Vozes poticas e
(re)existncias quilombolas do Grupo Razes do Samba de Tocos de Antnio
Cardoso - BA
Poetic voices and
quilombola (re)existences of the Razes do Samba de Tocos Group by Antnio
Cardoso – BA
Renailda Ferreira Cazumb[47]
https://orcid.org/0000-0002-3396-1962
Eliziane Santos e Santos[48]
https://orcid.org/0000-0001-9685-0066
Resumo: A vida e as histrias
dos mestres e mestras, sambadores e sambadeiras do grupo Razes do Samba de
Tocos de Antonio Cardoso - BA resguardam um precioso manancial potico e
narrativo corporificado em sambas e histrias tradicionais do grupo. Nesse
sentido, este artigo pretende visibilizar a interao e a recolha das vozes do
repertrio cultural oral e os referenciais ancestrais afro-brasileiros a partir
do levantamento e registro do seu repertrio oral. Fruto das aes da pesquisa
Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo Razes do Samba
de Tocos de Antonio Cardoso – BA, este estudo concentra-se em acessar as
narrativas de cunho oral e autobiogrficas dos mestres do samba rural. O aporte
terico-metodolgico se fundamenta na teoria de Benjamin (1994), nas concepes
de Costa (2015) acerca dos narradores tradicionais, em Ferraroti (1988), sobre
o mtodo autobiogrfico, e nas concepes de Hampat B (1977) a respeito da
tradio oral em comunidades africanas. O manancial narrativo insere os
sambadores/sambadeiras do Razes do Samba de Tocos dentre os guardies das
vozes ancestrais que reencenam as (re)existncias negras no interior da Bahia.
Palavras-Chave:
Razes do Samba de Tocos; Vozes poticas tradicionais; (Re)existncias.
Abstract: The life and stories of mestres and mestras, sambadores and
sambadeiras of the group Razes do Samba de Tocos
by Antonio Cardoso - BA traditional knowledge constitute precious poetic and
narrative source embodied in sambas and traditional stories by the group. In
this sense, this article intends to make visible the interaction and collection
of the voices of the oral cultural repertoire and the Afro-Brazilian ancestral
references from the survey and registration of their oral repertoire. It is the
result of the research actions of the project Cacimba de histrias: vidas e
saberes dos contadores de histrias tradicionais de cidades do interior da
Bahia, (UEFS/ UFSB/UNILAB), study focuses on accessing the oral and
autobiographical narratives of the masters of rural samba. The theoretical and
methodological contribution is based on Benjamin's theory (1994), on Costa's
(2015) conceptions about traditional narrators, Ferraroti's (1988) theory about
the autonomy of the autobiographical method, and Hampat B's (1977)
conceptions about oral tradition in African communities. The narrative source
inserts the sambadores/sambadeiras of the Razes do Samba de Tocos among the keepers
of ancestral voices that re-enact black (re)existences in the interior of
Bahia.
Keywords: Razes do Samba de Tocos. Traditional poetic voices. (Re)existences.
Introduo
Neste artigo socializamos parte dos resultados
da pesquisa Vozes ancestrais quilombolas em contos e narrativas do grupo
Razes do Samba de Tocos de Antonio Cardoso - BA (FAPESB/2019-2020), na qual
realizamos o levantamento do repertrio cultural de cunho oral advindo dos
mestres e mestras sambadeiras integrantes do Grupo Razes do Samba de Tocos, da comunidade quilombola situada no
municpio de Antnio Cardoso, estado da Bahia. Interessadas em investigar a
preservao e a visibilizao dos saberes populares provindos dos narradores
tradicionais do Recncavo Baiano, interagimos com o grupo por reconhecermos o
processo de silenciamento e marginalizao desse conhecimento no mbito da
educao formal, assim como o possvel apagamento desse acervo cultural na
sociedade moderna.
Neste sentido, focalizamos as vozes poticas das
sambadeiras e sambadores, por meio do intercmbio de saberes entre a comunidade
tradicional, que o campo emprico da nossa pesquisa, e os espaos acadmicos
envolvidos. Neste percurso, interagimos com o Mestre Saturnino Dias Neri, de
cognome Mestre Satu, e com as sambadeiras Antnia Neri e Valdemira Sena de
Almeida, Dona Mira, integrantes do grupo de samba tradicional na comunidade
quilombola de Tocos, atravs da Entrevista Narrativa. Tais aes resultaram no
levantamento e registro das histrias contadas – verses originais de
contos populares e de sambas rurais – de forma individual e coletiva
pelos sambadores, situados no estudo como narradores tradicionais e que
revelaram um manancial potico tradicional a ser reconhecido como repertrio
das reexistncias negras no contexto das comunidades quilombolas do interior da
Bahia.
O mestre e as sambadeiras, atores da pesquisa em
questo, foram situados a partir da concepo de narradores tradicionais,
adotada durante o processo de investigao. Para tanto, essa movimentao fundamentou-se
na teoria de Walter Benjamim a respeito de quais traos caracterizam um
narrador tradicional. Segundo o filsofo alemo:
Assim definido, o narrador figura entre
os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos: no para alguns casos, como o
provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois pode recorrer ao acervo de
toda uma vida (uma vida que no inclui apenas a prpria experincia, mas em
grande parte experincia alheia. O narrador assimila sua substncia mais
ntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom poder contar sua vida; sua
dignidade cont-la inteira. O narrador o homem que poderia deixar a luz
tnue de sua narrao consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIM,
1994, p. 221).
Alm da definio da figura do narrador
tradicional, que popularmente conhece e possui o acervo dos saberes, buscou-se,
de antemo, compreender qual a funcionalidade desse indivduo para a sociedade.
Segundo Edil Costa (2015, p.06): O papel dos narradores tradicionais o de
interpretao e recriao da memria ancestral que herdaram e, a seu modo,
preservam. Sendo assim, chegamos at Mestre Satu, Dona Antnia e Dona Mira, um
trio de ancies que representam a sua comunidade e resguardam saberes coletivos.
Ouvimos e aprendemos com o mestre e as sambadeiras sobre a importncia da
preservao desse manancial cultural, pois que tais saberes, segundo esses
sujeitos, esto se tornando raros na contemporaneidade.
A perspectiva metodolgica autobiogrfica
O Grupo Razes do Samba de Tocos liderado pelo
Mestre Satu e se constitui como grupo h cerca de 16 anos, a partir dos
encontros entre vizinhos, amigos e familiares que se reuniam de forma frequente
a fim de celebrar as datas religiosas como as novenas, a festa de Reisado (o
Rei, segundo denominam) e as festas para os caboclos – manifestaes estas
sempre regadas com rezas, cantigas e sambas que variam em suas mltiplas
modalidades, como o samba coco, o cantado e o pisado. O grupo formado
principalmente por camponeses e camponesas que vivem na regio da antiga
fazenda de Tocos, municpio de Antnio Cardoso, no interior da Bahia, a 30 km
de Feira de Santana, o qual tem como principal atividade econmica a produo
agrcola, especialmente do fumo, milho e feijo (SESC, 2014). Para alm do
lder, integram esse coletivo Roque da Viola, Afonso das Virgens, Antnio Luiz,
Manoel Conceio, Dona Antnia, Dona Edilma e Dona Maria de Lourdes.
Mestre Satu, Dona Antnia e
Dona Mira participam desta pesquisa por integrarem especialmente uma comunidade
afro-brasileira, na qual est concentrada a cultura negra ancestral de forma
muito potente atravs, sobretudo, da memria e da oralidade. Esse aspecto
torna-se relevante ao considerarmos a concepo do etnlogo e filsofo malins
Amadou Hampat B sobre a relao da oralidade com a formao das sociedades
africanas, a saber:
Quando falamos de
tradio em relao histria africana, referimo-nos tradio oral, e
nenhuma tentativa de penetrar a histria e o esprito dos povos africanos ter
validade a menos que se apie nessa herana de conhecimentos de toda espcie,
pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discpulo, ao longo
dos sculos. Essa herana ainda no se perdeu e reside na memria da ltima
gerao de grandes depositrios, de quem se pode dizer so a memria viva da
frica (HAMPATE B, 1977, p. 1).
A contribuio de um dos
maiores pensadores africanos do sculo XX para que a oralidade fosse
reconhecida como uma fonte significativa e especialmente legtima de circulao
de conhecimento histrico foi a fundamentao indispensvel para o
desenvolvimento desta pesquisa. Pensar na histria e na cultura pertencentes aos
diversos povos africanos falar de oralidade e memria e, portanto, no
haveria via mais simblica para nosso estudo do que a de adentrar em uma
comunidade quilombola afro-brasileira atravs das manifestaes de cunho oral
em toda a sua multiplicidade, a fim de acessar e fazer o levantamento dos seus
saberes presentes nas memrias do grupo.
Ao se
referir ao saber tradicional dos narradores enquanto um acervo resultante de
toda a trajetria de vida desses indivduos, o autor supracitado Walter
Benjamim (1944) nos apresenta um importante recurso para a gerao de dados de
pesquisa: os relatos autobiogrficos.
A fim de alcanar estes materiais, adotamos a
perspectiva metodolgica autobiogrfica e nos embasamos nas concepes do
socilogo Franco Ferraroti em relao autonomia do mtodo (auto)biogrfico,
com base na etnografia,
e considerando as prticas e saberes de alguns dos integrantes do grupo Razes
do Samba de Tocos. Segundo
aquele que foi descrito como pai da sociologia italiana moderna: (...) o nosso
sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um
dos nossos sonhos, delrios, obras, comportamentos. E a histria deste sistema
est contida por inteiro na histria da nossa vida individual (FERRAROTTI,
1988, p. 26). Dessa forma, tencionamos partir da investigao das histrias
individuais do Mestre Satu, da Dona Antnia e da Dona Mira a fim de, para alm
dos relatos de suas vivncias, abranger narrativas que dialoguem com a memria
de Tocos enquanto uma coletividade. Para isso, foi utilizado um dispositivo de produo e anlise de dados de
pesquisas, qual seja, a Entrevista Narrativa:
Idealizada por Fritz Schtze como um
dispositivo para compreender os contextos em que as biografias foram
construdas, os fatores que produzem mudanas e motivam s aes dos portadores
da biografia, essa entrevista produz textos narrativos sobre as experincias
das pessoas, expressando maneiras como os seres humanos vivem o mundo por meio
de histrias pessoais, sociais e coletivas. Ela tem como objetivo incentivar a
produo de uma narrativa pelo depoente (MOURA;
NACARATO, 2017, p. 17).
Este dispositivo tende, na verdade, a promover uma ruptura
com o padro de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas e oferta uma maior
flexibilidade para que o entrevistado tenha a fluidez necessria para transitar
por diversos temas de seu interesse, sem que uma sequncia de perguntas limite
suas narrativas. Ademais, propicia no apenas o levantamento de histrias
pessoais como tambm a anlise do contexto no qual o indivduo est inserido,
considerando os atravessamentos de idade, gnero, raa, etnia, classe social e
momento histrico.
Dessa forma, a nossa entrevista narrativa ocorreu de forma
coletiva e on-line no dia 26 de maio
de 2021, atravs da plataforma digital Google
Meet, assim configurando as adaptaes que j estavam previstas desde o
incio da pesquisa devido s restries consequentes da pandemia de COVID-19.
De antemo, foi elaborado um material com algumas questes disparadoras apenas
para nos guiar durante a entrevista, mas o contedo real foi conduzido pelos
mestres e pelas mestras que, com pouco tempo de gravao, j se sentiam
vontade para fazer da memria o seu principal orientador. Em sequncia ao
trabalho de interao com os mestres da comunidade de Tocos, o movimento foi
registrar todo o material coletado, que variou desde os relatos autobiogrficos
at verses de contos populares e letras de samba.
No processo de entrevista aos mestres h muitos detalhes da
performance oral e narrativa que, infelizmente, apenas a escrita no capaz de
captar. Os corpos desses contadores tradicionais narram significativamente, bem
como o olhar, os gestos, o riso e outros elementos contribuem para uma
compreenso mais ampla do que est sendo narrado e cantado. Portanto, dentro de
todas as limitaes dos textos escritos, buscamos transpor para as letras
algumas dessas manifestaes, deciso que tornou o processo de transcrio um
dos mais rduos de toda a pesquisa. Traremos, no corpo da anlise, trechos das
narrativas com o mestre e sambadeiras, a fim de potencializar o texto escrito
com a riqueza do manancial potico-narrativo do grupo.
As
vozes poticas do Razes do Samba de Tocos: ancestralidade e reexistncia
Nossa inteno no a de dar voz ao grupo de sambadores e
narradores tradicionais, pois cremos que nosso percurso se concentra em
dialogar e aprender com o grupo, ponderando que a voz j pertence aos
narradores e so sua fonte de vida e reexistncias. A Entrevista Narrativa
coletiva concedida a ns pelo Mestre Satu, pela Dona Antnia e pela Dona Mira
foi organizada de forma a promover a socializao de narrativas, aps pedirmos
licena para adentrar ao espao da ancestralidade do grupo. Nas conversas, os
sambadores nos revelaram, no primeiro momento, a sua identidade enquanto
indivduos; em sequncia, como sujeitos imersos em um determinado grupo e, por
fim, enquanto mestres da tradio popular do Recncavo Baiano. A ttulo de
exemplo desse movimento tem-se o relato do Mestre Satu acerca da origem do seu
nome, portanto, do comeo da sua histria de vida:
Saturnino
Dias Neri, meu apelido Satu, Mestre Satu e meu nome Saturnino Dias Neri.
Meu pai me contou um negcio do nascimento era que os pai pra registrar os fi
tinha que v um livro, um almanaque de pensamento que era pra escolher o nome
dos meninos quando nascia, ai escolhia, fulano nasceu nim tal ms ai botava o
nome, quer dizer que era um pensamento que as pessoa tinha, iai botaram meu
nome Satu, Saturnino e botaram o apelido Satu e , acho que bem pouco que tem
aqui no municpio porque o povo no, hoje tudo pensando como eles quer
fazer, antes dos meninos nascer j t com nome marcado n: vou botar fulano de
tal, isso e aquilo outro. Papai e mame se reuniram e botaram Saturnino (Mestre Saturnino Neri).
Nascido
e criado no municpio de Antnio Cardoso, o Mestre Satu filho de Jovina Neri de Souza e Isdio Dias de Souza, e possui oito irmos, dentre os quais
sete so mulheres e um homem. A memria muito viva um dos traos que nos
saltaram aos olhos durante a interao com o Mestre Satu, no auge dos seus 79
anos: cantador, contador e rezador, ele nos narrou histrias completas da sua
infncia e juventude, perodo este marcado especialmente pelo trabalho manual
nas roas:
Era tudo devagar, mas dava pra passar,
dava pra divertir, a gente ia trabalhava mais os pais, mais as mes, a vaidade
era passear mais os amigo. j era tudo marcado e a ida era marcada, ali a gente
no podia sair pra ir pra canto nenhum, era tudo dominado, escravizado. Quando
terminava o servio iam pra roa, ia pisar milho, catar baxeiro, sentar pra
amarrar fumo, era um bocado de coisa. Iai quando terminava de tarde : vo pra
roa fazer a rocinha de vocs, ai a gente vinha fazer a rocinha da gente,
prantava um feijozinho, prantava um pezinho de fumo, no tinha munturo naquele
tempo, a gente ia pros matos, pros morros pra pegar folha de Gravat pra fazer
os munturo, a gente no podia sair numa estrada se no fosse acompanhado que
naquele tempo a polcia pegava, os inspeto pegava (sinal de lavar as mos) e
ajeitava l, ai ia levar pros pais chegava l entregava pros pais. Mai, mai! eu
no tenho tristeza por isso no, gostei muito, eu prantava meu fumo, prantava
meu feijo, no vendia, mas dava pra gente cumer, quando eu peguei a me
entender, a eu peguei, plantei minha roa, prantando minha farinha e levando
pra Anguera pra vender pra eu comprar roupa pra vestir, chapu sapato... (Mestre
Saturnino Neri).
A memria da infncia e juventude do Mestre Satu demonstra
como a explorao pode ser relativizada no meio das comunidades
afro-brasileiras. Apesar de reconhecer a grande sobrecarga de trabalho presente
no seu cotidiano e no dos seus pares, ao empregar termos como escravizados e
dominados, o mestre afirma que no sente remorsos ou tristeza ao se recordar
do passado, e que dava para se divertir. Dessa forma, podemos refletir que,
apesar de em nenhum momento o Mestre ter abordado de forma literal as questes
raciais, esse discurso se revelou atravs da sua fala e do relato de como os
seus corpos foram estruturalmente controlados e destinados, quase que
integralmente, ao labor e subsistncia – enquanto o lazer, as
brincadeiras e o aspecto ldico, que deveria predominar durante sua infncia, foram
elementos distantes da realidade desse sujeito e das outras crianas do seu
entorno.
Na vida do Mestre Satu essa problemtica no se restringe
aos primeiros anos de sua vida, mas segue ao longo de sua trajetria, visto que
ele afirma, nos desdobramentos finais da entrevista, no dominar a linguagem
escrita devido s suas jornadas de trabalho. Essa temtica surgiu enquanto
falvamos da literatura de cordel, muito bem representada na comunidade por
Antnio Ribeiro da Conceio, nacionalmente reconhecido como Mestre Bule-Bule. Outras
possveis literaturas poderiam ter feito parte das suas vidas e da memria do
grupo, conforme Dona Mira nos revela: Vou dizer, eu no sei l, no sei l,
guardo tudo na minha cabea. Essa declarao ensejou o mestre a contar tambm
a sua experincia e a forma com que a necessidade de trabalhar para sustentar
seus doze filhos o impediu de dedicar o seu tempo aos estudos, escrita e aos
livros:
Meu tempo no dava pra eu l esse negcio
de cordel, meu cordel era rancar toco pra criar meus fio, aqui em Cruz das
Almas pra c, eu rancava toco ai em So Gonalo, Santa Matibiri, Conceio de
Feira, esses pau tudo, a gente saa daqui com uma mochila nas costas pra ir
trabalhar, rancar toco, cortar lenha pra poder criar os filhos, mas graas a
Deus meus fi ta criado e eu tambm no perdi a minha disposio, a minha
vontade, sou feliz, hoje eu sou o que eu no esperava, meus filho no me d dor
de cabea, todo mundo tem seu trabalhozinho pra trabalhar, todo mundo tem seu
larzinho pra colocar, tem seu motorzinho, ento eu tenho alegria (Mestre
Saturnino Neri).
Ainda nesse contexto possvel trazer para a discusso os relatos
das vivncias da Antnia Lima Neri, sambadeira e companheira do Mestre Satu h
mais de cinco dcadas, alm de me de doze filhos que, segundo ela, foram
criados com muito esforo e trabalho: (...) tudo nesses bracinhos capinando terra,
prantando mandioca, batata, fumo, pisando milho pra fazer cuscuz, mucunz pra
criar, criei. Graas a Deus eu t reagindo ainda, pareceu um sambinha a nois
samba n, graas a Deus, t arrependida no. Em relao aos estudos, Dona
Antnia afirma que tambm no domina as letras, entretanto, lista uma srie de
outros saberes que ela possui: (...) sei fazer um caruru, um
vatapazinho de So Cosme, sambar, trabalhar de enxada, fazer beiju no forno,
isso a eu sei ne, e passear.
Ademais, tambm conseguimos fazer o levantamento das narrativas da Valdemira Sena de Almeida, filha de Valeriana Sena e Firmino Gonalves, viva de Adolfo Paulino dos Santos e que se apresenta pelo apelido Dona Mira. As falas dessa sambadeira nos trouxeram resultados bastante enriquecedores, pois, ao fazer relatos de sua infncia, ela estabeleceu um panorama do modo com o qual tanto ela como seus pares foram introduzidas no samba e nas tradies populares da comunidade quilombola de Tocos:
A gente ia pro samba, minha me botava a
gente pra ir pra uma reza, a gente ia mais ela, chegava l o pessoal botava uma
esteira no cho, as mes falava "vocs tem que ficar aqui comigo, at
terminar a reza" a gente ficava l, quando terminava a reza ia cantar o
rei, ia cantar o rei a gente ficava l de junto do Rei tambm cantando,
parmeando e tudo, a as amiga falava o samba no d pra gente que o povo t
sambando caboclo, bora cantar roda, a gente saia pra cantar roda
(Dona Mira Almeida).
O municpio de Antnio Cardoso possui antigas tradies populares e de referncia africana que so indispensveis para a preservao da cultura sertaneja no estado da Bahia, sendo estas, muitas vezes, pautas da nossa entrevista narrativa. De acordo com Edil Costa (2016, p. 54): Sendo a Bahia um forte reduto de afrodescendentes, sabemos que a contribuio de povo africanos na nossa formao cultural inegvel. Assim, o mestre e as sambadeiras autoras da nossa pesquisa expuseram relatos das celebraes e fazeres culturais, como as rodas de Samba Rural, a festa do Reisado, as cantigas que nascem e circulam nesses meios festivos, assim como as comidas tpicas que fazem parte do saber ancestral das mulheres da comunidade e os contos populares que tambm compem o acervo da cultura oral e de cunho afrodescente.
A respeito de sua insero no universo do samba, o Mestre Satu confirma que, na comunidade de Tocos, isso ocorre de forma muito natural (assim como narrado acima pela Dona Mira), j que a maior parte das crianas se inicia na prtica acompanhando os pais e, dali em diante, elas no deixam mais a roda. Ademais, o Mestre ainda traz em sua colocao uma crtica s novas geraes que, segundo ele, no se interessam mais por aprender as tradies como em seu tempo de juventude:
A dana a gente mesmo aprende, s bastava
o vento tocar, marminino! O samba tambm, hoje que ningum quer nada mais,
(...) no aguentava v um camarada tocar. Eu fazia samba aqui (...) eu fazia
samba esse mundo todo. Em Feira de Santana meu mestre foi Gonalo Barbosa,
cumpanheiro, os dois cumpanheiros de encontro era Francisco e Joo Quente, e a
a gente ia fazendo festa nesse Brasil todo, daqui a gente cantava, eu e Joo
cantava, Francisco tocava violo e eu tocava o pandeiro e Joo tocava o
pandeiro, naquele tempo no tinha marcao. O primeiro sanfoneiro que tinha
aqui era Simplcio e tinha o Roque Gasparino que era violeiro tambm, tocava
viola e esse Mudesto e o Simplcio era quem fazia as festas da gente e era
direto! A gente no passava um sbadu dendi casa no, pouca hora ele chamava,
ou muntado ou andando. Era reza direto e samba, era samba at 8 hora at 9 hora
do dia (Mestre Saturnino
Neri).
A festa de Reisado tratava-se do movimento mobilizador da comunidade e partia de um grupo formado, geralmente, pelos familiares, amigos e vizinhos que se organizavam com o objetivo de visitar, de surpresa, a casa um dos outros e festejar com msica, dana e bebidas – ao denominada por eles de roubar reis. Essa tradio integra o repertrio das Festas Natalinas e realizada em um perodo que se estende do dia 24 de dezembro at o dia 6 de janeiro. Dona Mira relata como era a experincia da festa de Reis:
mintira
que o Rei era l em sua casa, a gente marcava que era longe pra voc no ir,
(...) quando era de noite a gente fazia, pegava as coisas botava no saco: era
bolacha, acar, caf, bibida, xarope. [...]. Num tinha um dia, todo santo dia
a gente cantava rei na casa do povo, hoje quetou por causa dessa impidemia,
tudo caro, e a gente sambava sabe como era que a gente sambava? Era sanfona e
rapa cul e o prato de fronte que a gente fazia rei. Os homi com uma foice
fazendo ten ten ten terenren tocanu (som dos instrumentos) com a foice, cul,
enxada, tudo que viesse a gente pegava tudo, prato de pranta (...) a que era
um samba gostoso, a gente sambava at de manh (Dona Mira).
Para alm do relato acima, tanto o Mestre como as sambadeiras entoaram versos e cantaram as cantigas que comumente faziam parte dessa festividade, no momento da chegada e da sada do Reis, respectivamente, os quais alegravam a festividade:
Dona
da Casa vim lhe ver, vim lhe ver, vim lhe ver
Uma
garrafa de cachaa/ Pra me dar pra eu beber
Oh
Dona da casa me d licena
Que
eu vou sambar na varanda
Com
um chapu na cabea/ E meu faco numa banda
Oh gente vamos embora
Que aqui no fica ningum
S fica o dono da casa
Encostado com seu bem
So Cosme e So Damio
Sua casa cheira
Cheira cravo e cheira rosa
Cheira a flor de laranjeira
A msica uma linguagem artstica
universal porque, ainda que expressa em diferentes idiomas, tem a capacidade de
produzir sensaes nos ouvintes: de enlevo, de medo, de suspense, de alegria,
de tristeza (...). uma forma de comunicao que se utiliza de sons. Os
elementos constituintes da linguagem musical: o ritmo, a melodia, o timbre e a
harmonia so utilizados para comunicar ideias, sentimentos e sensaes aos
ouvintes (ROCHA, 2010, p. 209).
Dessa forma, a pesquisa em questo
buscou demonstrar qual o papel das letras dos sambas e da corporeidade na
difuso e perpetuao das histrias, das vivncias e das tradies do grupo
Razes do Samba de Tocos. Neste caminho, interessou-nos a pesquisa de Paul Zumthor (2010) sobre a predominncia da vocalidade das
narrativas tradicionais; o autor enfatiza que foi por meio de lendas, mitos,
histrias, contos e reminiscncias que determinados povos se situaram e se
estabeleceram no/com o mundo. A partir dessa abordagem, possvel ento
acessar o patrimnio cultural e os saberes da tradio afro-brasileira,
especialmente das suas cantigas, sendo algumas delas registradas a seguir:
O
sapato que eu usei/ No lixo eu j joguei/ No importo que tu use/ Daquele que
eu j usei/ Meu anel de trinca trinca/ Bateu na pedra trincou/ Quem achar no
jogue fora/ Quebre- se dizia amor
Oh
Deolina, oh Deolina, oh Deolina/ Qual a moa que no pode namorar? (2x) /
Mulher bonita voc vai se casar (2x) / J me casei deixei pra namorar (2x) / Oh
Deolina, oh Deolina, oh Deolina
A partir das letras dessas cantigas supracitadas, foi possvel compreender a relevncia dessas manifestaes musicais para a circulao e resguardo da cultura/tradio de cunho oral da comunidade de Tocos. muito comum em alguns espetculos de contao de histrias, ou at mesmo em determinados contos, haver a presena da msica em meio s narrativas. No caso desse grupo tnico em questo, os sambas no apenas se fundem contao, como so a prpria contao. A ttulo de exemplo, tem-se a primeira cantiga, que, segundo Dona Mira, nasceu como uma forma de afronta ou resposta s jovens que roubavam os parceiros umas das outras, e at mesmo o quarto samba, que apresenta uma verdade abertamente disseminada durante a entrevista em relao ao matrimnio.
Na casa do Mestre Satu, cenrio no qual os mestres se encontravam no perodo em que a entrevista narrativa se desenvolveu, e apesar das limitaes da imagem devido ao formato adotado durante a ida a campo (on-line, via Google Meet) foi possvel notar a presena de imagens de diversos santos do Catolicismo, simbologia essa que foi confirmada pelo Mestre Satu e pela Dona Antnia que se declararam catlicos praticantes. Nesse nterim, tornou-se bastante relevante ponderar as crenas dos sujeitos entrevistados e perceber que o sincretismo religioso presente na comunidade de Tocos.
Dona Mira no se autodeclarou praticante de nenhuma religio especfica, no entanto, ao longo de suas falas foi possvel constatar que a f da sambadeira incorpora, em concomitncia, elementos pertencentes tanto s prticas catlicas como aos rituais advindos das religies afro-brasileiras. A ttulo de exemplo, h o relato da anci sobre uma promessa feita aos santos gmeos So Cosme e So Damio: Cosme e Damio um menino que cura todas as feridas, se ele prometer, ele d. Eu fui me operar, me operei me peguei, oh eu no sabia se eu tinha vida, me operei pedi a Bom Jesus da Lapa e a Santa Brbara que era pra eu chegar nos ps dele, de joelho, pra cumprir minha promessa.
Alm da forte f nos santos catlicos, Dona Mira tambm demonstrou ser iniciada na Umbanda ao relatar receber Caboclo no s nas rodas de samba, mas tambm em atividades cotidianas e no trabalho na roa. Ademais, a sambadeira tambm narrou, com detalhes, um ritual de purificao do qual fez parte. No entanto, nessa ocasio, as letras do Samba de Caboclo no foram expostas, pois tanto Mestre Satu como Dona Antnia julgaram melhor no entoar os cantos. Sobre isso, Adil Costa (2016, p. 57) chama a ateno de que (...) at hoje, assumir a publicamente sua pertena ao candombl tabu para os iniciados. Assim, ficamos atentas aos sentidos estabelecidos pelo grupo, mas sem impor a nossa viso. A fuso de elementos pertencentes a variadas crenas em um indivduo dialoga tambm com a concepo de Edil Costa acerca da multiplicidade presente nas culturas que emergem a partir da influncia de outras: [...] pois quando se trata de culturas mestias, como o caso da cultura afrodescendente, inevitavelmente se est abordando produes culturais fronteirias (Ibidem, p. 51).
No decorrer desta pesquisa, nos interessvamos
muito a coleta, o registro e a catalogao dos possveis contos populares que
nos fossem narrados; no entanto, os mestres se estenderam na contao das
histrias autobiogrficas. O Mestre Satu afirma que seu pai no lhe contava
histrias, pois a gente era mais andeiro, tinha reza
a gente saa pra rezar, chegava l ensinava as meninas cantar roda e tal, os
meninos oiando e a gente rezando, terminava de rezar fazia uma roda de samba ia
tomar uma birinight e pronto. J Dona Mira enfatiza que no conhece
muitas histrias, mas que o seu falecido marido detinha um repertrio vasto
que, inclusive, foi transmitido a um dos seus filhos.
Entretanto,
para alm dos sambas que so histrias musicalizadas, coletamos quatro contos
que, segundo a classificao do folclorista brasileiro Lus da Cmara Cascudo
(1898-1986), enquadra-se como causos. Segundo a classificao do Sistema
Aarne-Thompson, que divide os contos em trs grandes grupos (a saber: contos de
animais, contos de fadas propriamente ditos e faccias e anedotas, sendo todos
esses subdivididos em demais categorias), as narrativas coletadas durante a
entrevista com os narradores populares da comunidade de Tocos so classificadas
como contos com opositor sobrenatural, que est englobado no segundo grupo
supracitado. A seguir h o registro da transcrio original:
Eu fui
numa festa na Pedra Branca e vim de l pra c de noite, eu Francisco e Joo
Quente, cheguei l em Margarida, l na casa de Arlindo, ali encostado a Joo de
Luca. Tinha um p de caju denda baixada e a gente vinha de l de Lourdes, trs
pra quatro horas da manh que a gente no amanheceu o dia, e vem dois pssaro
branco de l pra c, a Francisco disse Ҏ a cavala, a ela gritou: cavala,
cavala, cavala. Oh nossa senhora, minha gente, pelo amor de Jesus que eu no
t contando mentira. A gente disparou, ela no ar desapareceu, e eu cheguei em
casa bati na porta, bati na porta, vea j tava dormindo, deu trabalho de abrir
a porta e Francisco mais Joo eu no sei aonde foi parar (Mestre Saturnino
Nery).
Ele
some, o lobisomem uma pessoa. Minha me j viu e eu j vi tambm, quando eu
tava parida desse menino a oh, de Paulo. A eu tava com a panela no fogo, e eu
fui que a casa era pequenininha, s tinha uma, assim, uma parede e o fogo era
assim de junto. A Adolfo saiu eu fui botar um Andu no fogo e fui oiar essa
panela. Quando eu fui oiar a panela eu vi um negcio e fez vup, quando fez vup
eu fechei a porta, quando eu fechei a porta o lobisomem saiu de debaixo do
fogo, dirrubou a panela do andu, aonde eu achei mais comida pra comer? Quando
ele chegou e perguntou o que foi ele viu l no cho a panela no cho, quebrou e
ficou sem comer, foi dormir com fome e quando no outro dia de manh cedo que
ele levanta vai ver o pelo do lobisomem l no arame (Dona Mira).
Minha
me tambm contava que o lobisomem dirrubou ele com um tacho de beiju na cabea
com o menino no brao. Ele veio da casa de farinha com um chal vermei, que
antigamente tinha esses chal, pegava o chale e jogava em cima do menino,
pegava o tacho e botava na cabea e saa e ia embora umas dez hora da noite
sozinha, a lua bonita que lobisomem gosta de lua bonita. Ela saiu e Oh cumadi,
eu vou pra casa que fulano de tal ta me esperando e eu t com os meninos em
casa, a ela pegou o tacho botou na cabea, o beiju, pegou o menino jogou no
ombro e foi se embora. Quando chegou adiante o lobisoni mutuo ela e ela pegou o
tacho do beiju e jogou na cabea do lobisomi e o lobisomi querendo lascar ela e
quederrei quederrei quederrei, gente! a saiu um homem: Oh fulana de tal ta
ali gritando vai ver o que ta acontecendo. Quando falou vou pegar o faco e a
faca de cortar fumo, oxe! ele se mandou. Quando ela chegou, que ela j sabia
que era um lobisomi, quando ela chegou na casa do candidato oa o dente com o
chale, com um pedao da coisa do chale no dente. Ai a mulher disse assim Oh
cumadi Valria o que a senhora vem fazer uma hora dessa aqui? No, eu vim ver
um negcio que me pegou ontem di noite, fulano de tal t ai? T, t deithado.
Chama ele a pra eu ver, pra conversar com ele. A quando ele levantou ela
oiou, ela oiou e viu o dente do cara com um pedao de chale na boca. Dest
camarada, eu vou te pegar no caminho ainda de novo, tu me dirrubo, mai tu j ta
marcado, vai me pagar. Quando foi quatro dia ele morreu (Dona Mira).
Consideraes
finais
A interao
com os mestres e mestras, sambadores e sambadeiras pertencentes comunidade de
Tocos permitiu percebermos que a vocalidade e a memria so os principais
propiciadores de circulao das tradies populares. Na localidade quilombola
de Tocos permanece o reconhecimento de que a tradio dos sambas, festas e
celebraes tradicionais esteja passando por um processo de escassez, caso
estas sejam comparadas com outras pocas em que eram mais cultivadas,
sobretudo, entre os mais jovens.
De tal modo,
ressaltamos a importncia do levantamento e do registro feitos atravs da
pesquisa de recolha das cantigas e dos contos, assim como das histrias de vida
de trs ancies atravs da Entrevista Narrativa. O legado potico e cultural do
grupo indica uma contribuio importante para as geraes mais jovens, que
podem aprender com os sambas, com os cantos e com as histrias tradicionais
reencenadas no presente.
Referncias
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Ines de Almeida, Maria Lucia Diniz Pochat. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
[Recebido:16
ago 21 - Aceito: 16 set 21]
[47] Doutorado em Memria pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia, Brasil(2016). Professora Adjunta A - Dedicao Exclusiva da
Universidade Estadual de Feira de Santana.
[48] Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras
com Lngua Portuguesa, ofertado pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Poticas Orais na UEFS, com
participao no Projeto de Pesquisa Cacimba de Histrias:vidas e saberes dos
contadores de histrias tradicionais de cidades do interior da Bahia. Compe a
atual gesto do Diretrio Acadmico de Letras Jos Jernimo de Moraes como
diretora de viagens e eventos.