So
Joo do folclore e mangericos: uma representao memorialstica do folclore
amaznico
So
Joo do folclore e manjericos: a memorialistic representation of Amazonian
folklore
Edvaldo Santos Pereira[1]
https://orcid.org/0000-0003-4723-8617
Maria do Perptuo Socorro Galvo
Simes[2]
https://orcid.org/0000-0001-7678 -2895
Resumo: Gerado a partir de uma leitura
analtica do poema So Joo do Folclore e Mangericos, do poeta paraense Bruno
de Menezes, publicado no livro Batuque,
em 1931, este trabalho est pautado no pensamento de Aleida Assmann, em Espaos da recordao (2011), sob a
abertura do retorno ao passado para compreenso a situaes do presente, marcadas
pela transitoriedade do fazer potico que traspassa o tempo em atualizao
constante. Nesse sentido, h no poema uma abordagem aos festejos que acontecem na
quadra junina, em Belm do Par, retratados numa narrativa memorialstica, que
proporciona a avaliao do lugar social de um tempo passado, com a apresentao
de caractersticas dessa manifestao folclrica, originada na fuso de culturas
que contriburam para a formao do povo amaznico, evidenciando-se as
peculiaridades do habitante formado pela mistura entre o ndio, o colonizador
portugus e pelas etnias africanas. Essas culturas originaram identidade(s)
hbrida(s) na Amaznia, mas especificamente na cidade de Belm, um dos
primeiros ncleos urbanos fundados na regio, tornando-se um dos principais pontos
de partida para a difuso dessas manifestaes em outros locais da regio.
Considera-se ainda, o processo de mudana das tradies populares, em decorrncia
das modificaes do tempo, mostrado saudosamente no final do poema.
Palavras-chave:
Literatura; Memria; Folclore amaznico
Abstract: Generated
from an analytical reading of the poem So Joo do folclore e mangericos, by
the Par poet Bruno de Menezes, published in the book Batuque, in 1931,
this work is based on Aleida Asmanns thought Espaos da Recordao
(2011), under the opening of the return to the past to understand the
situations of the present, marked by the transience of the poetic doing that
pierces the time in the constant updating. In this sense, there is in the poem
an approach to the festivities that take place in the June court, in Belm do
Par, portrayed in a memorial narrative which provides the evaluations of the
social place of a past time, with the presentations of the characteristics of
this folkloric manifestation, originated in the fusion of cultures that
contributed to the formations of the Amazonian people, highlighting the
peculiarities of the inhabitant formed by the mixture between the Indian, the Portuguese colonizer and the Africans
ethnicities. These cultures originated hybrid identity(ies) in the Amazon but
specifically in the city of Belm, one of the first urban centers founded in
the region, becoming on of the main starting points for the dissemination of
these manifestations in other places in the region. It is also, considered the
process of change of popular traditions, as a result of the changes of time,
shown wistfully at the end of the poem.
Keywords:
Literature; History; Amazon Folklore
Introduo
Numa abordagem voltada
retratao de aspectos de manifestaes culturais que atravessam o tempo, a
criao potica, nascida da oralidade, ainda se faz presente como forma de
conservar uma tradio. Isso
corresponde a um passo que leva da escrita como signo lingustico intencional
ao vestgio como cunhagem material que, embora no seja concebido como signo,
pode ser lido posteriormente como tal (ASMANN, 2011, p. 227), o que aproxima
um texto literrio, em especial a criao potica, de manifestaes repletas de
oralidade.
Desde a antiguidade egpcia,
diversos testemunhos atestam que a escrita a mdia preferencial para a
memria em relao a todas as demais mdias, e garantem a ela a fama de
dispositivo muito confivel quando se trata de obter perpetuao ASSMANN,
2011. P. 24). Dentre outras mdias de acesso memria cultural, a expresso
potica, como modalidade da escrita, evidencia imagens que demonstram vivncias
cotidianas. Assim, por intermdio da exposio de um mundo individual, chega-se
retratao de um inconsciente cultural coletivo.
No incio do livro Entre a literatura e a histria, em
questionamentos acerca da necessidade da poesia, Alfredo Bosi coloca em evidncia
o retorno ao passado para uma compreenso a situaes do presente. Esta uma
das condies do fazer potico que transita no tempo para, de certa forma,
reproduzi-lo com as reminiscncias de uma memria. Se voltarmos aos primrdios
da poesia, possvel percebermos o seu nascimento a partir da linguagem oral,
numa relao estabelecida com a prpria evoluo da humanidade. Pela
identificao com a linguagem dos primeiros homens, a poesia lhes deu abrigo
da memria, os sons e as modulaes do afeto, o jogo da imaginao e o estmulo
para refletir, s vezes agir (BOSI, 2013, p. 9), num processo contnuo de
reavivamento.
Dentro dessa perspectiva, o
poema So Joo do folclore e mangericos, de autoria do poeta paraense Bruno
de Menezes a representao de uma memria, expressa de forma sinestsica pela
fuso de sons, cheiros e sabores que, impregnados em um eu lrico, que
demonstra todo o seu afeto por essa manifestao cultural, levando o leitor a
refletir acerca da manuteno dessas festas, apesar das diferenas nelas existentes,
em decorrncia de mudanas que o tempo traz.
O
poema
Em linguagem coloquial marcada
pela descontinuidade vocabular, com pausas e disposio assimtrica entre
sequncias fortes e fracas, assim foi criado o poema, seguindo uma combinao
irregular de slabas tnicas e tonas, dentro de uma linha com caractersticas
do poema moderno, constitudo em alto nvel de desorganizao fnica, prxima dos
princpios de que a composio literria deva destacar do fluxo oral a
essncia nua da essncia, ou deva potencializar o carter ondeante, aberto e
vrio da fala (BOSI, 1977, p. 77). Exemplo disso est na abordagem dos
festejos que acontecem na quadra junina, em Belm do Par, numa narrativa de
memria, com avaliao do lugar social de um tempo passado, com realce s
caractersticas dessa manifestao folclrica originada a partir da mistura de
diferentes culturas, que se fundiram para a formao do povo amaznico.
O ttulo do poema j traz uma
diferena grfica no vocbulo mangericos, que talvez de forma proposital, foi
mantido pelo poeta em vrias edies, sendo alterado somente em edies mais
recentes, posteriores ao seu falecimento.
No primeiro verso h, em
princpio, um vocativo referente ao ms cujo nome foi dado em homenagem deusa
romana Juno, no calendrio gregoriano, aderido pelo mundo ocidental. Em
sequncia, h outra referncia para o mesmo ms, tambm dedicado a So Joo,
numa demonstrao da diferena entre os vocbulos Junino e Joanino, com a
designao dos festejos devotados ao santo, e no deusa romana. H tambm a
meno, em sequncia, dos principais santos comemorados nesse ms: Santo
Antnio de Lisboa, So Joo e So Pedro. Semelhante ao que foi feito no incio
do poema, os santos esto especificados, sendo Santo Antnio, o portugus, de
Lisboa e no o italiano, de Pdua, So Joo o precursor de Jesus, que segundo
a crena catlica, teve seu nascimento anunciado com uma grande fogueira e
queima de fogos. A So Pedro atribuda a funo de chaveiro do cu,
determinada por Jesus, com a afirmao: eu te darei as chaves do Reino dos
cus, e tudo o que ligares na terra ser ligado nos cus, e tudo o que
desligares na terra ser desligado nos cus (MATEUS, 16:19). O uso de pronome
relacionado a uma segunda pessoa, no verso Tua alegria feita de fogueiras
crepitantes, uma demonstrao da marca de oralidade presente no poema, j
que essa uma forma de o eu lrico direcionar-se a algum, como a tentativa de
um dilogo. Em continuidade, ainda na primeira estrofe, encontram-se versos que
evidenciam caractersticas dessas festas, como as fogueiras, os fogos e os
bales coloridos, que representam uma alegria nem sempre verdadeira.
O incio da segunda estrofe
tambm marcado pelo direcionamento a uma segunda pessoa, o que refora o trao
da oralidade. H, ainda, a meno tradio trazida pelos colonizadores
portugueses, na qual foram inseridas modificaes, como demonstrado no
segundo verso, pela referncia aos caadores e pajs, que passaram a fazer
parte dessa folia. Outra caracterstica mantida da tradio portuguesa est
representada na relao compadre/comadre e afilhados, originada na Idade Mdia,
por influncia da Igreja Catlica, que tambm foi absorvida pelos africanos que
serviam aos senhores lusitanos, donos das Casas Grandes. Naquele momento, os
escravos deixavam o trabalho, passando a se ocuparem com a diverso aos seus
senhores.
O uso da interjeio como
vocativo, no primeiro verso da terceira estrofe, com a expresso dirigida
festa como algum a quem se fala, mais um reforo ideia de oralidade
transmitida a algum, acerca de suas memrias referentes tradio herdada dos
avs, que ainda se mantm. Dessa herana, alguns hbitos mencionados esto
relacionados s crenas voltadas cura de doenas com moedas de cobre
colocadas ao fogo. Esse tratamento aplicado erisipela, a inflamao da
pele, sobretudo das pernas, popularmente denominada no poema izipla. Outra
doena tratada da mesma forma, com os pataces em brasa, a dor lombar, tambm
conhecida como lumbago ou lombalgia, mencionada no poema como espinhela cada.
H, ainda, a meno a adivinhaes relacionadas descoberta do futuro
companheiro ou companheira, como a da clara de ovo colocada em uma vasilha com
gua, a faca cravada na bananeira, a gua dormida e os cacos de um cntaro
partido.
O verso [O]s mangericos as
guitarras os ferrinhos . . . , isolado entre uma estrofe e outra, com realce,
em aspas, aos mangericos, que caracterizam uma festa popular tradicionalmente
portuguesa; e aos ferrinhos, denominao dada em Portugal ao instrumento
musical idiofone, popularmente conhecido no Brasil como tringulo. O verso finalizado
com trs pontos, o que demonstra a hesitao acerca de uma ideia iniciada com referncia
tradio portuguesa, modificada no primeiro verso da estrofe seguinte. Essa
forma engloba a ideia de uma continuidade j com pouca importncia, pois no primeiro
verso da estrofe seguinte h referncia fuso cultural representada pelas
bebidas e comidas produzidas na regio, como resultado da mistura, sobretudo
entre as etnias indgenas e africanas, como o alu, a tiborna, a cachaa, o
mungunz, a canjica e mingaus.
Semelhante aos refres
descritos em seu ensaio acerca do Boi Bumb (1993b) como um auto popular, a
estrofe seguinte, com versos curtos e personagens caracterizados como o
caboco e o sinh diret, percebe-se a aproximao do poema musicalidade expressa
nessa manifestao popular. A incluso desses vocbulos um recurso utilizado no
poema, que indica uma forma da fala comum do caboclo da regio, expressa por
muitos, independente de hierarquias sociais.
Em outro verso destacado, h
referncia mistura original do povo, com a figura do caboclo como o tipo
caracterstico da regio que, num momento de diverso, esquece as preocupaes
com origens tnicas. Observa-se ainda, no final do verso, a meno ao Boi de
Fama, que nada mais do que a representao da superioridade de um boi em
relao aos demais existentes em qualquer rebanho, sendo, portanto, personagem
principal de todos os grupos folclricos dessa natureza.
Nas
trs estrofes a seguir so retomadas caractersticas da festa joanina sob outros
aspectos, iniciando-se pela afirmao de ser a festa das capelinhas, que em
Portugal pode tambm significar coroas de folhas e flores, como mencionada em
uma msica que se tornou popular nos anos 40 do sculo XX: Capelinha de Melo,
de So Joo; de cravo, de rosa, de manjerico (MELLO, 2015, n.p.). So
tambm mencionados os banhos de cheiro e seus efeitos que vo alm do perfume que
se espalha sobre a pele, entranhando-se pelo corpo inteiro.
H
tambm uma estrofe com referncias tradio de passar fogueira, um ritual comum
nessa poca pelo qual pessoas sem algum vnculo familiar passam a ser
consideradas parentes, compadres e comadres, afilhados, etc. Essa cerimnia
feita com duas pessoas que passam de mos dadas por cima das chamas da fogueira
sob as bnos de So Joo e So Pedro.
Esse retorno do eu lrico ao
passado desperta-lhe a saudade, nos trs ltimos versos ao relembrar seus
quinze anos, quando foi chefe de maloca, um personagem importante na
encenao do cordo de boi. Por fim, o verso final um lamento transformado em
pergunta do porqu o So Joo j no o mesmo do passado. Assim, a retratao
de aspectos de uma vivncia cultural que o texto potico levanta, pode trazer
vestgios e objetos significantes do passado, que ainda se fazem presentes.
Consideraes
finais
Originada de antigas culturas
como a egpcia e tantas outras do oriente asitico, essa manifestao difundiu-se
por muitos pases do continente africano e passou a fazer parte da literatura
oral e folclrica do continente negro (MENEZES, 1993b, p. 55). Por isso, embora
trazida para o Brasil pelos colonizadores, o africano que aqui chegou no teve
dificuldades de incorporar essa festa pags ҈ sua mstica cerimonial, mesmo
subtrado, brutalmente, ao seu mundo fsico e espiritual, e que tudo fazia para
conservar no duro e crucial cativeiro (Idem).
Evidencia-se no poema a
contribuio das trs etnias que se fundiram desde o incio da colonizao para
formar o habitante da regio, representado pelo ndio, pelo portugus e pelas
etnias africanas; fundidas, essas culturas marcaram a formao de identidade(s)
hbrida(s), mais especificamente na cidade de Belm, que foi um dos primeiros
ncleos urbanos fundados na Amaznia, tornando-se assim um dos principais
pontos de partida para a difuso dessas manifestaes em outros locais da
regio. Considera-se ainda, o processo de mudana das tradies populares, demonstrado
no poema com as modificaes em decorrncia do tempo, que despertam o
saudosismo expresso no final do poema.
Referncias
ASSMANN, Aleida. Espaos da recordao: formas e transformaes da memria cultural; traduo: Paulo Soethe. Campinas-So Paulo: Editora da Unicamp, 2011.
BBLIA, N. T. Mateus. Traduo: Joo Ferreira de Almeida. 12 reimpresso. Imprensa bblica brasileira. Rio de Janeiro, 1983.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. So Paulo, Cultrix, Ed, da Universidade de So Paulo, 1977.
____________. Entre a literatura e a histria. So Paulo: Editora 34, 2013.
JURANDIR, Dalcdio. Belm do Gro-Par. Organizao: Carlos Par e Pablo de Po. Belm-Par: Marques Editora, 2016.
MELLO, Joo. A capelinha de melo. In: GGN – O jornal de todos os Brasis, 2015 -Disponvel em: https://jornalggn.com.br/arte-popular/a-capelinha-de-melao/ - Acesso em: 05/11/2019.
MENEZES, Bruno de. Obras Completas. Belm: Secretaria Estadual de Cultura – Conselho Estadual de Cultura, 1993 (Srie Lendo o Par). Vol. I.
Anexo
SO JOO
DO FOLCLORE E MANGERICOS...
Junho! Ms
Joanino do Santo Antonio de Lisboa,
do Joo
Batista Precursor
do velho
So Pedro chaveiro do cu.
Tua
alegria feita de fogueiras creptantes,
de crespas
rodinhas estreladas
de
foguetinhos pipocantes,
de bojudos
bales multicores,
de toda
essa alegria luminosa e aparente.
Teus
cordes de bumbs,
de bichos
folieiros com caadores e pags
de
compradescos e afilhadismos
vm dos
terreiros da Casa Grande,
quando o
escravo deixava o eito
e aparecia
a divertir os Senhores lusitanos.
Ah! Como o
folclore revive na tua quadra
as nossas
ingnuas crenas avoengas!
- Os
pataces de cobre que dormiam no braseiro
para os
cortes de izipla e suspenso de espinhela;
os
cortinados de cama e igrejas de claras de ovo
nos copos serenados
das esperanas de noivado;
a lmina da
faca virgem
cravada na
inocente bananeira sem culpa;
o espelho
de gua dormida na bacia dos destinos,
at os
cntaros de ir fonte partidos pelo Santos
s mos
das saloias ramalhudas.
Os
manjericos as guitarras os ferrinhos. . .
Tuas
bebidas meio-ndio africanas:
- o alu a
tiborna a gengibirra,
a caninha
imaculada com o rosrio do engenho espumando. . .
os
mungunzs, as cangicas bolindo,
os mingaus
bem do Norte,
com leite
de coco castanha e fub.
- Caboco
ri!
- Sinh
diret!
- Abre a
portera caboco!
- J abri
diret!
E a
caboclada ginga e pula na frente do Boi de Fama!
Pai
Francisco o velho africano macumbeiro,
amancebado
com Catirina, cmico e paciente do cordo!
- Um
Carlitos sem bigodinho e cartolinha. . .
O amo a
soberbia mestia do feitor discricionrio
que manda
nos vaqueiros na maloca inteira,
que foi
batizada pelo Padre Anchieta.
So Joo
das capelinhas, dos banhos felizes,
recendendo
a razes raladas e trevos e priprioca,
dos
cheiros cheirosos que se grudam na pele da gente
e vo
passando pra dentro.
So Joo
dos terreiros suburbanos,
com mafus
nos currais enfeitados de palha de assa.
So Joo
do tempo do P-de-bola, do maranhense Gomelada
do meu
padrinho Miguel Arcanjo.
So Joo
dos moleques vadios e tambm dos meninos ricos
- j
nascidos bacharis – tudo correndo na rua
Atrs das
bichas, dos espanta-cois. . .
- So
Joo disse. . .
- So
Pedro confirmou. . .
- . . . Meu
compadre boa noite. . .
- . . . Olha
l meu primo. . .
- . . .
Minha madrinha d bena. . .
Ah! So
Joo dos meus quinze anos da Jaqueira,
Quando fui
chefe de maloca e as mulatas me viciavam.
. . . Por
que no s mais o mesmo meu So Joo do passado?!
(MENEZES, 1993, p. 236-239)
[Recebido: 16 Mai 22 -
Aceito: 16 jun 21]
[1]
Edvaldo Santos
Pereira Doutor em Estudos Literrios pela Universidade Federal do Par. Atua
como professor da Educao Bsica na Rede Pblica do Estado do Par. E-mail: pereira.edvaldo56@gmail.com.
[2] Doutora em Letras (Letras Vernculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora permanente do Programa de Ps-Graduao em Letras, Belm, PA. Coordenadora do Programa de Estudos Geo-BioCulturais da Amaznia –Campus Flutuante, da Universidade Federal do Par (UFPA). E-mail: galvao@ufpa.br.