... MESMO QUE NOS ARRANQUEM OS DENTES E A LNGUA.: A POTNCIA PER-FORMATIVA DA LITERATURA DE ELIANE POTIGUARA[43]

 

... EVEN IF THEY PULL OUR TEETH AND TONGUE.: THE PER-FORMATIVE POTENCY OF THE LITERATURE OF ELIANE POTIGUARA

 

 

Renata Daflon Leite[44]

https://orcid.org/0000-0002-2498-779X

 

 

Resumo: Discute-se o tema da ancestralidade nas narrativas da autora Eliane Potiguara, relacionando-o defesa de uma poltica da existncia, destacando, assim, o aspecto ritualizado dessa literatura que se desenvolve na tnue fronteira entre a oralidade e a escrita. Parte-se da escrita de Eliane Potiguara para apontar a conquista de um espao que vem se firmando enquanto prtica permanentemente articulada em redes de saberes indgenas como o Grumin – Grupo Mulher-Educao Indgena, surgido na dcada de 80, constituindo polticas de resistncia objetivas. Ressalta-se o quanto o carter social e tico da literatura indgena pode nos estimular a fazer aproximaes com o Campo de Estudos da Performance, por meio da investigao de Diana Taylor sobre Memria Cultural nas Amricas. Destaca-se o aspecto de inovao deste gnero literrio que nasce articulado com o movimento indgena, tendo a singularidade de afirmar-se enquanto criao que redimensiona os aspectos polticos da prosa, da poesia, de cartilhas educativas, do desenho e da literatura de testemunho, nos quais a ancestralidade fundamenta a ao poltica.

Palavras-chave: Literatura indgena. Ancestralidade. Performances polticas.

 

Abstract: It discusses the theme of ancestry in the narratives of the author Eliane Potiguara, relating with the defense of a politics of existence thus highlighting the ritualized aspect of this literature that develops in the tenuous border between orality and writing. It starts from the writing of Eliane Potiguara to point out the conquest of a space that has been established as a practice permanently articulated in networks of indigenous knowledge such as GRUMIN, the Group of Indigenous Women-Education that emerged in the 80's, constituting as an objective political resistance. It is noteworthy how much the social and ethical character of the indigenous literature can stimulate us to make approximations with the Field of Performance Studies, through the investigation of Diana Taylor on Cultural Memory in the Americas. The innovation aspect of this literary genre is articulated with the indigenous movement, with the singularity of being affirmed as a creation that reshapes the political aspects of prose, poetry, educational booklets, drawing and testimonial literature, where the ancestry grounds the political action.

Keywords: Indigenous Literature. Ancestry. Political Performances.

 

 

Foram muitas vidas violadas, culturas, tradies, religies, espiritualidade e lnguas. A verdade est chegando tona, mesmo que nos arranquem os dentes! O importante prosseguir. comer caranguejo com farinha, peixe seco com beiju e mandioca. olhar o mar e o cu. E reverenciar os mortos, os ancestrais. sonhar os sonhos deles e v-los. conviver com as manias de caboco, mesmo que sufocados pela confuso urbana ou as ameaas agrestes, porque na realidade so as relaes mais sagradas de nosso povo, porque so relaes com a terra e com o criador, nosso Deus Tup. Bonito vestir os trajes do Tor e honrar-se como se vestisse os trajes dos reis e senti-los como a expresso mxima das relaes entre o homem, a terra e Deus. sentir o sagrado e o universo. O importante crer e confiar mesmo que na noite anterior violaram nossa casa ou nosso corpo (POTIGUARA, 2004, p. 79-80).

 

 

A literatura como expanso de um grito estrangulado

 

A literatura indgena apresenta-se como um espao poltico-cultural em contnuo movimento, deixando-nos entrever uma relao tensional-criativa tanto entre escrita e oralidade, quanto entre poltica e ancestralidade, ao evidenciar em sua transmisso um processo em que as performances de resistncia poltica esto imbricadas nas performances rituais tradicionais. Um livro escrito por um autor indgena uma obra que apresenta a singularidade de ser delineada na tnue fronteira entre o oral e o escrito, fruto de uma individualidade autoral concebida na partilha e difuso de uma cosmoviso especfica, reafirmada pelo movimento indgena de fortalecimento identitrio, preservao e renovao cultural. Lanamos aqui um olhar para o livro Metade Cara, Metade Mscara da escritora indgena Eliane Potiguara, por evidenciar uma estreita relao entre ancestralidade e poltica, a comear pelo ttulo em referncia ao sinal em cor de jenipapo que a autora traz no rosto. Nascida com uma mancha roxa no olho direito, identificada pelos Kaiaps como marca de ancestralidade, a autora nos conta que teve sua espiritualidade reacendida pelo cacique Joo Batista Faustino, que lhe dizia que o pssaro Pitiguary cantava sempre que ela se aproximava. O canto mtico desta ave, conhecida por anunciar a chegada de quem tem uma misso na Terra, envolve, assim, as palavras da escritora numa espacialidade fecundada pelas mltiplas vozes coletivas da tradio redescoberta. Na apresentao da obra, feita por Daniel Munduruku, podemos ler que o movimento indgena nasce de um primeiro exerccio de expresso da prpria dor, de um momento de liberdade, ainda que ilusrio; um timo de futuro. Ele nos lembra que agora hora de ler as palavras que foram ditas ao papel, j que dos primeiros lderes muito se viu e ouviu, mas pouco se leu (MUNDURUKU, 2004, p. 15-16). interessante destacarmos tambm a introduo feita por Graa Grana, na qual o livro visto como exemplo de uma literatura que expande o seu grito, dos mais excludos, e tece a esperana de poder refletir os problemas dos povos indgenas e seus descendentes (GRANA, 2004, p. 17).

Defendemos aqui que a performatividade dessa escrita est em resgatar o espao sagrado da fala ancestral, reiterando prticas espiritualizadas, antes restritas a oralidade e defendendo o direito de exerc-las, por meio de um posicionamento poltico em que a subjetividade do autor est profundamente implicada, conforme podemos ler na epgrafe:

 

No dia em que eu conseguir abrir as pginas de minhalma e contar essas linhas de meu inconsciente coletivo – com alegrias ou dores, com prazeres ou desprazeres, com amores ou dios, no cu ou na terra – a sim, vou soltar a minha voz num grito estrangulado, sufocado h cinco sculos. Quinhentos anos, de pretenso reconhecimento de nossa cidadania, no pagam o sangue derramado pelas bisavs, avs, mes e filhas indgenas deste pas. Este dia certamente chegar, mesmo que eu esteja em outros planos (POTIGUARA, 2004, s/p).

A narrativa de Eliane traz tona memrias que foram apagadas pelo colonialismo e neocolonialismo, insistindo em nos fazer ver aquilo que ela denomina como sendo o incio da solido das mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 24). A autora Potiguara nos lembra os relatrios do sculo XVIII feitos por Padre Fernandes, em que 2 milhes de ndios Guaranis foram assassinados em 130 anos, exemplificando com o assassinato de Sep Tiaraju e mais de 10 mil Guaranis na batalha de 7 de fevereiro de 1756, prximo a Bag, sudoeste do Rio Grande do Sul:

Sua esposa Marina (Juara)[45], levaria s costas a menina recm-nascida que Sep jamais veria. Era o incio da solido das mulheres, motivada pela violncia, racismo e todas as formas de intolerncia, referentes inclusive espiritualidade e cultura indgenas (POTIGUARA, 2004, p. 23).

            Este episdio de extermnio dos Guaranis revela um imaginrio poltico racializado, que legitima a dominao dos civilizados europeus sobre os povos selvagens, proclamando, na subjugao do corpo e na coisificao do sujeito indgena, um princpio de organizao calcado no terror. Mbembe (2018, p. 35) comenta que as colnias so o local por excelncia em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violncia do estado de exceo supostamente opera a servio da civilizao. O exerccio de um poder margem da lei nas colnias provm da negao racial de qualquer vnculo entre conquistador e nativo. Os selvagens careceriam de humanidade e quando os europeus os massacravam no tinham conscincia de cometerem um crime. Na colnia, o direito soberano de matar no est sujeito a cdigos legais e compe uma ocupao sociopoltica, cultural e econmica, baseada na classificao das pessoas de acordo com diferentes categorias, donde emergem zonas e enclaves que do margem uma territorialidade restrita. Na contemporaneidade, o exerccio do direito de matar no se restringe s guerras territoriais de conquista-anexao da modernidade, espraiando-se em um mosaico de direitos de governar sobrepostos que visam a sujeio e a coero do colonizado (MBEMBE, 2018).

Quijano (2015, p.122-126) estabelece que a colonialidade do poder eurocentrado surge na constituio histrica da Amrica, culminando no processo de globalizao contempornea, calcada num novo padro de poder mundial que tem na raa o elemento fundacional de relaes de dominao exigidas pela conquista e, mais tarde pelas formas histricas de controle do trabalho, dos recursos e de produtos no mercado mundial capitalista. O projeto civilizatrio etnocntrico relocalizou as singulares identidades nativas dentro de um padro cognitivo associado ao passado e ao primitivo. Vemos em Quijano (2015, p. 127) que o eurocentrismo reduziu as heterogeneidades culturais astecas, maias, chimus, aimars, incas, chibchas, etc., circunscrevendo-as todas sob uma nica identidade: ndios. O mesmo vai acontecer com os escravos achantes, iorubs, zulus, congos, bacongos, etc, que a racionalidade colonialista homogeneizaria sob uma nica nomenclatura: negros. A construo do Estado-nao nas colnias europeias foi trabalhada contra a maioria da populao composta por negros, ndios e mestios. A colonialidade do poder ainda exerce seu domnio, na maior parte da Amrica Latina, contra a democracia, a cidadania, a nao e o Estado-nao moderno (QUIJANO, 2005, p. 135-136).

Eliane comenta que a invaso das terras indgenas, conveniente para polticas locais, causou desmatamento, assoreamento dos rios, poluio ambiental e diminuio da biodiversidade local, alm de trazer fome e empobrecimento compulsrio da populao indgena, levando muitas famlias migrao, ao trabalho semiescravo e a pssimas condies de moradias (favelas e casas de palafitas na periferia dos centros urbanos), trazendo distrbios mentais, alcoolismo e suicdio. Sua anlise crtica prope que a colonizao e a neocolonizao tambm refletem grupos de interesses religiosos, que tentam impor um paternalismo eclesistico como forma de racismo, desrespeitando as tradies culturais indgenas (POTIGUARA, 2004, p. 44).

            A autora Potiguara afirma a cosmoviso das mulheres como um instrumento de libertao do povo indgena que leva ao despertar do ser sutil, intuitivo e selvagem no sentido de uma essncia espiritual primeva. Sob esse prisma, o ato de criao um ato de amor e resgate do selvagem sagrado que j estava dentro de ns e no sabamos. A criao artstica em todas as suas vertentes, dentre as quais a literria, emerge como um vulco, uma (r)evoluo do esprito, um xtase: E esse nico ato de criao o suficiente para alimentar um oceano, assim como o leite doce e materno de uma jovem me o suficiente para trazer de volta um ser nascido prematuramente (POTIGUARA, 2004, p. 58).

Estamos diante de uma escrita-como-veculo, um soltar a voz num grito estrangulado, narrativa que serve como impulso ao de outras mulheres indgenas. Estes versos cor de jenipapo saltam da pele do papel, mostrando-nos a saga de uma mulher indgena discriminada, violentada e vtima de opresso social, mas que guarda consigo a tradio passada pelas mulheres de sua famlia, conduzindo-a ao que ela chama de retorno ao inconsciente coletivo (POTIGUARA, 2004, p. 27), quando entra para o movimento indgena e reacende sua ancestralidade. A palavra escrita, apreendida dentro de uma lgica de expanso de sentidos, foi por mim trabalhada em ndios Online: posts que no querem calar, ressaltando o carter no linear da significao potica endereada divindade. A densidade da autoria feminina indgena lida, portanto, numa apreenso deleuziana, na qual o corpo do poema se distende qual plat ininterrupto.[46] Dentro desta concepo inspirada em Deleuze e Guattari (1980), a escritura tem uma corporeidade vibrtil, distendendo-se em agenciamentos que transcodificam e transduzem as cosmovises indgenas, compondo foras centrfugas errantes por onde a voz de Eliane reverbera. Os gradientes de intensidade do poema ganham a colorao de uma escrita cor de jenipapo que se espraia pela superfcie textual, fazendo ecoar vozes e paragens que se inscrevem, como marcas na pele. A palavra rememora este grito estrangulado que habita, por exemplo, o poema Nossa Casa Ancestral:

At que um dia

Os nossos filhos mortos, nascidos, e renascidos

Possam relembrar do olhar, docemente,

Da luz envolvente

E da tinta de jenipapo

Cravada pelo Grande Esprito em nossa cara (POTIGUARA, 2004, s/p).

            O ato de ler percorre, assim, as potncias poticas de uma escrita-veculo, impulsionado no por uma significncia unvoca, mas sim pela multiplicidade de sentidos relembrados no poema. Estamos diante de uma escrita que ausculta o terreno da palavra renascida, abrindo-se para uma cartografia poltica da voz feminina indgena.

Podemos enxergar uma escrita-denncia no relato do episdio de assassinato do bisav da autora, consumado por ao da famlia inglesa colonizadora X:

Conta-se que ndio X, pai das meninas Maria de Lourdes, Maria Isabel, Maria das Neves e Maria Soledad, por combater a invaso s terras tradicionais do Nordeste, foi assassinado cruelmente, segundo palavras de uns velhos que encontrei um dia. Amarraram-lhe pedras aos ps, introduziram-lhe um saco cabea e o arremessaram ao fundo das guas do litoral paraibano (POTIGUARA, 2004, p. 24).

Crueldade que provoca a migrao da famlia para Pernambuco em 1928, quando nasce sua me Elza, filha de Maria de Lourdes, sua av violentada sexualmente aos 12 anos pelo colonizador. Pouco tempo depois, a famlia migra para o Rio de Janeiro, permanece por um tempo nas ruas, at que Maria de Lourdes, Ғndia, mulher, analfabeta, paraibana, nordestina e j separada do homem que lhe fez mais dois filhos (POTIGUARA, 2004, p. 24-25) consegue trabalho, estabelecendo-se numa zona degradante da cidade. Elza passa a tomar conta de seus dois irmos, e oito anos depois a jovem se casa e tem dois filhos, mas seu marido atropelado e ela repete o destino solitrio de sua me. Quando Eliane j tinha 6 anos de idade, sua av, que ela descreve como mulher indgena, analfabeta, paraibana, nordestina e agora quase mo-de-obra escrava nas feiras cariocas (POTIGUARA, 2004, p. 25), inicia seu processo de criao para ajudar sua me que trabalhava como faxineira numa firma, sendo educada e mantida a sete chaves num quarto semiescuro para preservar sua identidade moral, fsica e psicolgica, j que viviam numa rea socialmente comprometida. A av curandeira tratou de seus tumores alojados um no olho e outro no mamilo com uma mistura de minhoca amassada, teia de aranha e visgo de jaca. Quando conseguiam, comiam caranguejo e caldo de farinha. A menina cresceu ouvindo as histrias indgenas contadas por sua av e tias que, mesmo separadas de suas terras originais e violentadas cultural e fisicamente, souberam preservar seus laos com a cosmologia ancestral.

A encarcerada domiciliar cresce, torna-se professora primria, entrando em contato com a Filosofia da Educao de Paulo Freire e, incentivada por sua av e pelo cantor de origem indgena Charrua, Taiguara, com o qual se une em 1978, faz seu retorno ao inconsciente coletivo, visitando naes indgenas e perseguindo a histria de sua famlia. Ela entra para o movimento indgena e, por arquitetar polticas de resistncia denunciando o trgico impacto do arrendamento de terras indgenas, sofre abuso sexual, difamao e ameaas de morte, sendo levada a Polcia Federal e liberada aps uma ao de solidariedade do Pen Club da Inglaterra e da organizao internacional Escritores na Priso, ao indicada por Genaro Bautista, ndio mexicano coordenador da AIPIN (Agncia de Imprensa Indgena).

Eliane, ao narrar a sua histria, tira-a da penumbra e do processo de apagamento da memria, lembrando-nos, no entanto, que este apenas mais um dos casos de vtimas de violncia e racismo que permanecem invisibilizados, assim como a situao de mulheres indgenas que sofrem abuso sexual e se tornam vtimas de trfico de mulheres. Entramos em contato com os testemunhos que Eliane escutou ao longo de sua luta pela garantia dos direitos indgenas, como, por exemplo, o da velha louca que foi violentada sexualmente na infncia nos anos 1940 por um colonizador que depois fugiu, deixando-a a espera de seu homem-peixe: Eu estava em casa sozinha, cozinhando; entrou um homem-peixe em minha casa e me tomou o esprito e partiu (POTIGUARA, 2004, p. 44-45).

 

 

Outros arquivos, outros repertrios: o roteiro do descobrimento e a questo do apagamento

 

O Campo de Estudos da Performance pode nos ajudar a entrever as disputas presentes na construo da memria cultural por intermdio da literatura indgena, trazendo elementos para enfocar os aspectos criativos e polticos de inscrio e conquista da palavra indgena no mundo. Taylor (2013) nos diz que as performances funcionam como atos de transferncia vitais, transmitindo o conhecimento, a memria e um sentido de identidade social, por meio do que Schechner (2003, p. 27) denomina comportamento restaurado ou comportamento duplamente exercido. Este artigo trabalha a performance como uma lente metodolgica que alarga e distende as possibilidades de leitura crticas do livro de Eliane Potiguara, entendendo sua escrita como fruto da performatizao diria na esfera pblica de sua resistncia poltica e de suas identidades tnicas e de gnero, funcionando como um eco dos acontecimentos performativos, uma escrita-ao. Sua voz emerge como fruto das muitas memrias incorporadas transmitidas autora no colo de sua av indgena enquanto faziam juntas bolinhas de farinha e caldo de caranguejo com a mo, bem como de todo o sofrimento e discriminao que testemunhou ao longo da vida. Trata-se de uma escrita fruto de suas prticas incorporadas extremamente fecunda e potente, apontando para um despertar de conscincias.

A literatura indgena vai na contramo de uma escrita de mo nica, de um saber que ns, acadmicos, produzimos sobre eles, os ndios; trata-se de um espao de criao e circulao de conhecimentos que rompe o paradigma eurocntrico e logocntrico das universidades, apresentando-se como via de acesso a um outro modelo, afinal, as prticas culturais indgenas, profundamente marcadas pela transmisso do conhecimento incorporado, aparecero tambm na palavra escrita. Escrita-ao? Escrita-memria? Que espao essa literatura que expande o grito dos excludos reivindica ao contar sua prpria histria e que prticas colonialistas ela denuncia? Que territrios ela desestabiliza?

Diana Taylor, em seu livro O arquivo e o repertrio: performance e memria cultural nas Amricas, debate as noes de arquivo e repertrio como formas de transmisso de conhecimento, lembrando-nos, no entanto, que a memria arquivstica composta por textos e documentos no imune a mudanas, podendo ser ressignificada ao longo do tempo. O repertrio, por sua vez, encena a memria incorporada a partir do ritual, da performance e da oralidade, atos geralmente vistos como conhecimento efmero, no reproduzvel, mas imprescindvel sublinhar que as diferenas entre as duas formas apontam muito mais para um campo tensional do que um conjunto binrio antagnico.

Ao delinearmos a performance enquanto lente metodolgica e enfocarmos a literatura indgena enquanto escrita-ao, entendemos, enfim, que ela prope um movimento entre o livro e o campo, colocando em xeque a separao entre arquivo e repertrio, ao abarcar o repertrio de conhecimentos incorporados na forma textual do arquivo, no como objeto de anlise, mas por meio do fluxo performativo das palavras ditas ao papel, o livro sendo visto como campo performativo.

O texto literrio indgena funda um espao de fala que traz para o papel as memrias que antes estavam apagadas, apresentando uma dinmica em que a emergncia da palavra escrita leva a uma valorizao da palavra oral, em que as performances de resistncia, manuteno da tradio e luta pela garantia dos direitos indgenas, sustentam e impulsionam a propagao do arquivo textual e vice-versa.

A partir do campo de estudos da performance, esta textualidade pode ser lida para alm da palavra, enquanto atitude cultural, fruto de prticas culturais incorporadas verbais e no verbais. Taylor (2013) prope trabalhar com roteiros ao invs de textos, enquanto paradigmas de construo de sentidos que carregam um arcabouo porttil de repeties cumulativas que moldam e ativam dramas sociais. O roteiro coloca os espectadores dentro de sua moldura, enredando-nos em sua tica e poltica (TAYLOR, 2013, p. 67). Os poemas de Eliane transmitem conhecimento e memria ao propor a encenao de roteiros no-hegemnicos dotados de corporeidade, afinal, impossvel pensar sobre a memria cultural e a identidade como desincorporadas (TAYLOR, 2013, p. 134). O poema dedicado s vivas indgenas, No dia que mataram Maral Tup-Y (ou no dia que mataram nossos avs ou quando eles desapareceram), fala de uma tristeza cor de prata, de um amor doido, um amor das matas proclamado na solido de uma mulher que prossegue sua luta:

CONSCIENTE

Que jamais se cala...

Mesmo se lhe arranquem os dentes

Ou se lhe cortem a garganta gritante!

             (POTIGUARA, 2004, p. 73).

No captulo Angstia e desespero pela perda das terras e a ameaa cultura, s tradies, ns nos deparamos com a rememorao das palavras de Maral Tup-Y quando ele esteve no Sul do Brasil em 18 de abril de 1977: Eu no fico quieto no! Eu reclamo... Eu falo... Eu denuncio!.... Potiguara (2004) pontua que esta liderana foi assassinada em 25 de novembro de 1983, fato que remete ao assassinato do bisav da autora, levando-nos a encarar frente a frente a foto da bisav de Eliane, Maria de Lourdes, que aparece na dedicatria da obra, como uma mulher consciente e que jamais se calou, apesar de carregar uma tristeza cor de prata. A palavra incorporada desta escritora indgena composta de mltiplas camadas de sentido, fruto de experincias que vivenciou quando em 1995 viajou pelo interior da ndia com o Programa de Combate ao Racismo, descobrindo prticas de violncia s mulheres, que tinham como punio serem queimadas vivas pelos homens em suas prprias cozinhas, bem como de sua luta em defesa dos direitos reprodutivos da mulher indgena, de sua convivncia com velhos pajs e caciques de diversos povos indgenas, dos ensinamentos ancestrais passados por sua av ou ainda de seu trabalho na Subcomisso de Direitos Humanos da ONU em Genebra ou dos inmeros fruns nacionais e internacionais sobre direitos indgenas que participa.

A autora Potiguara nos convida a refletir sobre a estreita relao entre poltica e ancestralidade quando diz que a libertao do povo indgena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmoviso das mulheres (POTIGUARA, 2004, p. 46), esclarecendo-nos que se trata de uma mulher selvagem, no no sentido primitivo da palavra, mas uma mulher sutil, uma mulher primeira, que no est condicionada a transmitir o esprito de competio e dominao da sociedade contempornea. Eliane prossegue e afirma que o poder dela outro: Seu poder o conhecimento passado atravs dos sculos e que est reprimido pela histria (POTIGUARA, 2004, p. 46). A criao artstica espiritualizada promove uma ao poltica de fortalecimento tnico-identitrio e a conquista de um espao de expresso, impulsionando o autor indgena a perpassar os sculos como um porta-voz do conhecimento ancestral.

Podemos considerar que o ato de escritura e propagao da palavra ritualizada no mundo seria capaz de promover um furo no territrio competitivo de alto rendimento-eficcia-produtividade, consistindo, assim, num ato essencialmente poltico. Eliane Potiguara prope a transformao do sofrimento e do esfacelamento, por meio da purificao do esprito no ato criador, neste sentido ela vai alm e afirma uma poltica da existncia:

Tudo isso simplesmente poltica, a poltica da existncia. CRIEMOS, ento... porque a criao um ato divino que tende a mudar conscincias, formar opinies, suavizar o individualismo que ronda as mentes (POTIGUARA, 2004, p. 58).

            Trata-se de uma literatura que faz emergir o espao sagrado da fala, mas no podemos esquecer que so as mulheres as guardis da palavra ancestral, como Potiguara (2004, p. 59) nos lembra: E a palavra delas sagrada como a terra que d o alimento ao prximo, alimento da CURA em todos os sentidos. Em seu poema Ato de Amor Entre os Povos, temos dois personagens, Jurupiranga e Cunhata, que perpassam o tempo e o espao para falar da sobrevivncia colonizao e neocolonizao. a saga de Cunhata que, aps vivenciar o desterro pelo assassinato de Jurupiranga, lembra-se de sua identidade caminhante gerada no fogo eterno do tero de seus avs, como enunciado nos versos da autora indgena:

Porque minha identidade pra renascer

A qualquer instante

Basta um fio de luz (POTIGUARA, 2004, p. 64).

Ao percorrermos a narrativa de Eliane, damo-nos conta da fecunda dcada de 80, quando ela se articula politicamente com outras lideranas com o intuito de resgatar e preservar a identidade indgena. O Grumin (Grupo Mulher-Educao Indgena), hoje Grumin/Rede de Comunicao Indgena surge como um espao de livre expresso, circulao de saberes e de organizao pela garantia dos direitos indgenas, concebido em 1978 e criado juridicamente em assembleia em 1987. No fim da dcada de 80, Eliane editou com o Grumin uma cartilha de apoio alfabetizao dos indgenas da etnia Potiguara, na qual podamos ler: ҃ preciso sorrir, preciso criar quando estamos na luta pela sobrevivncia e preservao cultural, mesmo que nos arranquem os dentes ou a lngua (POTIGUARA, 2004, p. 99). O material, com financiamento da UNESCO e apoio da UERJ, procurava discutir a realidade cultural de seu povo, incluindo a questo da discriminao a que este estava sujeito. O grupo teve o papel pioneiro de levantar a bandeira da invisibilidade da mulher indgena, bem como dos indgenas ressurgidos, discutindo temas como sade e direitos reprodutivos, questes vistas como pertencentes a feministas no-indgenas. Eliane Potiguara atuou incansavelmente, sobretudo entre 1988 e 1996, buscando promover o acesso informao e o exerccio de empoderamento, por meio de muitas estratgias descritas pela autora, tais como:

Cursos de Capacitao, Consultas Nacionais, os Seminrios sobre Famlia e Cidadania, sobre Direitos Reprodutivos, as feiras de artesanatos, os projetos de desenvolvimento comunitrio, as cartilhas, jornais, panfletos, livros de conscientizao contra o alcoolismo, contra a violncia, contra a desinformao, contra o analfabetismo, contra a ignorncia de no se querer preservar e resgatar a identidade indgena (POTIGUARA, 2004, p. 50).

Neste sentido, as atitudes culturais per-formadas ao longo da vida de uma liderana indgena no espao pblico aparecem restauradas e ressignificadas em sua escrita, sendo redimensionadas pela utilizao da poesia. Podemos dizer que o estigma de atraso cultural associado s culturas indgenas difundido no cotidiano, seja na comemorao romantizada do Dia do ndio nas escolas – onde as crianas da sociedade envolvente se cobrem de penas e cocares, desenhando canoas e arcos e flechas para satisfao dos pais e professores que multiplicam ad infinitum as mesmas poses, gestos, cenrios e indumentrias em murais imutveis; seja pelo uso indiscriminado do termo genrico ndio, que encobre o apagamento das nuances e multiplicidades culturais indgenas; seja na naturalizao de assassinatos, torturas, abuso sexual e violao de direitos humanos cada vez mais invisibilizados pela mdia majoritria.

Desta forma, o neocolonialismo sustentado pela incansvel encenao e reencenao do roteiro hegemnico da conquista que propaga antagonismos, dualidades, vencedores e vencidos, numa distribuio de cartas marcadas e papis estereotipados que mesmo j tendo uma concluso previamente determinada ainda encanta plateias no mundo inteiro, sustentando e fomentando a dominao. A cada novo espao praticado pelos indgenas, no apenas na literatura, mas tambm na msica, na poesia, no cinema, nos blogs, jornais, rdios e webrdios indgenas, o movimento de reafirmao identitria e tnica d mais um passo, caminhando na contramo do famoso roteiro da conquista ou roteiro do descobrimento, borrando indumentrias, papis e cenrios previamente desenhados para propor novos arquivos e repertrios praticados pelos agentes culturais indgenas.

Taylor (2013, p. 94) pontua que o roteiro do descobrimento no tem original: Ele sempre uma citao, uma cpia da ltima cpia. A carta de Colombo coroa espanhola, relatando sua primeira viagem ao Caribe em 1493, bem como o resumo do dirio de Colombo escrito por Bartolom de las Casas em 1552, desapareceram do arquivo, fundando uma documentao baseada na reproduo de cpias que performatizam eternamente o show inaugural estrelado pelo descobridor, diante de um pblico ilegtimo de espectadores no autorizados descritos na carta como Ғndios e um pblico legtimo de europeus que testemunham o movimento de fincar a bandeira no solo conquistado. O ato de transferncia inclui o rei e a rainha como destinatrios e beneficirios do ato de transferncia de posse, os espectadores no autorizados como objetos transferveis e Deus como espectador mximo da cerimnia (TAYLOR, 2013).

Em todos os lugares que os exploradores desembarcavam, repetiam-se variaes desse roteiro, autenticando a perspectiva do descobridor, como podemos ver na permanente encenao da conquista do Mxico:

O roteiro da conquista tem sido encenado repetidas vezes – desde a entrada de Corts em Tenochtitln at o encontro entre Pizarro e Ataualpa, ou a declarao de posse do Novo Mxico por Oate. Cada repetio acrescenta algo ao seu poder afetivo e explicativo at o resultado parecer uma concluso previamente determinada. Cada novo conquistador pode esperar que os nativos caiam a seus ps simplesmente devido fora do roteiro reativado (TAYLOR, 2013, p. 64).

            Podemos, no entanto, escolher seguir os roteiros da conquista como prticas reiteradas disseminadas em escolas e na mdia majoritria ou criticar os roteiros, apontando suas brechas, falhas e memrias submersas. Esta segunda opo aparece, por exemplo, quando Eliane sublinha a particularidade do incio da solido das mulheres, apontando no roteiro histrias que foram silenciadas pela prtica de reativao de um roteiro padro, trazendo para o foco vozes que foram caladas, como a da criana-velha-louca que passou a vida esperando seu homem-peixe colonizador, ou a de muitas Marinas, Juaras e Marias de Lourdes obrigadas a migrar com suas crianas s costas para vivenciar o racismo cotidiano. Que sistemas significantes e econmicos, porm, mantm essas vozes silenciadas? Taylor (2013, p. 92) prope que, ao identificarmos o roteiro, reflitamos sobre a eficcia de sua re-encenao:

Como um sistema paradigmtico de visibilidade o roteiro tambm assegura a invisibilidade. Ainda h mais razo para nos perguntarmos, ento, por que esse roteiro continua a ser reencenado e por que ele ainda exerce tanto poder.

            Podemos depreender de Taylor (2013, p. 100-101) que o roteiro situa o descobridor como aquele que v e que nunca se sente obrigado a se descrever ou a se situar; j os amerndios, apesar de presentes fisicamente, so reconhecidos apenas para serem desaparecidos nesse ato. A objetificao do corpo primitivo reafirma a supremacia cultural do sujeito que v, legitimando toda uma indstria de especialistas em lnguas ou etnografia que, assim como Colombo, se sentem capazes de interpretar as performances do nativo. Diante da reprodutibilidade de corpos no falantes institudos pelos roteiros hegemnicos, a voz de Eliane nos apresenta um roteiro no-hegemnico que difere da unilateralidade da conquista dos dominantes sobre os dominados para situar-se no como aquela que v, mas como aquela que per-forma a prpria memria a partir das experincias vivenciadas. O assassinato do ndio X pela famlia colonizadora inglesa X reencena o assassinato de Sep Tiaraju em 1756; da mesma forma, as solides de Maria de Lourdes e Marina (Juara) rememoram o assassinato de Maral Tup-Y e a dor das vivas indgenas que jamais se calam, mesmo se lhe arranquem os dentes. A cartilha de alfabetizao, editada pelo Grumin no fim da dcada de 80, modifica os roteiros hegemnicos de apagamento, subvertendo letramentos verticalizados exteriores realidade cultural Potiguara, para propor a discusso da discriminao e a conscientizao poltica. Eliane testemunha, sujeito e participante do ato de transferncia vital da memria cultural passada em sua literatura. Ela no apenas uma observadora impassvel, pois, ao descrever o mundo o modifica no ato divino da criao, propondo nas simbologias das personagens Cunhata e Jurupiranga novas espacialidades para as identidades indgenas ressurgidas.

 

 

Re-inventando a Ancestralidade, apesar das Performances de Poder

 

            Em oposio s constantes performances de poder, encontram-se as memrias incorporadas que compem a identidade indgena, sendo continuamente performadas a cada ao ritual e cotidiana, trazendo em si a continuidade da histria ancestral. Os roteiros da conquista representam muitas vezes as performances de dominao e opresso, baseadas e sustentadas pelo antagonismo e pela dominao do Eu sobre o Outro. As performances rituais so movidas por uma necessidade inelutvel de contnua reafirmao identitria atravs da honra memria dos ancestrais de um povo. A autoafirmao tnica no se faz em oposio ao Outro, mas sim pelo encontro com uma cosmoviso que, por estar acima de qualquer binarismo, sabe apenas seguir seu percurso e manter sua fora motriz e vital, como podemos ler nesses versos do poema Identidade Indgena:

Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!

Mas caio da vida e da morte

E range o armamento contra ns.

Mas enquanto eu tiver o corao aceso

No morre a indgena em mim

E nem tampouco o compromisso que assumi

Perante os mortos

De caminhar com minha gente passo a passo

E firme, em direo ao sol.

Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro

Carrego o peso da famlia espoliada

Desacreditada, humilhada.

Sem forma, sem brilho, sem fama. [...] Mas a conscincia se levanta a cada murro

E nos tornamos secos como o agreste

Mas no perdemos o amor.

Porque temos o corao pulsando

Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.

Eu viverei 200, 500 ou 700 anos

E contarei minhas dores pra ti

Oh! Identidade (POTIGUARA, 2004, p. 102-103).

A identidade , ento, o que mantm o pulsar do corao e a conscincia indgena, no sendo, de forma alguma, fruto de um roteiro reencenado para dominar o Outro. Apesar do peso da famlia espoliada, a reconstruo identitria traz em si a fora motriz que permite caminhar em direo ao sol e honrar o compromisso assumido perante os mortos. a ancestralidade que mantm a identidade indgena e esta que reativa perpetuamente a memria ancestral. Quando em 1990 Eliane vai ao 49 Congresso dos ndios Norte-Americanos entregar um dossi sobre a situao indgena brasileira, ela descreve ter experimentado, em meio aos 1.500 indgenas presentes com seus trajes mesclados a milhares de penas de guia, em horas e horas de danas, o que ela chama de as msicas e os tambores dos sculos, gerando uma outra sensao espao-temporal: Senti o espao compartimentar-se, transformando-se em fagulhas do tempo, pequenas gotas areas coloridas que me enfeitiaram e me colocaram em contato com os ancestrais (POTIGUARA, 2004, p. 111). Segundo a autora Potiguara, nesta ocasio foi enviada, pela primeira vez, uma moo s Naes Unidas sobre o extermnio dos Povos Indgenas do Brasil. Por meio desse exemplo, podemos entrever que a ao poltica no apenas a moo enviada ONU e o dossi de denncias, mas tambm os sons imemoriais dos tambores dos sculos, afinal, a afirmao de uma poltica da existncia o que permite a afirmao identitria.

Em Metade Cara, Metade Mscara, entramos em contato com uma escrita que reitera, na poesia, no testemunho e em narrativas, os diversos movimentos de uma ao poltica que caminha junto a uma esttica da existncia, constituindo-se tanto de denncias, organizao de grupos de discusso, conscientizao, luta pela garantia de direitos polticos e representatividade junto a mecanismos internacionais, quanto de exaltao cultural e ancestral.

A literatura indgena surge enquanto um espao praticado, em que a agncia cultural de seus autores reafirma a processualidade deste territrio essencialmente no-normativo, mas sim afirmativo de uma permanente poltica da existncia, onde a escrita indgena, enquanto fruto e reflexo da transfigurao da dor em criao, sustenta e mantm tanto a preservao da oralidade, quanto a renovao da palavra ancestral inscrita no papel ou no ambiente digital das novas tecnologias. A dinmica de um corpo orgnico e vivo da cultura indgena continuamente presente nessas criaes literrias, dilui as fronteiras entre escrito e oral, poltica e ancestralidade, arquivo e repertrio, preservao e renovao, dissolvendo os binarismos que sustentam um projeto societrio logocntrico.

A potncia potica da voz de Eliane compe no uma etnografia descritiva do sujeito indgena urbano, mas sim a corporificao de sua imagem diante de nossos olhos, a partir de relatos que apontam para a condio dos indgenas desplazados, denunciando sua invisibilizao social. Sua escrita cor de jenipapo no nos deixa tapar os olhos para a misria e o abandono de um indiozinho que escorria pelo bueiro diante da autora, metade de seu corpo superior debruava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte jazia cansada, escorrendo pelo esgoto urbano (POTIGUARA, 2004, p. 93). O relato nos traz um menino de dez anos derretido feito um relgio de Salvador Dal, com o corpo magro e imundo escorrendo pelo bueiro, olhinhos de tigre, roupas de mendigo, catando centavinhos. A voz de Eliane nos permite ouvir a voz do indiozinho que, indagado pela autora, responde que os meninos de rua lhe roubaram o dinheiro que conseguiu pedindo. Seu tero de me rosnou, afinal, ele no se considerava um menino de rua e ela estava diante de uma nova classe social criada pela pobreza: a de pedinte indgena.

Escrita-denncia e cosmopoltica literria que nos transporta para o plano da fala ancestral cravada na nervura da folha de jenipapo, que lhe traa os contornos. Escrita que se faz terra, signo que transcende a palavra, distendendo-a at alcanar a rtmica do Tor Potiguara e erguer-se em sonho revelado atravs de textos, oraes, poesias e articulaes polticas dentro do Grumin. Estamos diante de uma escrita cosmovisiva que nos abre outras dimenses de conscincia moral, tica, poltica e espiritual. Eliane nos lembra que a palavra da mulher indgena, condicionada pelo racismo e pelo medo, sobrevive porque sagrada como a terra, alimento da cura em todos os sentidos. A personagem Cunhata, aps o sofrimento da perda de suas terras, de sua famlia e de sua conscincia de mulher indgena, no conseguindo saber o paradeiro de seu homem, v sua dor refletida em pginas de desterro, que revolvem a identidade perdida na inrcia da prpria existncia ou em versos que falam da agonia dos Pataxs ou do sentimento Pankararu de ser marginal das cidades, das famlias e das palhoas. Ao retratar as gotas rubras do sangue louco e desvairado de um guerreiro desprendido durante o perodo da colonizao, no poema Tocantins de Sangue, a linguagem potica transpe o corpo indgena colonial para o contemporneo, conclamando em tom de denncia:

Banha o suor do mundo

Com tua luta

Junta lquidos, faz crescer

Nossa gente pobre

Nossa vida amarga

Ns _ Decadentes!

Indgenas, no...

Indigentes.

(POTIGUARA, 2004, p. 60).

Esta fora cosmopoltica aponta para uma palavra fmea que cura porque reacende o inconsciente coletivo ancestral, beijando as cicatrizes do mundo. Sua letra se levanta para percorrer com seu corpo palpvel, toda uma trajetria de preconceito no poema Neste sculo de dor, resistindo espoliada na condio de mulher em febre pra subexestir, Pra que matem nossos filhos / E os joguem nas valas (POTIGUARA, 2004, p. 61). Em meio a tanta dor, a materialidade de sua voz de mulher indgena conclama Unio das Naes Indgenas e a uma busca da identidade adormecida, dizendo no poema Desiluso: NO morte da famlia / NO perda da terra / NO ao fim da identidade (POTIGUARA, 2004, p. 64). A memria incorporada de Cunhata, enfim, se rasga, entoando cnticos de um amor louco e desvairado no poema Velho ndio, ao mirar a imensido dos sculos por meio dos olhos do amante. Estas palavras ditadas ao papel nos contam que certa vez o Grande Esprito disse a Cunhata: Vai ave-menina e mulher! Cria asas e enxergue; um dia, quem sabe, seremos livres! (POTIGUARA, 2004, p. 67). Eliane-Cunhata cria asas e luta em 1988 dentro da Assembleia Constituinte por entre bocas, dentes, sorrisos, entre o cheiro do vermelho do urucum que besuntava os cabelos dos Kaiap, liderados por Megaron, as palhas ressecadas dos indgenas do Nordeste, os olhares de lince dos Terena e Tukano, os olhares saltitantes dos Guarani e o rosto pintado de jenipapo de Ailton Krenak. Personagens histricas e mticas perpassam as pginas da autora, compondo a trama poltica da existncia, entre suas memrias da Constituinte dedicadas ndia guerreira Dona Marta Guarani e sua lembrana de tia Severina, anci guerreira Potiguara, a quem a escritora dedica o poema O Segredo das Mulheres, publicado em 1984 na cartilha de apoio alfabetizao indgena editada pelo Grumin.

A textualidade aqui se faz textura, demarcando um territrio, fincando posio: O indgena precisa sair das paredes, dos museus, das salas de exposio! (POTIGUARA, 2004, p. 94). A voz de Eliane ecoa a autodeterminao dos povos, lembrando-nos da luta poltica travada pelo movimento indgena internacional para a criao do Frum Permanente para Povos Indgenas da ONU. Metade Cara, Metade Mscara faz uma referncia histrica importante a associaes que deram um pontap inicial na ruptura com organizaes de cunho paternalista, como a Coiab (Coordenao indgena da Amaznia Brasileira), inicialmente coordenada por Manoel Moura Tukano, e a Unind (Unio das Naes Indgenas), criada por Marcos Terena, Mrio Juruna, lvaro Tukano, Lino Miranha, entre outros. Eliane nos lembra que territrio cosmologia e no apenas um pedao ou vastido de terras, integrando a cidadania dos povos ressurgidos, como os Pitiguary, no Cear, os Catkin, no Alagoas, ou ainda os Porubor de Rondnia, bem como os ndios-descendentes, em sua luta individual por sua territorialidade indgena.

A escrita Potiguara de Eliane, filha de um povo comedor de camaro, volteia e dana envolvente no poema Cunhata, surgindo plena de odores, gostos e sensaes tteis. O leitor se banha nas guas do Orinoco, espreitando o massacre de Potosi e o canto do pitu, as letras se movimentam na cadncia de um xaxado, ao sabor do churrasco, do chimarro, de uma saia de chita e um chocalho bonito que integra a Zamacueca dos Andes e o Tor do Serto. A escrita se faz audvel, sonora e Eliane nos reparte carne-de-sol, baio temperado, aa geladinho e uma rede quentinha, onde o leitor se deita, transportando-se para as libertas Ilhas Galpagos ou para o Amazonas, ao som das zabumbas e das zampoas. Cada conta de letra de Metade Cara, Metade Mscara vai tecendo um colar de miangas repleto de simbologias e matizes por onde a palavra passeia fio a fio, entre coloraes e estilos literrios. A poesia entremeada pela prosa na qual as personagens Cunhata e Jurupiranga perpassam debates em torno dos direitos reprodutivos da mulher e da luta dos indgenas ressurgidos, dialogando com trechos de uma cartilha de alfabetizao indgena, que prope ensinar no um letramento enrijecido, mas a corporeidade da letra em seu adensar-se no mundo, onde a leitura e a escrita aparecem como matrias de expresso cosmopoltica.

 

 

Consideraes finais

Entrevemos na literatura de Eliane Potiguara o espao sagrado da fala inscrito por xams, curandeiras, visionrias, guerreiras e inmeras mulheres indgenas violadas e subjugadas pela ao colonizadora. O fazer literrio materializa um grito estrangulado, perpetuando a memria ancestral da identidade indgena reconfigurada no fluxo performativo das vozes ditas ao papel, dando corpo a falas submersas. As memrias incorporadas na textualidade de Eliane se opem s performances de poder, testemunhando uma poltica da existncia na qual a dor se transfigura em criao e potncia potica.

A escritura feminina indgena surge como cura frente ao esfacelamento, promovendo a reconstruo identitria ao reencenar o mito de Cunhata e Jurupiranga, personagens lendrios impulsionados pela fora motriz de uma identidade caminhante. O mito se encarna na escrita-testemunho dos relatos sobre a av da autora, Maria de Lourdes, violentada sexualmente pelo colonizador e obrigada a migrar com a famlia para o Rio de Janeiro. Adentrando a escritura desta autora Potiguara, percorremos mltiplas camadas de sentido, em que a histria de sua av, reencena o incio da solido das mulheres, cuja origem remete ao extermnio dos Guaranis ainda no sculo XVIII, quando Marina, esposa do lder Sep Tiaraju migra sozinha com sua filha nos braos aps o assassinato do esposo.

A incansvel trajetria da autora na garantia dos direitos indgenas redimensiona e ressignifica sua escrita, dando-lhe a dimenso de fala per-formativa que trilha um caminho oposto reencenao dos roteiros hegemnicos, apontando em meio normatividade estabelecida, possveis brechas por onde ecoam mltiplas vozes indgenas capazes de propor outros roteiros e percursos. Estamos diante de uma literatura incarnada, na qual a memria cultural tem a potncia potica de uma poltica da existncia, que cultiva a palavra da mulher indgena como elemento de cura espiritual.

 

 

Referncias

 

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LEITE, Renata Daflon. ndios Online: posts que no querem calar. Curitiba: Editora Prismas, 2017.

MBEMBE, Achille. Necropoltica. So Paulo: N-1 Edies, 2018.

MUNDURUKU, Daniel. Vises de ontem, hoje e amanh: hora de ler as palavras. In: POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Mscara. So Paulo: Global, 2004, p. 15-16.

POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Mscara. So Paulo: Global, 2004.

QUIJANO, Anbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e Amrica Latina. In: LANDER, Edgardo (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e cincias sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 122-127 e p. 135-136.

SCHECHNER, Richard. O que performance? O Percevejo. Ano 11, n. 12, p. 25-50, 2003.

TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertrio: performance e memria cultural nas Amricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

 

[Recebido : 04 ago 2020 – Aceito : 9 mar 2021]

 



[43] Uma verso preliminar da temtica abordada aqui foi apresentada pela autora no IV Seminrio Fluminense de Sociologia, realizado pelo PPGS-UFF em 2015 em comunicao intitulada ... Mesmo que nos arranquem os dentes e a lngua: o espao sagrado da fala na literatura indgena. O presente artigo amplia o debate, aprofundando conceitos e propondo novas questes de investigao.

[44] Ps-doutora em Sciences de LInformation et de la Communication pela Universit dAvignon et des Pays de Vaucluse-UAPV. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ Imagem, Corpo e Subjetividade, ps-doutoranda em Comunicao e Cultura pelo Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGCOM-UFRJ.

[45] Eliane Potiguara apelida Marina, a esposa do lder indgena guarani do sculo XVIII, Sep Tiaraju. Ela aparece como Juara em outros textos seus.

[46] Para mais informaes, ver LEITE, Renata Daflon. ndios Online: posts que no querem calar. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p. 46.