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DA TRADIÇÃO MEDIEVAL À REPRESENTAÇÃO (PERFO RMANCE)
CONTEMPORÂNEA: FLORIPES E FERRABRÁS.
UM TRABALHO ÉPICO
FROM MEDIEVAL TRADITION TO CONTEMPORARY REPRESENTATION
(PERFORMANCE): FLORIPES AND FERRABRÁS. AN EPIC JOB
Antoni Rossell
1
RESUMO: A pervivência de personagens carolingios e avatares, como a utilização da lenda
e objetivos de sua conservação e representação. E a expansão de um tema medieval, sua
sobrevivência e amplificação desde o medievo até o século XXI, em que a tradição de Floripes
e Ferrabrás, sempre no contexto de Carlos Magno e os doze pares de França, continua
representando um ideal heroico.
PALAVRAS-CHAVE: Épica. Tradição Oral. Representação
ABSTRACT: The survival of Carolingian characters and avatars, such as the use of the legend
and objectives of its conservation and representation. And the expansion of a medieval theme,
its survival and amplification from the medieval to the 21st century, in which the tradition of
Floripes and Ferrabrás, always in the context of Charlemagne and the twelve pairs of France,
continues to represent a heroic ideal.
KEYWORDS: Epic. Oral Tradition. Representation
Sabemos, por numerosos testemunhos, da difusão da matéria carolíngia em terras Latino
Americanas desde os primeiros tempos da colonização: Nas crônicas
2
, na tradição oral do
romanceiro
3
, como na literatura popular
4
. Não é possível conjecturar a origem das
representações contemporâneas da lenda de Floripes e Ferabrás atribuindo-a simplesmente a
uma ‘tradição medieval”, uma vez que essa transmissão foi tão complexa de modo a influenciar
1
Arxiu Occità. Institut d’Estudis Medievals. Universitat Autònoma de Barcelona
2
Cf. José Rivair Macedo, Op. cit. 2008; vide também D. Lamas, Persistência temática de Carlos Magno no
folclore brasileiro, em Revista Goiana de Artes, 10/1 (1989), pp. 7-29; Jerusa Pires Ferreira, A cavalaria no Sertão,
em: Lnia Mrcia Mongelli. E Fizerom taes Maravilhas... Histórias de Cavaleiros e Cavalarias, São Paulo Ateliê
Editorial, 2012, pp. 223-232.
3
Stanley L. Robe. Charlemagne in America: Formation and Transmission, em: El romancero hoy : nuevas
fronteras, ed. tedra Seminário Menéndez Pidal, 1979, pp. 181-190.
4
G. Moser. Elementos medievais na literatura popular do Brasil. Homenagem a Manuel Rodrigues Lapa.
Boletim de Filologia, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 28, 1983, pp. 123-141; Luis da. Câmara
Cascudo. Mouros, franceses e judeus. Três presenças no Brasil. Global Editora, São Paulo, 2001.
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não no tipo de performance, mas também em seus objetivos a partir da perspectiva do
estamento político e religioso. A incorporação da cultura africana no Auto de Floripes de São
Tomé é um tema extremamente complexo que foi analisado por Alexandra Gouveia Dumas
5
.
Tal como demonstra em seu artigo, não se trata apenas da mistura de cultura africana e
portuguesa, ou não unicamente, que, por questões econômicas e políticas, a relação do
personagem feminino de Floripes com diferentes culturas se estabelece em três pontos:
portuguesa, africana e brasileira. Uma vez tomada a ilha de São Tomé no Golfo africano de
Guiné como ponto estratégico comercial de uma nova rota para as Índias, com a chegada de
europeus no Brasil no ano de 1500, e com o comércio de escravos, o cultivo de cana de açúcar
e de cacau, a ilha passa a ser um centro de contato de culturas e de comércio no qual os
intercâmbios de indivíduos e culturas se realiza em todos os sentidos, com grande influência do
Brasil. De que modo se insere o personagem feminino em uma sociedade integrada por
indígenas da própria ilha, mas também procedentes de diferentes pontos do continente africano,
de escravos em trânsito, de europeus, de brasileiros, “forros”, negros ex-escravos, e colonos?
A presença do Auto de Floripes tem uma justificação religiosa e social-ideológica. A
implantação de uma população branco ou negra era difícil por razões de saúde, em palavras de
Dumas referindo-se ao escravos:
São Tomé serviu como espaço de adaptação ultramarina. Antes de chegar às
Américas, os escravos passavam um período em solo são-tomense, que servia
para se viver um tipo de adaptação, desenvolvendo resistência às doenças
europeias, o aprendizado da língua ou do próprio fabrico do açúcar (Dumas,
op. cit., 2001, p. 186).
São Tomé passa por todo tipo de vicisitudes e alteração de atividade agrária e comercial
devido ao descubrimento e a exploração do Brasil, o que gera um contínuo intercâmbio de
população. Isso tem suas consequências no processo de evangelização, já que a igreja católica,
ativa e presente no comercio de escravos, prefere predicar a eles e a população nativa com
indivíduoa de etinia africana, exescravos convertidos, o que gerava mais confiança entre a
população negra e reduzia as barreiras étnico-culturais entre os missionários europeus e a
população africana.
ARTUR CONTRA CARLOS MAGNO
Na atualidade, o repertorio medieval que mais incidncia tem na “cultura” audiovisual
é, sem dúvida, o de tema artúrico, certamente devido à hegemonia e à capacidade de difusão da
língua inglesa. Apesar disso, essa preeminência responde a construções de ordem literária. Mas,
se nos aprofundamos na cultura popular tradicional, os repertórios que gozam de maior
popularidade junto a um notável grau de internacionalidade, são os épicos franceses. Esses
repertórios, além de manter sua boa saúde, já que alguns dos que haviam sido esquecidos estão
se recuperando e os que continuam sendo representados se consolidam como tradições
identitárias e de coesão social, disfrutam de uma natureza pluricultural apesar de terem a mesma
origem o que lhes confere um valor a mais ao da conservação e atualização. Jerusa Pires
Ferreira, referindo-se especificamente à cultura brasileira, descreve os segmentos:
5
Alexandra Gouveia Dumas. Encruzilhada Atlântica na Rota Carolíngia uma Breve Análise do Auto de Floripes
(Príncipe-África) e da Luta de Mouros e Cristãos (Prado-Bahia-Brasil), em: IV ENECULT Encontro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura, 28 a 30 de maio de 2008, Faculdade de Comunicação/UFB, Salvador-
Bahia-Brasil. http://cult.ufba.br/enecult2008/14122.pdf.
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[U]ma vertente difusa arturiana, em que ancora o sebastianismo; e uma
vertente épica, que traz a permanência de muitos textos e romances medievais.
Ao que acrescenta que os diferentes públicos…
ligavam-se à legendária textura da épica cavaleiresca, transformada en modelo
histórico possível para pessoas que nâo experimentavam a ideia de uma
História cronológica. uma continuaçâo entre o seu presente e o passado
remoto, relações de dependência e de vassalidade, conhecimentos de como
lidar com formas de dominaçâo e violência (Ferreira, op. cit., 2012, p. 230).
Deduzimos, a partir disso, uma valorização histórica desse tipo de repertório literário
como razão de sua assimilação e pervivência, o que nos leva à concepção medieval da literatura
como história. A conexão entre literatura e história forma parte da natureza de uma e outra. O
que frequentemente não é tão evidente é a utilização que se faz da literatura a fim de convertê-
la em um elemento de propaganda ideológica, transformado-a em material histórico. É
paradigmática a promoção da literatura artúrica por parte da corte de Enrique II Plantagenet
para elaborar uma mitologia literária que pudesse competir com a matéria carolíngia da coroa
francesa. Nessa ação literária, a vontade do monarca inglês era legitimar seu poder mediante
um corpus literário alternativo e tradicional de um pasado mitológico e exemplar: a materia
artúrica
6
. Para isso, desenvolveu um programa de mescenagem no qual estariam envolvidas,
tanto sua esposa, a rainha Leonor de Aquitânia, como sua família. Ao mesmo tempo, a narração
dos acontecimentos históricos necessita de uma retórica literária que assimila e aproveita
diversas tradições e que carrega aspectos tanto históricos como ficcionais
7
, nos quais, segundo
Hayden, sobressaem-se os elementos formais sobre o conteúdo
8
.
Jeruza Pires Ferreira se pregunta a partir da anedota segundo a qual Câmara Cascudo
havia escutado seus parentes discutirem acerca da bravura de Roldão e de Oliveiros, mas nunca
de Palmerín ou de Amadís pela razão dessas ausências no sertão do Brasil. Opina que não é
a ausência de tais heróis nas bagagens dos colonizadores, mas que há motivos que justificam a
presença e o auge da lenda carolíngia frente à ausência do mundo artúrico, mesmo que se haja
produzido certo processo de hibridização entre a matéria artúrica e a carolíngia
9
. Diante da
concepção historicista da matéria carolíngia, o universo artúrico responderia a uma literatura
popular de âmbito maravilhoso, alheio à vontade colonizadora que necessitava aproximar
ficcionalmente à população a ser colonizada com os colonizadores: Comunidade e grupo frente
à individualidade.
Voltando aos motivos pelos quais no âmbito oral tradicional se impôs ou impuseram a
figura de Carlos Magno à de Artur, com o sentido histórico anteriormente mencionado,
devemos acrescentar a questão identitária e a vontade de coesionar um grupo social acerca de
alguns ideais. Tudo isso conflui numa performance plurigenérica, que não se limita em modos
ou formas de divulgação para promover e impor alguns ideiais civis ou religosos. O objetivo
dos colonizadores era a implantação de um corpus literário referencial numa base popular
ampla, suscetível de ser assentado em contextos culturais diferentes, e para isso, era necessário
6
Spiegel, Gabrielle M. Social Change and Literary Language: The Textualization of the Past in Thirteenth-
Century French Historiography, em : Journal of Medieval and Renaissance Studies, 17, 1987, pp. 129-148.
7
Hayden V. White The Historical text as literary artifact, em : Tropics of discourse. Essays in Cultural
Criticism, Baltimore & Londres, 1978.
8
Hayden V. White. The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation,
Baltimore, 1989.
9
Jerusa Pires Ferreira, op. cit., 2012, p. 227.
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uma metodologia performática interdisciplinar e, por tanto, plurigenérica. Talvez a renúncia ao
elemento maravilhoso nos textos e representações contemporâneas e a escassa presença do
elixir de Ferrabrás, possivelmente o elemento mais popular da lenda na tradição espanhola, é
uma mostra da modificação e da utilização da lenda com fins extraliterários, nos quais convinha
realçar o elemento feminino (Floripes) frente a seu irmão e eliminar o elemento maravilhoso
do elixir, claramente incômodo diante dos objetivos dos religiosos para a conversão dos
colonizados.
FICÇÃO, DIFERENÇA E IDENTIDADE
Se na tradição literária espanhola se defendia a veracidade histórica da lenda de
Ferrabrás e Floripes
10
, tampouco se discutia na tradição literária brasileira:
Leiam essa minha história
com calma e meditação
Verão que não é mentira
nem lenda de ilusão
11
O aspecto que nos parece mais interessante na diferença entre o contexto cristão/católico
europeu e o das representações atuais, fruto da colonização, radica em que, enquanto no
contexto original a lenda evolui dentro de pautas históricas, regidas por elemento cômico sexual
numa tentativa de devolver ao herói seu contexto pagão e, portanto, antinatural e religiosamente
incorreto, no contexto folclorizado parece que a verdadeira intenção haja sido fossilizada e não
se altere, adquirindo uma dimensão histórica. Isso mostra o grau de estabilidade e conservação
ideológica da tradição oral. Vemos reafirmada essa concepção histórica do relato junto ao da
identidade num caso que teve lugar no Estado brasileiro de Santa Catarina, no movimento
rebelde conhecido como “Contestado” (outubro de 1912 a agosto de 1916), em que seguidores
se autodenominavam como os “Pares de França” (considerando equivocadamente, por uma
leitura literal, que os doze pares eram realmente vinte e quatro), com o que verificamos o grau
de identificação desses indivíduos com a representação da lenda na zona do Sertão, e com um
sistema político-organizacional de caráter feudal.
A utilização da figura de Carlos Magno e dos textos épicos medievais como elemento
político e ideológico não é original da tradição pós-medieval. Na tradição historiográfica sobre
o descobrimento da tumba do apóstolo São Tiago, encontramos uma boa mostra na história de
Carlos Magno e Roldão no século XIII. Contamos com tradições historiográficas medievais
antagônicas acerca do descobrimento da tumba de São Tiago, a tradição Compostelana, a partir
do Pseudo-Turpino, na qual Carlos Magno tivera um papel primordial, e a tradição catelhana,
que nega tal afirmação. Tudo isso tem repercussões, tanto políticas como econômicas na Idade
Média, pois se Carlos Magno houvesse conhecido os foros e os direitos à cidade de Compostela,
esta não deveria pagar tributos nem estaria sujeita economicamente à Coroa castelhana. E, a
consequência disso, se organiza uma ação política e historiográfica entorno à figura do
imperador franco em terra hispânicas e que tem como protagonista o rei Alfonso X com seu
10
Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, primeira edição por
Francisco López Fabra, Barcelona, 1605 (IV 49. 29-30).
11
Leandro Gomes de Barros, Batalha de Liveros com Ferrabràs, em: Jerusa Pires Ferreira, op. cit. 1993,
p. 25.
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trabalho historiográfico e político
12
. Carlos Magno e Roldão são as figuras coesionadoras da
lenda de Floripes e Ferrabrás, e ambos heróis francos não estão desprovidos de polêmica, tanto
na tradição medieval como nas representações tradicionais contemporâneas.
13
Poderia-se
argumentar que os enfrentamentos pessoais e familiares que encontramos entre os heróis
cristãos nas representações atuais são reelaborações modernas, não obstante, se nos
remontamos à época medieval, as diferenças entre tio e sobrinho não são um elemento épico-
literário da Chanson de Roland, mas aparecem no romanceiro tradicional. Por outro lado, Carlos
Magno é um personagem problemático historicamente falando já na Idade Média, pois sua
personalidad já é discutida e posta em questão na mesma tradição histórica e literária medieval.
Boa prova disso é o título de Imperador, fruto de uma habilidosa política de apoio ao papa Leão
III diante de seus inimigos, mas que teve um reconhecimento generalizado
14
. A estratéga de
Carlos Magno pretendia o reforço da autoridade imperial em detrimento da autoridade do
papado e da Igreja, j que o “modelo romano” do Imperador necessitava aglutinar em sua
pessoa, tanto a autoridade política como a ética, por sobre a autoridade papal. Essa estratégia
política se serviu dos intelectuais carolíngios, que pretenderam impor uma imagem do monarca
mais ética que política, a fim de ensombrecer o poder papal
15
. Não obstante, essa estratégia
fracassa e fica evidente, a partir do século XI na caracterização do Imperador, tanto em obras
literárias de âmbito francês como Pélerinage de Charlemagne, em que o Imperador é
ridicularizado por sua superficialidade e orgulho como também, e sobretudo, em obras de
língua e área occitana, nas regiões em que se produz um maior desmembramento do poder
carolíngio (Aquitânia setentrional ou zona Franco-Provençal), como o Roman de Flamenca, a
canção épica occitana Daurel y Beton
16
, e o planctus satírico do trovador Guilhem de Berguedà
a seu inimigo Ponç de Mataplana
17
. É interessante a consideração e permanência de Carlos
Magno como um imperador ocioso ou, como leríamos em francês antigo, feignant. A figura de
Carlos Magno também é questionada nas tradições populares atuais, tanto em Portugal.
18
Como
na tradição dos folhetos nordestinos brasileiros:
Oh imperador Carlos Magno homem covarde e sem valor! manda dois ou
três, ou quatro dos mais valentes e melhores dos doze Pares contra mim
somente que espero vencer a batalha; e venham, ainda que seja Roldão,
Oliveiros, Tietri e Urgel de Danóa…
19
Por oposição ao herói cristão, Ferrabrás representa uma série de valores e qualidades
que o convertem no protagonista masculino da lenda. De fato, ele é caracterizado apesar de
12
Henrique Monteagudo Eomero. A crónica galega dos Reinos de León e Castela na historia e na
historiografia galegas, em: VII xornadas de historia de Galicia. Novas fontes. Renovadas historias.
Editado por: Servicio de Publicacións da Deputación Provincial de Ourense, 1993.
13
Anônimo, Historia del Emperador Carlo Magno: en la cual se trata de las grandes proezas, y hazañas de los
doce pares de Francia, y de como fueron vendidos por el traidor de Ganalon, y la cruda batalla que hubo Oliveros
con Fierabrás de Alejandría, hijo del almirante Balán. Barcelona, prensa de Antonio Berdeguer, 1840 Capítulo
XVI (De la respuesta de Roldán al emperador Carlo Magno), p. 38.
14
Louis Halpen. Carlomagno y el imperio carolingio, Akal , Madrid, 1992. Ed. Albin Michel, 1968 .
15
Miethke (1993) propõe, inclusive, que o espelho de príncipes carolíngios é desenhado como veículo de
transmissão das doutrinas políticas. Cf. rgen Miethke. Las ideas políticas de la Edad Media, Biblos, Buenos
Aires, 1993.
16
Velasco, J. R. Castigos para celosos, consejos para juglares, Gredos, Madrid, 1999, pp. 41-47.
17
Consiros cant e planc e plor (BdT 210,9). Vide Antoni Rossell. Els Trobadors catalans, Dínsic, Barcelona,
2006, pp. 117-122.
18
Cf. Luís Alberto Dias Franco. Auto de la princesa Floripes, entre el mito y la realidad (Largo das Neves,
Portugal), op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 280.
19
Cf. Raymond Cantel, op. cit 1970, p. 185.
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sua natureza pagã com um contorno de ingenuidade e honestidade desde a tradição medieval.
O atributo do herói pagão era sua desmesurada força, e a incorporação ao estrato cristão
supunha a inclusão de uma das qualidades que representava a hombridade necessária para a luta
e o combate, imprescindível para representar a missão profética de evangelizar e cristianizar
aos indígenas. Esse herói de força incomensurável e invencível, sendo pagão convertido, se
transforma em exemplo a imitar para os povos indígenas dos distintos continentes que os
europeus querem converter. Sua representação por parte de um projeto ideológico e religioso
dos colonizadores conjuga as virtudes morais ou éticas com a força física, porque também
encarna a masculinidade ao formar parte do binômio masculino/feminino (Ferrebrás/Floripes)
com o objetivo de simbolizar o ideal que conjugava o humano com o religioso.
20
A pesar de os heróis e sua consideração estarem sujeitos a evoluções e modificações,
também encontramos Ferrabrás associado a Satanás e ao Demônio na santeria brasileira e em
algumas línguas invocadoras de São Ciprião:
A luta vencerei, com os poderes da Cabra Preta milagrosa.
Inimigo, com dois eu te vejo, com três eu te prendo,
com Caifás, Satanás, Ferrabrás.
21
Ferrabrás supõe uma voz alternativa ao espírito épico heroico dos vencedores, uma vez
que encarna o vencido que, mediante a conversão, se redime socialmente e salva sua vida e sua
alma, tudo isso mediante o esforço físico e a valentia, e com um espírito de nobreza que o faz
merecedor do perdão por suas campanhas contra Roma e contra os cristãos, assim como pelo
roubo das santas relíquias.
Na cultura indígena e diante da impossibilidade (literária) do Imperador Carlos Magno
de coesionar os “Pares”, é necessrio um elemento externo, ou “estrangeiro” se atendssemos
as teorias antropológicas de Sir James George Frazer, nesse caso um personagem feminino que
legitime a autoridade dos conquistadores e que se faça de intermediária entre a nova ordem
imposta e a cultura autóctone. Esse personagem não é outro senão a irmã de Ferrabrás e filha
do emir e almirante Balão, Floripes. Se no Auto da Neves Floripes é a protagonista, é porque,
em realidade, ela é a única mulher que intervém no espetáculo, assim como também sucede na
representação na ilha africana de São Tomé. Essa particularidade converte a heroína ainda
mais em centro da ação e desencadeante dela. Não é gratuito o papel da sarracena Orable em
Prise d’Orange, paralelo ao de Floripes. Orable ajuda os heróis cristãos e finalmente se casa
com Guillaume d’Orange e ele troca seu nome por Guibourg. Recordemos o papel da mulher
na literatura medieval como elemento legitimador do poder, e é por essa razão que, desde uma
perspectiva antropológica, a razão pela qual Guillaume se casa com Orable/Guibourg é para
legitimar seu poder e ser reconhecido pelo povo, visto que, em sociedades ancestrais, o poder
se legitima através do elemento feminino. Assim, tanto Guibourg como Floripes são herdeiras
dessa tradição, e sua utilização no processo de colonização e sua integração nas representações
teatrais se justifica por razões de legitimidade da mensagem dos colonizadores diante dos
indígenas. Além da leitura antropológica, o que na realidade prima na figura de Floripes é a
passagem do paganismo ao cristianismo
22
.
20
Fernanda Molina, La construcción de la masculinidad en la conquista de Amrica, em: Lemir 15 (2011), pp.
185-206; pp. 197-198.
21
Trata-se de uma entre tantas orações e invocações de magia branca e negra, correspondendo aos cultos de São
Ciprião. Não contamos com uma citação ou referência bibliográfica desse texto, fruto das conversas que tivemos
no seminário da professora Jerusa Pires Ferreira na Universidade Pontífica de São Paulo, no mês de agosto do ano
2011.
22
Marc Le Person. Du paganisme la saintet: litinraire de Fierabras dans le petit cycle des reliques (La
destruction de Rome et Fierabras), em: Paroles sur lislam dans loccident mdival. Actes du colloque du 9
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16
Um dos antecedentes literários do personagem Floripes é a mãe do sarraceno Corbarán,
identificado com o personagem histórico difamado por sua própria tradição do emir Mossul do
século XI, e que se conhece com o nome de Calabre
23
. É um personagem enigmático, mas
dotado do dom da adivinhação e, segundo a história, trata-se de uma persona “cripto-cristã”,
que se converte no intermediário entre o paganismo e a salvação cristã
24
, mas sua natureza
mágica a dota de um status ambíguo. Assim, Floripes, nas manifestações tradicionais contará
também com uma dimensão mágica do Candomblé ou da Encantaria brasileiro-africana, qua a
aproximam de um lugar afastado e proscrito da crença cristã
25
. Encontramos o precedente desse
afastamento nas versões medievais, pois Floripes atua por amor, tanto na sua conversão ao
cristianismo
26
como na traição ao seu povo.
Nos processos de colonização, a mulher sempre desempenhou um papel primordial,
sobretudo como moeda de troca. Nesse caso, a figura de Floripes supõe uma aceitação da troca
de lugar, da alteridade dos colonizadores. As mulheres nos processos de colonização foram
tanto um espólio de guerra como um modo de selar alianças com os povos conquistados
27
.
Como apontvamos acima, a presença de mulheres no “auto” se reduz normalmente a Floripes,
mas em várias representações tradicionais nos encontramos com um cortejo de mulheres que
acompanham Floripes e que são denominadas como “palas”, e que seriam uma reminiscncia
de mulheres nobres da época dos Incas, e que formavam parte do cortejo de mouros em Quipán
e Pampacocha (Peru), que intervêm na representação cantando:
Fierabrás de Alejandría
Procúrate defender
Con esa tola ensangrentada
Con esa tola ensangrentada
¡Hillawaya llawaya!
¡Hillawaya llawalla!
28
mars 2001-2002. Cahiers du Centre d’histoire médiévale, 1, 2002. Presses de l’Université Jean Moulin Lyon III,
pp. 7-27.
23
Leclercq, Armelle. La destine d’un mir turc : Corbaran, personnage historique, personnage épique,
em: Façonner son personnage au Moyen Âge [en ligne], Presses universitaires de Provence, Aix-en-Provence,
2007 (généré le 01 mai 2017), pp. 201-210, n. 17.
24
Outros personagens épicos medievais foram moldados sobre esse mesmo padrão. Assim, na Chanson d’Antioche
contamos com Piruus, chamado de Turc beneois ou Datien, e sua mulher cumprindo o papel de intermediários. Cf.
Armelle Leclercq. Une magicienne au cœur de la croisade : la vieille Calabre, Femmes, héroïnes et sociétés,
ed. M. Nakazato et A. Gras, Presses de l'Université d'Iwate, 2011, pp. 55-72. Nota 18, p. 50.
25
Regina Célia de Lima e Silva. Ferrabrás de Alexandria: a presença da personagem do romance de cavalaria
no tambor de mina maranhense, em: XV congresso Brasileiro de Professores de Espanhol, 2013, Recife. Caderno
de Resumos. Recife: UFPE, 2013; Regina Célia de Lima e Silva. Ferrabrás de Alexandria: a presença da
personagem do romance de cavalaria no tambor de mina maranhense, em: IV Sappil, 2013, Niterói. Caderno de
Resumos. Niterói: UFF, 2013; Regina Célia de Lima e Silva. Narradoras encantadas da história de Carlos Magno
no Maranhão, em: VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2012, Salvador. Caderno de Resumos, 2012.
26
Philippe Sénac. L’image de l’autre, histoire de l’Occident mdivale face l’Islam, Paris, Flammarion, 1983,
p. 92. Essa situação também corresponde a um esquema de guerreiro arcaico no qual as mulheres do inimigo são
apropriadas. A paixão amorosa introduzida nas obras suaviza a prática. Cf. Leclercq, A. op. cit. 2011, n. 18, p. 50.
27
Molina, F. op. cit. 2011, p. 195.
28
Luis Cajavilca Navarro. El culto a Carlomagno y la fiesta de moros y cristianos en los Andes de Canta, Perú,
Canta, Pampacocha, op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 144.
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17
Mas também as encontramos em outras localidades peruanas como Ancash, Lima,
Huánuco e em Huamantanga, na representação do Cerco de Roma que instauraram os
mercenários no ano de 1660.
29
Essas mulheres podem estar casadas, mas Floripes não. A virgindade de Floripes foi,
para essas festas populares, um requisito ineludível. Em São Tomé é premente que a jovem que
se faz de Floripes tenha uma integridade moral com a qual adquire um caráter exemplar. De
fato essas mulheres jamais deixarão de ser "Floripes" e elas mesmas assumem esse papel moral
e exemplar que têm a obrigação moral e social de conservar por toda a vida. Isso contrasta com
as versões espanholas em que se atribui a todos os irmãos a possibilidade de incesto. Referimo-
nos a um pretenso desejo sexual do herói por sua irmã, desse modo Calderón, ainda
conservando a pugna entre francos e sarracenos, abandona a reivindicação religiosa e dirige seu
interesse à questão do incesto. Segúndo Sáez Garcia, no teatro calderoniano, a relação de
Floripes com Ferrabrás supõe um incesto não realizado, no que radica a repulsa de Floripes ao
amor de Ferrabrás em La puente de Mantibe
30
.
RECEPÇÃO, EVANGELIZAÇÃO E VIOLÊNCIA
Chegado a esse ponto, é interressante abordarmos essa tradição, não na perspectiva da
tradição literária medieval e posterior, mas na perspectiva da recepção dos povos indígenas
colonizados. Em primeiro lugar, não é casual a estratégia de identificar os nativos com os
musulmanos ou sarracenos, logo a Floripes e Ferrabrás, pois isso levaria a mitigar a questão da
alteridade
31
, já que os colonizadores se sentiriam parte de uma história e protagonistas dela, ao
mesmo tempo que sua participação nas representações poderia supor uma redenção de seu
passado incivilizado e sua integração, mediante a conversão, no mundo dos colonizadores, seja
por força ou convencimento. Nesse capítulo, daremos mais destaque ao âmbito religioso,
porque a colonização goza de um aspecto emocional em relação com a crença, e a adaptação
dos cultos dessas populações à nova crença (imposta ou aceita). É notório que a introdução
dessas representações são fruto de uma estratégia evangelizadora que transforma uma
mensagem épico-heroica que existia num imaginário arcaico - porém monárquico, de uma
sociedade que deseja e requer um regime de proteção feudal, equilíbrio e estabilidade - num
confronto que legitima o novo indivíduo, o indígena, numa nova ordem social pelos elementos:
a lealdade a uma causa justa e divina, e a lealdade por amor. Não obstante, essas representações
evoluiram e de algum modo assimilaram elementos de substrato anterior à colonização.
Sabemos que houve um sincretismo que incentivou os próprios missionários - sobretudo os
franciscanos - mormente na substituição de deuses pré-hispânicos por santos cristãos, mas
também em questões de localização dos lugares de culto escolhidos pelos nativos autóctones
29
Luis Cajavilca Navarro. Ceremonias y teatro medieval en el Perú contemporáneo, em: Investigaciones
sociales, Vol. 18 N° 33, pp. 155-166 [2014], UNMSM-IIHS. LIMA, Perú., p. 161. Vide também: Luis Cajavilca
Navarro. Ceremonias y teatro medieval en el Perú contemporáneo, Editorial: Editorial Academica Espanola
(2015).
30
Cf. Adrián Jesús ez García. Entre el deseo y la realidad: Aproximación al incesto en la comedia áurea, em:
Nueva Revista de Filología Hispánica, vol. 61, n° 2, 2013, p. 620; Adrián Jesús ez García,. Un Calderón de
leyenda: Otra vuelta a la Puente de Mantible y la Historia de Carlomagno, em: Anuario Calderoniano, 8, 2015,
pp. 355-374.
31
Cf. José Rivair Macedo, Mouros e cristãos, 2009, op. cit., p. 8; y M. MEYER. Tem mouro na costa ou
Carlos Magno “reis” do congo, em: Caminhos do Imaginário no Brasil, São Paulo, 1993, pp. 150-154.
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com o beneplácio - novamente - dos franciscanos. O mesmo acontece com a cenografia e seus
elementos, mas também no conteúdo dramático da representação
32
.
Mas, voltando ao âmbito da recepção, devemos preguntar-nos o que esses povos
aportaram à representação dos colonizadores e se houve um processo de transformação da
representação (indigenization). Contamos com aspectos pontuais que mereceriam um estudo
pormenorizado e muito mais extenso do que essas linhas, não obstante, não podemos deixar de
mencionar um aspecto curioso de uma das representações que tem como protagonista o apóstolo
São Tiago em Zacatecas, no México, cujos protagonistas são os "tastoanes" (índios selvagens,
espécie de demônios e contrários à cristã) e que, no início da representação, realizam uma
medição e repartição da terra.
33
A incorporação da agrimensura à representação é uma inovação e que, com toda certeza,
não é atribuída aos missionários colonizadores. Os protagonistas da representação aproveitaram
a possibilidade de introduzir ali um elemento contestador e de reivindicação, e assim se
apropriaram não só de uma argumentação dramática, mas da capacidade de intervenção
ideológica da representação. A partir desse protagonismo que adquirem os autóctones - ou que
lhes é concedido - eles se convertem em uma classe de "escolhidos", que em algumas
comunidades são os próprios indivíduos autóctones os encarregados de defender a cristã
frente a outros povos pagãos.
34
A lenda carolíngia contém elementos de traição e violência, já desde os mesmos textos
medievais, dos que é paradigmática a ação de Ganelão na Chanson de Roland. A lenda de
Floripes e Ferrabrás não é alheia a essa dimensão, seja pela traição de ambos os irmãos a seu
credo religioso, mas também a seu pai e a sua comunidade. No caso de Ferrabrás, é por nobreza
e, no caso de Floripes, por amor. Apesar de tudo, é necessário analizar a traição desde a
dimensão da recepção da lenda e sua instrumentalização. Não haveria de escapar, nem aos
conquistadores nem aos conquistados, a dupla traição que encontramos na Historia de
Carlomagno y de los doce pares de Francia: por um lado a traição de Ganelão a Carlos Magno
e aos doze Pares, que terminaria com a morte destes junto com a derrota de Roncesvalles, e por
outra a de Floripes e Ferrabrás a Balão e a seu povo, e que termina também com a morte do
almirante e emir Balão. Percebemos uma dupla perspectiva no modo de servir-se dessas traições
obedecendo a uma intenção tanto estratégica como ideológica com clara intensão exemplar,
uma vez que o receptor inevitavelmente vai exercer uma comparação entre os protagonistas,
suas ações, suas situações, e seguramente nas consequências de ambas traições. Já desde
um princípio da lenda, a conduta de Ferrabrás e de Floripes está tocada pelo exemplar e está
plenamente justificada por seu objetivo heroico e ético por parte de Ferrabrás, e amoroso por
parte de Floripes. Enquanto que a ação de Ganelão se explica por um interesse pessoal
baseado na covardia e na vingança, em Ferrabrás se idealiza em um heroísmo fundamentado
unicamente pela alteração ao “justo”, prescindindo do passado do herói. Desde uma perspectiva
católica, a atitude e comportamento de Ferrabrás supõe a possibilidade de redimir um passado,
seja de violência ou de crenças pagãs. A Ganelão, que pertence ao âmbito dos nobres cristãos,
seu comportamento o condena a ser marginalizado no âmbito religioso, mas também no social
da nobreza e, por tanto, do círculo heroico dos nobres de Carlos Magno. A traição de Ganelão
equilibra a de Ferrabrás, que trai sua família por uma causa justa, enquanto que a de Ganelão é
32
Martha Toriz. El teatro de evangelización, em: Martha Toriz (ed.), Performance y censura en el México
virreinal. Caderno web, Nueva York, Instituto Hemisférico de Performance y Política, 2005, em:
http://www.hemisphericinstitute.org/cuaderno/censura/html/t_evan/t_evan.htm.
33
Araceli Campos Moreno. Sobrevivencias indígenas en la fiesta de los moros y cristianos en México. El caso de
los Tastoanes, op. cit. Primer congreso internacional de Embajadas y Embajadores, p. 177.
34
Op. cit. Campos Moreno, araceli, p. 172.
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imperdoável por atuar contra o monarca cristão
35
. No âmbito feminino, o tema da traição por
causa do amor é um tema recorrente nas novelas de cavalaria
36
. Esse ambiente de traição
submerge toda a ação numa atmosfera de violência psicológica, não obstante, as representações
desses autos contém uma importante carga de violência física nos enfrentamentos, e essa
particularidade não é exclusiva do continente americano, que em Neves, os combates entre
mouros e cristãos sem chegar ao sangue são de grande ímpeto, virulência e acaloramento.
A partir da experiência brasileira, tanto em literatura de cordel com nas representações teatrais
de tema carolíngio, Jerusa Pires Ferreira propõe a presença da violência nessas representações
sem chegar a ser cruenta como a adaptação de uma idiossincrasia autóctone, uma
característica mais a acrescentar à apropriação dramática (ideológica) por parte das populações
colonizadas:
Sua significação (o combate) vai para além da luta, do jogo em sua descrição,
contenda de antagonismos permanentes em que mal/bem, castigo/galardão são
entidades e resultados, em que derrota/vitória, perdição/salvação levam fiéis
ou infiéis a atuarem dentro de concepções e delimitações rigidamente
antagônicas, e às vezes maniquéias
37
.
A representação do Auto de Floripes e seus elementos de luta e combate supõe uma
renovação social no sentido de recuperar a violência controlada que comporta ao mesmo
tempo uma recordação de uma potência latente e a capacidade de contenção ante uma
sociedade que obedece à legitimação do poder mediante a violência.
38
Esse universo "a sua medida", que nos indica Araceli Campos Moreno, não é outro
senão o do colonizado que enxerta sua idiossincrasia e sua identidade na "obra" do colonizador
e se apropria dela, a transforma e a ela um novo caráter ideológico, contrário à mensagem
original dos colonizadores.
RETROTOPIA E INTERVANÇÃO IDEOLÓGICA E ESTÉTICA
Uma vez que se concebe a natureza (pretensamente) histórica da matéria carolíngia,
tanto em sua concepção como em sua recepção, a matéria literária adquire uma nova virtude de
grande transcendência coletiva que contém uma dimensão identitária, e por tanto de coesão
social. O processo de retrotopia, siguindo o filósofo Zygmunt Bauman, não é um processo
de engenharia social, mas se converte em um processo de intervenções estéticas periódicas,
com o objetivo de perpetuar ideológicamente um objetivo mediante a representação artística, e
influenciar tanto os seus protagonistas/atores como os receptores de sua comunidade pela
vertente emocional. A matéria cavaleiresca na lenda de Floripes e Ferrabrás conforma um
universo histórico-lendário a partir de estruturas narrativas performáticas, no caso do teatro
"auto", ou de estruturas orais/líricas, no caso da poesia narrativa e dos romances. Isso comporta
estratégias, tanto discursivas como de representação que - como comprovamos - se
transformam e nem sempre obedecem à estratégia original que promoveu os citados repertórios.
35
Ademir Aparecido de Moraes Arias. A presença dos traidores na história de Carlos Magno e dos Doze Pares
de França, em: Op. cit. E Fizerom taes Maravilhas, 2012. pp.39-54; Maïté Billoré & Myriam Soria (Org.), La
trahison au Moyen Âge. De la monstruosité au crime politique (V-XV siècle), Presses Universitaires de
Rennes, Rennes, 2009.
36
Jerusa Pires Ferreira Cavalaria em cordel, op cit. p. 27.
37
Ferreira, Cavalaria em cordel, op cit. p. 114
38
Araceli Campos Moreno, op. cit., p. 172.
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Essas estratégias, mesmo aceitando que se conformaram a partir de textos escritos, foram
legitimadas mediante um discurso oral projetado como "matéria histórica" e, como tal, foi
assumida por protagonistas.
Desde uma perspectiva acadêmica corremos o risco de encriptar ou patrimonializar uma
prática viva, uma representação que está viva. Consideramos o Auto de Floripes como um
patrimônio que situa essa lenda num marco ideológico, moral, político e - por último - cultural,
que foi produzido por um consenso de uma comunidade. Hoje, o que nos interessa - desde uma
perspectiva acadêmica - é sua singularidade, muito embora essa perspectiva dificilmente seria
compreendida pelos protagonistas dessas representações, pois, para eles forma parte do seu
cotidiano e de sua identidade. A visão externa - a nossa visão - e a perspectiva de singularidade
nos proporcionam um modelo de vinculação e compromisso entre seus protagonistas que -
segundo nossa opinião - garantem sua salvaguarda e coesionam a comunidade com base em
princípios éticos e morais que se legitimam por sua existência na tradição popular. Do mesmo
modo e ao mesmo tempo, conferem à comunidade uma revitalização tanto de sua própria
cultura e identidade, como uma promoção social de seus componentes frente a comunidades ou
indivíduos sem esse patrimônio. Em conclusão, o que essas manifestações realmente geram é
um sentimento identitário. Seria perigosa ou nefasta a tentativa de etiquetar essas manifestações
em seu conjunto como "globais", que sua descontextualização com o meio e com os
indivíduos herdeiros de seu meio e de sua tradição imediata comportaria uma intenção
arqueológica que o que fixaria é um momento da tradição e não a tradição mesma, pois esses
espetáculos vivem em uma constante evolução estética pela manutenção de seus valores, os
quais, se se mantêm, o revestimento estético - evoluído ou não - não afeta nem a sua natureza
nem a seus objetivos. As tentativas de patrimonialização comportam uma prática protetora que
fossiliza negativamente esses espetáculos e põem em perigo sua existência:
[S]ua autenticidade reside precisamente no caráter contextual e efêmero de
sua performance - assim como são as artes 'alográficas'
39
Nas representações contemporâneas, Floripes, Ferrabrás, Carlos Magno e todos seus
avatares têm sua origem numa estratégia ideológica de evangelização com o objetivo da
conversão, o respeito e o reconhecimento dos colonizadores como figuras necessárias de uma
histórica atávica. Não obstante, sua assimilação pagou o preço do hibridismo, e o patrimônio e
a propiedade da representação não pertencem nem a missionários nem a colonizadores,
pertencem a seus atuais protagonistas.
[Recebido: 30 mar. 2020 Aceito: 30 mar. 2020]
39
dont l'authenticité réside précisément dans le caractère contextuel et éphémere de leur performance-
comme le sont les arts 'allographiques' Nathalie Heinich, La fabrique du patrimoine. De la cathédrale
à la petite cuillère, Maison des Sciences de l'Homme: Ethnologie de la France, 2009, Paris, p. 24, cf. Daniel
Rico. ¿La Sibila, patrimonio inmaterial? Un concepto a la deriva. pp. 13-36, em: M. Gómez y E. Carrero
(editores). La Sibila. Sonido. Imagen. Liturgia. Escena. Ed. Alpuerto, Madrid, 2015.