunca se mostre, o
livro precisa ser tocado por mim, leitor, e vice-versa, n�o para dissec�-lo,
mas para que eu, enquanto leitor, busque o meu saber, encontre as respostas
para os meus questionamentos e, inclusive, suscite outras d�vidas sobre mim e
sobre o mundo.
Os
arquivos s�o um dep�sito em estado de lat�ncia. O arquivista � quem lhe d�
sentido. O livro � um ser � espera do encontro. O dom�nio do arquivo est� nas
m�os de quem o ordena, daquele que o consulta. O livro foge do poder de seu
autor, escapa por entre seus dedos. Ao autor, cabe o escrever, o finalizar a
escrita. Sou eu, leitor, quem a continuo:
O dom�nio do escritor n�o est� na m�o que
escreve [...]. O dom�nio � sempre obra da outra m�o, daquela que n�o escreve,
capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do l�pis e de o afastar.
Portanto, o dom�nio consiste no poder de parar de escrever, de interromper o
que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade decisiva no instante
(BLANCHOT, 1987, p. 15-16).
Crendo nessa concep��o de arquivo, como algo que
exerce duas for�as concomitantes, de um lado, a for�a intr�nseca, que mant�m a
tradi��o, do outro, a extr�nseca, que promove o novo, � que percebo no Auto da Compadecida um arquivo vivo,
impregnado da presen�a de textos diversos, de �pocas diferentes, que dialogam
com a pe�a teatral do autor paraibano.
Ler o texto de Suassuna � deparar-me com a
influ�ncia do texto vicentino. Assim como o autor lusitano, Ariano Suassuna
apoia seu texto na r�gida moral crist� medieval. H� uma rela��o entre a
�trilogia� da Barca com o Auto,
quando do julgamento dos personagens por seus atos cometidos por toda a vida.
Em Gil Vicente, no entanto, reina um cristianismo oficial, n�o cedendo espa�o
para inser��es de cren�as populares, como no texto brasileiro.
O onzeneiro, a alcoviteira, o fidalgo, o sapateiro
s�o exemplos de classes sociais representadas n�O Auto da Barca do Inferno. N�O
Auto da Barca do Purgat�rio, tem-se personagens da classe popular, como um
pastor, uma mexeriqueira, um blasfemador. Aqui, o purgat�rio, espa�o
intermedi�rio entre o c�u � o inferno, � o caminho do meio, a via alternativa
para a senten�a divina. J� n�O Auto da
Barca da Gl�ria, as personagens pertencentes � aristocracia, Papa, Bispo,
Duque, s�o perdoadas mediante arrependimento.
Nesses textos, cada personagem personifica um
pecado capital. Tais falhas precisam ser expurgadas do seio da sociedade, como
meio de reeducar o ser humano. A religi�o como forma de ensino, elemento de
repress�o do mal que habita o �ntimo do homem. H� toda uma constru��o, em Gil
Vicente, para amedrontar os espectadores de suas pe�as. Diabos, inferno e
purgat�rio, seres e espa�os m�ticos que povoam o imagin�rio medieval e que se
materializam na vida cotidiana daquele per�odo:
Comen�a a declara��o e argumento da obra.
Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no
ponto que acabamos de expirar, chegamos supitamente a
um rio, o qual per for�a havemos de passar em um de dous
bat�is que naquele porto est�o, scilicet, um deles
passa pera o para�so e o outro pera o inferno: os quais bat�is tem cada um seu
arrais na proa: o do para�so um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um
companheiro (VICENTE, 1965, p. 27).
O c�u, o inferno e o purgat�rio tamb�m s�o
evocados no Auto da Compadecida. Mas
em Suassuna, tais espa�os j� foram impregnados pelo catolicismo popular,
permeados de influ�ncias do espiritismo, bem como das culturas negra e
ind�gena:
O catolicismo popular se exprime mediante
elementos culturais, e as culturas populares, por meio de elementos religiosos.
A simbiose, em alguns casos, � t�o forte que n�o � f�cil distinguir o que
pertence � religi�o do que pertence � cultura (GOIS, 2004, p. 11).
No Auto,
� durante o julgamento que Jo�o Grilo exercita toda sua ret�rica. Convence
Manuel a enviar os r�us para o Purgat�rio, Severino � direcionado ao c�u e ele,
autor de todas as mentiras e trapa�as de Tapero�, usa de um discurso de
autopuni��o para garantir a miseric�rdia da Compadecida:
A COMPADECIDA: Jo�o foi um
pobre como n�s, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra
seca e pobre com a nossa. N�o o condene.
[...]
Pe�o-lhe ent�o, muito
simplesmente, que n�o condene Jo�o. [...]. D�-lhe ent�o outra oportunidade.
MANUEL: Como?
A COMPADECIDA: Deixe Jo�o
voltar.
MANUEL: Voc� se d� por
satisfeito?
JO�O GRILO: Demais. [...]
(SUASSUNA, 2004, p. 170. 172).
O Amarelo ludibria as divindades, e seu retorno
ao sert�o promete mais picardias, j� que justificava seus atos pela m�
distribui��o de renda no pa�s, pela n�o efetiva��o de uma vida crist�, quando
ele, o pr�ximo, era esquecido, humilhado por uma sociedade excludente.
A constru��o da personagem Jo�o Grilo segue o
prot�tipo do her�i picaresco, ou anti-her�i, que sobrevive �s custas de seus
pequenos golpes. O p�caro n�o pensa em um futuro distante, preocupa-se com o
hoje, pois carece alimentar-se. Como est� �s margens da sociedade, o anti-her�i
vinga-se de quem o exclui trapaceando, mentindo. N�o segue uma moral
espec�fica, nem regras r�gidas, o p�caro a tudo subverte em nome de uma
sobrevida di�ria. O Lazarillo de Tormes,
texto an�nimo espanhol do s�culo XVI, traz ao mundo o prot�tipo de p�caros que
se seguem ao longo da literatura burlesca mundial:
Vuestra
Merced debe saber primero que todos me llaman L�zaro de Tormes, hijo de Tom� y
de Antona P�rez, de Tejares, pueblo de Salamanca. Mi
nacimiento fue dentro del r�o Tormes y por esta raz�n tom� mi apellido. Mi
padre trabajaba en el molino de agua que hab�a en aquel r�o, desde hac�a m�s de
quince a�os. Y ocurri� que all� le lleg� a mi madre una noche la hora de
traerme al mundo, y naci yo. De manera que con verdad
me puedo decir nacido en el r�o (LAZARILHO
DE TORMES, 1994, p. 09).
L�zaro n�o possui for�a bruta, nem autonomia
financeira. S� pode usar a intelig�ncia e a perspic�cia. O intrigante � ter que
alimentar uma mentira com outra mentira. Ao ser descoberto, resta-lhe fugir e
recome�ar seu ciclo de picardias.
No texto teatral de Suassuna, Grilo � o p�caro
que habita o sert�o nordestino. V� a vida como um palco, onde precisa atuar
para sobreviver. Conforme Derrida (2005, p. 12), �a escritura j�, �, portanto,
encena��o�, por isso mesmo, a vida, que imita a arte em diversos momentos, deve
adaptar-se �s mais diferentes situa��es. Grilo � o resultado do meio em que
vive:
JO�O GRILO: Muito pelo
contr�rio, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando
estive doente. Tr�s dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo
dՇgua me mandaram. [...] a qualquer hora acerto com o patr�o! Eu conhe�o o
ponto fraco do homem, Chic�! (SUASSUNA, 2004, p. 26).
A vingan�a � o �nico caminho a trilhar, visto
que � o �nico que conhece. Ao conviver com avaros, ego�stas, hip�critas,
torna-se tamb�m um, por meio de um refor�o negativo. O Amarelo age, no fim das
contas, como um daqueles que trapaceia, pois v� nisso a �nica forma de viver e
suportar as agruras do mundo em que vive.
De todas as formas, a avareza � o pecado capital
mais combatido em textos com p�caros. Pela avareza, os homens perdem as suas
almas, afastam-se da divindade, separam-se da religi�o. Pela sovinice, Harpag�o, da obra O
Avarento, de Moli�re, promove casamentos arranjados para seus filhos,
comanda um regime de conten��o de despesas em casa, racionando a comida,
escondendo seu tesouro. � conhecido por todos pela sua mesquinhez, como afirma
seu servo:
MESTRE TIAGO: Senhor, j�
que assim quereis, dir-vos-ei francamente que tro�am de v�s por toda a parte;
que vos lan�am, de todos os lados, mil zombarias e que s� ficar�o satisfeitos
quando vos derem um pontap�; e inventam, constantemente, hist�rias sobre a
vossa mesquinhice. [...]. Enfim, quereis saber? N�o se vai a lado nenhum que
n�o se ou�a dizer de v�s o pior poss�vel. Sois o motivo de tro�a e de risos de
todos, e s� vos tratam por avarento, mesquinho, desprez�vel usur�rio (MOLI�RE, 1971,
p. 62).
O Padeiro e sua Esposa s�o os maiores sovinas
que Tapero� j� viu. Exploram seus empregados, Grilo e Chic�,
que, por sua vez, buscam explorar a quem encontram. Mas h� avareza em outros
personagens do Auto da Compadecida. O Padre e o Bispo guerreiam pelo
testamento do cachorro. Severino invade a vila e saqueia a todos. Pela avareza,
o autor observa os outros pecados aproximarem-se do homem e tomarem conta de
seu esp�rito. Da avareza do casal de patr�es, surge o sentimento de vingan�a de
Grilo, que s� possui sua mente e sua voz como armas para combater os mais
fortes:
JO�O GRILO: � homem sem vergonha! [Chic�][103]
Inda pergunta? Est� esquecido que ela [A mulher do padeiro][104]
deixou voc�? Est� esquecido da explora��o que eles fazem conosco naquela
padaria do inferno? Pensam que s�o o c�o s� porque enriqueceram, mas um dia h�o
de me pagar. E a raiva que eu tenho � porque quando estava doente, me acabando
em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o
cachorro. At� carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, Jo�o Grilo que se
danasse. Um dia eu me vingo (SUASSUNA, 2004, p. 39).
O final do texto de Ariano Suassuna aponta para
uma poss�vel remiss�o de Jo�o Grilo, mas ele retorna mais pobre do c�u do que
quando fora julgado. Na verdade, nesse instante, o autor est�, atrav�s do Palha�o,
o narrador e condutor da pe�a, chamando a aten��o do expectador, para que este
poss�vel Grilo que esteja no recinto afaste-se de uma vida de picardias.
Esses retalhos, acrescidos � colcha do Auto da Compadecida, s�o exemplos de um
arquivo que se pretende m�vel, dialogando com outros tacos, conversando com o
leitor.
Em cada retalho montado, um rastro estelar me
chega aos olhos. Em cada imbricamento de textos, uma nova raiz fasciculada gera
outras conex�es textuais, musicais, visuais, enfim, prazerosamente, abro o
arquivo e retiro dele a coberta de taco do Auto
da Compadecida, com ela, tantos outros ecos de tantas outras hist�rias em
desprop�sitos sem fim.
5� retalho: a semiologia
Segundo Blanchot
(1987, p. 12),
A obra liter�ria � solit�ria: isso n�o significa
que ela seja incomunic�vel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l� entra nessa
afirma��o da solid�o da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco
dessa solid�o.
O texto liter�rio, solit�rio por natureza, pode
aproximar-se de outras linguagens. Dentre essas, a cinematogr�fica. Pelo olhar
do cinema, a literatura ganha outros olhares, novas sensa��es, outros p�blicos.
O Auto da Compadecida � um dos textos
do s�culo XX mais recorridos � grande tela. Pelas lentes das c�meras, Grilo e
seus companheiros recebem interpreta��es pela caneta dos roteiristas e adquirem
semblantes conhecidos em todo o pa�s e tamb�m fora dele.
A primeira adapta��o f�lmica, A Compadecida, foi dirigida por George
Jonas e estrelada por Regina Duarte, Antonio Fagundes
e Armando Bogus. � a adapta��o mais parecida com o
texto liter�rio e seu roteiro foi escrito pelo pr�prio Suassuna, que acompanhou
toda a filmagem, aprovando-a.
Mas de todas as tr�s adapta��es, essa, de 1969,
� a que possui o enredo mais arrastado, j� que h� uma tentativa clara de fazer
teatro no cinema. Todas as a��es da pe�a s�o transpostas para a pel�cula, mas o
time do humor no teatro n�o segue o
mesmo tempo na frente das c�meras.
A segunda adapta��o, de 1987, foi dirigida por
Roberto Farias. Intitulada Os Trapalh�es
no Auto da Compadecida, foi protagonizada pelo quarteto de humoristas
famoso na televis�o e no cinema com seus filmes leves e de riso frouxo.
Com a inten��o de agradar a cr�tica, Ariano
Suassuna foi convidado por Renato Arag�o para coassinar
o roteiro da adapta��o, que mant�m a figura do Palha�o, como o narrador que unifica
os tr�s enredos: a morte do cachorro, o gato que descome dinheiro e o
Julgamento Final. Contudo, o p�blico n�o assimilou o filme estar associado a um
texto �s�rio�. Apesar de ter sido exibido, inclusive em Portugal, foi uma das
menores bilheterias dos Trapalh�es, embora tenha recebido boas cr�ticas.
O texto de Suassuna foi adaptado para a
televis�o em parte, inserido em novelas, montado para o teatro incont�veis
vezes. Tem trechos de seu texto utilizado em livros did�ticos como exemplo de
literatura dram�tica. Sua linguagem leve � assimilada com facilidade pelos
leitores e espectadores.
Em 2000, por meio de uma redu��o da micross�rie exibida um ano antes, estreou nos cinemas brasileiros
O Auto da Compadecida[105], dirigida por
Guel Arraes. Protagonizada por Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele,
Selton Melo, Marco Nanini e outros, a pel�cula foi uma das mais vistas naquele
ano.
Guel Arraes e os roteiristas Adriana Falc�o e
Jo�o Falc�o acrescentam ao texto de Suassuna trechos de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, al�m de personagens
de outras pe�as do autor paraibano, como Torturas
de um cora��o. O roteiro � �gil e prende o espectador atrav�s do riso
gerado pelas ast�cias de Grilo e pela covardia de Chic�.
Essa �ltima adapta��o � a mais popular de todas.
Embora suavize o discurso manique�sta do texto liter�rio, mant�m com este um
di�logo constante, respeitando as diferen�as de signos que os constituem.
Tais filmes tamb�m contribuem para formar a
colcha de retalhos com suas especificidades. Cada roteiro, cada leitura do
diretor, cada interpreta��o dos autores n�o reduz, como muitos cr�ticos pensam,
a obra liter�ria ou por que o filme n�o mant�m uma pretensa fidelidade, sendo
devedor da literatura. Ao contr�rio, conversa com esta. N�o h� o superior e o inferior,
h� os diferentes, e o ser�o sempre, como cada retalho de pano � um do outro. Para
Robert Stam,
N�s ainda podemos falar em adapta��es bem feitas ou
mal feitas, mas desta vez orientados n�o por no��es rudimentares de
�fidelidade� mas sim, pela aten��o � �transfer�ncia de energia criativa�, ou �s
respostas dial�gicas espec�ficas, a �leituras� e �cr�ticas� e �interpreta��es�
e �re-elabora��o� do romance original, em an�lises
que sempre levam em considera��o a lacuna entre meios e materiais de express�o
bem diferentes (STAM, 2006, p. 51).
Retomo agora a coberta de taco que
venho cosendo diligentemente. Escolho cada retalho, os mais variados, somo-o a
outros. Nessa colcha, somam-se livros, pe�as de teatro, contos, m�sicas,
filmes. Nessa profus�o de cores, escritas e sons, todos coexistem unidos entre
si, sem a pretens�o de estabelecer hierarquias.
6� retalho: o retalho por vir
Em Edward W. Said, encontro a afirma��o:
Longe de serem algo unit�rio, monol�tico
ou aut�nomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos �estrangeiros�,
alteridades e diferen�as do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).
Todo retalho que li, seja o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, sejam O Avarento, de Moli�re, ou O
Mercador de Veneza, de William Shakespeare, ou ainda as Barcas de Gil
Vicente, ou O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro, O castigo da soberba, folhetos de
cord�is, sejam A Compadecida, Os Trapalh�es no Auto da Compadecida, O Auto da Compadecida, filmes
brasileiros. Sejam Derrida, Foucault, Blanchot, em
tudo que leio, vejo uma manifesta��o cultural. O homem � um ser que produz
cultura em tudo que faz.
Se creio nisso, abomino a ideia de cultura
superior dominando as outras, mas acredito no embate cultural, numa �nsia
constante de tomada de lugar entre os expoentes culturais.
Defendo um maior espa�o para as culturais
subalternizadas, ditas populares, mas tamb�m visualizo as constantes trocas
culturais. Vejo que o Eu quer estabelecer-se, mas observo que isso se d� em
conson�ncia com o Outro, para formar, muitas vezes o N�s, o Tu, o Eles.
A semelhan�a se d� por meio da diferen�a, porque
cada homem � um ser que se conhece, outro que se d� a conhecer e muitos seres
estranhos povoando os espa�os vazios da exist�ncia. Espa�os muitas vezes
ocupados pela literatura, que � a materializa��o desses seus que vagueiam por
a� � procura da plenitude do Nada.
Cresci em meio aos livros, mas a maior li��o que
aprendi � que os livros � que est�o dentro de mim. Eu sou uma colcha de
retalhos, eu sou um homem feito de peda�os, belos tacos que, unidos, formam o
que sou. N�o me sinto formado, n�o pretendo ser o dono da verdade, j� que as
creio m�ltiplas, e persigo-as e as uso, uma hoje, outra amanh�. E disponho de
cada retalho, e retomo meus retalhos, e me leio, � procura daquilo que sou e
tamb�m do que nunca virei a ser.
Estou aqui, eu, � espera dos pr�ximos retalhos,
dos textos de frui��o, das leituras de prazer. Espero fazer minhas conex�es constelat�rias, meus enxertos rizom�ticos.
Eu, assim como o menino de Manuel de Barros, levo �gua na peneira, molhando-me
nela, sentindo-a, sentindo-me.
Encontro-me aqui, nesse instante, com um peda�o
de colcha, inacabada, uma s�rie de retalhos, agulha e linha nas m�os.
Refer�ncias
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defecava dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim,
2006.
_________.
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VASSALO, L�gia. O
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Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
VICENTE,
Gil. Obras de Gil Vicente.
Porto: Lello & Irm�o, 1965.
[Recebido:
23 ago 2021]
[101]
Possui
gradua��o em Licenciatura em Letras Vern�culas pela Universidade Estadual de
Feira de Santana (1998), mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela
Universidade Estadual de Feira de Santana (2006) e doutorado em Letras pela
Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio Grande do Sul (2014). Atualmente �
professor Titular A da Universidade do Estado da Bahia e professor do Mestrado
Profissional em Letras da Universidade do Estado da Bahia, atuando, ainda como
Diretor do Departamento de Ci�ncias Humanas, Campus V, da UNEB. Tem experi�ncia
na �rea de Letras, com �nfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes
temas: literatura e outras artes, identidade, afrodescend�ncia
e cultura.
[102] Dispon�vel em: www.poetriz.wordpress.com/2006/01/11/0-menino-que-carregava-agua-na-peneira/ Acesso em: 3 jan. 2012, �s 15h.
[103] Acr�scimo nosso.
[104] Acr�scimo nosso.
[105]
Dispon�vel em: www.atualfilmes.onsugar.com/Download-O-Auto-da-Compadecida-6193160.
Acesso em: 15 nov. 2010, �s 16h.