Tamo junto, Favela! A arte
perifrica como um mtodo educacional
Were in together,
Favela! Peripheral art as an educational method
Ana Carolina de Souza Silva
https://orcid.org/0000-0001-5099-1058
Resumo: Neste trabalho,
apresentamos alguns resultados de uma pesquisa realizada no[34] Centro de Estudos
Lexicais e Terminolgicos (Centro LexTerm) da
Universidade de Braslia. Tambm divulgamos alguns relatos de experimentaes
vivenciadas em instituies educacionais e em casas de cultura do Distrito
Federal. A primeira prtica trata de uma experincia educacional e de carter
mais cientfico-especulativo; a segunda envolve, fundamentalmente, a poesia e a
performance. Nosso objetivo , a partir da esttica artstica das periferias,
verificar estratgias eficazes que buscam resgatar uma populao marginalizada
e em condio de vulnerabilidade, alm de tornar acessveis contedos fundamentais em busca de
conscientizao e justia social. Dessa forma, constatamos que, mesmo em
condio de subalternidade, o povo perifrico no passivo, uma vez que
rejeita os saberes do opressor, assim como resgata e forja saberes prprios. Pelo
exposto, podemos observar a importncia de trabalhar a arte com narrativas e
linguagem que contemplem a realidade de falas perifricas.
Palavras-chave: Periferia; Linguagem;
Arte; Poltica; Educao.
Abstract: In this
work, we present some results of a research carried
out at the Center for
Lexical and Terminological Studies (LexTerm Center) of the University
of Braslia. We also publish some reports of experiments
experienced in educational institutions and in cultural houses in the Federal District. The first practice deals with an educational
experience and has a more scientific-speculative
character; the second fundamentally involves poetry and performance. Our objective is, based
on the artistic
aesthetics of the peripheries, to verify effective
strategies that seek to rescue
a marginalized and vulnerable population, in addition to making
fundamental content accessible
in search of awareness and social justice. Thus, we find
that, even in a condition of subordination,
the peripheral people are not passive, since they reject
the knowledge of the oppressor,
as well as rescue and forge their
own knowledge. From the above,
we can observe the importance of working art
with narratives and language that
contemplate the reality of peripheral speech.
Keywords: Periphery; Language; Art; Politics; Education.
Consideraes iniciais
Minha gerao av
comeo, minha gerao filha meio e minha gerao neta comeo de novo (BISPO DOS SANTOS,
2019, p. 27).
Dona Julita, minha v, nascida no serto da Ema,
no municpio de Pianc (PB), uma mulher sisuda de 93 anos. Ela casou-se aos 18 anos para poder sair de
casa. Minha bisa, Aurora, foi uma mulher abandonada pelo biso em 1983. Essas
mulheres muito tm a contar, mas trarei foco especial a Dona Julita, pois
minha maior inspirao nessa trajetria educacional, acadmica, poltica, artstica,
ativista e existencial.
Vov, a mando de bisa Aurora, teve de abandonar
os estudos logo cedo para poder cuidar dos irmos mais novos. Mas no s. As
mozinhas pequenas que sonhavam decodificar as letrinhas tiveram que catar bolas
de algodo para garantir a subsistncia da famlia. Hoje, vov conta essa
histria com muito rancor e lgrimas nos olhos. Era 1967 quando ela e o v Joo chegam ao Distrito Federal – depois
de tentar a vida em So Paulo − e, achando espao para existir na
capital, se juntam a tantas e tantos outras (os) Severinas
(os) nas vilas operacionais em busca do sustento. Foi sustentao capitalizada.
Vov limpou casas e vov ergueu muros.
A maioria dos
trabalhadores optou por continuar na regio, mesmo que o plano fosse de que
todos retornassem aos seus estados aps a construo de Braslia. Nas vilas
operacionais, um novo termo foi criado para designar esses trabalhadores:
candangos. Segundo Tavares (2009), essa terminologia de natureza pejorativa. O
termo candango africano (quimbundo[35]);
ele foi usado pelos portugueses para se referir aos negros no perodo colonial.
No contexto da construo de Braslia, uma das hipteses levantadas por
Tavares, a partir de sua investigao, a de que o termo fora inspirado no
nome de um cachorro que habitava o Palcio do Catetinho. Tendo Kubitschek
sabido disso, chamava os operrios – em especial os nordestinos – de
tal forma. Outra hiptese a de que o termo operrio era designado aos
trabalhadores de maior prestgio (como arquitetos e engenheiros) e candango
mo de obra explorada nas jornadas de trabalho (TAVARES, 2009).
Depois da construo, nordestinas (os), mineiras
(os) e goianas (os) foram erradicados do lar a partir da campanha da senhora
Vera Prates[36]
e realocados a cerca de 30km de distncia do centro. Como diria o rapper X, a Ceilndia resultado de
sangue, suor e lgrimas[37];
essa fala confirma a dificuldade dos moradores em se estabelecerem na Regio Administrativa
– doravante RA. Isso ocorre no somente por serem despejados, contra a
prpria vontade, de seus lares que ficavam prximos a Braslia, mas tambm por
terem diversas limitaes que impediam sua dignidade enquanto pessoas. A luta
dos candangos que construram a capital foi em prol da garantia de um pedao
de cho, como afirma o cantor X.
Pau que nasce torno, nunca se endireita, o
que dizem. Com o destino manco, vov seguia sua travessia s cegas. Como
possvel uma pessoa analfabeta sobreviver diante de uma cidade urbanizada,
diante de uma capital nacional, diante de uma complexa burrocracia? Sem ao menos assinar
o prprio nome?
Dos
destinos que a vida tem, eu, calanga, nasci no
cerrado. Vejo a histria de Dona Julita como o ponto inicial para mostrar que
pau que nasce torno pode ser modificado e que cada passo dessa peregrina foi
essencial para construir uma narrativa diferenciada. No se trata da regra, mas
da exceo. No entanto, foram necessrias apenas duas geraes frente das de
Dona Julita para que o pau fosse forjado em caneta. E caneta ativa.
Comunidade e polticas autnomas
Vou
aprender a ler pra ensinar meus camaradas
(MENDES, 2005).
Dona Julita e Seu Joo chegaram ao Distrito
Federal com seus cinco filhos ainda pequenos. Eles estavam em um territrio
desconhecido e diante de uma complexa configurao de culturas. O natural
que, a tudo que nos parea estranho, haja repulso. Mas, mesmo diante da
misria comum a todos, estava tambm um forte instinto de sobrevivncia entre
esses seres gregrios.
Vivemos
resqucios da colonizao. Uma das estratgias de dominao est em controlar e
distribuir de forma desigual os direitos bsicos. gua, alimentao, sade,
lazer, transporte e educao so apenas alguns dos direitos garantidos a qualquer
cidado em territrio nacional, mas essa garantia torna-se ironia quando
observamos a realidade. Como bem afirma a poeta Meimei
Bastos (2017),
mas, mais ensino mdio pra qu?
se no fundamental os menor j to se
perdendo
na falta do professor.
o corre na esquina
o plano de extermnio,
manuteno da opresso
E como as comunidades sobrevivem diante da
negligncia do Estado? Podemos pensar na Ceilndia e na campanha de erradicao
que ocorreu em 1970. Ao chegarem ao novo territrio, no havia sequer gua
encanada disponvel para a comunidade, de forma que as famlias recorriam a
poos e nascentes, tendo de caminhar alguns quilmetros carregando baldes de
gua na cabea. A Caixa dgua, monumento da cidade, um marco histrico para
a RA, pois foi sinalizada como um direito cidadania.
A nossa sociedade no igualitria. Os direitos
so escolhidos a alguns e pincelados nos jogos de privilgios. Como afirma a
intelectual Sueli Carneiro (2005), essa estrutura social hierarquizada baseada
em parmetros raciais e de classe. Nessa conjuntura, negar a educao aos
marginalizados o trato de manuteno das desigualdades. A educao a chave
de acesso a cidadania, a igualdade, ao mercado de trabalho. Esse plano de
excluses um plano genocida.
Vov sobreviveu,
mame tambm, assim como tantas e tantos outros que no tiveram o direito de
estudar. Mame saiu precocemente da escola para poder ajudar financeiramente em
casa. Essa histria plural. A maioria na Ceilndia (34,1%) tem o primeiro
grau incompleto. Estou na exceo. Se o desejo foi de mudar a histria desse
ciclo peregrino, ele no foi consciente, mas, por ironia ou no, formei-me
professora. Pensava eu, desde o trabalho de concluso de curso da graduao,
desde a produo de minhas poesias para publicao, em cortar o problema pela
raiz. E, nessa constituio, compreendo-me comunicadora. Arte-educadora. Gri.
na concluso
de curso que decido trabalhar com um grupo pouco explorado no Instituto de
Letras da Universidade de Braslia: os quilombos. Mas no relatava os quilombos
rurais, tradicionalmente conhecidos pelas prticas ancestrais, a cultura de
subsistncia e o modo alternativo de viver uma economia em comunidade. Tratava
do quilombo em um espao urbano, com maioria negra vivendo, tambm, a partir do
esprito de comunidade. Esse territrio chamado favela, periferia, quebrada,
gueto. Nesse nterim, eu escolhi meu quilombo, a Ceilndia.
Chamar a
periferia de quilombo resgatar uma simbologia de resistncia e luta. Nesses espaos,
alguns dispositivos so utilizados a fim de garantir a resistncia e
sobrevivncia diante da condio de despejados. O que na periferia representa fortemente
essa luta a cultura Hip Hop[38].
Para nossa pesquisa, focamos em um elemento: o rap. Ao longo da investigao,
percebia que os cantores traziam analogias da Ceilndia enquanto um espao de
resistncia, tendo como referncia o quilombo. Esse aquilombamento
ocorre quando a periferia se identifica como um corpo negro escravizado em
busca de libertao. A exemplo, vejamos a letra do grupo ceilandense
Sobrevivente de Rua:
Pois
somos um desde a Revolta dos Mals
A unio
do povo em um povo s
Quando
existir o que vai reduzir o opressor a p
Um salve
a todos os levantes, insurgentes, populares
Ns
somos um desde o Quilombo dos Palmares[39]
Esse material
precioso foi utilizado como mtodo de educao lingustica em minha experincia
acadmica. Escolhi uma escola[40]
de Ensino Fundamental II para pensar o contexto urbano de Ceilndia em uma
perspectiva quilombista[41],
uma vez que essa tomada de conscincia contribui para apropriao do termo dentro
de uma nova concepo, uma transformao na lngua. Isso porque, com a
transformao lingustica, h expressamente uma modificao nas prticas e
cultura do povo. Levar materiais como letras de rap que valorizam a
cultura, os saberes, a realidade e a particularidade lingustica de uma
comunidade, ento, contribui para a conscientizao e emancipao de um povo.
Quando os
saberes de um povo so negados, desmoralizados e inferiorizados, culturas so
mortas. Em contraposio, quem est no lugar de dominao tem seus saberes
supervalorizados, e quem quer que queira sobreviver diante do caos social deve
seguir as regras de quem posto como senhor. Vov no estudou, como consequncia,
muito pelejou. Mame no concluiu a educao bsica e teve srias consequncias
no mercado de trabalho. Minha gerao (filha) precisou de cada passo das
ancestrais para segurar um diploma de educao superior. Muito foi superado,
mas impossvel seguir essa trajetria sozinha.
A noo de
comunidade dentro das favelas faz com que ns, os moradores, a partir do que temos,
contribuamos uns com os outros. Seja o po, uma roupa em desuso, um dinheirinho
para a passagem, um conhecimento e ombro amigo, essa dana coletiva
fundamental para a existncia de nossos territrios marginalizados. O que eu tinha
em mos era o conhecimento formal, uma veia artstica latejante e a necessidade
de distribuir a conscincia pelas esquinas de meu quilombo. Felizmente, na
Ceilndia, a cultura pulsante. Espaos como o Jovem de Expresso, a Casa Akotirene e o Sarau VA so ambientes que disponibilizam
atividades culturais para nossa comunidade. Em todos esses locais, h o momento
do palco aberto, ocasio em que o microfone e o palco esto disponveis para
que pessoas compartilhem sua arte, seja ela a poesia, a msica, a dana, ou
mesmo uma fala de conscincia.
Foi no palco
aberto que permiti que minha arte fosse publicada. At ento, no me entendia
como artista, mas era bom ver a reao das pessoas ao ouvirem minha palavra
que, a princpio, muito tmida, queria dizer algo. Muitos artistas relatam que
a oportunidade de compartilhar sua arte cura. Comigo no foi diferente. Mas
quanto mais eu pegava no microfone, mais sentia o peso da responsabilidade em
minha fala. Como costumamos dizer, o microfone como uma arma. Com essa
conscincia, procurava e ainda procuro elaborar poesias e performances que
estejam de acordo com a justia social, que denunciem as mazelas cometidas,
sobretudo, contra a populao negra e que elevem nosso povo no sentido de
contribuir com nossa autoestima.
Dessa forma, a
poesia uma arma sutil de combate, um livro, conscincia. no microfone
que quebro o silncio de geraes. Digo o que as minhas de antes no puderam
dizer e desafio o opressor a refletir sobre seu lugar. O silncio adoecedor. Ele imposto em qualquer relao hierarquizada,
seja chefe e empregado, professor e aluno, pobre e rico, branco e preto, homem
e mulher. Quem
quebra o silncio cura a si e aos ouvintes que se identificam com o contedo da
fala. Quanto mais representativas forem a forma e contedo da fala, mais
poltica e comunitria se torna a ao do verso.
A linguagem perifrica, o contedo desalienante. Portanto, busco relatar um mundo que no
corresponda aos padres capitalistas, patriarcais e cristos, para quebrar com
a hegemonia colonial europeia. preciso contar a histria por outra
perspectiva. Chimamanda Ngozi
Adichie j nos chama a ateno do perigo da histria
nica. Como ela afirma, mostre um povo como uma coisa, uma coisa s, sem
parar, e isso que esse povo se torna (ADICHIE, 2009, p. 12).
A histria
do Brasil contada de forma que o povo pindormico[42] e o povo africano so
carregados de preconceitos. Para Adichie (2009), os
esteretipos so problemticos por serem concepes incompletas que tomam nossa
dignidade, nossa humanidade. Os rtulos que carregamos so de selvagens,
inferiores, desumanizados, bestiais, ignorantes, coitados, tutelados, sditos. Quanto
a isso, j nos chama a ateno o mestre quilombola Antnio Bispo dos Santos:
No plano individual, as pessoas afro-pindormicas
foram e continuam sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem
almas, intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como
feias, sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem
costumes e culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva se
constitui em dilogo com as identidades individuais e respectivamente pelos
seus valores, no preciso muita genialidade para compreender como as
identidades coletivas desses povos foram historicamente atacadas (BISPO DOS
SANTOS, 2015, p. 37).
O argumento do colonizador, ao atacar a cultura
de povos afro-pindormicos, o de que ramos (e
ainda somos) um povo sem histria, sem civilizao. preciso questionar quo
equivocado o conceito de civilizao pode ser. Ser mesmo que uma relao de
explorao com a terra e seus recursos naturais, assim como uma relao
violenta com povos e animais que habitam a terra pode ser constituda como
civilizao? O desequilbrio na produo e no consumo configura civilizao? Escrever
configura civilizao?
Ao que diz respeito histria, s tem direito
sua quem tem o domnio da escrita. No senso comum, a histria do Brasil comea
em 1500, quando o colonizador comea a escrev-la com uma tica vampiresca e
distorcida. A escrita ser o saber que legitima a concepo de desenvolvimento.
Por traz desse quiproqu est uma estratgia perfeita que autoriza a dominao
de uns sobre outros. No basta que os saberes legtimos sejam brancos,
masculinos e cristos (ou seja, eurocentrados),
tambm devem ser escritos? O grafocentrismo nada mais
do que uma poltica genocida de lnguas e culturas de povos que no
correspondem ao povo europeu.
A
linguagem que utilizamos na periferia diversa. Gosto de como a intelectual Llia
Gonzalez a categorizava, colocando-a como o pretogus,
que esse portugus da gente, sincretizado, modificado, a marca de africanizao do
portugus falado no Brasil (GONZALEZ, 1988, p. 70). O signo latino, mas a
essncia carregada de pindoramas e africanidades.
Essa linguagem o nosso pretogus e nos representa.
Ela est viva. Concluo este tpico com a sabedoria de Bispo, quando diz:
Muitos so os autores que escreveram sobre a trajetria dos povos afro-pindormicos e sobre a sua importncia para a histria do
Brasil. Portanto, o que vamos falar pode ser encontrado em vrias
bibliografias. Poderamos aqui fazer referncias a vrias delas, mas no ser
necessrio, porque a trajetria desses povos transpe qualquer texto cientfico
ou literrio. Ela visvel e palpvel materialmente e pode ser sentida
imaterialmente, tanto quando olhamos para o passado e fazemos referncia aos
nossos ancestrais, como hoje quando visitamos as comunidades da atualidade e
dialogamos com as suas organizaes e manifestaes culturais (BISPO DOS
SANTOS, 2015, p. 38).
A arte perifrica engajada
Misso cumprida ento
palmas pra nis mesmo
Periferia a palmas pra nis mesmo
A todos os maloqueiros palmas pra nis mesmo[43].
A cano acima
do grupo de rap Viela 17. Trata-se de rap da Ceilndia, rap
de quebrada, rap que salva vidas. O rap, o funk, o samba,
so sons que ecoam em periferias como a Ceilndia; so educadores de um povo.
Como diriam Cidinha e Doca, O povo tem a fora, precisa descobrir / Se eles
no fazem nada, faremos tudo daqui[44].
Mas qual a importncia de considerar tal discurso dentro das periferias?
possvel que essas narrativas contribuam na educao formal?
A arte da
periferia engajada. A tomada de conscincia dos moradores vivida na prtica
ao sentirmos, no cotidiano, a ausncia do Estado. A representatividade nos
espaos de poder mnima, se pensarmos em termos estatsticos. Maioria negros,
maioria mulheres, maioria pobres, e essa maioria continua a ocupar os espaos minorizados. No entanto, como j mencionado anteriormente,
a periferia se mantm pela coletividade e esprito de luta. Como bem j declarava
o professor Abdias do Nascimento:
A
continuidade dessa conscincia de luta poltico-social se estende por todos os
Estados onde existe significativa populao de origem africana. O modelo quilombista vem atuando como ideia-fora, energia que
inspira modelos de organizao dinmica desde o sculo XV. Nessa dinmica quase
sempre heroica, o quilombismo est em constante reatualizao, atendendo exigncias do tempo histrico e
situaes do meio geogrfico (NASCIMENTO, 2019, p. 282).
Um exemplo
muito evidente disso a escritora negra Carolina Maria de Jesus e suas
denncias dentro de um minsculo quarto de despejo. Os quartos de despejo so
mltiplos, as denncias mais ainda, plurais e singulares, pois, como diria Gog, periferia periferia em qualquer lugar[45].
Os males daqui so como os de l. Nas dores nos encontramos, traamos
estratgias e sobrevivemos. Tambm nos encontramos nos amores de sermos
verdadeiramente coletivos, sociveis.
Nas periferias
do Distrito Federal, h diversas vozes, sobretudo de mulheres negras, que so
muito inspiradoras. Essas vozes so estmulos para a luta de emancipao de um
grupo to marginalizado. Apesar dos recortes de cor e gnero, possvel crer
que, com o empoderamento da base, toda uma estrutura
pode ser melhor equilibrada. Isso porque o modelo triangular hierrquico social
pressiona os que esto no topo (homens brancos, hteros,
catlicos, ricos) a ceder, voluntariamente ou no, espao s (aos) que esto
chegando. Estamos chegando e, como diz a cano de BK, Rael,
Emicida, Rincon Sapincia, Djonga e Mano Brown, o cu o limite:
Melhor irem se acostumando
Vo ter que se adaptar
Os pretos com o din gastando
Sem se preocupar
E pra contrariar seus planos
Nas grades no vamos ficar
Unidos, se fortificando
Ei, quem vem l[46]
Consideramos
didtica essa arte que se manifesta como instrumento de luta e discurso
ideolgico: a arte dos ocultos. Um bom exemplo de missionria nas
periferias do Distrito Federal Meimei Bastos. Ela
poeta, atriz e arte-educadora, idealizadora do Slam[47]
Quebrada. O trabalho de Meimei se estende a todos os
cantos da capital. Das periferias aos espaos de poder, tive a oportunidade de
acompanhar esse encargo enquanto poeta em locais como o Imaginrio Cultural
(Samambaia), o Complexo Cultural (Samambaia), o CCBB (Plano Piloto), a Universidade
de Braslia (Plano Piloto) e o Jovem de Expresso (Ceilndia).
O Slam Quebrada me deu a oportunidade de competir no
campeonato nacional (Slam BR) em dezembro de
2018. Essa foi uma porta aberta para que eu me lanasse enquanto poeta e
performer. Na disputa nacional, percebo que a multiplicidade discursiva no Slam BR impressionante e o esprito de luta
quase uma regra. A maioria dos participantes so negros e negras de periferias de
18 estados brasileiros. Vejo nesse evento uma forma de disseminar a literatura
da quebrada que ecoa em vozes desocultadas.
Esse movimento
poltico e autntico. A linguagem representativa e busca o reconhecimento,
a alteridade. Em meu trabalho enquanto poeta e arte-educadora, procuro levar
comigo mulheres como Meimei Bastos e Thabata Lorena, para citar alguns exemplos. Abaixo, segue
um trecho do poema de Meimei Bastos (2017, p. 19) que
utilizei no projeto Parada Sociocultural[48]:
aqui, no cumprimentar
ns olha nos i,
d bom dia pra tia,
pro menor na quina,
pra mina da padaria,
pro tio do verduro.
no tem bisu
errado,
no tem de querer ser,
pois ns
j
Outro projeto o
qual tive a oportunidade de participar foi o bip – bRASLIA iNSPIRA pOESIA[49].
Foram selecionados poemas de artistas do/no Distrito Federal que falassem, em
suas narrativas, sobre como viver nessa regio; como resultado, foi publicada
uma antologia potica. Para alm da publicao, foram idealizados saraus para que
artistas e seus poemas fossem apresentadas (os) s escolas pblicas nas regies
administrativas Cruzeiro, Candangolndia e Ncleo
Bandeirante. Paralelamente, trabalhei como poeta e mestre de cerimnias, o que
me deu a oportunidade de uma interao mais ntima com as (os) alunas (os).
Sempre que as (os) questionava se gostavam de poesia, elas (es) diziam que no.
Essa resposta automtica o reflexo da ideologia que se tem de que poesia
literatura de elite, difcil de ser compreendida, chata, entre outros
esteretipos. Mas bastava que eu perguntasse se as (os) alunas (os) gostavam de
rap e a grande maioria levantava as mos em alegria.
A palavra rap advm da sigla em ingls rhythm and poetry[50] (ritmo e poesia), ou seja, a poesia est
nos emaranhados do rap. Recursos como mtrica, rima e linguagem figurada
podem ser facilmente encontrados nas canes. A exemplo, a cantora e
compositora Thabata Lorena:
Eu no sou a tal, nem sou aquela
Sou mais uma menina que sobe a favela
S pago um pau pra ela
Minha ama de leite
Favela[51]
Enquanto
educadora, so essas as narrativas que considero primordiais no processo de
ensino e aprendizagem nas periferias. Dentro da cultura das quebradas, a lngua
carregada de particularidades e as expresses utilizadas pelos falantes so,
cotidianamente, aceitas nos contextos de fala.
A forma
altamente violenta e impositiva do colonizador, ao chegar nesse territrio
nacional, desconsiderou todo o saber ancestral e cultural de povos pindormicos e africanos. Essas marcas se apresentam na
contemporaneidade. Afro-pindormicos so sempre
colocados margem e so inferiorizados dentro das relaes verticais na
sociedade. Sobretudo, s mulheres negras, foram atribudas as funes maternas.
Somos as mes de toda uma populao, cuidamos de nossos filhos e dos filhos
alheios nas casas de luxo. Temos um papel primordial de base e, por sermos
base, somos desqualificadas.
Eu, mulher negra
e perifrica, me, procuro quebrar esse ciclo. De vov analfabeta, de me
domstica: filha educadora. Eu educo a favela com poesia e denncia. De
qualquer forma, reconheo que trabalhar com jovens de escola pblica de
periferia desafiador e extremamente delicado. Reflito sobre os dados da Infopen[52]
divulgados em 2014, que destacam que o perfil da populao carcerria
constitudo por 31% de cativos entre 18 e 24 anos, sendo 67% de cor negra; e
53% tm o Ensino Fundamental incompleto. A maioria dos crimes cometidos por
trfico (27%) e roubo (21%), sendo o tempo total das penas da populao
prisional condenada entre 4 e 8 anos (26% dos casos). Por isso, em meu processo
de concluso na graduao, a escolha por uma instituio de Ensino Fundamental na
Ceilndia no foi ocasional.
A escola selecionada
fez parte de meu histrico escolar. Enquanto ceilandense
e negra, pude vivenciar prticas de excluso na instituio quando cursara o
Ensino Fundamental II. Compreender a experincia vivida nessa pesquisa, no
caso, dependeu da combinao com experincias passadas. Diante da profisso que
tive possibilidades de exercer, posso perceber a responsabilidade social que
carrego. Voltar Ceilndia, agora em condio de professora, retribuir todo
o conhecimento adquirido em minha caminhada.
Observo o
material didtico disponvel, que decepcionante. A gramtica tradicional
ainda a mais utilizada na instituio. Essa gramtica de carter
preconceituoso em relao s variantes que fogem do padro do portugus e tem a
necessidade de estabelecer parmetros em busca de um uso idealizado da lngua,
ocorrncia arcaica que se inicia desde os gregos antigos (MARTELOTTA, 2016, p. 45).
Esse atributo
se reflete at hoje em nossa lngua. Sempre que se aponta um portugus errado
por estar fora dos padres de um portugus idealizado e elitizado, chamado
portugus culto. Se observarmos mais criticamente, averiguvel que a questo
da erudio da lngua est ligada s relaes de poder. Efetivamente as classes
altas so as que tm mais contato com estruturas corretas (MARTELOTTA, 2016,
p. 47) e, portanto, so tambm as classes com mais oportunidades e privilgios.
Para
compreender o funcionamento da lngua, preciso assimil-la ao contexto com o
todo (MARTELOTTA, 2016, p. 63). Trata-se de uma anlise mais aprofundada que a
gramtica faz; trata-se da prxis
e, por isso, considero a linguagem perifrica essencial e significativa nessa
pesquisa.
E onde esto,
nas escolas, materiais didticos que se relacionam com a realidade dos alunos?
Onde esto os materiais que acompanham o movimento, a mudana, a dinmica na
linguagem deles? Onde esto, ao menos, as prticas que contemplam o universo
dos jovens perifricos?
Professor, me refiro a voc: se parar para repensar na
sala de aula, perceber o quo desprendido est o material disponibilizado para
os aprendizes. E no preciso refletir muito profundamente para compreender
que suas prticas tambm esto. vulgar e desumano culpar apenas a instituio
de ensino, assim como o material didtico. O juzo comea olhando para si
mesmo, no quo compromissado socialmente est ao entrar em uma sala de aula para
comear esse culto, que o ensinamento.
Consideraes
finais
a real que eles tm
medo
do formigueiro se
atiar,
da gente se armar de
conhecimento.
eles to ligado que
quando ns
respirar ns,
eles morrem sem ar
(BASTOS, 2017, p. 47).
A voz da periferia som que ecoa e cura. Ns
falamos, e a tradio da oralidade vem dos de antes, de ontem. Dandara falou, Carolina Maria de Jesus falou, minha av
falou. Hoje eu falo. As prximas falaro. sentando no cho e ouvindo que
aprendemos. A minha arte a palavra. Atravs dela me curo, curo os de antes,
curo quem vir. E a partir dessa cura, procuro ser uma referncia de ancestral
curada.
O corpo que se move na favela um corpo
poltico. Mover-se um ato poltico em si. Se pensarmos sobre as estratgias
genocidas, quando nos movimentamos, estamos agindo contra a colonialidade
exterminadora. Cada corpo um arquivo, pois contm memria, contm histria,
contm narrativas.
Como a palavra por si s no d conta, a
performance vai ecoar na vibrao de cordas vocais. no grito, no rito, no
canto, nas louvaes. A performance mostrar o potencial de toda essa
oralidade que carregamos em nossa memria, em nosso DNA, em nossos costumes que
o colonizador foi incapaz de exterminar. Se estamos vivos, algo deve ser
aprendido conosco. E o lixo fala, e numa boa, fala muito bem[53]. Todo mundo se entende, e
com isso estamos sobrevivendo, vivendo, mantendo nossa histria.
Como diriam Bernadino-Costa
e Grosfoguel (2016), mesmo em condio de
subalternidade, no somos sujeitos passivos, uma vez que podemos rejeitar os
saberes do opressor, assim como resgatar e forjar nossos prprios saberes. Que
busquemos, ns, os favelados, enaltecer nossos conhecimentos, produzir e
compartilhar saberes, elevar nossa autoestima.
Vov minha escola. Mame minha escola. Homens e
mulheres educadores que passaram em minha trajetria so minha escola. A terra
minha escola. A msica minha escola. A periferia minha escola. Nossa fala
ancestral, tem poder, objetivos e coletiva, orgnica[54].
Nosso saber vivo. Sigamos juntos. Subamos juntos. Tamo junto, favela!
Referncias
ADICHIE,
Chimamanda Ngozi. O perigo de uma histria nica. So
Paulo: Editora Schwarcz, 2009.
BASTOS, Meimei. Um verso e Mei.
Rio de Janeiro: Mal, 2017.
BERNARDINO-COSTA,
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[Recebido: 23 jul
2020 – Aceito: 24 set 2020]
[34] Doutoranda no Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Mestre em Lingustica pelo Programa de Ps-graduao em Lingustica pela Universidade de Braslia. Graduada em Letras Portugus do Brasil como Segunda Lngua pela Universidade de Braslia. Professora na rede de ensino privado do Distrito Federal. Poeta, performer e atriz.
[35] Lngua de origem banto falada em Angola
pelos ambundos.
[36] Campanha de Erradicao de Invases
– C.E.I. (1970).
[37] Fala do documentrio Rap, o canto da
Ceilndia de Adirley Queirs, 2005.
[38] Os principais elementos que compem o Hip
Hop so o DJ (msico), o break (dana), o grafite (arte visual), o rap
(poesia), o MC (mestre de cerimnias) e a conscincia.
[39] Todos somos um, faixa 5 do CD Aqui
vamos ns (2015) do grupo Sobreviventes de Rua.
[40] Por questes ticas, no ser citado
neste trabalho o nome da instituio de ensino, assim como a identidade dos
alunos, por motivos de resguardo. Cito que, para a realizao deste trabalho,
foi concedida a autorizao por parte do diretor e vice-diretor da escola.
[41] O quilombismo
se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no
seio de florestas de difcil acesso, o que facilitava sua defesa e organizao
econmico-social prpria, como tambm assumiram modelos de organizao
permitidos ou tolerados, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas
(catlicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxlio
mtuo [...] rede de associaes, irmandades, confrarias, clubes, grmios,
terreiros, centros, tendas, afoxs, escolas de samba, gafieiras foram e so os
quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei, erguem-se
os quilombos revelados que conhecemos. [...]. A este complexo de significaes,
a esta prxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo
(NASCIMENTO, 2019, p. 281-282).
[42] Pindorama (Terra das Palmeiras) uma
expresso tupi-guarani para designar todas as regies e territrios da hoje
chamada Amrica do Sul (BISPO DOS SANTOS, 2015, p. 20).
[43] Msica
S curto o que bom, produzida no ano de 2004
em parceria com Look e VadiosLocus.
[44] Msica Rap da felicidade (Eu s quero
ser feliz), produzida em 1995.
[45] Msica Braslia Periferia produzida em
1994 do CD Dia a Dia da Periferia.
[46] Single O cu o limite, lanada em 2018
no canal YouTube da Devasto Prod.
[47] Campeonato de poesia falada.
[48] Projeto financiado pelo Fundo de Apoio Cultura do
Distrito Federal que visibilizava levar a arte a paradas de nibus de
periferias como o Recanto das Emas e o Riacho Fundo II. Poesia, msica, grafite
e dana foram algumas das manifestaes que se aproximaram do perifrico que
enfrenta o transporte coletivo precrio do Distrito Federal diariamente.
[49] Projeto apresentado
ao Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal em 2017 e contemplado no edital
macrorregional.
[50] Esse movimento surge no distrito do Bronx (Nova Iorque). uma iniciativa de negros,
descendentes de africanos escravizados que foram trazidos s Amricas, e de
latinos que migraram para os Estados Unidos no ps-Segunda Guerra em busca de
melhores condies de vida (TEPERMAN, 2015).
[51] Msica Favela do CD Novidades
Ancestrais.
[52] O Infopen
responsvel pelo levantamento de informaes estatsticas do sistema
penitencirio brasileiro.
[53] Referncia intelectual Llia Gonzalez
ao criticar a lgica de dominao em que negros e negras so considerados (as)
domesticveis, impossveis de falarem por si, por carregarem atributos de
infantilidade, isso tudo por estarmos no lixo da sociedade brasileira. Assim, a
autora conclui que preciso assumir a prpria fala e afirma: o lixo vai
falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).
[54] Esses saberes esto muito relacionados
aos saberes ancestrais que dizem respeito a ser,
em contraposio aos saberes sintticos, que envolvem ter. Como o prprio mestre quilombola Bispo dos Santos afirma: Eu
no preciso de Karl Marx e de outros acadmicos: preciso de minha gerao av,
aquela que veio antes de mim e que me move. Essa lgica organizada em comeo,
meio e comeo. Minha gerao av comeo, minha gerao filha meio e minha
gerao neta comeo, de novo (BISPO DOS SANTOS, 2019, p. 27).