METADE CARA, METADE MSCARA: MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE INDGENA NA OBRA DE ELIANE POTIGUARA

 

METADE CARA, METADE MSCARA: COLLECTIVE MEMORY AND INDIGENOUS IDENTITY IN THE WORK OF ELIANE POTIGUARA

 

Joel Vieira da Silva Filho[39]

https://orcid.org/0000-0001-9895-99

 

Cristian Souza de Sales[40]

https://orcid.org/0000-0002-9377-67

 

 

Resumo: Este texto investe numa discusso acerca das relaes existentes entre memria coletiva e identidade indgena em Metade Cara, Metade Mscara da escritora indgena contempornea Eliane Potiguara. Metade Cara, Metade Mscara uma obra de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando lendas, fico, testemunhos, depoimentos e poemas. Atravs da narrativa de deslocamento e processo diasprico da escritora, destacamos como as memrias individual, coletiva e as identidades se incorporam e se encenam poeticamente. O trabalho evidencia como os poemas operam em favor da preservao da memria coletiva e da identidade dos povos indgenas. Na potica da escritora, as memrias e identidades performadas do sustentao a outros saberes sobre os povos indgenas, os quais se diferenciam das verses disseminadas pelas epistemologias eurocentradas. Por fim, o texto realiza um estudo terico-crtico que dialoga com os seguintes autores: Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku (2018) como aporte terico principal.

Palavras-chave: Literatura indgena. Poesia indgena. Eliane Potiguara. Memria. Identidade.

 

Abstract: This text invests in a discussion about the existing relations between collective memory and indigenous identity in Metade Cara, Metade Mscara, by contemporary indigenous writer Eliane Potiguara. Metade Cara, Metade Mscara is an autobiographical work, of a hybrid genre, interspersing legends, fiction, testimonies, depositions and poems. Through the displacement narrative and diasporic process of the writer, we highlight how individual/collective memories and identities are incorporated and acted out poetically. The work shows how the poems operate in favor of preserving the collective memory and identity of indigenous people. In the writer's poetics, the performed memories and identities support others knowledges about indigenous people, which differ from the versions disseminated by Eurocentric epistemologies. Finally, the text conducts a theoretical-critical study that dialogues with the following authors: Halbwachs (1990); Hall (2006); Munduruku (2018), among others.

Keywords: Indigenous literature. Indigenous poetry. Eliane Potiguara. Memory. Identity.

 

 

Da oralidade escrita

A literatura indgena contempornea um lugar utpico (de sobrevivncia), uma variante do pico tecido pela oralidade; um lugar de confluncia de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonizao (GRANA, 2013, p. 15).

 

Podemos dizer que a literatura escrita indgena tem se consolidado como um movimento esttico-literrio e poltico no Brasil. Mas, anteriormente escrita, a literatura indgena era compartilhada atravs da oralidade ou da tradio oral. Assim, as narrativas, histrias e saberes que antes eram transmitidos de gerao em gerao apenas por meio da oralidade, agora tambm circulam atravs da escrita. Portanto, uma caracterstica significativa da literatura escrita indgena sua estreita e profunda relao com a tradio oral.

A oralidade indgena entendida como conjunto de costumes, crenas e rituais das diversas comunidades indgenas partilhados atravs da voz. Por meio do conhecimento oral, ou seja, de uma srie de cnticos, toantes, literaturas (de diferentes etnias), os indgenas transmitiam de gerao em gerao esses conhecimentos.

Daniel Munduruku, escritor indgena, autor de diversos livros e defensor da causa indgena, afirma que a escrita uma conquista recente para a maioria dos 305 povos indgenas que habitam nosso pas desde tempos imemoriais (MUNDURUKU, 2018, p. 81).

Nesse contexto, Graa Grana, escritora indgena brasileira, defende o espao da literatura indgena como um lugar de autoafirmao cultural, de forma que mesmo sendo produzida em meio a muito silenciamento e exilamento, em paralelo a colonizao, buscou preservar memrias, tradies, formas de vida e cosmologias (GRANA, 2013). Na memria dos mais velhos, considerados mais sbios, o tempo passado e presente se encontram para atualizar os repertrios.

De tal maneira, a palavra falada era e ainda transmitida nas comunidades, colaborando para que a tradio indgena se mantenha forte. O elemento oral partilhado em comunidade fortifica a memria e o conhecimento ancestral herdado, de forma que os ancios colaboram frequentemente para a produo dos textos. As vozes dos ancios e dos ancestrais refletem na escrita, conferem ao texto um carter memorial e identitrio.

Nesse sentido, Paul Zumthor (2007) assevera que, por meio da voz, ns nos situamos no mundo; sendo assim, a voz indgena situa as tradies de modo a no perder toda uma vasta produo oral que est em constante movimento na memria dos mais velhos e que est sendo passado para os mais jovens[41]. Segundo Zumthor (1989, p. 20), h trs tipos de oralidade, associadas a aspectos culturais diferenciados:

a) primria, sem relao alguma com a escritura, relaciona-se a sociedades grafas; b) segunda, quando a escritura prevalece sobre os aspectos orais, condicionando, a partir de uma cultura erudita, as formas de expresso; c) mista, quando o oral se manifesta de forma parcial e com retraso em relao ao escrito.

De tal forma, sendo a oralidade um ato espontneo, natural; com a ausncia de uma literatura grfica, de ordem alfabtica, o registro oral dos indgenas nasceu intimamente na fala, como elemento de preservao da tradio. Assim, a oratura indgena funcionou/funciona como todo conjunto de conhecimento daquilo que esteve/est preservado na memria dos povos indgenas.

Com o desenvolvimento da literatura indgena escrita, no se pode dizer que a oralidade foi desprezada e esquecida. O conhecimento oral a mola propulsora para a produo literria indgena. Assim, a literatura escrita no existiria sem a literatura oral, visto que ambas se correlacionam, pois, a escrita no chega para ser predominante, ela chega como auxiliar e veculo para a expresso de toda uma tradio que se estabelece por meio da oralidade (DORRICO, 2018, p. 113).

Da oralidade ao alcance da escrita, em relao identidade e memria, enfatizamos que as literaturas de autoria indgena so resultado da ancestralidade, e reforam o pertencimento tnico e a valorizao da luta poltico-social-literria indgena. Diversos so os escritores indgenas que fortalecem o conhecimento ancestral por intermdio dos textos. Autores como Eliane Potiguara, Graa Grana, Mrcia Kambeba, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Auritha Tabajara, Olvio Jekup e tantos outros, celebram ainda mais a literatura dos povos indgenas brasileiros.

De tal forma, neste texto, nos interessa a produo literria da escritora indgena Eliane Potiguara. Por meio da obra Metade Cara, Metade Mscara (2019), de cunho autobiogrfico, de gnero hbrido, entremeando lendas, fico, testemunhos, depoimentos e poesias, evidenciaremos como os poemas contribuem para o fortalecimento da memria coletiva e da identidade dos povos indgenas.

Percebemos que a potica de Eliane Potiguara carregada de elementos da resistncia que mulher indgena, bem como se abastece da fora memorial, ancestral e identitria. As narrativas transitam por espaos vividos pela escritora, desde o processo diasprico de sua famlia at o seu nascimento em uma terra distante. A isso, importante salientar que

O projeto literrio da escritora, alicerado na tradio e na sabedoria ancestral, rompe com o silenciamento secular dos povos originrios e se apresenta como alternativa para a construo de uma narrativa plural e no estigmatizante da ptria brasileira, a partir de uma cosmoviso indgena feminina (COSTA, 2020, p. 17).

            As provocaes presentes em Metade Cara, Metade Mscara denunciam as perversidades da colonizao e buscam romper com os estigmas impostos aos povos indgenas. Em relao voz de Eliane Potiguara, outras vozes tambm so reverberadas, uma coletividade emanada, assim, a potica da escritora, presente nos diversos gneros da obra, revigora a luta indgena e anseia pelo direito de liberdade, respeito e igualdade.

 

 

Eliane Potiguara: uma voz indgena feminina

Que fao com minha cara de ndia?

E meus cabelos

E minhas rugas

E minha histria

E meus segredos (POTIGUARA, 2019, p. 32).

 

Descendente dos Potiguara do Rio Grande do Norte, Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, uma mulher indgena, me, escritora e militante, nascida no Rio de Janeiro, em 1950. Uma das escritoras pioneiras da literatura indgena brasileira, tornou-se uma das principais vozes na luta pela preservao e garantia dos direitos dos povos indgenas, e tambm na busca pelo respeito e valorizao das mulheres.

Eliane Potiguara, assim como diversos indgenas brasileiros, tambm foi vtima dos resqucios da colonizao. Durante a infncia, devido s perseguies, enfrentou contnuas adversidades, pois sua famlia foi obrigada a migrar para Pernambuco. Foi no estado do Pernambuco que nasceu a me de Eliane Potiguara, a pequena Elza, filha de Maria de Lourdes, fraquinha e enferma (POTIGUARA, 2019, p. 24), me com apenas 12 anos, vtima de um estupro do colonizador. Assim, as mulheres da famlia de Potiguara saram de sua terra natal, de sua aldeia, para sobreviverem.

Aps a migrao para as terras pernambucanas, a famlia decidiu partir para o Rio de Janeiro. A violncia ocorrida nas terras Potiguara e em diversos espaos indgenas do nordeste brasileiro forou diversas famlias, como a de Eliane, a migrarem para outros espaos, em grande parte, para as periferias das grandes cidades sulistas. O processo de estadia na capital carioca foi complicado e as mulheres da famlia Potiguara passaram por vrias adversidades. A pequena Elza cresceu e quando jovem, engravidou e deu luz a mulher que hoje chamamos Eliane Potiguara, que foi criada por sua av Maria de Lourdes, enquanto sua me Elza trabalhava.

Eliane foi criada em um quarto trancado e com sua av aprendeu coisas diversas, maravilhosas, e foi assim que Potiguara comeou a escrever, absorta nas histrias da prpria av e no sentimento que tudo isso envolvia. As histrias reais de sua av a levaram para um mundo mgico e literrio (POTIGUARA, 2019, p. 26-27). Potiguara no passou por adversidades apenas durante sua infncia, pode-se dizer que, durante toda a sua vida, ela travou uma luta constante pela sobrevivncia.

Formou-se em Letras pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), fundou o GRUMIN (Grupo Mulher-Educao Indgena) e foi tambm indicada para o Projeto internacional Mil Mulheres do Prmio Nobel da Paz. Ao mesmo tempo em que lutava pelos direitos dos povos indgenas, buscou conectar-se com sua ancestralidade.

No poema Identidade Indgena, por exemplo, escrito em 1975 em memria dos seus avs, que marca essa conexo com seu povo, Eliane Potiguara traa um percurso autobiogrfico e menciona todo o processo de luta e resistncia dos seus parentes. Segundo Grana (2013, p. 78), tal poema [...] inaugurou o movimento literrio indgena contemporneo no Brasil [...]. No incio do poema, a voz autobiogrfica evoca uma memria coletiva e introduz o primeiro verso com o pronome possessivo (nosso), rememorando os ancestrais. Ao longo do extenso poema, a voz lrica, de tom feminino, declama que nunca esteve e nem est (ou estar) sozinha, pois carrega em si as marcas e os ensinamentos identitrios e memoriais dos ancestrais, como exposto na primeira estrofe:

Nosso ancestral dizia: temos vida longa!

Mas caio da vida e da morte
E range o armamento contra ns.
Mas enquanto eu tiver o corao acesso
No morre a indgena em mim e
Nem to pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direo ao sol.
Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da famlia espoliada
Desacreditada, humilhada
Sem forma, sem brilho, sem fama (POTIGUARA, 2019, p. 113).

O eu-potico retoma a luta dos povos indgenas brasileiros, reforando que, embora o armamento, o poder colonial exista, o compromisso assumido com os ancestrais jamais morre. A voz lrica denunciar no decorrer dos versos, todo o processo de invisibilizao dos indgenas. No entanto, em contraposio ao ato de diminuir os sujeitos indgenas, haver sempre o ato de resistir. Assim, depreende-se que a luta da voz do poema tambm a de Eliane Potiguara.

A conjuno adversativa (mas) presente nos versos dois e quatro, elucida uma voz que, embora saiba dos sofrimentos que enfrentar, no deixar de cumprir o seu compromisso. Tal compromisso mencionado pela voz do poema coincide com a voz da escritora Potiguara, de caminhar sob a orientao dos mortos, dos ancestrais, em direo ao sol, ou seja, libertao, embora carregue tambm em si espoliaes, descrena e humilhaes.

De tal forma, a luta de Eliane Potiguara constitui ato eminentemente poltico, assim como a sua escrita (COSTA, 2020, p. 151) e este ato poltico reverberado nas produes de Potiguara, dentre as quais, citamos: A Terra a Me do ndio (1989); Akajutibir: terra do ndio potiguara (1994); Metade Cara, Metade Mscara (2004); O coco que guardava a noite (2012); O Pssaro Encantado (2014); A Cura da Terra (2015).

De tal maneira, como diz Costa (2020, p. 113), os escritos de Eliane Potiguara adquirem um tom reivindicatrio. Os poemas se tornam lugar de materializao das vozes ancestrais. Assim, a resistncia de Eliane Potiguara est na sua histria de vida, bem como na sua produo literria, de modo que, cada vez mais, povos indgenas e no-indgenas buscam conhecer a luta e a literatura dessa mulher Potiguara.

 

 

Metade Cara, Metade Mscara: uma obra de gnero hbrido

 

A obra Metade Cara, Metade Mscara foi publicada pela primeira vez no ano de 2004 pela Global Editora. composta por sete captulos e conta com vrios gneros de cunho literrio e tambm social, assim, possui uma hibridez marcante. Nesse contexto, a autora apresenta, como mencionado por Marcello Pereira Borgh na orelha do livro: lendas, fico, realidade, testemunhos, depoimentos, e versos autorias.

Este ltimo gnero essencial para a composio do volume, pois desse modo que ser narrada a histria de Cunhata e Jurupiranga e o processo diasprico de tais personagens, que formam um casal que representa simbolicamente as famlias indgenas brasileiras [e] passam por diversas (des)aventuras, em cenrio e tempo mticos, desde o incio do processo da colonizao europeia em solo brasileiro (DE MELO; COSTA, 2018, p. 364-365 [insero nossa]).

Segundo Milena Costa Pinto, Metade Cara, Metade Mscara possui uma transversalidade temtica proveniente da hibridez textual que agrega memria, autohistria, biografia e autobiografia, de crtica, testemunho e denncia (PINTO, 2017, p. 79). Esta hibridez apontada pela pesquisadora e tambm por diversos estudiosos da obra de Potiguara caracteriza esta obra e faz dela um texto de vozes coletivas emanadas em cada gnero presente no livro.

Neste texto, nos interessa, particularmente, alguns poemas presentes em Metade Cara, Metade Mscara, por apresentarem elementos marcantes da literatura indgena em relao com a memria coletiva e a identidade. oportuno destacar tambm a crtica social realizada na obra de Potiguara nos diferentes gneros. De acordo com Pinto, quando costurados, os gneros presentes no livro sero refletidos atravs da hibridez, e daro uma impreciso s definies de cada gnero. Por conseguinte, o carter hbrido no se faz presente apenas no corpo do texto, h marcas de hibridez e de ambiguidade tambm no ttulo do livro, pois, uma metade constituda por uma cara, e, a outra, por uma mscara.

Em sua anlise, Pinto (2017) menciona que tal ambiguidade sugere, a priori, a verso silenciada do indgena, ou seja, a cara, e em seguida, a proposta inventada pelo colonizador, pelo poder dominante, a mscara. Trata-se de uma indgena que carrega em si um rosto dividido, porm, no texto, a cara ter total destaque, pois dela que provm os escritos.

A edio mais recente foi publicada em 2019 pela Grumin Edies. No primeiro captulo, intitulado de Invaso s terras indgenas e a migrao, Eliane Potiguara aborda a separao entre as personagens Jurupiranga e Cunhata e trata sobre a migrao indgena. Para tanto, a autora busca como pano de fundo a sua famlia e o processo de sada do Rio Grande do Norte, passando por Pernambuco at chegar ao Rio de Janeiro.

Potiguara debate tambm questes relativas violncia contra a mulher indgena, ao racismo e intolerncia. H alguns poemas que revelam uma escrita de dor, com marcas de resistncia, como podemos observar no poema Migrao Indgena:

No teu universo de gestos

Teus olhos so mensagens sem palavras

Tua boca ainda incandescente

Me queima o rosto na partida

E tuas mos...

Ah! No sei mais continuar esses cnticos

Porque a mim tudo foi roubado.

Se ainda consigo escrever alguns deles

S fruto mesmo da mgoa que me toma a alma

Da saudade que me mata

Da tristeza que invade todo o meu universo interno

Apesar do sorriso na face... (POTIGUARA, 2019, p. 36).

Neste poema, a voz lrica com caractersticas femininas denuncia o roubo de tudo aquilo que possua. Ao mesmo tempo, a voz potica menciona um outro, e fala sobre os gestos, os olhos, a boca, o rosto e as mos desse outro que ela sente em si, apesar da necessidade de partir, de migrar.

A dor mencionada aparece como dor sentimental, dor da perda, da separao, da saudade. Dor esta que impede que o cntico continue, que as palavras venham. Eliane Potiguara fala que o processo colonizatrio trouxe problemas graves aos indgenas, assim, no poema, enfatizada a dor dos sentimentos, embora saibamos que, com a colonizao tambm vieram enfermidade, a fome, o empobrecimento compulsrio da populao indgena (POTIGUARA, 2019, p. 43). A dor sentida pela voz do poema foi/ sentida por diversos povos que viram seus familiares mortos nas mos do colonizador. O genocdio indgena foi severo, povos morreram por no aceitarem a submisso.

Em relao dor sentida, h tambm o sentimento de mgoa, entremeada com a saudade, ento, estaria a voz do poema perdendo seu amado? O processo colonizatrio separou diversas famlias, casais, filhos, que sentiram a dor da partida, a exemplo da famlia de Eliane Potiguara. No entanto, v-se que a dor sentida precisa ser escondida (escondida para sobreviver?). O sorriso na face mascara insistentemente a tristeza que invade o corao da voz narrativa.

No segundo captulo, Angstia e desespero pela perda das terras e pela ameaa cultura e s tradies, a autora debate sobre as relaes entre a migrao e o racismo enfrentados pelos indgenas, fala tambm sobre os problemas pelo qual passam as mulheres indgenas na luta pelos seus direitos, alm de informar-nos sobre a importncia do GRUMIM para a valorizao desta luta. No terceiro captulo, Ainda a insatisfao e a conscincia da mulher indgena, a autora apresenta poemas que versam sobre a luta e a resistncia feminina.

No quarto captulo intitulado de Influncia dos ancestrais na busca pela preservao da identidade, abordada a importncia da famlia, dos avs e dos antepassados indgenas. Nesse captulo, a personagem Cunhata viaja por diversos espaos e nesse ato de viajar ouve vozes intercaladas e, no meio delas, escuta a voz ancestral (POTIGUARA, 2019, p. 87).

No captulo cinco, que tem por ttulo Exaltao terra, cultura e ancestralidade, Eliane Potiguara narra os deslocamentos de Cunhata e Jurupiranga pela terra, pela cultura e pela ancestralidade, ao passo que apresenta ainda mais o seu processo de vida enquanto escritora indgena.

O captulo seis bastante curto, nele, so abordadas as questes acerca da Combatividade e Resistncia dos povos indgenas, bem como os percalos enfrentados por Jurupiranga. Anterior a isto, no havia menes sobre o paradeiro de Jurupiranga, pois o foco estava em narrar os dissabores de Cunhata. Neste captulo, somos informados das aventuras e percalos pelos quais Jurupiranga passou, bem como o sonho da liberdade, da justia, da paz. J o captulo sete, Vitria dos povos, apresenta o final da narrativa, a unio entre Cunhata e Jurupiranga e o reencontro com a identidade que fora rasurada com a invaso do homem branco.

Metade Cara, Metade Mscara uma obra marcante; nela, Eliane Potiguara narra, poetiza, conta, relata, denuncia, liberta e anuncia o reencontro dos que foram separados. Os valores literrio e social se hibridizam e resultam na grande potencialidade que Eliane Potiguara tem de escrever para se autoafirmar e tambm afirmar os seus parentes indgenas, que lutam constantemente pela valorizao e respeito e pelo reencontro.

 

 

Memria coletiva e identidades indgenas

 

A literatura indgena de Eliane Potiguara funciona como uma ao de reforo da identidade indgena. Em seus escritos, propostos em diferentes gneros, a escritora, no produz algo apartada da identidade herdada dos ancestrais. A proposta literria de Eliane Potiguara no indigenista, literatura escrita por antroplogos, pesquisadores, escritores no indgenas; tampouco indianista, aquela do romantismo brasileiro que props uma representao do ndio pautada no discurso colonial. A literatura escrita por Eliane Potiguara chamada literatura indgena, pois parte de um lugar identitrio prprio; a prpria indgena que a escreve e narra.

Assim, em seus escritos, Potiguara desvincula a imagem do indgena da viso nacionalista e do senso comum, apresenta a identidade indgena em suas narrativas, bem como a memria indgena, levando em considerao seus relatos memoriais e suas vivncias em comunidade e/ou fora dela.

Problematizando o conceito de identidade, em A identidade cultural na ps-modernidade, Stuart Hall buscou distinguir trs concepes de sujeitos identitrios. Para ele, h o sujeito do Iluminismo, que centrado e dotado de razo; o sujeito sociolgico, aquele que necessita dos outros, pois no independente; e o sujeito ps-moderno, o indivduo que no possui uma identidade com fixidez. Assim, debatendo acerca da crise da identidade, o pensador nos prope pensar no no termo identidade, mas, sim, em identificao, como algo que est em andamento. Nesta concepo, entende-se que no h apenas uma identidade ou um processo de identificao, mas, identidades mltiplas e processos diversos de identificaes. Com isso, esse intelectual nos leva a observar que

[...] a identidade realmente algo formado, ao logo do tempo, atravs de processos inconscientes, e no algo inato, existente na conscincia no momento do nascimento. Existe sempre algo imaginrio ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, est sempre em processo, sempre sendo formada (HALL, 2006, p. 38).

Nessa perspectiva, a identidade est sempre em processo de formao, um fazer-se inacabado. A incompletude acontece pelo fato de os sujeitos precisarem estar cada vez mais em processos formativos e de complementao. Quando pensamos em identidade indgena estamos pensando em processos de formao, pois, esta identidade busca apresentar quem esse indgena, quais as suas razes, qual a sua ancestralidade.

Para Grana (2013), a noo de identidade na literatura indgena est associada ideia de deslocamento; a pesquisadora indgena bebe dos estudos de Stuart Hall, que compreende o deslocamento como o processo de dispora. Esse ato de deslocar-se evocar a concepo de diferena e isso dar a esta literatura um carter identitrio, ou seja, por ser diferente, por possuir identidade prpria, ser refletido no texto literrio a conscincia do cidado e da cidad indgena (GRANA, 2013).

No decorrer do tempo, diversos povos indgenas foram obrigados a silenciarem suas identidades pelo fato de serem diferentes, de estarem em dispora. H como exemplo a famlia de Eliane Potiguara que precisou migrar para o Rio de Janeiro e precisou se adaptar a uma identidade cosmopolita.

Em O poder da identidade, Manuel Castells afirma que a identidade uma construo social, marcada por relaes de poder, assim, o autor aponta trs tipos de identidade: a identidade legitimadora, a de resistncia e a identidade de projeto. Aqui, nos interessa a identidade de resistncia, pois nela a identidade dos povos indgenas refletida, inclusive a da escritora Eliane Potiguara.

Assim, Castells (2018, p. 56) prope que a identidade de resistncia foi

Criada por atores que se encontram em posies/condies desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lgica da dominao, construindo, assim, trincheiras de resistncia e sobrevivncia com base em princpios diferentes dos que permeiam as instituies da sociedade [...].

            Esta concepo identitria de resistncia mantm relaes com a identidade vivida pelos povos indgenas brasileiros. Ela processual, como prope Hall (2006), e est em condies de estigmatizao pela lgica da dominao, como citado acima. No entanto, h atos de resistncia e sobrevivncia para manter essa identidade viva, pois ela d origem a formas de resistncia coletiva diante de uma opresso (CASTELLS, 2018, p. 57).

Dessa forma, a literatura produzida por indgenas brasileiros apresenta na sua constituio as suas prprias caractersticas, tanto na forma quanto no contedo (FIGUEIREDO, 2018, p. 130), um contedo prprio, embasado na identidade e na memria e que avana de gerao para gerao. Nessa perspectiva, pensamos a memria como um ato coletivo, no qual, o sujeito estabelece relaes com os que esto ou estiveram consigo.

Pode-se pensar a escrita de Potiguara tambm como uma ao memorial individual, porm h nos textos da autora muito mais do coletivo, da sua famlia, dos seus avs. Em A memria coletiva, o socilogo Maurice Halbwachs aponta que [...] nossas lembranas permanecem coletivas, e elas nos so lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais s ns estivemos envolvidos, e com objetos que s ns vimos (HALBWACHS, 1990, p. 26).

Sendo a memria o elemento que agrega as nossas lembranas e os acontecimentos vividos e que mostra que no estamos ss, fica evidente que a nossa individualidade atravessada pela coletividade daqueles que esto ao nosso redor, em nosso cerco de relaes familiares e afetivas.

Dessa forma, Munduruku (2018, p. 81) prope pensar a memria indgena da seguinte forma:

A memria , pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertrios e encontrar novos sentidos que se perpetuaro em novos rituais que abrigaro elementos novos num circular movimento repetido exausto ao longo de sua histria.

Para Munduruku (2018), a memria resultado do passado – ou seja, da ancestralidade – em sintonia com os saberes atuais, apreendidos no dia a dia dos povos de modo que os movimentos anteriores da histria so repetidos em novos movimentos, atualizando esse conhecimento memorial e preservando-o ao mesmo tempo. Nesse contexto, para os povos indgenas, a memria, em sua gnese , principalmente, realizada de maneira coletiva.

A memria coletiva, ento, entendida como os elementos herdados dos ancestrais e partilhados pelos ancios, pelos pais, seja de forma oral, grfica ou corporal, sendo marca essencial para a construo da potica de Eliane Potiguara. A coletividade reverberada em cada verso, em cada palavra, como vemos em Identidade Indgena, que uma juno da forma potica com a autobiografia, no apenas da escritora, mas, dos seus avs.

Vale mencionar o quanto o conhecimento ancestral, dos mais velhos essencial para a construo do texto literrio indgena, pois o saber, a memria dos avs, um conjunto de memrias coletivas, visto que esses j atravessaram diversos campos da vida e acumularam memrias que os edificaram. O saber dos ancios e a memria que eles possuem articulam-se de modo a garantir a perpetuao da ancestralidade, e o escritor e a escritora indgena, quando escrevem, trazem em si as marcas dos ancios e ancis, colocando no texto aquilo pelo qual os mais velhos j passaram e contaram, dando a essas narrativas um carter esttico.

A potica contempornea de Eliane Potiguara rompe com a ideia de mtrica e prope um poema com estrofes irregulares e com versos soltos, ora extensos, ora curtos. A memria indgena cantada atravs do poema e a irregularidade na organizao no inibe este elemento de aparecer. Para tal, a voz lrica exclama:

Mas no sou eu s
No somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da histria.

Seremos milhes unidos como cardume
E no precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lgrimas
Por quem no nos tem respeito.
A migrao nos bate porta
As contradies nos envolvem
As carncias nos encaram
Como se batessem na nossa cara a toda hora.
Mas a conscincia se levanta a cada murro
E nos tornamos secos como o agreste
Mas no perdemos o amor (POTIGUARA, 2019, p. 113).

A voz do poema reclama os ultrajes j sofridos pelos indgenas, faz um retorno a memria dos parentes que sofreram e reafirma que, embora perseguidos, no aceitaro mais a perseguio, a migrao e as contradies. Inicia a estrofe pensando no futuro, pois no nem est ou estar sozinha, grita: Seremos milhes unidos como cardume. Assim, a voz do eu lrico indgena, at ento individual, comea a apontar uma coletividade e exclamam a ancestralidade coletiva e em seguida o desejo de justia. Justia pelo massacre, pelas lgrimas derramadas, pelos que faltaram com respeito contra esses povos.

A memria coletiva tambm acionada nos versos a migrao nos bate porta e as contradies nos envolvem. Tais versos apontam para o processo diasprico vivido por diversas famlias indgenas, que, embebidos na contradio do amanh, no sabiam se sobreviveriam ao processo. Percebemos que a voz lrica est muito insatisfeita e carrega em si marcas e dores, quando diz: Como se batessem na nossa cara toda hora. No entanto, o ltimo verso da estrofe uma marca potente de valorizao da identidade indgena, pois afirma: mas no perdemos o amor, e assim vemos o quo foi importante o amor herdado dos ancestrais. Adiante, a voz indgena exclama:

Eu viverei 200, 500 ou 700 anos
E contarei minhas dores pra ti
Oh! Identidade
E entre uma contada e outra
Morderei tua cabea
Como quem procura a fonte da tua fora
Da tua juventude
O poder da tua gente
O poder do tempo que j passou
Mas que vamos recuperar [...] (POTIGUARA, 2019, p. 114).

Aqui, a voz lrica dirige a palavra identidade. As dores vividas sero contadas com o intuito de observar no passado sofrido o elemento resistncia indgena. Assim, aponta-se a preservao da identidade indgena, e tambm com grande insistncia o ato de recuperar esta identidade tirada de forma brutal e negligente. A identidade vista como fonte de fora, sendo responsvel pelo retorno indgena. Caso contrrio, a colonizao teria deslegitimado todos os sujeitos indgenas, visto que grande parte foi introduzida em novas identidades, ocidentais, crists, brancas, etc. No entanto, essa luta pela recuperao identitria constante, de forma que, mais adiante, a voz indgena proclama:

Seremos ns, doces, puros, amantes, gente e normal!

E te direi identidade: Eu te amo!

E nos recusaremos a morrer,

A sofrer a cada gesto, a cada dor fsica, moral e espiritual.

Ns somos o primeiro mundo! (POTIGUARA, 2019, p. 114).

A identidade indgena vista no poema como poder, para ento viver, amar e recusar-se a morrer. O verso E te direi identidade: Eu te amo! comprova a relao identitria como mecanismo de fundamental importncia para a construo do sujeito indgena. A memria, no poema, aparece no apenas, mas com maior insistncia, nos elementos de sofrimento, a voz do poema lembra de cada gesto sofrido, de cada dor fsica, moral e espiritual, mas que se recusa a morrer e exclama: Ns somos o primeiro mundo!, ou seja, somos os primeiros que habitavam essas terras, vivamos da partilha e do trabalho, portanto, queremos reencontrar aquilo que foi/ nosso.

Identidade Indgena descende do que fora herdado por Eliane Potiguara dos seus avs e funciona como elemento portador da notcia do reencontro, como reitera Munduruku (2018). No decorrer dos versos, a(s) voz(es) menciona(m) a luta em meio ao processo colonizatrio, os sofrimentos, mas tambm a coragem, a ousadia e a esperana dos povos indgenas. Esperana que provoca luta e resistncia:

A queremos viver pra lutar
E encontro fora em ti, amada identidade!

Encontro sangue novo pra suportar esse fardo
Nojento, arrogante, cruel... (POTIGUARA, 2019, p. 115).

A partir do verso A queremos viver para lutar, notamos que o eu (ns) indgena prope pensar que a luta indgena constante, pensamos esse eu como uma voz coletiva, e o uso do verbo querer na primeira pessoa do plural evoca essas vozes. So vozes que no ficam estagnadas, ao contrrio, encontram na identidade foras, para ento lutarem pelos de ontem, os de hoje e os de amanh. E se recusa a carregar esse fardo da colonizao, que Nojento, arrogante, cruel. A ltima estrofe canta a liberdade e o resgate da memria. A liberdade aparece como uma categoria que existe a partir da ao de lutar. Os indgenas lutam contra as imposies do colonizador e concretizam aos poucos essa liberdade to almejada:

Ns, povos indgenas
Queremos brilhar no cenrio da histria
Resgatar nossa memria
E ver os frutos de nosso pas, sendo dividido
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e desplazados
Como ns (POTIGUARA, 2019, p. 115).

O poema encerra-se clamando por liberdade. Ser livre essencial para manter viva cada vez mais a memria e a ancestralidade indgena. O ato de ser livre s acontece pelo fato de o indgena no aceitar ao de docilizar o seu corpo, esse corpo que possui uma identidade prpria e que no precisa ser moldado em outra identidade. O eu-potico indgena quer viver da identidade e da memria indgena, do resgate, quer brilhar no cenrio da histria, quer resgatar a memria. Embora desplazados, ou seja, deslocados, os indgenas no querem diviso entre os seus, mas, sim, viver na tessitura do acolhimento, da unidade. A identidade e a memria mencionadas no decorrer do poema descende de geraes e a voz coletiva quer preservar esses elementos, que so essenciais para a renovao e preservao da ancestralidade.

O poema Eu no tenho minha aldeia, por sua vez, tambm apresenta elementos memoriais e identitrios, a voz lrica proclama atravs de carter autobiogrfico o fato de no ter uma aldeia[42]. A cada estrofe do poema podemos perceber a voz do eu lrico de carter feminino proclamando que, embora no tenha nascido na sua aldeia, a herana espiritual e ancestral dos antepassados ela possui, est sempre a acompanhando. E, acima de tudo, a voz potica clama por tolerncia, respeito, amor e solidariedade, valores estes que os povos indgenas possuem e reforam a identidade de sujeitos que vivem na coletividade, herana dos ancestrais, como podemos ver na estrofe a seguir:

Eu no tenho minha aldeia

Minha aldeia minha casa espiritual

Deixada pelos meus pais e avs

A maior herana indgena.

Essa casa espiritual

onde vivo desde tenra idade

Ela me ensinou os verdadeiros valores

Da espiritualidade

Do amor

Da solidariedade

E do verdadeiro significado

Da tolerncia (POTIGUARA, 2019, p. 151).

Este poema possui um carter autobiogrfico. Tendo nascido no Rio de Janeiro e sendo criada por sua av, uma matriarca indgena Potiguara, a voz de Eliane se iguala voz do poema, quando diz: Eu no tenho minha aldeia, mas, em seguida, menciona que a sua aldeia a casa espiritual; assim, entendemos que esta casa a av Maria de Lourdes, a herana indgena com quem ela tanto esteve, desde a tenra idade e com quem aprendeu os verdadeiros valores Da espiritualidade/ Do amor/ Da solidariedade/ [...] Da tolerncia.

Assim, neste poema, a voz indgena retorna a um campo memorial, pois, se tratando de uma narrativa com traos autobiogrficos, retorna ao sofrimento da famlia de Potiguara que, quando ameaada, precisou sair do Rio Grande do Norte para sobreviver, mas tambm aos campos de diversas outras famlias indgenas brasileiras que passaram pela mesma situao.

A voz, at ento silenciada, refora na poesia indgena de Eliane Potiguara que a memria dos ancestrais no se perde, ela se mantm viva em cada narrativa e reforada em cada verso. O valor herdado dos antepassados reacende a chama da luta e da busca por respeito, que faz com que Potiguara enquanto indgena desaldeada possa se autoafirmar mulher indgena, sobrevivente da migrao forada e militante da causa indgena, esteja onde estiver. assim que a voz potica conclui o poema:

Ah! J tenho minha aldeia

Minha aldeia meu Corao ardente

a casa dos meus antepassados

E do topo dela eu vejo o mundo

Com o olhar mais solidrio que nunca

Onde eu possa jorrar

Milhares de luzes

Que brotaro mentes

Despossudas de racismo e preconceito (POTIGUARA, 2019, p. 152).

O eu-potico evidencia que possui uma ancestralidade viva atravs da memria herdada dos ancestrais. Por isso, na tessitura narrativa, enaltece a identidade que comeara a ser formada e afirma que: Minha aldeia meu Corao ardente / a casa dos meus antepassados. Assim, reconhece que no est s, mas enxerga tambm que no est imune ao preconceito, ao racismo. No entanto, sonha com uma sociedade sem intolerncia em que poder cantar a voz ancestral, livre de julgamentos e condenaes dos homens brancos.

 

 

Algumas consideraes: outras toantes

 

As textualidades indgenas escritas carregam em si as marcas da oralidade. As narrativas indgenas fazem parte de uma ao hbrida, na qual, oralidade e escrita se entrelaam. Metade Cara, Metade Mscara, por exemplo, traz muito dessa hibridez tanto nos diferentes gneros, quanto nas memrias orais que Eliane Potiguara herdou de sua av Maria de Lourdes.

A produo literria de Eliane Potiguara resgata memrias e sensaes, carrega a marca da migrao, do sofrimento enfrentado por sua famlia, meios dos quais retira tambm a fora para escrever em memria de seus avs, dos seus ancestrais, dos ancios. Trata-se de uma escrita identitria, memorial e ancestral, que desvincula a imagem do indgena das propostas coloniais, do homem branco e proclama a beleza do povo indgena. Os poemas presentes em Metade Cara, Metade Mscara evocam memrias coletivas que foram herdadas por Eliane de sua av, que por sua vez herdou dos seus antepassados, assim, so memrias de processos acumulativos.

Com isso, seja na prosa ou no verso, ler Eliane Potiguara mergulhar pelos espaos dos Potiguara do Rio Grande do Norte, passar tambm pelos aprendizados enquanto ela estava trancada no quarto com sua av no Rio de Janeiro, perceber a luta identitria pela autoafirmao indgena, pensar tambm na luta pelos direitos humanos, das mulheres indgenas, problematizar o racismo e o preconceito e o genocdio dos parentes.

Assim, a escrita de Eliane Potiguara, e, aqui mais precisamente, a poesia dessa mulher indgena, metaforicamente, rio a ser mergulhado. Ao mergulharmos nos rios do Nordeste e do Sudeste atravs de suas memrias, podemos evidenciar que a poesia de Eliane Potiguara proclama a luta do seu povo e o valor identitrio de ser indgena, o que um dia esteve na memria (e ainda est) agora chega tessitura narrativa escrita e nos leva a banhos necessrios de ancestralidade.

 

Referncias

 

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informao. Traduo: Klauss Brandini Gerhardt. So Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

COSTA, Heliene Rosa da. Identidades e ancestralidades das mulheres indgenas na potica de Eliane Potiguara. 2020. 265f. Doutorado (Estudos Literrios) Universidade Federal de Uberlndia, Minas Gerais, 2020.

DE MELO, Carlos Augusto; COSTA, Heliene Rosa da. Identidades Femininas em Movimento na Potica de Eliane Potiguara. In: Revista Letrnica. Porto Alegre/RS, v. 1, n. 3, p. 361-374, jul./set. 2018.

DORRICO, Julie. A leitura da literatura indgena: para uma cartografia contempornea. Revista Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade Igarap, Porto Velho, vol. 5, n. 2, 2018, pp. 107-137.

FIGUEIREDO, Eurdice. Eliane Potiguara e Daniel Munduruku: por uma cosmoviso amerndia. Estudos de literatura brasileira contempornea. Niteri, n. 53, p. 291-304, jan./abr. 2018.

GRANA, Graa. Contrapontos da literatura indgena contempornea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edies, 2013.

HALBWACHS, Maurice. A memria Coletiva. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., 1990.

HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MUNDURUKU, Daniel. Escrita indgena: registro, oralidade e literatura: o reencontro da memria. In: Julie Dorrico, Leno Francisco Danner, Heloisa Helena Siqueira Correia e Fernando Danner (Orgs.). Literatura Indgena Brasileira Contempornea: Criao, Crtica e Recepo. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018, p. 81-83.

PINTO, Milena Costa. Literaturas de autoria indgena: Metade cara, Metade mscara. 2017. 132f. Dissertao (Mestrado em Estudo de Linguagens). Departamento de Cincias Humanas, Universidade do Estado da Bahia – Campus I, Salvador, 2017.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade mscara. Rio de Janeiro. 3. ed. GRUMIM, 2019.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo, leitura. Traduo de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

ZUMTHOR, Paul. La letra y la voz. Madrid: Ctedra, 1989

 

[Recebido: 16 ago 2020 – Aceito:  02 jul 2021]

 



[39] Mestrando em Estudos Literrios no Programa de Ps-graduao em Lingustica e Literatura da Universidade Federal de Alagoas.

[40] Doutora em Literatura e Cultura-UFBA e Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus III – Juazeiro.

[41] Usamos no decorrer deste texto as expresses: voz indgena, eu indgena e eu-potico para nos referirmos ao eu-lrico dos poemas.

[42] O poema conta com cinco estrofes, no entanto, aqui, traremos apenas a primeira e a ltima estrofes.