Testemunhos da
catstrofe: memrias do trauma em Vozes
de Tchernbbil
Catastrophy testimonies:
memories of trauma in Voices from
Chernobyl
Joyce Rodrigues Silva Gonalves[78]
https://orcid.org/0000-0003-4643-1810
Resumo:
Este
artigo tem como objetivo realizar uma breve anlise da obra de Svetlana
Aleksivitch, Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear,
a partir da perspectiva dos estudos memorialsticos. O livro rene relatos
orais de pessoas que vivenciaram, direta ou indiretamente, a maior catstrofe
tecnolgica do sculo XX, ocorrida na usina de Tchernbil, na ento Unio das
Repblicas Socialistas Soviticas em abril de 1986. O gnero testemunho permite
que sejam ouvidas as memrias traumticas de pessoas comuns, como camponeses, residentes
das aldeias no entorno da usina nuclear, donas de casa, mes e pais de
famlias, bem como de profissionais ligados produo de energia em
Tchernbil, como engenheiros, fsicos nucleares, professores, bombeiros e
militares soviticos.
Palavras-chave: Histria; Oralidade;
Catstrofe; Testemunho; Tchernbil.
Abstract:
This
article aims to conduct a brief analysis of the book of Svetlana Aleksivitch, Voices from Chernobyl: the oral history of a
nuclear disaster, from the perspective of memorialistic studies. The work
gathers accounts of oral speech from people who experienced, directly or
indirectly, the greatest technological catastrophe of the 20th century, that
occurred at the Chernobyl nuclear power plant, in the Union of Soviet Socialist
Republics, in April 1987. The testimony genre allows the memories of ordinary
people, such as peasants, residents of the villages around the nuclear power
plant, housewives, mothers and fathers of families, as well as professionals
related to energy production in Chernobyl, as engineers, nuclear physicists,
teachers, firefighters and Soviet military.
Key-words: History; Orality;
Catastrophe; Testimony; Chernobyl.
Escolhi o gnero das vozes das pessoas espreito e ausculto
meus livros nas ruas, atrs das janelas. Nelas, pessoas reais contam os
principais acontecimentos de seu tempo: a guerra, a queda do imprio
socialista, Tchernbil, e todos eles conservam na palavra a histria do pas, a
histria comum. Tanto a antiga, como a mais recente. E cada um guarda a histria
de seu pequeno destino humano.
Svetlana Aleksivitch, autora bielorrussa, se
dedicou escrita de testemunhos traumticos, registrando em suas obras as
memrias de centenas de pessoas que vivenciaram as guerras e as demais
tragdias soviticas. Aleksivitch afirma, em seu discurso proferido na
Academia Sueca, Estocolmo, na ocasio do recebimento do prmio Nobel de
literatura em 2015, que a memria do povo sovitico uma memria sempre
traumtica, que a histria da (s) nao (es) soviete (s) nunca foi tranquila,
e que a isso essas pessoas esto familiarizadas: A memria nos inspira. Ns
sempre vivemos no terror, somos capazes de viver no terror; o nosso habitat.
E nisso, o nosso povo no tem rivais... (ALEKSIVITCH, 2016, p. 227).
Na obra Histria, Memria, Literatura: o
testemunho na era das catstrofes, Mrcio Seligmann-Silva (2003) avalia que
o sculo XX considerado um perodo catastrfico, uma vez que ocorreram vrias
revolues, duas guerras mundiais, tragdias humanas, polticas e tecnolgicas.
Em Catstrofe e representao, Seligmann-Silva e Nestrovski (2000)
renem ensaios que tecem consideraes a propsito dos limites da linguagem, do
pensamento e da imaginao na representao da catstrofe nas artes. A tica da
representao um ponto crucial, principalmente na esttica da recepo, uma
vez que a crtica das artes, e aqui privilegiamos a literatura, exerce seu
papel tambm em relao s escritas de si, em que a voz narrativa se coloca em
primeira pessoa, como nos gneros autobiogrficos, memorialsticos. A obra de
Svetlana Aleksivitch constituda por testemunhos, em que os lembradores se
colocam a rememorar suas experincias traumticas. A despeito de esses sujeitos
no escreverem suas prprias memrias, concederam entrevistas autora para que
ela o fizesse.
Embora a pequena cidade de Tchernbil seja
localizada na Ucrnia, as consequncias da exploso do reator nmero quatro de
sua usina nuclear se estenderam por grande parte da Europa, particularmente e
de modo mais intenso pela Bielorrssia, j que a cidade se localiza muito
prximo fronteira com esse pas. Os impactos do desastre na populao
vulnervel vo desde os danos fsicos, psicolgicos, sociais, at o desamparo
dos direitos humanos, que foram, de modo geral, negligenciados.
Svetlana Aleksivitch utiliza em suas obras a
tcnica da metodologia oral, do discurso falado atravs dos testemunhos que
recolhe de pessoas comuns. Em Vozes de Tchernbil: a histria oral do
desastre nuclear, os relatos nos permitem ter uma noo do que essas
pessoas sentiram ao vivenciar tamanha tragdia e os impactos dela desde sua
deflagrao at os dias atuais, j que a zona de excluso, extenso
territorial no entorno da usina, est permanentemente condenada. sua terra
envenenada. Sendo a autora uma das pessoas atingidas pelo desastre de
Tchernbil, ainda que indiretamente, no captulo inicial da obra em anlise ela
tece suas prprias consideraes acerca do que significou o incidente e como
suas vidas foram definitivamente mudadas a partir de ento. A primeira reao
foi um emudecimento diante do fato trgico: Entre o momento em que aconteceu a
catstrofe e o momento em que comearam a falar dela, houve uma pausa. Um
momento de mudez. E todos se lembram dele... (ALEKSIVITCH, 2016, p.
41).
O silncio que se instaurou perfeitamente
compreensvel, considerando que em situaes traumticas normal que as
pessoas fiquem em estado de choque, que no saibam nem mesmo como reagir.
Ademais, aquelas que, mesmo perplexas, poderiam vislumbrar alguma explicao,
que poderiam de algum modo elaborar o trauma, no encontravam meios para tal. A
cincia, a literatura, a filosofia tambm no as possibilitavam uma
sistematizao racional da catstrofe, o que explica o porqu
[C]alaram-se os filsofos e escritores,
expulsos de seus canais habituais da cultura e da tradio. Naqueles primeiros
dias, era mais interessante conversar no com cientistas, funcionrios ou
militares com muitas medalhas, e sim com os velhos camponeses. Gente que vivia
sem Tolsti e Dostoiviski, sem internet, mas cuja conscincia de algum modo
continha uma nova imagem de mundo. E ela no se destruiu (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 42).
Os camponeses, pessoas simples em sua maioria,
tambm no sabiam ao certo o que havia ocorrido, mas o impacto em suas vidas
foi tamanho que alterou seus destinos. A maioria foi evacuada dois, trs dias
depois, umas e outras acabaram retornando revelia das orientaes do Estado.
Mesmo as que emigraram tiveram a sade seriamente comprometida, famlias
destrudas, planos arruinados. esse o principal enfoque da obra de Svetlana:
Eu quero narrar a histria de forma a no perder de vista o destino de nenhum
homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 50).
Em Vozes
de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear, a autora privilegia
memrias que so, simultaneamente, individuais e coletivas. Do ponto de vista
do coletivo, importa dizer que as reflexes de Maurice Halbwachs (2004) em seu
livro A memria coletiva contriburam
imensamente para a compreenso das questes sociais que compem a memria. Para
o terico francs, a memria aparentemente mais particular remete a um grupo. O
indivduo carrega em si a lembrana, mas est sempre em interao com a
sociedade, seus grupos e instituies. no contexto dessas relaes que nossas
lembranas so construdas. Como nao, o pensamento coletivo predominou
durante muito tempo entre os soviticos: [M]as isso tambm a imagem da
barbrie, essa falta de medo pela prpria vida. Ns sempre falamos ns e no
eu: ns mostraremos o herosmo sovitico, ns revelaremos o carter
sovitico para o mundo todo! (ALEKSIVITCH, 2016, p. 333).
Do ponto de vista individual, Svetlana
Aleksivitch permite que histrias particulares sejam conhecidas, que sejam
contados destinos conduzidos pela catstrofe. O pensamento individual surge
mesmo nas amarras do coletivo: [D]epois de Tchernbil, sente-se isso. Ns
temos aprendido a dizer eu. Eu no quero morrer! Eu tenho medo! [Natlia
Roslova, presidenta do Comit Mulheres de Moguilov] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
334).
O primeiro dos relatos na obra de Svetlana de
Liudmila Igntienko, esposa grvida de um dos primeiros bombeiros que foram
enviados ao reator para tentar apagar o incndio aps a exploso. A mulher
descreve como tudo aconteceu e como se deram as duas semanas seguintes, em que
viu o esposo se esvanecer rapidamente em um hospital de Moscou em consequncia
da sndrome aguda radiativa. A descrio chocante, carregada de horror. Aps
a morte do marido, a esposa encontra nos sonhos uma alternativa para
sobreviver, neles ela se encontra novamente com seu amado e com a filha que
nascera morta em razo da radiao a que esteve exposta enquanto acompanhava e
cuidava do homem. Liudmila confessa: Assim vou vivendo. Vivo ao mesmo tempo
num mundo real e irreal. No sei onde me sinto melhor, e completa: As pessoas
no querem ouvir falar da morte. Dos horrores [...] Mas eu falei do amor, como
eu amei (ALEKSIVITCH, 2016, p. 37-38).
A fuga da realidade bastante recorrente ao
longo do livro e se mostra de diversos modos. A prpria autora reconhece: A
realidade resvala, no cabe no homem (ALEKSIVITCH, 2016, p. 49). H um relato
interessante que exemplifica esse resvalamento do real, em que a voz que
testemunha o desastre se coloca alm da realidade, que parece viver uma vida
imaginria, surreal:
E eu me lembro do duende. Ele vive h
muito tempo aqui comigo, no sei exatamente onde, saiu do forno. De capuz preto
e roupa preta com botes brilhantes. No tem corpo, mas se move. Durante um
tempo eu pensei que fosse meu marido que vinha me ver. Veja s... Mas no. um
duendezinho... Vivo sozinha e no tenho com quem falar, de modo que noite eu
conto para mim mesma o dia que passou. [Maria Fedtovna Veltchko, cantora
popular e contadora de histrias] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 210).
A alucinao surge, nesse caso, como
consequncia do trauma vivido e da solido ps-catstrofe. Alis, muitas
pessoas vivenciaram/vivenciam a solido ps-Tchernbil, pois vrias perderam suas famlias
ou acabaram se isolando de algum modo.
Aps o perodo inicial em silncio, os atingidos
pela catstrofe comearam a retomar o fato e elaborar suas memrias
traumticas. Mas, afinal,
[P]ara que as pessoas recordam? Para
restabelecer a verdade? A justia? Para se libertar e esquecer? Ou por que
compreendem que participaram de um evento grandioso? Por que buscam no passado
alguma proteo? E, alm disso, a recordao uma coisa muito frgil, efmera,
no um conhecimento exato, uma suposio do homem sobre si mesmo. Isso
ainda no conhecimento, apenas sentimento. [...]. Para que as pessoas
recordam? a minha pergunta. Mas eu falei com voc, pronunciei algumas
palavras. E compreendi alguma coisa... Agora no sinto to sozinho. Mas o que
acontece com os outros? [Piotr S., psiclogo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 55-57).
O relato acima bastante consciente da
dificuldade da assimilao dos fatos; considerando-se que foi proferido por um
psiclogo, perfeitamente compreensvel. Mas, como a testemunha j sinalizara
em sua fala, como as pessoas lidam com suas prprias lembranas, de modo geral,
algo problemtico a ponto de se questionarem: [E]nto, o que melhor:
lembrar ou esquecer? [Evguni Aleksndrovitch Brvkin, professor da
Universidade Estatal de Gmel] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 131).
H uma relao
intrnseca entre lembrana e esquecimento. O sujeito que rememora est sempre
colocando em evidncia uma memria selecionada, consciente ou
inconscientemente, enquanto rechaa outras partes das experincias vividas.
Quando o lembrador no se d conta desse movimento, como se houvesse uma
amnsia decorrente do trauma vivenciado. O relato abaixo exemplifica essa falha
da memria, uma lacuna que pode ser considerada em termos neurolgicos e tambm
psicolgicos/psicanalticos:
[E]u me esqueci de tudo. S lembro que
estive ali, mas no me recordo de mais nada. Eu me esqueci de tudo. No terceiro
ano depois da desmobilizao, aconteceu uma coisa na minha memria... Nem os
mdicos entendem... No consigo sequer contar dinheiro, me perco. Perambulo de
um hospital a outro... J contei isso, ou no? [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 104).
Trauma e amnsia esto, portanto, frequentemente
e intimamente relacionados, assim como as lembranas encobridoras,
sinalizadas por Sigmund Freud et al. (1969) como uma forma de escamotear
memrias traumticas ao se rememorar fatos mais triviais do passado.
Algumas pessoas tinham a noo da contribuio
que seria prestar seus testemunhos para a histria oficial: [L]embrar? Eu
quero e no quero lembrar. Se os cientistas no sabem nada, se os escritores
no sabem nada, ento os ajudaremos com a nossa vida e a nossa morte [Ktia
P.] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 147). Outras precisavam contribuir consigo mesmas:
No me pergunte. No vou dizer. No vou falar nada sobre isso... No, eu posso
conversar com voc para tentar entender, se for possvel [Nina Kovaliova,
esposa de um liquidador] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 269).
Por outro lado, houve aqueles que sentiam
necessidade de testemunhar suas experincias traumticas, como Nikolai Kalguin
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 65): [E]u quero testemunhar. Isso aconteceu h dez
anos e todo dia se repete comigo. Agora mesmo. Carrego isso sempre comigo. No
sou escritor, no saberia como contar... Mas sou testemunha. Observamos nessa
fala que o trauma se repete na memria, que no foi elaborado nem superado. No
caso desse personagem, a fatalidade maior se concretizou na morte da filha,
motivo pelo qual o homem se revolta e reitera: [E]u quero testemunhar, a minha
filha morreu por culpa de Tchernbil. E ainda querem nos calar (ALEKSIVITCH,
2016, p. 68). Percebemos nesse discurso que houve um silenciamento imposto
pelos responsveis pela tragdia e pelo prprio Estado, por isso a importncia
da histria oral para preencher as lacunas da histria oficial.
Um motivo muito comum que leva algum a
testemunhar sobre determinado acontecimento a conscincia da finitude da
vida. medida que o tempo passa, sente-se a necessidade de revelar algo
importante, principalmente quando se trata de um fato histrico, como o caso
do acidente em questo. Os documentos com registros sobre o desastre de
Tchernbil foram destrudos por vrias razes: primeiro porque,
burocraticamente, os papis oficiais na Unio Sovitica s eram arquivados
durante trs anos, depois porque eram radiativos, e, por ltimo, porque houve a
reestruturao do exrcito e a dissoluo das unidades administrativas e
militares depois da Perestroika. Porm, alguns conjecturavam uma circunstncia
muito plausvel: [] possvel que tenham sido destrudos para que ningum
soubesse a verdade. E ns somos testemunhas. Mas em breve morreremos [Annimo]
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 117).
Alm da omisso de documentos, houve tambm
omisso de verdades. As autoridades diziam que estava tudo sob controle,
enquanto os habitantes de aldeias ao redor de Tchernbil recebiam altssimas
dosagens de radiao. Algumas comunidades foram evacuadas, outras no. Os
camponeses continuaram a cultivar, colher e consumir normalmente os alimentos
que plantavam. Muitos deles foram persuadidos a permanecerem em suas casas,
pois eram tambm mo de obra para o Estado.
No apenas pessoas comuns, que viviam no campo e
em pequenas aldeias foram enganadas, tambm militares tiveram informaes
omitidas enquanto serviam ao Estado, alguns foram enviados para o trabalho em
Tchernbil aps o acidente sem ao menos terem conhecimento disso, apenas foram
convocados e encaminhados. Um dos militares que testemunha na obra de Svetlana
afirma que no os informavam sequer os valores das doses radiativas que estavam
recebendo durante o trabalho: [o]s roentgen que nos tocavam eram segredo
militar. [...]. Nem sequer ao partirmos disseram quanto... Cachorros! Filhos da
puta [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 68). Vrias denncias da mesma natureza
so encontradas ao longo das narrativas na obra em anlise.
Havia ainda controvrsias entre cientistas sobre
os riscos que corriam os militares em servio. Alguns afirmavam que no havia
problema nenhum, outros alertavam para o mal que faria a exposio radiao.
Uns acreditavam que estavam seguros, outros sabiam do perigo e das provveis
consequncias.
De fato, era plenamente compreensvel que as
pessoas fossem facilmente ludibriadas pelas autoridades, e at mesmo que no
acreditassem, quando eram advertidas, no perigo a que estavam sujeitas com a
alta radiao, uma vez que estavam lidando com um inimigo invisvel:
A culpa da radiao ou de quem? Como
ela ? Vai ver, mostraram-na em algum filme. Voc viu? Ela branca ou o qu?
De que cor? Uns contam que ela no tem cor nem cheiro, outros contam que
negra. Como a terra! Se no tem cor, como Deus: est em todo lugar, mas
ningum v. Querem nos assustar. As mas esto penduradas nas rvores e as
folhas tambm, as batatas esto crescendo no campo... O que eu penso que no
houve nenhum Tchernbil, que inventaram isso tudo. Enganaram as pessoas [Anna
Petrvna Badieva, residente na zona contaminada] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 83).
Podemos observar no trecho acima a descrena
naquilo que no materializado, no que no visto a olhos nus, o que acentuou
o perigo das partculas radiativas. Para a personagem, se a vida continua
seguindo seu curso normalmente, ento no houve catstrofe, est tudo certo. Em
outro relato percebemos tambm essa necessidade de materializao do perigo.
Duas idosas garantem ter visto o monstro da radiao:
Pois olhe: est vendo aquela casa ali
meio construda? Os moradores a abandonaram e foram embora. Por medo. Uma noite
dessas fomos ver por dentro. Olhamos pela janela. E ali estava, debaixo de uma
viga, a radiao. Com uma cara ruim e olhos de fogo! Negra, negra!
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 317).
Tal fala soa como uma alucinao, uma neurose
traumtica, como descrita pela psicanlise de Freud et al. (1969) em seu texto O
mecanismo psquico do esquecimento. Esse mesmo mecanismo pode ser observado
no caso do relato da mulher que v um duende em casa. Enfim, cada um encontra
uma forma para conduzir suas experincias traumticas, seja para lembr-las ou
para esquec-las, ainda que atravs de uma pulso de morte, que seria uma
soluo e, para uns, at mesmo uma bno: [D]e alguns Deus se apieda, mas a
mim ainda no concedeu a morte. Continuo viva [Annima] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 71).
A morte, alis, um tema predominante nos
relatos reunidos na obra de Aleksivitch e estava
presente entre indivduos de todas as faixas-etrias, inclusive os natimortos.
Como consequncia do desastre aumentaram os ndices de abortos, tanto
espontneos quanto induzidos, e houve um grande desequilbrio entre as taxas de
natalidade e mortalidade na regio no perodo ps-catstrofe.
Alguns soldados que estiveram nas guerras em que
a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas lutou afirmam que a tragdia de
Tchernbil se equipara situao blica. medida que as pessoas iam morrendo
em decorrncia de doenas desencadeadas pela radiatividade, os enfermos j
imaginavam seus momentos finais: [N]o est claro como vou morrer. Se eu
pudesse escolher a minha morte, seria uma morte comum. No como as de
Tchernbil. A nica coisa que sei que com o meu diagnstico no se dura
muito. [...]. Estive no Afeganisto. Ali a coisa era mais fcil. Com uma
bala... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120).
A iminncia da morte pairava sobre todo o povo
de Tchernbil, at mesmo as crianas tinham conscincia disso. Uma das
testemunhas relata uma cena que presenciou em um nibus, em que um menino no
cedeu seu lugar a um idoso, que o repreendeu dizendo: Quando voc for velho,
tambm no vo te ceder o lugar. Eu nunca vou ficar velho, respondeu o
menino. E por qu?. Todos ns vamos morrer logo [Llia Kuzmenkova,
professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 299).
Um dos captulos finais de Vozes de Tchernbil dedicado ao coro de crianas e adolescentes
que a autora entrevistou em um hospital, e os relatos so profundamente
tristes, trgicos. Um adolescente conta como vrios de seus amigos e colegas de
tratamento j se foram e se mostra resignado com a morte iminente:
Mas como me aborrecem essas paredes cinza
do hospital. Como estou fraco ainda. [...]. E a minha chega. Ontem ela (a me)
pendurou um cone na enfermaria. Cochicha alguma coisa naquele canto, se pe de
joelhos. Todos se calam: professores, mdicos, enfermeiras. Acham que eu no
suspeito de nada. Que no sei que vou morrer em breve (ALEKSIVITCH, 2016, p.
348-349).
Em vrios dos testemunhos orais podemos observar
a perspectiva infantil da morte, como uma criana que sabia que o av estava
morrendo e queria ver como que sua alma sairia voando. As brincadeiras
frequentemente giravam em torno da catstrofe da usina: [E]u tenho um
irmozinho pequeno. Ele adora brincar de Tchernbil. Constri um abrigo, cobre
de areia o reator. Ou ento se veste de espantalho e corre atrs de todo mundo:
Uh-uh-uh! Eu sou a radiao! ALEKSIVITCH, 2016, p. 348). Na escola desenhavam
a Tchernbil submersa no caos do acidente nuclear, ainda que pouco ou nada
fosse dito sobre a questo. O silncio sobre a catstrofe nas escolas era uma
realidade, uma vez que havia falta de informaes para repasse, censura do
Estado e at mesmo um bloqueio psicolgico que impedia que as pessoas em
Tchernbil conversassem entre si sobre o desastre. Geralmente falavam sobre o
fato com estrangeiros, jornalistas e parentes que no residiam na zona
contaminada.
As memrias de crianas so realmente
impactantes, das mais singelas s mais trgicas e desoladoras. Viam tudo que
possuam ser enterrado em grandes buracos, suas casas com todos os seus
pertences, livros, brinquedos:
[E]enterram tudo com areia e barro e
comprimem. No lugar da aldeia fica um campo liso. A nossa casa est enterrada
l. E a escola, o soviete local. E tambm o meu herbrio e dois lbuns de
selos, que eu sonhava em buscar. Eu tinha uma bicicleta. Tinham acabado de
comprar para mim (ALEKSIVITCH, 2016, p. 346).
O desastre significou uma guerra atmica, desde
a movimentao de pessoas na regio at a luta pela vida. Alguns utilizavam a
expresso campo de concentrao, campo de Tchernbil para se referirem ao
territrio contaminado pelos elementos qumicos radiativos. [...] hoje a
guerra outra. No dia 26 de abril de 1986, ns sobrevivemos a uma guerra. Uma
guerra que no terminou (ALEKSIVITCH, 2016, p. 120). Os militares e todos os
que serviram em Tchernbil foram considerados por muitos como heris:
Eu os considero heris, e no vtimas de
guerra, de uma guerra que como se no tivesse acontecido. Chamam de acidente,
de catstrofe. Mas foi uma guerra. At os nossos monumentos de Tchernbil
parecem militares [Serguei Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao
Republicana Escudo para Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).
Assim como acontece em um cenrio de
guerra, as pessoas serviam, muitas voluntariamente, outras por presso.
Contudo, no recusavam a misso, at mesmo cientistas se dispuseram ao trabalho
braal, como conta uma testemunha Svetlana:
[S]ou engenheiro qumico, doutor em
cincias qumicas, e me obrigaram a abandonar o emprego de responsvel por um
laboratrio qumico num importante complexo industrial. E como me utilizaram?
Pem nas minhas mos uma p. Esse foi praticamente o meu nico instrumento. Foi
aqui que nasceu o aforismo: contra o tomo, a p [Ivan Jmkhov] (ALEKSIVITCH,
2016, p. 247).
Aqueles que sobreviveram catstrofe tiveram
que lidar, como se no bastasse o trauma imensurvel do desastre e as condutas
de guerra, com o preconceito e a discriminao. [A]s pessoas tm medo de ns.
Dizem que somos contagiosos. Por que Deus nos castigou? [Annima]
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 74). O fato de terem sido altamente expostos radiao
os tornou um povo txico:
Podamos ter ido embora daqui mas
considerei com meu marido e decidimos ficar. Temos medo das outras pessoas.
Aqui ao menos so todos de Tchernbil. No assustamos um ao outro; se algum
oferece mas ou pepinos do seu jardim, da sua horta, ns pegamos e comemos.
No escondemos os alimentos com vergonha no bolso para depois jog-los fora.
Todos ns temos a mesma lembrana, a mesma sorte. Em qualquer outro lugar, em
qualquer parte ns somos estranhos. Apestados. Olham para a gente de rabo de
olho. Com receio. As pessoas nos chamam gente de Tchernbil, crianas de
Tchernbil, evacuados de Tchernbil. J estamos acostumados [Nadijda
Burakova, habitante do povoado urbano de Jiniki] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 290).
Podemos observar no relato supracitado que os
danos foram muito alm de fsicos, psicolgicos e materiais, mas tambm foram
morais, afetaram a vida humana, social, e at ntima. Sabendo da impotncia
sexual masculina como uma das sequelas da alta radiao, um jornalista tentou
tratar do assunto com alguns militares que atuaram no acidente; entretanto,
nenhum deles se abriu para falar sobre a questo; conseguiu somente confidncias
de algumas mulheres que os conheciam:
[O]lhe, agora mesmo estavam sentados aqui
com vocs uns rapazes (elas riem), pilotos. Uns caras de dois metros. Cheios de
medalhas. Para os sovietes eles so bons, mas para a cama no prestam [Serguei
Vasslievitch Sboliev, diretor da Associao Republicana Escudo para
Tchernbil] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 222).
O fantasma da consequncia ntima, sexual,
cercava os homens que trabalharam diretamente no acidente nuclear, pois as
mulheres, tendo conhecimento disso, no desejavam se unir a eles para namorar
nem casar:
[G]ostei de uma garota: Vamos namorar?.
Para qu? Voc agora um dos de Tchernbil. Quem vai querer casar com voc?.
Conheci outra garota. Nos beijamos, namoramos. A coisa estava ficando sria.
Vamos nos casar, eu propus. E ela me perguntou algo mais ou menos assim:
Ser que voc pode? Est em condies?. Eu iria embora daqui, e certamente
ainda vou. Mas tenho pena dos meus pais... [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
115).
Tchernbil passou a ser considerada como doena:
[U]m dia, morreu inesperadamente uma
jovem grvida. Sem diagnstico algum, nem sequer o patologista deu o
diagnstico. Uma menina se enforcou. Do quinto ano. Assim, sem mais nem menos.
Os pais ficaram loucos. O diagnstico era o mesmo para todos: Tchernbil,
quando acontecia algo, todos diziam: Tchernbil... [Nina Konstantnovna,
filloga, professora] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 165).
Alm de diagnstico mdico, Tchernbil passou a
servir tambm como justificativa para os problemas da nao, assim como as
guerras. A catstrofe trouxe novamente as medidas extremas por parte do governo,
redistribuio e racionamento: [a]gora surgia a possibilidade de jogar tudo na
conta de Tchernbil. Se no fosse Tchernbil... (ALEKSIVITCH, 2016, p.
335).
A catstrofe criou um povo, surgiu um novo
grupo: [o] mundo se dividiu: h os de Tchernbil, ns; e h vocs. O resto dos
homens [Nikolai Jrkovi, professor] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 172).
A metodologia de coleta de informaes e
testemunhos utilizada por Svetlana Aleksivitch proporciona a exposio de
vrios casos, crendices e supersties, o que comum na histria oral. Essas
vozes reunidas formam um coro, como denominado pela prpria autora em alguns
captulos do livro. Muitas ressoam a religio e a f, um suporte comum e
efetivo para a sobrevivncia daqueles que recorrem crena e se apegam a ela.
O humor, apesar de contraditrio, s vezes, se
tornava tambm um modo de escapismo, uma espcie de fuga da realidade cruel em
que o povo de Tchernbil estava inserido. H certo estranhamento quando
refletimos sobre um fato trgico ser ou no risvel, mas anedotas eram comuns
entre a populao da regio. H um episdio cmico que exemplifica a
possibilidade de rir para no chorar:
[C]hora quem no labora... Veja uma
ucraniana que vende no mercado umas mas grandes e vermelhas. Ela grita:
Comprem mas! Mas de Tchernbil!. Algum a aconselhou: No diga, moa,
que de Tchernbil. Assim ningum vai comprar. Que nada! Compram sim, e
como! Uns levam para a sogra, outros para o chefe [Annima] (ALEKSIVITCH,
2016, p. 78).
Ao mesmo tempo, as pessoas enxergavam a beleza e
o horror que as rodeava. As terras soviticas no entorno de Tchernbil so
descritas no livro como paisagens belas: [E] essa mesma beleza era o que fazia
daquele horror algo ainda mais pavoroso. O homem tinha que abandonar aqueles
lugares (ALEKSIVITCH, 2016, p. 136). Alguns dos testemunhos registrados pela
autora lamentam que as pessoas no puderam mais desfrutar dos prazeres
cotidianos, como nadar nas guas lmpidas de seus rios, ou colher flores e
frutos dos seus bosques.
O que percebemos nos registros de Svetlana
Aleksivitch que houve muita negligncia e desordem por parte das autoridades
e dos responsveis pela conduo do caso: [N]o escreva sobre as maravilhas do
herosmo sovitico. Tambm houve, verdade. Mas primeiro voc deve falar da
negligncia e da desordem, depois das proezas [Annimo] (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 111), e que, apesar da disposio ao sacrifcio que o povo demonstrou, o
descaso do governo o que tiveram em troca:
[S]omos pobres, sobrevivemos de
donativos. O comportamento do Estado, por outro lado, de pura vigarice,
abandonou essa gente por completo. Depois que morrem, inscrevero o nome delas
em ruas, escolas ou alguma unidade militar, mas s depois que morrerem
(ALEKSIVITCH, 2016, p. 216).
[E] nas sesses da comisso
governamental, informava-se de maneira simples e habitual que: para tal coisa
deve-se perder duas ou trs vidas; para outra, uma vida (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 220).
Nem mesmo beira da morte era comum o
arrependimento por ter servido a ptria em Tchernbil: [U]ma vez eu lhe
perguntei: Voc agora se arrepende de ter ido?. E ele moveu a cabea,
dizendo: no (ALEKSIVITCH, 2016, p. 359).
A censura era uma constante em relao ao
acidente nuclear. Jornalistas, cinegrafistas, fotgrafos eram rechaados
durante sua atuao, tinham seus instrumentos de trabalho confiscados: [E]ra
proibido filmar a tragdia, s se podia filmar o herosmo! (ALEKSIVITCH,
2016, p. 219). Assim como todas as instncias
sociais eram controladas pelo governo, tambm a medicina e outras cincias eram
submissas poltica, por isso geralmente se omitiam as informaes mais
polmicas e a verdade sobre os ndices de radiatividade na regio.
Mesmo em meio catstrofe, a cultura de
privilgios continuava reinando. Um relato de Vozes de Tchernbil denuncia um caso de desamparo de uns em favor
de outros, que tinham prioridade por serem ricos:
[V]m minha memria alguns fragmentos.
Cenas. Um presidente de colcoz retira em dois caminhes todas as suas coisas, a
sua famlia, os mveis; e o responsvel do Partido exige um carro para eles.
Exige justia. Eu sou testemunha de que por vrios dias no conseguiam sequer
retirar de l as crianas da creche. No havia transporte (ALEKSIVITCH, 2016,
p. 159-160).
Houve em torno do desastre nuclear muitos mitos.
As consequncias da tragdia eram difundidas entre as pessoas locais e as que
no residiam na regio. O imaginrio sempre um espao frtil, e, diante de um
fato como esse, a mitologia passou a fazer parte do cotidiano popular:
[O]s jornais e as revistas competem entre
si para ver quem escreve as coisas mais terrveis, e esses horrores agradam,
sobretudo queles que no os viveram. Todo mundo leu algo sobre os cogumelos do
tamanho de uma cabea humana, mas ningum os encontrou. Como os pssaros de
duas cabeas (ALEKSIVITCH, 2016, p. 173).
Mitologias parte, mudanas de fato aconteceram
tanto na paisagem, quanto no carter nacional:
[N]o apenas a paisagem mudou, pois onde
antes se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas tambm o
carter nacional mudou. Todos esto depressivos. O sentimento de estarem
irremediavelmente condenados. Para uns, Tchernbil uma metfora, um smbolo.
Para ns, a nossa vida. Simplesmente a vida (ALEKSIVITCH, 2016, p. 291).
A catstrofe de Tchernbil gerou um trauma mais
amplo, alm dos aspectos fsicos, psicolgicos e sociais, surgiu um trauma da
cultura:
Por que se escreve to pouco sobre
Tchernbil? Os nossos escritores continuam a escrever sobre a guerra, sobre os
campos de trabalho stalinistas, mas calam sobre Tchernbil. H um, dois livros
e acabou-se. Voc acha que mera casualidade? O acontecimento ainda est
margem da cultura. um trauma da cultura. E a nica resposta o silncio.
Fechamos os olhos como crianas pequenas e acreditamos que assim nos
escondemos, que o horror no nos alcanar [Evguni Brvkin, professor
universitrio] (ALEKSIVITCH, 2016, p. 130).
Como j sinalizado por Svetlana em seu discurso
na Academia sueca na cerimnia do prmio Nobel de literatura, a cultura da
tragdia inerente ao povo sovitico. Outro relato de uma testemunha tambm
chama a ateno para a questo quando reflete [s]obre o destino da cultura
russa, sobre a sua inclinao para o trgico. Sem a sombra da morte, no se
podia entender nada. S sobre a base da cultura russa seria possvel entender a
catstrofe. S a nossa cultura estava preparada para entende-la (ALEKSIVITCH,
2016, p. 296).
Embora o povo sovitico estivesse sempre
acostumado cultura da tragdia, houve um estado de choque decorrente do
desastre de Tchernbil, uma impotncia coletiva diante do trauma: [M]e
incomoda a minha experincia como professora. [...] Eu me sinto impotente. H
cultura antes de Tchernbil, e nenhuma cultura depois de Tchernbil. [...] onde
esto os nossos escritores, os nossos filsofos? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 283).
Quando lidamos com testemunhos de violncia, com
lembranas traumticas, comum nos depararmos com o discurso do indizvel.
Faltavam palavras para descrever as experincias, a lngua no d conta de
traduzir a memria, como afirma Giorgio Agamben sobre a tragdia da Segunda
Guerra Mundial e o Holocausto. Em sua obra O
que resta de Auschwitz, Agamben (2008, p. 11)
observa as dificuldades dos testemunhos de guerra em que trata-se de narrar o
que aconteceu e de afirmar que o que aconteceu no faz parte do narrvel. Algumas
testemunhas encontram outras formas de expresso quando o discurso no
possvel ou suficiente: [P]or que me tornei fotgrafo? Porque me faltam as
palavras (ALEKSIVITCH, 2016, p. 298).
Apesar das experincias do horror e do trauma,
houve um aprendizado da humanidade depois do desastre. Na concepo de uma
testemunha entrevistada por Svetlana Aleksivitch: [N]o s ns, mas toda a
humanidade se tornou mais sbia depois de Tchernbil. Amadureceu, entrou em
outra idade [Guendi Gruchevi, deputado bielorrusso] (ALEKSIVITCH, 2016, p.
185).
As pessoas, geralmente, passam a refletir mais
sobre sua existncia quando ocorrem desastres como em Tchernbil. possvel
reconhecer em situaes extremas a efemeridade da vida e a importncia do
registro dos fatos histricos, pois esses normalmente se consolidam como
verdades do mundo e entram para a Histria oficial, como exemplifica o excerto
abaixo:
[E]u sonhava! Lamentava no estar l em
1917 ou em 1941. Hoje penso de outra forma: eu no quero viver a histria, no
tempo histrico. A minha pequena vida ficaria imediatamente sem defesa. Os
grandes acontecimentos a esmagariam sem sequer not-la. Sem se deter. Depois de
ns, restar apenas a histria. Restar Tchernbil. E onde est a minha vida? O
meu amor? (ALEKSIVITCH, 2016, p. 270).
Apesar da conscincia da finitude de suas vidas
annimas, alguns se apegam crena na histria, de modo que esperam a justia
com o passar do tempo: [E]u creio na histria. No julgamento da histria.
Tchernbil no terminou, apenas comea [Vassli Nesternko, ex-diretor do
Instituto de Energia Nuclear da Academia de Cincias da Belars] (ALEKSIVITCH,
2016, p. 328).
As imagens apocalpticas de Tchernbil so como
uma verso tecnolgica de fim do mundo. No obstante, Svetlana Aleksivitch
pondera sobre a possibilidade de incidentes catastrficos como esse se
repetirem:
Antes de tudo, em Tchernbil se recorda a
vida depois de tudo: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para
lugar nenhum, cabos para parte alguma. Voc se pergunta o que isso: passado
ou futuro? Algumas vezes parece que estou escrevendo o futuro (ALEKSIVITCH,
2016, p. 51).
Podemos concluir que a contribuio da tcnica
de coleta de testemunhos orais fundamental para preencher as lacunas da
histria oficial, que frequentemente no privilegia alguns discursos populares
importantes. A tentativa de silenciamento e excluso das vozes que denunciam os
horrores e as injustias de uma nao encontra resistncia quando esses
sujeitos marginalizados social e culturalmente encontram um lugar de fala como
o que oferece a obra de Svetlana Aleksivitch.
Referncias
AGAMBEN,
Giorgio. O que resta de Auschwitz.
Trad. Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo, 2008.
ALEKSIVITCH,
Svetlana. Vozes de Tchernbil: a histria oral do desastre nuclear.
Trad. Sonia Branco. So Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD,
Sigmund; STRACHEY, James; FREUD, Anna, STRACHEY, Alix; TYSON, Alan; SALOMO,
Jayme. Edio Standard brasileira
das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969. 24v.
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Trad. Beatriz Sidou. So Paulo:
Centauro, 2004.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio (org.). Histria, memria, literatura: o
testemunho na era das catstrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Mrcio; NESTROVSKI, Arthur
(org.). Catstrofe e representao. So Paulo: Escuta, 2000.
[Recebido:
21 jul 2020 – Aceito: 25 set 2020]
[78] Professora da Universidade Federal de
Minas Gerais, doutoranda em Letras/Estudos literrios, rea de concentrao
Teoria da Literatura e Literatura Comparada.