Testemunhos da catstrofe: memrias do trauma em Vozes de Tchernbbil

 

 

Catastrophy testimonies: memories of trauma in Voices from Chernobyl

 

 

Joyce Rodrigues Silva Gonalves[78]

https://orcid.org/0000-0003-4643-1810

 

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo realizar uma breve anlise da obra de Svetlana Aleksivitch, Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a partir da perspectiva dos estudos memorialsticos. O livro rene relatos orais de pessoas que vivenciaram, direta ou indiretamente, a maior catstrofe tecnolgica do sculo XX, ocorrida na usina de Tchernbil, na ento Unio das Repblicas Socialistas Soviticas em abril de 1986. O gnero testemunho permite que sejam ouvidas as memrias traumticas de pessoas comuns, como camponeses, residentes das aldeias no entorno da usina nuclear, donas de casa, mes e pais de famlias, bem como de profissionais ligados produo de energia em Tchernbil, como engenheiros, fsicos nucleares, professores, bombeiros e militares soviticos.

Palavras-chave: Histria; Oralidade; Catstrofe; Testemunho; Tchernbil.

 

Abstract: This article aims to conduct a brief analysis of the book of Svetlana Aleksivitch, Voices from Chernobyl: the oral history of a nuclear disaster, from the perspective of memorialistic studies. The work gathers accounts of oral speech from people who experienced, directly or indirectly, the greatest technological catastrophe of the 20th century, that occurred at the Chernobyl nuclear power plant, in the Union of Soviet Socialist Republics, in April 1987. The testimony genre allows the memories of ordinary people, such as peasants, residents of the villages around the nuclear power plant, housewives, mothers and fathers of families, as well as professionals related to energy production in Chernobyl, as engineers, nuclear physicists, teachers, firefighters and Soviet military.

Key-words: History; Orality; Catastrophe; Testimony; Chernobyl.

 

 

Escolhi o gnero das vozes das pessoas espreito e ausculto meus livros nas ruas, atrs das janelas. Nelas, pessoas reais contam os principais acontecimentos de seu tempo: a guerra, a queda do imprio socialista, Tchernbil, e todos eles conservam na palavra a histria do pas, a histria comum. Tanto a antiga, como a mais recente. E cada um guarda a histria de seu pequeno destino humano.

Svetlana Aleksivitch, autora bielorrussa, se dedicou escrita de testemunhos traumticos, registrando em suas obras as memrias de centenas de pessoas que vivenciaram as guerras e as demais tragdias soviticas. Aleksivitch afirma, em seu discurso proferido na Academia Sueca, Estocolmo, na ocasio do recebimento do prmio Nobel de literatura em 2015, que a memria do povo sovitico uma memria sempre traumtica, que a histria da (s) nao (es) soviete (s) nunca foi tranquila, e que a isso essas pessoas esto familiarizadas: A memria nos inspira. Ns sempre vivemos no terror, somos capazes de viver no terror; o nosso habitat. E nisso, o nosso povo no tem rivais... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 227).

Na obra Histria, Memria, Literatura: o testemunho na era das catstrofes, Mrcio Seligmann-Silva (2003) avalia que o sculo XX considerado um perodo catastrfico, uma vez que ocorreram vrias revolues, duas guerras mundiais, tragdias humanas, polticas e tecnolgicas. Em Catstrofe e representao, Seligmann-Silva e Nestrovski (2000) renem ensaios que tecem consideraes a propsito dos limites da linguagem, do pensamento e da imaginao na representao da catstrofe nas artes. A tica da representao um ponto crucial, principalmente na esttica da recepo, uma vez que a crtica das artes, e aqui privilegiamos a literatura, exerce seu papel tambm em relao s escritas de si, em que a voz narrativa se coloca em primeira pessoa, como nos gneros autobiogrficos, memorialsticos. A obra de Svetlana Aleksivitch constituda por testemunhos, em que os lembradores se colocam a rememorar suas experincias traumticas. A despeito de esses sujeitos no escreverem suas prprias memrias, concederam entrevistas autora para que ela o fizesse.

Embora a pequena cidade de Tchernbil seja localizada na Ucrnia, as consequncias da exploso do reator nmero quatro de sua usina nuclear se estenderam por grande parte da Europa, particularmente e de modo mais intenso pela Bielorrssia, j que a cidade se localiza muito prximo fronteira com esse pas. Os impactos do desastre na populao vulnervel vo desde os danos fsicos, psicolgicos, sociais, at o desamparo dos direitos humanos, que foram, de modo geral, negligenciados.

Svetlana Aleksivitch utiliza em suas obras a tcnica da metodologia oral, do discurso falado atravs dos testemunhos que recolhe de pessoas comuns. Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, os relatos nos permitem ter uma noo do que essas pessoas sentiram ao vivenciar tamanha tragdia e os impactos dela desde sua deflagrao at os dias atuais, j que a zona de excluso, extenso territorial no entorno da usina, est permanentemente condenada. sua terra envenenada. Sendo a autora uma das pessoas atingidas pelo desastre de Tchernbil, ainda que indiretamente, no captulo inicial da obra em anlise ela tece suas prprias consideraes acerca do que significou o incidente e como suas vidas foram definitivamente mudadas a partir de ento. A primeira reao foi um emudecimento diante do fato trgico: Entre o momento em que aconteceu a catstrofe e o momento em que comearam a falar dela, houve uma pausa. Um momento de mudez. E todos se lembram dele... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 41).

O silncio que se instaurou perfeitamente compreensvel, considerando que em situaes traumticas normal que as pessoas fiquem em estado de choque, que no saibam nem mesmo como reagir. Ademais, aquelas que, mesmo perplexas, poderiam vislumbrar alguma explicao, que poderiam de algum modo elaborar o trauma, no encontravam meios para tal. A cincia, a literatura, a filosofia tambm no as possibilitavam uma sistematizao racional da catstrofe, o que explica o porqu

[C]alaram-se os filsofos e escritores, expulsos de seus canais habituais da cultura e da tradio. Naqueles primeiros dias, era mais interessante conversar no com cientistas, funcionrios ou militares com muitas medalhas, e sim com os velhos camponeses. Gente que vivia sem Tolsti e Dostoiviski, sem internet, mas cuja conscincia de algum modo continha uma nova imagem de mundo. E ela no se destruiu (ALEKSIVITCH, 2016, p. 42).

Os camponeses, pessoas simples em sua maioria, tambm no sabiam ao certo o que havia ocorrido, mas o impacto em suas vidas foi tamanho que alterou seus destinos. A maioria foi evacuada dois, trs dias depois, umas e outras acabaram retornando revelia das orientaes do Estado. Mesmo as que emigraram tiveram a sade seriamente comprometida, famlias destrudas, planos arruinados. esse o principal enfoque da obra de Svetlana: Eu quero narrar a histria de forma a no perder de vista o destino de nenhum homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 50).

Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a autora privilegia memrias que so, simultaneamente, individuais e coletivas. Do ponto de vista do coletivo, importa dizer que as reflexes de Maurice Halbwachs (2004) em seu livro A memria coletiva contriburam imensamente para a compreenso das questes sociais que compem a memria. Para o terico francs, a memria aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivduo carrega em si a lembrana, mas est sempre em interao com a sociedade, seus grupos e instituies. no contexto dessas relaes que nossas lembranas so construdas. Como nao, o pensamento coletivo predominou durante muito tempo entre os soviticos: [M]as isso tambm a imagem da barbrie, essa falta de medo pela prpria vida. Ns sempre falamos ns e no eu: ns mostraremos o herosmo sovitico, ns revelaremos o carter sovitico para o mundo todo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 333).

Do ponto de vista individual, Svetlana Aleksivitch permite que histrias particulares sejam conhecidas, que sejam contados destinos conduzidos pela catstrofe. O pensamento individual surge mesmo nas amarras do coletivo: [D]epois de Tchernbil, sente-se isso. Ns temos aprendido a dizer eu. Eu no quero morrer! Eu tenho medo! [Natlia Roslova, presidenta do Comit Mulheres de Moguilov] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 334).

O primeiro dos relatos na obra de Svetlana de Liudmila Igntienko, esposa grvida de um dos primeiros bombeiros que foram enviados ao reator para tentar apagar o incndio aps a exploso. A mulher descreve como tudo aconteceu e como se deram as duas semanas seguintes, em que viu o esposo se esvanecer rapidamente em um hospital de Moscou em consequncia da sndrome aguda radiativa. A descrio chocante, carregada de horror. Aps a morte do marido, a esposa encontra nos sonhos uma alternativa para sobreviver, neles ela se encontra novamente com seu amado e com a filha que nascera morta em razo da radiao a que esteve exposta enquanto acompanhava e cuidava do homem. Liudmila confessa: Assim vou vivendo. Vivo ao mesmo tempo num mundo real e irreal. No sei onde me sinto melhor, e completa: As pessoas no querem ouvir falar da morte. Dos horrores [...] Mas eu falei do amor, como eu amei (ALEKSIVITCH, 2016, p. 37-38).

A fuga da realidade bastante recorrente ao longo do livro e se mostra de diversos modos. A prpria autora reconhece: A realidade resvala, no cabe no homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 49). H um relato interessante que exemplifica esse resvalamento do real, em que a voz que testemunha o desastre se coloca alm da realidade, que parece viver uma vida imaginria, surreal:

E eu me lembro do duende. Ele vive h muito tempo aqui comigo, no sei exatamente onde, saiu do forno. De capuz preto e roupa preta com botes brilhantes. No tem corpo, mas se move. Durante um tempo eu pensei que fosse meu marido que vinha me ver. Veja s... Mas no. um duendezinho... Vivo sozinha e no tenho com quem falar, de modo que noite eu conto para mim mesma o dia que passou. [Maria Fedtovna Veltchko, cantora popular e contadora de histrias] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 210).

A alucinao surge, nesse caso, como consequncia do trauma vivido e da solido ps-catstrofe. Alis, muitas pessoas vivenciaram/vivenciam a solido ps-Tchernbil, pois vrias perderam suas famlias ou acabaram se isolando de algum modo.

Aps o perodo inicial em silncio, os atingidos pela catstrofe comearam a retomar o fato e elaborar suas memrias traumticas. Mas, afinal,

[P]ara que as pessoas recordam? Para restabelecer a verdade? A justia? Para se libertar e esquecer? Ou por que compreendem que participaram de um evento grandioso? Por que buscam no passado alguma proteo? E, alm disso, a recordao uma coisa muito frgil, efmera, no um conhecimento exato, uma suposio do homem sobre si mesmo. Isso ainda no conhecimento, apenas sentimento. [...]. Para que as pessoas recordam? a minha pergunta. Mas eu falei com voc, pronunciei algumas palavras. E compreendi alguma coisa... Agora no sinto to sozinho. Mas o que acontece com os outros? [Piotr S., psiclogo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 55-57).

O relato acima bastante consciente da dificuldade da assimilao dos fatos; considerando-se que foi proferido por um psiclogo, perfeitamente compreensvel. Mas, como a testemunha j sinalizara em sua fala, como as pessoas lidam com suas prprias lembranas, de modo geral, algo problemtico a ponto de se questionarem: [E]nto, o que melhor: lembrar ou esquecer? [Evguni Aleksndrovitch Brvkin, professor da Universidade Estatal de Gmel] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 131).

H uma relao intrnseca entre lembrana e esquecimento. O sujeito que rememora est sempre colocando em evidncia uma memria selecionada, consciente ou inconscientemente, enquanto rechaa outras partes das experincias vividas. Quando o lembrador no se d conta desse movimento, como se houvesse uma amnsia decorrente do trauma vivenciado. O relato abaixo exemplifica essa falha da memria, uma lacuna que pode ser considerada em termos neurolgicos e tambm psicolgicos/psicanalticos:

[E]u me esqueci de tudo. S lembro que estive ali, mas no me recordo de mais nada. Eu me esqueci de tudo. No terceiro ano depois da desmobilizao, aconteceu uma coisa na minha memria... Nem os mdicos entendem... No consigo sequer contar dinheiro, me perco. Perambulo de um hospital a outro... J contei isso, ou no? [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 104).

Trauma e amnsia esto, portanto, frequentemente e intimamente relacionados, assim como as lembranas encobridoras, sinalizadas por Sigmund Freud et al. (1969) como uma forma de escamotear memrias traumticas ao se rememorar fatos mais triviais do passado.

Algumas pessoas tinham a noo da contribuio que seria prestar seus testemunhos para a histria oficial: [L]embrar? Eu quero e no quero lembrar. Se os cientistas no sabem nada, se os escritores no sabem nada, ento os ajudaremos com a nossa vida e a nossa morte [Ktia P.] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 147). Outras precisavam contribuir consigo mesmas: No me pergunte. No vou dizer. No vou falar nada sobre isso... No, eu posso conversar com voc para tentar entender, se for possvel [Nina Kovaliova, esposa de um liquidador] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 269).

Por outro lado, houve aqueles que sentiam necessidade de testemunhar suas experincias traumticas, como Nikolai Kalguin (ALEKSIVITCH, 2016, p. 65): [E]u quero testemunhar. Isso aconteceu h dez anos e todo dia se repete comigo. Agora mesmo. Carrego isso sempre comigo. No sou escritor, no saberia como contar... Mas sou testemunha. Observamos nessa fala que o trauma se repete na memria, que no foi elaborado nem superado. No caso desse personagem, a fatalidade maior se concretizou na morte da filha, motivo pelo qual o homem se revolta e reitera: [E]u quero testemunhar, a minha filha morreu por culpa de Tchernbil. E ainda querem nos calar (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Percebemos nesse discurso que houve um silenciamento imposto pelos responsveis pela tragdia e pelo prprio Estado, por isso a importncia da histria oral para preencher as lacunas da histria oficial.

Um motivo muito comum que leva algum a testemunhar sobre determinado acontecimento a conscincia da finitude da vida. medida que o tempo passa, sente-se a necessidade de revelar algo importante, principalmente quando se trata de um fato histrico, como o caso do acidente em questo. Os documentos com registros sobre o desastre de Tchernbil foram destrudos por vrias razes: primeiro porque, burocraticamente, os papis oficiais na Unio Sovitica s eram arquivados durante trs anos, depois porque eram radiativos, e, por ltimo, porque houve a reestruturao do exrcito e a dissoluo das unidades administrativas e militares depois da Perestroika. Porm, alguns conjecturavam uma circunstncia muito plausvel: [] possvel que tenham sido destrudos para que ningum soubesse a verdade. E ns somos testemunhas. Mas em breve morreremos [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 117).

Alm da omisso de documentos, houve tambm omisso de verdades. As autoridades diziam que estava tudo sob controle, enquanto os habitantes de aldeias ao redor de Tchernbil recebiam altssimas dosagens de radiao. Algumas comunidades foram evacuadas, outras no. Os camponeses continuaram a cultivar, colher e consumir normalmente os alimentos que plantavam. Muitos deles foram persuadidos a permanecerem em suas casas, pois eram tambm mo de obra para o Estado.

No apenas pessoas comuns, que viviam no campo e em pequenas aldeias foram enganadas, tambm militares tiveram informaes omitidas enquanto serviam ao Estado, alguns foram enviados para o trabalho em Tchernbil aps o acidente sem ao menos terem conhecimento disso, apenas foram convocados e encaminhados. Um dos militares que testemunha na obra de Svetlana afirma que no os informavam sequer os valores das doses radiativas que estavam recebendo durante o trabalho: [o]s roentgen que nos tocavam eram segredo militar. [...]. Nem sequer ao partirmos disseram quanto... Cachorros! Filhos da puta [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Vrias denncias da mesma natureza so encontradas ao longo das narrativas na obra em anlise.

Havia ainda controvrsias entre cientistas sobre os riscos que corriam os militares em servio. Alguns afirmavam que no havia problema nenhum, outros alertavam para o mal que faria a exposio radiao. Uns acreditavam que estavam seguros, outros sabiam do perigo e das provveis consequncias.

De fato, era plenamente compreensvel que as pessoas fossem facilmente ludibriadas pelas autoridades, e at mesmo que no acreditassem, quando eram advertidas, no perigo a que estavam sujeitas com a alta radiao, uma vez que estavam lidando com um inimigo invisvel:

A culpa da radiao ou de quem? Como ela ? Vai ver, mostraram-na em algum filme. Voc viu? Ela branca ou o qu? De que cor? Uns contam que ela no tem cor nem cheiro, outros contam que negra. Como a terra! Se no tem cor, como Deus: est em todo lugar, mas ningum v. Querem nos assustar. As mas esto penduradas nas rvores e as folhas tambm, as batatas esto crescendo no campo... O que eu penso que no houve nenhum Tchernbil, que inventaram isso tudo. Enganaram as pessoas [Anna Petrvna Badieva, residente na zona contaminada] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 83).

Podemos observar no trecho acima a descrena naquilo que no materializado, no que no visto a olhos nus, o que acentuou o perigo das partculas radiativas. Para a personagem, se a vida continua seguindo seu curso normalmente, ento no houve catstrofe, est tudo certo. Em outro relato percebemos tambm essa necessidade de materializao do perigo. Duas idosas garantem ter visto o monstro da radiao:

Pois olhe: est vendo aquela casa ali meio construda? Os moradores a abandonaram e foram embora. Por medo. Uma noite dessas fomos ver por dentro. Olhamos pela janela. E ali estava, debaixo de uma viga, a radiao. Com uma cara ruim e olhos de fogo! Negra, negra! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 317).

Tal fala soa como uma alucinao, uma neurose traumtica, como descrita pela psicanlise de Freud et al. (1969) em seu texto O mecanismo psquico do esquecimento. Esse mesmo mecanismo pode ser observado no caso do relato da mulher que v um duende em casa. Enfim, cada um encontra uma forma para conduzir suas experincias traumticas, seja para lembr-las ou para esquec-las, ainda que atravs de uma pulso de morte, que seria uma soluo e, para uns, at mesmo uma bno: [D]e alguns Deus se apieda, mas a mim ainda no concedeu a morte. Continuo viva [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 71).

A morte, alis, um tema predominante nos relatos reunidos na obra de Aleksivitch e estava presente entre indivduos de todas as faixas-etrias, inclusive os natimortos. Como consequncia do desastre aumentaram os ndices de abortos, tanto espontneos quanto induzidos, e houve um grande desequilbrio entre as taxas de natalidade e mortalidade na regio no perodo ps-catstrofe.

Alguns soldados que estiveram nas guerras em que a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas lutou afirmam que a tragdia de Tchernbil se equipara situao blica. medida que as pessoas iam morrendo em decorrncia de doenas desencadeadas pela radiatividade, os enfermos j imaginavam seus momentos finais: [N]o est claro como vou morrer. Se eu pudesse escolher a minha morte, seria uma morte comum. No como as de Tchernbil. A nica coisa que sei que com o meu diagnstico no se dura muito. [...]. Estive no Afeganisto. Ali a coisa era mais fcil. Com uma bala... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120).

A iminncia da morte pairava sobre todo o povo de Tchernbil, at mesmo as crianas tinham conscincia disso. Uma das testemunhas relata uma cena que presenciou em um nibus, em que um menino no cedeu seu lugar a um idoso, que o repreendeu dizendo: Quando voc for velho, tambm no vo te ceder o lugar. Eu nunca vou ficar velho, respondeu o menino. E por qu?. Todos ns vamos morrer logo [Llia Kuzmenkova, professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 299).

Um dos captulos finais de Vozes de Tchernbil dedicado ao coro de crianas e adolescentes que a autora entrevistou em um hospital, e os relatos so profundamente tristes, trgicos. Um adolescente conta como vrios de seus amigos e colegas de tratamento j se foram e se mostra resignado com a morte iminente:

Mas como me aborrecem essas paredes cinza do hospital. Como estou fraco ainda. [...]. E a minha chega. Ontem ela (a me) pendurou um cone na enfermaria. Cochicha alguma coisa naquele canto, se pe de joelhos. Todos se calam: professores, mdicos, enfermeiras. Acham que eu no suspeito de nada. Que no sei que vou morrer em breve (ALEKSIVITCH, 2016, p. 348-349).

Em vrios dos testemunhos orais podemos observar a perspectiva infantil da morte, como uma criana que sabia que o av estava morrendo e queria ver como que sua alma sairia voando. As brincadeiras frequentemente giravam em torno da catstrofe da usina: [E]u tenho um irmozinho pequeno. Ele adora brincar de Tchernbil. Constri um abrigo, cobre de areia o reator. Ou ento se veste de espantalho e corre atrs de todo mundo: Uh-uh-uh! Eu sou a radiao! ALEKSIVITCH, 2016, p. 348). Na escola desenhavam a Tchernbil submersa no caos do acidente nuclear, ainda que pouco ou nada fosse dito sobre a questo. O silncio sobre a catstrofe nas escolas era uma realidade, uma vez que havia falta de informaes para repasse, censura do Estado e at mesmo um bloqueio psicolgico que impedia que as pessoas em Tchernbil conversassem entre si sobre o desastre. Geralmente falavam sobre o fato com estrangeiros, jornalistas e parentes que no residiam na zona contaminada.

As memrias de crianas so realmente impactantes, das mais singelas s mais trgicas e desoladoras. Viam tudo que possuam ser enterrado em grandes buracos, suas casas com todos os seus pertences, livros, brinquedos:

[E]enterram tudo com areia e barro e comprimem. No lugar da aldeia fica um campo liso. A nossa casa est enterrada l. E a escola, o soviete local. E tambm o meu herbrio e dois lbuns de selos, que eu sonhava em buscar. Eu tinha uma bicicleta. Tinham acabado de comprar para mim (ALEKSIVITCH, 2016, p. 346).

O desastre significou uma guerra atmica, desde a movimentao de pessoas na regio at a luta pela vida. Alguns utilizavam a expresso campo de concentrao, campo de Tchernbil para se referirem ao territrio contaminado pelos elementos qumicos radiativos. [...] hoje a guerra outra. No dia 26 de abril de 1986, ns sobrevivemos a uma guerra. Uma guerra que no terminou (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120). Os militares e todos os que serviram em Tchernbil foram considerados por muitos como heris:

Eu os considero heris, e no vtimas de guerra, de uma guerra que como se no tivesse acontecido. Chamam de acidente, de catstrofe. Mas foi uma guerra. At os nossos monumentos de Tchernbil parecem militares [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).

Assim como acontece em um cenrio de guerra, as pessoas serviam, muitas voluntariamente, outras por presso. Contudo, no recusavam a misso, at mesmo cientistas se dispuseram ao trabalho braal, como conta uma testemunha Svetlana:

[S]ou engenheiro qumico, doutor em cincias qumicas, e me obrigaram a abandonar o emprego de responsvel por um laboratrio qumico num importante complexo industrial. E como me utilizaram? Pem nas minhas mos uma p. Esse foi praticamente o meu nico instrumento. Foi aqui que nasceu o aforismo: contra o tomo, a p [Ivan Jmkhov] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 247).

Aqueles que sobreviveram catstrofe tiveram que lidar, como se no bastasse o trauma imensurvel do desastre e as condutas de guerra, com o preconceito e a discriminao. [A]s pessoas tm medo de ns. Dizem que somos contagiosos. Por que Deus nos castigou? [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 74). O fato de terem sido altamente expostos radiao os tornou um povo txico:

Podamos ter ido embora daqui mas considerei com meu marido e decidimos ficar. Temos medo das outras pessoas. Aqui ao menos so todos de Tchernbil. No assustamos um ao outro; se algum oferece mas ou pepinos do seu jardim, da sua horta, ns pegamos e comemos. No escondemos os alimentos com vergonha no bolso para depois jog-los fora. Todos ns temos a mesma lembrana, a mesma sorte. Em qualquer outro lugar, em qualquer parte ns somos estranhos. Apestados. Olham para a gente de rabo de olho. Com receio. As pessoas nos chamam gente de Tchernbil, crianas de Tchernbil, evacuados de Tchernbil. J estamos acostumados [Nadijda Burakova, habitante do povoado urbano de Jiniki] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 290).

Podemos observar no relato supracitado que os danos foram muito alm de fsicos, psicolgicos e materiais, mas tambm foram morais, afetaram a vida humana, social, e at ntima. Sabendo da impotncia sexual masculina como uma das sequelas da alta radiao, um jornalista tentou tratar do assunto com alguns militares que atuaram no acidente; entretanto, nenhum deles se abriu para falar sobre a questo; conseguiu somente confidncias de algumas mulheres que os conheciam:

[O]lhe, agora mesmo estavam sentados aqui com vocs uns rapazes (elas riem), pilotos. Uns caras de dois metros. Cheios de medalhas. Para os sovietes eles so bons, mas para a cama no prestam [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).

O fantasma da consequncia ntima, sexual, cercava os homens que trabalharam diretamente no acidente nuclear, pois as mulheres, tendo conhecimento disso, no desejavam se unir a eles para namorar nem casar:

[G]ostei de uma garota: Vamos namorar?. Para qu? Voc agora um dos de Tchernbil. Quem vai querer casar com voc?. Conheci outra garota. Nos beijamos, namoramos. A coisa estava ficando sria. Vamos nos casar, eu propus. E ela me perguntou algo mais ou menos assim: Ser que voc pode? Est em condies?. Eu iria embora daqui, e certamente ainda vou. Mas tenho pena dos meus pais... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 115).

Tchernbil passou a ser considerada como doena:

[U]m dia, morreu inesperadamente uma jovem grvida. Sem diagnstico algum, nem sequer o patologista deu o diagnstico. Uma menina se enforcou. Do quinto ano. Assim, sem mais nem menos. Os pais ficaram loucos. O diagnstico era o mesmo para todos: Tchernbil, quando acontecia algo, todos diziam: Tchernbil... [Nina Konstantnovna, filloga, professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 165).

Alm de diagnstico mdico, Tchernbil passou a servir tambm como justificativa para os problemas da nao, assim como as guerras. A catstrofe trouxe novamente as medidas extremas por parte do governo, redistribuio e racionamento: [a]gora surgia a possibilidade de jogar tudo na conta de Tchernbil. Se no fosse Tchernbil... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 335).

A catstrofe criou um povo, surgiu um novo grupo: [o] mundo se dividiu: h os de Tchernbil, ns; e h vocs. O resto dos homens [Nikolai Jrkovi, professor] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 172).

A metodologia de coleta de informaes e testemunhos utilizada por Svetlana Aleksivitch proporciona a exposio de vrios casos, crendices e supersties, o que comum na histria oral. Essas vozes reunidas formam um coro, como denominado pela prpria autora em alguns captulos do livro. Muitas ressoam a religio e a f, um suporte comum e efetivo para a sobrevivncia daqueles que recorrem crena e se apegam a ela.

O humor, apesar de contraditrio, s vezes, se tornava tambm um modo de escapismo, uma espcie de fuga da realidade cruel em que o povo de Tchernbil estava inserido. H certo estranhamento quando refletimos sobre um fato trgico ser ou no risvel, mas anedotas eram comuns entre a populao da regio. H um episdio cmico que exemplifica a possibilidade de rir para no chorar:

[C]hora quem no labora... Veja uma ucraniana que vende no mercado umas mas grandes e vermelhas. Ela grita: Comprem mas! Mas de Tchernbil!. Algum a aconselhou: No diga, moa, que de Tchernbil. Assim ningum vai comprar. Que nada! Compram sim, e como! Uns levam para a sogra, outros para o chefe [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 78).

Ao mesmo tempo, as pessoas enxergavam a beleza e o horror que as rodeava. As terras soviticas no entorno de Tchernbil so descritas no livro como paisagens belas: [E] essa mesma beleza era o que fazia daquele horror algo ainda mais pavoroso. O homem tinha que abandonar aqueles lugares (ALEKSIVITCH, 2016, p. 136). Alguns dos testemunhos registrados pela autora lamentam que as pessoas no puderam mais desfrutar dos prazeres cotidianos, como nadar nas guas lmpidas de seus rios, ou colher flores e frutos dos seus bosques.

O que percebemos nos registros de Svetlana Aleksivitch que houve muita negligncia e desordem por parte das autoridades e dos responsveis pela conduo do caso: [N]o escreva sobre as maravilhas do herosmo sovitico. Tambm houve, verdade. Mas primeiro voc deve falar da negligncia e da desordem, depois das proezas [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 111), e que, apesar da disposio ao sacrifcio que o povo demonstrou, o descaso do governo o que tiveram em troca:

[S]omos pobres, sobrevivemos de donativos. O comportamento do Estado, por outro lado, de pura vigarice, abandonou essa gente por completo. Depois que morrem, inscrevero o nome delas em ruas, escolas ou alguma unidade militar, mas s depois que morrerem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 216).

[E] nas sesses da comisso governamental, informava-se de maneira simples e habitual que: para tal coisa deve-se perder duas ou trs vidas; para outra, uma vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 220).

Nem mesmo beira da morte era comum o arrependimento por ter servido a ptria em Tchernbil: [U]ma vez eu lhe perguntei: Voc agora se arrepende de ter ido?. E ele moveu a cabea, dizendo: no (ALEKSIVITCH, 2016, p. 359).

A censura era uma constante em relao ao acidente nuclear. Jornalistas, cinegrafistas, fotgrafos eram rechaados durante sua atuao, tinham seus instrumentos de trabalho confiscados: [E]ra proibido filmar a tragdia, s se podia filmar o herosmo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 219). Assim como todas as instncias sociais eram controladas pelo governo, tambm a medicina e outras cincias eram submissas poltica, por isso geralmente se omitiam as informaes mais polmicas e a verdade sobre os ndices de radiatividade na regio.

Mesmo em meio catstrofe, a cultura de privilgios continuava reinando. Um relato de Vozes de Tchernbil denuncia um caso de desamparo de uns em favor de outros, que tinham prioridade por serem ricos:

[V]m minha memria alguns fragmentos. Cenas. Um presidente de colcoz retira em dois caminhes todas as suas coisas, a sua famlia, os mveis; e o responsvel do Partido exige um carro para eles. Exige justia. Eu sou testemunha de que por vrios dias no conseguiam sequer retirar de l as crianas da creche. No havia transporte (ALEKSIVITCH, 2016, p. 159-160).

Houve em torno do desastre nuclear muitos mitos. As consequncias da tragdia eram difundidas entre as pessoas locais e as que no residiam na regio. O imaginrio sempre um espao frtil, e, diante de um fato como esse, a mitologia passou a fazer parte do cotidiano popular:

[O]s jornais e as revistas competem entre si para ver quem escreve as coisas mais terrveis, e esses horrores agradam, sobretudo queles que no os viveram. Todo mundo leu algo sobre os cogumelos do tamanho de uma cabea humana, mas ningum os encontrou. Como os pssaros de duas cabeas (ALEKSIVITCH, 2016, p. 173).

Mitologias parte, mudanas de fato aconteceram tanto na paisagem, quanto no carter nacional:

[N]o apenas a paisagem mudou, pois onde antes se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas tambm o carter nacional mudou. Todos esto depressivos. O sentimento de estarem irremediavelmente condenados. Para uns, Tchernbil uma metfora, um smbolo. Para ns, a nossa vida. Simplesmente a vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 291).

A catstrofe de Tchernbil gerou um trauma mais amplo, alm dos aspectos fsicos, psicolgicos e sociais, surgiu um trauma da cultura:

Por que se escreve to pouco sobre Tchernbil? Os nossos escritores continuam a escrever sobre a guerra, sobre os campos de trabalho stalinistas, mas calam sobre Tchernbil. H um, dois livros e acabou-se. Voc acha que mera casualidade? O acontecimento ainda est margem da cultura. um trauma da cultura. E a nica resposta o silncio. Fechamos os olhos como crianas pequenas e acreditamos que assim nos escondemos, que o horror no nos alcanar [Evguni Brvkin, professor universitrio] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 130).

Como j sinalizado por Svetlana em seu discurso na Academia sueca na cerimnia do prmio Nobel de literatura, a cultura da tragdia inerente ao povo sovitico. Outro relato de uma testemunha tambm chama a ateno para a questo quando reflete [s]obre o destino da cultura russa, sobre a sua inclinao para o trgico. Sem a sombra da morte, no se podia entender nada. S sobre a base da cultura russa seria possvel entender a catstrofe. S a nossa cultura estava preparada para entende-la (ALEKSIVITCH, 2016, p. 296).

Embora o povo sovitico estivesse sempre acostumado cultura da tragdia, houve um estado de choque decorrente do desastre de Tchernbil, uma impotncia coletiva diante do trauma: [M]e incomoda a minha experincia como professora. [...] Eu me sinto impotente. H cultura antes de Tchernbil, e nenhuma cultura depois de Tchernbil. [...] onde esto os nossos escritores, os nossos filsofos? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 283).

Quando lidamos com testemunhos de violncia, com lembranas traumticas, comum nos depararmos com o discurso do indizvel. Faltavam palavras para descrever as experincias, a lngua no d conta de traduzir a memria, como afirma Giorgio Agamben sobre a tragdia da Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Em sua obra O que resta de Auschwitz, Agamben (2008, p. 11) observa as dificuldades dos testemunhos de guerra em que trata-se de narrar o que aconteceu e de afirmar que o que aconteceu no faz parte do narrvel. Algumas testemunhas encontram outras formas de expresso quando o discurso no possvel ou suficiente: [P]or que me tornei fotgrafo? Porque me faltam as palavras (ALEKSIVITCH, 2016, p. 298).

Apesar das experincias do horror e do trauma, houve um aprendizado da humanidade depois do desastre. Na concepo de uma testemunha entrevistada por Svetlana Aleksivitch: [N]o s ns, mas toda a humanidade se tornou mais sbia depois de Tchernbil. Amadureceu, entrou em outra idade [Guendi Gruchevi, deputado bielorrusso] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 185).

As pessoas, geralmente, passam a refletir mais sobre sua existncia quando ocorrem desastres como em Tchernbil. possvel reconhecer em situaes extremas a efemeridade da vida e a importncia do registro dos fatos histricos, pois esses normalmente se consolidam como verdades do mundo e entram para a Histria oficial, como exemplifica o excerto abaixo:

[E]u sonhava! Lamentava no estar l em 1917 ou em 1941. Hoje penso de outra forma: eu no quero viver a histria, no tempo histrico. A minha pequena vida ficaria imediatamente sem defesa. Os grandes acontecimentos a esmagariam sem sequer not-la. Sem se deter. Depois de ns, restar apenas a histria. Restar Tchernbil. E onde est a minha vida? O meu amor? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 270).

Apesar da conscincia da finitude de suas vidas annimas, alguns se apegam crena na histria, de modo que esperam a justia com o passar do tempo: [E]u creio na histria. No julgamento da histria. Tchernbil no terminou, apenas comea [Vassli Nesternko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Cincias da Belars] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 328).

As imagens apocalpticas de Tchernbil so como uma verso tecnolgica de fim do mundo. No obstante, Svetlana Aleksivitch pondera sobre a possibilidade de incidentes catastrficos como esse se repetirem:

Antes de tudo, em Tchernbil se recorda a vida depois de tudo: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Voc se pergunta o que isso: passado ou futuro? Algumas vezes parece que estou escrevendo o futuro (ALEKSIVITCH, 2016, p. 51).

Podemos concluir que a contribuio da tcnica de coleta de testemunhos orais fundamental para preencher as lacunas da histria oficial, que frequentemente no privilegia alguns discursos populares importantes. A tentativa de silenciamento e excluso das vozes que denunciam os horrores e as injustias de uma nao encontra resistncia quando esses sujeitos marginalizados social e culturalmente encontram um lugar de fala como o que oferece a obra de Svetlana Aleksivitch.

 

Referncias

 

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2008.

 

ALEKSIVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear. Trad. Sonia Branco. So Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

FREUD, Sigmund; STRACHEY, James; FREUD, Anna, STRACHEY, Alix; TYSON, Alan; SALOMO, Jayme. Edio Standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 24v.

 

HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Trad. Beatriz Sidou. So Paulo: Centauro, 2004.

 

SELIGMANN-SILVA, Mrcio (org.). Histria, memria, literatura: o testemunho na era das catstrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

 

SELIGMANN-SILVA, Mrcio; NESTROVSKI, Arthur (org.). Catstrofe e representao. So Paulo: Escuta, 2000.

 

[Recebido: 21 jul 2020 – Aceito: 25 set 2020]



[78] Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, doutoranda em Letras/Estudos literrios, rea de concentrao Teoria da Literatura e Literatura Comparada.