�Movimento cult� do Rio de Janeiro e os discurso sobre o coco de Pernambuco

 

 

�Movimento cult�  in Rio de Janeiro and discourses about coco de Pernambuco

 

 

Genilson Leite da Silva[72]

https;//orcid.org/0000-0002-7098-7125

 

Bruno Rodolfo Martins[73]

https;//orcid.org/0000-0002-6480-3676

 

 

Resumo: Este artigo trata das tens�es, pr�ticas, discursos, entre pessoas, lugares e disputas de narrativas, em torno do que � chamado genericamente de cultura popular. Como recorte, identificamos o circuito de rodas culturais existente na cidade do Rio de Janeiro – chamado aqui de �Movimento cult� – como express�o t�pica dessas tens�es, e que, de alguma forma, reatualiza as rela��es de poder j� demarcadas pelos folcloristas do pa�s desde o in�cio da Rep�blica. Como exemplo, analisamos uma dessas tens�es relacionada ao Coco realizado nessas rodas, que fez emergir embates demarcados por quest�es de cultura, ra�a, origem nativa e tradi��o. Caracteriza-se por pesquisa etnogr�fica e tem como procedimento de coleta de dados a netnografia e observa��o participante, como t�ticas para dar conta das quest�es relacionadas � contemporaneidade. A partir disso, identificou-se relatos de como esse Movimento reproduz o projeto colonial impl�cito das din�micas pr�prias das elites dominantes diante dos grupos dominados. Por fim, transforma essa cultura popular em produto de consumo da elite para si pr�pria, em que se extingui, a cada dia, sua for�a pol�tica, seus aspectos de resist�ncia cultural e a participa��o de populares, visto o pre�o de mensalidade das aulas e dos ingressos para os shows, deixando seus criadores fora da roda.

Palavras-chaves: Movimento Cult; Rodas Culturais; Coco; Projeto colonial; Ind�stria Cultural.

 

Abstract: This article deals with tensions, practices, discourses, between people, places and narrative disputes, around what is generically called popular culture. As an excerpt, we identified the circuit of cultural circles existing in the city of Rio de Janeiro - here called �Movimento Cult� - as a typical expression of these tensions, and that, in some way, refreshes the power relations already demarcated by the country's folklorists since the beginning of the Republic. As an example, we analyzed one of these tensions related to Coco carried out on these wheels, which caused clashes deriving due to issues of culture, race, native origin and tradition. It is characterized by ethnographic research and its data collection procedure is netnography and participant observation, as tactics to deal with issues related to contemporaneity. Based on that, reports were identified of how this Movimento reproduces the colonial project implicit in the dynamics of dominant elites in the face of dominated groups. Finally, it transforms this popular culture into an elite consumer product for itself, where its political strength, its aspects of cultural resistance and the participation of the people are extinguished every day, given the price of tuition for classes and tickets for school. the shows, leaving their creators out of the roda.

Keywords: Movimento Cult; Cultural Rodas; Coco; Colonial project; Cultural Industry.

 

 

Reflex�es iniciais sobre �Movimento Cult� e o circuito das rodas culturais

 

Ritualisticamente, alguns grupos �culturais� se alternam em dias previamente marcados todos os meses do ano para a realiza��o de rodas em espa�os p�blicos: uns fazem rodas de Coco, outros de Jongo ou Samba de Roda, entre outros brinquedos populares. Ou, como dito em 2014, por um integrante de um desses grupos: �fazemos tudo, mas, nossa especialidade � jongo�. Seus integrantes se conhecem e se revezam muitas vezes participando da roda de outros grupos, para �fortalecer� essa rede.

Para o p�blico desavisado, essas rodas s�o express�es m�ximas de uma suposta �cultura brasileira� que podem ser contempladas, apreciadas, participadas e em alguma medida, consumidas. S�o oportunidades �nicas para se ter acesso a elas no modo delivery: �sem sair de casa�. Nesse sentido, (1) sendo brinquedos populares locais da cidade ou do estado, n�o seria preciso se deslocar para as periferias de onde s�o nativas, nem ter contato com as comunidades locais e tradicionais que as praticam e mant�m seus sentidos pol�ticos de resist�ncia cultural vivos; e (2) sendo brinquedos de outros estados, n�o seria preciso viajar para poder �curtir�, �comentar� ou �compartilhar�.

A exist�ncia e a estrutura��o do �Circuito de Rodas Culturais� pela cidade do Rio de Janeiro (e em algumas cidades pr�ximas), o que satiricamente chamamos aqui de �Movimento Cult�, exemplifica algumas tens�es t�picas e hist�ricas fomentadas pela academia e por folcloristas pelo pa�s, diante das culturas populares, tradicionais, folcl�ricas, enfim, pelas culturas dos outros, das pessoas exclu�das e marginalizadas pelo sistema social vigente. Sobretudo, pela forma como se colocam habilitados a desenvolver/realizar pr�ticas que fazem parte da mem�ria de um povo, apropriando-se do que foi/� ferramenta de resist�ncia e usando como simples atividade de lazer ou produto a ser vendido no mercado do ex�tico. Em alguma medida, traz elementos novos, em especial, as quest�es conjunturais, como as escassas pol�ticas p�blicas de editais, ou o que chamamos de �modinha� pelo que � popular e afro-ind�gena das regi�es Norte e Nordeste[74] do Brasil.

No in�cio dos anos 2000, surgem alguns grupos que poder�amos chamar de �parafolcl�ricos�, considerados aqui como grupos que trabalham com propaga��o, divulga��o e/ou a comercializa��o das ditas manifesta��es �folcl�ricas� ou �cultura popular� brasileira. Esses grupos, ainda vale destacar, s�o independentes de institui��es, pois, apesar de terem estudantes universit�rios, n�o est�o vinculados a nenhuma universidade.

Nesse sentido, � importante para esta an�lise a exist�ncia da Cia Folcl�rica do Rio[75], vinculada � Escola de Educa��o F�sica e Desportos – EEFD da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em atua��o na cidade bem antes dos anos 2000, e que influenciou e influencia ainda a forma��o desses outros grupos, mesmo que indiretamente: uns seguindo o modelo de a��o da mesma, alguns outros se contrapondo ou se descobrindo nesse processo de constru��o de um coletivo. Mas algo em comum pode demonstrar uma certa unidade nesses grupos: a maioria de seus integrantes estudaram na UFRJ, e alguns, com mais �nfase, passaram pelos cursos da EEFD, tiveram contato com a Cia. (seja por aulas, eventos ou apresenta��es), e outros compuseram durante algum tempo (ou ainda comp�em) o corpo da mesma.

Podemos supor que, antes dos anos 2000, a conjuntura n�o favorecia a cria��o desse tipo de grupo parafolcl�rico independente; afinal, se desde a d�cada de 1980 j� havia a Cia Folcl�rica, por que s� na virada do mil�nio haveria esse �gosto pelo ex�tico� e essa vontade de montar e compor um grupo? Em outro caminho mais contundente, por que a aus�ncia de gosto pelo ex�tico natural da regi�o pr�pria do Sudeste? Seguimos com a provoca��o: cad� a Folia de Reis, Cl�vis, Bate-bolas, Mineiro-pau, Congada, Batuque de umbigada? N�o, os universit�rios do Sudeste nunca pensaram na extin��o dessas manifesta��es pr�prias dos estados do Sudeste, discursos vazios e sem a��o efetiva e que s� servem as manifesta��es do Norte ou Nordeste do pa�s, t�pico da academia para ter acesso direto ao objeto de pesquisa.

� bem mais que um gosto do ex�tico ou uma preocupa��o com a suposta extin��o de um brinquedo popular qualquer. Trata-se, uma vez mais, como dizem Simas e Rufino (2020), do �projeto colonial� em curso, que preza a mortandade e todos os seus caminhos. Pensar que essas a��es s�o mortais n�o � nenhum exagero. Os mesmos autores insistem na necessidade de �encantamento� do mundo, no retorno aos modos de viver que se direcionam para a vida.

E, aqui, se trata da vida das popula��es negra, ind�gena, perif�rica, favelada, escolhidas para serem marginalizadas pelo sistema social que vivemos, e que sempre foi alvo desse �projeto�, tanto no sentido do genoc�dio, como no sentido do �semioc�dio�, que silencia modos de comunicar, vis�es de mundo, linguagens e palavras, como diz Sodr� (2005, p. 4). Mas essas culturas de que tanto se quer �vivenciar� s�o produzidas por essas popula��es, e sempre o fizeram enquanto t�tica de resist�ncia, enquanto �pol�tica de vida�, em busca de manter o �encantamento� do mundo e de si mesmas. Justamente, por essas e outras quest�es, Simas e Rufino (2020, p. 15) escrevem que �o exterm�nio e a subalterniza��o secular de princ�pios comunit�rios e de pr�ticas rituais contr�rias ao padr�o dominante s�o um dos componentes da pol�tica de mortandade e do desencantamento do mundo�.

N�o basta(ria) a aprecia��o est�tica do outro, tampouco a avalia��o etnoc�ntrica e arrogante de uma salvaguarda emergencial de um brinquedo igualmente avaliado como em perigo de deixar de existir, exigindo uma a��o supostamente consciente do �povo do sul�[76] em cuidar dessas manifesta��es culturais afro-ind�genas do Norte e do Nordeste. E, aqui, esse �cuidado� � nada menos que ocupar espa�os culturais, pol�ticos e pedag�gicos que devem/deveriam estar ocupados pelas popula��es tradicionais que mant�m esses brinquedos de resist�ncia desde a cria��o dos mesmos.

A tese recorrente e que traduz essa situa��o � a premissa de que a cultura popular � do povo, logo, para qualquer pessoa se servir dela, desconsiderando as desigualdades sociais e raciais que estruturam a sociedade, permitindo o acesso, o estudo e, como vemos, a reprodu��o � vontade e descompromissada com as autorias tradicionais por pessoas de classe m�dia e com oportunidades de classe correspondentes; enquanto os agentes culturais de raiz continuam desfavorecidos – como antes, e agora, somando-se a tais concorr�ncias nas disputas por seus pr�prios lugares (usurpados) de direito.

Carlos Brand�o percorre uma linha similar e denuncia as desigualdades das rela��es de poder nessa expans�o do popular, e v� como �engano� a ideia de circularidades proposta por pesquisadores como N�stor Garc�a Canclini, Peter Burke ou Renato Ortiz.

Em tempos em que convivemos com conceitos como culturas h�bridas, hibridiza��o de culturas ou circularidade de/entre culturas, um prov�vel engano poderia ocorrer ao estabelecermos como uma panfolcloriza��o todo o complexo trabalho de cria��o cultural dos diferentes sujeitos e povos negros ao longo de nossa hist�ria, esquecendo que uma parte importante do que consideramos �erudito� em nossas realiza��es art�sticas mais diversas � tamb�m, e em boa medida, resultado do trabalho de suas m�os e mentes (BRAND�O, 2009, p. 725).

Para o autor, esse engano desconsidera a forma como a cultura popular � capturada pelas elites, que a ressignifica, e retiram seu pertencimento aos populares. Nesse processo, s�o expropriadas pela elite, passando a receber um r�tulo de erudito ou cl�ssico como forma de desvaloriza��o e desqualifica��o do popular. Entre os jarg�es que poderiam resumir essa quest�o est� o que diz: �a cultura negra � boa, desde que n�o praticada por pessoas negras�.

Waldenyr Caldas comenta sobre um processo de �fetichiza��o da cultura� do outro e nos diz que

uma das formas de a classe dominante manter seu poder sobre as demais classes sociais � por meio da produ��o e do consumo da cultura diferenciados. Ela n�o deve, segundo sua pr�pria ideologia de classe dominante, consumir os mesmos produtos das classes subalternas. E realmente n�o os consome (CALDAS, 2008, p. 82).

N�o � � toa esse crescimento oportuno de grupos e de ocupa��es de espa�os p�blicos, assim como a vontade de viver da/s cultura/s apresentada/s por seus componentes, e as adapta��es realizadas pelos mesmos diante dos brinquedos para conseguir isso.

Continuamos enf�ticos no tratamento dessa quest�o: o circuito do �Movimento Cult� vem ocasionando para as manifesta��es tradicionais/culturais intensas transforma��es que as descaracterizam e deformam suas pr�ticas, n�o s� por romper com seus processos ritual�sticos, mas por criar novos processos que buscam �sofistic�-las� a ponto de descaracteriz�-las. Vemos a imposi��o de uma est�tica que expropria as pr�ticas a ponto de criar grau de valor, em que se � legitimada pela uniformiza��o e n�o pela capacidade de improvisa��o, criatividade, espontaneidade, individualidade, coletividade, cooperatividade ou pertencimento.

Afinal, para que �sofistic�-la�? Esse termo indica que essas culturas precisariam se tornar acess�veis � sensibilidade das elites, e que seus produtores originais deveriam adaptar-se para que as mesmas sejam dignas de serem consumidas. Nesse sentido, o que trazemos para pauta � o reconhecimento de que o circuito do �Movimento Cult� n�o seria apenas um espa�o de manipula��o do popular, espa�o de uma vontade ing�nua e um desejo ut�pico, mas tamb�m um espa�o de comercializa��o da cultura.

Essa �concorr�ncia�, t�pica da estrutura comercial, se mostra �desleal�, pois nivela agentes culturais que est�o desigualmente posicionados na estrutura social, diante das disputas de editais e suas correspond�ncias burocr�ticas, complexas para esses pr�prios universit�rios, quanto mais para os grupos tradicionais que tiveram pouco acesso a um ensino de qualidade, ou ainda em condi��es desfavor�veis para se organizarem para tais empreitadas, ou mesmo estarem sujeitos a vulnerabilidade social. Proporcionalmente a isso, tamb�m surgem pessoas entre esses grupos parafolcl�ricos se autointitulando mestres e mestras dessa ou de outra tradi��o, ou de v�rias(!).

Importa salientar que essa �sofistica��o� est� a servi�o desse �projeto colonial� e de base capitalista que, logo, busca retirar dessas manifesta��es seu poder libert�rio e sua autonomia, com o intuito de manter os privil�gios e as hierarquias sociais baseadas nas desigualdades de ra�a, cultura e origem produzidas pelos herdeiros da col�nia. Com isso, �elevar� as culturas populares � categoria de eruditas est� mais relacionado com o processo de esfolia��o, que vem despir essas culturas de seu car�ter pol�tico, eliminando assim qualquer possibilidade de emancipa��o e independ�ncia de seus produtores originais, transformando-a por fim em mero produto a ser consumido, domesticando-as.

Zezito de Ara�jo demonstra que, para serem reconhecidas ou simplesmente apresentadas para a sociedade, essas culturas s�o estigmatizadas e estereotipadas. Em termos gerais, destaca que

ao se folclorizar a cultura, folcloriza-se com ela, o indiv�duo e o grupo racial. [Isso faz] parte de um mecanismo hist�rico de produ��o do homem-espet�culo ou espetaculoso, do ser ex�tico e leviano, e, como tal incorporado � dimens�o n�o-s�ria (ARA�JO, 2011, p. 4).

Transforma-se numa cultura sem valor, mas com pre�o. Algo que pode ser comprado, usado e descartado. Quando traduzimos isso para seus praticantes tradicionais, � a morte que se estabelece, seja simb�lica ou f�sica. N�o seria uma preocupa��o urgente a vida dessas pessoas?

A reflex�o pertinente de Michel Nicolau (2005, p.141-142) demonstra tr�s �modos de se matar a cultura�, e ambas se retroalimentam muitas vezes: um modo � �exotizar� a cultura, no qual se perde a heran�a, por n�o conseguir se reproduzir; outro modo � �desprezar� a cultura, provocando esquecimento e isolamento, devido a sua n�o inclus�o no sistema social; e uma outra � �padronizar�, passando pela perda de identidade, se adequando ao sistema, mas perdendo suas caracter�sticas pr�prias de cria��o. Em suma, sob essa mesma l�gica, as culturas podem ser coisificadas e mortas, e as pessoas que a produzem, tamb�m.

Esse esc�rnio ocorre na mesma din�mica escancarada que tornou o mito da democracia racial como uma verdade tanto para negros, quanto para brancos. Muitas vezes, grupos e mestres populares, assim como povos e comunidades tradicionais, de forma paradoxal, s�o em certo ponto �gratos� a esses praticantes que �levantam� a bandeira da �cultura popular�, n�o a deixando acabar(!?).

 

 

O espet�culo das ruas no caminho de uma ind�stria cultural (?)

 

A busca por inser��o numa sociedade na qual tudo � espetacularizado, em que transforma��es impostas de fora para dentro dessas tradi��es culturais, em que as mesmas s�o praticadas com outros prop�sitos por pessoas tamb�m de fora das tradi��es, atribuindo valores alien�genas �s mesmas, se torna o fundamento desse tipo de Movimento.

Essa sociedade se torna um local onde o irreal assume o topo de uma hierarquia a servi�o de uma �sociedade do espet�culo�, onde o espelho reflete imagens turvas e essas imagens devem ser reproduzidas em grande escala (ADORNO, 2002). Problematizamos essa reprodu��o pelo fator da hierarquiza��o e as normas de conduta pr�-determinada.

 

O fato de oferecer ao p�blico uma hierarquia de qualidades em s�rie serve somente � qualifica��o mais completa. Cada um deve-se portar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu n�vel, determinado a priori por �ndices estat�sticos, e dirigir-se � categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo (ADORNO, 2002, p. 172).

 

Essa busca por uma padroniza��o (seja de uma dan�a, m�sica, figurinos etc.) nada mais � que uma tentativa de se encaixar como um produto aos olhos da ind�stria cultural. Para alcan�ar tal status, perde-se e abre-se m�o de pr�ticas antigas, rituais, c�digos e identidades. Silencia-se as subjetividades, a criatividade, a espontaneidade e a capacidade de improvisa��o dos indiv�duos envolvidos. Cria-se um espa�o onde a t�cnica � sistem�tica, espa�o onde o improviso n�o � permitido, e por fim, a diversidade tem um exemplar a seguir.

Fica n�tida a viol�ncia simb�lica, uma vez que os s�mbolos e c�digos de povos e comunidades tradicionais sucumbem diante dessas demandas; t�m a forma de viol�ncias psicol�gicas, uma vez que essas refer�ncias tradicionais, frente �s suas necessidades, veem suas pr�ticas cotidianas gerando renda a terceiros, enquanto as mesmas sub-existem financeiramente.

A viol�ncia da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da ind�stria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distra��o. Mas cada um destes � um modelo do gigantesco mecanismo econ�mico que desde o in�cio mant�m tudo sob press�o, tanto no trabalho quanto no lazer que lhe � semelhante (ADORNO, 2002, p. 175).

Acreditamos na capacidade transformadora da cultura popular e reduzi-la a um produto nesse contexto � o mesmo que desvalorizar toda hist�ria de vida e resist�ncia de praticantes da mesma como matriz geradora; � transformar a cultura em algo descart�vel como todo e qualquer produto desenvolvido atualmente pelo sistema capitalista, conforme a obsolesc�ncia programada.

 

 

O Coco dos cariocas (?)

 

Ater-se �s quest�es pura e simplesmente est�tica � apenas mais uma forma de alienar os dominados para que esses n�o percebam o que realmente ocorre. Seguindo uma linha reflexiva objetivada pelo �projeto colonial�, podemos observar que alguns aspectos que caracterizam as rodas e eventos de Coco do Rio de Janeiro apresentam ou buscam apresentar caracter�sticas que, de certa forma, tentam manter uma (suposta) est�tica similar ao que ocorre no Nordeste. O que ao nosso olhar soa como uma estereotipa��o: uma constru��o de personagens que se fazem presentes no imagin�rio do sudestino.

H� nesses movimentos, a din�mica de trazer refer�ncias tradicionais (na pessoa de mestres e mestras, ou outras pessoas envolvidas com tradi��es do Coco) para o Rio e promover com essas uma �turn�� onde essas refer�ncias s�o levadas a v�rios lugares ou a grupos, para passar seus conhecimentos aos sudestinos aventureiros desbravadores da cultura, que colaboram com �contribui��es simb�licas�, �volunt�rias� ou �conscientes�, em que, depois de arcar com algumas despesas, tal montante dessas contribui��es ser� entregue a essa refer�ncia mestra. Podemos questionar ainda por que o valor da aula ou oficina oferecida por essas refer�ncias, via de regra, � sempre um valor inferior ao pago pela pessoa participante? H� nessas pr�ticas os resqu�cios do que Taussig (2010, p. 15) denomina de �fetichismo da mercadoria�, que para ele �pode ser interpretado como o que transforma pessoas em coisas e coisas em pessoas�.

Avaliamos nesse sentido que, para al�m da pr�pria cultura tradicional ser adaptada e servida como produto, as refer�ncias tradicionais s�o tamb�m coisificadas, colocadas num contexto de presta��o de servi�os, perdendo poder de negocia��o, sendo intermediadas por terceiros, como que empres�rios ou produtores de artistas de elite, que tomam para si boa parte do montante – sem, contudo, a premissa de um acordo que formalizasse isso. Mestres e mestras s�o tratados quase como uma propriedade desse ou daquele grupo, que se coloca como intermedi�rio entre outros grupos, pessoas interessadas e institui��es com pot�ncia de realizar algum contrato.

Outra quest�o que chama a nossa aten��o � a prepotente capacidade – ou seria t�pico exerc�cio de poder – desses grupos em legitimar qual nordestino pode ou n�o falar sobre, ou questionar essa din�mica. A exemplo disso, apresentamos a an�lise de dados recolhidos nas redes sociais. Neles, observamos a tens�o criada entre esses grupos parafolcl�ricos do Rio de Janeiro e um nordestino, que, de passagem pela cidade no ano de 2018, questiona as din�micas e o modo do fazer Coco dos grupos cariocas.

Visamos captar essas tens�es como resultado da mercantiliza��o da cultura e como retrato do �projeto colonial�, atrav�s do processo de deslegitima��o ou desqualifica��o de seu discurso. Um t�pico exemplo que transforma as tradi��es populares em �coisa� produto, como tamb�m seus praticantes tradicionais – que podem at� ter voz, mas n�o ser�o escutados.

A partir desse recorte, observamos que os grupos do Rio de Janeiro foram taxativos em desqualificar o discurso desse nordestino pernambucano, Ednaldo, hoje assumindo o nome social Caetana da Silva devido ao processo de transi��o de g�nero a qual est� passando. Ela reivindicava quest�es relacionadas aos fundamentos presentes na estrutura e nos rituais existentes na manifesta��o. Acredita-se que essas reivindica��es expressariam uma disputa de territ�rio e nicho de mercado, uma vez que a mesma era uma potente concorrente do grupo parafolcl�rico Zanzar[77], que ministra suas aulas e oficinas de �cultura popular� no Circo Voador, ao lado da Fundi��o Progresso, local onde Caetana ministra suas oficinas de dan�as e ritmos pernambucanos.

Caetana se autolegitima atrav�s do discurso de ter viv�ncia com mestres e mestras de Coco e Maracatu de Pernambuco, al�m de ser nativa do mesmo estado. Segundo ela, nos �eventos� dos grupos do Rio h� uma descaracteriza��o da manifesta��o no que diz respeito aos rituais, estrutura e fun��o. J� os grupos do Rio apontam um essencialismo na argumenta��o de Caetana, junto ao desejo de se autodenominar mestra e dona da cultura nordestina. Como em todas as tens�es, h� um pouco de verdade em cada um dos lados. Por um lado, vemos uma pessoa nordestina que vem para o Sudeste na esperan�a de sobreviver de apresenta��es, aulas e oficinas de dan�a popular, por�m a mesma fora alertada sobre a import�ncia de �fechar� com esses grupos para poder transitar de forma harm�nica entre os mesmos e ainda �fazer uma grana�. Por outro, temos os grupos �criativos� que inventam movimentos, toques e rituais estranhos ao Coco, descaracterizando-o.

Os Cocos no Nordeste, mais precisamente de Pernambuco, mesmo �s vezes denominados Coco de roda, t�m uma estrutura aberta, na qual quem brinca � livre para transitar pelo espa�o e essa mesma liberdade � dada a tocadores, diluindo a rigidez de papel fixo para os mesmos. Outro aspecto importante na brincadeira � a falta de uma coreografia ou de movimentos �muito elaborados�, o que estimula a criatividade dos brincantes, assim como tamb�m se torna algo mais convidativo e envolvente. A insistente batida dos p�s no ch�o, o trup�, dialoga com o ritmo dos tambores e nos remete a uma rela��o com a natureza e as ancestralidades afro-ind�gena. A dan�a � marcada por pisadas firmes no ch�o que reverbera por todo o corpo que se posiciona projetado para terra como um tipo de rever�ncia e conex�o com a terra.

J� no Rio de Janeiro, a manifesta��o acontece em um espa�o restrito com delimita��o do mesmo em formato de c�rculo e com casal solista. Observamos nessas rodas de Coco uma din�mica de �compra� semelhante � da capoeira, na qual os participantes que pretendem substituir uma das pessoas no centro, ou o casal, precisa, ritualisticamente, saldar os instrumentos ou os tocadores, e posteriormente aquele a quem se deseja substituir. Os movimentos s�o constru�dos tendo como influ�ncia os movimentos dos Cocos nortistas e nordestinos. Observa-se uma abordagem gen�rica dos gestos, uma vez que esses mesclam as diferentes express�es da manifesta��o existente no Norte e Nordeste.

Nos grupos do Rio, os movimentos s�o amplos com grandes deslocamentos dentro do c�rculo, e percebe-se tamb�m uma coreografia complexa que exige grande habilidade de seus participantes, fatores esses que projetam na roda uma perspectiva de palco, onde o casal solista � protagonista de um espet�culo e cada integrante tem um papel definido que pode ser revezado. Logo, a conex�o com a terra, espiritualidades e ancestralidades afro-ind�genas passam a ser secund�rias em rela��o � quest�o est�tica ali posta, h� uma preocupa��o est�tica sobre o melhor �figurino�, o melhor posicionamento dos bra�os, o melhor trup�, a performance atl�tica. Os saltos e uma horizontalidade do corpo que desvirtuam a rela��o do contato e conex�o com a terra, interferindo assim no fluxo de energia. H� tamb�m pouco di�logo com o ritmo: n�o se dan�a para e nem com a m�sica.

Os aspectos que distinguem uma manifesta��o da outra as colocam em rela��o de contraponto ou conflito entre ancestralidade e show, entre o encantamento e a performance atl�tica, que se faz presente nos objetivos daqueles que os praticam. No Rio, a delimita��o espacial, a constru��o c�nica e a inclus�o de roupas estereotipadas do tipo �roupas de ir para roda�, onde as mulheres vestem saias de chita, cada vez mais coloridas e rodadas e os homens ficam mais � vontade denotam uma performance que sofre grandes influ�ncias das din�micas vivenciadas nas aulas de outros estilos de dan�a e de teatro, extraindo das manifesta��es populares, no caso do Coco, sua dimens�o pol�tica e social em nome de um suposto resgate, que n�o passa de um desservi�o. Um des-encantamento.

 

 

Considera��es nem t�o finais

 

O relato aqui apresentado foi constru�do a partir de observa��es dos eventos nas rodas e de conversas e tens�es que se passaram nas redes sociais e de nossa experi�ncia enquanto pesquisadores, mas tamb�m como brincadores n�o tradicionais preocupados com as tradi��es e seus brincadores. Durante esse per�odo, percebemos o grande fluxo de pessoas que se interessam pelas culturas populares nordestinas e logo procuram desvirtuar suas potencialidades pol�ticas e sociais por interesse pr�prio ou por modinha. Criam grupos que disputam os poucos editais ofertados pelas Secretarias de Cultura, tomando na �m�o grande� as poucas chances de grupos e mestres tradicionais em ter acesso a algum recurso que minimamente permitiria aos mesmos desfrutar de transporte e alimenta��o para participa��es em eventos.

Durante esse per�odo de experi�ncia visitando mestres e grupos tradicionais, o que foi percebido aqui no Rio de Janeiro � que esses universit�rios �guardi�es� da �cultura popular� raramente est�o dispostos para as manifesta��es do sudeste, exceto samba, carnaval e jongo; t�o escassa quanto � sua disposi��o para se deslocar para regi�es mais distantes da cidade, como tamb�m � Baixada Fluminense. Comumente, esses se limitam a percorrer o circuito de roda que tem sua varia��o entre o Centro do Rio e a Zona Portu�ria (Lapa, Rua do Lavradio, Pra�a XV, Cais do Valongo, Largo da Prainha, Pedra do Sal, Pra�a Mau�) e o sub�rbio (limitado entre M�ier e Madureira), ou alguns eventos espor�dicos em datas comemorativas como no caso da festa tradicional do Boi Brilho de Lucas, em Parada de Lucas, ou do Quilombo de S�o Jos� no Vale da Serra, em Valen�a, no interior do estado. Em rela��o a esses dois �ltimos, o primeiro disponibiliza �nibus saindo da Lapa para o transporte ida e volta, gratuitamente, para quem desejar ir para a festa, que � tamb�m espa�o de apresenta��o desses mesmos grupos. O segundo virou um evento anual que tem at� empresa de turismo oferecendo pacotes de viagem para aprecia��o da festa, onde esses grupos de universit�rios se digladiam para fazer parte da festa com a finalidade de expor seu �trabalho� para a comunidade do �Movimento Cult� e ganhar notoriedade que posteriormente render� alunos e apresenta��es financiadas.

Para n�s, ficam ainda algumas quest�es renitentes: ser� que esse modelo de grupo parafolcl�rico serve � resist�ncia cultural, enquanto colaboradores potentes dos grupos, mestres e mestras tradicionais, ou ser�o aqueles que padronizam, folclorizam e enquadram as tradi��es �s regras sociais dominantes, aos fetiches da elite, ao com�rcio do ex�tico?

Seria mais c�modo a esses grupos se organizarem para �brincar�, do que para apoiar grupos tradicionais? Ou seria, na verdade, mais conveniente?

Ou continuam se vangloriando de supostas influ�ncias salvacionistas que os mesmos estariam promovendo com suas a��es (de pesquisa e montagem de espet�culos[78]) entre os grupos tradicionais?

O circuito de rodas culturais do �Movimento Cult� promove algum �encantamento�, no sentido que Simas e Rufino (2020) indicam? Aplicam uma �pol�tica de vida� para, com ou pelos grupos tradicionais, ou participam construindo ainda mais invisibiliza��o, padroniza��o e morte, ocupando os lugares daqueles outros que as criaram e as mantiveram desde sempre?

 

 

Refer�ncias

 

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GRUPO ZANZAR. �Sobre o Grupo zanzar�. 2020. Dispon�vel em: https://web.facebook.com/notes/1499954830074166/ Acessado em: 31 dez. 2020.

 

NICOLAU, Michel. Diversidade cultural no sistema ONU: um lugar para cultura. In: BRANT, L. (org.). Diversidade Cultural: globaliza��o e culturas locais: dimens�es, efeitos e perspectivas. S�o Paulo: Escrituras; Instituto Pensarte, 2005, p. 131-148. (Democracia Cultural;1)

 

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento (sobre pol�tica de vida). Rio de Janeiro; M�rula Editorial, 2020.

 

SODR�, M. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

 

TAUSSIG, Michael. The devil and commodity fetishism in South America. Chapel Hill: TheUniversity of North Carolina Press, 2010, pp. xi – xiv; xv-xvii; 3-38. (Tradu��o em portugu�s: TAUSSIG, Michael. O diabo e o fetichismo da mercadoria na Am�rica do Sul. S�o Paulo: Editora da Unesp, 2010, p. 11-15; 17-20; 23-69).

 

 

[Recebido: 31 dez 2020 – Aceito :18 mar 2021]



[72]  Mestre em Arte, Cultura e Cogni��o (UERJ). Bacharel em Dan�a (UFRJ) e Licenciando em Educa��o F�sica pela mesma. Contato: genilson.leite@hotmail.com

[73]  Mestre em Rela��es Etnicorraciais (CEFET-Maracan�), Especialista em Hist�ria da �frica e da Di�spora Africana no Brasil (FIS) e em G�nero e Sexualidade (UERJ). Bacharel e Licenciado Pleno em Educa��o F�sica (UFRJ). Atualmente � professor da SME-PCRJ. Contato: capoeiranomade@yahoo.com.br

[74] Destaca-se que h� uma prefer�ncia pelas manifesta��es populares da cultura afro-ind�genas do Norte e Nordeste brasileiro com exce��o do jongo, que � o ritmo mais pedido e �nico de origem no Sudeste, e que isso pode ter rela��o com o trabalho disseminador do Mestre Darcy do jongo, que com seu grupo Jongo da Serrinha levou o jongo para o centro do Rio e para os palcos do Brasil e do exterior, assim como tamb�m gravou CDs, CD-livro, produziu material audiovisual. A mais, somos agraciados por grupos de Samba de roda e Afox� (BA), Coco (PE, AL), Maracatu (PE), Tambor de crioula, Bumba-meu-boi e Cacuri� (MA) e os grupos mistos que como o j� citado �faz tudo�.

[75] Conforme consta na p�gina da EEFD, no item �Hist�rico� da Cia Folcl�rica, ela �foi fundada em 1987 pela professora Eleonora Gabriel, na Escola de Educa��o F�sica e Desportos (EEFD). Este projeto originou-se do Grupo de Dan�as Folcl�ricas da UFRJ, fundado pela professora S�nia Chemale na d�cada de 70� (COMPANHIA FOLCL�RICA RIO-UFRJ, 2020, p. 1).

[76] Express�o utilizada por nordestinos para se referirem �s pessoas das regi�es Sudeste e Sul do pa�s, com um tom de tratamento igualmente gen�rico dado por esses ao povo nordestino.

[77] Em sua p�gina do facebook, o Grupo Zanzar (2020, p. 1) descreve o seguinte: �Com quatorze anos de exist�ncia, o Zanzar � um grupo de m�sica e dan�as populares brasileiras que trabalha as linguagens das culturas populares tradicionais (coco, jongo, carimb�, cavalo-marinho, maracatu, cirandas e frevo, entre outros), sendo formado por m�sicos e brincantes [�] e promove mensalmente, na �ltima quinta feira, �s 20h, uma Roda de Coco aberta e gratuita nos Arcos da Lapa�. E finaliza exaltando que recria �estas manifesta��es dentro de uma linguagem pr�pria e original que valoriza e se inspira nesta rica brasilidade�.

[78] A Cia. Folcl�rica (2020, p. 1), ao ir a campo para montar um espet�culo, relata que �atrav�s dessa iniciativa surgiu a oportunidade de conhecer e incentivar v�rios grupos tradicionais como o grupo de Cirandeiros de Tarituba (Paraty)�, e que �ap�s o incentivo e o intenso trabalho realizado pela Companhia junto � comunidade, os taritubenses reativaram o grupo de dan�as e, mais tarde, lan�aram um CD–livro sobre sua cultura�. Defende ainda essa a��o como �uma contribui��o essencial de um projeto acad�mico realizado dentro de uma universidade p�blica�.