Poesia in concert: a palavra de volta rua[43]

 

Poesia in concert: the word back on the street

 

 

 

Kaedmon Sellberg[44]

https://orcid.org/0000-0002-4185-2598

 

 

Resumo: O Poesia in Concert um evento londrinense que data da dcada de 1990 e ocorre at hoje. So apresentaes com msica e poesia feito, inicialmente, pelo agrupamento de poetas e artistas Mrio Bortolotto (dramaturgo), Rodrigo Garcia Lopes (poeta), Maurcio Arruda Mendona (poeta) e Slvio Demtrio (msico). Em 2009 o evento retorna, com o mesmo nome, inserido no festival literrio de Londrina, Londrix, com a frente de Christine Vianna, professora e musicista da banda Benditos Energmenos. Entre 1990 e 2009, h, naturalmente, uma transformao do contexto social, histrico, poltico, no mbito nacional e londrinense, que motiva estratgias diferentes de insero do Poesia in Concert no espao pblico. O artigo se prope a estudar, comparativamente e brevemente, os dois momentos do Poesia in Concert e suas relaes com o espao pblico de Londrina. Em termos curtos, observa-se uma atualizao do sentido do evento para a cidade e para seus agentes, embora ainda se mantenha como espao de oposio ao status quo. A pesquisa foi feita a partir do levantamento de referncias culturais, de entrevistas e aporte terico.

Palavras-Chave: Poesia; Msica; Performance; Londrina; Poesia in Concert

 

Abstract (Times New Roman, 12, bold): Poesia in Concert is an artistic event in Londrina, PR – Brazil, dating from the 1990s that still takes place to this day. It revolves around presentations with music and poetry performed, initially, by the group of poets and artists Mrio Bortolotto (playwright), Rodrigo Garcia Lopes (poet), Maurcio Arruda Mendona (poet) and Slvio Demtrio (musician). After a break in the mid-90s, the event returns in 2009, with the same name, inserted in the literary festival of Londrina, Londrix, being Christine Vianna, vocalist of the band Benditos Energmenos, the main poet/singer. Between 1990 and 2009, there is, of course, a transformation within the social, historical, political context, at national and regional level, which motivates different strategies of insertion in the public space. The article aims to study, comparatively and briefly, the two moments of Poesia in Concert and its relations with the public space of Londrina. In short terms, Poesia in Concert and its meaning have been updated for current literary and artistic needs, educating the public to artistic expression less common in the mainstream market. The research was based on the survey of cultural references, interviews and theoretical contribution.

Keywords: Poetry; Music; Performance; Londrina; Poesia in Concert;

 

 

Introduo

 

O Poesia in Concert, iniciado em 1993, foi um agrupamento de poetas, dramaturgos e msicos de Londrina: Mario Bortolotto (1962, ator, diretor, dramaturgo, escritor), Rodrigo Garcia Lopes (1965, poeta, msico, tradutor), Mauricio Arruda Mendona (1964, dramaturgo, poeta, msico, tradutor) e Slvio Demtrio (1970, jornalista, professor universitrio, msico) que, embora no estivesse ligado s produes artsticas, tinha um programa na Rdio Uel da poca. O agrupamento lia poemas de diferentes origens (autorais, tradues, nacionais) acompanhados de msica, frequentemente, blues, MPB e rock. O primeiro momento do Poesia termina em 1994, seguido de um hiato at a incorporao oficial do evento, retomado pela atriz, poeta, cantora, professora Christine Vianna, no Londrix (festival literrio de Londrina) em 2009. Durante esse perodo, concertos isolados aconteceram com a mesma proposta: poema e msica. A dificuldade metodolgica de traar uma linha temporal, contextual e coesa, a de discutir se essas expresses independentes compartilhavam do mesmo significado social. Esteticamente, v-se a coeso.

O que este artigo prope :

a)     apresentar o Poesia in Concert nos dois momentos citados, atravs de entrevistas coletadas, vdeos assistidos, apresentaes analisadas;

b)    comparar as duas expresses, localizar diferenas e padres, que situem a importncia social do evento na histria de Londrina;

Para a realizao do artigo, alm de levantamentos de referncias bibliogrficas sobre Londrina e sobre o Poesia in Concert da dcada de 80 e 90, foram entrevistados Mrio Bortolotto, Rodrigo Garcia Lopes, Slvio Demtrio e Cristiane Vianna, em 2018. Maurcio no pde ser entrevistado devido a um problema de sade, infelizmente. Ao longo do artigo, citaes das entrevistas sero colocadas entre aspas. Todas as entrevistas estaro disponveis em link nas referncias. Os vdeos usados para anlise podem ser encontrados no canal Cemitrio de Automveis, disponvel no Youtube. Link nas referncias.

A partir daqui, apresento o Poesia in Concert que explora a dimenso sonora da palavra com a funo de levantar bandeira poltica e cultural: fazer a palavra voltar para a rua, como dir Rodrigo Garcia Lopes. O autor observava que a palavra permaneceu na torre de marfim do poeta (como diz o ditado) por muito tempo. Entretanto, h diferentes formas de interpretar a torre de marfim em 1990: a ditatura militar, que dcadas antes foi a principal fonte de censura literria; o prprio circuito literrio, que era um ciclo privilegiado de escolarizados at a segunda metade do sculo XX; ou, ainda, o espao que ocupava a literatura nas universidades em relao ao espao pblico. Por pblico, entende-se o bar, a rua, a esquina da praa.

H diversas torres de marfim que enclausuraram a palavra literria no Brasil at 1990. O ponto comum entre todas as torres a palavra literria em distanciamento social em relao rua. Ou seja, a palavra literria no participava da esttica do papo furado, da conversa de meio-fio, da conversa desengonada do bar. No participava da inevitabilidade do som. A pgina era educada demais para se impor dessa forma. A palavra na rua evoca a circunstncia biolgica, corporal, presencial – o som da cidade, a msica tocada, a performance. Nesse sentido, o argumento do Poesia in Concert que na palavra do distanciamento social h um silncio comum ao livro. Para bem ou para mal, a mobilidade do objeto impresso fragmenta o significado do texto conforme lido em diferentes contextos, a partir de diferentes leitores. Por isso a brincadeira do distanciamento social da palavra que o Poesia, desde 1993, quis fazer retornar rua. Quando a palavra solta na performance sonora, o contexto da aglomerao, os significados se aproximam porque se aproximam as pessoas.

Quem eram os atores e as influncias do Poesia in Concert, portanto? Como se pode antecipar, inserir a poesia literria no espao pblico do campo da margem, da juventude, da sensao e do corpo, que encontra ncora na literatura beatnik e simbolista, representada por Arthur Rimbaud. Essa foi, de fato, a bagagem que Mario Bortolotto e Rodrigo Garcia Lopes trouxeram ao Poesia. Rodrigo estava nos Estados Unidos entre 1990 e 1992, no Arizona, cursando o mestrado Humanidades Interdisciplinares, que resultar no compndio de entrevistas, em forma do livro Vozes & vises: panorama da arte e da cultura norte americanas hoje, publicado no Brasil pela Editora Iluminuras em 1996. Entre os entrevistados esto William Burroughs, John Cage, Allen Ginsberg, Thom Gunn, Wanda Coleman, Amiri Baraka, nomes associados arte de vanguarda, ao beatnik, ao blues, cultura afrodescendente americana. Outros nomes citados por Rodrigo Garcia Lopes, porm no entrevistados para o livro, so David Lynch e Francis Ford Coppola.

Amigo de traduo do Rodrigo, Maurcio Mendona de Arruda, hoje dramaturgo premiado internacionalmente, traduziu com ele Sylvia Plath, Poemas (1990) e Iluminuras (1994), obra do Arthur Rimbaud. Vale a pena mencionar tambm a antologia Trilha Forrada de Folhas – Nenpuku Sato, um Mestre de Haikai no Brasil (1999), do poeta japons Nenpuku Sato, o introdutor do haikai no Brasil. Paulo Leminski bebeu dessa fonte.

J Mario Bortolotto traz consigo o teatro, o Chiclete com Banana, que a partir de 1987 ser chamado Cemitrio de Automveis. Na dcada de 1990, o grupo j era premiado e reconhecido em So Paulo e So Jos dos Campos. Nessa mesma poca sentia-se a necessidade de advogar pela cena local, conforme complementa Mario Bortolotto, pois a efervescncia oitocentista que tinha levantado o teatro decaiu a partir dos anos 90. O mesmo ocorria com a literatura londrinense. Os nomes artsticos de Londrina iam muito bem entre grupos artsticos. O que faltava era realmente, tornar a arte da rua, torn-la uma experincia do pblico.

Cito trs trechos para os amarrar em seguida:

 

Ao pensar sobre os sons de uma cidade, muitos ambientes sonoros emergem aos nossos ouvidos. Certamente, os sons da cidade, diretamente ligados a sua morfologia e sua arquitetura, nunca foram ou sero os mesmos, seja em Tquio, Londres ou Londrina, pois, como o observa o gegrafo Frderic Roulier (1999), os tipos de economia, os comportamentos sociais, a tecnologia e a densidade populacional induzem variaes que fazem com que cada cidade possua uma identidade sonora ou paisagens sonoras caractersticas. (CARNEIROS DOS SANTOS, 2011, p. 83, negritos meus)

 

As vanguardas histricas e a ps-vanguarda da segunda metade sculo XX deixaram uma grande lio sobre dissoluo de fronteiras entre literatura e outras artes, em que a performance se tornou uma importante referncia para a crtica. (FERNANDES, 2017, p. 104, negritos meus)

 

Ora, nestes fenmenos festivos, por um lado aplica-se o ajuntamento (endoidecimento) e, por outro, a pluralidade de cada um. O imaginrio est na ordem do dia e com ele a multiplicidade de sentidos que cada pessoa d sua existncia. (MAFFESOLI, 2002, p. 84, negritos meus)

De cima abaixo, observa-se uma relao entre arquitetura urbana, fsica, concreta, tambm abordada como uma estrutura abstrata, no sentido de um comportamento artstico, ideolgico. De acordo com Frank (1979, p. 13), h um espao de fazer arte e literatura que ocorre em funo do seu espao arquitetnico, social e vice-versa. Ambos estabelecem uma identidade – e, para este artigo, usarei o termo afinidade – entre memria (passado) e criao (presente). A simbiose se processa em fenmeno literrio. A afinidade entre arquitetura e literatura ser o ponto-comum para o espao do Poesia in Concert em 1993. Qual era o espao londrinense?

Londrina experienciava um refluxo da efervescncia cultural da dcada de 80: o teatro era reconhecido. A msica sofria os voos de um MPB que discutiu com o recm finado ufanismo ditatorial. A literatura tinha contato com: Paulo Leminski, o inutenslio curitibano e com a influncia das tradues e entrevistas de beatniks, simbolistas, vanguardistas e poemas minimalistas (haikai). Era uma linguagem que flertava com a dramaturgia londrinense de Bortolotto. Inclusive, essa linguagem fazia mais a cara dos bares do que dos teatros tradicionais. O PROTEU (Projeto Experimental de Teatro Universitrio, criado em 1978) era o teatro diferento, levou o papel principal da boemia londrinense, alternativo em relao a valores mercadolgicos e engajado na consolidao do FILO (Festival Internacional de Londrina). O PROTEU influencia os nomes importantes da histria da arte em Londrina e tambm o teatro da vanguarda de So Paulo. Por exemplo, Cemitrio de Automveis ser o nome da importante Vila Cultural em Londrina, inaugurada em 2007 por Christine Vianna via PROMIC (Programa Municipal de Incentivo Cultura).

Ou seja, o Teatro em Londrina dos anos 80 e dos anos 90 no tinha do que se envergonhar. Em um festival de teatro em So Jos dos Campos, o grupo teatral Cemitrio de Automveis e a Cia. Dramtica Bombom pra Que se Pirulito tem Pauzinho Pra se Chupar, tambm de Londrina, ganharam 10 dos 12 ou 13 prmios (Mario no se recorda). Sobrou pro resto do Brasil trs prmios, conta Mrio em uma entrevista de 1990 na TV Tropical de Londrina, disponvel nas referncias do artigo. J o pblico londrinense era um pouco recalcado na dcada final. Lotar um teatro de 200 pessoas era muito difcil.

Partindo dessa conjectura que, em matria de literatura e de msica no era muito diferente, nota-se uma presena cultural de peso em contraste com um pblico escasso. O espao artstico de Londrina se organizava, socialmente e esteticamente, em torno de uma certa bomia e da performance. um terreno frtil para saudar a nostalgia de Rodrigo que um pouco antes estava nos Estados Unidos traduzindo seus poemas em bares com acompanhamentos de msicos no Arizona. Eu voltei de l querendo fazer coisas em Londrina, o poeta conta. J se observa um deslocamento esttico dos beatniks norte-americanos e suas poesias bomias para dentro da arquitetura londrinense. Caso se mergulhe um pouco mais na experincia esttica beatnik, observa-se uma poesia que andava com o jazz estadunidense dos anos 50 e 60.

Rodrigo traz sua experincia estadunidense ao Brasil, cuja predominncia esttica era o movimento neorrealista da dcada de 30, ecoada pelo engajamento necessrio (sempre) de artistas locais, brasileiros. H uma pequena barreira, embora no insupervel, entre uma tradio literria que gostaria de subjugar a pura arte pela arte vanguardista (como de Mrio, Rodrigo e Maurcio) e ainda educar o pblico arte. Aqui, Rodrigo faz sua tarefa social e artstica: des-criptografar a urea escolstica de um poema, torn-lo do bar, da rua, da boca, em oposio sacralidade dada palavra por uma modernidade conservadora. sua flexibilizao da cultura da escrita.

Finalmente, j em termos geogrficos, a poesia da Rua pode ser compreendida como uma poesia da Humait. Em 1990, na longa extenso entre as ruas Prefeito Ferreira Lima e Humait, havia repblicas de jovens de maioria universitria. Tambm se encontram bares que convidavam experincia bomia. Alm dessas ruas, na Av. Bandeirantes, havia o Bar Valentino, palco principal das apresentaes do Poesia in Concert. Curiosamente, hoje o Bar Valentino se encontra na Prefeito Faria Lima. Mais abaixo se encontram as imagens.

Portanto, h um duplo jogo semntico em poesia da Rua. Na semntica da rua conotativa, um imaginrio de protesto aos espaos aristocrticos, elitizados, um espao pensado pela sua mobilidade social. Na semntica da rua denotativa, embora no seja uma regra, a rua era localizada geograficamente entre a Prefeito Faria Lima-Humata-Av. Bandeirantes, onde se encontrava a maioria dos atores sociais do evento Poesia in Concert.

Nessa relao conotativa-denotativa, encontra-se a tal presena arquitetnica-esttica da rua. Composto de sujeitos artsticos e universitrios, a poesia voltou rua na Prefeitura Ferreira Lima com a Humait e foi at ao Bar Valentino, na poca presente na av. Bandeirantes, nmero 61. Como contam Slvio Demtrio e Mario Bortolotto, os espetculos no bar estavam lotados. Era de um relativo sucesso, de loucura, de encher a casa do Bar Valentino, de deixar gente do lado de fora, de levar essas apresentaes para fora de Londrina, at Curitiba. No sentido de ressignificar uma realidade social, o Poesia in Concert de 1993 foi bem-sucedido.

 

 

Fora do Valeco

 

O Valeco ou O Bar Valentino era sofisticado, escreveu Mario Bortolotto. Era o bar que a rapaziada do Grupo Proteu adotou e l sempre estava cheio de atores, msicos, artistas plsticos, etc. E s tocava jazz de trilha sonora, alm da melhor macarronada da cidade.

 O Bar Valentino, hoje na rua Prefeito Faria Lima, 486, antigamente na avenida Bandeirantes, 61, era um espao para pessoas artsticas, talvez tanto quanto a Vila Cultural Cemitrio de Automveis seja hoje. Toda a rea entre a rua Humait e a Ferreira Lima era contemplada pela juventude, aglutinada com antigas repblicas da rua Humait. De manh, pra vir pra UEL, eles vinham de carona. Ficavam pedindo carona, conta Slvio Demtrio. Eram lugares menos gourmetizados, com tradio bomia, acessvel.

 

Extenso Prefeito Faria Lima e Humata

 

 

Fonte: Google Maps de Londrina, 2022

 

            No crculo vermelho esquerda do leitor, prximo Rodovia Celso Garcia, encontra-se a UEL (Universidade Estadual de Londrina). No crculo vermelho central, na rua Prefeito Faria Lima e ao lado da Universidade Positivo, encontra-se hoje o Bar Valentino. No balo direita, a rua Humait, que termina na Avenida Higienpolis, uma das avenidas principais de Londrina. No crculo vermelho direita, o antigo espao do Valentino. Entre o espao intelectual de Londrina (UEL) e um dos espaos centrais do ponto de vista comercial (Av. Maring, Av. Higienpolis, Av. Bandeirantes), havia extenso colonizada por repblicas e espaos marginais (bares, adegadas) cruzando essas extremidades, observada na linha preta. J o lago Igap, um dos pontos importantes de lazer da cidade, cruza essa via de cima a baixo. No difcil imaginar como esse trfego geogrfico influenciava na operao social desse perodo, desses artistas, dessa juventude.

Como at 2005 o Bar Valentino era localizado na avenida Bandeirantes, o fluxo de caronas e de pessoas exigia subir a Humait em direo Higienpolis e, em seguida, descer uma das ruas perpendiculares at a rotatria da Bandeirantes. Mrio e Slvio contam sobre uma agitao naquele espao. Mrio conta ainda uma experincia pessoal:  

Eu gostava muito de l, embora o meu poder aquisitivo no me permitisse desfrutar do whisky do lugar, mas eu tinha alguns amigos garons que conseguiam traficar algumas doses pra mim. Eu ficava sentado no muro l fora e os copos de whisky se materializavam nas minhas mos. [...] Era foda!

 

 

Extenso Prefeito Faria Lima e Humait

Grifo rosa: Humait ao Bar Valentino (ponto vermelho)

Fonte: Google Maps de Londrina, 2022

 

Nesse espao, jovens nascidos entre 1960 e 1970 viviam o rescaldo da abertura do pas aps o fim da ditadura. Por conta da explorao comercial e da reabertura, essa juventude convivia com a mdia estadunidense no Brasil. Havia, claro, nomes brasileiros ganhando peso – a influncia da literatura beatnik j aparecia em Paulo Leminski, por exemplo. Slvio Demtrio menciona alguns brasileiros como artsticos autnticos avessos ao mercado de reprodutibilidade. Havia, tambm, influncias de cinema, msica e at quadrinhos.

 

 

Fonte: Matria na Folha de Londrina, 1 Set 1993, arquivada e emprestada por Silvio Demetro

Reportagem Os Insatisfeitos

Matria reporta juventude londrinense em 1993

 


Em uma matria publicada na Folha de Londrina em 1 de setembro de 1993, a manchete Os Insatisfeitos descreve a situao de autoflagelo de uma garota de 21 anos, uma tentativa de suicdio, suavizada pela prpria entrevistada: Acho que estava s tentando chamar a ateno, no queria realmente morrer. Seguido de testemunhos de denominados insatisfeitos, a matria chega at Slvio Ricardo Demtrio, 24 anos, estudante de jornalismo, solitrio divertido, cuja insatisfao fora descrita como sinnimo de uma inquietao interna, uma insatisfao com o social como se o questionasse. Quem novo e est esperando alguma coisa insatisfeito. S os que no esperam nada que esto satisfeitos. I Cant Get No Satisfaction, msica dos Rolling Stones foi citada para descrever sua sensao, de quem via em Paulo Coelho e Duran Duran acomodao cultural.

Logo abaixo, o cartunista Angeli continua o assunto da insatisfao, expressando noes da vida bomia paulistana entre 1980 e 1990. H uma tirinha com dois personagens seus dessa poca: os velhos hippies, Wood & Stock, referncia ao festival Woodstock da dcada de 60. Esses e outros personagens expressariam traos da sua personalidade:

 

Eu sou recluso, quase no saio de estdio. Sou uma pessoa deslocada, me sinto contemplador e no um cara participativo; no compactuo com o mundo e isso atia o meu senso crtico. As pessoas positivas demais no tem [sic] graa. Eu acho que todo alegre no fundo um paranoico, algum que perdeu o senso crtico.

 

A matria (meio sensacionalista, meio tendenciosa) vista, aqui, como registro de temas e de pensamentos dos jovens de 1993, que criavam seu prprio discurso social, esttico, ideolgico, sobre seus comportamentos. A insatisfao linha vertebral, um descontentamento com o sistema social e poltico. Em sntese, um status quo que no valia a pena ser vivido. Slvio Demtrio cita vrias influncias para os insatisfeitos: Sam Shepard citado como influncia do pblico e dos artistas do Poesia in Concert, j que suas peas de teatro relatavam personagens sintomticos de um sonho americano falho, de uma fratura no ideal da famlia americana. No surpreende que Mario Bortolotto, em 2017 e 2016, tenha dirigido as peas Oeste Verdadeiro (True West, de 1980) e Criana Enterrada (Buried Child, de 1977), no Teatro e Bar Cemitrio de Automveis em So Paulo[45]. J nos filmes, assim como viu-se a inteno do Rodrigo Garcia Lopes em ter um cara-a-cara com Francis Ford Coppola, Silvio cita O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, de 1983), do mesmo diretor, cujo personagem central um jovem lder de gangue de uma famlia desajustada. E o filme Condenados pelo Vcio (Barfly, de 1987) inspirado no alter ego de Charles Bukowski, Henry Chinaski, um alcolico em Los Angeles, do diretor Barbet Schroeder.

Uma msica de Barfly, para citar uma influncia prtica, foi usada como acompanhamento musical durante um dos eventos do Poesia in Concert. Essas e outras referncias menores marinavam, como caldos, a experincia juvenil. Por exemplo, como conta Slvio, houve umas decises sem noo e tpicas de uma juventude em busca de criar uma afinidade com a insatisfao. Decises como: vou embora daqui porque t cansado; puts, cara, isso no se faz. Mas era assim que as coisas funcionavam.. A aventura pessoal, o dizer sim vida que, como veremos mais tarde, j estava registrada em Rimbaud, Nietzsche, beatniks, compartilhada pelos personagens dos filmes.

Eram as influncias brasileiras no Poesia in Concert mais hbridas que as influncias estadunidenses, pois nossos brasileiros eram nmades. O Poesia no tinha uma inteno regionalista; isso seria um ufanismo do perodo anterior ao qual o Poesia queria marcar oposio, a ditadura militar nacionalista. Slvio conta, a princpio, uma formao musical do Hermano Reis, Grupo DAlma e outros nomes do universo violonstico brasileiro. Mais tarde, o convvio com Mario traria uma msica ligada ao universo da gerao beat: jaz bepop, blues, trilha sonora do filme Paris, Texas (1984). De Londrina, at Bernardo Pellegrini e o Bando do Co Sem Dono, embora no participasse diretamente do evento, dialogava com ele. Um poema musicalizado pelo Rodrigo, trabalhado junto com o Slvio, com slides de blues, foi gravado pelo Bernardo nos anos 90. As letras da msica, assim como o estilo do Bando, mais uma vez, colocam em evidncia a caracterstica bomia do som e das experincias de vida.

 

Dentro do Valeco

 

Segundo um documento publicado pelo site da Prefeitura de Londrina, na primeira pgina:

No comeo da dcada de 80, segundo Joo Henrique Bernardi, o Valentino era o local para onde iam as pessoas que acompanhavam o movimento teatral da cidade quando uma pea nova estreava, sendo cenrio da rivalidade entre os maiores grupos de teatro de Londrina. O bar ainda passou pelas mos de outro dono, Marcos Marangoni, at chegar aos donos atuais, Valdomiro e Rosangela Chamm, que esto frente da administrao do Valentino desde 1991. Em 25 anos de histria, o bar foi segunda casa dos bomios da cidade de todas as raas, crenas e opes sexuais, foi palco de peas de teatro, shows musicais de todos os estilos, atividades do FILO, exposies de artistas plsticos, lanamentos de livros e CDs, mostras de vdeo. Foi inspirao para msicas, poemas, livro, curta-metragens, histrias em quadrinhos. Recebeu visitantes ilustres, como Paulo Leminsky [sic], Glauco, Angeli, Cssia Eller e diversos msicos e atores que se apresentaram na cidade. O Valentino no apenas palco, mas Personagem da histria cultural de Londrina. (LONDRINA.PR.GOV.BR, p. 01)

 

Fonte: Matria na Folha de Londrina, 7 Abr 1993, arquivada e emprestada por Silvio Demetro

 

Poesia in Concert

Reportagem de evento no bar Valentino


Londrina contava com um teatro que efervesceu a cidade, uma literatura em torno da marginalidade beatnik (mesmo que a literatura tenha ficado abandonada, como as notcias de 1993 mostram), MPB, rock e jazz, um espao bomio para artistas. No Bar Valentino, o Poesia in Concert cola estes fragmentos artsticos em um caldo coeso. Veja, por exemplo, um dos concertos que se chamava Palavra cantada palavra voando. A performance trazia, por exemplo, Mario Bortolotto com textos do Bukowski, em seguida tradues de Rimbaud, e, mais tarde, inclusive Maurcio com sua influncia japonesa, o haikai. Uma verdadeira Jam Poetry, como conta Silvio, pois envolve geleia, gosma, de misturas e sons de costura. At coisas improvisadas. Billy Holliday foi cantada, alm de outras experincias de solido do gueto americano. Essa geleia, que de um ponto de vista historiogrfico at pertence a um ncleo relativamente estvel de influncias, encontra uma contradio do ponto de vista crtico literrio.

 

A reportagem acima cita referncias marginais (Leminski, Sylvia Plath, gerao beat: Burroughs, Kerouac) em relao ao cnone tradicional. Mais curioso que, em certos momentos da crtica literria, essas referncias degeneraram a cultura e a poesia cannica americana. Pargrafos depois – assim como na outra notcia da Folha – introduz-se uma comparao com nomes aceitos pelo cnone, como os trovadores do sculo medieval e os gregos. A reportagem e os convidados pareiam comunidades culturais e estilsticas, aparentemente, vistas como antteses. A Folha escreve salmo e rap e Allen Ginsberg, por exemplo, ser recitado como se fosse um salmo.

O nivelamento entre dois estados distintos de crtica (a gerao marginal e os trovadores, os rapsodos) selado pelo Poesia in Concert enquanto uma reconquista de um lugar para a poesia na cidade. Assim fica registrado o impacto do Poesia em mdia pblica: a flexibilizao da trova para margem, a conciliao da progressista gerao beat com a tradio do rapsodo. Na dcada de 90 londrinense, essa afinidade potica condizia com um pblico que intelectualizava o marginal e marginalizava a canonicidade, como discurso crtico s bases morais da ditadora, dos discursos cvicos, ufanistas.

Essa afinidade potica, entretanto, j era comum no circuito crtico. Em uma entrevista com Burroughs, Rodrigo questiona o autor sobre seu processo de autor marginal institucionalizao literria. Burroughs responde: De certa forma isso verdade. Eu sou os Estados Unidos da Amrica! (LOPES, 1996, p. 13), o mesmo Burroughs que, segundo Rodrigo Garcia Lopes, foi um dos escritores do sculo 20 que mais levou adiante o desregramento gradual e racional de todos os sentidos proposto por Rimbaud[46] Outra afinidade entre o movimento crtico e o movimento artstico do Poesia in Concert est Anna Balakian, no livro O Simbolismo, publicado inicialmente em 1967, e publicado no Brasil pela editora Perspectiva em 1985. A literatura de Rimbaud ocorre pelo afastamento do literrio, com suas aventuras pessoais: Rimbaud foi, na verdade, o nico que escolheu a chamada fuga da literatura (BALAKIAN, 1985, p, 49). Rimbaud voa para a realidade, em oposio ao heri simbolista de Villiers, Axl, que se isola na inao e no sonho da torre de mrmore literria.  O tipo de viagem pessoal que encontra nos beatniks uma soluo agradvel – tornar a viagem (a perambulao na rua, o deslocamento social) um processo literrio, bem ao jeito da anlise de Frank (1979, p. 13). A arquitetura da cidade, nesse sentido, passa a ser um espao para o literrio do sculo XX. A experincia de viagem transforma-se em viagem literria.

Rapidamente, aponto a institucionalizao de Burroughs como um processo literrio da crtica americana que, ps dcada de 60, no conseguiria mais fingir que os Estados Unidos pertencia apenas aos subrbios (LOPES, 1996, p. 15). Isso seria ser cmodo com o neoconservadorismo que viria nos anos Ronald Reagan duas dcadas depois. Em direo a anlise de uma performance do Poesia in Concert, cito uma entrevista feita com Michael Maffesoli (2012, p. 166), no qual o autor explica:

 

por isso que o pensamento crtico no me parece mais ser um pensamento contemporneo. difcil de dizer, eu sei. Quando pensamos como intelectuais, pensamento crtico a grande tradio moderna do sculo XIX. O que quer dizer crtica? Em grego, krimeia, a balana do juiz. Pesam-se as coisas e retm-se o que precisa reter, jogando-se fora o que no presta. Marx dizia que o intelectual o crebro, o proletrio o vento, querendo dizer com isso que o proletrio agia, mas era necessrio o crebro que lhe desse luz. Atualmente, parece-me prevalecer uma posio afirmativa da existncia. O pensamento crtico o pensamento do no; o pensamento afirmativo, alis, nietzschiano, o pensamento do sim. Dizer sim vida. Ao passo que no pensamento crtico observam-se bem as formas de perfeio, as formas de submisso, as formas de explorao, etc., mas apesar de tudo existe o desejo de viver essa vida. O drama que existe uma discrepncia, um fosso enorme entre o pensamento intelectual e o vivido social em geral, e em particular no que tange s novas geraes. Para mim, todo o meu trabalho, tal como disse no meu livro A razo sensvel (um livro de epistemologia) tem sido o de mostrar que preciso desenvolver a existncia de um pensamento, que no seja um pensamento do exterior e crtico, mas que seja um pensamento do interior, que acompanha a vida.

 

No livro Elogio Razo Sensvel (1998), Maffesoli discute uma forma de pensamento orgnico, ou pensamento do ventre[47], no qual o corpo ps-moderno, em ruptura com o pensamento crtico, escolstico, vive um pr-moderno, uma organicidade arcaica (ou, chamadas assim apenas em relao ao pensamento moderno) a fim de dar fora a esse ventre. De acordo com Maffesoli (1998, p. 64-65), a organicidade remete para o vivente e para as foras que o animam. O que vive tende a se reunir, a conjugar os elementos dspares. quando o conjunto todo se sustenta que h vida. A observao ressoa no apenas com a organizao de elementos dspares da crtica literria no Poesia in Concert, como tambm com uma atitude especfica da juventude da poca: uma intelectualizao (ento, afinal, um pensamento crtico) das experincias do ventre, do corpo, da sensao. Dar o ventre palavra – corporific-la em pblico.

De volta ao Bar Valentino, o deslocamento social para aquele ambiente de Burroughs buscava flexibilizar uma crtica e um processo literrio que no poderia ser vivida na inao e no sonho de Axl. Nietzscheanamente falando, o dizer sim ao desregramento da vida, j prenunciado na aventura pessoal de Rimbaud, precisava imergir na rua. Logo, pensar o Bar Valentino enquanto espao do ventre no ignorar o pensamento crtico. Ao contrrio, pensar os fenmenos do Poesia in Concert como articuladores crticos, intelectuais, no apenas da experincia ditatorial, mas tambm como um espao de crticos sobre a crtica literria tradicional.

Gostaria, portanto, de analisar uma performance do Poesia in Concert da dcada de 90 disponvel no link a seguir, o qual sugiro acessar antes de avanar o texto: <https://www.youtube.com/watch?v=Ar2W0QdCl48>.

Em seguida, deixo um link, apenas para comparao, da mesma performance sendo ensaiada: <https://www.youtube.com/watch?v=H0qhVvquy3Q&t>   

Sobre o equipamento do palco, nada muito sofisticado em termos de equipamento, Mario e Rodrigo dizem. Microfones e um violo. A balada em questo entre country e blues, tcnicas de slides do violo e um som descontrado. Nada grave, nada melanclico, um pouco texano, um pouco relaxado. Um pouco daquela msica de bar mesmo.

Rodrigo est prestes a ler uma traduo de Lawrence Ferlinghetti (precursor dos beatniks), Sometime During Eternity.... Destaco aqui uma frase de Leminski que Rodrigo confidenciou a mim Cantar apenas a maneira mais bonita de dizer. Assim como os slides do violo, haver uma escorregada – entre dizer e cantar – durante a performance e, propositalmente, obscurecida sobre seu ponto exato de transio. Ou seja, Rodrigo propositalmente quer obscurecer a tcnica de sua voz, se canto ou se est dizendo. Escreverei um asterisco (*) a fim de transcrever os momentos de impreciso. Entre parnteses est a interveno de Rodrigo no poema, ou seja, partes que no correspondem a uma traduo, correspondem a marca de oralidade performtica.

Rodrigo segura um papel na mo. Comea:

 

Era uma vez

Durante a eternidade

Uns carinhas entram em cena

e um deles

Que pinta meio tarde no pedao

um tipo de um carpinteiro, meio bicho grilo

Vindo de algum lugar careta, tipo... Galileia

E o cara comea a delirar e dizer que ele o O cara – o O cara

E que t em ligao direta com a figura que fez o cu e a terra

E que o sujeito que aprontou essa com a gente o papai dele

E tem mais: o carinha diz que tudo isso est escrito nos rolos de pergaminho

que os brders dele mocozaram em algum canto do mar morto

*H muito tempo atrs...

E que vo ficar assim perdidos durante milhares e milhares e milhares de anos

*1947, pra ser exato

E mesmo assim, ningum t nem a pra o que ele diz

A dizem assim pra ele, n (pro Jesus, obviamente, que a figura toda): *bixo, voc quente

E penduram o cara numa cruz pra ele esfriar a cabea

E desse dia em diante todo mundo entra numas e comea a fazer modelitos dessa cruz, que o cara t pregado, e ficam cantando embaixo dela pedindo pra ele ([comea a gaguejar]) descer dali [caoa a orao rabnica, fazendo sons guturais, incompreensveis] e entrar pro grupo e tirar um som tambm, j que ele o fera, o cara quente, o... (tal, n, o cara) que tem que mandar a ver (mesmo, n, porque se no for Jesus, hoje em dia, eu no sei quem ), se no, nada v

s que dali o cara no desce nem a pau

Fica ali pendurado, fica ali frio, ali na dele, dando um time (meu time! [abre os braos imitando a crucificao]

E, tambm, segundo informam as ltimas notcias das agncias internacionais, vindo de fontes nada fidedignas, como sempre

realmente – morto

 

Na performance, h palavras marginais, misturas entre ingls e portugus, uma caracterstica da urbanidade brasileira – que tambm resgata um estilo vanguardista de Oswald de 22. O nomadismo de informao, citado por Slvio, alm de referncias artsticas, traz referncias lingusticas aportuguesadas. Observa-se, tambm, inseres subjetivas de Rodrigo entre um verso e outro do poema de Ferlinghetti, quando, por exemplo, caoa o termo time ao simular a gravidade do Cristo na Cruz: Meu, time! (imita a crucificao). Entre uma palavra e outra h o blues: a ateno desfoca, acidentalmente/escorregadiamente, daquela semntica literria, ficcional, para a atmosfera bomia do bar, da rua: as conversas paralelas, o trnsito dos carros, o rudo dos garfos e pratos, o relacionar-se com a espuma da cerveja e beb-la enquanto algum assopra a fumaa do cigarro e o country-blues os imerge no bar. Quase no se sente que se trata de uma conversa sobre a bblia – ento volta-se narrativa, ao eu-lrico que, localizado naquele espao com qual se relacionam, marca sua presena como membro do espao.

A linguagem performtica antropomorfiza a boemia e o violo como quem diz: Arthur Rimbaud era como ns. Ns existimos com os gregos antigos. O blues foi inventado em uma lira deitada de trovador que fumou algum pio; se perdeu em herona encontrada no bar da av. Bandeirantes, nmero 61, banheiro do sculo XX. E a santificao de Cristo um assunto para os slides dos negros – porque, como a rua e como o blues, a cruz somos todos ns. Jesus, afinal, era da margem e foi aoitado. Era grunge. Era da parte de baixo do continente americano. Era de Londrina. Era do Valeco.

o limiar crtico por onde nasce o Poesia in Concert: viver o arcasmo do ventre com a experincia dionisaca sonora, grega, da maneira de um trovador. Nesta performance, h o fenmeno crtico-literrio que, at hoje, faz parte da herana cultural de Londrina: ser crtica, ser literria, e ainda assim sentir a pulga atrs da orelha quando se trata do cnone.

Conforme explica Rodrigo, no havia nada acadmico. Nada formal. Nada intencional. Era uma maneira natural como viam a cultura: sincrnica, ver todos os poetas como absolutamente contemporneos e, por isso, no haveria necessidade de deslocar Shakespeare de um poeta contemporneo brasileiro. a viso sincrnica que herda de Ezra Pound, sobretudo a viso da poesia produzida at hoje como um manancial, como uma fonte rica, himalaia, como um topo que pode ser escalado por vrios lugares. Nesta perspectiva de um manancial, Rodrigo acaba recuperando a oralidade – traduz, por exemplo, o poema O Navegante (The Seafarer), poema anglo-sax (antes da lngua inglesa) com mais de 900 anos de idade. curioso, portanto, a perspectiva do Rodrigo de observar o Poesia in Concert como uma produo nada acadmica. Pois, embora no tenha nascido pela Academia, os discursos e deslocamentos se tornaram pontualmente crticos de um sistema de vida ufanista, tradicionalista, dos bons costumes, dos bons valores.

O poema de volta rua deve perder o carter escolstico para vocalizar a fora do ventre – o deslize entre falar e cantar, como critrio esttico, seria o que localizaria o poema na vanguarda ou no clssico, talvez, entre a universidade e o mercado massivo. Enfim, importante que o poema esteja nos bares para embebedar seu ventre. importante que se torne pblico para evitar, nos momentos de distanciamento social, ser monopolizado pelo processo acadmico.

 

Legado e concluso

 

Trata-se de uma lei social bem conhecida: todas as coisas tendem a debilitar-se. Perde-se memria da efervescncia fundadora. O choque amoroso torna-se tdio conjugal, a energia revolucionria metamorfoseia-se em partido poltico institucional, o dinamismo juvenil dos comeos inverte-se em repetitividade montona. At mesmo a intuio criativa de um pensamento inovador tende a tornar-se sistema esttico com os seus dogmas e o seus ces de guarda zelando, ciosamente, pela rigidez doutrinal (MAFFESOLI, 2002, p. 22)

 

Os criadores do Poesia in Concert saem de Londrina no final da dcada de 90. Depois dos anos 2000, Rodrigo, Mrio e Maurcio permaneceram artistas com estticas performativas. Mrio participa de dois grupos, Trovadores do Miocrdio e o Jazz Poetry. O Trovadores trabalha com um DJ que providencia camas sonoras para as leituras. Costuma trabalhar com temas. Em setembro do ano da concluso deste trabalho (2018), pretendiam comemorar o aniversrio de Nick Cave. J no Jazz Poetry, os escritores escolhem o jazz que acompanha textos autorais. Rodrigo desabafa sobre as apresentaes contemporneas do Poesia em Londrina: a nica coisa que parece repetitiva e sem criatividade que sempre o blues, conta.

Hoje, o Valentino, na Rua Prefeito Faria Lima, passou a ser visto como um lugar menos da margem, mais elitizado – de fato, em Londrina de 2018, os espaos das coisas marginais, viscerais e espontneas so outros. Outras so, tambm, as estticas do marginal. A Vila Cultura Cemitrio de Automveis o espao principal, onde, inclusive, acontecem a maioria dos encontros de Poesia in Concert.

Christine Vianna, porta-voz do Benditos Energmenos (banda de poema e msica blues, inicialmente fazia leituras de poemas brasileiros, inclusive fora do Brasil, at, ultimamente, investir em trabalhos autorais) era pblico do Poesia in Concert em 1990. Aproximou-se da msica atravs do Poesia. Em 2009, reinsere o Poesia na pauta londrinense celebrando o aniversrio da cidade de 75 anos, que acontece em 10 de dezembro. Apresenta o show no Museu de Arte, em julho e, em novembro, na Vila Cultural. A partir de 2010, o incorpora ao Londrix, que planeja as apresentaes do Poesia principalmente na Vila Cultural (j aconteceu, tambm, na Concha Acstica, em Londrina, em 2012).

O festival literrio de londrina, Londrix, discute a palavra atravs de vrios ngulos: confraternizao com escritores, oficinas, palestras, leituras, lanamentos de livros. Christine resolveu retomar o Poesia in Concert neste contexto de tate-lo, de perceb-lo, de expandir a experincia com a palavra. A diferena que, anexado ao Londrix, o espao tambm de um pensamento conscientemente crtico (uma vez que o festival organizado, principalmente, por nomes da Universidade Estadual de Londrina). Nesse festival, de experincia crtica e de experincia do ventre da palavra, a vida de bar mais limitada.

Entenda: na dcada de 90, o Poesia in Concert era um evento do bar. Um lugar de comrcio, aberto cotidianamente, no qual o pblico vai e vem com liberdade. Com a insero do evento em um festival e um espao cultural especfico, no qual a experincia direta da boemia no bar restrita, a palavra-voz do Poesia sofre outra experincia sociolgica. No corre o risco, como era o caso do Poesia em 90, de um cliente despreparado entrar no bar e por acaso sentir o hlito alcolico de Rimbaud. H boemia e h bebidas na Vila Cultural, mesmo assim. O que ocorre que quase 40 anos depois da ditadura, as necessidades crticas da literatura so outras.

Com a insero do Poesia in Concert em um festival literrio, o equipamento e as possibilidades aumentam com o investimento monetrio. Christine relatou o nmero de bandas locais, por exemplo, que se empenham em trazer novas materialidades sonoras palavra. Bonus Trash, com punk rock e performances energticas, quase esquizofrnicas, como se a ansiedade manaca ganhasse pernas. Outras bandas locais, como Radicais Livres que em parceria com o Benditos, sonorizaram poemas de Herman Schmitz, curitibano naturalizado londrinense. Dentro de um festival literrio, so vrias as conversas literrias, vrias as referncias e, conforme avanam os anos e as percepes – e os poetas – natural que se notem novas performances montadas. Inclusive novos objetivos.

Se antes o Poesia in Concert queria questionar o conceito de literrio, hoje quer assegurar uma educao poltica sobre o conceito. Christine, como professora e musicista, usou o projeto para levar poemas londrinenses s escolas. Alunos vinham pedir os poemas apresentados, ela conta a experincia. Voc canta, professora? No canto, eu falo. – agora o trajeto contrrio. O foco se torna questionar o conceito de msica e som pela fora literria. Nesse percurso, a educao retira o aluno apenas da experincia do ventre para inseri-lo experincia cognitiva (um objetivo que, na presente dcada, parece mais adequado).

Antes o discurso fazia oposio ufanismo ditatorial e priso da palavra acadmica; hoje, as necessidades de oposio so outras. Christine reitera: as redes de literatura de massa no trabalham o diferencial; e o diferencial desconstri uma estrutura de realidade fixa. Cabe vanguarda, que est frente na questo cultural, mostrar coisas que so produzidas margem da rede de massa.

Nesse sentido, no preciso mais recitar Burroughs, Kerouac, Leminski; todos esses nomes vo muito bem e obrigado. O atual levantar bandeira levantar o nome de um autor independente para o conhecimento pblico. Esse o novo propsito do Poesia in Concert: fundamentar um espao de arte independente, e disseminar a mesma arte independente entre os espaos londrinenses, um circuito de divulgao e fundamentao da arte local.

Observe uma diferena de resposta de palco: em uma apresentao relatada por Christine com o Benditos em Curitiba, havia 800 pessoas, espao lotado. Era uma homenagem a Paulo Leminski. Um bbado, talvez drogado, subiu no palco e abaixou a cala. Segundo a autora, ele ficou assim, meio de quatro. Aquilo foi constrangedor, desconcentrou, tirou a ateno do show para o moo – e o que fazer, ento? O show no podia parar, conta Christine. Se a poesia no enlaa o pblico, ele se perde; voc tem que prender ateno com o fluxo. Eu abaixei no mesmo nvel que ele, ela diz. E fiz o poema pra ele. Ele ficou calmo; estava agitado... e acredito que tenha sido envolvido pela poesia – eu olhei pra ele, e as pessoas aplaudiram muito.

diferena dos msicos, poetas e tradutores universitrios, recm-formados, que atuaram no primeiro Poesia in Concert para um pblico de bar, o contexto escolar de Christine contextualiza a literatura inicialmente com formar e educar, menos preocupada com o desregrar dos sentidos. questionvel se a resposta de palco do primeiro Poesia ao bbado teria sido acalm-lo.

Assim, menos preocupada com o discurso de uma palavra no bar, h um discurso mais apegado palavra enquanto um direito humano de Antonio Candido. Inclusive, literatura pensada como ativismo poltico e manuteno de espao para os direitos humanos. Nesse sentido, no Poesia in Concert atual h uma ideologia da raiz, que parte, por exemplo, dos poemas e do blues americanos, ressaltados nas figuras Amiri (1996, p. 44-47) e Wanda (1996, p. 113-116), entrevistadas por Rodrigo Garcia Lopes. Embora nos dois Poesias haja diferentes relaes sociolgicas com Londrina, o evento permanece como um espao para discursar um processo crtico da literatura contrrio cifra monetria da literatura de massa.

O sentido do Poesia in Concert (palavra que retorna rua) um sentido que se ressignificou conforme as necessidades sociolgicas da palavra e da rua mudaram. Antes, levar a palavra para rua e para o bar. Agora, lev-la s escolas. Quando vestida de elite, dar-lhe roupas da rua; quando se tornar marginalizada demais, reivindicar uma palavra que resguarda direitos humanos. Se a palavra for monetizada pelos recursos de massa, educar ao diferencial, educar palavra enquanto um outro. Ora, assim como Burroughs foi institucionalizado pela crtica norte-americana, a qumica efervescente do Poesia marginal se transformou em uma matria-prima. Agora, o que fazer com um Burroughs que j vendido at em lojas de rodovirias? Responder com aqueles que raramente conseguem uma prateleira.

A literatura, a palavra, participam dos processos de lucro. indubitvel. A Forbes publica anualmente uma lista com 10 escritores de fico norte-americana milionrios. A palavra comercializada em forma de Facebook, Whats App e Tweets globalmente compartilhados. E, com o raciocnio relativista ps-moderno, haver discusses interminveis sobre o que existe ou no de literatura nisso. A palavra gira um capital considervel. O que o crtico literrio e o empresrio tm em comum querer entender quais palavras so mais capitalistas do que vanguardistas. Entre os dois momentos do Poesia, Rodrigo Garcia e o Benditos Energmenos quiserem abordar a palavra pelo sentido contrrio mare.

Embora os sentidos e as projees do Poesia in Concert tenham sido atualizados, observa-se um espao londrinense para se opor ao sentido mainstreem da palavra. Talvez seja essa a maior herana de colocar a palavra na rua. Conhecer aquele que, no centro da cidade ou na periferia, o outro.

 

 

Referncias

 

BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. Traduo Jos Bonifcio. So Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

BULIK, Linda. Entrevista com Michel Maffesoli. In: SANTOS, Volnei Edson dos. (Org.). O trgico e seus rastros. Londrina: EDUEL, 2012

 

CARNEIRO DOS SANTOS, Ftima. Vozes da cidade: por uma escuta que inventa. In: EWALD, Felipe Grne... [et al.]. Cartografias da voz: poesia oral e sonora: tradio e vanguarda So Paulo: Letra e Voz; Curitiba: Fundao Araucria, 2011.

 

FERNANDES, Frederico. O caso Londrix: subjetividade, territorializao e poltica na poesia de Maurcio Arruda Mendona. Estudos de literatura brasileira contempornea, n. 52, p. 102-121, set./dez. 2017.

 

FRANK, Ellen Eve. Literary Architecture: Essays Toward a Tradition: Walter Pater, Gerard Manley Hopkins, Marcel Proust, Henry James. Berkeley University of California Press, 1979.

 

MAFFESOLI, Michel. Entre o bem e o mal: compndio de subverso ps-moderna. Traduo de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

 

___________. Elogio razo sensvel. Traduo de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrpolis: Vozes, 1998.

 

LOPES, Rodrigo Garcia. Vozes & vises: panorama da arte e da cultura norte americanas hoje. So Paulo: Editora Iluminuras, 1996.

 

ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo. Traduo de Jerusa Pires Ferreira e Snia Queiroz. So Paulo: Ateli editorial, 1995.

 

___________. Performance, recepo, leitura. Traduo de Suely Fenerich. So Paulo: EDUC, 2000.

 

Referncias digitais

 

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Poesia in Concert 02. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=84CEnYt6oug> Acesso em: 4 Jul 2018

 

Poesia in Concert 03. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=pZ8dq0HVwFQ> Acesso em: 4 Jul 2018

 

Poesia in Concert 04. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=VhzqaZVJGDE> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 05. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=iwjNapgt1Uc&t> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 06. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ar2W0QdCl48&t> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Poesia in Concert 07. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=mWQVuw3AoRA> Acesso em: 6 Jul 2018

 

Resumo debate cultura em Londrina. Disponvel em <https://www.youtube.com/watch?v=hfLs-pmZWm0> Acesso em: 22 Jun 2018

 

Pasta com entrevistas realizadas.

Disponvel em: <https://1drv.ms/u/s!AknHzGD3Drz3gdYOg8ti2RsNAdRBqA?e=eltDAg> Acesso em: 4 de Maio de 2021

 

 

 

[Recebido: 04 mai 2021 – Aceito: 04 jun 2021]

 

 



[43]  Artigo escrito inicialmente como relatrio de iniciao cientfica entre 2017-2018, com bolsa CNPq.

[44]  Aluno de doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) desde 2021. E-mail para contato: kaedmon.sellberg@hotmail.com.

[45] Notcia disponvel em: https://guia.folha.uol.com.br/teatro/2017/04/mario-bortolotto-dirige-texto-do-dramaturgo-americano-sam-shepard.shtml, publicada em 7 de Abril de 2017.

[46] Disponvel em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,poeta-narra-encontro-com-william-burroughs,1125360> publicado

[47] [...] percebemos que o importante hoje o ventre, isto , o emocional, as emoes, e no o racional. por esta razo que a palavra histrico" – no numa acepo pejorativa – mostra a importncia do tero, isto , do ventre. Em grego, hysterus o ventre.  Disponvel em: < https://www.fronteiras.com/entrevistas/michel-maffesoli-nao-e-mais-o-futuro-que-importa-e-sim-o-presente> publicado em