O  RAP indgena dos Br Mcs: a construo argumentativa da polmica

 

 

The Br Mcs indigenous RAP: the argumentative construction of polemics

 

 

Rubens Damasceno-Morais[25]

https://orcid.org/0000-0001-6245-6394

 

Vanessa Martins Leo[26]

https://orcid.org/0000-0002-8486-5735

 

 

Resumo: Neste artigo, diante de um exemplo da modalidade argumentativa polmica (AMOSSY, 2017), e pela perspectiva da argumentao em contexto de interao (PLANTIN, 2008, 2011; GRCIO, 2013) mostramos, por meio de uma pesquisa de cunho qualitativo, as funcionalidades das desqualificaes da tese adversria e da pessoa ou do grupo que representa o Oponente, bem como da impolidez verbal, materializada em palavres, ironia e ameaas (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM, HARDAKEKER, 2017; DECLERCQ, 2003). Para tanto, analisamos um comentrio e algumas respostas a esse comentrio, postados na mdia social Youtube, os quais dialogam com os discursos e os recursos semiticos que circulam pelo clipe de Eju Orendive, do grupo de rap de (re)existncia indgena Br MCs. A partir desses excertos, percebemos que, de um lado, aqueles que se posicionam contra a demarcao de terras indgenas, velando o racismo, e, do outro lado, os que defendem os direitos dos povos originrios se debruam sobre um debate polarizado e violento voltado no para um acordo, mas, sim, com a inteno de provocar a adeso de um Terceiro, segundo a perspectiva dialogal da argumentao (PLANTIN, 2016).

Palavras-chave: Polmica; Rap Indgena; Resistncia; Racismo.

 

Abstract: In the face of an example of the controversial argumentative modality (AMOSSY, 2017), and using the argumentation perspective in the interaction context (PLANTIN, 2008, 2011; GRCIO, 2013), by means of a qualitative research, we show the disqualifications of the opposing thesis and the person or group that represents the Opponent, as well as verbal impoliteness, materialized in swearing, irony and threats functionalities (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; GRAHAM and HARDAKEKER, 2017; DECLERCQ, 2003). Therefore, we analyze a comment and responses, posted on the Youtube, which dialogue with the speeches and semiotic resources circulating in the videoclipe Eju Orendive, by the indigenous rap group Br MC's. From these excerpts, we realize that, on the one hand, those who stand against the demarcation of indigenous lands, guarding racism and, on the other hand, those who defend the rights of indigenous peoples focus on a polarized and violent debate aimed at for an agreement, but, with the intention of provoking the adhesion of an audience, according to the dialogical perspective of the argumentation (PLANTIN, 2016).

Keywords: Polemics; Indigenous Rap; Resistance ; Racism.

 

 

Rap compromisso. No viagem.

(Sabotage, 2000)

 

O Br MCs o primeiro grupo de rap indgena do Brasil. Seus integrantes so da etnia Guarani-Kaiow e habitam as aldeias Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. O videoclipe do rap Eju Orendive[27], composio do grupo, postado no YouTube, mobilizou opinies de internautas, que expressaram seus posicionamentos em comentrios. Tais comentrios trazem tona discursos de dois grupos politicamente polarizados[28]. De um lado, encontram-se os usurios identificados como de esquerda, que se alinham com as causas dos povos indgenas e, ento, legitimam discursivamente a arte musical de (re)existncia por eles produzida. Do outro lado, encontram-se aqueles denominados de direita, os quais, apoiando-se em esteretipos, materializam discursos racistas e, portanto, tomam o rap dos jovens de Dourados como apropriao e como perda de cultura. Diante desse cenrio, este artigo se empenha em analisar as estratgias lingusticas e argumentativas que esses usurios utilizam para construir seus posicionamentos na plataforma virtual. Nesse sentido, busca-se responder aos seguintes questionamentos: como se constri a modalidade argumentativa polmica (a dicotomizao, polarizao e desqualificao), nos comentrios dos internautas? Destaca-se, nesse contexto, alguma estratgia argumentativa na construo dos discursos e contradiscursos (im)polidos? Para tanto, utilizamos a teoria da argumentao do discurso, com foco na polmica, de Amossy (2011, 2017), bem como os estudos sobre (im)polidez de Culpeper (2011) e Kerbrat-Orecchioni (2006) e a teoria dialogal da argumentao, com foco nos papis de atuao de Plantin (2008, 2016) e Grcio (2013). Alm disso, em funo do vis interdisciplinar dessa pesquisa, utilizamos os apontamentos de Chang (2005) para falar sobre o rap e do decolonialista Quijano (2005) para falar sobre assuntos histricos que atravessam e constituem as identidades indgenas.

Charaudeau (2014) destaca que as mdias sociais so uma das principais esferas da atividade social, em que os discursos polticos vm tona. Ademais, Cabral e Lima (2017) afirmam que o advento e a massificao dessas plataformas provocaram mudanas comportamentais nas pessoas, sendo que uma dessas mudanas diz respeito ao modo de elas se organizarem em grupos, com usurios que possuem interesses em comum, e ao modo de enxergarem o outro, ou seja, de enxergarem aqueles que se posicionam de modo antagnico. Seguindo esse caminho, Cabral, Marqiesi e Seara (2015) apontam que esse contexto, que possibilita a livre participao em discusses bem como a criao de identidades, de perfis fakes, chancela s pessoas a exposio mais espontnea e, at mesmo, agressiva de suas opinies. Assim, um vdeo de rap indgena, publicado no Youtube, com comentrios abertos para todos os usurios, pode se converter em terreno frtil para a materializao de discursos polmicos.

De acordo com Amossy (2017), a polmica um debate em torno de uma questo da atualidade, de interesse pblico, que comporta os anseios das sociedades mais ou menos importantes numa dada cultura. As marcas dessa modalidade argumentativa, de acordo com a autora, so: a dicotomizao e a polarizao. A dicotomizao emerge quando posies antitticas se constroem e se excluem mutuamente. A polarizao, por sua vez, est interligada ao plano da estrutura actancial – adiante, explicado com apoio em Grcio (2013) –, que envolve a atuao do Proponente, do Oponente e do Terceiro. De acordo com Plantin (2008, 2016) so esses papis que sustentam o debate que ope duas posies dicotmicas. Dessa forma, a polarizao se compe de um defensor da posio proposta (Proponente), de um opositor dessa posio (Opositor) e de um ouvinte-espectador da confrontao (Terceiro). Surge, ento, um ns diante de um eles e, nessa relao, os procedimentos mais atenuados consistem em desqualificar a palavra do outro e, geralmente, em desqualificar a pessoa ou o grupo que ele representa, por meio da violncia verbal e da manifestao das emoes (pathos).

Este estudo se divide, ento, em cinco partes. A primeira, na qual desvelamos nossos objetivos iniciais. A segunda, em que falamos sobre a relao existente entre o rap e grupos identitrios marginalizados (de forma breve, dado o espao limitado de que dispomos neste artigo), tais como, os negros e os indgenas. Na terceira, por sua vez, nos empenhamos em mostrar os aspectos da modalidade argumentativa polmica, a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao, proposta por Amossy (2017), bem como apontamos como esse ltimo aspecto, ou seja, a desqualificao, se desdobra em (im)polidez ou agressividade verbal, conforme Culpeper (2011). Na seo seguinte, apresentamos o corpus e empreendemos a anlise dos dados mostrando como a polmica se constri em torno de um comentrio e de respostas a esse comentrio do vdeo Eju Orendive, dos Br MCs. Por fim, tecemos nossas consideraes finais relacionando-as com a nossa proposta inicial.

 

 

(Re)existir e lutar contra o racismo: a aliana entre o rap e grupos marginalizados

 

De acordo com Chang (2005), a cultura do hip hop nasceu no bairro do Bronx, em Nova Iorque, em meados da dcada de 1960, em meio a implantao de polticas recessivas que prejudicaram, principalmente, dois grupos marginalizados: os negros e os mestios dos EUA. Diante desse cenrio, emergiu o movimento Zulu Nation, encabeado pelos DJs Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash e Kool Herc, responsveis por reunir jovens desses grupos identitrios em torno de eventos de msica, de dana e de artes visuais. Souza (2005) aponta que esse movimento resultou na cultura hip hop, composta pelo rap (sigla para rhythm and poetry), pelo break (dana) e pelo grafitte (artes visuais). O rap, pela juno de um MC (mestre de cerimnias) e de um DJ (disk jokey), se constitui como um gnero potico-musical que, por meio de seus enunciados, traz tona o cotidiano dos moradores das favelas e das periferias, denunciando as situaes de desigualdade e de preconceito que lhes interpelam.

O rap emergiu no Brasil, na dcada de 1980, na cidade de So Paulo. Nesse perodo, So Paulo, de modo semelhante Nova Iorque, era tomada por construes de moradias irregulares, habitadas, em maioria, pela populao negra. Em meio a um contexto de pobreza e de abandono, os ndices de criminalidade e as taxas de homicdio inflaram (SILVA, 2013). Diante desse cenrio conturbado, em meados de 1980, o rap consciente emergiu a partir de nomes como Thaide e DJ Hum. No entanto, foi com o grupo Racionais MCs que o raio-X do Brasil veio tona.

O primeiro grupo de rap indgena brasileiro, por sua vez, surgiu em 2009, quando os jovens Bruno Veron, Clemersom Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto, da etnia Guarani-Kaiow, se uniram para formar o Br MCs. Seus versos denunciam o cotidiano das aldeias Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul, onde a pobreza, a violncia, os vcios e o preconceito atravessam seus moradores. De acordo com dados do site G1[29], em junho de 2019, as reservas indgenas de Dourados registraram em mdia um assassinato a cada dois dias e meio. A reportagem aponta ainda que, segundo o MPF, no somente essas reservas, mas tambm as comunidades indgenas do sul do estado esto vivenciando uma escalada sem precedentes nos ndices de criminalidade, muito em funo do consumo exagerado de drogas e lcool, ao passo em que o policiamento ostensivo e repressivo no acompanha esse cenrio.

A partir dessa exposio, possvel perceber que os contextos de gnese do rap estadunidense, brasileiro e indgena brasileiro apresentam entrecruzamentos. Nos trs casos, o

gnero potico-musical emergiu em periferias e favelas, espaos permeados por situaes de pobreza e de violncia. Ademais, entrecruzamentos, tambm, podem ser apontados entre as histrias dos grupos identitrios que do voz a esses versos, uma vez que a sociedade brasileira se ergueu com o sangue dos negros e dos indgenas. Desde a trajetria de colonizao, indgenas e negros foram violentados, fsica e psicologicamente, sob a justificativa da civilizao, da modernizao e da salvao, uma vez que foram considerados selvagens, rudes e pagos e deveriam, portanto, ser domados. Diante desse cenrio, o racismo e a situao de pobreza, aos quais esses grupos so submetidos, desvelam-se como condies scio-histrica e discursivamente construdas (QUIJANO, 2005; MOURA, 2004).

 

 

A modalidade de argumentao polmica e os aspectos da (im)polidez lingustica

 

Para embasar a anlise do corpus em questo, uma vez que estamos diante de uma pesquisa qualitativa, seguimos a teoria da argumentao no discurso de Ruth Amossy (2011, 2017), com nfase na modalidade polmica. De acordo com a autora, a argumentao tecida na materialidade lingustica em uma situao concreta de comunicao. Desse modo, o locutor, projetando a imagem de seu alocutrio e adequando-se s normas do gnero do discurso em questo, lana mo de recursos lingusticos e de estratgias discursivas a fim de tecer sua teia argumentativa. Nesse sentido, a autora destaca que Ҏ na espessura da lngua que se forma e se transmite a argumentao (AMOSSY, 2011, p. 131-132), apontando que o discurso, com a inteno de persuadir, segue uma ou mais modalidades argumentativas. Dentre as possibilidades de estratgias argumentativas, a autora destaca: a modalidade demonstrativa, segundo a qual o locutor apresenta uma tese fundamentada, por meio de discurso monologal ou dialogal, a um auditrio a fim de conquistar sua adeso; a modalidade negociada, em que os parceiros, com diferentes opinies, se empenham para encontrar uma soluo comum para o problema que lhes apetece; e a modalidade polmica, caracterizada pela presena de participantes com posicionamentos antitticos, em total desacordo, no qual um ataca a tese do outro e, at mesmo, a prpria figura do outro a fim de provocar a adeso de um terceiro. No tocante polmica, a autora destaca ainda que, apesar de julgamentos precipitados que a ela atribuem valores negativos, para o analista do discurso, a polmica se mostra rica de ensinamentos na medida em que ela revela muitas coisas sobre a sociedade e a poca na qual o discurso polmico circula (AMOSSY, 2017, p. 49). Isso acontece porque a modalidade polmica gira em torno de temas atuais[30], que circulam pelo espao pblico.

Amossy (2017, p. 49) afirma ainda que a primeira marca da polmica como debate da atualidade uma oposio de discurso, de modo que a existncia de posicionamentos antitticos essencial para a emergncia dessa modalidade argumentativa. Assim, de acordo com a autora, o que modaliza a polmica a atividade de materializar argumentos a favor de sua tese e contra a tese oposta, ou seja, diante desse cenrio, cabe a ambas as partes da interao construir a fundamentao de suas proposies bem como a justificativa de suas contraposies. Nesse sentido, Amossy (2017), baseando-se em Marc Angenot, traz tona a dupla estratgia que tangencia a polmica que seria a demonstrao da tese e a refutao e desqualificao da tese antagnica. A partir de ento, Amossy afirma que a especificidade da polmica dentro do campo da argumentao retrica definida pela dicotomizao, pela polarizao e pela desqualificao e, de forma secundria, no obrigatria, pela violncia verbal e pelo pathos.

A dicotomizao, portanto, como aponta Dascal (2008), leva o debate a nveis extremos, uma vez que, nesse caso, as partes no se empenham em desenvolver um acordo, ou estabelecer um meio termo, para o problema em questo. Amossy (2017, p. 55) coloca, ento, que a polmica se diferencia das interaes argumentativas ordinrias porque ela tende sistematicamente para uma dicotomizao que dificulta a busca de acordo entre as partes adversrias. No caso deste trabalho, por exemplo, os participantes que apontam argumentos a favor dos direitos dos povos indgenas e os participantes que, embasados em esteretipos, argumentam a favor do desenvolvimento econmico do pas, velando o racismo, no se empenham nessa discusso para balancear os posicionamentos, e, assim, ao final, atingir um consenso, pois, eles tm, aqui, objetivos outros.

Para melhor explicar o processo de polarizao, Amossy (2017) prope a diferenciao entre actantes e atores. Segundo Plantin (2008), os atores so os sujeitos concretos da enunciao e os actantes, por sua vez, esto interligados a modalidades discursivas especficas que envolvem um Proponente e um Oponente em face de um Terceiro. Esses papis argumentativos, de acordo com o autor, se definem a partir de trs atos: propor, opor-se e duvidar. Cabe, aqui, ento ressaltar que o campo do Proponente se compe de diferentes atores, de diferentes grupos sociais, ou seja, se compe de diferentes vozes, e o mesmo se d com o campo do Proponente; a juno de participantes to diversos que faz a polarizao difcil de ser solucionada. Nesse sentido, Grcio (2013), retomando os pressupostos de Plantin, traz tona a noo de perspectivao de pontos de vista, que se d quando proponentes e oponentes verticalizam suas divergncias em uma interao argumentativa. Tal verticalizao notria, por exemplo, em um ambiente virtual, em que uma polmica se constitui. Isto posto, Amossy (2017, p. 56) destaca que a diviso actancial entre adversrios tomados numa relao antittica de tipo conflitual explica que a polmica instaura uma operao de polarizao, ou seja, a polmica instaura um ns diante de um eles.

Em outras palavras, em contextos polarizados, o Proponente para se autoafirmar, diante de um auditrio (Terceiro), desqualifica seu Oponente, atribuindo-lhe valores negativos. Uma das estratgias utilizadas para tal consiste no ataque da palavra do outro, seja pela reformulao orientada, seja pela ironia, seja pela modificao dos propsitos (AMOSSY, 2017, p. 59). Alm disso, outras estratgias utilizadas para desqualificao da pessoa dizem respeito ao silenciamento, excluso e, em casos extremos, diabolizao do outro. Declerq (2003, p. 18) assinala que a polmica nos confronta com essa fora incontrolvel que estimula a ter razo sobre o outro, a assegurar sua autoridade sobre ele, a submet-lo, a elimin-lo, se necessrio. Enquanto isso, a demonizao, que divide os grupos entre o bem e o mal, resulta na reprovao total e na desumanizao do adversrio. A partir de ento, possvel perceber que, para se posicionar de modo veemente, o locutor deixa transparecer, em seu discurso, marcas de subjetividade. A emoo um resultado da implicao do locutor no seu discurso. O engajamento emocional se faz acompanhar de uma tentativa de tocar o corao dos leitores/espectadores (AMOSSY, 2017, p. 62) e apresenta, inexoravelmente, um funcionamento discursivo (PLANTIN, 2011). Em suma, possvel afirmar que a violncia verbal e outras formas de emoo, marcadas linguisticamente nos discursos, so estratgias que visam, por meio da eliminao e do descrdito lanado ao Oponente e a sua tese, provocar a adeso de um Terceiro.

Culpeper (2011, p. 23) concebe a violncia ou impolidez lingustica como uma atitude negativa para comportamentos especcos ocorrendo em contextos especcos. Desse modo, Cunha (2019) aponta que a impolidez envolve a violao de normas sociais de comportamento, e o interactante que avalia o comportamento do outro como impolido v-se na posio de algum cuja face – imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados (GOFFMAN, 1967, p. 5) – foi ofendida. Cabral e Lima (2017) observam que as manifestaes de violncia parecem ser mais veementes nos contextos das mdias sociais. Nessa esteira, Cabral, Marquesi e Seara (2015) afirmam que, nesses contextos, os interactantes se escondem por detrs da mquina e de perfis fakes, o que lhes assegura a preservao da identidade e a ausncia de risco de agresso fsica. Segundo essas autoras, as redes sociais do aos usurios maior liberdade para expor pontos de vista polmicos e, at mesmo, para agredir outros. Na mesma direo, Graham e Hardaker (2017) observam que o anonimato pode garantir a muitos usurios a possibilidade de serem mais sinceros e, por vezes, mais agressivos.

Como j apresentado acima, objetivo deste artigo estudar a polmica em comentrios do vdeo Eju Orendive, do grupo de rap indgena Br MCs, postados no Youtube. Dentre os comentrios realizados e as respostas a ele direcionadas, escolhemos, para anlise, o comentrio com mais engajamento, ou seja, o comentrio que obteve maior nmero de respostas. Esse corpus, por sua vez, compe o corpo deste artigo, por meio de imagens, de prints da tela do Youtube. A partir dessa materialidade, buscamos, ento, desvelar como se constroem, nesse contexto, os aspectos da modalidade argumentativa polmica, isto , a dicotomizao, a polarizao e a desqualificao. Ademais, nos empenhamos em mostrar como, nesse caso, a desqualificao do discurso e da figura ou do grupo que representa o Oponente se desdobra em discursos (im)polidos e atravessados por violncia verbal. Em outras palavras, a seguir, debruamos esforos sobre as estratgias argumentativas e lingusticas, a desqualificao materializada em (im)polidez e violncia/agressividade verbal (xingamentos, ironia e ameaa), utilizadas pelos usurios durante essa interao virtual.

 

 

A polmica em comentrios do videoclipe Eju Orendive

 

O Youtube uma mdia social, fundada em 2005, que tem como funcionalidade principal o compartilhamento de vdeos gratuitos entre os usurios da rede. Os vdeos ali postados podem ser compartilhados em outras mdias sociais, bem como podem receber likes ou dislikes; essa mesma funo, tambm, est disponvel para os comentrios. Os comentrios[31], por sua vez, dependendo dos temas que circulam pelo vdeo em questo, se tornam um espao aberto para o debate em que os usurios expem livremente seus posicionamentos. A partir do momento em que um comentrio postado, outras pessoas tm a opo de respond-lo refutando ou defendendo a opinio que foi exposta. Nessa esteira, Amossy (2017) destaca que as redes sociais constituem a praa pblica do sculo XXI. No entanto, nessa praa, de acordo com Cabral e Lima (2017), o que pauta as interaes mais o conflito do que a harmonia. Dessa forma, o Youtube, apesar de no ter como foco principal a discusso, tornou-se uma arena propcia argumentao polmica, em que um Proponente prope uma tese que atacada por um Oponente, diante de um auditrio.

O Youtube se destaca por ter se tornado uma plataforma requisitada para o lanamento e para a divulgao de videoclipes de grandes nomes e de nomes em ascenso (KLICKPAGES, 2019). O videoclipe da msica Eju Orendive, do grupo de rap indgena Br MCs, foi postado na mdia no dia 28 de setembro de 2010, no canal Cufatvddos. A produo (Captura de Tela 1 e Captura de Tela 2) composta por imagens dos integrantes do Br (Bruno Veron, Clemersom Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto), da etnia Guarani-Kaiow, vestidos moda dos rappers americanos (com bons, calas largas e camisetas), bebendo cerveja, pintando os rostos com urucum e cantando seus versos rimados sobre o cotidiano das aldeias que habitam, Jaguapir e Boror, localizadas na cidade de Dourados, oeste do Mato Grosso do Sul. As aldeias Jaguapir e Boror constituem um espao interpelado por milcias, formadas pelos prprios indgenas, ataques de diversas ordens devido a questes de demarcao de terras e pela ausncia da segurana pblica. De acordo com levantamento da Procuradoria[32] da Repblica de Dourados, nessas terras, a taxa de homicdios foi de 101,1 por 100 mil habitantes, entre os anos de 2012 a 2014. No Brasil, a taxa mdia de 29,2 homicdios por 100 mil habitantes

 

 

 

                        Captura de Tela 1                                       Captura de Tela 2

 

      Fonte: Youtube, 2020.                                             Fonte: Youtube, 2020.

 

Isto posto, buscamos, a seguir, desvelar como a polmica e os componentes que a constituem (polarizao, dicotomizao e desqualificao), em consonncia com Amossy (2017), se constroem pelo comentrio e pelas respostas escolhidas para a anlise. Dessa forma, nosso objetivo mostrar, tomando como ponto de partida essa materialidade lingustica, a partir do conceito da dicotomizao, como duas opinies divergentes se excluem mutuamente. Enquanto isso, no tocante polarizao, trazendo tona o funcionamento dos papis da argumentao (PLANTIN, 2008), buscamos esboar como se posicionam o Proponente e o Oponente, ou seja, delimitamos quais discursos o Proponente defende e o Oponente refuta. Seguindo esse caminho, esmiuamos o motivo pelo qual os interactantes utilizam a desqualificao do discurso do adversrio e da figura ou do grupo que o representa. Nesse sentido, mostramos como a (im)polidez e a violncia verbal, em consonncia com Culpeper (2008), por meio de ironia, palavres, xingamentos e ameaa, so utilizadas, nesse contexto polmico, como estratgias argumentativas e lingusticas, diante de um Terceiro.

Dito isso, analisando a materialidade lingustica de Eju Orendive[33], possvel detectar discursos relacionados a religies crists: [...] Sempre peo a Deus / Que ilumine o seu caminho / E o meu caminho; ao racismo: [...] Voc no consegue me olhar / E se me olha no consegue me ver / [...] Aquele boy passou por mim / Me olhando diferente; violncia: [...] Por que ns matamos e morremos? / Em cima desse fato a gente canta / ndio e ndio se matando / Os brancos dando risada; a um desejo por mudana e por equidade: [...] Vamos mostrar para os brancos / Que no h diferena e podemos ser iguais; e ao rap como experincia artstica de resistncia: Aqui o meu rap no acabou / Aqui o meu rap est apenas comeando / Eu fao por amor / Escute, faz favor.

Os comentrios que so aqui analisados foram publicados h 5 anos. Para desvelar como a modalidade argumentativa polmica sobre eles se desdobra, utilizamos prints da tela do Youtube, e, por questes ticas da pesquisa, omitimos a identidade dos usurios. O comentrio abaixo recebeu 17 likes, nenhum dislike e 56 respostas:

 

Print de Tela 1 (Excerto 1)

Fonte: Youtube, 2020.

 

A partir de ento, mostramos como os usurios materializam suas opinies caminhando para um cenrio de dicotomizao e de polarizao, ou seja, para uma situao em que os pontos de vista se excluem e apontam para um eu diante de um ns. Dessa forma, para iniciar a anlise, apontamos como o posicionamento do Proponente, aqui, tambm chamado de Usurio 1, construdo. Traando esse caminho, a partir do comentrio ndios, querendo sempre mais terras demarcadas para viver como pessoas que no so ndios. Faz um rap com esse tema bomba, fica evidente que o Usurio 1 se posiciona, explicitamente, contra uma das questes centrais para os povos indgenas, que a demarcao. Nesse sentido, ao afirmar que os indgenas querem terras para viver como pessoas que no so ndios, o Usurio 1 desvela que sua opinio, extremamente racista, est atrelada a uma imagem cristalizada, estereotipada, acerca dessas identidades e, dessa forma, ele desconsidera as trajetrias de violncia outras que levaram, quase sempre de forma compulsria, as sociedades e os povos indgenas s suas formas de vida atuais (NASCIMENTO, 2018, p. 1421).

As primeiras respostas, direcionadas ao Usurio 1 j confirmam, por sua vez, a insurgncia de uma situao de oposio, ou seja, de dicotomizao, caracterstica imprescindvel, de acordo com Amossy (2017), para a modalidade argumentativa polmica. A dicotomizao, aqui, por sua vez, aparece atrelada desqualificao do discurso e da figura do outro, por meio da (im)polidez ou violncia verbal, como mostramos a seguir, a partir do Excerto 2.

 

Print de Tela 2 (Excerto 2)

Fonte: Youtube, 2020

 

Na primeira resposta, fica caladinho, o conflito comea a ser delineado por meio da desqualificao, caracterstica tambm essencial para a polmica de acordo com Amossy (2017), direcionada ao Usurio 1 e ao seu argumento. O fato de o Usurio 1 ter respondido no to afim mostra, no entanto, que ele mantm a inteno de no aderir ao posicionamento do outro e, dessa forma, a dicotomizao, ou seja, a presena de ideias antitticas, comea a se constituir. Na resposta seguinte, a desqualificao delineada pela (im)polidez, a partir de estratgias lingusticas, ou seja, a partir das escolhas lexicais pelos termos babaca e otrio, por parte do Usurio 3, que imprimem interao um carter violento. Nesse momento, cabe aqui ressaltar que a (im)polidez verbal uma estratgia utilizada pelo locutor para angariar a adeso do auditrio, no entanto, ela no obrigatria para a qualificao de dada modalidade argumentativa como polmica (CULPEPER, 2011; AMOSSY, 2017). Esse movimento de adeso, porm, pode ser, inicialmente, desvelado a partir dos likes que a resposta recebeu, sendo que 19 usurios clicaram nessa opo. Ademais, considerando o que j foi exposto acerca da interao, possvel observar a transparncia de uma situao polarizada, uma vez que o Usurio 1 compe o campo Proponente, pois, diante dos discursos que circulam no vdeo, ele expe sua tese e os Usurio 2 e Usurio 3 compe o campo Oponente, pois responderam ao Usurio 1, apresentando uma posio contrria (PLANTIN, 2008).

At esse momento, no entanto, o posicionamento do Oponente fora demonstrado de modo implcito por meio da desqualificao materializada em violncia verbal. A tese oposta, que se apoia no fato de as terras indgenas serem deles um direito adquirido, comea a ser, efetivamente, discursivamente construda, a partir dos comentrios a seguir:

 

Print de Tela 3 (Excerto 3)

Fonte: Youtube, 2020.

 

No excerto 3, o Usurio 4, do campo Oponente, inicia a construo de uma tese contrria do Usurio 1, ao apontar que a demarcao um ato de reparao histrica, uma vez que os povos indgenas so os donos originrios dessas terras (A terra deles por direitos! Eles estavam aqui antes). O Usurio 1, por sua vez, destaca que a defesa de uma posio se d em funo da falta de informao, assim, desqualificando e descreditando a tese oposta (O que mais chama a ateno a falta de informao dos que me criticam porque falei a verdade). Nesse momento, ao afirmar que as ONGs gringas se filiam luta pela demarcao, porque tm interesses econmicos relacionados explorao das terras indgenas, ele lana mo de um discurso alinhado ao discurso da extrema direita, embasado em fake news, que comeava a se inflamar pelo pas (As demarcaes esto criando um outro pas dentro do Brasil, comandado por ONGs gringas que s querem explorar nosso pas). Esses comentrios foram realizados h 5 anos, em 2015, ano em que o pedido de impeachment da presidente Dilma Rouseff, filiada ao PT (Partido dos Trabalhadores), partido considerado de esquerda/centro-esquerda, foi acolhido pela Cmara dos Deputados. A partir de ento, como assinalado por Amossy (2017), possvel perceber como a polmica nos revela fatos sobre o contexto scio-histrico de um momento especfico em dado espao fsico.

O confronto direita vs. esquerda, tambm, veio superfcie nesse espao discursivo, como possvel perceber nos comentrios a seguir:

 

Print de Tela 4 (Excerto 4)

Fonte: Youtube, 2020

 

No Excerto 4, os Usurio 1 e Usurio 6 se posicionam imprimindo descrdito opinio alheia, sendo que, para tanto, se utilizam do recurso argumentativo da desqualificao que, nesse caso, adquire as faces da (im)polidez e agressividade verbal que se materializa por meio dos recursos lingusticos do palavro e da ironia. O Usurio 6, do campo Oponente, na tentativa desqualificar o Usurio 1, chama-o de cria bolsonarista, dando a entender que, de acordo com sua perspectiva, ser esse um motivo de desdm (Perder tempo com cria bolsonarista? Nem fodendo). Aqui, a opo pelo recurso lingustico do palavro (nem fodendo) imprime o tom de (im)polidez comunicao.

O Usurio 1, em resposta, elabora um argumento, debruando-se no recurso da ironia, tambm muito empregado pela direita conservadora, que diz respeito ao fato de as pessoas de esquerda serem contraditrias por fazerem o uso da tecnologia (Falou o usurio de internet que tem conta no Google e falam mal dos capitalistas...). O raciocnio, por eles utilizado, de que as pessoas de esquerda so socialistas e no devem usufruir da tecnologia que uma ferramenta criada pelo capitalismo. Isto posto, o Usurio 7, do campo Oponente, surge no espao discursivo e utiliza como estratgia argumentativa a desqualificao da tese adversria por meio apresentao de fontes externas, apresentando um link do site Pragmatismo Poltico. Nesse caso, a ironia d o tom de (im)polidez e evidencia que essa interao no pacfica, mas, sim, agressiva, intolerante. Um no quer convencer o outro. Os interactantes virtuais buscam vencer uma batalha, diante de um Terceiro.

 

Print de Tela 5 (Excerto 5)

Fonte: Youtube, 2020.

 

No excerto 5, possvel observar mais uma vez a desqualificao materializada em (im)polidez em ao. O Usurio 8, no incio de sua exposio, se refere ao seu opositor chamando-o de ancefalo e, dessa forma, alm de atingir o outro, ele atinge tambm a tese adversria, dando a entender que somente uma pessoa sem crebro defenderia esse posicionamento. O Usurio 1, em resposta, caminha pelas mesmas trilhas e desqualifica a imagem do Oponente ao se expressar de maneira (im)polida e agressiva, utilizando uma expresso pejorativa: burro ignorante de merda. Ademais, ainda nessa seara, ele acusa o Oponente de se esconder por trs de um perfil fake. Dito isso, ele faz o uso da estratgia da correo gramatical/ortogrfica para desqualificar a tese oposta e, para endossar o descrdito, ele finaliza a resposta fazendo uma ameaa velada ao adversrio (O correto acfalo seu burro ignorante de merda, fake de araque que nem coragem de colocar o nome tem! [...] Um nick de merda desses... Onde vc mora? Quem sabe eu possa ter a oportunidade de te mostrar minha mao macia).

O Usurio 8, diante desse cenrio de impolidez lingustica e ameaa, revela que a violncia verbal inerente a pessoas fracas que precisam atacar as outras, diante da escassez de argumentos. (Tpico Perde o argumento, apela para a fraqueza da ameaa. Mostra bem a que veio. Fraco). Isto posto, o Usurio 1, irredutvel diante de seu posicionamento, se empenha mais uma vez em desqualificar o usurio por meio de palavras com sentido pejorativo e palavro como burro e merdinha e da expresso macho da internet.

A partir de ento, possvel perceber que os dois grupos polarizados – de um lado, aqueles que legitimam o rap indgena como uma arte de resistncia, os considerados de esquerda, e, do outro, os usurios de direita, que, por meio de discursos preconceituosos e baseados em esteretipos, deslegitimam os direitos desses povos – se empenham na construo de argumentos opostos, interpelados por (im)polidez lingustica, aqui, materializada em palavres, ironias e ameaa, porm no chegam a um consenso, pois a preferncia por esses recursos tem como alvo a adeso do auditrio.

 

 

Consideraes finais

 

A modalidade polmica, proposta por Amossy (2017), se caracteriza pela presena da dicotomizao, da polarizao e da desqualificao, diante de uma situao conflitual de debate. Nessa situao, a exposio de argumentos e de contra argumentos, por parte dos interactantes, no tem como objetivo final um acordo, mas, sim, a adeso de um Terceiro, ou seja, a adeso de um auditrio (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). A partir da materialidade lingustica analisada, ou seja, do corpus em questo, percebemos que os participantes dessa interao, na construo de seus posicionamentos, diante de um Terceiro, lanam mo de estratgias argumentativas e lingusticas como a desqualificao por meio da (im)polidez ou da agressividade verbal, que ganham forma por meio de palavres, xingamentos, ironia e ameaa, como tentamos mostrar na anlise apresentada.

Tendo em vista as caractersticas da modalidade argumentativa polmica, Cunha (2019, p. 7) ressalta que, nesse caso, o comportamento violento ou impolido exerce funes importantes, no devendo ser entendido como uma degenerescncia da interao ou como uma ruptura irracional de acordos, contratos ou quadros que subjazem interao (COSER, 1982; LOCHER; BOUSFIELD, 2008). Ademais, para Cabral e Lima (2017), a violncia constitui uma estratgia eficaz quando a inteno do locutor desqualificar o interlocutor. Essas autoras destacam, apoiando-se em Culpeper (2011), a importncia de palavras de sentido pejorativo, palavras de baixo calo, entre outras aparecerem de forma marcada no discurso dos interactantes. A violncia se d, portanto, pela linguagem, o que endossa o posicionamento de Culpeper (2011) e de Cabral e Lima (2017) a respeito da marcao lingustica da impolidez, principalmente, nas redes sociais, onde as interaes se do, em maioria, por meio da linguagem verbal.

 

 

Referncias

 

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[Recebido: 22 jul 2020 – Aceito: 19 set 2020]



[25] Professor doutor e pesquisador da Universidade Federal de Gois – UFG.

[26] Mestra em Estudos lingusticos pela Universidade Federal de Gois – UFG.

[27] O videoclipe foi publicado em 28 de setembro de 2010, no Youtube, no canal Cufatvddos. At a produo deste artigo, o vdeo trazia 416.452 visualizaes e 889 comentrios. O acesso foi em 30 de junho de 2020.

[28] Bobbio (1995) apresenta instigante estudos sobre as diferenas entre esquerda e direita.

[29] Disponvel em: <https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2019/06/16/em-junho-reserva-indigena-de-dourados-registra-media-de-um-assassinato-a-cada-dois-dias-e-meio.ghtml> Acesso em: 30 jun. 2020.

[30] Vide trabalhos de Cabral e Lima (2018).

[31] Por se tratar de um videoclipe de domnio pblico, essa pesquisa no foi submetida ao Comit de tica.

[32] Referncia processual na Justia Federal de Dourados: 5000780-70.2017.4.03.6002.

[33] Devido limitao de espao, no incluiremos o anexo, com a letra integral da msica.