A pintura um silncio? Ou qual a voz da pintura?

 

 

Is a painting silence? Or whats the voice of a painting?

 

 

Vanessa Tavares da Silva[55]

https://orcid.org/0000-0003-4943-6166

 

 

Resumo: Neste trabalho, examinaremos o processo pictrico e a pintura a partir da perspectiva que relaciona literatura e oralidade. Para tanto, apresentaremos os procedimentos do artista visual brasileiro Eduardo Berliner em uma de suas pinturas, Leda e o Cisne, com a qual o artista retoma um dos mitos gregos. De modo amplo, tomam-se os estudos da oralidade como o resgate de um ponto fundamental do estabelecimento das relaes entre os seres e o mundo, que, embora invisvel, vigente. Assim, verificar-se-, por meio dos desvios estabelecidos nas anlises, os procedimentos e a pintura de Berliner como locus de vigncia de aspectos primrios da oralidade, assim como questes da performance e do mito, trazendo tona mais uma via de compreenso da pintura, sendo ela tambm possibilidade de espao de resistncia relao com o mundo somente pela via da razo. Tomamos como base o pensamento de Walter Ong (1998), Paul Zumthor (1993) e Michele Simonsen (1987), entre outros autores, cujas vises nos auxiliaram na perspectiva de uma compreenso mais ampla sobre a pintura e os procedimentos que a envolvem, dando-nos a perceber a presena da oralidade, tambm nessa esfera, de modo a ampliar a apreenso sobre as relaes entre a humanidade e o mundo.

Palavras-chave: Pintura; Oralidade; Desvio; Processo criativo.

 

Abstract: We will examine the pictorial process and painting relating literature and orality. We will address the procedures of the Brazilian visual artist Eduardo Berliner (1978) and one of his paintings, Leda and the Swan (2015), in which the artist takes up one of the Greek myths. Broadly speaking, the studies of orality are seen as the retrieval of a fundamental feature in the establishment of relations between human beings and the world, which, although invisible, is in force. Thus, through the deviations established in the analyses, we will establish Berliner's procedures and painting as the validity locus of primary aspects of orality, as well as issues of performance and myth, bringing to light yet another way of understanding a painting, which is also the possibility of a space of resistance to the relationship with the world only through reason. We draw from the thoughts of Walter Ong, Paul Zumthor and Michele Sominsen, among other authors, whose visions have helped us build a broader understanding of painting and its procedures, giving us insight into the presence of orality, also in this sphere, in order to broaden our perception of the relationship between humanity and the world.

Keywords: Painting; Orality; Deviation; Creative process.

 

 

 

 

Introduo

Os objetos, hoje, objetam. No futuro, objetos e gestos revestir-se-o porventura da dignidade perdida. A palavra amor, um pedao de po, a letra A, deixaro assim de ser acidentes mortais da vida quotidiana. Dessacralizados, voltaro a ser to decisivos como a mais nfima pincelada que o pintor realizou no quadro. E cada uma destas pinceladas revelar a estrutura do mundo.

Ernesto Sousa

O que, no jogo de tenso provocado por formas e cores, possvel ser ouvido? No presente estudo, desenvolver-se- a tentativa de estabelecer e/ou reconhecer elementos com os quais possamos compreender e apreender a produo pictrica do artista brasileiro Eduardo Berliner na esfera do que as perguntas que aqui orbitam permitem como possibilidade de resposta.

O que h como pano de fundo, alm das deteces dos traos de oralidade, a compreenso ou o desvelamento do papel da arte (seja ela literria ou pictrica) de superar os achatamentos e simplificaes advindos do projeto moderno de civilizao, que privilegia a razo como medida de compreenso e definio de mundo.

A partir da pergunta feita por Ernesto Sousa, que intitula um de seus textos publicado em 1968, Oralidade, futuro da arte?, o autor lana, para o futuro, uma perspectiva da totalidade das coisas, de ns mesmos e dos outros, na qual as relaes no mais se dariam a partir de suas funcionalidades e essa possibilidade residiria, possivelmente, na retomada daquilo que foi abandonado ou simplesmente esquecido (SOUSA, 2011 p. 41-42). Foi a partir da pergunta do autor que surgiram as duas indagaes que intitulam este texto num aparente paradoxo. O prprio estudo se dar como possibilidade de resposta, ao evidenciar o existente que no percebido pela via do visvel: a oralidade.

 

 

Eduardo Berliner e os pontos disparadores para a investigao

 

O artista tem uma produo que passa a figurar no cenrio nacional e internacional desde meados de 2008, ano da aquisio do Prmio CSI Marcantonio Vilaa. Depois disso, foi convidado para expor na 29 Bienal Internacional de So Paulo, em 2010, e tem mantido uma produo constante, participando de importantes mostras e exposies individuais e coletivas, dentro e fora do pas.

A perspectiva adotada para o engendramento das questes levantadas se d, tambm, a partir do carter processual, algo evidente na pintura do artista em questo. Embora o carter processual seja inerente a toda e qualquer produo, no necessariamente artstica, referimo-nos aqui sua evidncia como mais uma das pistas que reiteram o sentido de determinadas obras. Num breve retrospecto, notamos no Romantismo, que negava fatores como a racionalidade e a representao, o aparecimento do carter processual e tomamos como exemplo as pinturas de Turner (1775-1851). No Impressionismo, o carter processual passa a ganhar mais evidncia e no nos faltam exemplos, como as pinturas de Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919) e Morisot (1841-1895). Seguimos nos deparando com a evidncia da processualidade nas obras ao longo de outros movimentos artsticos, assim como nas Vanguardas Artsticas Europeias do incio do sculo XX e, do mesmo modo, seguimos com esta deteco para momentos importantes como a Action Painting norte-americana na dcada de 1950, movimento que nos direciona para a ideia de performatividade como um dado do aspecto processual na pintura.

O ponto de partida para este estudo envolve o que o prprio artista diz sobre seu processo em vdeos recentes sobre sua produo. Neste ponto, estabeleceremos relaes entre algumas de suas falas e aspectos da oralidade, advindos do pensamento de Walter Ong e de Paul Zumthor. Em seguida, faremos o paralelo entre a pintura, em linhas gerais, desde o processo e a evidncia da processualidade em sua materialidade, at as possibilidades de fruio e a performatividade, segundo Zumthor, estabelecendo a ideia de jogo como uma estrutura ampla. Por fim, a partir da pintura Leda e o Cisne, organizaremos, em princpio, uma leitura formal para, a partir dela, seguirmos evidenciando, com mais amplitude, suas possibilidades de sentido.

 

 

Pintura como gnero: desvio

 

A pintura um silncio? O modo mais comum e restrito de resposta, ou seja, a partir de um olhar meramente funcional, seria: sim, a pintura no fala. Ela nasce como pintura, para ser pintura e, portanto, atua nessa esfera da linguagem, a da visualidade. A essa possibilidade de explicao, necessria a abertura da superfcie de compreenso, sendo a pintura, tambm, algo que compe o mundo, faz parte do campo gerador de sentidos numa dinmica que pode nos levar totalidade das coisas, na qual os sentidos se interpenetram, so atravessados uns pelos outros e se complementam. Neste estudo, ser restituda pintura a face que a compreenso de mundo, apenas pela via da razo, abrevia.

Para tanto, a ideia de desvio ser dada pela tomada de emprstimo da concepo de romance de Bakhtin (1998) para ento encontrarmos na pintura de Berliner, por essa mesma via, as marcas da oralidade primria a partir do pensamento de Walter Ong (1998). Para Bakhtin: o romance o nico gnero por se constituir, e ainda inacabado. [...]. A ossatura do romance enquanto gnero ainda est longe de ser consolidada, e no podemos ainda prever todas as suas possibilidades plsticas (BAKHTIN, 1998, p. 397). A ideia a de nos atermos a um tipo de pintura qual essa definio caiba, salientando a prematuridade de tom-la como definitiva, j que a presente pesquisa no toma como base um amplo aspecto investigativo. Por ora, com base na extenso deste estudo, a convergncia entre a concepo de romance de Bakhtin e uma possvel definio pictrica, se dar a partir do que Nicolas Bourriaud indica como um dos pontos de conquista da pintura moderna e que, na concepo do autor, fundamental para a compreenso das relaes entre arte e vida na contemporaneidade; segundo ele,

A primeira luta da pintura moderna consistiu, evidentemente, em conquistar sua autonomia expressiva, mas tal reivindicao no passava do preldio de uma luta de morte contra a nova ideologia do trabalho: a arte moderna se d pelo objetivo de constituir um espao dentro do qual o indivduo possa finalmente manifestar a totalidade de sua experincia e inverter o processo desencadeado pela produo industrial, a qual reduz o trabalho humano repetio de gestos imutveis numa linha de montagem controlada por um cronmetro (BOURRIAUD, 2011, p. 13).

O que nos leva a compreender a pintura como espao de acontecimentos que no so previamente calculados, como uma atividade no submetida a uma lgica decorrente de operaes correlatas a outros tipos de trabalho e que, no limite, converge com um modo de conceber a vida, ligado aos movimentos nela engendrados, prximo das experincias vividas. neste ponto que se inicia a possibilidade de deslocamento daquilo que Walter Ong evidencia como prprio do modo como se d a formulao do conhecimento na cultura oral, pois

Na ausncia de categorias analticas aperfeioadas, que dependem da escrita para organizar o conhecimento distante da experincia vivida, as culturas orais conceituam e verbalizam todo o seu conhecimento como uma referncia mais ou menos prxima ao cotidiano da vida humana, assimilando o mundo estranho, objetivo, interao imediata, conhecida de seres humanos (ONG, 1988, p. 53).

Esse aspecto mais direto nos aproxima da concepo de totalidade, distanciando-nos de designaes e, portanto, do modo, apenas, funcional das coisas. Ainda assim, tudo pode funcionar, mas a diferena, nesse sentido, reside na interao com a amplitude de possibilidades que ns, os outros, as coisas e toda a sorte acontecimentos, portanto, oferecem cotidianamente de modo direto e no previamente calculados. Num movimento de maior amplitude, podemos nos reencontrar com a dignidade perdida, conforme Souza (2011) aponta.

 

 

Silncio

No caso de Berliner a conscincia da intransponibilidade entre o dizvel e o visvel (entre a compreenso oral e a coisa em si) que far que ele busque outra sintaxe visual, cuja narrativa vai impregnar a imagem no mais pela ideia da forma como frma, mas atravs da forma que se transmuta constantemente pela metamorfose.

Marcio Doctors

Em um vdeo, Eduardo Berliner fala sobre o tempo em seu processo de preparao para o trabalho. Para ele, a pintura tem incio antes mesmo que algo passe a figurar em suas telas, que, em geral, so de grandes dimenses. Nessa extenso de tempo, o artista fala sobre o cessar gradativo dos dilogos internos e do rudo do mundo, que passam a dar lugar ao processo como agente e, assim, segue na constituio pictrica. Segundo o artista: a partir de um ponto o processo age como coautor; o processo conta uma histria em paralelo, que no linear [...] uma pintura. Sobre parte de seu repertrio, ele comenta: costumo trabalhar coletando, registrando minhas percepes do mundo: coisas que eu vejo, coisas que eu ouo[56].

Dado esse estgio, o que se instaura em suas pinturas so elementos do mundo, os que o artista coleta no transcorrer dos dias, assim como os que residem em sua memria. A partir da movimentao processual e do silncio no ato criativo, esses elementos se reorganizam na tela, seguindo a ordem constitutiva da linguagem. Estabelecem-se, ento, novos jogos de sentido.

As vozes cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz potica os rene num instante nico – o da performance –, to cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma presena fugidia mas total. [...]. A voz potica , ao mesmo tempo, profecia e memria [...]. A memria, por sua vez, dupla: coletivamente, fonte de saber; para o indivduo, aptido de esgot-la e enriquec-la. Dessas duas maneiras, a voz potica memria (ZUMTHOR, 1993, p. 139).

Em comentrios sobre seu processo de criao, notamos que a memria tambm um dos grandes agentes e possvel observar o paralelo acerca do que Ong (1998, p. 50) nos diz sobre o carter das formulaes nas tradies orais, j que

No h nada para retroceder fora da mente, pois a manifestao oral desapareceu to logo foi pronunciada. Por conseguinte, a mente deve avanar mais lentamente, mantendo perto do foco de ateno muito daquilo com que j se deparou. A redundncia, a repetio do j dito, mantm tanto o falante quanto o ouvinte na pista certa.

Nesse sentido, poder-se-ia pensar na pintura como um modo de fixar o aspecto fugidio da mente; entretanto, trata-se de uma compreenso apressada. Embora estejamos falando sobre aspectos processuais, ou seja, os que antecedem a imagem final, possvel tambm compreender o carter indeterminado e incerto daquilo que se apresenta na prpria pintura. Segundo Blanchot (1987, p. 84), Cada obra, cada momento da obra, volta a pr tudo em questo, e aquele que deve apenas ater-se-lhe, no se atm, portanto, a nada. Seja o que for que ele faa, a obra retira-o do que ele faz e do que pode. Ou seja, uma pintura pode ser um tipo de experincia diversa a cada vez que com ela nos defrontamos. Assim, conectamo-nos com seu aspecto de totalidade, pois j no nos veramos mais, em relao a ela, a partir de trajetos pr-definidos, tendo o aspecto fugidio como uma constante, desde o que antecede o prprio processo, atua na processualidade e se faz presente na obra finalizada.

 

 

Pintura e performatividade

 

Como dito inicialmente, a processualidade passou a figurar no campo dos sentidos e nos interessa pens-la como um aspecto que guarda em si um dado performativo. De modo bastante elementar, pensaremos no dado performativo como o conjunto dos gestos que geram determinada obra, aqui, no caso, a pintura. Para tanto, tomaremos de emprstimo o sentido de performance como jogo de Zumthor. Em suas palavras: A performance jogo, no sentido mais grave, seno no mais sacral, deste termo (ZUMTHOR, 1993, p. 240), e esta definio implica uma estrutura de compreenso mais complexa, que abrange o conjunto de gestos ora mencionados, perceptveis, tambm, a partir de uma visualidade.

Em A letra e a Voz, livro publicado em 1993, Zumthor apresenta questes relativas ao texto e imagem, referindo-se s iluminuras, atestando a correspondncia e a complementariedade entre as dimenses visuais e auditivas e, novamente, tomamos tal perspectiva para vislumbrarmos as possibilidades relacionais com a pintura, compreendendo aspectos da recepo na estrutura complexa de jogo mencionada anteriormente:

O dilogo visualizado, por oposio ao texto que constitui materialidade em seu lugar, volta-se para a ordem sensorial. Restitui o olho as condies empricas, concretas, das percepes naturais. O artista no dispe de meios para fazer escutar a voz; mas pelo menos cita a intencionalidade naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de sugerir ao ouvido a realidade sonora (ZUMTHOR, 1993, p. 125).

A respeito das pinturas no modo como hoje as concebemos, Zumthor (1993, p. 125) afirma que a diferena de procedimentos entre elas e as imagens medievais reside na ausncia da narrativa explcita. Em outra passagem, o autor relaciona a pintura oralidade, retomando as palavras de um trovador medieval:

A pintura – explica no sculo XIII Richart de Fournival para justificar a ilustrao de seu Bestiaire damour – tem por virtude tornar presentes as coisas comemoradas... como o faz a palavra pronunciada, no momento em que se escuta; o texto de Richart claro e no faz referncia escritura, mas somente percepo auditiva. No tringulo da expresso, a imagem tem sua parte ligada com a voz. A imagem tambm s se comunica na performance (ZUMTHOR, 1993, p. 127, grifos do autor).

Retomando a noo de desvio, seguimos com o autor no caminho que sugere sua frase: A imagem tambm s se comunica na performance, a partir de suas consideraes em Performance, recepo e leitura, publicado em 2007, ao nos dizer sobre o olhar versus ler:

O olhar no pra de escapar ao controle, registra, sem distinguir sempre, os elementos de uma situao global, a cuja percepo se associam estreitamente os outros sentidos. A vista direta gera assim uma semitica selvagem, cuja eficcia provm mais da acumulao das interpretaes do que de sua justeza intrnseca. O latim medieval designava pelo termo signatura o resultado dessa atividade do olho humano. Signatura implica que o olhar transforma em signum o que ele percebeu. O objeto dessa percepo speculum, palavra-chave das culturas medievais: um reflexo emana disto e, como reflexo, exige a interpretao (ZUMTHOR, 2007, p. 72, grifos do autor).

Embora descreva tal ciclo para falar do que se perdeu em potncia na leitura de um texto simplesmente decodificando-o, saltando a etapa do olhar e indo diretamente para a noo a que corresponde aquele conjunto de caracteres, talvez seja possvel, ainda, verificar tal circularidade diante de uma pintura, experienciando-a em sua completude.

A compreenso da arte, literria ou pictrica, como evento, um acontecimento em meio vida que nos atravessa em sua complexidade sinestsica, que nos recobra sobre as coisas em sua totalidade e no em suas finalidades, como apregoou Ernesto Souza, parece ser inevitvel. Faz sentido, ento, recuperar a abertura da definio bakhtiniana de romance, cujas razes se encontram no modo de vida do medievo (BAKHTIN, 1998) para pensar a pintura, assim como as noes zumthorianas medievalistas e pr-textuais, recuperando assim o que a autoridade do poder pela racionalidade nos fez esquecer.

 

 

Leda e o Cisne na tradio da pintura: mito, lenda e tradio oral

 

Na tradio oral, haver tantas variantes menores de um mito quantas forem as repeties dele, e a quantidade de repeties pode aumentar indefinidamente.

Walter Ong

Leda e o Cisne foi um tema repercutido com intensidade e possvel vislumbrarmos a fora dessa reverberao no salto desde a sua origem na oralidade at seus desdobramentos contemporneos. Entretanto, este no o modo mais adequado de se perceber a produo acerca de tal lenda, como um ponto que repercute, sendo ela o originrio de tantas produes em diversos meios, no tempo e no espao.

O modo mais adequado reside em, ao percebermos tal produo como repetio, voltarmo-nos ao seu princpio, ou seja, quilo que, da prpria lenda, ressoa na frequncia da vida. Segundo Simonsen (1987, p. 5, grifos da autora), O mito est entre os principais gneros narrativos populares representados na Europa, juntamente com a gesta ou saga, o conto, a lenda e a anedota.

O mito, ligado a um ritual, tem um contedo cosmognico ou religioso. Simboliza as crenas de uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos que ele narra so tidos como verdicos. [...]. A lenda, relato de acontecimentos tidos como verdicos pelo locutor e seu auditrio, localizada: as definies de tempo e de lugar integram o relato (SIMONSEN, 1987, p. 6, grifo da autora).

Assim, vemos que a longevidade do tema se deve constatao da presena da cultura oral, em concomitncia cultura quirogrfica, como uma constante, ainda que seja possvel notarmos os diferentes nveis de influncia de uma sobre a outra. E essa constncia, ou seja, a prpria vida, que mantm ativo o que reside na lenda. Segue abaixo uma breve verso:

OS AMORES DE ZEUS

O rei dos deuses no se dedicava apenas a desgraar os homens. Tambm procurava fazer as mortais felizes, sobretudo aquelas que lhe agradavam... e foram muitas. Embora fosse casado com a deusa Hera, Zeus teve inmeras aventuras amorosas. Sua legtima esposa era ciumentssima e no gostava nem um pouco das escapulidas do marido. Quando vinha a saber que ele tinha ido visitar uma mortal, ficava louca de raiva. Sua clera s se aplacava quando ela se vingava da mortal ou dos filhos que essa mulher tivera com o deus. Hera estava sempre de olho em Zeus, que fazia de tudo para escapar sua vigilncia.

Zeus gostava de assumir a aparncia de algum bicho a fim de evitar a desconfiana de suas bonitas vtimas. Usou dessa artimanha para se aproximar da bela Leda. A jovem acabara de se casar com Tndaro, rei da Lacedemnia. Zeus se transformou em cisne e, fingindo-se perseguido por uma guia, refugiou-se junto da jovem rainha, que o acolheu em seus braos. Aproveitando-se dessa terna proteo, ele se uniu a ela e lhe deixou dois ovos de tamanho incomum. De um nasceram dois gmeos, Castor e Plux; do outro, duas irms, Clitemnestra e Helena. Essa unio permaneceu secreta, e Tndaro acreditou que tinha dado quatro filhos sua jovem esposa (POUZADOUX, 2001, p. 16).

Foram muitos os artistas que retrataram Leda e o Cisne, como Leonardo da Vinci, Tintoretto, Giovanni Boldini, Matisse, Czanne e tantos outros. Apesar da pluralidade iconogrfica suscitada pelo tema, atravs do tempo e de diferentes momentos artsticos, o destaque para trs obras, a partir das quais – Figuras 1, 2 e 3, todas de mesmo ttulo: Leda e o cisnesero salientados apenas alguns aspectos para, a partir deles, observarmos, no item subsequente, a pintura feita por Eduardo Berliner. Na obra do francs Albert-Ernest Carrier-Belleuse (1824 -1887), escultor francs – Figura 1 – temos ainda muito da gestualidade e dos padres clssicos da representao. Na tela de Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), pintor brasileiro – Figura 2 – a dinmica intensa tanto na espacialidade, quanto nos aspectos pictricos, e nos revela, em sua figurao, o carter ertico da lenda. Em A Leda e o Cisne de Cy Twombly (1928-2011), artista norte-americano – Figura 3 –, nos deparamos com a pura intensidade com que se apresentam os aspectos grficos, entremeados por delicadas passagens cromticas.

Figura 1 – Leda e o Cisne (1870)

Albert-Ernest Carrier-Belleuse, terracota fundida, Altura (sem base): 14 1/2 pol. (36,8 cm), Metropolitan Museum of Art, NY.

 

Figura 2 Leda e o Cisne (1947)

Vicente do Rego Monteiro, leo sobre tela, 50 x 65 cm.

 

Figura 3 – Leda and the Swan (1962)

Description: https://3.bp.blogspot.com/-kfg9p_vc7vs/ThmNtB7hztI/AAAAAAAAIXA/HKAFbXW3n0s/s320/acy.jpg

Cy Twombly, leo, lpis e crayon sobre tela, 190,5 x 200 cm. MoMA, NY.

 

Leda e o Cisne de Berliner

O erotismo um dos aspectos da vida interior do homem.

Georges Bataille

Figura 4 – Leda e o Cisne (2015)

Description: Resultado de imagem para leda eo cisne berliner

Eduardo Berliner, leo sobre mdf, 170 x 170 cm.

 

Na pintura de fundo escuro, nota-se a vibrao de uma cena. As pinceladas so marcadas e vigorosas, geram movimento. As figuras, em tons mais claros, saltam em primeiro plano e tal contraste tambm gera certa movimentao. So ao todo – em princpio – quatro elementos que brotam do fundo escuro: uma figura humana feminina e trs cisnes; um deles de corpo inteiro, cujo bico invade a boca da figura humana, ao mesmo tempo em que segurado por ela pelo pescoo. Dos outros dois cisnes s se v a cabea no canto direito e inferior da tela, ambas surgindo de uma massa mais escura e densa. Na figura feminina, h o movimento compositivo das pinceladas, mas, ao mesmo tempo, nota-se a rigidez que beira figurao de um boneco. Na parte dos cabelos dessa figura, possvel enxergar tambm a cabea de mais um cisne, que, no caso, seria o quarto. Seguindo em observao por este ponto pelo fundo da tela, d para perceber a continuidade de seu corpo, sugerida pelas nuances disformes do plano escuro. Observando a parte inferior da pintura, na saia de Leda, possvel perceber as duas mos da figura se tocando pelas extremidades dos dedos, sendo a da direita uma espcie de rastro do processo pictrico, atestando o carter dbio, j que seria esta a mesma mo a segurar a figura de um dos cisnes pelo pescoo. O carter de dubiedade aparece, pelo menos, duas vezes em toda a pintura.

Um dos aspectos principais da lenda, intensamente explorado nos exemplos anteriores, o ertico. primeira vista, possvel atestar a ausncia de tal aspecto na verso de Berliner. Quando o artista fala sobre suas produes, recorrente a afirmao de que, ao sobrepor uma coisa outra, a pintura no mais sobre nenhuma delas, mas sobre uma terceira coisa.

Ainda assim, ao manter o ttulo, invariavelmente somos levados lenda e ao seu teor. Esse o ponto em que somos colocados num jogo com os sentidos, compreendendo e percebendo a pintura para alm de seu carter representativo, tal como diz Marcio Doctors ao compreender a produo do artista: Quando percebi que a questo de Eduardo Berliner na pintura era a radicalidade do visvel, entendi, ento, o que me atraa na sua obra: diante da realidade e do real no h recuo possvel. [...] a arte em potncia; no representa nada [...] (DOCTORS, 2015, s. p).

Retomando Ernesto Sousa, pelo menos nessa situao, como se o objeto no objetasse. No h aqui a representao do carter ertico, mas seu prprio teor. Na pintura de Berliner, Leda est vestida e de branco, mas, na face escura que percorre o fundo de toda a rea pictrica, constituda por pinceladas densas, vigorosas e agitadas, ela o prprio cisne, o cisne, por sua vez, Leda. Eles fundem-se na escurido da tela, no espao interdito da pintura. Nessa repetio do mito, na cena aparecem as crenas de uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos que ele narra so tidos como verdico (SIMONSEN, 1987, p. 6). Retornamos, ento, a um ponto do que j foi dito acerca da lenda e do mito, redimensionando-o para o que pulsa no caso de Leda e o Cisne, agora, segundo Bataille:

O erotismo , de forma geral, infrao regra dos interditos: uma atividade humana. Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade no deixa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia com horror, mas ao mesmo tempo o conserva (BATAILLE, 1987, p. 62).

Desse modo, o teor ertico no est representado, como no caso das verses da lenda de Monteiro e Carrier-Belleuse; ele o que se apresenta na vertigem e radicalidade dos gestos, na massa densa de tinta espalhada pela tela, na sensualidade de cada pincelada. Apresenta-se, ento, cada elemento, tomando de emprstimo o termo de Derrida (apud Deleuze), em seu aspecto figuralquando, mesmo no abrindo mo da figurao, como foi o caso na verso de Cy Twombly, ope-se ao figurativo (DELEUZE, 2007). Nesse sentido, a escassez de vida da figura humana, e do mesmo modo no cisne negro, revela o ponto mximo do ertico, segundo Bataille, a prpria morte na fuso com o outro, j que O sentido ltimo do erotismo a fuso, a supresso do limite (BATAILLE, 1987, p. 85).

 

 

Consideraes finais

 

Qual a voz da pintura? Tudo o que nos atravessa, depreendendo de seu campo e, simultaneamente, convergindo para ele. Esta a sua voz e ela, entre outras nuances, compe a esfera da linguagem de uma cultura, ainda que esta se perceba como sendo da escrita, nos movimentos mais e menos sutis da vida. O fato que os aspectos da oralidade e da escrita coabitam e, em nveis distintos, alteram-se mutuamente, num processo contnuo de transformao nas qualidades de ambos. Isso tudo pode ser invisvel.

Neste estudo, ainda que de modo incipiente, tratou-se de compreender aspectos da oralidade pela via da pintura e isso nos indica a possibilidade de ampliao do campo desses estudos. Ao mesmo tempo, ampliaram-se tambm as possibilidades de recepo, compreenso e anlise do campo pictrico.

Embora tenhamos considerado uma pintura de Berliner em especfico, notamos que, em sua produo como todo, o artista retrata situaes aparentemente banais; no entanto, suas configuraes – paleta cromtica, aspectos gestuais, espacialidade, sobreposies e justaposies – apresentam a radicalidade com que seus temas nos so apresentados, desvelando o aspecto vertiginoso e limtrofe. Em suas pinturas possvel observar estruturas que se repetem, que se sobrepem, numa formulao visual mais agregrativa do que analtica (ONG, 1998). como se aquilo que sabemos se intensificasse (ou entrasse em xeque) na contundncia que ganha ao tornar-se pintura, seja com golpes sutis ou no de presena, jogando com o que pensvamos ter apreendido do mundo at ento.

Nas pginas finais de A letra e a voz, Paul Zumthor fala sobre a necessidade da quebra do ciclo hegemnico que a literatura passa a exercer na era clssica, primeiro na Europa e depois na Amrica, servindo ao Estado. Contrape essa situao ao papel do texto potico medieval como tendo sido til (ZUMTHOR, 1993). Finalizo com suas palavras, compreendendo a equivalncia da expresso discurso literrio como correspondente pintura, assim como as demais formas de arte, quando diz que nada impedir o discurso literrio, ainda que contra os sujeitos que o proferem, de visar a uma totalidade, e esta, o mais das vezes, de ser recuperada e identificada a uma Ordem (ZUMTHOR, 1993, p. 284).

 

Referncias

 

BATAILLE, Georges. O erotismo. Traduo Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&M Editores, 1987.

 

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In: Questes de literatura e de esttica: a teoria do romance. Traduo Aurora Farnoni Bernadini et al. So Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 397-428.

 

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a reinveno de si. Traduo Dorothe Bruchard. So Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Traduo lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.

DELEUZE, Gilles. Lgica da sensao. Traduo Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

 

DOCTORS, Marcio. Eduardo Berliner | A presena da ausncia. Rio de Janeiro: Site da Galeria Casa Tringulo, 2015. Disponvel em: https://www.casatriangulo.com/pt/artista/9/eduardo-berliner/texto/137/a-presenca-da-ausencia-marcio-doctors/ Acesso em: 13 ago. 2020.

 

ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologizao da palavra. Traduo Enid Abreu Dobrnszky. Campinas: Papirus, 1998.

 

POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

SIMONSEN, Michele. O conto popular. Traduo Lus Claudio de Castro e Costa. So Paulo: Martins Fontes, 1987.

 

SOUSA, Ernesto de. Oralidade, futuro da arte? e outros textos. So Paulo: Escrituras Editora, 2011. p. 23-42.

 

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Traduo Amlio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

_________. Performance, recepo, leitura. Traduo Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. So Paulo: Cosac Nayf, 2007.

 

 

Vdeos

 

ARTE! Brasileiros - Eduardo Berliner fala sobre Corpo em Muda. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=6DFgwbCWBZc Acesso em: 9 ago. 2020.

 

Trecho do programa de tv sobre arte contempornea, CATLOGO, de Marcos Ribeiro, disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 9 ago. 2020.

 

 

Imagens

 

Figura 1 Leda e o Cisne - escultura da coleo do Metropolitan Museum of Art NY. Disponvel em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/206819 . Acesso em: 8 ago. 2020.

 

Figura 2 LEDA e o Cisne. In: ENCICLOPDIA Ita Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. So Paulo: Ita Cultural, 2020. Disponvel em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2506/leda-e-o-cisne. Acesso em: 8 ago. 2020. Verbete da Enciclopdia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

 

Figura 3 Leda e o Cisne de Cy Twombly. Disponvel em: https://www.moma.org/collection/works/80083 Acesso em: 10 ago. 2020.

 

Figura 4 A imagem da pintura do artista Eduardo Berliner est em seu portflio, publicizado pela Casa Tringulo, galeria de arte que o representa. O material est disponvel em: https://www.casatriangulo.com/media/pdf/EB_portfolio2019.pdf Acesso em: 10 ago. 2020.

 

 

[Recebido: 15 ago 2020 – Aceito: 15 out 2020]



[55] Doutoranda do PPG em Letras da Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Cultura Visual pela FAV/Universidade Federal de Gois. Professora do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina.

[56] Trecho do programa de TV sobre arte contempornea, CATLOGO, criao do diretor Marcos Ribeiro. Produzido pela TV Imaginria Produes, uma realizao do canal de TV a cabo CANAL BRASIL. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=YER6ZYUyAFQ Acesso em: 8 ago. 2020.