VOZES DE
MULHERES NO TERRITRIO DO CORDEL E DA CANTORIA
WOMENS VOICES
IN THE TERRITORY OF CORDEL AND CANTORIA
Ria Lemaire[33]
Resumo: Os debates ps-moderno e decolonial sobre as relaes entre as
civilizaes da oralidade e o mundo da escrita esto trazendo, embora
tardiamente, uma epistemologia radicalmente crtica para o campo dos estudos da
tradio nordestina da cantoria e do cordel. O novo paradigma — tanto
histrico quanto contemporneo — permite colocar a questo do papel e
lugar das mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos. Ao focar um
subgnero dessa poesia originalmente improvisada, o repente misto, em que uma
cantadora desafia um cantador, e, nesse subgnero, a presena e funo da
violncia masculina e feminina, esse artigo prope uma reflexo crtica sobre
temas centrais dos debates atuais sobre cordel, gnero, mulher e violncia.
Palavras-chave: Cordel. Cantoria. Gnero.
Territrio. Violncia masculina. Violncia feminina.
Abstract: Post-modern critics of scriptocentrism and nowadays decolonial criticism
are bringing – slowly and progressively - the new paradigm of the
orality-literacy-debate to the field of
repente, the
Northeastern tradition of improvised poetry, in its oral (cantoria) as
well as in its impressed (cordel) form. The new paradigma –
historical as well as contemporary –
enables us to discuss the question of womens role and place in these
traditionally masculine territories,
featuring a sub-genre of
this poetry, - repente misto – in which a female singer challenges
a male singer. By focalizing the presence and function of male and female
violence in this sub-genre, this article proposes a critical reflexion on
central themes in actual debates on gender, women and violence.
Keywords: cordel.
Cantoria. Gender. Territory. Gender-based violence.
Dois ramos de
uma rvore s
A publicao de O Livro Delas: catlogo de mulheres autoras no cordel e na cantoria
nordestina (SANTOS, 2021) constitui no s um marco milirio nos estudos de
cordel, mas tambm a abertura, dentro da rea, de uma nova linha de pesquisa
inovadora, fundamentada na desconstruo dos pressupostos vigentes do discurso
acadmico dominante sobre o cordel e da sua historiografia nacional. Alm disso,
ela permitir a integrao, no campo dos estudos de gnero e literatura, de uma
rea at agora negligenciada: a de gnero e estudos orais.
Comecemos por uma constatao: cantoria e
cordel so considerados pela maioria dos estudiosos dois campos distintos no
mundo sociocultural nordestino. A separao terica dos dois campos – o
da cantoria como produto de uma oralidade ancestral e o do cordel como
originrio do mundo da escrita – correspondia aos interesses polticos da
cultura dominante daquela elite branca e de origem portuguesa que, nos anos
sessenta e setenta do sculo passado, na poca da Ditadura Militar,
reabilitou o cordel – to desprezado e marginalizado at l! –
como expresso literria da alma nacional brasileira.
A reabilitao poltico-literria,
elaborada e propagada, sob a gide do Conselho Federal da Cultura, por
intelectuais e acadmicos organizados em torno da Casa de Rui Barbosa, ia
servir como suporte ideolgico da poltica cultural nacionalista da Ditadura. O
que o poeta Rouxinol do Rinar chamou um dia de dois ramos da mesma rvore
entrou no processo politico-literrio da nacionalizao do cordel sob a forma
de duas rvores plantadas em territrios culturais diferentes. Consagrou-se o
nome ibrico de cordel para o
fenmeno editorial nordestino que os prprios poetas chamavam de folheto/jornal do povo e esse
folheto ia ser, da em diante, estudado e divulgado como literatura popular brasileira.
O mito das
origens brancas e portuguesas
Ao se separar cantoria e cordel,
tornou-se possvel historiografar o folheto
como descendente do cordel
escrito/impresso de origem portuguesa. Integrado nessa genealogia alheia de
textos escritos/impressos ibricos, o folheto tornou-se nacional e expresso
da alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira. Tornou-se Literatura, quer dizer: fico e
esttica, podendo a partir da ser estudado com os pressupostos, mtodos,
critrios e juzes de valor convencionais dos estudos de Letras (Autor e Obra,
cnone, antologia etc.). E tornou-se popular
no sentido humanista, erudito do termo, dentro da dicotomia elite culta versus povo inculto. Essa dicotomia instalou-se no discurso erudito do
mundo ocidental nos comeos dos tempos modernos, como expresso e legitimao
ideolgica da crescente desigualdade econmica, social e poltica,
sobrepondo-se ao sentido original – geo-socio-cultural – do
conceito de povo.
Porm, o sentido original sobreviveu at
hoje. Patativa do Assar, por exemplo, o definia como: a nossa terra, a nossa
vida, a nossa gente, quer dizer: um territrio,
no sentido original do termo, caraterizado pela presena de uma terra (no
sentido portugus de Portugal do termo), quer dizer: uma regio
geograficamente delimitada, uma vida, cultura e memria/tradio comuns a todos
os indivduos que j nela nasceram no passado, nela vivem no presente e vo
nascer no futuro. Uma nao no
sentido original do termo (terra onde nasce), cujo passado continua
vivo/vivido no presente e que lhes d, a esses povos, a conscincia
inextirpvel de pertena, empatia e coeso social.
O conceito de alma pura, autntica, primitiva da Nao brasileira, por sua vez,
forneceu a base para a reinveno do mito da morte iminente do folheto, mito
importado e imitado do Romantismo alemo (Naturpoesie
versus Kulturpoesie) do sculo
XIX. Chegou juntamente com o conceito de tradio, ao qual esses eruditos alemes do
sculo XIX tinham dado uma nova significao, a saber: tradio morta, arcaica,
obsoleta e parada no passado; o contrrio do seu sentido original e do seu
funcionamento real na comunidade nordestina.
Ao
mesmo tempo, o pressuposto da origem escrita portuguesa do folheto permitiu que
a cantoria, a saber, a comunicao direta, oral, com o auditrio nas cantorias,
feiras e festas populares no seio da prpria comunidade, fosse considerada
(teoricamente!) local, regional, quer dizer: inferior e relegada ao sempre
desprezado campo dos estudos de folclore. O impacto desse discurso, que alia
eurocentrismo e scriptocentrismo a nacionalismo, tem sido avassalador; ele
contamina, at hoje, como uma trama inconsciente, tanto a terminologia, os
pressupostos e os posicionamentos tericos dos estudos de cordel — dos
convencionais at os mais crticos —, quanto a viso que os prprios
poetas cantadores e cordelistas tm da sua arte, profisso e misso.
Divide et impera
A estratgia discursiva da inverso e
distoro em que se baseia o discurso erudito sobre o cordel tem-se averiguado
como perversa e eficaz. Ela aplicada desde sempre pelo patriarcado – na
sua verso ocidental – no decorrer da sua luta milenar pela imposio do
seu poder, da sua viso do mundo como superior e da sua Histria como nica e
verdadeira. Consiste em dividir o grupo scio-profissional dos poetas, cuja
unidade j era sempre vulnervel por causa da rivalidade masculina. Essa
rivalidade foi, originalmente, a fonte de inspirao principal do repente
masculino, com os seus vencidos e o vencedor, reconhecido e aplaudido pelo
pblico no momento da performance. Essa diviso dicotmica, guerreira
no sentido original, ldico-srio (HUIZINGA, 2007) da palavra, vai ser
ressignificada tambm pelos eruditos para constituir a base de duas categorias
literrias, desiguais e hierarquizadas, – os bons poetas e os menos
bons –, com o objetivo de destacar mais e enaltecer o grupo superior,
tendo em vista o futuro cnone do cordel.
Dessa maneira, a rivalidade masculina
continuamente atiada ia dessolidarizar, uns dos outros, os membros do mesmo
grupo profissional, abrindo-se uma brecha para impor – de fora, de longe
e de cima – uma autoridade de avaliao superior e capaz de sobrepor,
avaliao interna pela prpria comunidade, o seu juzo de valor erudito e
superior. A curto termo, isso permitiu aos detentores da nova teoria controlar
o campo do cordel, ao privilegiar certos gneros (mais literrios) em
detrimento de outros gneros (folheto de atualidade, folheto poltico, folheto
de cincia...) e marginalizar ou excluir aqueles dissidentes, que no
correspondiam ao modelo, alheio, literrio e erudito, imposto de fora. A longo
termo, essa estratgia causou a distoro parcial do conhecimento e da viso
que tinham os prprios poetas sobre sua arte, misso, identidade e histria.
Um exemplo bem revelador dessa estratgia
so as cartas encontradas no Acervo Raymond Cantel da Universidade de Poitiers
que revelam o surgimento, nos anos setenta do sculo passado, entre os eruditos
da Casa, do questionamento da autenticidade daqueles poetas de cordel que no
eram analfabetos. Os debatedores perguntam-se e perguntam ao ilustre professor
francs, com muita seriedade, se um no-analfabeto pode ser considerado poeta
de cordel e ser includo, por exemplo, nas antologias de cordel, bases do
futuro cnone. Segundo a doutrina oficial por eles elaborada, alfabetizado no
podia, uma vez que os poetas de cordel eram incultos e analfabetos![34]
No difcil imaginar-se o que ia
acontecer quando os pressupostos/preconceitos misginos e androcntricos da
alta burguesia da poca da Ditadura Militar se associaram ao seu eurocentrismo,
scriptocentrismo e nacionalismo
j comentados. No se encontra nos catlogos, antologias e cnone da Casa Rui Barbosa – dos mais velhos at aos mais
recentes – nenhuma mulher poeta. Dentro do conjunto coeso de pressupostos
falsos do seu mito das origens foi necessrio e inevitvel no s anunciar a
morte iminente do folheto, para poder silenciar a voz viva e dinmica do povo
nordestino, como tambm ignorar, e de antemo, a voz das suas mulheres.
Teorizada, na tradio alheia de Homo
sapiens humanista, a cultura do folheto s podia ser exclusivamente
masculina.
Vozes rebeldes:
agora so outros 500 anos!
a partir do ano 2000 que comeam a
surgir vozes rebeldes, tais como as da Sociedade dos Poetas Mauditos no Cariri
cearense (GRANGEIRO, 2020). Mauditos no sentido irnico do termo: eles
fazem propositadamente versos mal ditos, segundo os critrios convencionais,
e seus integrantes no so analfabetos nem semi-analfabetos.
A provocao dos jovens poetas, homens e
mulheres, fundamenta-se na conscincia de que os prprios conceitos de Literatura, de alma pura e tradio morta servem
para negar toda e qualquer capacidade de evoluo e inovao do cordel. Essa
negao, por sua vez, servia para desvalorizar e obliterar o papel e misso
cultural e histrica do folheto como expresso da atualidade, realidade e
verdade da vida nordestina. Ela servia para silenciar, de antemo, as eventuais
vozes crticas da contemporaneidade. Essas vozes vieram denunciar a mentira, a
m-f e a euforia das elites nacionais que, naquele momento, comemoravam os 500
anos da Descoberta do Brasil, apresentada como primeiro captulo da Histria
nacional. Esse mito das origens da
elite branca do pas – o da chegada, em terras de ningum, da
civilizao crist, trazida e oferecida pelos portugueses com muitos
sacrifcios e herosmo aos povos indgenas originrios –, foi desmascarado
pelos poetas mauditos. Foi, na verdade, uma invaso ilegtima por uma casta
branca de conquistadores-predadores, com padres-pregadores aliados; foi o
comeo da era colonial e a implantao do regime usurpador do colonialismo no
Brasil.
Essa nova conscincia impe, como os
poetas Mauditos iam mostrar em 2000 com a publicao inicial de 12 folhetos em
torno do tema Agora so outros 500 anos, uma ruptura radical com a Histria
oficial, ensinada e imposta por meio do ensino formal nacional como nica e verdadeira.
Estamos no limiar do pensamento decolonial que hoje em dia, vinte anos mais
tarde, comea a se generalizar no mundo latino-americano. Os mauditos
questionam e desconstroem a legitimao tradicional que justificava a
colonizao como uma misso civilizatria, crist e sagrada; ideologia que
legitimou durante 500 anos os piores crimes e que as elites do pas continuam
repetindo, re-divulgando e propagando no limiar do sculo XXI.
Trs poetisas cofundadoras da Sociedade
dos Poetas Mauditos conscientizaram-se, ao mesmo tempo, como feministas,
detentoras de uma viso do mundo diferente da dos homens. Hoje, elas so
professoras universitrias que tm uma reputao nacional e internacional no
campo dos estudos de mulher e de gnero, duas delas tambm no campo do cordel.
So elas a poetisa e historiadora Ediane Nobre (na Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE), que defendeu, em 2014, uma tese de doutoramento sobre
a beata Maria de Arajo; a poetisa Salete Maria da Silva (professora da
Universidade Federal da Bahia – UFBA), que atualmente considerada uma
das grandes vozes poticas do cordel da sua gerao; e a poetisa Fanka Santos
– de batismo Francisca Pereira dos Santos –, que como professora da
Universidade Federal do Cariri (UFCA) dedica parte dos seus estudos acadmicos
ao resgate das vozes de mulheres-poetas cantadoras e cordelistas deliberadamente
silenciadas nos estudos acadmicos e na historiografia do folheto de cordel.
Ao aplicar o mtodo e a prtica de
pesquisa que foram a estratgia principal dos eruditos acadmicos dos anos de
sessenta para a imposio da sua viso do cordel – os catlogos e as
antologias –, Fanka Santos defendeu, em 2009, uma tese de doutoramento
que estabeleceu as bases epistemolgicas e tericas de um futuro catlogo das
mulheres de cordel. Uma bolsa de ps-doutorado lhe permitiu, em seguida, compor
o catlogo O Livro Delas, que rene os folhetos de 264 mulheres
cordelistas juntamente com os materiais que ela conseguiu reunir sobre 62
cantadoras, todas publicadas em um s catlogo. Dois ramos de uma rvore s!
Duas outras teses de doutoramento, defendidas pelas organizadoras deste nmero
de Boitat, vieram reforar as bases tericas do catlogo. Bruna Paiva de
Lucena trouxe a maudita poetisa Salete Maria da Silva ao palco acadmico com
uma tese de doutoramento, defendida na Universidade de Braslia (LUCENA, 2018).
Andra Betnia da Silva, por sua vez, defendeu em 2014, na Universidade Federal
da Bahia, uma tese sobre a transio e evoluo da cantoria de p-de-parede
tradicional para os festivais modernos; a tese inclui como protagonistas
mulheres-cantadoras-repentistas.
Figura 1 – Xilogravura de Marcelo Soares
Fonte: Acervo da autora.
Essas e outras pesquisas confirmam o fato
de que, como nas desgarradas e no fado de Portugal e da Galiza, a cantoria tem
trs variantes, a saber: repente de dois homens, repente de homem com mulher e
repente de duas mulheres, cada subgnero com a mesma forma e linguagem potica,
mas com temticas diferentes.
No mesmo perodo (2000-2020), observa-se
no campo do folheto e da cantoria uma verdadeira exploso de novas vozes de
mulheres poetisas e uma visibilidade cada vez maior da sua atuao como agentes
culturais autoconscientes e fortes[35].
Assim, fortalecem-se a conscincia e a convico que O Livro Delas – como catlogo das mulheres cordelistas e
cantadoras atuantes maioritariamente ainda no sculo XX –, j trazia e
que as poetisas mauditas ilustraram: a de que as mulheres no s se destacam
por sua presena cada vez mais numerosa e autoconsciente, como tambm por
trazerem vozes diferentes que cantam outra abordagem e viso das coisas do
mundo.
Dessa forma, urgente repensar o cordel
e a cantoria para alm do discurso oficial nacionalista, euro, scripto e
androcntrico brasileiro e propor novas epistemes
para sua releitura crtica, considerando-se os seguintes aspectos:
- No se trata de uma tradio
quase morta, obsoleta e parada, mas sim de
uma tradio viva, dinmica, no
sentido original do termo tradio, derivado do latim tranditionem,
quer dizer: ato de transmitir. Na oralidade, esse ato implica um processo
complexo, no s de uma simples transmisso/entrega, como tambm de repetio,
reinveno e ressignificao na continuidade do tempo histrico e de geraes
de poetas e poetisas transmissoras.
- No se trata de cordel escrito versus cantoria oral, mas de uma fase da histria mundial das
tecnologias da informao e da comunicao, a saber: o captulo que conta a
verso nordestina da transio para a escrita/impressa de uma tradio potica
oral pr-existente.
- No se trata de um cordel
de origem simplesmente portuguesa; o cordel nordestino – e antes
de mais nada – um produto complexo, regional da transio e evoluo
(quase) universal da oralidade para a escrita e a imprensa (ABREU, 1999).
- No existe uma Histria nica e s de homens; houve sempre
duas histrias numa dualidade complementar e plural (variando de uma regio
para a outra) de duas linhagens culturais diferentes. Existiu, desde sempre, um
patrimnio (conjunto de bens legado por um pai em linha patrilinear aos filhos) ao
lado de um matrimnio matrilinear que se inter-relacionam e interagem. Aquele hegemnico e imponente
e que fala muito alto, este marginalizado e silenciado, mas nem por isso menos
presente no corao da comunidade tradicional. A redescoberta do matrimnio das mulheres no campo da
cantoria-cordel, considerado exclusivamente masculino, exige uma abordagem
nova, intercultural e interdisciplinar que permitir dar o salto epistemolgico
e terico indispensvel para podermos historiografar a presena e a atuao da
voz das mulheres nesses territrios tradicionalmente masculinos[36].
- Esse cordel no
o produto mtico de um Estado-Nao, mas expresso originalmente local e
regional da realidade e verdade da vida nordestina; ele no para-literatura ficcional, mas cultura/arte, expresso
potica e testemunho da vida dessa terra, gente e cultura especficas. Ele ,
para resumir, literatura no sentido
original do termo (em latim, littera =
letra escrita), que registra no s obras ficcionais, como tambm – e
sobretudo – toda a riqueza da experincia e conhecimento da vida vivida
pelas diversas comunidades nordestinas com a suas culturas locais e
sub-regionais. A da cultura do Cariri, por exemplo, que no a do Piau, nem a
da Paraba, nem a da Serra do Teixeira (terra de tantas geraes de grandes
poetas)... (RAMALHO; LEMAIRE, 2011).
De dualidade a dualismo
Dualidade plural
Globalmente – no digo universal
nem exclusivamente! –, tanto os antroplogos quanto os especialistas
– linguistas, etnlogos e folcloristas – das culturas
indo-europeias distinguem nas comunidades humanas uma diviso dual bsica, a
saber, um mundo dos homens e um mundo das mulheres, quer dizer, uma dualidade dentro da qual inmeras
variantes, trocas, tenses e desigualdades eram possveis; uma dualidade plural
em constante interao e evoluo.
Figura 2 – Repente misto do famoso
xilgrafo nordestino Dila
Fonte: Acervo da autora.
O economista-etnlogo alemo Karl Bcher
fundamentou-se nessa dualidade, ao formular a teoria da existncia de duas
tradies poticas no mundo indo-europeu, a masculina e a feminina, como
produtos da diviso dos trabalhos econmico e social entre os sexos, postulando
que para cada tipo de trabalho havia canes de trabalho e de lazer com ritmos
e contedos diferentes (BCHER, 1896). Bcher mostra que o mundo potico das
mulheres que detm as tradies mais ricas e diversificadas, em relao ao dos
homens, e que so elas as detentoras, guardis, produtoras e reprodutoras
primordiais da memria viva das culturas tradicionais indo-europeias.
Quase cem anos mais tarde, o etnlogo hngaro
Imre Katona publica o artigo intitulado Reminiscencies
of Primitive Divisions of Labor between Sexes and Age Groups in the Peasant
Folklore of Modern Times (KATONA, 1979), em que elabora a distino
dual de Bcher ao relacionar esses gender-specific ritmos e contedos
distino bsica da teoria literria novecentista entre os dois grandes gneros
literrios: o pico e o lrico. A partir das diversas formas de dualidade
plural[37],
Katona v o mundo dos homens como o do canto pico e de outras formas de canto
narrativo aparentado, tais como o panegrico, a genealogia e os gneros que
enaltecem e glorificam o poder, o herosmo e a superioridade masculinas. Eles
formariam o verso da medalha Ҏpica, havendo tambm, a seu reverso Ҏpico com
gneros, tais como a stira, a troa, a zombaria, o escrnio, o maldizer e a
pardia.
O mundo das mulheres o mundo dos
gneros lrico e lrico-narrativo. O gnero lrico funcional: a poesia
cantada marca o ritmo do trabalho cotidiano e da dana. Geralmente so cantigas
dialogadas, improvisadas, baseadas na memorizao e improvisao de novos
versos. esse desafio que torna mais alegres e ligeiros os trabalhos muitas
vezes montonos, pelo prazer ldico do jogo potico. H uma unidade de Som e
Letra, com predominncia do Som, cujo ritmo marca o ritmo especfico do
trabalho ou da dana.
O estudo de Imre Katona confirma as
concluses de Bcher e, ao dedicar-se ao tema da diviso do trabalho cultural
entre os sexos, ele mostra que essa diviso do trabalho no era rgida, e
menos ainda excludente! Havia trocas, apropriaes e intercmbios contnuos
entre os dois mundos. Katona chegou concluso de que uma mdia de uns 10% das
produes culturais era produto desses intercmbios. Confirmadas, nos ltimos
cinquenta anos, por estudos dedicados a outros perodos histricos e reas
geogrficas, as pesquisas de Bcher e Katona abrem novas perspectivas para o
estudo das vozes das mulheres na cantoria e no cordel. Na viso de Imra Katona,
Fanka Santos reuniu em O Livro
Delas aqueles 10%, mais ou menos, de vozes femininas que se aventuraram no
territrio potico da voz masculina, como hoje em dia, muitos poetas cantadores
invadem o territrio feminino da cantiga lrica e de amor, o que teria sido
considerado tradicionalmente um ato meio efeminado.
De intercmbio
excluso
Figura 3 – Xilogravura de J. Miguel
Fonte:
Acervo da autora.
Quando, hoje, falamos de sexo/gnero,
automaticamente concebemos uma estrutura bipolar, dicotmica e hierarquizante,
no dual, mas dualista. Esse pressuposto da dicotomia est na base da
viso humanista do mundo ocidental e instala-se no limiar do que chamamos de Tempos
Modernos, adquirindo a sua expresso filosfica no conceito de dualismo
com o filsofo francs Pierre Bayle (1647-1706). A sua primeira ocorrncia data
de 1679, com a definio/significado de: sistema, doutrina baseada na
existncia, sob a forma de hierarquia, de dois princpios contrrios que se
excluem mutuamente (masculino versus feminino, heterossexual versus
homossexual, branco contra negro, cultura contra natureza, primitivismo contra
Progresso, cultura oral versus cultura escrita, entre muitos outros).
Essa base dualista do pensamento
ocidental moderno contribuiu muito para a legitimao ideolgica do silenciamento
das mulheres, do feminicdio de mais de cem mil mulheres nas fogueiras da
Inquisio, da escravido e do genocdio de milhes de negros e indgenas, da
perseguio dos homossexuais, do racismo, da destruio sistemtica da
natureza. O discurso oficial e erudito sobre cantoria e cordel, ele tambm,
um produto tpico desse dualismo.
As culturas no ocidentais e as da
pr-modernidade ocidental, por sua vez, fundamentam-se, ainda, no princpio da dualidade com um leque plural, infinito,
de formas poticas, de complementaridades, variedades, desigualdades,
conflitos, trocas, emprstimos e interrelaes. Os textos poticos
intercambiados so imitaes geralmente ldicas de gneros poticos do outro
sexo. As imitaes tornam-se ao mesmo tempo reinvenes e ressignificaes, ao
levarem para o palco, dentro dos quadros do gnero tradicionalmente unissexo, a
voz e a viso das coisas do outro sexo. Elas so geralmente muito apreciadas e
aplaudidas pela comunidade!
importante estar consciente do fato de que,
nas tradies orais, esse procedimento no considerado plgio como no mundo
moderno! Ele constitui uma prtica discursiva, uma estratgia ldico-sria,
altamente apreciada, de transmisso, enriquecimento e divulgao da memria e
da tradio e, em um sentido comunitrio e social, serve tambm como vlvula de
escape de tenses entre os sexos, quer dizer: como estratgia de reforo da
coeso social. A concepo do texto escrito como propriedade individual de um
Autor masculino (FOUCAULT, 1998) s se instalar no mundo ocidental – e a
partir do mundo da escrita e da imprensa –, nos incios dos Tempos
Modernos, juntamente com a noo de plgio. No mundo da oralidade, em
que a memorizao (por repetio e reinveno) constitui a conditio sine qua
non da prpria existncia da tradio oral e a estratgia por excelncia da
transmisso, integrao e salvaguarda do saber, no existe plgio no
sentido moderno do termo. Quando uma performance intercambiada tem
muito sucesso, ela fica no outro mundo e integra-se a ele: o heri do romance
heroico-narrativo, por exemplo, pode metamorfosear-se em herona, o romance
lrico-narrativo transformar-se em pico, ou em vida de santo ou santa,
proposta por um poeta religioso, ou ainda em pardia e zombaria de comportamentos
tpicos do outro sexo.
Um musiclogo alemo do sculo XIX
definiu o fenmeno como Wandermelodien,
msicas que wandern –
vagabundeiam, andam de terra em terra – e mudam com os lugares que elas
visitam, com os tempos – e templos! – pelos quais passam, com as
condies histricas que evoluem, sempre as mesmas e reconhecveis como tal e
ao mesmo tempo sempre diferentes. Pensamos nos jograis da Idade Mdia que os
conclios da Igreja catlica condenavam por cantarem com vozes efeminadas,
canes de mulheres (tais como cantigas de amigo, de romaria, cantigas de
trabalho, cantigas bailadas) ou, mais tarde, nos cantadores de romance ibricos
do sculo XX que cantavam em pblico romances lrico-narrativos que eles
apresentavam como canes aprendidas com a av, a tia ou a me.
Nessa direo, podemos descobrir qual foi
o papel dos eruditos humanistas dos sculos XV e XVI, responsveis por criar a
base da historiografia e das cincias da literatura e das artes. Os textos das
mulheres medievais, transcritos, plagiados por essa elite que acaba de inventar
a noo de plgio, ressignificados
por eles, entraro na sua cultura escrita e impressa, em cancioneiros, leigos
e/ou religiosos, em livros de poesia atribudos a poetas masculinos, trovadores
ou reis – tais como D. Dinis, Afonso X, o Sbio – ou bispos,
membros da nobreza e da alta burguesia. Quando se inicia a historiografia das
literaturas nacionais, em finais do sculo XIX, essas atribuies renascentistas sero consideradas provas de autoria
masculina na galeria dos Autores geniais, individuais, que vo preencher os
volumes das Histrias nacionais das Literaturas dos Estados-Naes; essa
histria falsificada que obliterou os matrimnios das mulheres e se ensina at
hoje no ensino formal secundrio e universitrio.
As outras vozes de
artistas-poetas-contadores a cantadores tradicionais, porta-vozes da
comunidade, ficaram como tradies orais das comunidades locais e regionais,
mas na clandestinidade em face do medo permanente de perseguio. Desprezadas e
odiadas pelos detentores do poder poltico-religioso (BURKE, 2010), elas
sobreviveram, cada vez mais fragmentadas, no seio das comunidades. A sua reabilitao
terica e idealista pelas elites, na poca do Romantismo, como alma pura da
Nao, no por fim s persecues factuais que continuaro ainda bem adiante
no sculo XX. Em 1848, inventa-se o nome de folk-lore (sabedoria do povo),
inicialmente no sentido positivo e o dos seus estudiosos, os folkloristas.
Uma vez os Estados-Naes todos bem
instalados, depois de 1870, esse sentido positivo torna-se importuno e
incmodo. A necessidade de criar um imaginrio nacional, unificador das
centenas de pequenas naes da Velha Europa, leva as elites das novas
comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008) a fundarem as faculdades de Letras
(Histria, Lngua e Histria da Literatura nacionais), onde se ensinaro
unicamente os textos ressignificados da tradio escrita humanista e se
propagar, geralmente e com raras excees, um profundo desprezo em relao
tradio oral e aos seus estudiosos e pesquisadores.
Revisitar um
territrio tradicionalmente masculino
Chica Barrosa onde
canta
faz
o mundo estremecer.
Faz
o sol se abalar;
todo planeta descer.
Quem
vier cantar comigo,
correr
grande perigo,
at
de morte sofrer.
Chica Barroso
Vozes de
mulheres que se desterritorializaram
Temos a sorte excepcional de j
possuirmos um primeiro esboo da genealogia das vozes das mulheres repentistas
e poetisas – redigida por um grande poeta repentista, cordelista e
professor-pesquisador da tradio potica nordestina, Jos Alves Sobrinho, de
Campina Grande, na Paraba. Coautor, com o professor tila de Almeida, do
Dicionario bio-bibliografico de repentistas e poetas de bancada, publicado
em1977, Sobrinho publicar mais tarde, depois da morte do professor
tila, outro livro, intitulado Cantadores, Repentistas e Poetas Populares (SOBRINHO,
2003). Nele, o poeta conta em verso, na melhor tradio do gnero
potico da genealogia cantada ou declamada, a genealogia de seis geraes de
poetas masculinos para, em seguida, apresentar a das mulheres poetisas e
cantadoras de repente do Nordeste. A apresentao pelo poeta – juntos mas
separados –, sob a forma dual, mostra que existiam, na experincia do
poeta, vivida de dentro da sua comunidade, dois mundos poticos, o dos homens
e o das mulheres, inter-relacionados, interconectados e interativos.
Nos versos clssicos do repente – a
sextilha e a dcima –, o poeta-pesquisador apresenta seis geraes de
grandes repentistas, poetas e poetisas de reputao confirmada. As duas
genealogias contam juntas 948 versos, dos quais 816 versos sobre poetas e 132
sobre poetisas, quer dizer: uns 12% dos versos globalmente so reservados para
a voz das mulheres. Essa porcentagem confirma a mdia global de 10% de
intercmbios que o etnlogo Imre Katona indica no seu estudo, tanto para o
territrio masculino quanto para o feminino.
A genealogia feminina comea pela estrofe
que comemora a primeira gerao, a das mais antigas poetisas, algumas j
lendrias:
Falo em Rita Medeiros
Lendria por tradio
Naninha Gorda dos Brejos
Zefinha do Chaboco
E a grande Chica Barrosa
Camila do Martinzo (SOBRINHO,
2003, p. 90)
Os versos sublinham o talento dessas
mulheres e o seu domnio perfeito das regras da arte do repente, como se v na
ltima estrofe:
Temos Chiquinha Ribeiro
Baiana de boa estima
Alade Ferreirinha
Seu repente obra-prima
Seu verso tem ritmo e mtrica
exigente na rima (SOBRINHO, p.
91)
E at, s vezes, evocam a superioridade
de mulheres repentistas temidas, como foi a famosa Chica Barroso, e como era
tambm Vov Pangula:
Maria Ribeira Santos
Chamada vov Pangula
De Valena do Piau
Faz no verso o que calcula
L naquela regio
Com ela no h quem bula
(SOBRINHO, 2003, p. 91)
Podemos, a partir da, abandonar o
discurso dicotmico desse dualismo da modernidade cujo crculo hermenutico
fechado leva a ignorar ou, no melhor dos casos, a explicar a presena inegvel
de cantadoras/cordelistas como excepcional e as prprias poetisas como mulheres
masculin(izad)as, como as qualificaram alguns observadores eruditos.
Poderemos escutar as vozes de Chica, Pangula, Mocinha, Bastinha, Josenir,
Salete, entre tantas outras, como contribuies de uma linhagem secular de
mulheres fortes, autoconscientes e conscientes de serem agentes, cocriadoras e
reinventoras da realidade e cultura nordestinas. So vozes de heronas,
mulheres feministas que, cada uma na sua poca e no seu contexto social e
poltico – e apesar das reaes s vezes violentssimas e agressivas de
homens – se posicionaram como detentoras/guardis e reinventoras de um matrimnio local, regional, at dentro
dos quadros de um gnero/territrio tradicionalmente masculino cuja arte
potica profissional essas mulheres tambm sabiam brilhantemente ilustrar.
Violncia,
stira, indecoro e obscenidade de vozes femininas no cordel
Pisa medonha eu lhe dou
de cabelo se arrancar,
de
fofar couro de lombo
do
pescoo ao calcanhar;
se no se tratar com tempo,
talvez no possa escapar!
Minha
pisa venenosa
que
no se pode curar.
Cada
tacada que dou,
vejo
o pedao voar.
Chica
Barrosa
A musicloga cearense e professora da
Universidade Estadual do Cear Elba Braga Ramalho publicou, no ano 2000, um
estudo intitulado Cantoria Nordestina:
msica e palavra. No captulo intitulado A parceria: do antagonista ao
parceiro (RAMALHO, 2000, p. 124-130), resultado de muitos anos de pesquisa de
campo em terras cearenses, a autora descreve o processo sociocultural
interessantssimo de uma mutao, a que talvez tenha mais impactado no sculo
XX o territrio da cantoria, a saber: a transio progressiva do cantador antagonista tradicional ao cantador parceiro, numa sociedade cada vez mais
modernizada e urbanizada.
A situao quase arquetpica do cantador
antagonista ilustra-se talvez mais eficazmente pela evocao do poeta nmade de
outrora, que chegava numa comunidade onde era ainda desconhecido. Ao entrar
nela, ele adentrava tambm, querendo ou no, no territrio, caa reservada,
dos poetas residentes locais. De antemo, ele ser considerado concorrente,
rival, adversrio, opositor, como eram tambm, alis, os homens que vinham de
fora para namorar uma mulher da comunidade. Essas situaes, provocadoras para
os homens residentes, podiam acabar muito mal e com muita violncia fsica. A
comunidade, ansiosa por conhecer as novidades, notcias e histrias de fora que
o novo poeta trazia, tentava resolver as ameaas e tenses provocadas pela
chegada do estrangeiro, organizando um evento ldico-srio ritualizado e
controlado por ela (HUIZINGA, 2007). Essa cantoria obrigava os seus prprios
poetas a transformar e sublimar o seu dio do rival e violncia fsica em
violncia verbal e potica, permitindo ao recm-chegado ostentar as suas
competncias para legitimar a sua visita.
Essa foi a realidade e a funo
eminentemente social do repente/improviso tradicional nordestino desde os seus
comeos. Ela evoluiu e mudou radicalmente no sculo XX, como mostram os estudos
de Elba Braga Ramalho e a tese de doutoramento defendida por Andra Betnia da
Silva, intitulada Entre ps-de-parede e
festivais: rota(s) das poticas orais na cantoria de improviso (SILVA, 2014). Os poetas individuais
e rivais transformaram-se em dupla de companheiros/parceiros. A violncia,
fonte de inspirao inicial do gnero, perdeu o seu lugar central, sendo o
pblico dos festivais o proponente do tema a ser trabalhado pela dupla. A
violncia foi substituda pela vontade e motivao de serem juntos a melhor
dupla no palco, como concorrentes e vencedores de outras duplas. Esse fenmeno
no ocorreu, por exemplo, no repente africano, halo, que continua, mutatis
mutandis, como exerccio e jogo ldico-srio, no seio de comunidades, onde
o halo funciona at hoje como vlvula de escape para tenses e conflitos
sociais dentro da comunidade e como instrumento de que ela dispe para
educar, ritualizando-a, a violncia masculina e salvaguardar a coeso social.
Pensar a
violncia feminina
Podemos agora olhar com lentes diferentes
para um fenmeno que observei muitas vezes e que, no incio, at me chocava, a
saber, o da violncia, obscenidade e indecoro dos versos de certas mulheres
repentistas e poetisas. Essa violncia verbal deixava-me ao mesmo tempo com
mal-estar perante as reaes excessivamente negativas (puta, macho,
pior que homem!, feia, grosseira, para s citar as menos
agressivas!) de colegas pesquisadores, indignados e revoltados, apesar dos
aplausos, adeso e entusiasmo do pblico, sobretudo quando essa mulher era
declarada vencedora.
Imaginar o contexto tradicional do
repente permite compreender melhor a situao da mulher-repentista, um
estrangeiro-mulher que entra no territrio masculino do repente e que at tem
o direito de adentrar nesse espao, de participar do jogo, mas ter de
respeitar as regras desse jogo. Quer dizer, cumprir duas condies: o respeito
aos cdigos do antagonismo bsico do jogo potico e a demonstrao de um exmio
conhecimento da sua arte potica. Ela tem que se mostrar superior ao
adversrio, para o pblico o declarar vencido.
Esse jogo apimentado de maneira muito
especial ao oferecer um palco a todas as possveis frustraes, tenses,
conflitos e preconceitos gerados pelo convvio dos dois sexos no mundo
relativamente fechado da comunidade tradicional. No fundo, trata-se de um
jogo-ritual que permite evacuar, soltar e curar o que se denomina na
psicanlise Verdrngung, refoulement, represso de pulses (sexuais, de
violncia, de dio) estocadas no inconsciente. Tantas vezes senti uma vibrao,
uma excitao, ouvi um frmito, antes mesmo de uma mulher entrar no crculo ou
subir ao palco para cantar! A, o desafio era grande e especial; era preciso
escolher o tom (sarcstico, jocoso, irnico, provocador) e o subgnero potico
dentro da gama de possibilidades ofertadas, tais como maldizer, escrnio,
obscenidade, zombaria. O essencial era fazer melhor, ser mais forte, cantar o
verso mais bonito e perfeito na rima e no ritmo. Esse era o grande desafio das
cantadoras que saam do crculo formado pelo pblico conhecedor-avaliador para
um desafio/provocao grande: aventurar-se at ao centro do territrio
masculino.
Nesse sentido, h outra intepretao
possvel para o fato averiguado de que muitos poetas se recusam, geralmente com
uma atitude de imenso desprezo e arrogncia, a cantar com uma mulher. Certa
vez, Jos Alves Sobrinho me disse que minha interpretao dessa atitude –
como se tratando de um preconceito sexista – era muito superficial, o que
outros grandes poetas depois me confirmaram. Na verdade, nesse territrio
masculino do repente, ser o vencido do duelo potico j , em si, uma desonra.
Ser o vencido de um vencedor estrangeiro, seja ele masculino ou feminino,
desonra e vergonha! Para o poeta masculino, o risco era muito grande, uma vez
que o pblico gostava desse subgnero potico e admirava, de antemo, a coragem
da mulher e o seu domnio da ars potica do repente. Na verdade, como
Sobrinho e outros poetas explicavam, essa atitude de superioridade e desprezo
ocultava o medo medonho que tinham muitos poetas de ter que sair vencido do
duelo potico com mulher.
Houve poetisas que procuravam outras
estratgias, no violentas, para a sua voz ser escutada. Algumas delas j
anunciam a transio do repente tradicional, violento e antagonista, ao repente
dos parceiros-companheiros que se instala progressivamente na segunda parte do
sculo XX. Jos Alves Sobrinho, por exemplo, evoca, com muito carinho,
A Terezinha
Tietre
De So Jos dos
Cordeiros.
S cantava
elogiando
O verso dos
companheiros.
Deixou de
cantar, porm
Causou saudade
aos parceiros (SOBRINHO, 2003, p. 98)
Mais uma vez, por trs do elogio do
poeta, desenha-se a estrutura bsica – pica – do mundo masculino
que a mulher provocadora tinha que respeitar e as regras do jogo potico pico
masculino, quer dizer: zombar ou elogiar.
Consideraes
finais
O exemplo da funo social da arte
ldico-potica do repente (e sua forma impressa no folheto de cordel) e da
violncia da linguagem potica de homens e mulheres repentistas nesse
territrio tradicionalmente masculino permitiu ilustrar a necessidade e a
urgncia da reviso das episteme do discurso convencional sobre cantoria e
cordel. Para quem quiser interpretar e historiografar textos ou gneros
literrios originrios das tradies orais, fundamental, antes de mais nada,
conhecer a fundo o contexto scio-histrico e cultural das obras e dos seus
autores. De um momento, de um contexto (regional, social, histrico...), de um
pblico para o outro, a significao dos gestos, das palavras, das imagens pode
ser diferente, tornar-se ambgua, ter duplo sentido ou sentido figurado e levar
o pesquisador, convencido da superioridade e e universalidade da sua
metodologia e terminologia, a interpretaes erradas.
Porm, o que importa mais ainda tentar
questionar o nosso olhar sobre eles. Esse questionamento baseia-se na
conscincia de que a ordem do discurso (Foucault, 1996) – ocidental,
colonial e patriarcal – formata tanto o nosso pensamento e linguagem
quanto o nosso olhar sobre o mundo e a nossa realidade. Queiramos ou no
queiramos, sejamos homens ou mulheres, essa ordem fundamentalmente
colonizadora, mutiladora e hierarquizante. Como disse recentemente um grande
pensador do movimento internacional Men Engage Against Violence[38]
num debate sobre violncia masculina e educao: We are all trapped in the
framing of the same narrative. Estamos todos encarcerados na estrutura da
mesma narrativa.
Esse olhar colonizador parte de um
observador que se considera centro e protagonista; convencido de que os seus
conceitos, critrios, categorias e juzes de valor sejam objetivos, cientficos
e lhe fornecem instrumentos vlidos para definir, classificar, intepretar e
avaliar tudo e todos os outros. Trata-se de uma armadilha desastrosa, formatada
por sculos de pressupostos que so, na verdade preconceitos e pretenses
injustificadas. Inmeros so os exemplos de narrativas e teorias errneas
construdas em cima do pressuposto de que o Sujeito-pesquisador possui o olhar
objetivo e cientfico sobre o seu Objeto de pesquisa, como so inesgotveis
as fontes das piadas de pesquisador nas quais os poetas da oralidade
denunciaram e continuam denunciando, no mundo inteiro, essa pretenso absurda
da superioridade da cincia ocidental.
Para cumprir o anncio e promessa que
fizeram, no Cariri, no ano 2000, os Poetas dos cordis mauditos e inventar
esses novos outros 500 anos da histria da humanidade, teremos que
contar/narrar direitinho, antes de mais nada, a histria dos seus
antepassados-poetas, alm de inventar vocabulrios no dicotmicos para esse
futuro. Criar esse futuro implica o restabelecer daquela viso do mundo das
civilizaes da oralidade que no se ilude com a crena de um Progresso
infinito, hoje em dia cada vez mais inverossmil, violento e mortfero.
Esses cantadores e cantadoras que
ritualizavam e colocavam aberta e corajosamente no palco da comunidade
nordestina a violncia masculina como praga social a ser debatida, re-educada,
curada e vencida para o bem-estar de todos, no s legaram para as futuras
geraes uma linguagem potica e estratgias eficazes de comunicao social,
poltica e educativa, mas deixaram tambm uma amostra de um mundo diferente e
dual, mais humano, mais respeitoso das leis da Vida que o sistema colonial e
seus aliados eruditos que compuseram e impuseram a Histria oficial do Brasil
tentaram, em vo, obliterar.
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SOBRINHO, Jos Alves. Cantadores, Repentistas e Poetas
Populares. Campina Grande. Bagagem. 2003.
[Entregue : 03 mai 2021]
[33] Professora emrita da Universit de
Poitiers. Centre de Recherches Latino-Amricaines. Poitiers, Frana. E-mail:
rialemaire@hotmail.com
[34] Em A peleja potica epistolar
entre a poetisa Bastinha e o poeta Patativa do Assar (SANTOS, 2011, p.
46-47), Francisca Pereira Santos publicou trechos dessa correspondncia.
[35] Existe, desde 2013, a Rede
Mnemosine, fundada pela pesquisadora/narradora/cordelista Josy Correia.
Inspirada pela tese de doutoramento de Fanka Santos e oficializada em 2015, a
rede promove aes de mapeamento, pesquisa, difuso e fruio de folhetos,
recitais e feiras produzidas por mulheres. No ano de 2017, chegou a Portugal,
onde possui um acervo de folhetos femininos, partilhados com a Universidade do
Algarve e promove eventos, programas radiofnicos e audiovisuais, transmitidos
ao vivo pela Internet. Contato: redemnemosine@gmail.com
[36] A respeito do conceito de matrimnio,
ver Lemaire (2018).
[37] Atualmente Rita Segato que, j nos
quadros do pensamento decolonial, retoma a noo de dualidade plural como base da metodologia do trabalho
antropolgico, no sobre mas com as (mulheres das) comunidades
indgenas do Brasil (SEGATO, 2012).
[38] Men Engage um movimento
intercontinental, criado por homens e apoiado por movimentos de mulheres do
mundo inteiro, que, todos juntos, objetivam e praticam um questionamento radical
da violncia masculina e seus funcionamentos nas sociedades humanas. Um
simpsio virtual, o UBUNTU SYMPOSIUM, rene, em contnuo e durante oito
meses (de novembro de 2020 a junho de 2021), ativistas, militantes, movimentos,
pensadores, profissionais e inteletuais para divulgar e debater as condies e
experincias de uma re-educao dessa violncia masculina como conditio sine
qua non de uma humanizao e pacificao do planeta-mundo.