Rap e resistncia: necropoltica e escala em Os meninos correm
Rap
and Resistance: Necropolitics and Scale in Os
meninos correm
Everton Santos de Brito[79]
https://0000-0002-2182-1700
Karina Figueredo Souza[80]
https://0000-0002-5704-9767
Lucas Santos Caf[81]
https://0000-0003-2654-0788
Maria
Thereza de Oliveira Azevedo[82]
https://0000-0003-2912-2346
Resumo: Este artigo
se prope a um exerccio de anlise do poema oral Os meninos correm da rapper Pacha Ana, para refletir sobre o
mal-estar do tempo presente e as possibilidades de resistncia pela oralidade.
O conceito de escala foi
desenvolvido pela sociolingustica e, neste artigo, nos baseamos na coletnea
organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema. A noo de escala contribui para o entendimento de que a realidade no esttica,
buscando compreender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a
sociedade como elementos dinmicos. Na discusso, um dilogo com as epistemes
decoloniais e afro-diaspricas, sobretudo, a partir das reflexes do professor
Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.
Palavras chave: Resistncia;
Escala; Necropoltica; Rap; Os meninos correm.
Abstract: Exercise in the analysis of the
oral poem Os meninos correm from
Pacha Ana, to reflect on the discomfort of the present time and the
possibilities of resistance, that's what it proposes this article. The concept
of scale developed by sociolinguistics, based on the collection organized by E.
SummersonCarr and Michael Lempert on the topic, is the reference for the
analysis. The notion of scale contributes to the understanding that reality is
not static, seeking to understand things, processes, events, history, society as dynamic elements. In the discussion, a dialogue
with the decolonial and afro-diasporic epistemes,
above all, based on the reflections of Professor Achille Mbembe and the concept
of necropolitics.
Key words: Resistance; Scale; Necropolitics; Rap; Os meninos correm.
Os meninos correm da bala, da vala, da farda
Pacha Ana
Ela apruma o corpo, levanta a cabea com altivez, ergue o
brao direito para o alto, em posio de luta, como se estivesse se preparando
para uma guerra. Os cabelos com um volumoso dread
agigantam a sua figura no palco. No antigo pelourinho da cidade, na Praa da
Mandioca, centro histrico de Cuiab, capital do estado de Mato Grosso, Ana
Gabriela Santana, a rapper Pacha Ana
evoca seus ancestrais para falar/batalhar do/no tempo presente. A palavra sua
arma. Sua voz ecoa na praa: Os meninos correm da bala, da vala, da farda.
a competio de poesia falada, o Slam[83] do Capim Cheiroso
que entrecruza periferias e centro redesenhando novas linhas de comunicao com
a cidade. A artista mato-grossense, mulher, negra, MC, rapper, poeta, cantora e compositora, tem se destacado no cenrio
nacional e h tempos se debrua nesta temtica da denncia/resistncia,
buscando inspiraes e aprendizagem na prpria experincia histrica do povo
negro, sobretudo, das mulheres pretas.
Neste artigo,[84] optamos por trazer o
poema Os meninos correm de Pacha Ana[85] para propor um exerccio
de anlise a partir da noo de escala,
desenvolvida pela sociolingustica, tendo como referncia a coletnea
organizada por E. Summerson Carr e Michael Lempert sobre o tema, em dilogo com
epistemes decoloniais[86] e afro-diaspricas,
sobretudo, a partir das reflexes do professor Achille Mbembe e o conceito de necropoltica.
O rap e as oralidades urbanas
Muitas so as prticas da oralidade, da performance, da
palavra, seja escrita nos muros ou falada/cantada em forma de rap, que ocupam os espaos da cidade
para discutir/escancarar a poltica de extermnio de algumas populaes. No
Brasil, essas expresses nos alertam principalmente sobre as polticas de morte
e os genocdios enfrentados pelas populaes negras. O rap, por exemplo, reverbera nos coletivos que se organizam de
vrias maneiras, seja em forma de batalhas ou slams ou mesmo em apresentaes nas ruas, em shows. O RAP (rhythm
and poetry) tem ressonncia das narrativas orais africanas e remete
tradio dos griots[87]. A fora da palavra oral da dispora
africana funciona como um mecanismo depositrio de conhecimentos preservados
que os colonizadores interditam no discurso oficial (CARVALHO, 2014, p. 325). Retomando a tradio
africana da oralidade, o rap surgiu nos bairros jamaicanos na
dcada de 1960 e foi levado para os bairros pobres de Nova Iorque, no comeo da
dcada de 1970. No Brasil, o rap foi
disseminado em So Paulo, na dcada de 1980, nas danas de break entre os integrantes do movimento hip-hop.
As narrativas do rap
normalmente so relatos de violncia, discriminao, excluso e injustia
social contra grupos historicamente subrepresentados e postos em situao de
marginalidade. Essa manifestao da literatura oral urbana considerada pelo
historiador Robin Kelley como uma arma poderosa na luta pela libertao negra
(KELLEY, 2002, p. 11). Est fundamentado em uma potica da luta e da
experincia vivida (KELLEY, 2002, p. 9), uma forma de resistncia cultural
para lidar com as condies da vida diria, das opresses quotidianas, da
sobrevivncia (KELLEY, 2002, p. 11). O rap
ganhou fora nos espaos perifricos das cidades brasileiras e acabou por criar
especificidades, poticas singulares a partir do lugar onde se manifesta.
O mal-estar do
tempo presente
No tempo presente, o que qualificamos como um mal-estar pode ser percebido a partir da intensificao de
certo repertrio afetivo: discursos-afetivos de dio, xenofobia, racismos,
misoginia, homofobia, incivilidade, intolerncias, violncias e tantas outras
atrocidades naturalizadas, que segregam, ceifam vidas, todavia, so elevadas
condio de normalidade. Boa parte desse mal-estar causada pela disseminao das
ideias neoliberais de desempenho, competio, hiperconcorrncia, sucesso e
hiperindividualismo que produzem discursos de dio e buscam destruir possveis
prticas de solidariedade.
Os discursos fascistas vm recheados de clichs que se
amparam em fundamentalismos religiosos, apagamento e silenciamento histrico,
memoricdio, epistemicdio da diversidade de saberes, gneros e sexualidades
que divergem do conceito de famlia tradicional, na qual, o pilar o homem
branco, produzindo assim, ideologias e prticas txicas que no so defensveis
eticamente. Apoiam-se na inveno de um passado mtico para legitimar um ideal
de pureza de raa e crena, ligado tambm ao ideal de fronteiras, que so ao
mesmo tempo fronteiras geogrficas e simblicas, revelando uma sociedade
atrelada a uma srie de dicotomias classificatrias, sendo a classificao
racial a mais importante delas, pois, como afirma Anbal Quijano, a
racializao das relaes de poder entre as novas identidades sociais e
geoculturais foi o sustento e a referncia legitimadora fundamental do carter
eurocentrado do padro de poder, material e intersubjetivo (QUIJANO, 2009, p. 107).
A diversidade de ideias, a manifestao da pluralidade de
epistemes assusta os indivduos dessa sociedade causadora do mal-estar,
justamente, porque desestabiliza discursos hegemnicos e hierarquias estabelecidas
nos processos de dominao. Na tentativa de perceber possibilidades e desvios
diante da sensao de incapacidade, de paralisia que este cenrio impe, nos
propomos ao exerccio de observar um modo de resistncia que se d pela
oralidade do rap. Assim, buscamos
construir uma reflexo a partir de uma narrativa que pode ser uma alternativa
para alertar sobre esses tempos no como o fim do mundo, o fim dos caminhos e a
perda das esperanas, mas como denncia e resistncia na busca de uma sociedade
mais humana, diversa e plural. Ao observarmos o poema oral Os meninos correm, escrito para ser falado, nos detivemos na sua forma,
utilizando o conceito de escala, para perceber uma potica de
resistncia.
Escala e a construo
de sentidos na forma
A escala um conceito que veio da
geografia e foi desenvolvido na antropologia lingustica e na sociolingustica,
na tentativa de buscar outras formas de observao dos objetos. Para
o sociolinguista Jan Blommaert: Teorizar envolve a explorao de novas imagens
e metforas, capazes de nos ajudar a imaginar objetos de forma distinta, a
v-los como diferentes, objetos que exigem abordagens analticas diferentes (BLOMMAERT,
2007, p. 1).
Assim, a
partir da compreenso do conceito de escala, apresentado na obra Scale – Dicourse and Dimensions of
Social of Social Life[88]
pelos organizadores E. Summerson Carr e Michael Lempert, podemos dizer que se
trata da formao do sentido que possumos de real e de concretude, pois a
noo de escala no possui um carter
hegemnico. Os autores salientam que o mundo material no pr-configurado, h
na materialidade do mundo um complexo trabalho de construo semitica,
envolvendo signos lingusticos e no lingusticos. (CARR; LEMPERT, 2016). Entre
outras acepes, a noo de escala
contribui para o entendimento de que a realidade no esttica, buscando
entender as coisas, os processos, os acontecimentos, a histria, a sociedade
como elementos dinmicos. Esta construo no-esttica amplia a possibilidade
de nos relacionarmos com o objeto de anlise. (CARR; LEMPERT, 2016). A
compreenso de escala sugere
movimento e anlise – ampliar os referenciais e se manter aberto se torna
uma necessidade de um trabalho escalar. Movimento escalar um movimento
produtor de sentidos, sendo que o nosso processo de significao sempre
escalar, uma vez que para atribuir significados daquilo que real ou material
sempre fazemos projees (CARR; LEMPERT, 2016). As metforas, por exemplo, so
uma projeo escalar. Produo de narrativas so sempre projees escalares.
Fenmenos escalares so sempre fenmenos relacionais, assim toda empreitada
relacional comparativa. Analogias, totalizaes, sistemas classificatrios e
esteretipos so relacionais, portanto escalares. O sentido no definitivo,
assim, ao nos lanarmos ao exerccio de propormos novas projees, obteremos
resultados completamente diferentes. Para os autores no
h escalas ideologicamente neutras, e pessoas e instituies que se destacam
nos exerccios escalares geralmente reforam as distines que os ordenaram (CARR; LEMPERT, 2016, p. 3. Traduo nossa).[89]
Pensando, ento, na relao entre as imagens disparadas
pelo poema Os meninos correm de Pacha Ana e as que construmos a partir
do contato com a obra de Achile Mbembe, realizamos um exerccio de anlise da
estrutura do poema, dentro de uma perspectiva escalar. Como defendem Carr e
Lempert (2016, p. 3. Traduo nossa):
as escalas nas quais os atores sociais se baseiam para organizar,
interpretar, orientar e agir em seus mundos no so dadas, mas so construdas –
e um tanto trabalhosas. Escalar no simplesmente assumir ou afirmar
grandeza ou pequenez por meio de clculo. Pelo contrrio, [...] as pessoas
usam a linguagem para dimensionar o mundo ao seu redor. [...]. Embora as coisas
possam ser grandes, por analogia, a criao de escala sempre implica em
distines, entre a grandeza da costela de uma baleia e a pequenez de um
mrmore, por exemplo. Como um esforo inerentemente relacional e comparativo, o
dimensionamento pode assim conectar e at confinar o que geograficamente,
geopoliticamente, temporalmente ou moralmente prximo, ao mesmo tempo em que
distingue essa proximidade da que est distante. Da mesma forma, hierarquias
em escala so os efeitos dos esforos para classificar, agrupar e categorizar
muitas coisas, pessoas e qualidades em termos de graus relativos de elevao ou
centralidade. Por exemplo, pense em como uma entidade ou domnio parece
abranger outro, como em mapas que subordinam localidades de ordem superior, unidades
administrativas ou do modo como se pensa os estados-nao, as comunidades
acima.[90]
Os meninos correm –
escala e necropoltica – um dilogo possvel.
Os meninos correm
Os meninos correm,
Os meninos correm
almejando tudo,
almejando o mundo,
pensando que a
pressa a soluo pra tudo,
mas no no.
Eles correm por
medo,
correm em segredo,
correm na
contramo.
Os meninos correm
por causa do atraso, correm pra no ser um fardo, e isso nem um caso isolado.
Os meninos correm,
alguns porque
gostam,
outros s porque
precisam mesmo.
Inclusive, os
meninos correm mas nem todos chegam mais cedo.
Alis, alguns nem
chegam.
Isso porque os
meninos correm, mas a polcia tambm
e todo dia quando
ele sai, a me pede amm
pra que nada, nem
ningum
tire o seu maior bem.
Ela reza:
Oromima,
oromimayor, oromimayor, iabadoaiio
Oromima,
oromimayor, oromimayor, iabadoai, io
Ai, ai oxum, ora
i
Ai, ai oxum, ora
i
Isso porque os
meninos correm,
mas se for de
madrugada e ele for preto
j suspeito!
Parece que ser
escuro defeito.
Os meninos correm
da bala, da vala, da farda,
COMO SE AINDA
EXISTISSE SENZALA!
Se vive at os 21,
lucro.
Isso culpa de um
sistema fajuto,
onde alguns
meninos correm e chegam,
outros, deixam
mes em luto.
(Pacha Ana, fevereiro de 2017)
Pacha Ana, fazendo uso do seu lugar de fala –
entendendo que lugar de fala tambm a fala de lugar –, por meio da
oralidade, olha para uma populao que se situa margem, para atravs do afeto
nos aproximar de corpos silenciados, identificados como suspeitos por um
estado de exceo permanente. Os meninos
correm traz uma possibilidade de reflexo sobre os processos de retirada de
direitos, extermnios de populaes racializadas[91] o poder sobre a vida,
para construir, assim, um contra discurso. Mbembe (2016, p. 123) afirma que:
matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos
fundamentais. Exercitar a soberania exercer controle sobre a mortalidade e
definir a vida como a implantao e manifestao de poder. E ainda diz que a
soberania a capacidade de definir quem importa e quem no importa, quem
descartvel e quem no (MBEMBE, 2016, p. 135), sendo que tm se
caracterizado como descartveis os seres humanos do sul global, ou seja, os no
europeus, que foram classificados como inferiores a partir de um processo de
naturalizao de relaes sociais que visavam atender os poderosos interesses
articulados com a consolidao do capitalismo/colonialismo/patriarcado.
No poema, a utilizao da palavra correm, numa escala de
repetio, sugere distintas imagens, que percorrem desde a leveza do simples
ato de correr, do imaginrio de meninos que flertam com a infncia e a
liberdade, at o peso da realidade de alguns corpos que precisam correr para
no morrer ou que so mortos enquanto esto correndo. Pacha Ana, ao trazer uma
orao/saudao de matriz africana, construindo uma aluso a vozes das mes
pretas, utiliza projees escalares de ancestralidade, racialidade,
temporalidade, espiritualidade. Demarca um lugar, sugere um ritmo, uma
sonoridade, invoca corpos portadores de saberes ancestrais, tradies orais,
propondo olhares para uma cultura que vem sendo historicamente perseguida,
constantemente desvalorizada e violentamente silenciada. Grosfoguel (2014)
afirma que a expanso colonial europeia significou o genocdio e o
epistemicdio de indgenas, africanos e de mulheres. Alm disso, o colonialismo
realizou um enorme memoricdio, sendo que a estrutura de conhecimento que
domina as universidades de todo o mundo est atrelada estrutura imperialista
colonial de poder. O homem ocidental, europeu, branco, heterossexual, cristo,
quem decide o que o melhor para as demais populaes de todo mundo. Nesses
processos, ele despreza, invisibiliza, destri e assassina sociedades inteiras,
suas culturas e seus saberes. Segundo Grosfoguel, autores homens, brancos, de
cinco pases formam os cnones da cincia desenvolvida em qualquer universidade
do mundo. Isso revela um racismo e um sexismo epistemolgico iniciado com a
modernidade e o colonialismo. Dessa forma, para descolonizar o pensamento
necessrio dialogar com uma diversidade epistmica, buscando enriquecer a
maneira de ver o mundo. Ouvir a voz dos colonizados, estabelecer dilogos com
saberes e epistemes ancestrais constituem caminhos possveis para a
descolonizao do conhecimento. O pensamento e os saberes compartilhados por
Pacha Ana, uma mulher negra, por meio do poema Os meninos correm, se
colocam na contramo da colonizao e da permanente colonialidade. A
ancestralidade evocada pela poetisa nos faz dialogar com mltiplas epistemes,
mltiplos saberes, sobretudo saberes que foram esmagados pela modernidade.
Pacha Ana se coloca na contramo da sociedade do mal-estar no por dar voz
ancestralidade, mas por aprender com ela e, assim, tornar-se/ser tambm essa
ancestralidade.
No trecho em que, optando por destacar o verso com letras
maisculas, sugere um grito, uma ateno maior: COMO SE AINDA EXISTISSE
SENZALA! observamos uma escala emocional-irnica e histrica, que expe uma
indignao pulsante, descrevendo o cenrio que questiona. Em outro fragmento
identificamos escalas classificatrias e de ironia: mas se for de madrugada e
ele for preto / j suspeito! / Parece que ser escuro defeito, que
evidencia a poltica de extermnio de corpos negros. Numa escala crtica, o trecho Se vive at os 21, lucro, situa a
realidade destes corpos que esto margem, sinalizados, marcados para morrer.
Pudemos identificar ainda outras projees escalares dentro do poema, como por
exemplo: escalas de indignao, como no trecho Isso culpa de um sistema
fajuto, onde alguns meninos correm e chegam, outros, deixam mes em luto;
metafricas, como em correm na contramo e correm para no ser um fardo;
bem como poltico-crticas, em Eles correm por medo, correm em segredo e
Isso porque os meninos correm, mas a polcia tambm.
A cada vinte e trs minutos um jovem negro assassinado
no Brasil[92].
Exrcito dispara 80 tiros em carro de famlia no Rio e mata msico[93]. 75% das vtimas de homicdio
no Pas so negras[94]. Assassinatos de jovens
negros no Brasil aumentam 429% em 20 anos[95]. Quando nos deparamos com alguns dados sobre a violncia e a
criminalidade no Brasil, colocamo-nos diante de informaes alarmantes, tanto
pelo contedo, quanto pela dimenso miditica a qual esse contedo submetido.
Que corpos merecem viver? Que corpos merecem morrer? Quem tem o poder de
deciso? O poema Os meninos correm discute essas questes e expe
possveis respostas, ainda que numa perspectiva irnica, a essas perguntas.
Na obra Discurso sobre o
Colonialismo, Aim Csaire reflete sobre os diversos nazismos
cometidos contra povos no europeus, sobretudo os que existiram durante todo o
perodo de colonizao e escravizao das populaes negras, apontando que
esses nazismos sempre foram aceitos pela populao europeia:
no fundo o que no perdovel em Hitler no o crime em si, o
crime contra o homem, no a humilhao em si, seno o crime contra o homem
branco, a humilhao do homem branco, e haver aplicado na Europa
procedimentos colonialistas que at agora s concerniam aos rabes da Arglia,
aos coolies da ndia e aos negros da frica (CSAIRE, 2010, p. 21).
Dialogando com Csaire e Frantz Fanon, Mbembe (2016)
observa que o estado de exceo no foi fundado com o nazismo, pois ele existiu
anteriormente para as populaes negras. A escravido moderna seria um exemplo
de estado de exceo, ou melhor, um estado de terror duradouro. E esse terror
duradouro, identificado por Mbembe, simboliza a realidade de boa parte dos
negros e das negras brasileiras. Atravs do cruzamento dos dados do IBGE sobre
a populao negra no Brasil e o poema de Pacha Ana, podemos afirmar que os
negros vivem em um estado de exceo contnuo, um mundo de morte, de mortos-vivos,
que, segundo o autor, no pode ser explicado seno pela perspectiva da
necropoltica. As novas formas de matar, de fazer de vivos mortos-vivos, no
podem ser elucidados pelo biopoder, uma vez que, esta questo uma poltica de
morte, um ideal de extermnio que acompanha as populaes negras desde a
colonizao.
A necessidade de olharmos para os corpos
negros ressaltada quando olhamos os dados, por exemplo, divulgados pelo Atlas
da Violncia 2019, produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica
Aplicada), e que publica estudos e dados relacionados ao ndice de violncia no
Brasil. Segundo este estudo:
Em 2017, 75,5% das vtimas de homicdios foram
indivduos negros (definidos aqui como a soma de indivduos pretos ou pardos,
segundo a classificao do IBGE, utilizada tambm pelo SIM), sendo que a taxa
de homicdios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de no negros
(brancos, amarelos e indgenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente s
respectivas populaes, para cada indivduo no negro que sofreu homicdio em
2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos (IPEA, 2019, p. 49).
Correr brincando, correr para chegar
escola, correr para pegar o nibus, correr por esporte, correr para no morrer,
correr para no ser eliminado. Pacha Ana nos conecta com O Genocdio do negro no Brasil, uma das primeiras obras escritas por um
intelectual negro brasileiro, visando o combate ao racismo e discriminao
racial em nosso pas. Abdias do Nascimento (2016) detalha como, historicamente,
no Brasil, foi se formando e se construindo um processo de um racismo
mascarado. Segundo ele, o processo comea com a rejeio da histria dos
africanos e seus descendentes, passando pelo mito da benevolncia do branco
portugus para com o negro e das possveis contribuies do branco civilizado
para com o negro incivilizado. Para Abdias, na construo desse racismo
mascarado, houve at quem dissesse que a escravido e outras atrocidades
cometidas contra o negro, seria um mal necessrio para o processo de
civilizao dos mesmos. Neste ponto, voltamos reflexo proposta por Csarie
(2010), de que ao longo do processo de colonizao sempre foi permitido e
aceito assassinar no europeus, sobretudo, negros.
Influenciado por Frantz Fanon, Nascimento
(2016) denuncia a existncia do racismo no Brasil, enfatizando a desvalorizao
da mulher e do homem negro em nosso pas, o branqueamento racial e cultural, a
perseguio cultura africana, a bastardizao da cultura afro-brasileira e
todas as estratgias de genocdio do negro e sua cultura em terras tupiniquins.
Segundo o autor, o racismo camuflado existente no Brasil muito mais nocivo
que o racismo declarado existente na sociedade estadunidense, pois
sustentado pelo mito da democracia racial; o racismo brasileira se esconde,
se camufla, finge no existir. O que dificulta a criao de mecanismos para
combat-lo, contribuindo para um estado de terror duradouro para as populaes
negras.
Walter Mignolo afirma que a colonialidade era a pauta
oculta ou o lado escuro da modernidade. Segundo o autor, pensar o conceito de
colonialidade j um ato descolonizador, pois preciso partir de um olhar
decolonial para observar a barbrie existente por trs do discurso
civilizatrio. Assim, ocultadas por trs da
retrica da modernidade, prticas econmicas dispensavam vidas humanas, e o
conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram
naturalmente consideradas dispensveis (MIGNOLO, 2017, p. 1). Dessa
forma, a partir da viso de Mignolo, podemos pensar que por trs do discurso de
progresso e de desenvolvimento, esto prticas discursivas e representaes que
tiram vidas, dizimam memrias e exterminam culturas. Autores decoloniais como
Ramn Grosfoguel, Anbal Quijano e Walter Mignolo vo concordar que a principal
tarefa dos tericos decoloniais quebrar com a colonialidade existente no
mundo, a colonialidade est travestida de globalizao/modernidade:
H um fato na cultura de toda a Amrica, e na da Amrica Latina em
particular, que envolve o mundo inteiro hoje em sua globalidade e que precisa
ser reconhecido, questionado, debatido e evacuado: a colonialidade do poder.
Esse o primeiro passo para a democratizao da sociedade e do Estado; da
reconstituio epistemolgica da modernidade; da busca por uma racionalidade
alternativa (QUIJANO, 2014, p. 767. Traduo nossa)[96]
Quebrar com a colonialidade significa utilizar a
diversidade epistmica.
Em ambos os casos, a geopoltica e a corpo-poltica (entendidas
como a configurao biogrfica de gnero, religio, classe, etnia e lngua) da
configurao de conhecimento e dos desejos epistmicos foram ocultadas, e a
nfase foi colocada na mente em relao ao Deus e em relao razo. Assim foi
configurada a enunciao da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da
enunciao que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ao
descoloniais focam na enunciao, se engajando na desobedincia epistmica e se
desvinculando da matriz colonial para possibilitar opes descoloniais –
uma viso da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais,
conhecimentos descoloniais e instituies descoloniais (MIGNOLO, 2017, p. 6).
Concluindo: os meninos ainda correm
Utilizando o conceito de escala para realizar um exerccio
de anlise do rapper poema oral Os meninos correm, em dilogo com os conceitos de necropoltica e
decolonialidade, acreditamos que o poema se apresenta como uma resistncia ao
mal-estar que atravessa a nossa sociedade. Como, por exemplo, as possibilidades
apresentadas de diferentes imagens para uma mesma palavra correm ampliam o
nosso olhar, nossa forma de nos relacionarmos com a obra e, principalmente, ao
que ela convoca, possibilitando questionamentos, propondo uma desestabilizao
de sentidos pr-concebidos.
A poetisa rapper Pacha
Ana prope um esforo de denunciar essa necropoltica
que atravessa o tempo presente, apresentando uma forma de poema falado que
questiona as normas criadas ou construdas culturalmente para excluir,
subalternizar e dar prosseguimento lgica colonial que sustenta o atual
padro de poder mundial. A partir de Os meninos correm, entendemos que
possvel ressignificar as normas e os discursos que qualificam o mal-estar,
revelando que nada eterno, absoluto e universal.
Se a colonialidade, as ideias neoliberais, o machismo, o
racismo, a heterossexualidade compulsria nos obriga a ter determinados
comportamentos, se as categorias de dominao construdas pelo homem branco
(ocidental, htero, cristo) nos faz conviver com esse mal-estar, o poema tal
como novas/outras epistemes pode apoiar na construo de questionamentos aos
discursos e as prticas de dominao hegemnicas. Se as categorias de dominao
foram socialmente construdas, se narrativas contam e constroem narrativas,
podemos construir contranarrativas, outros discursos que tragam problemas que nos
apiem em nossos processos de resistncia. No se trata de dar voz aos corpos
oprimidos e sim de pluralizar nossas referncias e dialogar com diferentes
epistemologias, no apenas como fonte de pesquisa, mas como produtora de
saberes que historicamente foram desconsiderados. Descolonizar aprender e
falar com o outro subalternizado. As tenses propostas aqui tiveram como
inteno sulear a inquietao de
pensarmos outros cenrios possveis e criar possibilidades de desestabilizar o
pensamento hegemnico que insiste em se manter como verdade nica e curso
natural da histria. Criar resistncia tambm desestabilizar o olhar colonial
que assola o Brasil, determinando os espaos que as populaes negras devem
ocupar na sociedade.
Deste modo, o exerccio de anlise do poema Os meninos correm, combinando o conceito
de necropoltica de Achile Mbembe com a noo de escala para observar estas obras que povoam a oralidade urbana,
podem trazer tona a construo de uma contra narrativa. Neste caso, a
resistncia est contida tambm na forma do poema reforando a possibilidade de
criao de outros modos de existncia.
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[Recebido: 14 out 2020 – Aceito: 19
set 2020]
[79] Graduado
em Artes Cnicas (UNESPAR-FAP). Mestrando em Estudos de Cultura Contempornea,
Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPGECCO-UFMT). Membro da Solta
Cia de Teatro de Cuiab – MT, do Coletivo Deriva e do Grupo de Pesquisa
Artes Hbridas: interseces, contaminaes e transversalidades. Professor
colaborador da MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.
[80] Graduada em
Comunicao Social – Rdio e TV (UFMT). Mestranda em Estudos de Cultura
Contempornea, Linha de Pesquisa em Poticas Contemporneas (PPG-ECCO/UFMT),
Membro do Grupo de Pesquisa Artes Hbridas: interseces, contaminaes e
transversalidades, do In-Prprio Coletivo e Coordenadora das reas Tcnicas da
MT Escola de Teatro/UNEMAT. Bolsista Capes.
[81] Graduado em Histria pela
Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Mestre em Histria pela
Universidade Federal da Bahia. Cursa doutorado em Histria na UFMT. Professor
EBTT de Histria no Instituto Federal do Mato Grosso.
[82] Pesquisadora Associada do
Programa de Ps-Graduao em
Estudos de Cultura Contempornea da UFMT. Doutora em Artes Cincias pela USP.
[83] Slams ou poetry slams so
encontros de poesia falada (spoken word) e performtica, geralmente em forma de
competio, em que um jri popular, escolhido espontaneamente entre o pblico,
d nota aos slammers (os poetas), levando em considerao principalmente dois
critrios: a poesia e o desempenho.
[84] Este artigo teve incio na
disciplina Performatividades discursivo-afetivas
do mal-estar na contemporaneidade,
ofertada pela professora doutora Branca Falabella Fabrcio, no Programa de Ps-graduao em
Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGEL-UFMT).
[85] Nasceu em Rondonpolis (MT).
Seu nome artstico (Pacha) derivado do Quechua, a lngua antiga dos povos incas e pr-incas, significa mundo ou
universo. Pacha tem uma grande atuao no segmento da poesia, tricampe do slam
estadual mato-grossense, foi semifinalista na Copa Brasileira de Poesia –
SlamBR em 2017 e finalista em 2018. Atualmente, em turn pelo Sesc no projeto
A Arte da Palavra, viajando por 7 estados e 14 cidades brasileiras, com o
espetculo Faces: A Poesia Negra Em Mim, Em Ns. Em suas letras, aborda o
empoderamento da mulher, do povo preto, a espiritualidade no Ax e suas
vivncias dirias. Em 2017,
foi contemplada no edital da SEC de Cultura de Cuiab que viabilizou seu
primeiro disco Omo Oy, lanado em setembro de 2018 (Texto fornecido pela
prpria artista).
[86]A crtica ou o pensamento decolonial ou descolonial uma
tentativa de incluir a Amrica no pensamento ps-colonial, uma vez que os
autores ps-coloniais no estudavam ou no se interessavam pelos estudos dos processos
de colonizao e dominao espanhola e portuguesa na Amrica. A ateno da
crtica ps-colonial se restringia aos pases de lngua inglesa, mais
especificamente a ndia e alguns pases do Oriente Mdio que foram colonizados
pela Inglaterra. Diferente do pensamento ps-colonial, a crtica decolonial vai
levar em considerao o dilogo com mltiplas epistemes, buscando o pluralismo
de ideias e a diversidade epistemolgica. A proposta decolonial que se insira
a Amrica Latina nas discusses ps-coloniais, mas, mais do que isso, que se
parta da prpria Amrica Latina e de sua diversidade epistemolgica para
entender suas questes. Para Grosfoguel (2014), existe uma pluralidade de
vises e diversas formas de pensar no interior da crtica decolonial, afirmando
que se fosse nica ou se existisse uma nica forma de pensar, seria mais uma
reproduo do pensamento colonial, como em certa medida, foi a crtica
ps-colonial. Sendo assim, no existe um modelo nico na crtica decolonial,
muito menos a negao ou o desmerecimento de algumas epistemologias europeias
importantes para compreender a questo da dominao e da subalternidade.
[87] Os griots so considerados guardies da histria e da
memria que por meio da
oralidade transmitem suas histrias e seus
conhecimentos. Muitos so cantadores.
[88] Escala
– Discurso e Dimenses do Social da Vida Social
(Traduo nossa).
[89] there are no
ideologically neutral scales, and people and institutions
that come out on top of scalar exercises ofen reinforce the distinctions that
so ordained them.
[90] that the
scales that social actors rely upon to organize, interpret, orient, and act in
their worlds are not given but made—and rather laboriously so. For to scale is not simply to assume or assert bigness or
smallness by way of a ready-made calculus. Rather, [...] people use language to scale the
world around them. [...]. Although
things can be made big though analogy, scale-making always also entails drawing
distinctions, between the bigness of a whales rib and the smallness of a
marble, for instance. As an inherently relational and comparative endeavor,
scaling may thus connect and even confate what is geographically,
geopolitically, temporally, or morally near while simultaneously
distinguishing that nearness from that which is far. Similarly, scaled
hierarchies are the efects of eforts to sort, group, and categorize many
things, people, and qualities in terms of relative degrees of elevation or
centrality. Tink, for example, of the way one entity or domain seems to encompass
another, as with maps that subordinate localities within higher order
administrative units, or of the way nation-states are commonly thought to hover
above communities.
[91] Termo usado por Quijano (2009) ao denunciar a classificao social a
partir da ideia de raa como principal motor do atual padro de poder mundial.
[92] Disponvel
em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295.
Acesso em:
10 nov.
2019.
[93]Disponvel em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml. Acesso em: 10 nov. 2019.
[94] Disponvel
em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Publicada dia 05/06/2019.
Acesso em:
10 nov.
2019.
[95] Disponvel em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/assassinatos-de-jovens-negros-no-brasil-aumentam-429-em-20-anos/. Publicada dia 17/04/2019. Acesso: 10 nov. 2019.
[96] Hay um hecho en la cultura de Amrica toda, y enla de Amrica Latina en
particular, que implica a todo el mundo de hoy em suglobalidad y que precisa ser reconocido,
puesto en cuestin,
debatido y evacuado: la colonialidad del poder. Ese es el primer paso endireccin de la democratizacin
de la sociedad
y del Estado; de la reconstitucin epistemolgica de la modernidad; de la bsqueda
de una racionalidad alternativa.