A Literatura
de Cordel como reivindicao do direito Literatura
Cordel Literature as a claim to the right
to Literature
Letcia Fernanda da Silva Oliveira[19]
https://orcid.org/0000-0003-1821-37
Resumo: O presente artigo
prope a discusso de dois clebres ensaios do socilogo Antonio
Candido analisando a Literatura de Cordel e a funo social que esta
desempenha. As reflexes propostas pelo crtico literrio abordam importantes
questes como as desigualdades sociais e a literatura como forma de humanizar o
homem. Sendo sempre associada s belas artes, a literatura foi constantemente
reafirmada como uma espcie de saber elevado e forma de edificao do homem,
mas o que pretendemos demonstrar que mesmo nas culturas populares, como a
Literatura de Cordel, quando os poetas tomam a voz e reivindicam a literatura
como forma de fruio para as camadas mais populares, este direito acessado
por todos e no apenas pelas classes mais elevadas. Abordando especificamente o
contexto em que esta literatura surge no Brasil, o comeo do sculo XX,
demonstramos como os poetas foram fundamentais para que o seu pblico de
leitores/ouvintes pudesse desfrutar da arte e usufru-la como um bem.
Palavras-chave: Literatura de Cordel; Antonio Candido; Direito literatura; Fruio; Humanizao.
Abstract: This article
proposes the discussion of two
renowned essays written by the
sociologist Antonio Candido
in contraposition to Cordel
Literature and the social role that it performs. The thoughts proposed by the
literary critic address important questions such as social inequities and the literature as a way to humanize men. Always associated with the fine arts,
literature was constantly reaffirmed as a type of superior knowledge and a form of edifying
men, but what we intend
to demonstrate is that even
in popular cultures, such
as Cordel Literature, when poets own the
voice and reclaim literature as a method of enjoyment for the most popular classes, than this right
is accessed by everyone and
not just by the upper
classes. Addressing specifically
the context in which this literature
emerges in Brazil, the beginning of the
20th century, we intend to demonstrate
how the poets
were fundamental so that their audience
of readers/listeners could enjoy art and
consume it as a good.
Keywords: Cordel Literature; Antonio Candido; Right to literature;
Enjoyment; Humanization.
A literatura como parte
dos direitos humanos
Em seu famoso ensaio O direito literatura,
publicado em 2004, Antonio Candido trabalha a
importante questo dos direitos humanos, elencando entre estes o direito
literatura. Vivendo em tempos de reflexo acerca das injustias sociais e a
insensibilidade demonstrada frente a essa questo, no parece uma desconexo
com a realidade pensar sobre como a literatura pode tambm fazer parte dos
direitos humanos. Se acreditamos que precisamos transformar a realidade e
romper com o antigo estado das coisas, seria um debate profcuo este que
reflete sobre como a fruio literria tambm um direito. Conceder o acesso
literatura seria, portanto, mais uma forma de diminuir as desigualdades
sociais.
Como afirma o autor, pensar nos direitos humanos
faz com que consideremos indispensvel ao outro aquilo que tambm
indispensvel para ns. E ao considerarmos esse pensamento, a literatura mais
um bem a ser reivindicado entre tantos outros tidos como indispensveis, ou incompreensveis, pois esses so
aqueles que no podem ser negados a ningum. So os bens capazes de garantir a
sobrevivncia, no apenas fsica, mas tambm mental, espiritual. Para Candido
(2004, p. 173),
O fato que cada poca e cada cultura
fixam os critrios da incompressibilidade, que esto ligados diviso da
sociedade em classes, pois inclusive a educao pode ser instrumento para
convencer as pessoas de que o que indispensvel para uma camada social no o
para outra.
Esse pargrafo evidencia que o debate sobre o
acesso literatura no pode ser desvencilhado da reflexo sobre direitos
humanos, pois seriam as classes altas que definiriam o acesso das classes menos
favorecidas s artes, fazendo, ento, com que os direitos humanos fossem
desrespeitados em mais uma de suas vertentes. importante relembrar e
reafirmar que as elites so sempre vistas como detentoras do saber, em que
esto inseridos os indivduos que podem criar conhecimentos e, dessa forma,
aumentar ainda mais o prprio poder.
importante ressaltar ainda que o ensaio de Candido no aborda especificamente a
literatura popular, apresentando exemplos referentes apenas ao mbito cannico,
mas, ao descrever a sua viso do que a literatura, perceptvel que a sua
definio abrange textos antes desprezados pelo cnone. Para o socilogo,
seriam textos literrios todas as formas de criaes de toque potico,
ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade (CANDIDO, 2004, p.
174). Ento, o autor parte para um debate fundamental de seu ensaio: o fato de
que no h qualquer homem ou povo que consiga viver sem a literatura,
responsvel por confirmar a humanidade do homem.
A
literatura seria capaz de humanizar e de ser responsvel por enriquecer tanto o
indivduo como o grupo. Essa humanizao definida por Candido (2004, p. 180)
como o exerccio da reflexo, a aquisio do saber, a boa disposio para com
o prximo, [...] a percepo da complexidade do mundo e dos seres. Ela um
meio eficaz de transmitir conhecimentos, mas tambm uma forma de trazer a
sensibilidade tona, fazendo com que o indivduo seja capaz de refletir e ser
emptico com o outro. Muitas vezes a literatura ser capaz de mostrar uma
realidade diferente daquela em que o leitor vive e, portanto, ser capaz de
transport-lo, ainda que momentaneamente, para outro universo.
Candido apresenta, ento, outra importante
reflexo e que se faz necessria para os propsitos deste artigo. O autor
aponta que a relao da literatura com os direitos humanos pode ser vista sob
dois vieses: o primeiro, em que a literatura seria uma necessidade universal
que deve ser satisfeita, pois neg-la seria mutilar a nossa humanidade
(CANDIDO, 2004, p. 186); o segundo, a literatura atua como um instrumento de
desmascaramento, pelo fato de permitir que haja foco na restrio dos direitos
ou na falta deles. O autor conclui, ento, que nesses dois vieses ela se
encaixaria na luta pelos direitos humanos.
A
diviso social brasileira seria responsvel por impedir que as classes sociais
mais baixas no possam ter acesso s obras cannicas da mesma maneira que as
classes dominantes. A literatura escrita acaba sendo um privilgio de pequenos
grupos, por diversos motivos, cabendo s classes mais baixas apenas as formas
consideradas populares.
Outro importante ensaio do socilogo Antonio Candido, e complementar discusso deste primeiro
que citamos, A literatura e a formao do homem, publicado em 2002, em que
o autor discute a funo da obra literria dentro de uma sociedade e aborda
mais uma vez como se d a humanizao do homem por meio da literatura.
A literatura, principalmente quando enxergada de
maneira purista, muitas vezes, foi retratada como um meio de edificao do
homem, mas no esse o sentido que Candido buscou apontar em suas reflexes,
pelo contrrio. A edificao seria responsvel por afastar o homem de uma
humanidade verossmil, criando a ideia de um funcionamento literrio prximo
aos manuais de virtude e boa conduta. A literatura, ento, seria necessria
para mostrar que existe uma complexidade em torno de si prpria.
Paradoxos, portanto, de todo lado,
mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padres oficiais) e a sua poderosa fora
indiscriminada de iniciao na vida, com uma variada complexidade nem sempre
desejada pelos educadores. Ela no corrompe
nem edifica, portanto; mas, trazendo
livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em
sentido profundo, porque faz viver (CANDIDO, 2002, p. 84-85).
Para Candido, a necessidade universal da
fantasia se manifestaria em todos os instantes possveis da vida humana, haja
vista que praticamente impossvel pensar em qualquer indivduo que passe
muito tempo sem ter qualquer tipo de alegoria em sua mente, ou fora dela. E,
sendo assim, a literatura uma resposta a essa imaginao inesgotvel:
A literatura propriamente dita uma das
modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas
formas mais humildes e espontneas de satisfao talvez sejam coisas como a
anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifo. Em nvel complexo surgem as
narrativas populares, os cantos folclricos, as lendas, os mitos. No nosso
ciclo de civilizao, tudo isto culminou de certo modo nas formas impressas,
divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance,
narrativa romanceada (CANDIDO, 2002, p. 80).
possvel ento refletir e concluir que a
literatura traz em si muitas possibilidades, sendo capaz de tanto humanizar
quanto desumanizar. O mais importante de todos esses questionamentos sobre a
possibilidade de humanizar de fato, que sendo a literatura indissocivel da
formao do homem no haveria como ela no causar nenhum tipo de afetao na
formao da personalidade de qualquer indivduo. Somos afetados pelos textos
literrios de diversas formas, no apenas quando falamos dos textos mais
eruditos. A literatura e a arte esto nas pequenas coisas que nos rodeiam,
possibilitam a fruio da realidade de uma maneira necessria em qualquer
civilizao.
Um breve retrospecto
sobre o surgimento da Literatura de Cordel
Refletindo especificamente sobre a Literatura de
Cordel e o seu advento, no absurdo afirmar que o fazer potico dos poetas
vai de encontro ao pensamento que Candido defende nestes ensaios. Enquanto o
romance moderno foi construdo sobre bases que priorizam a leitura individual e
o isolamento do leitor, gerado tambm a partir da segregao do romancista,
como afirma Walter Benjamin em O narrador, quando se trata de narrativas
populares, como o cordel, espera-se que o pblico receptor faa o oposto, haja
vista que o consumo dos folhetos esteve sempre estritamente ligado oralidade
e s leituras pblicas. O que comprova tambm que o autor se equivocou ao
afirmar que a arte de narrar estava em vias de extino, pois, se para Benjamin
(1994) tais narradores no seriam relevantes dentro da literatura cannica, a
Literatura de Cordel comprova que os narradores orais sobrevivem e se
reinventam na cultura popular.
tambm importante salientar que no apenas a
cultura popular que influenciada pela literatura cannica, pois o inverso
tambm acontece. A literatura escrita tambm se apropria e se alimenta da
literatura popular, o que promove toda uma circularidade de influncias. Ou
seja, os narradores orais continuam sendo indispensveis para todo o sistema literrio.
Pensar e pesquisar a Literatura de Cordel , de
certa forma, revisitar alguns conceitos da teoria literria, como autoria[20] e originalidade[21], e at mesmo repensar o
prprio termo literatura. pertinente considerar que as narrativas
populares foram marginalizadas, sendo at mesmo consideradas como uma espcie
de paraliteratura, uma viso bastante preconceituosa, que marginalizava e
rebaixava essas existncias culturais divergentes. Obviamente esse tipo de
postura consistia numa reafirmao da superioridade da literatura considerada
cannica, ocorrendo isso inclusive dentro do meio acadmico.
A Literatura de Cordel brasileira se configura
como uma expresso cultural popular, que traz em si diversos tipos de
sapincias e utilidades. Faz parte de sua estrutura, ento, o resultado de
trocas culturais entre os imaginrios das culturas que formaram o Brasil,
fazendo assim com que histrias tradicionais vindas do contexto ibrico fossem
remodeladas e ganhassem novos contornos especificamente brasileiros. Era comum
que os folhetos fossem usados para retratar fatos que ocorriam exatamente
naquele momento histrico. impossvel, portanto, pensar a existncia dessa
tradio cultural sem pensarmos tambm na transmisso oral e na memria
coletiva, pois ambas so de fundamental importncia para que muitas narrativas
ibricas no tenham se apagado no decorrer de sculos. Pelo contrrio,
permaneceram to fortes e ecoando nas mentes nordestinas, que quando so
transpostas pelos cordelistas ganham ainda mais fora.
Os versos dos cordelistas buscavam aproximar o
pblico leitor/ouvinte de suas criaes, e, por isso, ocorre tambm a
identificao desse pblico com o que estava ali sendo retratado. Os folhetos
so capazes tanto de trazer histrias maravilhosas, em que se vencia a fome e a
seca, ou ento mostravam como fazer o pobre, amarelinho[22], vencer os ricos.
Traziam tambm em si os preceitos catlicos, muito respeitados e seguidos na
poca, responsveis por causar uma impossibilidade eterna s mulheres, pois
elas jamais seriam to virtuosas como a Virgem Maria.
As penas ferozes de autores como Leandro Gomes
de Barros[23], o mais importante
cordelista pioneiro, traziam tambm em si muitas crticas ao momento social e
histrico em que viviam. No se conformavam com a Proclamao da Repblica, com
os novos impostos, e tambm no viam com bons olhos os pequenos progressos femininos
da poca, assim como algumas mudanas trazidas pela Belle poque.
Os poetas pioneiros eram descendentes dos
cantadores que os precediam, haja vista que essa uma tradio secular. Muitos
deles sendo apenas semiletrados, faziam da memorizao uma grande aliada do
fazer potico, pois diferentemente do que muitas vezes se pensa, no apenas
por inveno que criam seus versos, h um extenso trabalho com a memria na
prtica dos cordelistas. Alm disso, traduziam para os versos os anseios
populares, pois tinham contato direto com seu pblico. No escreviam de maneira
afastada, como o romancista moderno.
[...] o cantador nordestino, herdeiro e
depositrio do fluxo lentssimo da tradio como memria convertida em
descoberta, representa um ponto de chegada de materiais errticos que tm
atravessado como meteoritos o firmamento de sistemas culturais inclusive muito
distantes, para depois serem reutilizados por uma vontade artstica em que a
coletividade se realiza com gosto e frmulas prprias. (PELOSO, 1996, p. 78).
A escolha pela anlise desse perodo em
especfico, as primeiras dcadas do sculo XX, se fez oportuna por ser o
momento em que a importncia dos cordelistas era ainda maior. Convm relembrar
que era um momento em que ainda no existia fcil acesso ao rdio, e a TV ainda
estava longe de existir. Sendo assim, as nicas formas de entretenimento e
informao que existiam de maneira escrita eram, respectivamente, os livros e
os jornais. Cabia aos poetas transpor esses textos para versos, pois somente
assim a populao poderia ter acesso a tais conhecimentos.
O fato de os folhetos serem feitos com um
material barato, para serem estendidos nas feiras, fez tambm com que fosse uma
literatura menos afastada do seu pblico leitor/ouvinte do que a literatura
cannica, que tem como caracterstica o leitor solitrio. Alm disso, ainda que
a maior parte da populao fosse analfabeta, por se tratar de uma literatura
oral, feita para ser lida em voz alta, todos podiam ter acesso a essas
histrias, no mais apenas aqueles que eram os detentores do saber, os que
sabiam ler.
O cordel luz de
Candido
possvel pensar a problemtica que envolve as
reflexes propostas por Antonio Candido no contexto
da Literatura de Cordel interpretando, ento, os cordelistas como verdadeiros
protagonistas de uma extensa reivindicao do direito literatura. Cumpriam,
no contexto em que estavam inseridos, o papel de atores sociais, sendo de
fundamental importncia para garantir que a populao pudesse alcanar a
literatura e a fruio, direitos que antes lhes eram negados, por diversos
motivos.
Ento, se a literatura cannica no pode ser
aproveitada plenamente por todas as camadas da populao, por meio dos
processos criativos dos poetas e as suas habilidades de transposio de histrias
que a fruio ser alcanada. Sendo o acesso a livros difcil, seja pela
linguagem ou pelo valor financeiro, ento seria por meio de folhetos de cordel
que a imensa maioria da populao nordestina conseguiria conhecer muitas
narrativas e preencher a sua prpria necessidade de fantasia. Mais do que nunca
a literatura passa a ser uma forma de conhecimento e no apenas de
divertimento, pois os versos dos cordelistas so capazes de levar o pblico
leitor/ouvinte a lugares inimaginveis, bem como trazer notcias do que
acontecia no Brasil e no mundo. Preenche, ento, o que Antonio
Candido assinala como a necessidade universal de fantasia.
No ltimo tpico de O direito literatura,
Candido (2004, p. 191) conclui que
a luta pelos direitos humanos abrange a
luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes
nveis da cultura. A distino entre cultura popular e cultura erudita no deve
servir para justificar e manter uma separao inqua, como se do ponto de vista
cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicveis, dando lugar a
dois tipos incomunicveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupe o
respeito aos direitos humanos, e a fruio da arte e da literatura em todas as
modalidades e em todos os nveis um direito inalienvel.
Baseando-nos neste pargrafo, possvel
estabelecer que, ainda que ao elaborarem seus versos e que isso faa parte de
uma ampla reivindicao do que aqui chamamos de direito literatura, essa
reivindicao no poderia se encerrar apenas na Literatura de Cordel.
possvel afirmar que, dentro do contexto em que escolhemos analisar aqui, a
excluso era inevitvel, justamente por se tratar de um contexto em que a
populao nordestina estava extremamente desfavorecida frente ao Sul do pas,
que abrigava a capital do Brasil.
Ao trazer o debate sobre o Regionalismo, em A
literatura e a formao do homem, Candido (2002) demonstra que a literatura
pode ser usada tanto para humanizar quanto para desumanizar, e com a Literatura
de Cordel isso no seria diferente. Um grande exemplo que as mulheres muitas
vezes foram grandes vtimas das crticas dos cordelistas, pois o que se cobrava
delas eram posturas inatingveis. Uma mulher digna deveria se espelhar em
Maria, a virgem me de Jesus, Cristo, a mulher reconhecida por Deus como
perfeita. Isso pode ser visto em Os martrios de Genoveva (ATADE, s. d., p.
2-3):
Genoveva era dotada
De inteligncia e engenho
Nas feies dela se lia
O mais perfeito desenho
A natureza em orn-la
Se esmerou e fez empenho
Alm dessas qualidades
Em tudo era preciosa
Modesta e trabalhadora
Corts e religiosa
Graas a educao
De sua me extremosa
Quando estava em oraes
Ajoelhada entre os pais
Parecia ser um anjo
Das regies divinais
Que tinha baixado a terra
Para exemplo dos mortais.
Se ela no figura nos versos como modelo para
todas as mulheres, ir lhes caber a representao oposta a essa. Muitas vezes
utilizando esteretipos existentes naquela sociedade, os poetas retratavam as
mulheres com comportamento destoante do que era socialmente aceito: eram
perversas e capazes de desonrar o homem. Em se tratando da mulher negra, esse
quadro era ainda mais violento, pois dentro do contexto literrio do cordel,
ali no caberia qualquer representao positiva. Em O Bataclan
moderno, Atade tece crticas s mudanas sociais vividas pelas mulheres:
Mundo velho desgraado
Teu povo precisa de um freio,
Para ver se assim melhora
Este costume to feio
De uma moa seminua
Andar mostrando na rua
O sovaco a perna o seio.
De primeiro uma donzela
Andava bem prevenida,
Se acaso ia um passeio
Se encontrava ela vestida
Hoje essa mesma donzela
A moda obrigou a ela,
Sair pra rua despida (ATADE, 1953, p. 1)[24].
por meio das crticas dos poetas que ocorre
tambm o que Candido chamou de desmascaramento, pois quando tecem crticas ao
governo, como faz Leandro Gomes de Barros, por exemplo, seu pblico
leitor/ouvinte consegue perceber que esto sendo vtimas de enganaes e
abusos. Para Marques (2014, p. 55), Era, portanto,
atravs das lentes satricas do(s) poeta(s) popular(es) que o sertanejo via e
entendia aquele mundo prenhe de novidades e mudanas inusitadas. O exemplo pode ser
visto nas seguintes estrofes, em que Barros busca denunciar a realidade em que
os nordestinos estavam vivendo. Em Um pau com formigas, o poeta tece uma de
suas denncias acerca das mudanas vivenciadas no novo sculo:
Chamam este sculo das luzes
Eu chamo o sculo das brigas
A poca das ambies
O planeta das intrigas
Muitos cachorros num osso
Um pau com muitas formigas.
Ento depois da repblica
Tudo nos causa terror
Cacete no faz estudo
Mas tem carta de doutor
A cartucheira a lei
O rifle governador (BARROS, 1912, p. 1).
As
crticas tambm podem ser vistas em O imposto e a fome:
Disse o
imposto – isso nada,
O Brasil
est todo exposto,
Enquanto
existir governo
Reina a
fome e o imposto,
Os
presidentes de Estados
Dizem
– morram os desgraados
Ficando
ns tudo gosto.
[...]
Justia
em ti no h mais
Creio que
morreu de desgosto,
A lei
ficou como rfo
Sem pai,
sem me, sem encosto,
O carter
foi embora
S
conhecemos agora
Poltica,
fome e imposto (BARROS, 1909, p. 2-3).
possvel perceber como Leandro Gomes de Barros
se empenhava em fazer suas denncias, ultrajado pelos impostos excessivos, pela
fome e pela misria. Em consonncia com o que afirmou Candido, seus versos eram
capazes de despertar a reflexo em seu pblico, fazendo com que pudessem
perceber a complexidade do mundo em que viviam, de uma maneira ainda mais
pungente. Era por meio da stira que seus versos se mostravam ainda mais
ferinos.
Concluso
Neste
artigo, buscamos justapor os ensaios de Antonio
Candido Literatura de Cordel, mostrando como a necessidade de literatura e
fantasia universal e atinge todas as camadas sociais. No comeo do sculo XX,
a literatura cannica era negada ao povo nordestino, assim como o direito
fruio, algo to desejado pelas classes sociais mais elevadas. Negar esse
direito seria negar tambm a humanidade daquelas pessoas.
Ao
tomar para si a voz, fazendo com que um integrante do povo pudesse finalmente
ser ouvido, o cordelista passa a representar tambm os anseios de seu pblico
leitor/ouvinte, haja vista que seu sucesso tambm dependia desse dilogo direto
com seu pblico. O poeta de cordel uma figura muito sensvel, pois lhe cabe
perceber muitas nuances da realidade em que habita.
Sendo assim, sob essas novas lentes, criadas
pelos versos dos poetas, o nordestino passava a perceber a prpria realidade de
uma outra forma, pois o poeta era capaz de fazer com que, ao finalmente se
enxergarem de alguma forma representadas na literatura, essas pessoas pudessem
tambm resistir e reexistir, frente a todas as agruras cotidianas que as
cercavam.
Referncias
ATADE,
Joo Martins de. (A Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista,
considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema) O Bataclan
moderno, Juazeiro do Norte, Editor Jos Bernardo da Silva, 1953.
_________. Os martrios de Genoveva. S. l.: s. n., s. d.
BARROS, Leandro Gomes de. O imposto e a fome/O homem que come vidro/O reino da Pedra Fina. Recife, PE: s.n., 1909.
_________. Um Pau com Formigas/ Concluso de Riacho com Turbana.
Recife, PE: s.n., 1912.
BENJAMIN,
Walter. O narrador: Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov.
In: _________. Mgica e tcnica, arte e
poltica: ensaios sobre literatura
e histria da cultura. Obras escolhidas. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1. p. 197-221.
CANDIDO,
Antonio. A literatura e formao do homem. In:
CANDIDO, Antonio. Textos de Interveno. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002.
p. 81-90.
_________.
O direito literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vrios Escritos. So Paulo: Editora 34;
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 171-193.
MARQUES,
Francisco C. A. Um pau com formigas ou O
mundo s avessas: a stira na poesia popular de Leandro Gomes de Barros.
So Paulo: Edusp/Fapesp, 2014.
OLIVEIRA,
Letcia Fernanda da Silva. De mrtir a meretriz: figuraes
da mulher na Literatura de Cordel (1900-1930). Dissertao de Mestrado.
Assis-SP: UNESP, 2017.
PELOSO,
Silvano. O canto e a memria:
Histria e utopia no imaginrio popular brasileiro. So Paulo: tica, 1996.
[Recebido:
15 ago 2020 – 19 set 2020]
[19] Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP
[20] Diferentemente da viso cannica do
termo e da maneira como concebemos o plgio atualmente, a autoria dentro do
Cordel enxergada de uma maneira intrinsicamente diversa, ao menos no comeo
do sculo XX. Em um contexto em que a repetio de histrias tradicionais era
algo no apenas natural, como tambm desejado pelo pblico leitor/ouvinte,
cabia aos poetas e editores revisitarem essas narrativas. Impondo-lhes, por
vezes, pequenas modificaes. Podemos concluir que um conceito muito mais
flexvel na literatura popular do que nos romances, por exemplo, em que uma
atitude como essa poderia gerar disputas judiciais.
[21] Pensar a originalidade tambm envolve a
questo de revisitao de textos antigos, portanto a verdadeira originalidade
no contexto do cordel estaria em conseguir produzir uma obra com linguagem
prxima a de seus leitores/ouvintes e da realidade em que viviam. Dessa forma,
seria possvel que o pblico se identificasse com suas criaes e se sentisse
parte de suas narrativas (cf. OLIVEIRA, 2017, p. 52).
[22] Seria o personagem arquetpico Pedro Malasartes, que pode tambm figurar no Cordel sob outras alcunhas. A sua arma secreta o quengo, a inteligncia, e aparece denominado como amarelinho, por causa do fsico disforme e comprometido pelo ancilstomo, pela sfilis e pela deficincia alimentar do trabalhador das usinas e das plantaes (MARQUES, 2014, p. 248).
[23] Nascido em Pombal-PB. Viveu a maior parte de sua vida morando em Recife, cidade em que se fixou e iniciou a sua produo de cordis. Barros conseguiu o feito de viver exclusivamente da venda de seus cordis, o que justifica tambm a sua vastssima produo. Suas obras permanecem no imaginrio coletivo nordestino at os dias de hoje (OLIVEIRA, 2017).
[24] Apesar de o folheto ser referenciado como de autoria de Joo Martins de Atade, a Bibliografia Prvia de Sebastio Nunes Batista considera Leandro Gomes de Barros o autor do poema. Essa mudana de autoria ocorreu a partir do momento em que Atade comprou todo o esplio de Barros, a partir de ento Atade passa a assinar os folhetos do autor como se fossem de sua autoria.