Tamo junto, Favela! A arte perifrica como um mtodo educacional

 

 

Were in together, Favela! Peripheral art as an educational method


 

 

Ana Carolina de Souza Silva

https://orcid.org/0000-0001-5099-1058

 


Resumo: Neste trabalho, apresentamos alguns resultados de uma pesquisa realizada no[34] Centro de Estudos Lexicais e Terminolgicos (Centro LexTerm) da Universidade de Braslia. Tambm divulgamos alguns relatos de experimentaes vivenciadas em instituies educacionais e em casas de cultura do Distrito Federal. A primeira prtica trata de uma experincia educacional e de carter mais cientfico-especulativo; a segunda envolve, fundamentalmente, a poesia e a performance. Nosso objetivo , a partir da esttica artstica das periferias, verificar estratgias eficazes que buscam resgatar uma populao marginalizada e em condio de vulnerabilidade, alm de tornar acessveis contedos fundamentais em busca de conscientizao e justia social. Dessa forma, constatamos que, mesmo em condio de subalternidade, o povo perifrico no passivo, uma vez que rejeita os saberes do opressor, assim como resgata e forja saberes prprios. Pelo exposto, podemos observar a importncia de trabalhar a arte com narrativas e linguagem que contemplem a realidade de falas perifricas.

Palavras-chave: Periferia; Linguagem; Arte;  Poltica;  Educao.

 

Abstract: In this work, we present some results of a research carried out at the Center for Lexical and Terminological Studies (LexTerm Center) of the University of Braslia. We also publish some reports of experiments experienced in educational institutions and in cultural houses in the Federal District. The first practice deals with an educational experience and has a more scientific-speculative character; the second fundamentally involves poetry and performance. Our objective is, based on the artistic aesthetics of the peripheries, to verify effective strategies that seek to rescue a marginalized and vulnerable population, in addition to making fundamental content accessible in search of awareness and social justice. Thus, we find that, even in a condition of subordination, the peripheral people are not passive, since they reject the knowledge of the oppressor, as well as rescue and forge their own knowledge. From the above, we can observe the importance of working art with narratives and language that contemplate the reality of peripheral speech.

Keywords: Periphery;  Language;  Art;  Politics; Education.

 

 

 

 

 

 

Consideraes iniciais

Minha gerao av comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo de novo (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).

Dona Julita, minha v, nascida no serto da Ema, no municpio de Pianc (PB), uma mulher sisuda de 93 anos. Ela casou-se aos 18 anos para poder sair de casa. Minha bisa, Aurora, foi uma mulher abandonada pelo biso em 1983. Essas mulheres muito tm a contar, mas trarei foco especial a Dona Julita, pois minha maior inspirao nessa trajetria educacional, acadmica, poltica, artstica, ativista e existencial.

Vov, a mando de bisa Aurora, teve de abandonar os estudos logo cedo para poder cuidar dos irmos mais novos. Mas no s. As mozinhas pequenas que sonhavam decodificar as letrinhas tiveram que catar bolas de algodo para garantir a subsistncia da famlia. Hoje, vov conta essa histria com muito rancor e lgrimas nos olhos. Era 1967 quando ela e o v Joo chegam ao Distrito Federal – depois de tentar a vida em So Paulo − e, achando espao para existir na capital, se juntam a tantas e tantos outras (os) Severinas (os) nas vilas operacionais em busca do sustento. Foi sustentao capitalizada. Vov limpou casas e vov ergueu muros.

A maioria dos trabalhadores optou por continuar na regio, mesmo que o plano fosse de que todos retornassem aos seus estados aps a construo de Braslia. Nas vilas operacionais, um novo termo foi criado para designar esses trabalhadores: candangos. Segundo Tavares (2009), essa terminologia de natureza pejorativa. O termo candango africano (quimbundo[35]); ele foi usado pelos portugueses para se referir aos negros no perodo colonial. No contexto da construo de Braslia, uma das hipteses levantadas por Tavares, a partir de sua investigao, a de que o termo fora inspirado no nome de um cachorro que habitava o Palcio do Catetinho. Tendo Kubitschek sabido disso, chamava os operrios – em especial os nordestinos – de tal forma. Outra hiptese a de que o termo operrio era designado aos trabalhadores de maior prestgio (como arquitetos e engenheiros) e candango mo de obra explorada nas jornadas de trabalho (TAVARES, 2009).

Depois da construo, nordestinas (os), mineiras (os) e goianas (os) foram erradicados do lar a partir da campanha da senhora Vera Prates[36] e realocados a cerca de 30km de distncia do centro. Como diria o rapper X, a Ceilndia resultado de sangue, suor e lgrimas[37]; essa fala confirma a dificuldade dos moradores em se estabelecerem na Regio Administrativa – doravante RA. Isso ocorre no somente por serem despejados, contra a prpria vontade, de seus lares que ficavam prximos a Braslia, mas tambm por terem diversas limitaes que impediam sua dignidade enquanto pessoas. A luta dos candangos que construram a capital foi em prol da garantia de um pedao de cho, como afirma o cantor X.

Pau que nasce torno, nunca se endireita, o que dizem. Com o destino manco, vov seguia sua travessia s cegas. Como possvel uma pessoa analfabeta sobreviver diante de uma cidade urbanizada, diante de uma capital nacional, diante de uma complexa burrocracia? Sem ao menos assinar o prprio nome?

Dos destinos que a vida tem, eu, calanga, nasci no cerrado. Vejo a histria de Dona Julita como o ponto inicial para mostrar que pau que nasce torno pode ser modificado e que cada passo dessa peregrina foi essencial para construir uma narrativa diferenciada. No se trata da regra, mas da exceo. No entanto, foram necessrias apenas duas geraes frente das de Dona Julita para que o pau fosse forjado em caneta. E caneta ativa.

 

Comunidade e polticas autnomas

Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas

(MENDES, 2005).

Dona Julita e Seu Joo chegaram ao Distrito Federal com seus cinco filhos ainda pequenos. Eles estavam em um territrio desconhecido e diante de uma complexa configurao de culturas. O natural que, a tudo que nos parea estranho, haja repulso. Mas, mesmo diante da misria comum a todos, estava tambm um forte instinto de sobrevivncia entre esses seres gregrios.

Vivemos resqucios da colonizao. Uma das estratgias de dominao est em controlar e distribuir de forma desigual os direitos bsicos. gua, alimentao, sade, lazer, transporte e educao so apenas alguns dos direitos garantidos a qualquer cidado em territrio nacional, mas essa garantia torna-se ironia quando observamos a realidade. Como bem afirma a poeta Meimei Bastos (2017),

mas, mais ensino mdio pra qu?

se no fundamental os menor j to se perdendo

na falta do professor.

o corre na esquina

o plano de extermnio,

manuteno da opresso

E como as comunidades sobrevivem diante da negligncia do Estado? Podemos pensar na Ceilndia e na campanha de erradicao que ocorreu em 1970. Ao chegarem ao novo territrio, no havia sequer gua encanada disponvel para a comunidade, de forma que as famlias recorriam a poos e nascentes, tendo de caminhar alguns quilmetros carregando baldes de gua na cabea. A Caixa dgua, monumento da cidade, um marco histrico para a RA, pois foi sinalizada como um direito cidadania.

A nossa sociedade no igualitria. Os direitos so escolhidos a alguns e pincelados nos jogos de privilgios. Como afirma a intelectual Sueli Carneiro (2005), essa estrutura social hierarquizada baseada em parmetros raciais e de classe. Nessa conjuntura, negar a educao aos marginalizados o trato de manuteno das desigualdades. A educao a chave de acesso a cidadania, a igualdade, ao mercado de trabalho. Esse plano de excluses um plano genocida.

Vov sobreviveu, mame tambm, assim como tantas e tantos outros que no tiveram o direito de estudar. Mame saiu precocemente da escola para poder ajudar financeiramente em casa. Essa histria plural. A maioria na Ceilndia (34,1%) tem o primeiro grau incompleto. Estou na exceo. Se o desejo foi de mudar a histria desse ciclo peregrino, ele no foi consciente, mas, por ironia ou no, formei-me professora. Pensava eu, desde o trabalho de concluso de curso da graduao, desde a produo de minhas poesias para publicao, em cortar o problema pela raiz. E, nessa constituio, compreendo-me comunicadora. Arte-educadora. Gri.

na concluso de curso que decido trabalhar com um grupo pouco explorado no Instituto de Letras da Universidade de Braslia: os quilombos. Mas no relatava os quilombos rurais, tradicionalmente conhecidos pelas prticas ancestrais, a cultura de subsistncia e o modo alternativo de viver uma economia em comunidade. Tratava do quilombo em um espao urbano, com maioria negra vivendo, tambm, a partir do esprito de comunidade. Esse territrio chamado favela, periferia, quebrada, gueto. Nesse nterim, eu escolhi meu quilombo, a Ceilndia.

Chamar a periferia de quilombo resgatar uma simbologia de resistncia e luta. Nesses espaos, alguns dispositivos so utilizados a fim de garantir a resistncia e sobrevivncia diante da condio de despejados. O que na periferia representa fortemente essa luta a cultura Hip Hop[38]. Para nossa pesquisa, focamos em um elemento: o rap. Ao longo da investigao, percebia que os cantores traziam analogias da Ceilndia enquanto um espao de resistncia, tendo como referncia o quilombo. Esse aquilombamento ocorre quando a periferia se identifica como um corpo negro escravizado em busca de libertao. A exemplo, vejamos a letra do grupo ceilandense Sobrevivente de Rua:

Pois somos um desde a Revolta dos Mals

A unio do povo em um povo s

Quando existir o que vai reduzir o opressor a p

Um salve a todos os levantes, insurgentes, populares

Ns somos um desde o Quilombo dos Palmares[39]

Esse material precioso foi utilizado como mtodo de educao lingustica em minha experincia acadmica. Escolhi uma escola[40] de Ensino Fundamental II para pensar o contexto urbano de Ceilndia em uma perspectiva quilombista[41], uma vez que essa tomada de conscincia contribui para apropriao do termo dentro de uma nova concepo, uma transformao na lngua. Isso porque, com a transformao lingustica, h expressamente uma modificao nas prticas e cultura do povo. Levar materiais como letras de rap que valorizam a cultura, os saberes, a realidade e a particularidade lingustica de uma comunidade, ento, contribui para a conscientizao e emancipao de um povo.

Quando os saberes de um povo so negados, desmoralizados e inferiorizados, culturas so mortas. Em contraposio, quem est no lugar de dominao tem seus saberes supervalorizados, e quem quer que queira sobreviver diante do caos social deve seguir as regras de quem posto como senhor. Vov no estudou, como consequncia, muito pelejou. Mame no concluiu a educao bsica e teve srias consequncias no mercado de trabalho. Minha gerao (filha) precisou de cada passo das ancestrais para segurar um diploma de educao superior. Muito foi superado, mas impossvel seguir essa trajetria sozinha.

A noo de comunidade dentro das favelas faz com que ns, os moradores, a partir do que temos, contribuamos uns com os outros. Seja o po, uma roupa em desuso, um dinheirinho para a passagem, um conhecimento e ombro amigo, essa dana coletiva fundamental para a existncia de nossos territrios marginalizados. O que eu tinha em mos era o conhecimento formal, uma veia artstica latejante e a necessidade de distribuir a conscincia pelas esquinas de meu quilombo. Felizmente, na Ceilndia, a cultura pulsante. Espaos como o Jovem de Expresso, a Casa Akotirene e o Sarau VA so ambientes que disponibilizam atividades culturais para nossa comunidade. Em todos esses locais, h o momento do palco aberto, ocasio em que o microfone e o palco esto disponveis para que pessoas compartilhem sua arte, seja ela a poesia, a msica, a dana, ou mesmo uma fala de conscincia.

Foi no palco aberto que permiti que minha arte fosse publicada. At ento, no me entendia como artista, mas era bom ver a reao das pessoas ao ouvirem minha palavra que, a princpio, muito tmida, queria dizer algo. Muitos artistas relatam que a oportunidade de compartilhar sua arte cura. Comigo no foi diferente. Mas quanto mais eu pegava no microfone, mais sentia o peso da responsabilidade em minha fala. Como costumamos dizer, o microfone como uma arma. Com essa conscincia, procurava e ainda procuro elaborar poesias e performances que estejam de acordo com a justia social, que denunciem as mazelas cometidas, sobretudo, contra a populao negra e que elevem nosso povo no sentido de contribuir com nossa autoestima.

Dessa forma, a poesia uma arma sutil de combate, um livro, conscincia. no microfone que quebro o silncio de geraes. Digo o que as minhas de antes no puderam dizer e desafio o opressor a refletir sobre seu lugar. O silncio adoecedor. Ele imposto em qualquer relao hierarquizada, seja chefe e empregado, professor e aluno, pobre e rico, branco e preto, homem e mulher. Quem quebra o silncio cura a si e aos ouvintes que se identificam com o contedo da fala. Quanto mais representativas forem a forma e contedo da fala, mais poltica e comunitria se torna a ao do verso.

A linguagem perifrica, o contedo desalienante. Portanto, busco relatar um mundo que no corresponda aos padres capitalistas, patriarcais e cristos, para quebrar com a hegemonia colonial europeia. preciso contar a histria por outra perspectiva. Chimamanda Ngozi Adichie j nos chama a ateno do perigo da histria nica. Como ela afirma, mostre um povo como uma coisa, uma coisa s, sem parar, e isso que esse povo se torna (ADICHIE, 2009, p. 12).

A histria do Brasil contada de forma que o povo pindormico[42] e o povo africano so carregados de preconceitos. Para Adichie (2009), os esteretipos so problemticos por serem concepes incompletas que tomam nossa dignidade, nossa humanidade. Os rtulos que carregamos so de selvagens, inferiores, desumanizados, bestiais, ignorantes, coitados, tutelados, sditos. Quanto a isso, j nos chama a ateno o mestre quilombola Antnio Bispo dos Santos:

No plano individual, as pessoas afro-pindormicas foram e continuam sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas, intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como feias, sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem costumes e culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva se constitui em dilogo com as identidades individuais e respectivamente pelos seus valores, no preciso muita genialidade para compreender como as identidades coletivas desses povos foram historicamente atacadas (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 37).

O argumento do colonizador, ao atacar a cultura de povos afro-pindormicos, o de que ramos (e ainda somos) um povo sem histria, sem civilizao. preciso questionar quo equivocado o conceito de civilizao pode ser. Ser mesmo que uma relao de explorao com a terra e seus recursos naturais, assim como uma relao violenta com povos e animais que habitam a terra pode ser constituda como civilizao? O desequilbrio na produo e no consumo configura civilizao? Escrever configura civilizao?

Ao que diz respeito histria, s tem direito sua quem tem o domnio da escrita. No senso comum, a histria do Brasil comea em 1500, quando o colonizador comea a escrev-la com uma tica vampiresca e distorcida. A escrita ser o saber que legitima a concepo de desenvolvimento. Por traz desse quiproqu est uma estratgia perfeita que autoriza a dominao de uns sobre outros. No basta que os saberes legtimos sejam brancos, masculinos e cristos (ou seja, eurocentrados), tambm devem ser escritos? O grafocentrismo nada mais do que uma poltica genocida de lnguas e culturas de povos que no correspondem ao povo europeu.

A linguagem que utilizamos na periferia diversa. Gosto de como a intelectual Llia Gonzalez a categorizava, colocando-a como o pretogus, que esse portugus da gente, sincretizado, modificado, a marca de africanizao do portugus falado no Brasil (GONZALEZ, 1988, p. 70). O signo latino, mas a essncia carregada de pindoramas e africanidades. Essa linguagem o nosso pretogus e nos representa. Ela est viva. Concluo este tpico com a sabedoria de Bispo, quando diz:

 

Muitos so os autores que escreveram sobre a trajetria dos povos afro-pindormicos e sobre a sua importncia para a histria do Brasil. Portanto, o que vamos falar pode ser encontrado em vrias bibliografias. Poderamos aqui fazer referncias a vrias delas, mas no ser necessrio, porque a trajetria desses povos transpe qualquer texto cientfico ou literrio. Ela visvel e palpvel materialmente e pode ser sentida imaterialmente, tanto quando olhamos para o passado e fazemos referncia aos nossos ancestrais, como hoje quando visitamos as comunidades da atualidade e dialogamos com as suas organizaes e manifestaes culturais (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 38).

 

A arte perifrica engajada

Misso cumprida ento palmas pra nis mesmo
Periferia a palmas pra nis mesmo
A todos os maloqueiros palmas pra nis mesmo
[43].

 

A cano acima do grupo de rap Viela 17. Trata-se de rap da Ceilndia, rap de quebrada, rap que salva vidas. O rap, o funk, o samba, so sons que ecoam em periferias como a Ceilndia; so educadores de um povo. Como diriam Cidinha e Doca, O povo tem a fora, precisa descobrir / Se eles no fazem nada, faremos tudo daqui[44]. Mas qual a importncia de considerar tal discurso dentro das periferias? possvel que essas narrativas contribuam na educao formal?

A arte da periferia engajada. A tomada de conscincia dos moradores vivida na prtica ao sentirmos, no cotidiano, a ausncia do Estado. A representatividade nos espaos de poder mnima, se pensarmos em termos estatsticos. Maioria negros, maioria mulheres, maioria pobres, e essa maioria continua a ocupar os espaos minorizados. No entanto, como j mencionado anteriormente, a periferia se mantm pela coletividade e esprito de luta. Como bem j declarava o professor Abdias do Nascimento:

A continuidade dessa conscincia de luta poltico-social se estende por todos os Estados onde existe significativa populao de origem africana. O modelo quilombista vem atuando como ideia-fora, energia que inspira modelos de organizao dinmica desde o sculo XV. Nessa dinmica quase sempre heroica, o quilombismo est em constante reatualizao, atendendo exigncias do tempo histrico e situaes do meio geogrfico (NASCIMENTO, 2019, p. 282).

Um exemplo muito evidente disso a escritora negra Carolina Maria de Jesus e suas denncias dentro de um minsculo quarto de despejo. Os quartos de despejo so mltiplos, as denncias mais ainda, plurais e singulares, pois, como diria Gog, periferia periferia em qualquer lugar[45]. Os males daqui so como os de l. Nas dores nos encontramos, traamos estratgias e sobrevivemos. Tambm nos encontramos nos amores de sermos verdadeiramente coletivos, sociveis.

Nas periferias do Distrito Federal, h diversas vozes, sobretudo de mulheres negras, que so muito inspiradoras. Essas vozes so estmulos para a luta de emancipao de um grupo to marginalizado. Apesar dos recortes de cor e gnero, possvel crer que, com o empoderamento da base, toda uma estrutura pode ser melhor equilibrada. Isso porque o modelo triangular hierrquico social pressiona os que esto no topo (homens brancos, hteros, catlicos, ricos) a ceder, voluntariamente ou no, espao s (aos) que esto chegando. Estamos chegando e, como diz a cano de BK, Rael, Emicida, Rincon Sapincia, Djonga e Mano Brown, o cu o limite:

Melhor irem se acostumando
Vo ter que se adaptar
Os pretos com o din gastando
Sem se preocupar
E pra contrariar seus planos
Nas grades no vamos ficar
Unidos, se fortificando
Ei, quem vem l[46]

Consideramos didtica essa arte que se manifesta como instrumento de luta e discurso ideolgico: a arte dos ocultos. Um bom exemplo de missionria nas periferias do Distrito Federal Meimei Bastos. Ela poeta, atriz e arte-educadora, idealizadora do Slam[47] Quebrada. O trabalho de Meimei se estende a todos os cantos da capital. Das periferias aos espaos de poder, tive a oportunidade de acompanhar esse encargo enquanto poeta em locais como o Imaginrio Cultural (Samambaia), o Complexo Cultural (Samambaia), o CCBB (Plano Piloto), a Universidade de Braslia (Plano Piloto) e o Jovem de Expresso (Ceilndia).

O Slam Quebrada me deu a oportunidade de competir no campeonato nacional (Slam BR) em dezembro de 2018. Essa foi uma porta aberta para que eu me lanasse enquanto poeta e performer. Na disputa nacional, percebo que a multiplicidade discursiva no Slam BR impressionante e o esprito de luta quase uma regra. A maioria dos participantes so negros e negras de periferias de 18 estados brasileiros. Vejo nesse evento uma forma de disseminar a literatura da quebrada que ecoa em vozes desocultadas.

Esse movimento poltico e autntico. A linguagem representativa e busca o reconhecimento, a alteridade. Em meu trabalho enquanto poeta e arte-educadora, procuro levar comigo mulheres como Meimei Bastos e Thabata Lorena, para citar alguns exemplos. Abaixo, segue um trecho do poema de Meimei Bastos (2017, p. 19) que utilizei no projeto Parada Sociocultural[48]:

aqui, no cumprimentar

ns olha nos i,

d bom dia pra tia,

pro menor na quina,

pra mina da padaria,

pro tio do verduro.

no tem bisu errado,

no tem de querer ser,

pois ns

j

Outro projeto o qual tive a oportunidade de participar foi o bipbRASLIA iNSPIRA pOESIA[49]. Foram selecionados poemas de artistas do/no Distrito Federal que falassem, em suas narrativas, sobre como viver nessa regio; como resultado, foi publicada uma antologia potica. Para alm da publicao, foram idealizados saraus para que artistas e seus poemas fossem apresentadas (os) s escolas pblicas nas regies administrativas Cruzeiro, Candangolndia e Ncleo Bandeirante. Paralelamente, trabalhei como poeta e mestre de cerimnias, o que me deu a oportunidade de uma interao mais ntima com as (os) alunas (os). Sempre que as (os) questionava se gostavam de poesia, elas (es) diziam que no. Essa resposta automtica o reflexo da ideologia que se tem de que poesia literatura de elite, difcil de ser compreendida, chata, entre outros esteretipos. Mas bastava que eu perguntasse se as (os) alunas (os) gostavam de rap e a grande maioria levantava as mos em alegria.

A palavra rap advm da sigla em ingls rhythm and poetry[50] (ritmo e poesia), ou seja, a poesia est nos emaranhados do rap. Recursos como mtrica, rima e linguagem figurada podem ser facilmente encontrados nas canes. A exemplo, a cantora e compositora Thabata Lorena:

Eu no sou a tal, nem sou aquela

Sou mais uma menina que sobe a favela

S pago um pau pra ela

Minha ama de leite

Favela[51]

Enquanto educadora, so essas as narrativas que considero primordiais no processo de ensino e aprendizagem nas periferias. Dentro da cultura das quebradas, a lngua carregada de particularidades e as expresses utilizadas pelos falantes so, cotidianamente, aceitas nos contextos de fala.

A forma altamente violenta e impositiva do colonizador, ao chegar nesse territrio nacional, desconsiderou todo o saber ancestral e cultural de povos pindormicos e africanos. Essas marcas se apresentam na contemporaneidade. Afro-pindormicos so sempre colocados margem e so inferiorizados dentro das relaes verticais na sociedade. Sobretudo, s mulheres negras, foram atribudas as funes maternas. Somos as mes de toda uma populao, cuidamos de nossos filhos e dos filhos alheios nas casas de luxo. Temos um papel primordial de base e, por sermos base, somos desqualificadas.

Eu, mulher negra e perifrica, me, procuro quebrar esse ciclo. De vov analfabeta, de me domstica: filha educadora. Eu educo a favela com poesia e denncia. De qualquer forma, reconheo que trabalhar com jovens de escola pblica de periferia desafiador e extremamente delicado. Reflito sobre os dados da Infopen[52] divulgados em 2014, que destacam que o perfil da populao carcerria constitudo por 31% de cativos entre 18 e 24 anos, sendo 67% de cor negra; e 53% tm o Ensino Fundamental incompleto. A maioria dos crimes cometidos por trfico (27%) e roubo (21%), sendo o tempo total das penas da populao prisional condenada entre 4 e 8 anos (26% dos casos). Por isso, em meu processo de concluso na graduao, a escolha por uma instituio de Ensino Fundamental na Ceilndia no foi ocasional.

A escola selecionada fez parte de meu histrico escolar. Enquanto ceilandense e negra, pude vivenciar prticas de excluso na instituio quando cursara o Ensino Fundamental II. Compreender a experincia vivida nessa pesquisa, no caso, dependeu da combinao com experincias passadas. Diante da profisso que tive possibilidades de exercer, posso perceber a responsabilidade social que carrego. Voltar Ceilndia, agora em condio de professora, retribuir todo o conhecimento adquirido em minha caminhada.

Observo o material didtico disponvel, que decepcionante. A gramtica tradicional ainda a mais utilizada na instituio. Essa gramtica de carter preconceituoso em relao s variantes que fogem do padro do portugus e tem a necessidade de estabelecer parmetros em busca de um uso idealizado da lngua, ocorrncia arcaica que se inicia desde os gregos antigos (MARTELOTTA, 2016, p. 45).

Esse atributo se reflete at hoje em nossa lngua. Sempre que se aponta um portugus errado por estar fora dos padres de um portugus idealizado e elitizado, chamado portugus culto. Se observarmos mais criticamente, averiguvel que a questo da erudio da lngua est ligada s relaes de poder. Efetivamente as classes altas so as que tm mais contato com estruturas corretas (MARTELOTTA, 2016, p. 47) e, portanto, so tambm as classes com mais oportunidades e privilgios.

Para compreender o funcionamento da lngua, preciso assimil-la ao contexto com o todo (MARTELOTTA, 2016, p. 63). Trata-se de uma anlise mais aprofundada que a gramtica faz; trata-se da prxis e, por isso, considero a linguagem perifrica essencial e significativa nessa pesquisa.

E onde esto, nas escolas, materiais didticos que se relacionam com a realidade dos alunos? Onde esto os materiais que acompanham o movimento, a mudana, a dinmica na linguagem deles? Onde esto, ao menos, as prticas que contemplam o universo dos jovens perifricos?

Professor, me refiro a voc: se parar para repensar na sala de aula, perceber o quo desprendido est o material disponibilizado para os aprendizes. E no preciso refletir muito profundamente para compreender que suas prticas tambm esto. vulgar e desumano culpar apenas a instituio de ensino, assim como o material didtico. O juzo comea olhando para si mesmo, no quo compromissado socialmente est ao entrar em uma sala de aula para comear esse culto, que o ensinamento.

Consideraes finais

a real que eles tm medo

do formigueiro se atiar,

da gente se armar de conhecimento.

eles to ligado que quando ns

respirar ns,

eles morrem sem ar

(BASTOS, 2017, p. 47).

 

A voz da periferia som que ecoa e cura. Ns falamos, e a tradio da oralidade vem dos de antes, de ontem. Dandara falou, Carolina Maria de Jesus falou, minha av falou. Hoje eu falo. As prximas falaro. sentando no cho e ouvindo que aprendemos. A minha arte a palavra. Atravs dela me curo, curo os de antes, curo quem vir. E a partir dessa cura, procuro ser uma referncia de ancestral curada.

O corpo que se move na favela um corpo poltico. Mover-se um ato poltico em si. Se pensarmos sobre as estratgias genocidas, quando nos movimentamos, estamos agindo contra a colonialidade exterminadora. Cada corpo um arquivo, pois contm memria, contm histria, contm narrativas.

Como a palavra por si s no d conta, a performance vai ecoar na vibrao de cordas vocais. no grito, no rito, no canto, nas louvaes. A performance mostrar o potencial de toda essa oralidade que carregamos em nossa memria, em nosso DNA, em nossos costumes que o colonizador foi incapaz de exterminar. Se estamos vivos, algo deve ser aprendido conosco. E o lixo fala, e numa boa, fala muito bem[53]. Todo mundo se entende, e com isso estamos sobrevivendo, vivendo, mantendo nossa histria.

Como diriam Bernadino-Costa e Grosfoguel (2016), mesmo em condio de subalternidade, no somos sujeitos passivos, uma vez que podemos rejeitar os saberes do opressor, assim como resgatar e forjar nossos prprios saberes. Que busquemos, ns, os favelados, enaltecer nossos conhecimentos, produzir e compartilhar saberes, elevar nossa autoestima.

Vov minha escola. Mame minha escola. Homens e mulheres educadores que passaram em minha trajetria so minha escola. A terra minha escola. A msica minha escola. A periferia minha escola. Nossa fala ancestral, tem poder, objetivos e coletiva, orgnica[54]. Nosso saber vivo. Sigamos juntos. Subamos juntos. Tamo junto, favela!

Referncias

 

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TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformaes do rap no Brasil. Enigma: So Paulo, 2015.

 

 

[Recebido: 23 jul 2020 – Aceito: 24 set 2020]



[34] Doutoranda no Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Mestre em Lingustica pelo Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Graduada em Letras Portugus do Brasil como Segunda Lngua pela Universidade de Braslia. Professora na rede de ensino privado do Distrito Federal. Poeta, performer e atriz.

[35] Lngua de origem banto falada em Angola pelos ambundos.

[36] Campanha de Erradicao de Invases – C.E.I. (1970).

[37] Fala do documentrio Rap, o canto da Ceilndia de Adirley Queirs, 2005.

[38] Os principais elementos que compem o Hip Hop so o DJ (msico), o break (dana), o grafite (arte visual), o rap (poesia), o MC (mestre de cerimnias) e a conscincia.

[39] Todos somos um, faixa 5 do CD Aqui vamos ns (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.

[40] Por questes ticas, no ser citado neste trabalho o nome da instituio de ensino, assim como a identidade dos alunos, por motivos de resguardo. Cito que, para a realizao deste trabalho, foi concedida a autorizao por parte do diretor e vice-diretor da escola.

[41] O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difcil acesso, o que facilitava sua defesa e organizao econmico-social prpria, como tambm assumiram modelos de organizao permitidos ou tolerados, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (catlicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxlio mtuo [...] rede de associaes, irmandades, confrarias, clubes, grmios, terreiros, centros, tendas, afoxs, escolas de samba, gafieiras foram e so os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei, erguem-se os quilombos revelados que conhecemos. [...]. A este complexo de significaes, a esta prxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo (NASCIMENTO, 2019, p. 281-282).

[42] Pindorama (Terra das Palmeiras) uma expresso tupi-guarani para designar todas as regies e territrios da hoje chamada Amrica do Sul (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 20).

[43] Msica S curto o que bom, produzida no ano de 2004 em parceria com Look e VadiosLocus.

[44] Msica Rap da felicidade (Eu s quero ser feliz), produzida em 1995.

[45] Msica Braslia Periferia produzida em 1994 do CD Dia a Dia da Periferia.

[46] Single O cu o limite, lanada em 2018 no canal YouTube da Devasto Prod.

[47] Campeonato de poesia falada.

[48] Projeto financiado pelo Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal que visibilizava levar a arte a paradas de nibus de periferias como o Recanto das Emas e o Riacho Fundo II. Poesia, msica, grafite e dana foram algumas das manifestaes que se aproximaram do perifrico que enfrenta o transporte coletivo precrio do Distrito Federal diariamente.

[49] Projeto apresentado ao Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal em 2017 e contemplado no edital macrorregional.

[50] Esse movimento surge no distrito do Bronx (Nova Iorque). uma iniciativa de negros, descendentes de africanos escravizados que foram trazidos s Amricas, e de latinos que migraram para os Estados Unidos no ps-Segunda Guerra em busca de melhores condies de vida (TEPERMAN, 2015).

[51] Msica Favela do CD Novidades Ancestrais.

[52] O Infopen responsvel pelo levantamento de informaes estatsticas do sistema penitencirio brasileiro.

[53] Referncia intelectual Llia Gonzalez ao criticar a lgica de dominao em que negros e negras so considerados (as) domesticveis, impossveis de falarem por si, por carregarem atributos de infantilidade, isso tudo por estarmos no lixo da sociedade brasileira. Assim, a autora conclui que preciso assumir a prpria fala e afirma: o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).

[54] Esses saberes esto muito relacionados aos saberes ancestrais que dizem respeito a ser, em contraposio aos saberes sintticos, que envolvem ter. Como o prprio mestre quilombola Bispo dos Santos afirma: Eu no preciso de Karl Marx e de outros acadmicos: preciso de minha gerao av, aquela que veio antes de mim e que me move. Essa lgica organizada em comeo, meio e comeo. Minha gerao av comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo, de novo (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).