A POTICA DA VOZ NO TERRITRIO DO MARAVILHOSO NAPOLITANO E BAIANO: TRANSMISSO ORAL, CONSELHO E TROCA DE SABERES

 

THE POETICS OF VOICE IN THE NEAPOLITAN AND BAHIAN TERRITORY OF THE MARVELOUS: ORAL TRANSMISSION, ADVICE, AND SHARED KNOWLEDGE

 

Adriana Aparecida de Jesus Reis[63]
https://orcid.org/0000-0002-9717-4642

 

Resumo: O mito de Eros/Cupido e Psiqu foi narrado nos livros IV, V e VI do romance antigo O asno de ouro por Lcio Apuleio. O texto da literatura latina forneceu a fonte para o escritor napolitano Giambattista Basile (1575-1632) escrever sua obra-prima Lo cunto de li cunti (O conto dos contos). Ele usou o mito como inspirao para escrever o nono conto de fadas da segunda jornada, o qual recebeu o ttulo de O cadeado. Parente em primeiro grau de O cadeado o conto maravilhoso Anglica mais afortunada (O prncipe Tei). Essa histria foi coletada pelo folclorista brasileiro Marco Haurlio em Igapor, na Bahia, e registrada em seu livro Contos e fbulas do Brasil. Este artigo busca analisar no somente o dilogo intertextual entre os contos maravilhosos napolitano e baiano, mas principalmente os elementos populares que se ligam transmisso dessas narrativas pela oralidade, tendo em vista que tais histrias primeiro foram contadas oralmente por contadores e depois ouvidas por compiladores e folcloristas que as registraram em suas coletneas maravilhosas. Verifica-se que os escritores deram um toque particular s narrativas coletadas, demonstrando a presena de uma oralidade, porm reconstruda por recursos que evidenciam suas culturas locais.

Palavras-chave: Ciclo noivo-animal. Contos maravilhosos. Oralidade. Giambattista Basile. Marco Haurlio.

 

Abstract: The myth Eros and Psyche was narrated by Lucio Apuleio in the books IV, V, and VI of his novel The Golden Ass. The Latin literary text provided the source from which Neapolitan writer Giambattista Basile (1575-1632) drew the inspiration to write his own masterpiece, Lo cunto de li cunti (The tale of tales). He used the myth as a basis to build the ninth fairy tale from the second journey on, which was titled The padlock. A close literary relative to The padlock is the wonder tale Angelica, the most fortunate (The tegu prince). The story was collected by Brazilian folklorist Marco Haurlio in Igapor, Bahia, and registered in his book Tales and Fables of Brazil (2011). This paper aims to analyze not only the intertextual dialogue between the Neapolitan and Bahian tales but especially the popular elements that are tied to the oral transmission of such narratives. It takes into account the fact that those stories were first told orally by storytellers and then heard by collectors and folklorists that registered them in their tale collections. It is noticeable how writers gave a personal touch to the collected narratives, which demonstrates the presence of certain orality but reconstructed by resources that highlight their local cultures.

 

Keywords: Animal-groom cycle. Wonder tales. Orality. Giambattista Basile. Marco Haurlio.

As vozes da tradio

 

            Segundo o etngrafo Lus da Cmara Cascudo, em seu livro clssico Literatura oral no Brasil, contar histrias populares, desde os primeiros registros escritos, remonta a um ambiente protocolar em qualquer parte do mundo, segundo o qual as histrias e as adivinhaes so narradas durante as primeiras horas da noite. A escolha por esse hbito noturno, de acordo com o mestre potiguar, explica-se pelo fato de ser o horrio final da tarefa diria e pela atmosfera de tranquilidade e sossego espiritual para a evocao e ateno do auditrio. Escolhendo o ambiente noturno, Cascudo (1984, p. 228) nos recorda dos melhores ttulos que denunciam essa universalidade do hbito:

Mil e Uma Noites, Fireside Stories de Kennedy, Veills Bretonnes de Luzel, XIII Piacevoli Notte de Straparola, Foyer Breton, de mile Souvestre, Veilles Des Mayens, de Couthion, Veilles Allemandes, traduo de lHritier de lAin, de contos, crnicas e tradies dos irmos Grimm.

            De todas essas colees europeias de narrativas populares que explicitam a preferncia pelo hbito de contar histrias noite, nos interessa a coletnea italiana XIII Piacevoli Notti, de Straparola, tambm designada de Le piacevolli notti (As noites agradveis). Essa obra pode ser considerada precursora na compilao do gnero maravilhoso na Itlia, pois o escritor Gian Francesco Straparola reuniu, maneira de Boccaccio, em treze noites, narrativas populares a partir de 1553 (SPERBER, 2009). Das 75 histrias que formam esta coletnea italiana, encontramos no somente contos de fadas, narrados ao modo maravilhoso, mas tambm contos realistas, articulao bem percebida por Ana Lcia Merege: Publicado pela primeira vez em Veneza, no ano de 1550, o livrou reunia contos de fadas, contos populares, como O Gato de Botas[64], e histrias de carter cotidiano, cujo bom-humor lhe valeria crticas por parte dos autores e estudiosos de moral mais rgida (MEGERE, 2010, p. 43).

            Essa diferena de gnero entre contos de fadas e histrias de carter cotidiano tambm se mostra relevante na lngua italiana, pois, para os contos de fadas ou populares, existem as palavras fiaba ou racconti, que designa a presena do elemento maravilhoso, e para as histrias de carter cotidiano, existem as palavras novella (singular) ou novelle (plural), que so narrativas curtas verossimilhantes. fato que o escritor italiano Straparola, justamente por mesclar matria narrada do modo maravilhoso as histrias verossimilhantes, aproxima-se de Giovanni Boccaccio, autor do Decamerone ou Decamero, obra-prima da literatura italiana do sculo XIV, conhecida, principalmente, pela narrao da peste negra do final da Idade Mdia em seu conto moldura, dentre outros temas. Ainda que Straparola se aproxime de Boccaccio, devemos ressaltar que a obra deste escritor italiano do sculo XIV composta somente por narrativas do gnero novelle, ou seja, histrias verossimilhantes, ao nmero de cem.

            Utilizando a estrutura de moldura, inaugurada por Boccaccio no sculo XIV na literatura italiana, depois empregada por Giovan Francesco Straparola em Le piacevolli notti, e escolhendo, porm, o hbito diurno para contar seus cinquenta contos de fadas recolhidos da oralidade, encontra-se o escritor italiano Giambattista Basile (1575-1632), autor de Lo cunto de li cunti ovvero trattrattenemiento de peccerille ou O conto dos contos ou entretenimento dos garotinhos em portugus, obra-prima publicada postumamente, entre 1634 e 1636, pela irm do escritor, Adriana Basile, uma famosa cantora de pera da Itlia seiscentista (do sculo XVII).

A obra Lo cunto de li cunti, tambm percursora do registro do gnero maravilhoso na Itlia, foi publicada originalmente em dialeto napolitano no sculo XVII, em razo de sua matria ter sido recolhida entre a camada popular, formada por camponeses e marinheiros do interior da provncia de Npoles, por Basile durante seu encargo como governador feudal da provncia. Mas foi somente em 1925, pelas mos do crtico, filsofo e tradutor italiano Benedetto Croce, que Lo cunto de li cunti de Basile foi traduzido para o italiano standard (o italiano mais prximo do dialeto florentino utilizado pelos trs mestres italianos do sculo XIV), recebendo um novo ttulo em aluso ao modelo estrutural usado por Boccaccio no seu Decamerone: Pentamerone ossia la fiaba delle fiabe (Pentamero ou seja a fbula das fbulas).

Apesar da tardia traduo de Croce, inegvel que o crtico italiano tornou a obra de Basile corrente por toda a pennsula italiana, j que havia restries lingusticas ligadas ao dialeto de Npoles, considerado marginal na poca. Entretanto, essa mudana de ttulo, embora estratgica, ao aproximar a obra napolitana do ttulo da obra de Boccaccio, acabou por desmerecer, sobretudo, a engenhosidade de Basile enquanto escritor, demonstrada desde o ttulo original do livro, pois o ttulo Lo cunto de li cunti, ou O conto dos contos em portugus, salienta, a nosso ver, a estrutura de encaixe, ao ressaltar o conto maior Lo cunto que enquadra os contos menores li cunti, o que vai ao encontro da observao do crtico italiano Michele Rak:

A obra foi construda do seguinte modo: um conto (o quinquagsimo da abertura/pontes narrativas/fechamento) no interior do qual so narrados outros quarenta e nove contos. Por este motivo a obra foi intitulada conto dos contos. Se fala de jogo dos jogos no mesmo sentido [...]. O quinquagsimo conto a histria de Zoza que abre e fecha a obra e tem a mesma estrutura do ltimo conto (As trs cidras, o quadragsimo nono: confira o conto 9 da quinta jornada) (RAK, 2004, p. 15, traduo nossa[65]).

            Como bem destacou Rak (2004), o conto moldura (quinquagsimo), que assinala os quarenta e nove contos internos obra, a histria da princesa Zoza, uma princesa que nunca sorria e, quando sorria, em virtude de gestos bizarros de uma velha avistada pela princesa atravs da janela do palcio. Na verdade, a velha havia levado um tombo, o que provocou uma grande gargalhada na princesa e ao mesmo tempo uma grande ira na velha, que, por esse motivo, jogou uma maldio sobre a princesa, segundo a qual o prncipe com quem ela se casaria, chamado Taddeo, estava dormindo numa tumba longe da cidade e, ao encontr-lo adormecido, ela teria, caso quisesse se casar com ele, chorar um vaso de lgrimas. Diante disso, Zoza parte para fora da cidade e encontra o prncipe adormecido, e logo se pe a chorar, porm, a princesa vencida pelo cansao e adormece e quem termina de encher a nfora a velha escrava, fato que rompe o estado letrgico do prncipe, que, pensando que a escrava fosse sua salvadora, se casa com ela e a leva para morar em seu palcio na cidade de Torrelunga. Inconformada pelo ardil do qual foi vtima, Zoza tambm arquiteta um plano: morando em frente ao palcio do prncipe, a princesa d de presente escrava vrios objetos mgicos, dentre eles uma boneca que incute na ex-escrava o desejo incontrolvel de ouvir contos de fadas. Assim, o prncipe convoca dez mulheres velhas e mais linguarudas da cidade para narrar, durante cinco dias, ou jornadas, e entre banquetes e jogos tpicos da vida cortes, dez contos de fada (dez contos por dia), totalizando, ento, cinquenta contos maravilhosos, sendo o quinquagsimo a prpria histria de Zoza. A princesa desmascara a ex-escrava no ltimo conto da ltima jornada, fechando assim o quadro, o que conduz o final feliz para a princesa e a punio para a escrava.

            A obra de Basile composta, alm da histria de Zoza, que representa a narrativa moldura, por quarenta e nove contos enquadrados que contm contos de fadas considerados matrizes literrias de contos clssicos encontrados nas colees de Perrault e Grimm, de acordo com Merege (2010, p. 45): Publicada em 1634-36, a obra contm as primeiras verses escritas de histrias como Cinderela e A bela adormecida, num tom cmico e s vezes grosseiro que soa de forma estranha aos leitores dos contados herdados da tradio dos Grimm.

            Alm de conter histrias famosas em todo o folclore europeu, Lo cunto de li cunti, de Basile, conserva histrias populares do tipo ciclo noivo-animal, termo cunhado por Bruno Bettelheim em sua obra A psicanlise dos contos de fadas, para designar contos de fadas originrios do mito de Cupido e Psiqu (BETTELHEIM, 2020), conto mtico que fora recolhido e registrado por Lcio Apuleio no romance antigo O asno de ouro. Do ciclo noivo-animal, foi registrado por Basile em O conto dos contos o nono conto de fadas narrado na segunda jornada, intitulado Il catenaccio (ou O cadeado em portugus), como comprova Croce (2010, p. 165, traduo nossa) na introduo do livro em italiano: E ns compreenderemos, sobretudo, que vrios entretenimentos pertencem ao grupo daquele, que o conto de fadas mais famoso e mais rico de histria, o conto de Psiqu – Assim o nono da segunda jornada, no qual se conta a histria de Luciella[66].

O mais curioso que esse conto, que narra a histria de Luciella (Lucinha) e seu caso amoroso com um prncipe encantado que foi alvo de uma maldio, chegou ao imaginrio baiano, com o ttulo de Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), recolhido pelo escritor e folclorista brasileiro Marco Haurlio em Igapor, na Bahia, e registrado em seu livro Contos e fbulas do Brasil, conforme atesta o prprio coletor da obra brasileira: Um conto recolhido em Igapor, Bahia, chamado Anglica mais afortunada, com a histria de um prncipe encantado tei, parente em primeiro grau de O cadeado (entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron (HAURLIO, 2018, p. 11).

            Por terem o mesmo ancestral mtico, tanto o conto maravilhoso de Giambattista Basile, intitulado O cadeado, quanto o conto maravilhoso de Marco Haurlio, chamado Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), so histrias populares pertencentes ao ciclo noivo-animal, o que j nos leva a inferir que, j pela denominao da expresso noivo-animal, que todas essas histrias tm em comum o elemento maravilhoso da metamorfose do noivo em animal; no caso da verso brasileira, como denota o ttulo, um prncipe Tei, com quem Anglica aceita o sacrifcio de viver sem nenhuma resistncia, motivo do noivo-animal retomado na verso brasileira, segundo Haurlio (2011). Dada a essa convergncia, temos como objetivo, no presente artigo, fazer uma comparao intertextual entre os contos maravilhosos do napolitano Giambattista Basile e do brasileiro Marco Haurlio, examinando, principalmente, os elementos populares que remetem transmisso oral dessas histrias populares, os quais, ao nosso entendimento, demarcam o territrio da potica da voz nessas narrativas maravilhosas, que, alis, foram primeiro contadas oralmente e depois ouvida por esses coletores, que as registraram em suas coletneas.

As vozes da tradio tambm esto presentes na coletnea brasileira Contos e fbulas do Brasil, resultado do trabalho que o folclorista, poeta e escritor Marco Haurlio[67], nascido na Bahia, j vinha desenvolvendo desde 2005 com sua publicao de Contos folclricos brasileiros, voltada ao pblico infanto-juvenil, porm a coletnea de 2011 uma reunio de histrias destinadas a leitores de todas as idades. A coletnea Contos e fbulas do Brasil inclui, alm de contos populares recolhidos na Bahia, contos oriundos de outros estados do Nordeste, como Pernambuco e Alagoas, todos coletados da rica tradio oral da regio por meio de um gravador. O dilogo de Marco Haurlio com a tradio se manifesta no somente pelo rico acervo de contos recolhidos daquela regio, mas tambm pelo fato de o folclorista dedicar seus Contos e fbulas do Brasil a Brulio do Nascimento, como Haurlio (2011, p. 11) testemunha no prefcio que escreveu para sua coletnea: E ao Professor Brulio do Nascimento, emrito catalogador do conto e do canto popular, ofereo mais estas flores colhidas do jardim da tradio.

            Explicita a relao entre Brulio do Nascimento e Marco Haurlio, alm da dedicatria feita no prefcio O conto popular no sculo XXI por Haurlio (2011), o fato de ambos os folcloristas brasileiros terem classificados seus contos populares com base no catlogo ATU, sistema de classificao internacional ampliado em 2004, o que nos mostra a influncia do primeiro sobre o trabalho do segundo folclorista, pois Brulio do Nascimento foi o primeiro estudioso de folclore a utilizar esse sistema no Brasil na verso mais atualizada em sua coletnea de 2005, Catlogo do conto popular brasileiro. Igualmente fez Marco Haurlio em sua coletnea Contos e fbulas do Brasil, ao inserir na parte final de seu livro a seo Classificao e notas[68] feita por Paulo Correia.

 

O frescor das histrias napolitanas no Nordeste brasileiro

 

            De acordo com Haurlio (2018), algumas narrativas registradas no folclore brasileiro exalam o mesmo frescor das histrias napolitanas, unidas pela origem comum e pela exuberncia de tipos e motivos. Verificaremos, ento, em que medida as histrias contadas oralmente no Nordeste brasileiro, mais precisamente o conto Anglica mais afortunada, exalam o frescor das napolitanas recolhidas e recriadas por Basile j no sculo XVII, por exemplo O cadeado. Nesse sentido, utilizamos a expresso recriada por Basile, dado o estudo realizado em 2018, no qual analisamos o conto napolitano, de Basile, como uma recriao intertextual do mito Cupido e Psiqu. Contudo, uma vez que este conto napolitano foi ouvido e coligido na Bahia por Marco Haurlio no sculo XXI, acreditamos que no se possa excluir a possibilidade de o escritor napolitano ter ouvido e recolhido essa narrativa j na forma de conto de fadas, tendo em vista as inmeras andanas tpicas desse gnero pela tradio oral.

            Mas antes de analisarmos os contos em questo, passamos sntese de seus enredos. No conto napolitano O cadeado, narrada a histria de Luciella que vai buscar gua numa fonte e encontra um escravo que a leva a um belssimo palcio, onde ela tratada como rainha e dorme todas as noites com um prncipe encantado que a aconselha a no ver o rosto dele. Aconselhada pelas irms invejosas a ver com quem dormia, Luciella descobre que dorme com um belssimo jovem e expulsa por ele. Depois de tanto perambular grvida por alguns meses, Luciella acolhida por uma donzela no palcio da me do prncipe encantado, onde Luciella tem um filho, e depois de quebrada a maldio, que afastava o prncipe encantado de seu filho recm-nascido e de Luciella, eles fazem as pazes e se casam. J o conto baiano Anglica mais afortunada (O prncipe Tei) conta a histria de Anglica que, pela m sorte de seu pai caador, que havia prometido ao Tei como recompensa do alimento que lhe deu a primeira coisa que o prncipe avistasse no quintal, pensando na cadelinha que tinha, levada para morar num buraco com o prncipe Tei e proibida por ele de ver seu rosto. Por sentir saudades de sua famlia, Anglica visita suas irms mais velhas e seu pai, o qual lhe d uma vela e um fsforo e a incita descobrir com quem dorme todas as noites. Ao iluminar seu leito noite, Anglica avista o belssimo prncipe com quem dorme e expulsa por ele. Depois de tanto caminhar de bucho, utilizando a expresso do narrador, Anglica acolhida por uma velha que a ajuda por recomendao do rei daquela cidade. Na morada da velha, Anglica e seu filho recm-nascido recebem durante trs noites a visita do prncipe Tei que est preso a uma maldio. Na terceira noite, a maldio se rompe e eles finalmente ficam juntos. Em seguida, o rei e a rainha, pais do prncipe Tei, buscam seu filho e a famlia dele, terminando, assim, o conto.

            A primeira convergncia entre os contos maravilhosos napolitano e baiano diz respeito mulher ser a contadora de histrias, figura que se liga tradio oral, segundo Cmara Cascudo (2004, p. 19-20), citando Paul Sebillot:

Paul Sebillot mostra que a mulher a melhor contadeira de histrias que o homem. Guarda em maior quantidade porque lhe cumpre o agasalho dos filhos e a tarefa de adormec-los, entretendo-os com o maravilhoso. Os irmos Grimm fizeram sua coleo admirvel ouvindo as velhas, as tias da tradio oral portuguesa, as bs, e mes-pretas no Brasil.

            Dando continuidade tradio de ser a melhor contadeira de histrias, a contadora de quem o folclorista Marco Haurlio ouviu o conto maravilhoso baiano Anglica mais afortunada uma mulher chamada Lucidalva Pereira dos Salvos na cidade de Igapor, conforme a anotao depois do conto. Igualmente o conto maravilhoso O cadeado, de Basile, visto que narrado por uma velha-personagem narradora chamada Ciommetella, anunciada no fragmento da narrativa-moldura que enquadra o conto:

Casou grande compaixo no corao de todos as desgraas passadas pela pobre Lisa, e mais de quatro estavam com os olhos vermelhos e lgrimas nos cantos, pois no h nada que mais desperte piedade do que ver algum sofrer inocentemente; mas tocando Ciommetella desenrolar o carretel, assim disse [...] (BASILE, 2018, p. 229, grifo nosso).

            Na obra de Basile, muito comum, ao nos referirmos s contadoras de histrias, a expresso velha personagem-narradora, visto que, alm de exercer a funo de narradora do conto que se prope a narrar, a velha personagem da narrativa-moldura, porque ela foi convidada pelo prncipe Taddeo e sua esposa impostora para narrar contos maravilhosos e entret-los durante o dia entre banquetes e jogos, disso decorre o fato dos cunti de Basile serem narrados durante o dia, escolha que contraria quela tradio apontada em outras colees europeias, por exemplo a do italiano Straparola que procedeu Basile na literatura italiana: Le piacevolli notti. Outro aspecto que diferencia a obra de Basile da coletnea brasileira, escrita por Marco Haurlio, reside no fato de que a velha contadora, no caso em nmero de dez em O conto dos contos, ser identificada por um defeito fsico que se revela no nome dela, no caso, a velha personagem-narrradora do conto O cadeado Ciommetella tinhosa, anunciado na introduo da obra italiana, junto aos nomes das noves personagens-narradoras da obra.

            Uma possvel explicao para esses eptetos presentes nos nomes das contadoras, em que se evidencia o disforme, reside no gosto pelo grotesco prprio do Barroco, corrente literria em voga no sculo XVII que privilegia o bizarro, na qual se filiava o escritor napolitano. Observao semelhante nossa tm as pesquisadoras Bonetto e Reis (2018), segundo as quais essa marca do grotesco barroco presente nos nomes das dez velhas-personagens narradoras de Basile um procedimento utilizado para obter o efeito pardico com o Decamerone, de Boccaccio, ao rebaixar a classe social de abastada para pobre e transformar as dez narradoras de jovens com bons costumes para velhas fofoqueiras com distores fsicas.

            A velha personagem-narrradora Ciommetella tinhosa, ao contrrio das outras nove contadoras, no parece ter no epteto que a identifica uma indicao de alguma distoro fsica, dada a primeira acepo deste adjetivo em portugus, que, segundo o Dicionrio Michaelis online, significa teimosa. A segunda acepo para a palavra tinhosa repugnante ou que causa nojo, significado figurado que ao nosso ver parece estar mais ligado ao universo das distores fsicas e ao efeito do grotesco, j que o barroco privilegia o repugnante.

Embora tais associaes com os significados da lngua portuguesa sejam pertinentes, para analisar o adjetivo tinhosa, que no caso desqualifica o nome Ciommetella, temos que averiguar o sentido da mesma palavra em lngua italiana, para isso, recorremos edio bilngue (napolitano e italiano) da obra de Basile, traduzida pelo estudioso italiano Michele Rak, que manteve o ttulo original da obra, Lo cunto de li cunti, assim como o tradutor Francisco Degani, que traduziu a obra integral de Basile diretamente do napolitano para o portugus brasileiro em 2018, preservando o ttulo original, O conto dos contos, e dando a conhecer os contos de Basile em nosso pas, pois, caso quisssemos ler Basile em lngua portuguesa, tnhamos que recorrer a tradues esparsas.

Na edio bilngue traduzida por Rak (BASILE, 2013), a velha personagem narradora chamada de Ciommetella tignosa. No interior do adjetivo tignosa em italiano est a palavra tigna, que Ҏ uma doena na pele que leva queda dos cabelos [...] (traduo nossa do original la tigna una malattia cutnea che porta alla caduta dei capelli [...] (PICONE, 2004, p. 113). Alm de nos informar um significado preciso para a palavra tigna, o pesquisador italiano Michelangelo Picone nos oferece uma pista de anlise para esse epteto, ao se questionar se essa doena deseja aludir capacidade desta narradora de revelar com os seus contos a verdade das coisas. A resposta logo nos dada por ele, que afirma ser a prpria Ciommetella com o seu ltimo conto, que tambm o conto conclusivo da coletnea (se exclui-se aquele principal de Zoza), a desmascarar a artimanha da escrava[69] (PICONE, 2004, p. 114).

De fato, essa capacidade de Ciommetella ligada doena tigna verificada na fala desta velha personagem-narradora no fragmento que enquadra o conto O cadeado, depois que a velha narradora anterior lhe cedeu voz:

Os conselhos da inveja sempre foram pais das desgraas, por que debaixo da mscara do bem encerram a face da runa, e a pessoa que tem nas mos os cabelos da fortuna deve imaginar ter a todo momento cem pessoas que estendam cordas diante de seus ps para faz-las levar um tombo, como aconteceu a uma pobre moa que, pelo mau conselho das irms, caiu da escada da felicidade, e foi misericrdia do cu que no quebrasse o pescoo (BASILE, 2018, p. 229).

Nesse fragmento, que se refere fala de Ciommetella tinhosa (tignosa), o conto O cadeado tambm revelar a verdade dos fatos, verdade que consiste em desmascarar a face das irms invejosas da protagonista, as quais do conselhos irm mais jovem, provavelmente protagonista Luciella, como atitude de benevolncia para prejudic-la ou para faz-la levar um tombo. Concordamos, portanto, com a anlise de Picone (2004) sobre Ciommetella ser uma velha personagem-narradora cuja doena fsica tigna, que causa a queda de cabelos, alude atitude de revelar a verdade ou de desmascarar as personagens invejosas, pensando nas irms de Luciella, e impostoras, pensando na escrava que tomou o lugar da princesa Zoza.

            Alm de antecipar o fato que Luciella ser prejudicada por suas irms mais velhas, a fala da narradora Ciommetella tambm anuncia o tema do conto maravilhoso a ser narrado por ela, o da inveja. Recuperando este mesmo tema, como uma espcie de arremate ao conto, Basile (2018, p. 232) o insere tambm no desfecho, mas na forma proverbial: fruto da inveja o mal de estmago. Nesse aspecto, devemos explicar que prprio do estilo literrio de Basile, da interveno artstica do escritor, os contos serem encerrados por um provrbio de origem napolitana, elemento que tambm se liga tradio oral, assim como o fato de as narradoras serem mulheres, justamente por remeter sabedoria popular, pois, de acordo com o Benjamin (2015), era muito comum o contador de histrias tradicional utilizar provrbios como uma forma de conselho de utilidade prtica aos seus ouvintes.

            Refora essa ideia de conselho na forma proverbial o significado da expresso O fruto da inveja o mal de estmago em lngua portuguesa ou figlio de lamidia lantecore (BASILE, 2013, p. 416) em dialeto napolitano, pois, conforme a plataforma italiana Corpo di Napoli, que explica os provrbios napolitanos da obra de Basile, o mal-estar que prende o estmago; tem o mesmo efeito da nusea, que permanece e nunca passa. a sensao de quem rumina inveja e de quem pago assim com a mesma moeda[70]. A partir de tal explicao, podemos entender que fazer mal a algum, por inveja, prejudicar a si prprio. Esse significado comprovado pelo desfecho do conto de Basile, no qual as irms mais velhas e invejosas so punidas. Diante disso, compreendemos que o provrbio napolitano, elemento frasal que nos sugere por metonmia a voz do contador de histrias no conto O cadeado, aconselha o ouvinte a no se deixar ser conduzido pela inveja, sentimento que pode ser entendido como uma doena, porque s provoca dor e sofrimento por quem o sente.

            Alm de remeter a uma forma de sabedoria popular e coletiva, dada a experincia comunitria em que estava inserido o contador de histrias tradicional, o elemento proverbial na obra napolitana pode ser associado a uma frmula de transmisso oral, pois, segundo Cascudo (1984), uma marca da oralidade, comumente utilizada pelos folcloristas, as repetidas formas de comear e terminar uma histria, que podem ser semelhantes ou dessemelhantes em culturas diferentes. Quanto s formulas finais, Cascudo (1984, p. 230) afirma: Para findar as frmulas so vrias e raro ser o narrador que as esquea. Pode aparecer mesmo um retoque pessoal sugestivo. o requinte da tcnica o saber fechar bem uma estria. Fundamentando-nos no terico, compreendemos que Basile, ao utilizar o provrbio napolitano para fechar bem seus cunti, quer explicitar tanto seu requinte como escritor e sua cultura de origem, a napolitana, quanto chamar a ateno do seu ouvinte, no caso do leitor, aconselhando-o sobre sentimentos coletivos, o da inveja.

            De forma contrria, o conto brasileiro Anglica mais afortunada no apresenta uma frmula final, como podemos notar pelo desfecho: Dessa forma, o encanto foi quebrado. Passados uns dias, o rei e a rainha foram casa da velha buscar o filho, a nora e o neto para viver com eles no castelo (HAURLIO, 2011, p. 66). Nessa parte final do conto baiano, percebemos, assim como na verso napolitana, portanto, uma convergncia, a restaurao da situao de tranquilidade e a unio dos amantes que foram antes separados pela ao dos personagens, no caso, o pai de Anglica no conto baiano, e as irms invejosas de Luciella no conto napolitano. No entanto, no porque a verso baiana no apresente uma frmula final que ela no preserva traos da oralidade. Em vez disso, acreditamos que a ausncia da frmula final no conto baiano comprova justamente as andanas desta narrativa pelo territrio do maravilhoso, pois medida que o conto maravilhoso napolitano foi emigrando no tempo e geograficamente, possvel que ele tenha perdido algumas marcas da oralidade, como a frmula final proverbial, e incorporado outras locais, da cultura brasileira nordestina, como veremos mais adiante.

Alm do provrbio, outro elemento lingustico ligado transmisso oral, que comprova a importncia e a valorizao do material folclrico coligido por Basile no sculo XVII e por Marco Haurlio no sculo XXI, a presena da cantiga cantada na voz do prncipe encantado, na verso napolitana, e na voz do Tei, na verso baiana, cuja letra revela a maldio sob a qual os noivos estavam presos e impedidos de visitarem sua famlia, formada pelas protagonistas (Anglica e Luciella) e seus filhos recm-nascidos. Nesse sentido, a cantiga pode ser interpretada como um elemento que resgata a matria folclrica nos dois contos maravilhosos, pois, para Cmara Cascudo citado por Clria Botelho da Costa, esse material constitui, assim como o provrbio, o imaginrio popular de uma sociedade. Por sua natureza folclrica, esse material no traz explicitamente nem a marca do tempo nem o espao onde foi criada. Trata-se de uma produo annima, que no permite a identificao do autor (COSTA, 2013).

            Ainda que no seja possvel a identificao de seu criador, colocamos a seguir as cantigas nas verses do conto napolitano, esquerda, e baiano, direita, para efeito de cotejo entre suas adaptaes socioculturais:

O cadeado

 

Oh, belo filho meu,

se minha me soubesse,

em bacia de ouro o lavaria,

com faixas de ouro enfaixaria,

e se o galo nunca cantasse,

nunca de vocs me separaria

(BASILE, 2018, p. 231, grifos nossos).

Anglica mais afortunada (o prncipe Tei)

 

- Meu filho, se papai e mame soubera filho de quem tu era, te lavava em bacia de prata e te enxugava em toalha com fios de ouro. Se o galo no cantasse, jegue no urrasse, o sino no tocava, contigo eu amanhecera o dia (HAURLIO, 2011, p. 65, grifos nossos)

 

            Como podemos notar pelas palavras em destaque, h sutis diferenas entre as cantigas napolitana, de Basile, e baiana, de Haurlio. Mas antes de nos atermos a essas mincias, evidente que elas denunciam o mesmo contedo na fala dos noivos de Luciella e Anglica: a maldio que os impedia de se aproximarem de seus filhos recm-nascidos, vinculada ao amanhecer do dia, representado em ambas as cantigas pelo canto do galo. Trata-se de uma convergncia menos evidente estabelecida com o prprio mito, ao qual se associam ambas as narrativas maravilhosas, pois, assim que o dia amanhecia, Cupido desaparecia do leito de Psiqu, retornando, somente, no ambiente noturno, assim como os noivos de Luciella e Anglica, tanto que Bettelheim (2002) fala em vidas diurna e noturna de Psiqu, ao se referir ao mito: a diurna tediosa, por ficar sozinha, e a noturna prazerosa, por estar com Cupido.

            O canto do galo, presente nas duas cantigas, alm de passvel de ser lido como uma aluso ao mito de Cupido e Psiqu, pode ser interpretado como uma superstio popular, pois, segundo Braga (1986), o canto do galo uma crena cujo poder afastar os demnios e fazer sugir a aurora. Por essa razo, o canto celebrado nos hinos e oraes da Igreja, sobretudo na tradio do povo portugus. Essa superstio popular do canto do galo est presente nos contos napolitano e baiano, porque neles a manifestao dos demnios ocorre no perodo noturno por meio da maldio, elemento mgico que auxilia os prncipes encantados a visitarem suas famlias durante noite, tanto que, assim que o galo canta ou o dia amanhece, os prncipes encantados so afastados do seio familiar. Justamente por promover o afastamento das figuras paternas, acreditamos que o canto do galo, em ambas as cantigas, sofreu uma inverso de sentido: a noite, por auxlio da maldio, tem uma acepo positiva, por aproximar os prncipes de sua famlia, e o dia, anunciado pelo canto do galo, tem uma acepo negativa, por afastar os prncipes de seus entes. Trata-se de um efeito paradoxal atribudo ao canto do galo, pois nos contos de fadas a maldio comumente associada a algo que pode trazer malefcios para suas vtimas. Essa acepo negativa para o canto do galo nos dois contos reverberada pelo tom de lamentao das cantigas, que constituem as falas dos prncipes.

            Vrios elementos que encontramos em ambas as cantigas, como a visita noturna, a me e filho recm-nascido e o canto do galo, esto presentes tambm no episdio do nascimento de Jesus e da visita dos trs reis magos. Este episdio cantado pela cano de Reis[71], intitulada Saudao da Lapinha, pelos seguintes versos:

8. E os reis, mas quando eram santo, No caminho se encaminharam. Viagem de fazer um ano, Em onze dias chegaram/. 9. Na chegada l da lapinha, Todo mundo j dormia. Nossa Senhora com seu manto, A Jesus ela cobria/10. Na chegada l da lapinha, O porteiro recebeu-se. Bateu asa e canta o galo, Menino Jesus nasceu[72].

            A partir desses versos, podemos aproximar as cantigas de ambos os contos e cano da Lapinha pela seguinte disposio: o prncipes encantados nas cantigas esto para os reis magos na cano de Reis, j que eles fazem a visita noturna; Luciella e seu filho recm-nascido esto para Nossa senhora e o menino Jesus; as faixas de ouro/toalhas de ouro esto pelo manto, e canto do galo a interseco maior que une as cantigas e cano, representando o nascimento do dia e o fim da maldio na cantiga e o nascimento do dia e do menino Jesus na cano de Reis, da o canto do galo ser celebrado nos hinos e oraes da Igreja catlica. Diante de tal leitura, pela simples proximidade entre esses elementos, tanto das cantigas quanto da cano de Reis, j seria suficiente para falar da incorporao do conto popular no s por elementos locais, j que a tradio da Folia de Reis muito celebrada no interior de vrias regies brasileiras, mas principalmente por elementos que aludem a outras mitologias, no caso, mitologia crist, da qual faz parte a narrativa do nascimento de Jesus, ainda que os contos napolitano e baiano tenham sido originrios do mito greco-romano de Eros/Cupido e Psiqu.

Explicada as convergncias entre os contos napolitano e baiano e os contos e os mitos greco-romano e cristo respectivamente, passamos a examinar as mincias que evidenciam os distanciamentos: nos versos da cantiga napolitana, percebemos elementos mais nobres nos objetos bacia de ouro e faixas de ouro, enquanto na cantiga baiana, os mesmos elementos foram trocados por bacia de prata e toalhas com fios de ouro. Em razo da prata ser um elemento menos nobre que o ouro e provavelmente a tolha ser um tecido de qualidade inferior ao da faixa, uma possvel motivao para essa desqualificao dos materiais elencados seja o fato de o palcio do rei, pai do prncipe Tei, ser menos nobre na verso baiana, dada a diferena de sculos entre os contos. Tais divergncias, embora relevantes, so sutis entre as cantigas, pois a que mais salta aos nossos olhos a meno ao jegue e ao sino na verso baiana, este ltimo pode estar associado ao canto do galo, dada a superstio desse canto celebrado na tradio crist.

Ao nosso olhar comparativo, a meno ao jegue na verso baiana uma referncia relevante para o contexto sociocultural do conto baiano, pois o jegue um animal muito recorrente na representao da paisagem e da vida cultural nordestina, tanto que existe, na Bahia, mais precisamente na cidade de Uau do estado, uma tradio chamada jecana, como evidencia Albuquerque (2014, p. 175): No dia do vaqueiro tambm ocorre a Jecana que o desfile de homens, mulheres, adultos e crianas, montadas em jegues, e esta j est em sua 11 edio com o objetivo de destacar a importncia do animal, to comum no Nordeste do Brasil. Ainda que o conto baiano aqui cotejado tenha sido recolhido na cidade de Igapor, tambm do estado da Bahia, aproveitamos a referncia cultural tradio da jecana na cidade de Uau, porque, segundo a pesquisadora, a cidade de Uau uma referncia aos sertes da Bahia, por ser um muncipio que ainda preserva as mais genunas expresses e manifestaes da cultura popular, constituindo, assim, o celeiro de cantadores, poetas populares, repentistas, sanfoneiros, aboiadores, zabumbeiros etc.

Apesar de o jegue no conto baiano ser uma referncia que nos sugere a adaptao da narrativa cor local, o serto baiano do Nordeste, o elemento que revela maior expressividade da cultura nordestina no conto de Marco Haurlio j est contido no prprio ttulo da narrativa: Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), visto que o lagarto tei um noivo-animal recorrente nas histrias populares brasileiras que originaram do mito Cupido e Psiqu, conforme Doralice Fernandes Xavier Alcoforado: Nas verses brasileiras, o noivo metamorfoseado pode vir na aparncia de fera, lagarto, tei, veado, porco, leo, drago, sapo, boi, camaleo, burro, urubu, cobra, lagartixa, papagaio, pombo, peixe ou mesmo beija-flor (ALCOFORADO, 2000, p. 42).

O argumento para a substituio do prncipe encantado da narrativa napolitana, descrito como monstro pelas irms de Luciella, disso ele ser considerado tambm noivo-animal, pelo prncipe Tei da narrativa baiana, pode ser tirado com base em Alcoforado (2007) que afirma ter encontrado, em sua pesquisa de campo, recolhendo histrias populares do mito de Apuleio no estado da Bahia, trs contos com elementos temtico-estruturais que os integram ao tipo 2: O Peixe Dourado (v. 1), A Histria do Tei (v. 2) e O Pssaro Assu (v. 3). O tipo 2 apresenta contos que se articulam a partir de uma carncia de pesca ou de caa que afeta a vida do chefe de famlia, porque caar ou pescar a sua profisso. Essa carncia, entretanto, pode ser superada caso o chefe aceite a oferta de abundncia de alimentos proposta por um ser encantado, em troca da primeira coisa a ser vista no retorno casa. No costume de ver sempre a cachorrinha, o progenitor aceita a proposta. Contudo, ao chegar em casa, a prpria filha ou o filho que o ser encantado avista. O pretendente no propriamente um monstro, na acepo que dada ao termo, porm animal mais ou menos familiar, um peixe ou um tei, que deseja casar-se com a moa, ou a Me dgua que deseja casar o rapaz com a sua filha (ALCOFORADO, 2007).

Assim como nos trs contos coletados por Alcoforado[73] (2007), no conto baiano, recolhido por Haurlio (2011), o pai de Anglica, chefe da famlia, tambm desempenhava o papel de caador, que, alis, no lhe rendia alimento:

Houve, h muito tempo, um caador muito pobre que era vivo e morava com suas trs filhas numa casinha da mata. Um dia, ele no estava tendo sorte na caada. J era tarde e o homem no tinha conseguido nada para a ceia. Muito triste, sentou-se numa pedra e comeou a maldizer sua sorte. Nisso chega um tei e pergunta para o velho [...] (HAURLIO, 2011, p. 64).

            A partir deste trecho, analisamos que a escolha pelo tei como noivo-animal no conto baiano justifica-se no somente por ser um animal associado pesca e, portanto, um alimento que pode compensar a situao de carncia do chefe da famlia, que exerce a funo social de caador, mas tambm por demonstrar a capacidade do conto de se adaptar ao universo cultural do contador, no caso do serto baiano da regio nordeste, o que explicita, sobretudo, o carter etnogrfico do texto oral que percorre pelo territrio do maravilhoso, acomodando-se s mais diversas localidades geogrficas.

 

Consideraes finais

Ao recolher o conto maravilhoso baiano da tradio oral, Anglica mais afortunada (o prncipe Tei), que evidencia uma relao intertextual com o conto napolitano O cadeado, recriado por Giambattista Basile com base no mito de Cupido e Psiqu ou talvez recolhido j na forma de conto maravilhoso no sculo XVII pelo escritor napolitano em sua obra-prima Lo cunto de li cunti (O conto dos contos), o poeta, escritor e folclorista baiano Marco Haurlio dialoga com a tradio na qual se insere o escritor Basile. A tradio oral se manifesta, na obra de ambos os escritores compiladores, por elementos comuns, como a contadora de histria, a cantiga e a superstio popular do canto do galo, e distintos, presena e ausncia de frmulas finais, mas ambos recursos evidenciam o contexto sociocultural de produo de suas respectivas obras, haja vista a referncia tanto ao jegue quanto ao lagarto Tei no conto baiano coletado por Haurlio (2011) na cidade de Igapor, e a cultura napolitana e as deformaes fsicas prprias do Barroco no conto napolitano recriado ou possivelmente recolhido por Basile.

Alm da voz do escritor napolitano na coletnea Conto e fbulas do Brasil, ecoam outras vozes da tradio, porm de folcloristas brasileiros: Brulio do Nascimento, para quem Haurlio (2011) dedica sua coletnea Contos e fbulas do Brasil, e com quem compartilha o uso do ndice internacional ATU de classificao dos contos, j adotado por Brulio do Nascimento em seu Catlogo do conto popular brasileiro, de 2005; e Doralice Alcoforado, cujos trabalhos pioneiros no Brasil desde a dcada de 90 revelam a presena do mito de Cupido e Pisqu no imaginrio baiano, dado o ttulo de sua antologia Belas e Feras baianas: um estudo do conto popular e as reflexes terico-crticas da pesquisadora que mostram o tei como o noivo-animal recorrente no contexto cultural do serto do Nordeste brasileiro.

No movimento analtico, embora tenhamos identificado ressonncia dessas vozes da tradio no conto baiano e na obra de que faz parte, no podemos deixar de mencionar a importante reflexo que Haurlio (2011) faz no prefcio de seu livro: o carter coletivo de qualquer coletnea de contos tradicionais em qualquer poca, pois, sempre que uma antologia de contos tradicionais publicada na aurora dos tempos, ela resgata consigo, por um lado, autores annimos que elaboram e reelaboraram tais histrias e, por outro, contadores de histrias, que desempenham o papel de retransmissores atuais, como as contadoras, de quem Haurlio ouviu e recolheu o conto baiano e por meio de quem Basile ouviu e narrou o conto napolitano selecionados para este artigo.

 

Referncias

 

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[Recebido: 08 ago 2020    Aceito: 24 jan 2021]

 



[63] Graduou-se em Licenciatura em Letras com habilitao em portugus/italiano pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho – UNESP/IBILCE, Campus de So Jos do Rio Preto-SP. Desenvolve pesquisa de Mestrado com fomento CAPES junto ao Programa de Ps-graduao em Letras, pela Unesp/So Jos do Rio Preto-SP. membro do grupo de pesquisa Narrativas maravilhosas, mticas ou populares: da oralidade literatura (CNPQ), liderado pela Prof. Dr. Maria Celeste Tommasello Ramos.

[64] Assim como o italiano Gian Francesco Straparola no sculo XVI, o italiano Giambattista Basile tambm recolheu uma verso de O gato de Botas no sculo XVII, com o ttulo de Cagliuso, quarto entretenimento narrado na segunda jornada (fiaba IV, giornata II) de Lo cunti de li cunti.

[65] Do original: Lopera costruita in questo modo: un racconto (il 50 composto da: appertura/ponti narrativi/chiusura) allinterno del quale vengono raccontati altri 49 racconti. Per questo lopera stata intitolata racconto dei racconti. Si parla di gioco dei giochi nello stesso senso [...]. Il 50 racconto la storia di Zoza che apre e chiude lopera ed ha la stessa struttura dellultimo racconto (I tre cedri, il 49 : v. 9).

[66] Do original: E noi troveremo, anzitutto, che varii trattenemienti appartengono al grupo di quella, chՏ la fiaba pi famosa e pi ricca di storia, la fiaba di Psiche – Cos il nono della G.II, nella quale se racconta di Lucciella.

[67] O poeta, folclorista e escritor brasileiro Marco Haurlio publica, alm das coletneas de contos populares, como Contos folclricos brasileiros e Contos e fbulas do Brasil, vrios ttulos do acervo da literatura oral brasileira, dentre eles assuntos de cordel. Suas publicaes podem ser encontradas em: https://marcohaurelio.blogspot.com/p/bibliografia.html.

[68] Nesta seo, feita por Paulo Correia em julho de 2007, ele escreve: Todos os contos desta coletnea foram classificados de acordo com o catlogo ATU, com exceo dos que nele no figuram, classificados com a ajuda de catlogos regionais (HAURLIO, 2011, p. 198).

[69] Do original: Sar proprio Ciommetella con il suo ultimo racconto, che anche il racconto conclusivo della raccolta (se si esclude quello principale di Zoza), a smascherare lingano della schiava.

[70] Do original: che prende lo stomaco; quel senso di nausea che rimane e non se ne va mai. E' la sensazione di chi rumina invidia e che viene ripagato cos dalla sua stessa natura.

[71] O nome Folia de Reis designa grupos catlicos populares, que se renem no perodo de 24 de dezembro, noite, at o dia 6 de janeiro, para oferecer seu voto de devoo ao Santos Reis, em comemorao ao nascimento do menino Jesus (KIMO, 2006, p. 1).

[72] A letra da cano Saudao da Lapinha est integralmente transcrita na dissertao de mestrado Msica, ritual e devoo no terno de folia de Reis do Mestre Joaquim Pol, defendida por Igor Jorge Kimo, da qual retiramos os versos citados.

[73] Resultado da pesquisa de campo do conto mtico de Apuleio no imaginrio baiano, empreendida na dcada de 90, o livro Belas e feras baianas: um estudo do conto popular (2008), publicado pela pesquisadora e folclorista brasileira Doralice Xavier Fernandes Alcoforado que atuou como professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).