Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm

 

 

Rap and Resistance: Necropolitics and Scale in Os meninos correm

 

 

Everton Santos de Brito[79]

https://0000-0002-2182-1700

 

Karina Figueredo Souza[80]

https://0000-0002-5704-9767

 

Lucas Santos Caf[81]

https://0000-0003-2654-0788

 

Maria Thereza de Oliveira Azevedo[82]

https://0000-0003-2912-2346

 

 

Resumo: Este artigo se prope a um exerccio de anlise do poema oral Os meninos correm da rapper Pacha Ana, para refletir sobre o mal-estar do tempo presente e as possibilidades de resistncia pela oralidade. O conceito de escala foi desenvolvido pela sociolingustica e, neste artigo, nos baseamos na coletnea organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema. A noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando compreender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade como elementos dinmicos. Na discusso, um dilogo com as epistemes decoloniais e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.

Palavras chave: Resistncia; Escala; Necropoltica; Rap; Os meninos correm.

 

Abstract: Exercise in the analysis of the oral poem Os meninos correm from Pacha Ana, to reflect on the discomfort of the present time and the possibilities of resistance, that's what it proposes this article. The concept of scale developed by sociolinguistics, based on the collection organized by E. SummersonCarr and Michael Lempert on the topic, is the reference for the analysis. The notion of scale contributes to the understanding that reality is not static, seeking to understand things, processes, events, history, society as dynamic elements. In the discussion, a dialogue with the decolonial and afro-diasporic epistemes, above all, based on the reflections of Professor Achille Mbembe and the concept of necropolitics.

Key words: Resistance; Scale; Necropolitics; Rap; Os meninos correm.

 

 

Os meninos correm da bala, da vala, da farda

Pacha Ana

 

 

Ela apruma o corpo, levanta a cabea com altivez, ergue o brao direito para o alto, em posio de luta, como se estivesse se preparando para uma guerra. Os cabelos com um volumoso dread agigantam a sua figura no palco. No antigo pelourinho da cidade, na Praa da Mandioca, centro histrico de Cuiab, capital do estado de Mato Grosso, Ana Gabriela Santana, a rapper Pacha Ana evoca seus ancestrais para falar/batalhar do/no tempo presente. A palavra sua arma. Sua voz ecoa na praa: Os meninos correm da bala, da vala, da farda. a competio de poesia falada, o Slam[83] do Capim Cheiroso que entrecruza periferias e centro redesenhando novas linhas de comunicao com a cidade. A artista mato-grossense, mulher, negra, MC, rapper, poeta, cantora e compositora, tem se destacado no cenrio nacional e h tempos se debrua nesta temtica da denncia/resistncia, buscando inspiraes e aprendizagem na prpria experincia histrica do povo negro, sobretudo, das mulheres pretas.

Neste artigo,[84] optamos por trazer o poema Os meninos correm de Pacha Ana[85] para propor um exerccio de anlise a partir da noo de escala, desenvolvida pela sociolingustica, tendo como referncia a coletnea organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema, em dilogo com epistemes decoloniais[86] e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.

 

 

 

O rap e as oralidades urbanas

 

Muitas so as prticas da oralidade, da performance, da palavra, seja escrita nos muros ou falada/cantada em forma de rap, que ocupam os espaos da cidade para discutir/escancarar a poltica de extermnio de algumas populaes. No Brasil, essas expresses nos alertam principalmente sobre as polticas de morte e os genocdios enfrentados pelas populaes negras. O rap, por exemplo, reverbera nos coletivos que se organizam de vrias maneiras, seja em forma de batalhas ou slams ou mesmo em apresentaes nas ruas, em shows. O RAP (rhythm and poetry) tem ressonncia das narrativas orais africanas e remete tradio dos griots[87]. A fora da palavra oral da dispora africana funciona como um mecanismo depositrio de conhecimentos preservados que os colonizadores interditam no discurso oficial (CARVALHO, 2014, p. 325). Retomando a tradio africana da oralidade, o rap surgiu nos bairros jamaicanos na dcada de 1960 e foi levado para os bairros pobres de Nova Iorque, no comeo da dcada de 1970. No Brasil, o rap foi disseminado em So Paulo, na dcada de 1980, nas danas de break entre os integrantes do movimento hip-hop.

As narrativas do rap normalmente so relatos de violncia, discriminao, excluso e injustia social contra grupos historicamente subrepresentados e postos em situao de marginalidade. Essa manifestao da literatura oral urbana considerada pelo historiador Robin Kelley como uma arma poderosa na luta pela libertao negra (KELLEY, 2002, p. 11). Est fundamentado em uma potica da luta e da experincia vivida (KELLEY, 2002, p. 9), uma forma de resistncia cultural para lidar com as condies da vida diria, das opresses quotidianas, da sobrevivncia (KELLEY, 2002, p. 11). O rap ganhou fora nos espaos perifricos das cidades brasileiras e acabou por criar especificidades, poticas singulares a partir do lugar onde se manifesta.

 

 

O mal-estar do tempo presente

 

No tempo presente, o que qualificamos como um mal-estar pode ser percebido a partir da intensificao de certo repertrio afetivo: discursos-afetivos de dio, xenofobia, racismos, misoginia, homofobia, incivilidade, intolerncias, violncias e tantas outras atrocidades naturalizadas, que segregam, ceifam vidas, todavia, so elevadas condio de normalidade. Boa parte desse mal-estar causada pela disseminao das ideias neoliberais de desempenho, competio, hiperconcorrncia, sucesso e hiperindividualismo que produzem discursos de dio e buscam destruir possveis prticas de solidariedade.

Os discursos fascistas vm recheados de clichs que se amparam em fundamentalismos religiosos, apagamento e silenciamento histrico, memoricdio, epistemicdio da diversidade de saberes, gneros e sexualidades que divergem do conceito de famlia tradicional, na qual, o pilar o homem branco, produzindo assim, ideologias e prticas txicas que no so defensveis eticamente. Apoiam-se na inveno de um passado mtico para legitimar um ideal de pureza de raa e crena, ligado tambm ao ideal de fronteiras, que so ao mesmo tempo fronteiras geogrficas e simblicas, revelando uma sociedade atrelada a uma srie de dicotomias classificatrias, sendo a classificao racial a mais importante delas, pois, como afirma Anbal Quijano, a racializao das relaes de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o sustento e a referncia legitimadora fundamental do carter eurocentrado do padro de poder, material e intersubjetivo (QUIJANO, 2009, p. 107).

A diversidade de ideias, a manifestao da pluralidade de epistemes assusta os indivduos dessa sociedade causadora do mal-estar, justamente, porque desestabiliza discursos hegemnicos e hierarquias estabelecidas nos processos de dominao. Na tentativa de perceber possibilidades e desvios diante da sensao de incapacidade, de paralisia que este cenrio impe, nos propomos ao exerccio de observar um modo de resistncia que se d pela oralidade do rap. Assim, buscamos construir uma reflexo a partir de uma narrativa que pode ser uma alternativa para alertar sobre esses tempos no como o fim do mundo, o fim dos caminhos e a perda das esperanas, mas como denncia e resistncia na busca de uma sociedade mais humana, diversa e plural. Ao observarmos o poema oral Os meninos correm, escrito para ser falado, nos detivemos na sua forma, utilizando o conceito de escala, para perceber uma potica de resistncia.

 

 

Escala e a construo de sentidos na forma

 

               A escala um conceito que veio da geografia e foi desenvolvido na antropologia lingustica e na sociolingustica, na tentativa de buscar outras formas de observao dos objetos. Para o sociolinguista Jan Blommaert: Teorizar envolve a explorao de novas imagens e metforas, capazes de nos ajudar a imaginar objetos de forma distinta, a v-los como diferentes, objetos que exigem abordagens analticas diferentes (BLOMMAERT, 2007, p. 1).

               Assim, a partir da compreenso do conceito de escala, apresentado na obra Scale – Dicourse and Dimensions of Social of Social Life[88] pelos organizadores E. Summerson Carr e Michael Lempert, podemos dizer que se trata da formao do sentido que possumos de real e de concretude, pois a noo de escala no possui um carter hegemnico. Os autores salientam que o mundo material no pr-configurado, h na materialidade do mundo um complexo trabalho de construo semitica, envolvendo signos lingusticos e no lingusticos. (CARR; LEMPERT, 2016). Entre outras acepes, a noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando entender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade como elementos dinmicos. Esta construo no-esttica amplia a possibilidade de nos relacionarmos com o objeto de anlise. (CARR; LEMPERT, 2016). A compreenso de escala sugere movimento e anlise – ampliar os referenciais e se manter aberto se torna uma necessidade de um trabalho escalar. Movimento escalar um movimento produtor de sentidos, sendo que o nosso processo de significao sempre escalar, uma vez que para atribuir significados daquilo que real ou material sempre fazemos projees (CARR; LEMPERT, 2016). As metforas, por exemplo, so uma projeo escalar. Produo de narrativas so sempre projees escalares. Fenmenos escalares so sempre fenmenos relacionais, assim toda empreitada relacional comparativa. Analogias, totalizaes, sistemas classificatrios e esteretipos so relacionais, portanto escalares. O sentido no definitivo, assim, ao nos lanarmos ao exerccio de propormos novas projees, obteremos resultados completamente diferentes. Para os autores no h escalas ideologicamente neutras, e pessoas e instituies que se destacam nos exerccios escalares geralmente reforam as distines que os ordenaram (CARR; LEMPERT, 2016, p. 3. Traduo nossa).[89]

Pensando, ento, na relao entre as imagens disparadas pelo poema Os meninos correm de Pacha Ana e as que construmos a partir do contato com a obra de Achile Mbembe, realizamos um exerccio de anlise da estrutura do poema, dentro de uma perspectiva escalar. Como defendem Carr e Lempert (2016, p. 3. Traduo nossa):

as escalas nas quais os atores sociais se baseiam para organizar, interpretar, orientar e agir em seus mundos no so dadas, mas so construdas – e um tanto trabalhosas. Escalar no simplesmente assumir ou afirmar grandeza ou pequenez por meio de clculo. Pelo contrrio, [...] as pessoas usam a linguagem para dimensionar o mundo ao seu redor. [...]. Embora as coisas possam ser grandes, por analogia, a criao de escala sempre implica em distines, entre a grandeza da costela de uma baleia e a pequenez de um mrmore, por exemplo. Como um esforo inerentemente relacional e comparativo, o dimensionamento pode assim conectar e at confinar o que geograficamente, geopoliticamente, temporalmente ou moralmente prximo, ao mesmo tempo em que distingue essa proximidade da que est distante. Da mesma forma, hierarquias em escala so os efeitos dos esforos para classificar, agrupar e categorizar muitas coisas, pessoas e qualidades em termos de graus relativos de elevao ou centralidade. Por exemplo, pense em como uma entidade ou domnio parece abranger outro, como em mapas que subordinam localidades de ordem superior, unidades administrativas ou do modo como se pensa os estados-nao, as comunidades acima.[90]

 

 

Os meninos correm – escala e necropoltica – um dilogo possvel.

 

Os meninos correm

Os meninos correm,

Os meninos correm almejando tudo,

almejando o mundo,

pensando que a pressa a soluo pra tudo,

mas no no.

Eles correm por medo,

correm em segredo,

correm na contramo.

Os meninos correm por causa do atraso, correm pra no ser um fardo, e isso nem um caso isolado.

Os meninos correm,

alguns porque gostam,

outros s porque precisam mesmo.

Inclusive, os meninos correm mas nem todos chegam mais cedo.

Alis, alguns nem chegam.

Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm

e todo dia quando ele sai, a me pede amm

pra que nada, nem ningum

tire o seu maior bem.

Ela reza:

Oromima, oromimayor, oromimayor, iabadoaiio

Oromima, oromimayor, oromimayor, iabadoai, io

Ai, ai oxum, ora i

Ai, ai oxum, ora i

Isso porque os meninos correm,

mas se for de madrugada e ele for preto

j suspeito!

Parece que ser escuro defeito.

Os meninos correm da bala, da vala, da farda,

COMO SE AINDA EXISTISSE SENZALA!

Se vive at os 21, lucro.

Isso culpa de um sistema fajuto,

onde alguns meninos correm e chegam,

outros, deixam mes em luto.

(Pacha Ana, fevereiro de 2017)

 

Pacha Ana, fazendo uso do seu lugar de fala – entendendo que lugar de fala tambm a fala de lugar –, por meio da oralidade, olha para uma populao que se situa margem, para atravs do afeto nos aproximar de corpos silenciados, identificados como suspeitos por um estado de exceo permanente. Os meninos correm traz uma possibilidade de reflexo sobre os processos de retirada de direitos, extermnios de populaes racializadas[91] o poder sobre a vida, para construir, assim, um contra discurso. Mbembe (2016, p. 123) afirma que: matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantao e manifestao de poder. E ainda diz que a soberania a capacidade de definir quem importa e quem no importa, quem descartvel e quem no (MBEMBE, 2016, p. 135), sendo que tm se caracterizado como descartveis os seres humanos do sul global, ou seja, os no europeus, que foram classificados como inferiores a partir de um processo de naturalizao de relaes sociais que visavam atender os poderosos interesses articulados com a consolidao do capitalismo/colonialismo/patriarcado.

No poema, a utilizao da palavra correm, numa escala de repetio, sugere distintas imagens, que percorrem desde a leveza do simples ato de correr, do imaginrio de meninos que flertam com a infncia e a liberdade, at o peso da realidade de alguns corpos que precisam correr para no morrer ou que so mortos enquanto esto correndo. Pacha Ana, ao trazer uma orao/saudao de matriz africana, construindo uma aluso a vozes das mes pretas, utiliza projees escalares de ancestralidade, racialidade, temporalidade, espiritualidade. Demarca um lugar, sugere um ritmo, uma sonoridade, invoca corpos portadores de saberes ancestrais, tradies orais, propondo olhares para uma cultura que vem sendo historicamente perseguida, constantemente desvalorizada e violentamente silenciada. Grosfoguel (2014) afirma que a expanso colonial europeia significou o genocdio e o epistemicdio de indgenas, africanos e de mulheres. Alm disso, o colonialismo realizou um enorme memoricdio, sendo que a estrutura de conhecimento que domina as universidades de todo o mundo est atrelada estrutura imperialista colonial de poder. O homem ocidental, europeu, branco, heterossexual, cristo, quem decide o que o melhor para as demais populaes de todo mundo. Nesses processos, ele despreza, invisibiliza, destri e assassina sociedades inteiras, suas culturas e seus saberes. Segundo Grosfoguel, autores homens, brancos, de cinco pases formam os cnones da cincia desenvolvida em qualquer universidade do mundo. Isso revela um racismo e um sexismo epistemolgico iniciado com a modernidade e o colonialismo. Dessa forma, para descolonizar o pensamento necessrio dialogar com uma diversidade epistmica, buscando enriquecer a maneira de ver o mundo. Ouvir a voz dos colonizados, estabelecer dilogos com saberes e epistemes ancestrais constituem caminhos possveis para a descolonizao do conhecimento. O pensamento e os saberes compartilhados por Pacha Ana, uma mulher negra, por meio do poema Os meninos correm, se colocam na contramo da colonizao e da permanente colonialidade. A ancestralidade evocada pela poetisa nos faz dialogar com mltiplas epistemes, mltiplos saberes, sobretudo saberes que foram esmagados pela modernidade. Pacha Ana se coloca na contramo da sociedade do mal-estar no por dar voz ancestralidade, mas por aprender com ela e, assim, tornar-se/ser tambm essa ancestralidade.

No trecho em que, optando por destacar o verso com letras maisculas, sugere um grito, uma ateno maior: COMO SE AINDA EXISTISSE SENZALA! observamos uma escala emocional-irnica e histrica, que expe uma indignao pulsante, descrevendo o cenrio que questiona. Em outro fragmento identificamos escalas classificatrias e de ironia: mas se for de madrugada e ele for preto / j suspeito! / Parece que ser escuro defeito, que evidencia a poltica de extermnio de corpos negros. Numa escala crtica, o trecho Se vive at os 21, lucro, situa a realidade destes corpos que esto margem, sinalizados, marcados para morrer. Pudemos identificar ainda outras projees escalares dentro do poema, como por exemplo: escalas de indignao, como no trecho Isso culpa de um sistema fajuto, onde alguns meninos correm e chegam, outros, deixam mes em luto; metafricas, como em correm na contramo e correm para no ser um fardo; bem como poltico-crticas, em Eles correm por medo, correm em segredo e Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm.

A cada vinte e trs minutos um jovem negro assassinado no Brasil[92]. Exrcito dispara 80 tiros em carro de famlia no Rio e mata msico[93]. 75% das vtimas de homicdio no Pas so negras[94]. Assassinatos de jovens negros no Brasil aumentam 429% em 20 anos[95]. Quando nos deparamos com alguns dados sobre a violncia e a criminalidade no Brasil, colocamo-nos diante de informaes alarmantes, tanto pelo contedo, quanto pela dimenso miditica a qual esse contedo submetido. Que corpos merecem viver? Que corpos merecem morrer? Quem tem o poder de deciso? O poema Os meninos correm discute essas questes e expe possveis respostas, ainda que numa perspectiva irnica, a essas perguntas.

            Na obra Discurso sobre o Colonialismo, Aim Csaire reflete sobre os diversos nazismos cometidos contra povos no europeus, sobretudo os que existiram durante todo o perodo de colonizao e escravizao das populaes negras, apontando que esses nazismos sempre foram aceitos pela populao europeia:

no fundo o que no perdovel em Hitler no o crime em si, o crime contra o homem, no a humilhao em si, seno o crime contra o homem branco, a humilhao do homem branco, e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que at agora s concerniam aos rabes da Arglia, aos coolies da ndia e aos negros da frica (CSAIRE, 2010, p. 21).

Dialogando com Csaire e Frantz Fanon, Mbembe (2016) observa que o estado de exceo no foi fundado com o nazismo, pois ele existiu anteriormente para as populaes negras. A escravido moderna seria um exemplo de estado de exceo, ou melhor, um estado de terror duradouro. E esse terror duradouro, identificado por Mbembe, simboliza a realidade de boa parte dos negros e das negras brasileiras. Atravs do cruzamento dos dados do IBGE sobre a populao negra no Brasil e o poema de Pacha Ana, podemos afirmar que os negros vivem em um estado de exceo contnuo, um mundo de morte, de mortos-vivos, que, segundo o autor, no pode ser explicado seno pela perspectiva da necropoltica. As novas formas de matar, de fazer de vivos mortos-vivos, no podem ser elucidados pelo biopoder, uma vez que, esta questo uma poltica de morte, um ideal de extermnio que acompanha as populaes negras desde a colonizao.

A necessidade de olharmos para os corpos negros ressaltada quando olhamos os dados, por exemplo, divulgados pelo Atlas da Violncia 2019, produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada), e que publica estudos e dados relacionados ao ndice de violncia no Brasil. Segundo este estudo:

Em 2017, 75,5% das vtimas de homicdios foram indivduos negros (definidos aqui como a soma de indivduos pretos ou pardos, segundo a classificao do IBGE, utilizada tambm pelo SIM), sendo que a taxa de homicdios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de no negros (brancos, amarelos e indgenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente s respectivas populaes, para cada indivduo no negro que sofreu homicdio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos (IPEA, 2019, p. 49).

Correr brincando, correr para chegar escola, correr para pegar o nibus, correr por esporte, correr para no morrer, correr para no ser eliminado. Pacha Ana nos conecta com O Genocdio do negro no Brasil, uma das primeiras obras escritas por um intelectual negro brasileiro, visando o combate ao racismo e discriminao racial em nosso pas. Abdias do Nascimento (2016) detalha como, historicamente, no Brasil, foi se formando e se construindo um processo de um racismo mascarado. Segundo ele, o processo comea com a rejeio da histria dos africanos e seus descendentes, passando pelo mito da benevolncia do branco portugus para com o negro e das possveis contribuies do branco civilizado para com o negro incivilizado. Para Abdias, na construo desse racismo mascarado, houve at quem dissesse que a escravido e outras atrocidades cometidas contra o negro, seria um mal necessrio para o processo de civilizao dos mesmos. Neste ponto, voltamos reflexo proposta por Csarie (2010), de que ao longo do processo de colonizao sempre foi permitido e aceito assassinar no europeus, sobretudo, negros.

Influenciado por Frantz Fanon, Nascimento (2016) denuncia a existncia do racismo no Brasil, enfatizando a desvalorizao da mulher e do homem negro em nosso pas, o branqueamento racial e cultural, a perseguio cultura africana, a bastardizao da cultura afro-brasileira e todas as estratgias de genocdio do negro e sua cultura em terras tupiniquins. Segundo o autor, o racismo camuflado existente no Brasil muito mais nocivo que o racismo declarado existente na sociedade estadunidense, pois sustentado pelo mito da democracia racial; o racismo brasileira se esconde, se camufla, finge no existir. O que dificulta a criao de mecanismos para combat-lo, contribuindo para um estado de terror duradouro para as populaes negras.

Walter Mignolo afirma que a colonialidade era a pauta oculta ou o lado escuro da modernidade. Segundo o autor, pensar o conceito de colonialidade j um ato descolonizador, pois preciso partir de um olhar decolonial para observar a barbrie existente por trs do discurso civilizatrio. Assim, ocultadas por trs da retrica da modernidade, prticas econmicas dispensavam vidas humanas, e o conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram naturalmente consideradas dispensveis (MIGNOLO, 2017, p. 1). Dessa forma, a partir da viso de Mignolo, podemos pensar que por trs do discurso de progresso e de desenvolvimento, esto prticas discursivas e representaes que tiram vidas, dizimam memrias e exterminam culturas. Autores decoloniais como Ramn Grosfoguel, Anbal Quijano e Walter Mignolo vo concordar que a principal tarefa dos tericos decoloniais quebrar com a colonialidade existente no mundo, a colonialidade est travestida de globalizao/modernidade:

H um fato na cultura de toda a Amrica, e na da Amrica Latina em particular, que envolve o mundo inteiro hoje em sua globalidade e que precisa ser reconhecido, questionado, debatido e evacuado: a colonialidade do poder. Esse o primeiro passo para a democratizao da sociedade e do Estado; da reconstituio epistemolgica da modernidade; da busca por uma racionalidade alternativa (QUIJANO, 2014, p. 767. Traduo nossa)[96]

Quebrar com a colonialidade significa utilizar a diversidade epistmica.

Em ambos os casos, a geopoltica e a corpo-poltica (entendidas como a configurao biogrfica de gnero, religio, classe, etnia e lngua) da configurao de conhecimento e dos desejos epistmicos foram ocultadas, e a nfase foi colocada na mente em relao ao Deus e em relao razo. Assim foi configurada a enunciao da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da enunciao que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ao descoloniais focam na enunciao, se engajando na desobedincia epistmica e se desvinculando da matriz colonial para possibilitar opes descoloniais – uma viso da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais, conhecimentos descoloniais e instituies descoloniais (MIGNOLO, 2017, p. 6).

 

 

Concluindo: os meninos ainda correm

 

Utilizando o conceito de escala para realizar um exerccio de anlise do rapper poema oral Os meninos correm, em dilogo com os conceitos de necropoltica e decolonialidade, acreditamos que o poema se apresenta como uma resistncia ao mal-estar que atravessa a nossa sociedade. Como, por exemplo, as possibilidades apresentadas de diferentes imagens para uma mesma palavra correm ampliam o nosso olhar, nossa forma de nos relacionarmos com a obra e, principalmente, ao que ela convoca, possibilitando questionamentos, propondo uma desestabilizao de sentidos pr-concebidos.

A poetisa rapper Pacha Ana prope um esforo de denunciar essa necropoltica que atravessa o tempo presente, apresentando uma forma de poema falado que questiona as normas criadas ou construdas culturalmente para excluir, subalternizar e dar prosseguimento lgica colonial que sustenta o atual padro de poder mundial. A partir de Os meninos correm, entendemos que possvel ressignificar as normas e os discursos que qualificam o mal-estar, revelando que nada eterno, absoluto e universal.

Se a colonialidade, as ideias neoliberais, o machismo, o racismo, a heterossexualidade compulsria nos obriga a ter determinados comportamentos, se as categorias de dominao construdas pelo homem branco (ocidental, htero, cristo) nos faz conviver com esse mal-estar, o poema tal como novas/outras epistemes pode apoiar na construo de questionamentos aos discursos e as prticas de dominao hegemnicas. Se as categorias de dominao foram socialmente construdas, se narrativas contam e constroem narrativas, podemos construir contranarrativas, outros discursos que tragam problemas que nos apiem em nossos processos de resistncia. No se trata de dar voz aos corpos oprimidos e sim de pluralizar nossas referncias e dialogar com diferentes epistemologias, no apenas como fonte de pesquisa, mas como produtora de saberes que historicamente foram desconsiderados. Descolonizar aprender e falar com o outro subalternizado. As tenses propostas aqui tiveram como inteno sulear a inquietao de pensarmos outros cenrios possveis e criar possibilidades de desestabilizar o pensamento hegemnico que insiste em se manter como verdade nica e curso natural da histria. Criar resistncia tambm desestabilizar o olhar colonial que assola o Brasil, determinando os espaos que as populaes negras devem ocupar na sociedade.

Deste modo, o exerccio de anlise do poema Os meninos correm, combinando o conceito de necropoltica de Achile Mbembe com a noo de escala para observar estas obras que povoam a oralidade urbana, podem trazer tona a construo de uma contra narrativa. Neste caso, a resistncia est contida tambm na forma do poema reforando a possibilidade de criao de outros modos de existncia.

 

 

Referncias

 

Blommaert, Jan. 2007. Sociolinguistic Scales. Intercultural Pragmatics 4 (1): 1-19.

CARR, E. Summerson and LEMPERT, Michael (eds.) Scale: Discourse and Dimensions of Social Life. Oakland: University of California Press, 2016. DOI: http://doi.org/10.1525/luminos.15.

 

CARVALHO, Jos Ricardo. Educao, identidade e literatura oral: o griot na dispora africana. Revista Frum Identidades, Sergipe, v. 16, n. 16, p. 313-336, jul./dez de 2014.

 

CSAIRE, Aim. Discurso sobre o colonialismo. Ansio Garcez Homem (Trad.). PALHOA, SC: Ed. Letras Contemporneas, 2010.

 

GROSFOGUEL, Ramn. De la crtica poscolonialala crtica descolonial. MAEID – MaestraenEstudiosInterdisciplinariosdelDesarrollo. UniversidaddelCauca. Popayn – Colmbia. Youtube: 16/10/2014. 100 min, cor. Disponvel em: <https://www.youtube.com/watch?v=IpIfyoLE_ek&t=4337s>. Acesso em: 22 abr. 2019.

 

IPEA; FBSP. Atlas da violncia 2019. Organizadores: Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada; Frum Brasileiro de Segurana Pblica. Braslia: Rio de Janeiro: So Paulo: Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada; Frum Brasileiro de Segurana Pblica. 2019. Disponvel em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 1 nov. 2019.

 

KELLEY, Robin. Freedom dreams. The Black Radical Imagination. Boston: Beacon Press, 2002.

 

MBEMBE, Achile. Necropoltica. Biopoder, Soberania e Estado de Exceo. 2016. Disponvel em: < https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169 > Acesso em: jul. 2019.

 

MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. So Paulo: Revista Brasileira de Cincias Sociais. RBCS, Vol. 32, n. 94, junho/2017.

 

NASCIMENTO, Abdias. O genocdio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. So Paulo: Perspectiva, 2016.

 

QUIJANO, Anbal. Raza, Etnia y Nacin em Maritegui. In: _________. Cuestiones y horizontes: de La dependencia histrico-estructural a lacolonialidad/descolonialidaddel poder. Buenos Aires: Clacso, 2014.

 

QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder e classificao social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edies Almedina SA, 2009.

 

 

[Recebido: 14 out 2020 – Aceito: 19 set 2020]



[79] Graduado em Artes Cnicas (UNESPAR-FAP). Mestrando em Estudos de Cultura Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPGECCO-UFMT). Membro da Solta Cia de Teatro de Cuiab – MT, do Coletivo Deriva e do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades. Professor colaborador da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.

[80] Graduada em Comunicao Social – Rdio e TV (UFMT). Mestranda em Estudos de Cultura Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPG-ECCO/UFMT), Membro do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades, do In-Prprio Coletivo e Coordenadora das reas Tcnicas da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.

[81] Graduado em Histria pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Mestre em Histria pela Universidade Federal da Bahia. Cursa doutorado em Histria na UFMT. Professor EBTT de Histria no Instituto Federal do Mato Grosso.

[82] Pesquisadora Associada do Programa  de Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea da UFMT. Doutora em Artes Cincias pela USP.

[83] Slams ou poetry slams so encontros de poesia falada (spoken word) e performtica, geralmente em forma de competio, em que um jri popular, escolhido espontaneamente entre o pblico, d nota aos slammers (os poetas), levando em considerao principalmente dois critrios: a poesia e o desempenho.

[84] Este artigo teve incio na disciplina Performatividades discursivo-afetivas do mal-estar na contemporaneidade, ofertada pela professora doutora Branca Falabella Fabrcio, no Programa de Ps-graduao em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGEL-UFMT).

[85] Nasceu em Rondonpolis (MT). Seu nome artstico (Pacha) derivado do Quechua, a lngua antiga dos povos incas e pr-incas, significa mundo ou universo. Pacha tem uma grande atuao no segmento da poesia, tricampe do slam estadual mato-grossense, foi semifinalista na Copa Brasileira de Poesia – SlamBR em 2017 e finalista em 2018. Atualmente, em turn pelo Sesc no projeto A Arte da Palavra, viajando por 7 estados e 14 cidades brasileiras, com o espetculo Faces: A Poesia Negra Em Mim, Em Ns. Em suas letras, aborda o empoderamento da mulher, do povo preto, a espiritualidade no Ax e suas vivncias dirias. Em 2017, foi contemplada no edital da SEC de Cultura de Cuiab que viabilizou seu primeiro disco Omo Oy, lanado em setembro de 2018 (Texto fornecido pela prpria artista).

[86]A crtica ou o pensamento decolonial ou descolonial uma tentativa de incluir a Amrica no pensamento ps-colonial, uma vez que os autores ps-coloniais no estudavam ou no se interessavam pelos estudos dos processos de colonizao e dominao espanhola e portuguesa na Amrica. A ateno da crtica ps-colonial se restringia aos pases de lngua inglesa, mais especificamente a ndia e alguns pases do Oriente Mdio que foram colonizados pela Inglaterra. Diferente do pensamento ps-colonial, a crtica decolonial vai levar em considerao o dilogo com mltiplas epistemes, buscando o pluralismo de ideias e a diversidade epistemolgica. A proposta decolonial que se insira a Amrica Latina nas discusses ps-coloniais, mas, mais do que isso, que se parta da prpria Amrica Latina e de sua diversidade epistemolgica para entender suas questes. Para Grosfoguel (2014), existe uma pluralidade de vises e diversas formas de pensar no interior da crtica decolonial, afirmando que se fosse nica ou se existisse uma nica forma de pensar, seria mais uma reproduo do pensamento colonial, como em certa medida, foi a crtica ps-colonial. Sendo assim, no existe um modelo nico na crtica decolonial, muito menos a negao ou o desmerecimento de algumas epistemologias europeias importantes para compreender a questo da dominao e da subalternidade.

[87] Os griots so considerados guardies da histria e da memria que por meio da oralidade transmitem suas histrias e seus conhecimentos. Muitos so cantadores.

[88] Escala – Discurso e Dimenses do Social da Vida Social (Traduo nossa).

[89] there are no ideologically neutral scales, and people and institutions that come out on top of scalar exercises ofen reinforce the distinctions that so ordained them.

[90] that the scales that social actors rely upon to organize, interpret, orient, and act in their worlds are not given but made—and rather laboriously so. For to scale is not simply to assume or assert bigness or smallness by way of a ready-made calculus. Rather, [...] people use language to scale the world around them. [...]. Although things can be made big though analogy, scale-making always also entails drawing distinctions, between the bigness of a whales rib and the smallness of a marble, for instance. As an inherently relational and comparative endeavor, scaling may thus connect and even confate what is geographically, geopolitically, temporally, or morally near while simultaneously distinguishing that nearness from that which is far. Similarly, scaled hierarchies are the efects of eforts to sort, group, and categorize many things, people, and qualities in terms of relative degrees of elevation or centrality. Tink, for example, of the way one entity or domain seems to encompass another, as with maps that subordinate localities within higher order administrative units, or of the way nation-states are commonly thought to hover above communities.

[91] Termo usado por Quijano (2009) ao denunciar a classificao social a partir da ideia de raa como principal motor do atual padro de poder mundial.

[92] Disponvel em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295. Acesso em: 10 nov. 2019.

 [93]Disponvel em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml. Acesso em: 10 nov. 2019.

[94] Disponvel em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Publicada dia 05/06/2019. Acesso em: 10 nov. 2019.

[95] Disponvel em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/assassinatos-de-jovens-negros-no-brasil-aumentam-429-em-20-anos/. Publicada dia 17/04/2019. Acesso: 10 nov. 2019.

[96] Hay um hecho en la cultura de Amrica toda, y enla de Amrica Latina en particular, que implica a todo el mundo de hoy em suglobalidad y que precisa ser reconocido, puesto en cuestin, debatido y evacuado: la colonialidad del poder. Ese es el primer paso endireccin de la democratizacin de la sociedad y del Estado; de la reconstitucin epistemolgica de la modernidad; de la bsqueda de una racionalidad alternativa.