Movimento cult do Rio de Janeiro e os discurso sobre o coco de Pernambuco

 

 

Movimento cult  in Rio de Janeiro and discourses about coco de Pernambuco

 

 

Genilson Leite da Silva[72]

https;//orcid.org/0000-0002-7098-7125

 

Bruno Rodolfo Martins[73]

https;//orcid.org/0000-0002-6480-3676

 

 

Resumo: Este artigo trata das tenses, prticas, discursos, entre pessoas, lugares e disputas de narrativas, em torno do que chamado genericamente de cultura popular. Como recorte, identificamos o circuito de rodas culturais existente na cidade do Rio de Janeiro – chamado aqui de Movimento cult – como expresso tpica dessas tenses, e que, de alguma forma, reatualiza as relaes de poder j demarcadas pelos folcloristas do pas desde o incio da Repblica. Como exemplo, analisamos uma dessas tenses relacionada ao Coco realizado nessas rodas, que fez emergir embates demarcados por questes de cultura, raa, origem nativa e tradio. Caracteriza-se por pesquisa etnogrfica e tem como procedimento de coleta de dados a netnografia e observao participante, como tticas para dar conta das questes relacionadas contemporaneidade. A partir disso, identificou-se relatos de como esse Movimento reproduz o projeto colonial implcito das dinmicas prprias das elites dominantes diante dos grupos dominados. Por fim, transforma essa cultura popular em produto de consumo da elite para si prpria, em que se extingui, a cada dia, sua fora poltica, seus aspectos de resistncia cultural e a participao de populares, visto o preo de mensalidade das aulas e dos ingressos para os shows, deixando seus criadores fora da roda.

Palavras-chaves: Movimento Cult; Rodas Culturais; Coco; Projeto colonial; Indstria Cultural.

 

Abstract: This article deals with tensions, practices, discourses, between people, places and narrative disputes, around what is generically called popular culture. As an excerpt, we identified the circuit of cultural circles existing in the city of Rio de Janeiro - here called Movimento Cult - as a typical expression of these tensions, and that, in some way, refreshes the power relations already demarcated by the country's folklorists since the beginning of the Republic. As an example, we analyzed one of these tensions related to Coco carried out on these wheels, which caused clashes deriving due to issues of culture, race, native origin and tradition. It is characterized by ethnographic research and its data collection procedure is netnography and participant observation, as tactics to deal with issues related to contemporaneity. Based on that, reports were identified of how this Movimento reproduces the colonial project implicit in the dynamics of dominant elites in the face of dominated groups. Finally, it transforms this popular culture into an elite consumer product for itself, where its political strength, its aspects of cultural resistance and the participation of the people are extinguished every day, given the price of tuition for classes and tickets for school. the shows, leaving their creators out of the roda.

Keywords: Movimento Cult; Cultural Rodas; Coco; Colonial project; Cultural Industry.

 

 

Reflexes iniciais sobre Movimento Cult e o circuito das rodas culturais

 

Ritualisticamente, alguns grupos culturais se alternam em dias previamente marcados todos os meses do ano para a realizao de rodas em espaos pblicos: uns fazem rodas de Coco, outros de Jongo ou Samba de Roda, entre outros brinquedos populares. Ou, como dito em 2014, por um integrante de um desses grupos: fazemos tudo, mas, nossa especialidade jongo. Seus integrantes se conhecem e se revezam muitas vezes participando da roda de outros grupos, para fortalecer essa rede.

Para o pblico desavisado, essas rodas so expresses mximas de uma suposta cultura brasileira que podem ser contempladas, apreciadas, participadas e em alguma medida, consumidas. So oportunidades nicas para se ter acesso a elas no modo delivery: sem sair de casa. Nesse sentido, (1) sendo brinquedos populares locais da cidade ou do estado, no seria preciso se deslocar para as periferias de onde so nativas, nem ter contato com as comunidades locais e tradicionais que as praticam e mantm seus sentidos polticos de resistncia cultural vivos; e (2) sendo brinquedos de outros estados, no seria preciso viajar para poder curtir, comentar ou compartilhar.

A existncia e a estruturao do Circuito de Rodas Culturais pela cidade do Rio de Janeiro (e em algumas cidades prximas), o que satiricamente chamamos aqui de Movimento Cult, exemplifica algumas tenses tpicas e histricas fomentadas pela academia e por folcloristas pelo pas, diante das culturas populares, tradicionais, folclricas, enfim, pelas culturas dos outros, das pessoas excludas e marginalizadas pelo sistema social vigente. Sobretudo, pela forma como se colocam habilitados a desenvolver/realizar prticas que fazem parte da memria de um povo, apropriando-se do que foi/ ferramenta de resistncia e usando como simples atividade de lazer ou produto a ser vendido no mercado do extico. Em alguma medida, traz elementos novos, em especial, as questes conjunturais, como as escassas polticas pblicas de editais, ou o que chamamos de modinha pelo que popular e afro-indgena das regies Norte e Nordeste[74] do Brasil.

No incio dos anos 2000, surgem alguns grupos que poderamos chamar de parafolclricos, considerados aqui como grupos que trabalham com propagao, divulgao e/ou a comercializao das ditas manifestaes folclricas ou cultura popular brasileira. Esses grupos, ainda vale destacar, so independentes de instituies, pois, apesar de terem estudantes universitrios, no esto vinculados a nenhuma universidade.

Nesse sentido, importante para esta anlise a existncia da Cia Folclrica do Rio[75], vinculada Escola de Educao Fsica e Desportos – EEFD da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em atuao na cidade bem antes dos anos 2000, e que influenciou e influencia ainda a formao desses outros grupos, mesmo que indiretamente: uns seguindo o modelo de ao da mesma, alguns outros se contrapondo ou se descobrindo nesse processo de construo de um coletivo. Mas algo em comum pode demonstrar uma certa unidade nesses grupos: a maioria de seus integrantes estudaram na UFRJ, e alguns, com mais nfase, passaram pelos cursos da EEFD, tiveram contato com a Cia. (seja por aulas, eventos ou apresentaes), e outros compuseram durante algum tempo (ou ainda compem) o corpo da mesma.

Podemos supor que, antes dos anos 2000, a conjuntura no favorecia a criao desse tipo de grupo parafolclrico independente; afinal, se desde a dcada de 1980 j havia a Cia Folclrica, por que s na virada do milnio haveria esse gosto pelo extico e essa vontade de montar e compor um grupo? Em outro caminho mais contundente, por que a ausncia de gosto pelo extico natural da regio prpria do Sudeste? Seguimos com a provocao: cad a Folia de Reis, Clvis, Bate-bolas, Mineiro-pau, Congada, Batuque de umbigada? No, os universitrios do Sudeste nunca pensaram na extino dessas manifestaes prprias dos estados do Sudeste, discursos vazios e sem ao efetiva e que s servem as manifestaes do Norte ou Nordeste do pas, tpico da academia para ter acesso direto ao objeto de pesquisa.

bem mais que um gosto do extico ou uma preocupao com a suposta extino de um brinquedo popular qualquer. Trata-se, uma vez mais, como dizem Simas e Rufino (2020), do projeto colonial em curso, que preza a mortandade e todos os seus caminhos. Pensar que essas aes so mortais no nenhum exagero. Os mesmos autores insistem na necessidade de encantamento do mundo, no retorno aos modos de viver que se direcionam para a vida.

E, aqui, se trata da vida das populaes negra, indgena, perifrica, favelada, escolhidas para serem marginalizadas pelo sistema social que vivemos, e que sempre foi alvo desse projeto, tanto no sentido do genocdio, como no sentido do semiocdio, que silencia modos de comunicar, vises de mundo, linguagens e palavras, como diz Sodr (2005, p. 4). Mas essas culturas de que tanto se quer vivenciar so produzidas por essas populaes, e sempre o fizeram enquanto ttica de resistncia, enquanto poltica de vida, em busca de manter o encantamento do mundo e de si mesmas. Justamente, por essas e outras questes, Simas e Rufino (2020, p. 15) escrevem que o extermnio e a subalternizao secular de princpios comunitrios e de prticas rituais contrrias ao padro dominante so um dos componentes da poltica de mortandade e do desencantamento do mundo.

No basta(ria) a apreciao esttica do outro, tampouco a avaliao etnocntrica e arrogante de uma salvaguarda emergencial de um brinquedo igualmente avaliado como em perigo de deixar de existir, exigindo uma ao supostamente consciente do povo do sul[76] em cuidar dessas manifestaes culturais afro-indgenas do Norte e do Nordeste. E, aqui, esse cuidado nada menos que ocupar espaos culturais, polticos e pedaggicos que devem/deveriam estar ocupados pelas populaes tradicionais que mantm esses brinquedos de resistncia desde a criao dos mesmos.

A tese recorrente e que traduz essa situao a premissa de que a cultura popular do povo, logo, para qualquer pessoa se servir dela, desconsiderando as desigualdades sociais e raciais que estruturam a sociedade, permitindo o acesso, o estudo e, como vemos, a reproduo vontade e descompromissada com as autorias tradicionais por pessoas de classe mdia e com oportunidades de classe correspondentes; enquanto os agentes culturais de raiz continuam desfavorecidos – como antes, e agora, somando-se a tais concorrncias nas disputas por seus prprios lugares (usurpados) de direito.

Carlos Brando percorre uma linha similar e denuncia as desigualdades das relaes de poder nessa expanso do popular, e v como engano a ideia de circularidades proposta por pesquisadores como Nstor Garca Canclini, Peter Burke ou Renato Ortiz.

Em tempos em que convivemos com conceitos como culturas hbridas, hibridizao de culturas ou circularidade de/entre culturas, um provvel engano poderia ocorrer ao estabelecermos como uma panfolclorizao todo o complexo trabalho de criao cultural dos diferentes sujeitos e povos negros ao longo de nossa histria, esquecendo que uma parte importante do que consideramos erudito em nossas realizaes artsticas mais diversas tambm, e em boa medida, resultado do trabalho de suas mos e mentes (BRANDO, 2009, p. 725).

Para o autor, esse engano desconsidera a forma como a cultura popular capturada pelas elites, que a ressignifica, e retiram seu pertencimento aos populares. Nesse processo, so expropriadas pela elite, passando a receber um rtulo de erudito ou clssico como forma de desvalorizao e desqualificao do popular. Entre os jarges que poderiam resumir essa questo est o que diz: a cultura negra boa, desde que no praticada por pessoas negras.

Waldenyr Caldas comenta sobre um processo de fetichizao da cultura do outro e nos diz que

uma das formas de a classe dominante manter seu poder sobre as demais classes sociais por meio da produo e do consumo da cultura diferenciados. Ela no deve, segundo sua prpria ideologia de classe dominante, consumir os mesmos produtos das classes subalternas. E realmente no os consome (CALDAS, 2008, p. 82).

No toa esse crescimento oportuno de grupos e de ocupaes de espaos pblicos, assim como a vontade de viver da/s cultura/s apresentada/s por seus componentes, e as adaptaes realizadas pelos mesmos diante dos brinquedos para conseguir isso.

Continuamos enfticos no tratamento dessa questo: o circuito do Movimento Cult vem ocasionando para as manifestaes tradicionais/culturais intensas transformaes que as descaracterizam e deformam suas prticas, no s por romper com seus processos ritualsticos, mas por criar novos processos que buscam sofistic-las a ponto de descaracteriz-las. Vemos a imposio de uma esttica que expropria as prticas a ponto de criar grau de valor, em que se legitimada pela uniformizao e no pela capacidade de improvisao, criatividade, espontaneidade, individualidade, coletividade, cooperatividade ou pertencimento.

Afinal, para que sofistic-la? Esse termo indica que essas culturas precisariam se tornar acessveis sensibilidade das elites, e que seus produtores originais deveriam adaptar-se para que as mesmas sejam dignas de serem consumidas. Nesse sentido, o que trazemos para pauta o reconhecimento de que o circuito do Movimento Cult no seria apenas um espao de manipulao do popular, espao de uma vontade ingnua e um desejo utpico, mas tambm um espao de comercializao da cultura.

Essa concorrncia, tpica da estrutura comercial, se mostra desleal, pois nivela agentes culturais que esto desigualmente posicionados na estrutura social, diante das disputas de editais e suas correspondncias burocrticas, complexas para esses prprios universitrios, quanto mais para os grupos tradicionais que tiveram pouco acesso a um ensino de qualidade, ou ainda em condies desfavorveis para se organizarem para tais empreitadas, ou mesmo estarem sujeitos a vulnerabilidade social. Proporcionalmente a isso, tambm surgem pessoas entre esses grupos parafolclricos se autointitulando mestres e mestras dessa ou de outra tradio, ou de vrias(!).

Importa salientar que essa sofisticao est a servio desse projeto colonial e de base capitalista que, logo, busca retirar dessas manifestaes seu poder libertrio e sua autonomia, com o intuito de manter os privilgios e as hierarquias sociais baseadas nas desigualdades de raa, cultura e origem produzidas pelos herdeiros da colnia. Com isso, elevar as culturas populares categoria de eruditas est mais relacionado com o processo de esfoliao, que vem despir essas culturas de seu carter poltico, eliminando assim qualquer possibilidade de emancipao e independncia de seus produtores originais, transformando-a por fim em mero produto a ser consumido, domesticando-as.

Zezito de Arajo demonstra que, para serem reconhecidas ou simplesmente apresentadas para a sociedade, essas culturas so estigmatizadas e estereotipadas. Em termos gerais, destaca que

ao se folclorizar a cultura, folcloriza-se com ela, o indivduo e o grupo racial. [Isso faz] parte de um mecanismo histrico de produo do homem-espetculo ou espetaculoso, do ser extico e leviano, e, como tal incorporado dimenso no-sria (ARAJO, 2011, p. 4).

Transforma-se numa cultura sem valor, mas com preo. Algo que pode ser comprado, usado e descartado. Quando traduzimos isso para seus praticantes tradicionais, a morte que se estabelece, seja simblica ou fsica. No seria uma preocupao urgente a vida dessas pessoas?

A reflexo pertinente de Michel Nicolau (2005, p.141-142) demonstra trs modos de se matar a cultura, e ambas se retroalimentam muitas vezes: um modo exotizar a cultura, no qual se perde a herana, por no conseguir se reproduzir; outro modo desprezar a cultura, provocando esquecimento e isolamento, devido a sua no incluso no sistema social; e uma outra padronizar, passando pela perda de identidade, se adequando ao sistema, mas perdendo suas caractersticas prprias de criao. Em suma, sob essa mesma lgica, as culturas podem ser coisificadas e mortas, e as pessoas que a produzem, tambm.

Esse escrnio ocorre na mesma dinmica escancarada que tornou o mito da democracia racial como uma verdade tanto para negros, quanto para brancos. Muitas vezes, grupos e mestres populares, assim como povos e comunidades tradicionais, de forma paradoxal, so em certo ponto gratos a esses praticantes que levantam a bandeira da cultura popular, no a deixando acabar(!?).

 

 

O espetculo das ruas no caminho de uma indstria cultural (?)

 

A busca por insero numa sociedade na qual tudo espetacularizado, em que transformaes impostas de fora para dentro dessas tradies culturais, em que as mesmas so praticadas com outros propsitos por pessoas tambm de fora das tradies, atribuindo valores aliengenas s mesmas, se torna o fundamento desse tipo de Movimento.

Essa sociedade se torna um local onde o irreal assume o topo de uma hierarquia a servio de uma sociedade do espetculo, onde o espelho reflete imagens turvas e essas imagens devem ser reproduzidas em grande escala (ADORNO, 2002). Problematizamos essa reproduo pelo fator da hierarquizao e as normas de conduta pr-determinada.

 

O fato de oferecer ao pblico uma hierarquia de qualidades em srie serve somente qualificao mais completa. Cada um deve-se portar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nvel, determinado a priori por ndices estatsticos, e dirigir-se categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo (ADORNO, 2002, p. 172).

 

Essa busca por uma padronizao (seja de uma dana, msica, figurinos etc.) nada mais que uma tentativa de se encaixar como um produto aos olhos da indstria cultural. Para alcanar tal status, perde-se e abre-se mo de prticas antigas, rituais, cdigos e identidades. Silencia-se as subjetividades, a criatividade, a espontaneidade e a capacidade de improvisao dos indivduos envolvidos. Cria-se um espao onde a tcnica sistemtica, espao onde o improviso no permitido, e por fim, a diversidade tem um exemplar a seguir.

Fica ntida a violncia simblica, uma vez que os smbolos e cdigos de povos e comunidades tradicionais sucumbem diante dessas demandas; tm a forma de violncias psicolgicas, uma vez que essas referncias tradicionais, frente s suas necessidades, veem suas prticas cotidianas gerando renda a terceiros, enquanto as mesmas sub-existem financeiramente.

A violncia da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indstria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distrao. Mas cada um destes um modelo do gigantesco mecanismo econmico que desde o incio mantm tudo sob presso, tanto no trabalho quanto no lazer que lhe semelhante (ADORNO, 2002, p. 175).

Acreditamos na capacidade transformadora da cultura popular e reduzi-la a um produto nesse contexto o mesmo que desvalorizar toda histria de vida e resistncia de praticantes da mesma como matriz geradora; transformar a cultura em algo descartvel como todo e qualquer produto desenvolvido atualmente pelo sistema capitalista, conforme a obsolescncia programada.

 

 

O Coco dos cariocas (?)

 

Ater-se s questes pura e simplesmente esttica apenas mais uma forma de alienar os dominados para que esses no percebam o que realmente ocorre. Seguindo uma linha reflexiva objetivada pelo projeto colonial, podemos observar que alguns aspectos que caracterizam as rodas e eventos de Coco do Rio de Janeiro apresentam ou buscam apresentar caractersticas que, de certa forma, tentam manter uma (suposta) esttica similar ao que ocorre no Nordeste. O que ao nosso olhar soa como uma estereotipao: uma construo de personagens que se fazem presentes no imaginrio do sudestino.

H nesses movimentos, a dinmica de trazer referncias tradicionais (na pessoa de mestres e mestras, ou outras pessoas envolvidas com tradies do Coco) para o Rio e promover com essas uma turn onde essas referncias so levadas a vrios lugares ou a grupos, para passar seus conhecimentos aos sudestinos aventureiros desbravadores da cultura, que colaboram com contribuies simblicas, voluntrias ou conscientes, em que, depois de arcar com algumas despesas, tal montante dessas contribuies ser entregue a essa referncia mestra. Podemos questionar ainda por que o valor da aula ou oficina oferecida por essas referncias, via de regra, sempre um valor inferior ao pago pela pessoa participante? H nessas prticas os resqucios do que Taussig (2010, p. 15) denomina de fetichismo da mercadoria, que para ele pode ser interpretado como o que transforma pessoas em coisas e coisas em pessoas.

Avaliamos nesse sentido que, para alm da prpria cultura tradicional ser adaptada e servida como produto, as referncias tradicionais so tambm coisificadas, colocadas num contexto de prestao de servios, perdendo poder de negociao, sendo intermediadas por terceiros, como que empresrios ou produtores de artistas de elite, que tomam para si boa parte do montante – sem, contudo, a premissa de um acordo que formalizasse isso. Mestres e mestras so tratados quase como uma propriedade desse ou daquele grupo, que se coloca como intermedirio entre outros grupos, pessoas interessadas e instituies com potncia de realizar algum contrato.

Outra questo que chama a nossa ateno a prepotente capacidade – ou seria tpico exerccio de poder – desses grupos em legitimar qual nordestino pode ou no falar sobre, ou questionar essa dinmica. A exemplo disso, apresentamos a anlise de dados recolhidos nas redes sociais. Neles, observamos a tenso criada entre esses grupos parafolclricos do Rio de Janeiro e um nordestino, que, de passagem pela cidade no ano de 2018, questiona as dinmicas e o modo do fazer Coco dos grupos cariocas.

Visamos captar essas tenses como resultado da mercantilizao da cultura e como retrato do projeto colonial, atravs do processo de deslegitimao ou desqualificao de seu discurso. Um tpico exemplo que transforma as tradies populares em coisa produto, como tambm seus praticantes tradicionais – que podem at ter voz, mas no sero escutados.

A partir desse recorte, observamos que os grupos do Rio de Janeiro foram taxativos em desqualificar o discurso desse nordestino pernambucano, Ednaldo, hoje assumindo o nome social Caetana da Silva devido ao processo de transio de gnero a qual est passando. Ela reivindicava questes relacionadas aos fundamentos presentes na estrutura e nos rituais existentes na manifestao. Acredita-se que essas reivindicaes expressariam uma disputa de territrio e nicho de mercado, uma vez que a mesma era uma potente concorrente do grupo parafolclrico Zanzar[77], que ministra suas aulas e oficinas de cultura popular no Circo Voador, ao lado da Fundio Progresso, local onde Caetana ministra suas oficinas de danas e ritmos pernambucanos.

Caetana se autolegitima atravs do discurso de ter vivncia com mestres e mestras de Coco e Maracatu de Pernambuco, alm de ser nativa do mesmo estado. Segundo ela, nos eventos dos grupos do Rio h uma descaracterizao da manifestao no que diz respeito aos rituais, estrutura e funo. J os grupos do Rio apontam um essencialismo na argumentao de Caetana, junto ao desejo de se autodenominar mestra e dona da cultura nordestina. Como em todas as tenses, h um pouco de verdade em cada um dos lados. Por um lado, vemos uma pessoa nordestina que vem para o Sudeste na esperana de sobreviver de apresentaes, aulas e oficinas de dana popular, porm a mesma fora alertada sobre a importncia de fechar com esses grupos para poder transitar de forma harmnica entre os mesmos e ainda fazer uma grana. Por outro, temos os grupos criativos que inventam movimentos, toques e rituais estranhos ao Coco, descaracterizando-o.

Os Cocos no Nordeste, mais precisamente de Pernambuco, mesmo s vezes denominados Coco de roda, tm uma estrutura aberta, na qual quem brinca livre para transitar pelo espao e essa mesma liberdade dada a tocadores, diluindo a rigidez de papel fixo para os mesmos. Outro aspecto importante na brincadeira a falta de uma coreografia ou de movimentos muito elaborados, o que estimula a criatividade dos brincantes, assim como tambm se torna algo mais convidativo e envolvente. A insistente batida dos ps no cho, o trup, dialoga com o ritmo dos tambores e nos remete a uma relao com a natureza e as ancestralidades afro-indgena. A dana marcada por pisadas firmes no cho que reverbera por todo o corpo que se posiciona projetado para terra como um tipo de reverncia e conexo com a terra.

J no Rio de Janeiro, a manifestao acontece em um espao restrito com delimitao do mesmo em formato de crculo e com casal solista. Observamos nessas rodas de Coco uma dinmica de compra semelhante da capoeira, na qual os participantes que pretendem substituir uma das pessoas no centro, ou o casal, precisa, ritualisticamente, saldar os instrumentos ou os tocadores, e posteriormente aquele a quem se deseja substituir. Os movimentos so construdos tendo como influncia os movimentos dos Cocos nortistas e nordestinos. Observa-se uma abordagem genrica dos gestos, uma vez que esses mesclam as diferentes expresses da manifestao existente no Norte e Nordeste.

Nos grupos do Rio, os movimentos so amplos com grandes deslocamentos dentro do crculo, e percebe-se tambm uma coreografia complexa que exige grande habilidade de seus participantes, fatores esses que projetam na roda uma perspectiva de palco, onde o casal solista protagonista de um espetculo e cada integrante tem um papel definido que pode ser revezado. Logo, a conexo com a terra, espiritualidades e ancestralidades afro-indgenas passam a ser secundrias em relao questo esttica ali posta, h uma preocupao esttica sobre o melhor figurino, o melhor posicionamento dos braos, o melhor trup, a performance atltica. Os saltos e uma horizontalidade do corpo que desvirtuam a relao do contato e conexo com a terra, interferindo assim no fluxo de energia. H tambm pouco dilogo com o ritmo: no se dana para e nem com a msica.

Os aspectos que distinguem uma manifestao da outra as colocam em relao de contraponto ou conflito entre ancestralidade e show, entre o encantamento e a performance atltica, que se faz presente nos objetivos daqueles que os praticam. No Rio, a delimitao espacial, a construo cnica e a incluso de roupas estereotipadas do tipo roupas de ir para roda, onde as mulheres vestem saias de chita, cada vez mais coloridas e rodadas e os homens ficam mais vontade denotam uma performance que sofre grandes influncias das dinmicas vivenciadas nas aulas de outros estilos de dana e de teatro, extraindo das manifestaes populares, no caso do Coco, sua dimenso poltica e social em nome de um suposto resgate, que no passa de um desservio. Um des-encantamento.

 

 

Consideraes nem to finais

 

O relato aqui apresentado foi construdo a partir de observaes dos eventos nas rodas e de conversas e tenses que se passaram nas redes sociais e de nossa experincia enquanto pesquisadores, mas tambm como brincadores no tradicionais preocupados com as tradies e seus brincadores. Durante esse perodo, percebemos o grande fluxo de pessoas que se interessam pelas culturas populares nordestinas e logo procuram desvirtuar suas potencialidades polticas e sociais por interesse prprio ou por modinha. Criam grupos que disputam os poucos editais ofertados pelas Secretarias de Cultura, tomando na mo grande as poucas chances de grupos e mestres tradicionais em ter acesso a algum recurso que minimamente permitiria aos mesmos desfrutar de transporte e alimentao para participaes em eventos.

Durante esse perodo de experincia visitando mestres e grupos tradicionais, o que foi percebido aqui no Rio de Janeiro que esses universitrios guardies da cultura popular raramente esto dispostos para as manifestaes do sudeste, exceto samba, carnaval e jongo; to escassa quanto sua disposio para se deslocar para regies mais distantes da cidade, como tambm Baixada Fluminense. Comumente, esses se limitam a percorrer o circuito de roda que tem sua variao entre o Centro do Rio e a Zona Porturia (Lapa, Rua do Lavradio, Praa XV, Cais do Valongo, Largo da Prainha, Pedra do Sal, Praa Mau) e o subrbio (limitado entre Mier e Madureira), ou alguns eventos espordicos em datas comemorativas como no caso da festa tradicional do Boi Brilho de Lucas, em Parada de Lucas, ou do Quilombo de So Jos no Vale da Serra, em Valena, no interior do estado. Em relao a esses dois ltimos, o primeiro disponibiliza nibus saindo da Lapa para o transporte ida e volta, gratuitamente, para quem desejar ir para a festa, que tambm espao de apresentao desses mesmos grupos. O segundo virou um evento anual que tem at empresa de turismo oferecendo pacotes de viagem para apreciao da festa, onde esses grupos de universitrios se digladiam para fazer parte da festa com a finalidade de expor seu trabalho para a comunidade do Movimento Cult e ganhar notoriedade que posteriormente render alunos e apresentaes financiadas.

Para ns, ficam ainda algumas questes renitentes: ser que esse modelo de grupo parafolclrico serve resistncia cultural, enquanto colaboradores potentes dos grupos, mestres e mestras tradicionais, ou sero aqueles que padronizam, folclorizam e enquadram as tradies s regras sociais dominantes, aos fetiches da elite, ao comrcio do extico?

Seria mais cmodo a esses grupos se organizarem para brincar, do que para apoiar grupos tradicionais? Ou seria, na verdade, mais conveniente?

Ou continuam se vangloriando de supostas influncias salvacionistas que os mesmos estariam promovendo com suas aes (de pesquisa e montagem de espetculos[78]) entre os grupos tradicionais?

O circuito de rodas culturais do Movimento Cult promove algum encantamento, no sentido que Simas e Rufino (2020) indicam? Aplicam uma poltica de vida para, com ou pelos grupos tradicionais, ou participam construindo ainda mais invisibilizao, padronizao e morte, ocupando os lugares daqueles outros que as criaram e as mantiveram desde sempre?

 

 

Referncias

 

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CALDAS, Waldenyr. Cultura. 5. ed. So Paulo: Global, 2008.

 

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NICOLAU, Michel. Diversidade cultural no sistema ONU: um lugar para cultura. In: BRANT, L. (org.). Diversidade Cultural: globalizao e culturas locais: dimenses, efeitos e perspectivas. So Paulo: Escrituras; Instituto Pensarte, 2005, p. 131-148. (Democracia Cultural;1)

 

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento (sobre poltica de vida). Rio de Janeiro; Mrula Editorial, 2020.

 

SODR, M. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

 

TAUSSIG, Michael. The devil and commodity fetishism in South America. Chapel Hill: TheUniversity of North Carolina Press, 2010, pp. xi – xiv; xv-xvii; 3-38. (Traduo em portugus: TAUSSIG, Michael. O diabo e o fetichismo da mercadoria na Amrica do Sul. So Paulo: Editora da Unesp, 2010, p. 11-15; 17-20; 23-69).

 

 

[Recebido: 31 dez 2020 – Aceito :18 mar 2021]



[72]  Mestre em Arte, Cultura e Cognio (UERJ). Bacharel em Dana (UFRJ) e Licenciando em Educao Fsica pela mesma. Contato: genilson.leite@hotmail.com

[73]  Mestre em Relaes Etnicorraciais (CEFET-Maracan), Especialista em Histria da frica e da Dispora Africana no Brasil (FIS) e em Gnero e Sexualidade (UERJ). Bacharel e Licenciado Pleno em Educao Fsica (UFRJ). Atualmente professor da SME-PCRJ. Contato: capoeiranomade@yahoo.com.br

[74] Destaca-se que h uma preferncia pelas manifestaes populares da cultura afro-indgenas do Norte e Nordeste brasileiro com exceo do jongo, que o ritmo mais pedido e nico de origem no Sudeste, e que isso pode ter relao com o trabalho disseminador do Mestre Darcy do jongo, que com seu grupo Jongo da Serrinha levou o jongo para o centro do Rio e para os palcos do Brasil e do exterior, assim como tambm gravou CDs, CD-livro, produziu material audiovisual. A mais, somos agraciados por grupos de Samba de roda e Afox (BA), Coco (PE, AL), Maracatu (PE), Tambor de crioula, Bumba-meu-boi e Cacuri (MA) e os grupos mistos que como o j citado faz tudo.

[75] Conforme consta na pgina da EEFD, no item Histrico da Cia Folclrica, ela foi fundada em 1987 pela professora Eleonora Gabriel, na Escola de Educao Fsica e Desportos (EEFD). Este projeto originou-se do Grupo de Danas Folclricas da UFRJ, fundado pela professora Snia Chemale na dcada de 70 (COMPANHIA FOLCLRICA RIO-UFRJ, 2020, p. 1).

[76] Expresso utilizada por nordestinos para se referirem s pessoas das regies Sudeste e Sul do pas, com um tom de tratamento igualmente genrico dado por esses ao povo nordestino.

[77] Em sua pgina do facebook, o Grupo Zanzar (2020, p. 1) descreve o seguinte: Com quatorze anos de existncia, o Zanzar um grupo de msica e danas populares brasileiras que trabalha as linguagens das culturas populares tradicionais (coco, jongo, carimb, cavalo-marinho, maracatu, cirandas e frevo, entre outros), sendo formado por msicos e brincantes [] e promove mensalmente, na ltima quinta feira, s 20h, uma Roda de Coco aberta e gratuita nos Arcos da Lapa. E finaliza exaltando que recria estas manifestaes dentro de uma linguagem prpria e original que valoriza e se inspira nesta rica brasilidade.

[78] A Cia. Folclrica (2020, p. 1), ao ir a campo para montar um espetculo, relata que atravs dessa iniciativa surgiu a oportunidade de conhecer e incentivar vrios grupos tradicionais como o grupo de Cirandeiros de Tarituba (Paraty), e que aps o incentivo e o intenso trabalho realizado pela Companhia junto comunidade, os taritubenses reativaram o grupo de danas e, mais tarde, lanaram um CD–livro sobre sua cultura. Defende ainda essa ao como uma contribuio essencial de um projeto acadmico realizado dentro de uma universidade pblica.