O Saci centen�rio: uma
an�lise mitocr�tica de Saci Perer� – resultado
de um inqu�rito
The 100-year-old Saci:
a mythocrytic analyses on Saci
Perer� – result of an inquiry
Andriolli Costa[15]
https://orcid.org/0000-0002-8589-27
Resumo: Este trabalho revisita o livro O Saci Perer� – Resultado de um
Inqu�rito, organizado por Monteiro Lobato em 1918. O Inqu�rito conta
com mais de 70 depoimentos que d�o a ver vers�es plurais do mais brasileiro dos
mitos: o saci – duende negro, com heran�a europeia e ind�gena. Partindo
do levantamento da Narrativa Can�nica e do reconhecimento do lastro simb�lico
do Nome do mito, o trabalho d� in�cio a uma an�lise mitocr�tica
fundamentada na vertente arquetipol�gica da Teoria
Geral do Imagin�rio, buscando evidenciar as constela��es simb�licas que emergem
da obra. Tensionando leituras de que o texto evocaria
imagens racistas e demonizadas, a partir da an�lise encontramos agrupamentos
referentes aos mitologemas do Ind�gena, do P�ssaro,
do Escravo, do Transgressor, do Dem�nio e do Her�i, que evidenciam uma
complexidade inata no mito enquanto aquele que hesita entre aliado e
castigador, entre aparentado do diabo e eleito de Deus, entre desvio mantenedor
do status quo e inspira��o para a liberdade.
Palavras-chave: Saci; Imagin�rio; Folclore; Mito; Monteiro Lobato.
Abstract: This
article revisits the book O Saci Perer�
– resulto of an inquiry, organized by Monteiro Lobato in 1918. The
Inquiry counts on more than 70 testimonials that gives us plural versions of
the most Brazilian of the myths; the saci - a black
and legless imp with a red cap inherited from the European gnomes and with
indigenous origin. Starting with the identification of the Canonical Narrative
and the recognition of the symbolic coverage of the Name of the myth, this
works develops a mythocritic analysis based on the archetypological aspect of the General Theory of the
Imaginary, seeking to highlight the symbolic constellations that emerge from
the ouvre. Tensioning readings that the text would
evoke racist and demonized images, through the analysis we�ve found the
following mythologems: the Indigenous, the Bird, the
Slave, the Transgressor, the Demon and the Hero, which show an innate
complexity in the myth as that who hesitates between ally and punisher, between
the devil and the elect of God, between the deviation used to maintain the
status quo and the inspiration for freedom.
Keywords:
Saci;
Imaginary; Folklore; Myth; Monteiro; Lobato.
Introdu��o
O ano era 1917 quando Monteiro Lobato usou das
p�ginas que dispunha no Estadinho, suplemento do jornal O Estado de
S. Paulo, para fazer uma convocat�ria. O escritor j� ganhara notoriedade
anos antes com a publica��o de artigos que consolidavam a imagem do caipira
enquanto um parasita da terra e ep�tome do atraso, seja devido a pr�ticas de
cultivo antiquadas (como a coivara), pela suposta pregui�a ou pelo modo de vida
�pacato�. Afeito a pol�micas e sempre de dedo em riste, entretanto, Lobato
retornava desta vez � tem�tica interiorana para encontrar nela n�o mais o bode
expiat�rio da conjuntura brasileira, mas sua panaceia. Buscava, para tanto,
realizar um inqu�rito. �Sobre o futuro presidente da Rep�blica? N�o. Sobre o
saci� (LOBATO, 2008, p. 36). Ambos, a obra e o mito que a inspirou, ser�o
objeto deste estudo.
Muitos compreendem a campanha lobatiana, que trouxe o duende perneta como estandarte,
mero reflexo de seus arroubos nacionalistas. E h� motivos para isso. No mais
puro deboche, o autor dedica o Inqu�rito, por um lado, � �saudosa Tia Esm�ria� e a todas as pretas velhas contadoras de hist�rias;
por outro, ao bairro do Trianon, regi�o que elegeu como substrato da goma
europeia na capital paulista. No mesmo per�odo, o autor j� se demonstrava
desgostoso com o estrangeirismo que invadia o Brasil nos modos, no vocabul�rio,
e especialmente na arte. Revolta-se especialmente com est�tuas de duendes barba�udos, encapotados para o frio sob o sol tupiniquim
– reflexo do que julgava ser uma covarde est�tica nacional. Para Lobato,
dever�amos assumir nossos motivos, com imagens n�o de an�es nibelungos,
mas de curupiras, papagaios, macacos ou, � claro, de sacis (LOBATO, 2008, p.
29).
Seria uma incorre��o, entretanto, limitar o
lan�amento do Inqu�rito � busca pela valoriza��o do nacional –
especialmente tendo em vista a pesada cr�tica lobatiana
ao caipira e sua admira��o � modernidade, � ind�stria e aos Estados Unidos. O
que a explica, portanto? Uma resposta poss�vel pode ser encontrada nas ra�zes
simb�licas do imagin�rio. � de se lembrar que est�vamos no �pice da Grande
Guerra, a primeira at� ent�o. As promessas de progresso permanente da
tecnologia, que nos levaria ao apogeu da evolu��o humana, se concretizavam em
forma de carnificina. O mito de Prometeu, que trazia as promessas do fogo e da
T�cnica para o homem, se convertia na desumanidade f�ustica
daquele que perdeu sua alma na busca pelo sucesso (DURAND, 1998, p. 256).
Essa rela��o de descr�dito moment�neo com o
progresso maquin�stico est� manifesta na abertura do Inqu�rito,
j� publicado na forma de livro. Nela, percebemos que, � brutalidade cometida
pelas na��es ditas civilizadas, Lobato buscou um contraponto no saci e em tudo
o que derivava a partir dele (o interior, a natureza, a pilh�ria e, � claro, a
liberdade).
Quem se afoutasse a abrir uma folha
sorvia sangue dos telegramas � se��o livre. Um engulho. Foi quando surgiu o
Saci, e veio com suas diabruras aliviar-nos do pesadelo. Por v�rias semanas
alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa aten��o para
quadro mais ameno que o trucidar dos povos. Bendito sejas! Est�s perdoado de
muitas travessuras por haveres interrompido, por um momento, em nossa
imagina��o, a hedionda sess�o permanente de horror, aberta pelo sinistro 2 de
agosto de 1914, de execrabil�ssima mem�ria (LOBATO, 2008, p. 27).
No total, foram mais de 70 depoimentos recebidos
para o projeto que se tornaria publica��o. Certas cartas traziam um incontido
deboche, outras poucas uma cren�a velada. A maioria recordava com nostalgia as
lembran�as da meninice encantada pelas hist�rias do mito. O m�todo do Inqu�rito
coletivo, diferente do ensaio individual, favoreceu a pluralidade de imagens.
Por certo que h� um recorte de classe imediato entre os informantes – no
m�nimo na quest�o da alfabetiza��o, j� que os relatos foram enviados por escrito
– s� que ainda assim abre-se espa�o para imagens que independem da vis�o
de mundo de um �nico autor. Assim, por certo que o racismo e a eugenia
manifestam abertamente nas correspond�ncias de Lobato e de modo latente na sua
fic��o (HABIB, 2003) n�o devem ser ignorados. No entanto, a for�a simb�lica que
d� forma ao saci antecede e muito as elocubra��es do
autor sobre ra�a.
Neste trabalho, filiado � Teoria Geral do
Imagin�rio, revisitamos Saci Perer�
– Resultado de um Inqu�rito pouco ap�s o centen�rio de sua publica��o
para buscar na obra cultural as respostas que apenas a mitocr�tica
pode oferecer: quais imagens simb�licas constelam a partir do saci no Inqu�rito?
Como elas s�o dinamizadas por uma sociedade marcadamente racista e que sa�a h�
apenas tr�s d�cadas da aboli��o da escravatura? E, acima de tudo, � poss�vel a
partir da obra compreender o porqu�, mesmo um s�culo depois, o saci permanece
sendo um dos mais mitos mais famosos do pa�s?
A �mitodologia� durandiana, como ele mesmo a batiza, se centra no estudo do
mito enquanto imagin�rio manifesto e busca analisar as redund�ncias da imagem
em uma obra cultural, que se repete para melhor impregnar e persuadir (DURAND,
1998). Compreendendo o mito como a narrativa, o mitologema
como seu esqueleto e os mitemas como as
menores partes narrativas que constituem o mito (DURAND, 2012), o percurso
consiste em identificar e organizar os mitologemas e mitemas para a partir deles orientar a an�lise. Assim, perseguiremos
a presa m�tica no texto do Inqu�rito para tirar suas consequ�ncias em
uma an�lise que, embora n�o ignore as controv�rsias envolvendo a biografia do
autor, a tensione para encontrar no pr�prio texto
seus sentidos epif�nicos.
O Inqu�rito
J� consolidado na imprensa paulista, com quem
colaborava frequentemente com artigos provocantes que movimentavam a audi�ncia,
Lobato passou a insistir na tem�tica do saci em um artigo publicado no dia 24
de janeiro de 1917. O gancho para o assunto foi trazido por um companheiro de
reda��o: Manuel Lopes de Oliveira Filho, o Manequinho Lopes. O bi�logo, hoje
considerado �pai� do Parque Ibirapuera, era tamb�m articulista do jornal e,
segundo Lobato, um grande investigador da l�ngua Tupi e das culturas populares.
Lopes buscou plasmar a figura do duende brasileiro em �barro do Po��[16],
oferecendo o motivo perfeito para o texto lobatiano:
a falta de representa��es art�sticas dos mitos brasileiros.
Figura 1 – Saci
de Manequinho Lopes
Fonte:
ESTAD�O, 1917, p. 4.
Se o medo e a escurid�o, reflete Lobato, foram capazes
de gerar tanto os deuses gregos imortalizados pelos aedos
quanto a corte das fadas em sonhos preservados pela dramaturgia de Shakespeare;
no Brasil, que em nada lhes devia no quesito da fant�stica popular, faltava
ainda o envolvimento dos artistas para abra�ar de vez essa cultura. N�o apenas
por desinteresse, mas por falta de acesso. Afinal, justifica o autor, se era
comum encontrar tomos dos mais variados dedicados � mitologia celta nas
bibliotecas p�blicas, o mesmo n�o pode ser dito dos livros sobre nosso folclore
que raramente conspurcavam o nobre ambiente livresco. Para manter a honestidade
do registro, Lobato recomendava ir ao povo. �Afundar na ro�a para uma consulta
ao grande livro n�o escrito da crendice popular� (LOBATO, 2008, p. 32).
Talvez aos olhos de hoje a assertiva de Lobato possa
parecer banal. No entanto, � preciso lembrar que na �poca, especialmente nos
peri�dicos dominados por uma elite intelectual altamente excludente, tudo
aquilo ligado ao folcl�rico era abordado pela perspectiva do ex�tico, pouco
mais que um folhetim de curiosidades. Basta ver, por exemplo, aquele que �
considerado um dos primeiros artigos de jornal no qual o mito do Saci Perer� �
mencionado. Publicado em 1859 no Correio Paulistano, o texto j� se
coloca na defensiva, justificando-se o tempo todo. O pedido de desculpas ao
mesmo tempo em que apascenta o p�blico, menospreza de in�cio todo o conte�do
das narrativas que investiga
Respeit�vel
leitor, vener�vel cr�tico de testa enrugada e olhar inspirado, n�o vos revoltais
contra as hist�rias populares que vou come�ar a escrever. S�o cren�as err�neas
e muitas vezes c�micas as do povo, mas nem por isso destitu�das de interesse;
recreiam a imagina��o, acalmam por vezes os cuidados do esp�rito e s�o para
muitos recorda��o doce do passado (CORREIO PAULISTANO, 1859, p. 2).
Se o Correio j� antecipava cr�ticas, Lobato n�o
esperava menos pol�mica quando trouxe a tem�tica ao Estad�o meio s�culo
depois. E se alguns leitores se mostraram ultrajados com um jornal �s�rio�
gastar tinta e papel com �t�o grosseira supersti��o popular, dessas que dep�e
contra os nossos cr�ditos de civilizados perante as na��es estrangeiras�
(LOBATO, 2008, p. 35), muitos outros se envolveram com a narrativa j�
nost�lgica. O interesse havia sido despertado.
Lobato (2008, p. 37) encontrou no Perer� – tido
por ele como a mais original de nossas cria��es populares – o
protagonista perfeito para sua campanha. Encantado resultante do imagin�rio do
ind�gena, do negro e do europeu, defendia Lobato, o saci era a s�ntese da
cultura brasileira. O mito, explica ele, �vem do aut�ctone que lhe deu o nome
atual, corruptela de �aa cy perereg[17]. Sofreu o influxo do africano, passando
de caboclinho a molecote. Modificou-se por injun��o da ps�quica portuguesa. O
mesti�o meteu nele muita coisa de seu� (LOBATO, 2008, p. 38). Estudar o saci,
desta forma, era estudar o Brasil
O inqu�rito se consolidou a partir de cartas dos
leitores que deveriam responder a uma trinca de perguntas orientadoras.
a) Sobre a sua
concep��o pessoal do Saci; como a recebeu na sua inf�ncia; de quem a recebeu;
que papel representou tal crendice na sua vida, etc.;
b) Qual a forma
atual da crendice na zona em que reside;
c) Que hist�rias
e casos interessantes, passados ou ouvidos sabe a respeito do Saci.
Nem todos se valeram deste expediente, chegando a
enviar m�sicas, poemas ou relatos de mem�ria – em hist�rias escutadas na
inf�ncia pela voz de mucamas, amas de leite, ex-escravos
ou funcion�rios da fazenda. Outros abra�aram o empreendimento e foram a campo
conversar com caboclos, boiadeiros, parentes mais velhos. Retratos de distin��o
de classes entre quem contava e quem ouvia, por um lado, mas por outro um
resumo da din�mica do folclore – transmitido pela oralidade, mas fixado
por lastros simb�licos ainda mais poderosos mobilizados pelo imagin�rio.
A participa��o foi consider�vel e gerou um livro
publicado em 1918. No total, a publica��o contou com 73 depoimentos, incluindo
um assinado pelo pr�prio Saci e redigido por Lobato. O grosso das correspond�ncias
vinha de S�o Paulo e interior, mas tamb�m houve depoimentos enviados do Rio de
Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Outros, em seus relatos, mencionavam tamb�m os
estados de Goi�s, Mato Grosso e Paran�, e um leitor, de maneira ampla, a regi�o
Nordeste. Uma amostragem concentrada – focada nos leitores do jornal
paulista – mas que j� demonstrava a for�a do mito pelo territ�rio
nacional.
O envolvimento do p�blico n�o foi obra do acaso. O
saci movimenta emo��es que v�o muito al�m da nostalgia, e remete a imagens
ancestrais que nos ligam nacionalmente enquanto brasileiros e, em sentido
amplo, enquanto g�nero humano. � isso que percebemos em nossa Mitocr�tica.
Primeiros passos
Nos estudos do mito � importante ter como ponto de
partida dois elementos distintos: o reconhecimento da narrativa can�nica e a identifica��o do nome verdadeiro que o mito assume. Nomear � conhecer. S�o esses
elementos que ser�o tensionados pela mitocr�tica
– por meio da identifica��o dos mitologemas e
organiza��o de mitemas redundantes – para que
enfim o mito ent�o se revele.
A narrativa can�nica, como sugere Eunice Gomes, n�o �
um resumo de textos sobre o mito, mas aquilo que o sistematiza (GOMES, 2011).
Seria algo como um modelo padr�o, um tipo ideal weberiano, que forma sua
representa��o hegem�nica. Esta imagem � constru�da tendo por base n�o apenas o
senso comum, mas tamb�m a influ�ncia midi�tica, em um processo de
retroalimenta��o no qual o texto cultural se torna mais coerente, menos arracional, e de mais f�cil compartilhamento.
No caso do mito do saci, o c�none fala de um moleque
negrinho, de uma perna s�, que pratica todo o tipo de diabruras, mas sem nunca
ser verdadeiramente mal. O saci carrega por vezes um cachimbo, veste carapu�a
vermelha – a fonte dos seus poderes m�gicos – e se desloca por meio
de um redemoinho. Interessante notar que falar de saci �, imediatamente, falar
em modos de sua captura. Mesmo hoje a grande atividade escolar de celebra��o do
folclore costuma ser uma ca�a ao saci.
O S�tio do Picapau
Amarelo, s�rie infantil escrita por Lobato entre 1920 e 1947 – e que
contou com in�meras adapta��es audiovisuais – institucionalizou um desses
m�todos: o uso da peneira para cont�-lo e o roubo da carapu�a para desempoder�-lo. Aquele que toma a carapu�a do saci ganha
poder sobre ele, e, tendo-o preso, pode chantage�-lo para que realize os
desejos de seu captor. �A for�a dele est� na carapu�a, como a for�a de Sans�o
estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapu�a de um saci fica
por toda vida senhor de um pequeno escravo� (LOBATO, 2005, p. 18, grifo
nosso).
Com o tempo, a narrativa can�nica vai sofrendo tamanho
influxo cultural que pode paulatinamente se afastar dos mitologemas
originais, perdendo mitemas em um processo de
esvaziamento e desbastamento. No n�vel m�ximo da estereotipia, temos apenas a
casca do mito, um nome que nada mais diz, uma imag�tica sem lastro de sentido.
Num momento anterior a este, quando apenas um mitema
� valorado enquanto os demais s�o suprimidos, diz-se que o mito sofreu heresia
– termo usado em seu sentido etimol�gico, como a �escolha de uma
�nica vis�o� (DURAND, 2010, p. 144).
A for�a da m�dia na constru��o desta narrativa
can�nica desbastada se mostra quando o pr�prio lastro da adapta��o original vai
se perdendo nos v�rios n�veis de massifica��o da mensagem. Monteiro Lobato
evidentemente se inspirou no material colhido em seu Inqu�rito para
compor sua vers�o liter�ria do Saci no Picapau
Amarelo, publicado tr�s anos depois. Ainda assim, precisou fazer escolhas.
Na obra infantil, o saci tem costume de chupar sangue dos cavalos. Traz as m�os
furadas como duendes portugueses e carrega ainda muito de demon�aco,
marcadamente pelo temor a objetos religiosos e ao cheiro de enxofre. Nas
subsequentes adapta��es televisivas, o duende brasileiro perdeu muito de sua
refer�ncia religiosa, deixou o cachimbo de lado, foi destitu�do do furo nas
m�os e tornou-se mais moleque do que diabrete.
Por vezes, um mito est� mobilizando mitemas t�o distintos – ou ordenados em constela��es
t�o diferentes – que pode carregar falsamente um nome, enquanto
escamoteia outro (DURAND, 1998, p. 247). No Inqu�rito encontramos uma
s�rie de varia��es al�m do tradicional Perer�, atribu�das a onomatopeias do
canto de p�ssaros: Saci Ceper�, Saci Cerer�, Saci Trique, Saci Siriri,
Saci Serumperer�, Saci Perereca, Saci Sater�, Saci Mofera, Saci Saper�, Saci Sader�, Saci Patar�, Saci Sia-Teresa.
Lobato (2008), todavia, aceita mais a sugest�o de
Manequinho Lopes: viria do Tupi �aa cy perereg, olho mau
saltitante, mas salienta que a etimologia n�o ficou comprovada. O nome, no
caso, indicaria que o duende possui �olhos doentes� e, portanto, sempre
vermelhos. Curioso � perceber que a vis�o, sempre ligada � percep��o e a
capacidade de discernir � falha nesta interpreta��o do saci, fazendo com que as
fronteiras entre certo e errado n�o fossem facilmente distingu�veis para ele.
A miopia, por outro lado, tamb�m prejudica a ag�ncia.
Algo que n�o percebemos na etimologia proposta por Teodoro Sampaio. �Negrinho
irrequieto e mal�fico, tendo um dos olhos doente (�a-�y)
e outro muito vivo e buli�oso (�a-perer�)� (SAMPAIO, 1901,
p. 311.) Diferente do Perer� de Lopes, o Saperer�
carregaria em si a dualidade do olho bom e do mau. Como as l�nguas ind�genas
s�o baseadas na oralidade, n�o na escrita, isso quer dizer que o texto escrito
exige forma fixa, enquanto o oral permite que os v�rios entendimentos coexistam
ao mesmo tempo e na mesma hist�ria.
H� ainda outra sugest�o de origem aut�ctone: deriva��o
do mito Guarani do Yasy Yater�
que, conforme Juan Ambrosetti, significa �fragmento
da lua�. N�o a lua rom�ntica e acalentadora, mas masculina, enganosa e
sedutora. Os primeiros registros tanto de Saci, quanto de Yasy
s�o contempor�neos; datam da segunda metade do s�culo XIX. Imposs�vel afirmar
com certeza qual mito antecedeu o outro, ainda que o consenso indique a origem
ind�gena. No entanto, apesar da proximidade dos nomes, o processo de deriva��o
– com supress�o de mitemas e acr�scimo de
outros – gerou mitos completamente distintos. Ambrosetti
(1894, p. 135), ao descrever o mito do Yater�, o faz
com os seguintes termos:
Um
an�o loiro, bonito, que anda coberto por um sombreiro de palha e levando um
bast�o de ouro em sua m�o. Seu of�cio � o de roubar os meninos de colo, que
leva para o monte, lambe, brinca com eles e logo os abandona envoltos em
trepadeiras. [...]. N�o falta quem assegure que ele rouba tamb�m as mulheres
bonitas, que s�o igualmente abandonadas, e que o filho que nasce desta uni�o,
com o tempo, tamb�m ser� um Yasy Yater�.
N�o
se pode ignorar que o duende Guarani ser descrito como loiro rende, de
imediato, o qualificativo de �bonito�, enquanto a feiura � frequentemente
atribu�da ao saci. Neste relato, em espec�fico, n�o se fala da cor de sua pele;
mas � frequentemente descrita como p�lida feito o sat�lite terrestre. J� no
pr�prio Inqu�rito, beleza � um atributo mencionado apenas uma vez quando
atribu�da ao saci, enquanto que �feio� ou �horr�vel� – de maneira
expl�cita e impl�cita – s�o recorrentes. No depoimento 59 temos um
exemplo desta feiura para o informante: cara quadrada de preto velho, nariz
chato, olhos vermelhos e embriagados, orelhas enormes, l�bios grossos, boca
torta de fumante (LOBATO, 2008, p. 298). S�o as mobiliza��es do mitologema do Escravo – onde constelam imagens
ligadas � ra�a, � captura, � servid�o for�ada quando a carapu�a � tomada.
Em um trabalho pioneiro, Renato Queiroz comparou todos
os adjetivos e qualificadores ligados ao saci no texto fonte organizado por
Lobato com uma pesquisa de campo que desenvolveu no interior de S�o Paulo cerca
de 70 anos ap�s a publica��o do Inqu�rito. Levanta com isso o argumento
para sua cr�tica introdut�ria: o Inqu�rito, enquanto campanha organizada
por um ve�culo de imprensa, oferece um recorte elitista dos depoimentos. Para ele,
o mito se ajustava perfeitamente aos interesses ideol�gicos de setores da
classe dirigente da �poca no sentido de discriminar simultaneamente negros e
caipiras. As refer�ncias ao Saci e suas a��es reproduziriam a maior parte dos
estere�tipos depreciativos com os quais s�o definidos os negros na sociedade
brasileira. A pr�pria falta de perna indicaria essa defici�ncia como
mais um elemento de desaforo (QUEIROZ, 1987, p. 70).
Por outro lado, em seu trabalho de campo que buscava
um recorte caipira, Queiroz encontra varia��es que julga consider�veis nas
descri��es do mito. O duende continua negro, mas menos demon�aco e animalesco.
E �n�o cont�m qualquer refer�ncia ao �fartum peculiar aos negros� e muito menos
ao odor de enxofre, que tanto incomodavam os olfatos sens�veis dos informantes
de Monteiro Lobato� (QUEIROZ, 1987, p. 75).
O antrop�logo se questiona como foi poss�vel que um
diabrete preto, perneta e migrante rural acolhesse tanta simpatia em uma
sociedade t�o profundamente marcada pelo preconceito racial, seguidora de
princ�pios crist�os e �vida pela urbaniza��o (QUEIROZ, 1995, p. 142). Para ele,
a resposta foi uma paulatina domestica��o do saci, que se tornou mais moleque,
perdendo tra�os assustadores e diab�licos, num processo que exploramos ao
refletir sobre a narrativa can�nica. Em seu racioc�nio, entre imagens de
bandido, malandro e buf�o, o saci continua refletindo o mesmo lugar destinado
aos negros nas narrativas. A dignidade e respeitabilidade permaneceriam, assim,
�exclusivas aos brancos� (QUEIROZ, 1995, p. 147).
Outro ponto de interesse na pesquisa de Queiroz est�
na forma como sugere a rela��o do mito do saci com a popula��o negra. Esta
liga��o se daria fundamentalmente por uma perspectiva utilitarista. Presume ele
que os escravos �tivessem grande interesse em manipular a figura do moleque
travesso, atribuindo �s suas peraltagens uma s�rie de
ocorr�ncias – pequenos furtos, quebra de utens�lios etc. – pelas
quais, n�o fosse o Saci, acabariam sendo mais seriamente responsabilizados e
punidos� (QUEIROZ, 1987, p. 92).
A an�lise materialista de Queiroz certamente � v�lida,
mas cabem ressalvas. Primeiramente, por ignorar o valor simb�lico das
narrativas, como se as a��es concretas estivessem descoladas de uma
movimenta��o do mito no imagin�rio – ou como se o imagin�rio n�o tivesse
consequ�ncias concretas. Para al�m disso, esteve ausente tamb�m na sua leitura
o fato de que o mito n�o � est�tico, mas din�mico. Ao analisar qualquer mito
d�cadas ap�s um primeiro estudo, a degrada��o ou incorpora��o de mitemas � inerente ao objeto. Quem se domesticou foi o saci
ou a sociedade? O racismo n�o desapareceu, � claro, mas escamoteia seu rosto.
Vale apontar: o depoimento que abre o Inqu�rito
� assinado por uma mulher de fam�lia negra e prolet�ria, que incorpora no texto
refer�ncias raciais que hoje percebemos racistas (LOBATO, 2008, p. 41). Em
diversos depoimentos, os depoentes entrevistam informantes de classes pobres,
v�rios negros, e incorporam o relato em linguagem direta, mimetizando a
oralidade e a pros�dia dos informantes. E mesmo esse grupo atribui descri��es
recorrentes no que diz respeito ao mito: feiura, fedor, apar�ncia animalesca,
etc. Um exemplo ilustrador de uma realidade da �poca: o racismo n�o era um
pecado da elite que assinava o Estad�o, mas uma condi��o de tal maneira
imbricada no pensamento que emergia em todas as inst�ncias do social, nas
ci�ncias, na elite branca e no proletariado negro.
O racismo d� forma ao registro, mas ser� que tamb�m
afeta os mitologemas, as estruturas que fundamentam o
mito? N�o seria essa uma redu��o ao mitologema do
Escravo? Veremos a seguir.
A mitocr�tica
Na investiga��o dos relatos do Inqu�rito, relacionamos
os seguintes mitologemas: o Ind�gena, o P�ssaro,
o Dem�nio, o Her�i, o Transgressor e o j� abordado Escravo.
A refer�ncia ao saci ind�gena, cuja origem Tupi-Guarani exploramos acima,
aparece no texto apenas nos textos introdut�rios escritos por Lobato ou nos
introitos de Manequinho Lopes, ambas tentativas de racionalizar o mito.
Entretanto, encontramos alguns entrecruzamentos espa�ados com os mitemas evocados pelo Yasy: em
especial o do Sequestro e da Sedu��o. O depoimento 10 � o �nico
que fala de um saci mais sexualizado, tentador de
mo�as, mas sem refer�ncias a gravidez (LOBATO, 2008, p. 75). Por outro lado, os
verbos �atrair�, �sumir� e �arrastar� para o mato repetem-se ao longo do texto,
sendo aquele que sofre a a��o um grupo de crian�as, animais e, em uma �nica
men��o, as �crioulas� (LOBATO, 2008, p. 354). Atravessamentos entre Saci e Yasy se mostram claramente no depoimento 53, em que o
duende � descrito como negro, mas com cabelos cor de ouro e portando um peda�o
de pau.
No mitologema do P�ssaro,
encontramos a for�a da origem ornit�loga. Oito depoimentos falam sobre o saci
se transformar em p�ssaro, numa forma frequentemente ligada � tristeza e
melancolia, a um castigo ou ao envelhecimento. Ao observar os sons atribu�dos
ao saci, curioso � perceber que, com exce��o do depoimento 70, o cantar do
p�ssaro � sempre descrito como lamentoso, transmitindo toda sua dor, enquanto o
assovio do duende, em nove das dez vezes em que � mencionado, � descrito como zombeteiro,
estridente e desafiador.
Enquanto
o saci ave chora de tristeza, o saci Transgressor diverte-se �s gargalhadas e
assovios. Mais do que um buf�o, � um profanador, e concentra a��es vinculadas
ao rompimento de proibi��es e de interditos. Seu habitat s�o as
encruzilhadas, ou as estradas que percorre sempre nos hor�rios de transi��o
– tabus frequentes no imagin�rio popular. Saci circula �s desoras, nas
horas mortas ou nas �horas de ave Maria�[18], al�m de
perseguir quem trabalha em dias santos. O rompimento da interdi��o � sua norma,
mas tamb�m sua maldi��o. � filho de Jabiru com mulher que casa tr�s vezes ou
afilhado de mulher separada (depoimento 24) – reflexo das imagens que um
casamento desquitado gerava sobre a figura feminina. Glut�o, devora canjica
rapidamente apenas para regurgit�-la na panela dos homens (LOBATO, 2008, p.
235). Beberr�o incorrig�vel, seca as adegas de vinho e depois as preenche novamente
com urina (LOBATO, 2008, p. 43). Uma mobiliza��o t�pica do arqu�tipo do Trickster.
Para Queiroz, o trickster assume
muitas vezes o papel do bobo da corte. Um personagem a quem � institu�do o
direito de romper a norma, quebrando apar�ncias e ultrapassando barreiras que
ningu�m da sociedade ousaria cruzar. Entretanto, por meio desse processo
cat�rtico que o trickster representa, a ordem seria
na verdade refor�ada. �E ainda com o
m�rito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso
as normas, os c�digos e os interditos viessem a se dissolver� (QUEIROZ, 1991,
p. 98). Seria este o caso do saci?
John Roberts, em um livro dedicado a compreender a
distin��o entre o trickster divino dos nativos
africanos para o trickster profano dos negros da
di�spora, indica que o trajeto antropol�gico do contexto da escravid�o gerou
transforma��es na forma como o arqu�tipo � mobilizado (ROBERTS, 1993). Sua
chave de leitura � a escassez: na �frica, escassos eram os recursos, fazendo
que ali se proliferassem hist�rias em que a ast�cia era o caminho para atingir
a sobreviv�ncia e a bonan�a. J� nos Estados Unidos escravagista, a falta era de
liberdade. A ast�cia, ent�o, era a arma para resistir � opress�o. Nesse
contexto, o trickster assumiria um outro papel
arquet�pico para as popula��es em restri��o de liberdade: o de Her�i.
Quatro vezes o saci � chamado de �her�i� pelos
depoentes, sendo um deles o Her�i das capoeiras – no sentido de matas (LOBATO,
2008, p. 274) e em outro como o Her�i da sexta-feira, indicando a rela��o com
os per�odos de transi��o (LOBATO, 2008, p. 348). Mas isso pouco diz. Quando
olhamos para as fun��es estabelecidas pelo saci nas narrativas do Inqu�rito,
percebemos uma rela��o bem mais complexa. Saci � o guardi�o dos segredos, � o
protetor da Flor de Samambaia – capaz de realizar o desejo de quem a
encontrar (LOBATO, 2008, p. 250). � ainda um doador de riquezas, um ente que
auxilia no casamento e na resolu��o de causas perdidas com muito mais
facilidade que os santos, ocupados demais com assuntos celestes (LOBATO, 2008,
p. 295). Saci profano � saci pr�ximo, terrestre, capaz de agir por n�s.
�
especialmente exemplar o relato em que uma ex-mucama
relembra quando era obrigada a fazer cafun� na cabe�a de sua ama enquanto esta
rezava o ter�o. Acarinhada na cabe�a, a mulher acabava sempre dormindo no meio
do processo, e a escrava era obrigada a aguardar que ela acordasse para
continuar velando sua ora��o. Certa vez, em meio a um cochilo, a ama foi
visitada em sonho por um saci que pregou nela uma solene bofetada. Desde
ent�o, conta, a mulher nunca mais dormiu no ter�o. Tempos depois, a negra
assumiu: �o saci foi essa m�o que est� aqui!� (LOBATO, 2008, p. 187). Respiros
de liberdade em um contexto de restri��o, soprados pelos ventos de mudan�a do
duende.
O imagin�rio da noite faz concentrar no saci v�rios
elementos que transparecem no Inqu�rito: orelhas de morcego; olhos como
dos bichos noturnos; dentes pontiagudos e unhas enormes como fera. Em algumas
vers�es, seu p� termina em uma garra de corvo, recuperando o aspecto da ave de
mau agouro. Em outras, p�s, chifres e barbas de bode far�o eco aos dem�nios
europeus. Por outro lado, n�o � apenas aos seres da noite que o saci �
comparado. Os leitores descrevem o saci como sendo esperto como caxinguel�,
mais r�pido que veado, e com vis�o mais precisa que da coruja. S�o met�foras
comparativas, � claro, n�o descri��es f�sicas, mas com isso percebemos tra�os
positivos tamb�m presentes no relato.
A peneira, que na narrativa can�nica se tornou o
grande objeto da captura do saci, quase n�o � mencionada no Inqu�rito.
Quem faz as vezes de artefato � um ros�rio bento – tanto de contas quanto
um improvisado, feito de capim. A peneira s� captura se for de cruzeta, ou
seja, se trouxer uma cruz segurando as tramas da palha. Enfim, percebemos, o
que � capaz de tirar a liberdade do saci n�o � nada al�m do componente religioso.
Essa
avers�o, que mobiliza o mitologema do Dem�nio, traz contradi��es
curiosas. V�rios relatos o descrevem como filho do dem�nio, parente do diabo,
alcoviteiro do dem�nio ou como �satan�s regenerado�. No entanto, � igualmente
comum dizer que o mito � incapaz de qualquer maldade grande. Mais ainda, um dos
depoimentos mais conhecidas diz que o saci era um dem�nio que fugiu do inferno
e que recebeu do pr�prio Deus uma carapu�a capaz de torn�-lo invis�vel para que
possa continuar mantendo dist�ncia das hostes infernais (LOBATO, 2008, p. 129).
O fato inquieta um depoente, que manifesta: �Como dindinha conciliava sua f�
cat�lica e suas rela��es com o capetinha?� (LOBATO, 2008, p. 295).
Ocorre que o caboclo sempre teve uma rela��o dual com
o dem�nio na narrativa oral. Era este o grande pai da maldade, mas era ao mesmo
tempo um inimigo tr�gico cuja derrota sempre estava assinalada. H� todo um
ciclo de hist�rias do Diabo Logrado na literatura oral (CASCUDO, 2012). O
dem�nio, pai da mentira e senhor da ast�cia, acabava enganado pelo her�i. Era o
povo que atestava assim sua pr�pria capacidade e intelig�ncia – desde
que, � claro, conhecedor da tradi��o.
Considera��es finais
Ao reintegrar os mitemas que
circundam o mito do saci, percebemos que, nos termos de Gilbert Durand, a an�lise feita por Renato Queiroz leva o mito �
heresia. Amputa-o n�o da perna, mas de todos os outros mitemas
que n�o os ligados � negritude e escravid�o. O saci � descrito no livro como
feio, insidioso, bestial, mas tamb�m como inteligente, veloz, amigo, protetor.
Amaldi�oado e aparentado do dem�nio, � tamb�m aben�oado pelo alt�ssimo. Castiga
os negros, mas tamb�m os vinga. Com sua magia, capaz de invadir qualquer buraco
de fechadura, � imune �s regras. Rompe suas correntes e a dos que enxergam nele
imagens de seus pr�prios anseios de liberta��o.
Quando a luta � dif�cil, disfar�a-se de p�ssaro e vai
chorar suas dores nas brenhas. Mas logo volta, recupera o riso e faz ecoar bem
alto seu deboche aos poderosos. Quem pode derrot�-lo � somente o povo, dotado
de ast�cia e tradi��o. Ainda assim, ele sempre volta.
Elemento importante tamb�m � a perna que falta. Nunca
descrita como defici�ncia, mas como peculiaridade. Verbos ligados ao saltar,
pular, correr s�o dos mais populares aos ligados ao saci. O �nico p� gera uma
rela��o de homologia com o redemoinho e o furac�o, que tamb�m tocam o solo em
um �nico ponto. Sua aus�ncia � tamb�m seu poder.
Cascudo (2012) nos lembra que a carapu�a do saci �
s�mbolo de liberdade no Ocidente desde a Roma antiga, quando o pil�u vermelho – artefato sagrado da deusa Libertas –
era oferecido aos escravos que ganhavam liberta��o. Tempos depois, o objeto
seria apropriado pelos grandes movimentos libert�rios, como a Revolu��o
Francesa e a Guerra Civil Americana. No entanto, muito antes disso, os duendes,
gnomos e trasgos j� vestiam o gorro encarnado. S�o, afinal, livres enquanto
for�as da natureza. N�o � por acaso que para escravizar um saci � preciso tomar
sua carapu�a. Sua grande fonte de magia � a liberdade.
Por que o saci permanece atual? Por que ainda hoje
comunica com tantos brasileiros? Ora, os poderes estabelecidos podem ser
outros, mas as din�micas de domina��o e subordina��o permanecem evidentes. As
classes prolet�rias e os grupos negros e marginalizados continuam � merc� de
uma elite cientificista, economicista e racista. Os ventos que o saci comanda
sopram hoje por todo o Brasil. � ele, afinal, este her�i trapaceiro que chora
por n�s, mas tamb�m sabe rir. Que rompe com o estabelecido e que pode at�
trazer o caos, mas com a certeza de que com ele tamb�m vem a mudan�a.
Refer�ncias
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[Recebido: 30 dez 2020 –
Aceito: 18 mar 2021]
[15] Doutor em Comunica��o e
Informa��o pela UFRGS, mestre em Jornalismo pela UFSC. Pesquisador de
p�s-doutorado da UNEB. Contato: andriolli_costa@hotmail.com.
[16] Cidade da regi�o
metropolitana de S�o Paulo de onde veio o barro.
[17] Quem sugere a
etimologia a Lobato � Manequinho Lopes, possivelmente influencia por O Tupi na Geografia Nacional, de
Theodoro Sampaio, cuja segunda edi��o foi lan�ada em 1914.
[18] Conforme a
tradi��o portuguesa, o arcanjo apareceu para Nossa Senhora �s 18h. Por isso
sempre nesse hor�rio o sino soava e os trabalhos eram interrompidos.