retenção de uma memória coletiva que conserva através dos séculos os menores detalhes de
uma história remotamente pretérita, e a abertura, como a habilidade de recriação dessa tradição
oral de modo a conferir a ela uma eterna atualidade a fim de que não se perca o sentido para o
povo que a canta, mediante supressões, acréscimos e modificações convenientes que, não
obstante, não desconfiguram a tradição. Há, desse modo, uma sutileza e uma inteligência
coletiva em operar essas tradições orais. Isso legitima e elucida todo o percurso porque passou
a tradição carolíngia, desde a Chanson de Roland até os mais contemporâneos versos ou autos
que ainda hoje podemos ter a sorte de encontrar no Brasil e em alguns rincões da América
Latina. Dado que o objetivo desse estudo não está pautado numa vontade arqueológica – como
acertadamente nos adverte Rossell (2017) – apenas nos interessa demonstrar como, diante da
complexidade desse sincretismo da tradição, se insere a possibilidade de retomar o elemento
arquetípico, considerando, por um lado, um conservadorismo nem purista nem paleográfico e,
por outro lado, uma abertura que, num outro extremo, não configure um palimpsesto, mas
apenas dê voz às vozes que até aqui a cantaram. Com esse objetivo em pauta, claro está, assume-
se uma grande responsabilidade com o texto e, aliás, um risco de exposição a críticas, por vezes
mais construtivas, por vezes nem tanto. Todas recebemos com a humildade tão necessária à
academia, com o único objetivo de, consideradas todas elas, contribuir com um legado que é
coletivo e popular e nunca individual – assim, portanto, será também o que houver de mérito.
Preocupado, pois, com o apagamento de elementos da tradição quando há desequilíbrio mais à
abertura e menos ao conservadorismo, já refletia, com Meschonnic, no início da Tese:
Uma interessantíssima imagem desse fenômeno nos oferece Henri Meschonnic
(2010), quando compara a tradução com o barqueiro. Importa para ele menos o
atravessar, mas o estado em que chega aquele a quem atravessou; Caronte, conclui
Meschonnic, atravessa os mortos que, no trajeto, perdem a memória, e é o que
acontece com muitos tradutores. Aqui compartilhamos, pois, da tarefa que o linguista
propõe: não traduzir o que dizem as palavras, mas o que elas constroem; recriar o
sentido (COSTA, op. cit., p. 14).
Concretamente, portanto, atribuir a um manuscrito de jogral – como o de Oxford, sobre
o qual nos debruçamos para a tradução – a finalidade da leitura silenciosa, ou limitá-lo a ela,
parece-nos hoje um equívoco epistemológico. Sem, no entanto, menoscabar em nenhuma
medida aqueles que antes e com extraordinário empenho e êxito realizaram trabalhos de fôlego
irrepetível com a Chanson de Roland, cumpre, em nosso momento histórico, após quase dois
séculos de contribuição da filologia europeia acerca do cantar, atender aos desafios que a
pervivência da tradição nos trópicos nos propõe. Nesse sentido, hoje, uma tradução que opere
pela abertura e pelo conservadorismo, com preocupações tanto filológicas quanto prosódicas, e
que olhe, simultaneamente, para a Europa e para o Sertão, não poderia repousar no conforto de