BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
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O CANTAR DE ROLDÃO:
PELAS VEREDAS DE UMA TRADIÇÃO EPIGENÉTICA
O CANTAR DE ROLDÃO:
ALONG THE PATHS OF AN EPIGENETIC TRADITION
Ronald Ferreira da Costa
1
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade colocar em tela de juízo a tradução da
Chanson de Roland, denominada O Cantar de Roldão, realizada pelo autor deste artigo como
Tese de doutoramento pela Universidade Estadual de Londrina, defendida no ano de 2019. Para
isso, estabelece uma reflexão acerca da tradição literária iniciada com a Chanson de Roland
no final do século XI, em sua forma prototípica, originada de uma tradição oral que cantava a
dinastia carolíngia, em contraste com a evolução e a transcendência que essa tradição encontra
na América Latina e no Brasil. Nesse sentido, apresenta primeiro a origem dessa tradição; em
seguida, as configurações dela no Brasil; e conclui com a apresentação da proposta de tradução
como uma síntese entre o arquétipo e o típico nacional, por abertura e conservadorismo.
Finalmente, o trabalho apresenta o cotejo da primeira série do cantar entre as mais tradicionais
edições europeias, uma reconhecida tradução em espanhol e uma retradução brasileira, seguidas
da proposta tradutológica em tela, a fim de que o leitor avalie, nos termos da abertura e do
conservadorismo, o resultado poético do trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: O Cantar de Roldão. Tradução. Tradição Carolíngia.
Abstract: The purpose of this article is to put the Chanson de Roland translation, called O
Cantar de Roldão, on the screen of judgment, carried out by the author of this paper as a doctoral
dissertation by the Universidade Estadual de Londrina, presented in the year 2019. To this end,
it establishes a reflection on the literary tradition that started with Chanson de Roland at the end
of the 11th century, in its prototypical form, originating from an oral tradition that sang the
Carolingian dynasty, in contrast to the evolution and transcendence that this tradition found in
Latin America and Brazil. In this sense, it first presents the origin of this tradition; then, her
settings in Brazil; and concludes with the presentation of the translation proposal as a synthesis
between the archetype and the typical national, through openness and conservatism. Finally,
the work presents the comparison of the first series of singing among the most traditional
European editions, a recognized translation into Spanish and a Brazilian translation, followed
by the translate on screen, so that the reader can evaluate, in terms of the opening and the
conservatism, the poetic result of the work.
Keywords: Roland’s singing. Translation. Carolingian tradition.
1
Professor Dr. em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina, professor do Instituto Federal do
Paraná.
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INTRODUÇÃO
A épica românica medieval é um gênero de capital importância na tradição literária
ocidental. É sobre seu ideário ético-heroico que as primeiras novelas europeias erigem sua
narrativa cavalheiresca, acrescida, claro está, da ideologia do amor cortês
2
. Os desdobramentos
e a transcendência de seus temas literários e dessa ética heroica e religiosa podem ser
reconhecidos a partir de conceitos que se tornaram caros à filologia especializada, como a
abertura e o conservadorismo
3
que surgem no seio das narrativas orais e garantem sua
pervivência
4
como tradição literária que transita entre a oralidade e o texto escrito. Qualquer
que fosse o suporte de transmissão, seja a oralidade para a performance do jogral medieval ou
cantador contemporâneo, seja a refundição ou trabalho de copista nos manuscritos preservados
da épica ou das primeiras novelas em nguas românicas, ou seja as tipografias dos cancioneiros
de romances ou folhetos soltos que deram origem ao que conhecemos por cordel, que pervive
até a atualidade no Brasil, houve sempre um fio condutor: a tradição literária. No presente
estudo, a fim de demonstrar alguns aspectos dessa tradição, apresentamos um dos pilares desse
ideário ético-heroico, o monumento literário, a mais antiga e mais bela gesta, como enfatiza
Joseph Bédier (1927), a célebre Chanson de Roland.
A despeito da relevância que cobrou este cantar na consolidação de uma tradição
literária que poderíamos estritamente denominar de carolíngia estritamente, visto que,
segundo acreditamos, a influência literária e ética do cantar transcende a “temática” carolíngia
a obra foi pouco difundida no Brasil, onde a tradição carolíngia chegou como estratégia de
evangelização jesuítica
5
a partir de outros materiais literários, visto que o principal manuscrito
da Chanson de Roland seria inventariado em 1622 na biblioteca de Oxford, permanecendo
ainda inadvertido por mais duzentos anos. Apenas em 1837 a obra foi pela primeira vez
publicada em Paris, já com o nome La Chanson de Roland, título que não figura no manuscrito,
sob os cuidados de Francisque Michel. A partir daí, a filologia europeia, incansável em buscar
outros manuscritos do mesmo gênero, produziu uma incontável sucessão de traduções e edições
deste e de outros cantares de gesta, num movimento acadêmico e editorial que o Brasil não
acompanhou: A tradição carolíngia caminhava aqui por suas próprias veredas, mas as marcas
2
Vide Carlos García GUAL (1974, 1997).
3
Vide Menéndez PIDAL (1959) e Diego CATALÁN (1969).
4
Assim como afirmamos em COSTA (2019, p. 30, n. 33), optamos pelo termo como se encontra em castelhano
(pervivéncia), por ser largamente utilizado em referência a essa matéria, prescindindo de equivalentes como
“sobrevivência” ou “permanência”. Há, nesse aspecto, uma clara opção semântica que quisemos preservar,
seguindo a tese de Diego CATALÁN (op. cit., 1969). As ocorrências do termo seguirão em destaque.
5
Vide Antoni ROSSELL (2017).
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do cantar, por distantes que sejam as referências, são indeléveis, segundo tentaremos
demonstrar.
Nessa circunstância, ao apontar um hiato acadêmico e editorial no Brasil acerca do que
reconheço como genesíaco da tradição carolíngia, a Chanson de Roland, devo fazer justiça e
relativizar o exposto. O Brasil conta com uma única tradução do cantar: uma publicação
intitulada A Canção de Rolando (1988), pela Francisco Alves, cuja tradução é assinada por
Lígia Vassalo. Conforme se às páginas 4 e 19, a publicação apresentada é uma tradução feita
do francês moderno, concretamente, da versão publicada por Yves Bonnefuy em 1968, cotejada
com uma tradução do diplomata Guillaume Picot (1972), obras que não são consideradas
edições filológicas entre os romanistas europeus
6
. Evidentemente e, não obstante a isso, a
publicação da editora Francisco Alves a conhecer no mercado editorial brasileiro o enredo
do cantar com um breve estudo introdutório, não isento de alguns equívocos e importantes
lacunas, conforme veremos. Acrescente-se a isso a incipiência dos estudos acadêmicos acerca
do cantar no Brasil
7
, frente à anual profusão da produção acadêmica em toda a Europa e fora
dela, manifesta nos boletins bibliográficos da Société Rencesvals, publicados anualmente desde
1958
8
, e passamos a compreender a justa identificação de um hiato da pesquisa acerca da obra
no Brasil.
Diante desse estado de coisas, no ano de 2019 apresentei na Universidade Estadual de
Londrina a Tese de doutorado
9
: La Chanson de Roland: o cantar de Roldão: manuscrito Digby
23b que traz uma série de contribuições à matéria, não apenas no Brasil, e que, inédita e
comparatísticamente, teremos oportunidade de examinar no presente artigo. Sob a coorientação
do prof. Dr. Antoni Rossell
10
, a partir de quem pude ter acesso à produção e discussões
filológicas mais profícuas na Europa e quem me preservou de muitos equívocos, e, sob a
orientação do prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
11
, ao lado de quem cheguei ao
resultado e forma final do trabalho e quem suscitou muitos dos acertos, de que hoje nos
orgulhamos, apresentei uma tradução crítica e comentada do cantar que traz em seu bojo uma
6
Para as principais edições do cantar, vide BÉDIER (1937, 1938, 1938a); e, mais modernamente, RIQUER (2009).
7
Em levantamento realizado em 09/03/2017 na Plataforma Lattes, a plataforma padrão para toda a produção
acadêmica nacional, identificamos um total de apenas 30 pesquisadores com alguma publicação, atual ou
pregressa, acerca da Chanson de Roland entre os quais, o autor deste artigo e seu orientador na Tese de doutorado
com a tradução do cantar.
8
Disponíveis em: http://rencesvals.net/Bulletin/Bulletin.html
9
Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000227450
10
Professor de filologia românica da Universitat Autònoma de Barcelona, diretor do Arxiu Occità do Institut
d’Estudis Medievals, vide http://grupsderecerca.uab.cat/occita/node/203
11
Professor da Universidade Estadual de Londrina, é o atual presidente da ANPOLL e Coordenador Geral do
Portal de Poéticas Orais, vide https://portaldepoeticasorais.inf.br/site/?pg=home
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memória de veredas porque passou a tradição carolíngia que transcende as páginas da própria
Tese, na medida em que confluem ali vozes de um longo processo de abertura e
conservadorismo de uma tradição pervivente ao longo da história. O que segue dessa reflexão
preambular é a demonstração dessa memória ali latente nos seguintes sentidos: 1. Da tradição
que engendra a Chanson de Roland, sua transcendência e pervivência em todo o chamado ciclo
carolíngio; 2. Em seguimento ao anterior, da chegada dessa tradição por vias e motivos
coloniais até o cordel nordestino e a literatura nacional de reminiscências carolíngias; 3. Nessa
conjuntura histórico-tradicional, da tradução denominada O Cantar de Roldão como memória
rediviva por um lado como uma resposta ao hiato acadêmico-editorial brasileiro acerca do
cantar, por outro, em observância à tradição propriamente nacional, que não poderia ser
ignorada; e 4. Da estrutura composicional formular da tradução, como, propriamente, a tese
tradutológica.
A CHANSON DE ROLAND E A TRADIÇÃO CAROLÍNGIA
Na biblioteca de Oxford, inventariado como fundo Digby 23, preserva-se um manuscrito
em pergaminho em cuja parte b está a mais completa e mais antiga versão da Chanson de
Roland
12
, em anglo-normando, o francês antigo escrito na Inglaterra depois da conquista
normanda em 1066. Trata-se de uma escrita sóbria, sem iluminuras, datada do segundo quarto
do século XII, que se consensuou reconhecer como cópia de um prototípico material perdido,
escrito no final do século XI. Supor, a partir desse material, uma finalidade de divulgação
literária, seja do poeta, seja do copista normando, como um manuscrito para ser lido, seria um
equívoco epistemológico. Trata-se, antes, de um material para jogral com finalidade
performática. A matéria épica vivia, desse modo, da transmissão oral, numa perspectiva
lendária dos fatos históricos que a oportunizaram. À exceção do Cantar de Mio Cid um caso
aberrante, segundo Martín de Riquer (2003) a regra das gestas preservadas é um
distanciamento do fato histórico gerador de cerca de três séculos. A Chanson de Roland,
concretamente, remonta ao evento da batalha de Roncesvales ocorrida em 15 de agosto de 778,
nos altos cumes do Pirineu navarro.
Naquele ano, Carlos, o rex francorum ou rei dos francos, ainda não consagrado como
Imperador embora o cantar seja arbitrário nesse tratamento era reconhecido como
defensor da cristandade, herdeiro da dinastia pipínida, e emprestava seu nome à nova dinastia
12
Link permanente: https://digital.bodleian.ox.ac.uk/inquire/p/79097275-ef1d-4107-85d3-e8402120f365
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de poder, que se consolidará a partir de 800, com o título de Karolus Magnus et Pacificus
Imperator. Não sendo objeto desse trabalho exaurir análises históricas acerca do que
representou a figura histórica de Carlos Magno e a dinastia carolíngia, considerada sua
revolução cultural, seus scriptori, seus êxitos e fracassos de campanhas ou a olímpica recessão
monetária, cumpre apenas ter em tela que Carlos Magno não deixou de ser uma figura polêmica
e nem sempre foi representado na literatura medieval como o grande imperador, mensurado e
nada presto no falar, valente, de barbas brancas e cabeça florida como lemos na Chanson de
Roland. Mesmo às vezes estampado de modo muito menos nobre, como na gesta lerinage de
Charlemagne ou na novela occitana El Roman de Flamenca, o que nos interessa compreender
é como a épica busca retratar um passado glorioso como exemplo ético-moral. Assim também
ocorre, na Chanson de Roland, com o paladino Roldão, seu par Oliveiro e os demais Pares de
França, em detrimento do inimigo pagão, o sarraceno. Vejamos algumas descrições.
Após sete anos de sucessivas e gloriosas vitórias nas terras da Espanha, o rei Carlos
descansa com sua hoste em Córdoba. Enquanto isso, em Saragoça, a única cidade não invadida
pelas forças cristãs, Marsílio, o rei sarraceno, preocupa-se e pede conselho aos seus mais sábios,
que o convencem de propor ao rei Carlos um enganoso acordo a fim de que este retorne à França.
Quando os mensageiros de Marsílio se aproximam, veem a figura do Imperador:
Blanche ad la barbe y tut flurit le chef. Branca a barba, floridos os seus canos,
Gent ad le cor
ʃ
y la cuntenance fier. Nobre o corpo e o porte tão ufano.
Se
ʃ
t kil demandet ne le
ʃ
toet em
ʃ
eigner. Se o buscam, não há que apontá-lo,
Y li me
ʃʃ
age de
ʃ
cendirent a pied
os mensageiros já descem caminhando,
Sil
ʃ
aluerent par amur y par bien. E o saúdam por bem e por amado.
(COSTA, 2019, vv. 117-121)
Já em retirada, as tropas cristãs da Espanha rumam à França. Carlos perfila toda a hoste,
com a vanguarda sob seu mando e a retaguarda sob o mando de seu sobrinho Roldão o que,
até aqui, corresponderia ao fato histórico junto com Oliveiros, os demais pares de França e
mais vinte mil soldados. Estando Carlos já avistando a França e a retaguarda ainda cruzando os
desfiladeiros de Roncesvales nos Pirineus, Oliveiro avista a imensa tropa pagã que, em
emboscada, tinha por objetivo matar a Roldão e os pares de França a fim de minorar o poder
bélico de Carlos. Por traição de Galalão, o padrasto de Roldão, a batalha é iminente, com enorme
desvantagem numérica da retaguarda. Mas a coragem caracteriza o par épico:
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Rolł
z
y oli e
ʃ
t
ʃ
age. É Roldão valente, é bio Oliveiro,
ambedui unt meueillu
ʃ
ua
ʃʃ
elage. de coragem excepcional são ambos.
pui
ʃ
que il
ʃ
unt a
ʃ
cheual
ʃ
y a
ʃ
arme
ʃ
.
Quando estão com suas armas à cavalo,
Ja pur murir ne
ʃ
chiuerunt bataille. não se furtam à batalha pelo medo.
(Ibid, vv. 1093-1096)
A despeito da desvantagem, os primeiros assaltos mostram não apenas a valentia, mas
a superioridade dos cavaleiros franceses:
Francei
ʃ
i unt ferut de coer y d uigur Francos lutam com vigor e coração,
paien
ʃ
’t morz a miller
ʃ
y a ful
ʃ
. morrem em massa e aos milhares os pagãos,
De cent miller
ʃ
nen poent guarir dou
ʃ
.
de cem mil se quer dois se salvarão.
Rolł Di
ʃ
t nrĕ hume
ʃ
unt mult proz. “Nossos homens são valentes diz Roldão
Suz ciel nad home pl
Ͽ
en ait de meillor
ʃ
. sob o céu não há quem os superarão!
Jl e
ʃ
t e
ʃ
crit en la ge
ʃ
te francor Escrito está na Francor Gesta, uma canção,
Que ua
ʃʃ
al
ʃ
li nrĕ em
eur. que o nosso Imperador é um durão!
(Ibid, vv. 1438-1444)
Muita atenção se deu à expressão ge
ʃ
te francor mencionada no v. 1443. Entre as diversas
hipóteses para o sentido dessa expressão que aponta Riquer (2009, pp. 85-117; p. 173, n. 1443),
podemos destacar a referência ao prototípico cantar, ou às antigas gestas cantadas em francês,
de tradição estritamente oral, que pode haver servido de material para a composição do cantar
perdido, posteriormente copiado no manuscrito de Oxford gestas cuja existência está
documentada na biografia Vita Karoli, datada de 1050
13
, portanto, antes mesmo da composição
prototípica do cantar.
Nesse ponto nos interessa tanto a caracterização épica dos personagens, como essa
hipótese de fonte genesíaca da composição do cantar. A partir desses dois elementos podemos
compreender que os sucessos e as vicissitudes da dinastia carolíngia são cantados três séculos
mais tarde, consolidando, nessa tradição oral, um ideal ético e heroico que, como veremos,
alcança a transcendência que vimos buscando. Acrescente-se a isso uma comparação do que se
consensuou como a historicidade factual da batalha de Roncesvales
14
com o que se narra no
início do cantar:
Carle
ʃ
li rei
ʃ
no
ʃ
tre em
e magne
ʃ
O rei Carlos, nosso Magno Imperador,
Set anz tuz plein
ʃ
ad e
ʃ
tet en e
ʃ
paigne sete anos, na Espanha,ficou,
13
Sobre esse texto vide COSTA, op. cit., p. 50.
14
Sobre a reconstrução do fato histórico ibid, pp. 60-65.
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tre
ʃ
quen la mer c̄ qui
ʃ
t la tere altaigne. desde o mar à alta terra conquistou,
Ni ad ca
ʃ
tel ki deuant lui remaigne. não há castelo que possa se opor.
Mur ne citet ni e
ʃ
t’rėme
ʃ
a fraindre.
As cidades e os muros, derrocou,
For
ʃ
ʃ
arraguce ki e
ʃ
t en une muntaigne. Saragoça, no alto, só ficou.
(Ibid, vv. 1-6)
Diferente do que lemos nessa primeira rie do cantar, a dilatada campanha de Carlos
na Espanha na realidade não passou de três meses, de meados de maio a 15 de agosto de 778, e
nada teve de exitosa. As tropas permaneceram às portas de Saragoça até a catastrófica retirada
pelos Pirineus. O tema da derrota da retaguarda, na que haveriam tombado Roldão
15
e outros
importantes da corte, apesar de não estar isento de dúvidas, encontra registros históricos, mas a
questão de quem haveria atacado a retaguarda é divergente entre a historiografia e o cantar. Se
Carlos é cantado na gesta como o defensor da cristandade que, em nome da supressão do
paganismo vai à Espanha e, por traição viciosa, é atacado pelos sarracenos, sabemos que, na
verdade, o rei franco mobiliza todo o seu contingente em duas colunas a fim de estabelecer um
protetorado em Saragoça oferecido pelo governante abássida de Barcelona, que respondia a
Damasco, em dissenção com o poder estabelecido pelo califado omíada de Córdoba. Frustrados
os planos da entrega de Saragoça e, uma vez retornada a hoste, a retaguarda foi atacada pelos
wascones, povo das montanhas, da sempre insubmissa Gascunha francesa, ou seja, o que a
historigrafia nos revela é uma aliança com pagãos na campanha, e a perfídia da cristandade no
ataque à retaguarda. Enginhardo, o biógrafo de Carlos Magno, em sua Vita Karoli, é explícito
ao atribuir o ataque à Wasconicam perfidiam”, porém, sessenta anos após o episódio de
Roncesvales, na anônima biografia de Ludovico Pío, o sucessor de Carlos, Vita Hludowici
imperatoris, o tema é recuperado em termos bem diferentes, em que se atribui o infortúnio da
campanha ao crudelíssimo jugo sarraceno. Não é possível afirmar a ciência certa se essa
ficcionalização deliberada nos registros oficiais é originada da tradição oral das cantilenas
épico-heroicas dos jograis ou se estes responderam à conveniência que se buscava com esse
registro pretensamente histórico, mas importa destacar que, a despeito a autoria basca, os
inimigos a serem combatidos, cuja culpabilidade encontraria transcendência na tradição
literária, são os sarracenos. É lapidar de toda a gesta o verso 1015: “[t]êm pagãos o mal, cristãos
têm a justiça”
16
, que deixa claro um maniqueísmo ético-religioso, além da patente ignorância
15
Para o tema da ficcionalidade ou da existência histórica de Roldão vide Ibid, p. 50.
16
Paien
unt
tort
y
xpĭen
ʃ
unt
dreit. (
Ibid
, v. 1015, vide nota ao verso e nota 91).
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do cantar no que se refere ao universo muçulmano
17
. O esforço pela depreciação do inimigo
sarraceno manifesta-se em diversos âmbitos, desde uma onomástica fantasiosa, a que destaquei:
Podemos destacar três grupos mais numerosos de fórmulas onomásticas: 1.
Os de grau diminutivo, depreciativos em -in, como Blancandrín, Clarín,
Estramarín, Eudropín, Gemalfín, etc; 2. Os prefixados em Mar-, como
Marsil, Margariz, Marcule, Marganices, etc.; e 3. Os nomes formados por
mot- valise, amálga de palavras francesas como Malbien, Malcuit (mal-
pensado), Malduit (mal-educado), Malprimis (mal-prometido), Maltraien
(mal-vindo) e Malpalin (mau-bastão), todos eles levados pelos demônios
quando caídos em batalha, enquanto os anjos descendem aos cristãos (Ibid,
p. 59).
Ainda ilustrando essa caracterização, iniciada a batalha, a gesta apresenta por
paralelismo os doze pares sarracenos do primeiro esquadrão de Marsílio:
Vn duc i e
ʃ
t
ʃ
i ad fal
ʃ
aron. Há um duque ali, se chama Falastrão,
Jcil er frere al rei mar
ʃ
iliun. de Marsílio, ele era o irmão,
Jl tint la tere datliun y balbiun.
tinha as terras Datilônia e Balbisião,
Suz cel nen at pl
Ͽ
encri
ʃ
me felun. sob o céu não mais feio histro:
entre le
ʃ
dou
ʃ
oilz mult out large le front. Entre olhos tem tão largo o teso;
Grant demi pied me
ʃ
urer i pout hŏ. meio pé se pode dar a medição.
(Ibid, vv. 1213-1218)
Mais adiante, vindo o Emir Baligão da Capadócia em auxílio a Marsílio, o cantar
enumera os dez esquadrões que se enfrentarão às hostes de Carlos Magno, retornadas a fim
de atender ao chamado de Roldão:
La premere e
ʃ
t de cel
ʃ
de butentrot. Da Capadócia é o primeiro e vai à frente.
e laltre apre
ʃ
de micene
ʃ
a
ʃ
chef
ʃ
gro
ʃ
. Os cabeça-gorda, da Boêmia os seguem,
Sur le
ʃ
e
ʃ
chine
ʃ
quil unt en mi le
ʃ
do
ʃ
. no espinhaço, que no lombo eles exibem,
Cil
ʃ
unt
ʃ
eiet en
ʃ
ement cume porc.
AOI.
são sedosos, feito porcos, e suaves.
AOI.
[...]
E la terce
de nuble
ʃ
y de blo
ʃ
. No terceiro, os azulões e os nublados,
e la quarte
de brun
ʃ
y de
ʃ
clavoz. e no quarto são escravos e são pardos.
e la quinte
de
ʃ
orbre
ʃ
y de
ʃ
orz. no quinto, como o malte, avermelhados,
e la
ʃ
i
ʃ
te
dermine
ʃ
y de mor
ʃ
. e no sexto, são mouros e armênios.
17
Para a caracterização dos personagens musulmanos no cantar, vide KINOSHITA (2001); e COSTA, op. cit., pp.
58-59.
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e la
ʃ
edme
de cel
ʃ
de iericho. Outros, de Jericó, já são o sétimo,
y loitme
de nigre
ʃ
y la noefme de gro
ʃ
. vão no oitavo e nono os negros e os gordos.
e la di
ʃ
me
de balide la fort. E o décimo de Bálida, o castelo,
co e
ʃ
t une gent ki unche
ʃ
ben ne uolt. é uma gente que nunca quis o certo.
(Ibid, vv. 3220-3231)
Acerca do universo ético-moral proposto no cantar, tanto do lado cristão quanto do lado
do inimigo, ainda se poderia destacar uma miríade de elementos, como a valentia/covardia,
nobreza/vilania, a relação com a morte, a espiritualidade, a heráldica, a importância da própria
geste
18
, que só a tentativa de mencioná-los extrapolaria o corpus desse trabalho. Não obstante,
a fim de objetivar a ideia da transcendência da tradição carolíngia, passaremos a considerar
alguns elementos exteriores ao cantar, que a demonstram. Gui de Ponthieu, havendo participado
da famosa batalha de Hastings, ocorrida em 14 de novembro de 1066, na que o Duque da
Normandia, Guilherme II, o Conquistador, derrotou do rei Harold da Saxônia, adonando-se das
Ilhas Britânicas, fez um relato em que consta haver presenciado, na ocasião, um jogral, de nome
Taillefer, cantar à frente da armada a cantilena de Roland, a fim de insuflar os combatentes à
coragem, com os exemplos do herói épico e dos Pares de França. Dessa batalha, preserva-se a
Tapeçaria de Bayeux, com 70 metros de comprimento, datada do século XI coetânea,
portanto, à escrita prototípica do cantar urdida na cidade de Bayeux, na Normandia. Nela são
retratadas cenas com inscrições em latim da conquista normanda da Inglaterra:
Tapeçaria de Bayeux detalhe Turoldus de Fécamp.
Tvrold, que figura em destaque, está no explicit do cantar: “Eis finda a gesta que
Turoldus declina!”
19
. Diante disso, concluímos que essa tradição carolíngia, na época da
18
Para o sentido do termo geste como “linhagem”, “nação, etc., vide COSTA, op. cit., p. 21.
19
ci falt la ge
ʃ
te que turold
Ͽ
declinet. (COSTA, op. cit., v. 4002). Para a autoria do cantar, vide ROSS (1963); e
COSTA, op. cit. pp 41-45.
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composição prototípica, estava já muito bem consolidada, para além da poética literária. O
exemplo dos paladinos carolíngios estava enraizado numa ética social. Assim, corroborando
essa afirmação, a historiadora belga Rita Lejeune (1954) compila registros de pares de irmãos
chamados Roland e Olivier já no princípio do século XI.
Para além de tudo isso, entendemos que, guardadas todas as especificidades de outros
ciclos épicos ou outros gêneros, como os romances ou as nascituras novelas europeias a partir
do século XII com seu ideal, seja na quête, seja no fine amor, o que faz a Chanson de Roland,
desde aquele momento privilegiado das narrativas orais em que foi posta em manuscrito, é
irradiar para toda a tradição literária medieval uma etopeia
20
prevalente e, ademais, pervivente.
TRADIÇÃO CAROLÍNGIA NA AMÉRICA LATINA
A Hystoria del emperador Carlomagno y de los doze pares de Francia, e de la cruda
batalla que hubo Oliveros com Fierabrás, rey de Alexandría, hijo del grande almirante Balán
é uma tradução de Nicolás de Piamonte, editado por primeira vez em Sevilha, no ano de 1525.
Edições posteriores, das muitas que teve esta obra, alteraram, eventualmente, o extenso nome
de modo a sintetizá-lo. Embora se trate de uma obra para ser lida, em prosa, com letras
capitulares e algumas iluminuras, ela guarda ainda muitas características e finalidade da
tradição oral. Conforme pondera Montero (2011), esses textos de transição, entre as finalidades
performática e de leitura, guardam ainda marcas dessa oralidade primordial, em que se
destacam a estrutura formular e a ação e os fazeres dos heróis. Assim, na obra de Piamonte,
além da prevalente ação no narrado, como uma clara reminiscência dos cantares de gesta, cujos
manuscritos, como observamos, registram um determinado estado de vigência da tradição oral,
em sua primeira edição sevilhana, apresenta um curioso e conclusivo recurso de oralidade, o
custos
21
. Provavelmente originário da notação musical do gregoriano, o recurso denominado
custos é uma antecipação ao final da gina das notas iniciais à página seguinte, a fim de
facilitar o canto, sem o risco da interrupção performática no ato de virar a página. Aplicado à
prosa, como se observa em algumas edições da Hystoria del emperador... a inclusão, ao pé de
página, da sílaba ou da palavra inicial da página seguinte, o cusco é um claro indicativo à leitura
em voz alta.
Piemonte, no seu prólogo, esclarece o conteúdo e a origem da obra que, pela primeira
vez se traduz da língua francesa ao romance castellano. São três livros, sendo o primeiro uma
20
MONTANER (2000).
21
Do latim, custos, custodis: guardião, cobertura.
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genealogia dos reis da França até Carlos Magno; o segundo, da batalha de Oliveiros contra
Ferrabrás; e o terceiro culmina com a traição de Galalão e a morte dos doze pares. O segundo
livro, que o próprio Piemonte declara estar, originalmente, em “metro francés muy bien
trovadoé uma adaptação da segunda parte do cantar de gesta Fierabras, datado do final do
século XII, cuja narrativa, sem lastro historiográfico claro, se passa três anos antes da batalha
de Roncesvales, e da Chanson d’Aspremont, também datada do final do século XII, em que
Roldão aparece como infante. O terceiro livro, por sua vez, traz elementos da Chronique du
Pseudo-Turpin
22
, uma narrativa pretensamente historiográfica, provavelmente anterior à
Chanson de Roland, com algumas importantes diferenças da gesta. Uma terceira versão, que
inclui a história de Bernardo de Carpio, protagonista de um cantar de gesta perdido, quem, nessa
versão, haveria dado morte a Roldão e derrotado Carlos Magno em Roncesvales, foi incluída
em 1745. Estudando a transcendência da tradição literária carolíngia no Chile, Yolando Pino
(1966)
23
destaca haver, na região da Prata, registros da obra de Piemonte já em 1536, além dos
doze exemplares do mesmo livro enviados à América em 1586. Já no Brasil, a obra trazida
pelos jesuítas foi uma tradução ao português da obra de Piemonte [antes estava Piamonte]
realizada por Jerônimo Moreira de Carvalho, no ano de 1863 em Lisboa, embora a primeira
edição seja de 1728 em Coimbra.
Assim, com tantas referências cruzadas que conformam a História de Carlos Magno...
que chega à América, podemos compreender o distanciamento dessa tradição literária, frente à
tradição originária da Chanson de Roland. Acrescente-se a isso que, com a grande disseminação
da obra no Brasil e com a prática das leituras em alta voz a que se referia Câmara Cascudo
24
,
incorporando-a, assim, de volta à tradição oral e popular de onde se originara seu arquétipo
original, podemos compreender quão facilmente essa tradição carolíngia adquire aqui certa
autonomia em relação à matriz europeia. A partir desse estado da arte que destacamos, há dois
elementos mais emblemáticos da transcendência que queremos apenas apontar: o primeiro de
ordem histórica e um segundo de ordem popular e literária.
A exemplo do que anteriormente mencionamos acerca da batalha de Hastings, em que
o jogral cantava uma cantilena de Roldão aos contendentes normandos contra as tropas
britânicas, no Brasil, a etopeia trazida com a tradição carolíngia influenciou
22
Essa referência integra o Liber de miraculis S. Jacobi, cujo quarto livro se denonmina Historia Karoli Magni et
Rothalandi. Tratamos desse texto em COSTA, op. cit., pp. 66-67.
23
Apud MONTERO (2013).
24
Prescindo, por reiteradamente citado por diversos estudiosos da matéria, da citação de CASCUDO (1953, p.
441), em que o célebre folclorista relata a hegemônica presença da História de Carlos Magno... no interior do
Brasil, a fim de não redundar na mesma citação direta.
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preponderantemente os rebelados da Guerra do Contestado. Feito Taillefer, o monge José Maria
insuflava os caboclos revoltados a um movimento independentista de caráter messiânico e
nomeou, por equívoco interpretativo da tradição literária, 24 caboclos como seus Doze Pares
de França. As leituras que o monge fazia da História de Carlos Magno... a seus seguidores era,
assim, mais do que uma inspiração de valores, era a essência ético-moral que justificava sua
guerra santa.
Por outro lado, mais ao norte, a tradição que as sessões de leitura da História de Carlos
Magno... semearam no sertão não se limita à própria tradução lisboeta de Jerônimo Moreira de
Carvalho. Conhecemos a enorme tradição dos Autos, como os de Floripes e Ferrabrás, e outras
festividades populares que encontram paralelo em várias regiões colonizadas pelos europeus,
como, no Brasil, as Cavalhadas, as festas dos Dias de Reis, e a Encantaria, cuja amplitude de
corpus tampouco alcançaria os limites deste trabalho
25
. Igualmente, a tradição literária de
influência carolíngia no Brasil foi reiteradamente apontada em pesquisas de enorme fôlego
como as de Câmara Cascudo e as de Jerusa Pires Ferreira
26
, e não convém aqui uma pálida
reprodução das reflexões acerca dessa influência no Cordel, além das notórias influências em
Ariano Suassuna ou em Guimarães Rosa, tema que merece estudo específico e de maior
aprofundamento. Para o escopo do nosso trabalho, basta frisar que toda essa tradição, conforme
vimos apontando, se afastou daquela que Bédier chamou de “único bem tangível e real”, como
a “mais antiga e também mais bela [gesta]”, o monumento da epopeia francesa, a Chanson de
Roland. Sem, evidentemente, atribuir um juízo de valor às veredas da tradição na América e,
especificamente, no Brasil, a reflexão que segue deve se justificar por contraste epigenético
entre a origem e o desenvolvimento da tradição.
A TRADUÇÃO: ABERTURA E CONSERVADORISMO
A noção de abertura e conservadorismo foi colocada por Don Ramón Menéndez Pidal
(1954), e encontrou eco no seu continuador, Diego Catalán (1969). Aplicada à épica e ao
romance, esse gênero tão característico da Península Ibérica, significa a união desses conceitos
opostos que definem a natureza da tradição oral: o conservadorismo como essa capacidade de
25
Razão pela qual remeto o leitor a SILVA (2015) e ROSSELL (2017).
26
Vide CASCUDO (1953); DINNEEN (2010); FERREIRA (2012); MACEDO e ESPIG (1999); PEREIRA
(2014); RUIZ-BELLOSO (2019); e SOUSA, (2013).
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retenção de uma memória coletiva que conserva através dos séculos os menores detalhes de
uma história remotamente pretérita, e a abertura, como a habilidade de recriação dessa tradição
oral de modo a conferir a ela uma eterna atualidade a fim de que não se perca o sentido para o
povo que a canta, mediante supressões, acréscimos e modificações convenientes que, não
obstante, não desconfiguram a tradição. Há, desse modo, uma sutileza e uma inteligência
coletiva em operar essas tradições orais. Isso legitima e elucida todo o percurso porque passou
a tradição carolíngia, desde a Chanson de Roland até os mais contemporâneos versos ou autos
que ainda hoje podemos ter a sorte de encontrar no Brasil e em alguns rincões da América
Latina. Dado que o objetivo desse estudo não está pautado numa vontade arqueológica como
acertadamente nos adverte Rossell (2017) apenas nos interessa demonstrar como, diante da
complexidade desse sincretismo da tradição, se insere a possibilidade de retomar o elemento
arquetípico, considerando, por um lado, um conservadorismo nem purista nem paleográfico e,
por outro lado, uma abertura que, num outro extremo, não configure um palimpsesto, mas
apenas voz às vozes que até aqui a cantaram. Com esse objetivo em pauta, claro está, assume-
se uma grande responsabilidade com o texto e, aliás, um risco de exposição a críticas, por vezes
mais construtivas, por vezes nem tanto. Todas recebemos com a humildade tão necessária à
academia, com o único objetivo de, consideradas todas elas, contribuir com um legado que é
coletivo e popular e nunca individual assim, portanto, será também o que houver de mérito.
Preocupado, pois, com o apagamento de elementos da tradição quando há desequilíbrio mais à
abertura e menos ao conservadorismo, já refletia, com Meschonnic, no início da Tese:
Uma interessantíssima imagem desse fenômeno nos oferece Henri Meschonnic
(2010), quando compara a tradução com o barqueiro. Importa para ele menos o
atravessar, mas o estado em que chega aquele a quem atravessou; Caronte, conclui
Meschonnic, atravessa os mortos que, no trajeto, perdem a memória, e é o que
acontece com muitos tradutores. Aqui compartilhamos, pois, da tarefa que o linguista
propõe: não traduzir o que dizem as palavras, mas o que elas constroem; recriar o
sentido (COSTA, op. cit., p. 14).
Concretamente, portanto, atribuir a um manuscrito de jogral como o de Oxford, sobre
o qual nos debruçamos para a tradução a finalidade da leitura silenciosa, ou limitá-lo a ela,
parece-nos hoje um equívoco epistemológico. Sem, no entanto, menoscabar em nenhuma
medida aqueles que antes e com extraordinário empenho e êxito realizaram trabalhos de fôlego
irrepetível com a Chanson de Roland, cumpre, em nosso momento histórico, após quase dois
séculos de contribuição da filologia europeia acerca do cantar, atender aos desafios que a
pervivência da tradição nos trópicos nos propõe. Nesse sentido, hoje, uma tradução que opere
pela abertura e pelo conservadorismo, com preocupações tanto filológicas quanto prosódicas, e
que olhe, simultaneamente, para a Europa e para o Sertão, não poderia repousar no conforto de
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uma mera reprodução do realizado, de uma retradução. Desse modo, seguindo essa pauta
objetiva e partindo das reflexões da tradutologia que Henri Meschonnic (2010) coloca em
termos de se buscar um equivalente de sentido e em detrimento à tradução de palavra a palavra
uma tradução de poética a poética, de um ato de linguagem a um ato de linguagem, não nos
restava outro resultado aceitável que não fosse um cantar redivivo, de performance latente.
Nesse sentido, O Cantar de Roldão se inscreve na tradição de forma transcendente, o
que a caracteriza como epigenética, ou, em outros termos: operando por abertura e
conservadorismo, a tradução do cantar conserva em sua forma o arquétipo e o típico nacional,
do cavaleiro gaúcho ao verso do cantador. O resultado poético de O Cantar de Roldão, para
atender a essa perspectiva, está composto em versos assonantados, em ritmo de martelo
agalopado
27
, de dez sílabas poéticas com acento na terceira, na sexta e na décima sílaba, com
os que se tornaram muito populares os desafios entre os cantadores sertanejos.
Nesse ponto, seguiremos demonstrando comparativamente como isso se manifesta no
resultado poético final do cantar. Retomemos alguns exemplos da primeira série do cantar, a
fim de uma análise comparativa:
Le roi Charles, notre empereur, le Grand, sept ans tout pleins est resté dans
l’Espagne : jusqu’à la mer il a conquis la terre hautaine. Plus un château qui
devant lui résiste, plus une muraille à forcer, plus une cité, hormis Saragosse,
qui est dans une montagne. Le roi Marsile la tient, qui n’aime pas Dieu. C’est
Mahomet qu’il sert, Apollin qu’il prie. Il ne peut pas s’en garder : le malheur
l’atteindra.
(BÉDIER, 1922, p. 3)
Charles le roi, notre empereur, le Grand,
Est resté sept ans tout pleins en Espagne :
il a conquis jusqu’à la mer la terre haute.
Il n’y a pas de château qui resiste devant lui;
il n’est resté ni mur ni cité à forcer,
hors Saragosse, qui est sur una montagne.
Le roi Marsile la tient, qui n’aime pas Dieu,
Il sert Mahomet et invoque Apollin :
il ne peut empêcher que le malheur ne l’atteigne là-bas.
(MOIGNET, 1985, p. 27)
El rey Carlos, nuestro emperador magno, ha estado en España siete años
enteros: conquistó hasta la mar la alterosa tierra. No hay castillo que resista
ante él, ni ha quedado muro ni ciudad sin derribar, salvo Saragoza, que está
en una montaña. La posee el rey Marsil, que no ama a Dios; sirve a Mahoma
e invoca a Apolín: no se puede preservar de que mal le alcance.
27
Segundo mara CASCUDO (1972), o metro martelo foi inventado por Pedro Martelo (1665-1727) da
Universidade de Bolonha, inicialmente com doze sílabas; trazidos à cultura popular brasileira pelos portugueses
letrados no século XVIII, esses versos jamais se adaptaram aos cantadores como alexandrinos, reconfigurando-se
aqui como martelo agalopado, com dez sílabas.
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(RIQUER, 2003, p. 49)
O rei Carlos, nosso grande imperador, sete anos completos permaneceu na
Espanha: conquistou a terra altiva até o mar. Nenhum castelo resiste diante
dele; não lhe resta abater nenhum muro, nenhuma cidade, exceto Saragoça,
que fica numa montanha. Domina-a o rei Marsilio, que não ama Deus. Ele
serve a Maomé e invoca Apolo: Não pode se proteger, nem impedir a desgraça
de o atingir.
(VASSALO, 1988, p. 19)
Carle
ʃ
li rei
ʃ
no
ʃ
tre em
e magne
ʃ
O rei Carlos, nosso Magno Imperador,
Set anz tuz plein
ʃ
ad e
ʃ
tet em e
ʃ
paigne sete anos, na Espanha,ficou,
em
ʃ
quen la mer c̄ qui
ʃ
t la tere altaigne. desde o mar à alta terra conquistou,
Ni ad ca
ʃ
tel ki deuant lui remaigne. Não há castelo que possa se opor.
Mur ne citet ni e
ʃ
t’rėme
ʃ
a fraindre.
As cidades e os muros, derrocou,
For
ʃ
ʃ
arraguce ki e
ʃ
t em une muntaigne. Saragoça, no alto, só ficou.
Li rei
ʃ
mar
ʃ
ilie la tient ki deu nen aimet. Rei Marsílio que a tem, Deus não amou,
Mahumet
ʃ
ert y apollin recleimet pois o cão e Mao, os invocou;
Ne
ʃ
poet guarder q
̃
mal
ʃ
ne li ateignet.
AOI.
já não pode evitar o mal e a dor.
AOI.
(COSTA, op. cit., p. 94, vv. 1-9)
À esquerda da tradução, procedemos à transcrição paleográfica
28
do pergaminho com a
qual, ressalvados nossos limites tipográficos, propomos uma aproximação da experiência de
leitura do manuscrito com a possibilidade do cotejo entre os idiomas e as formas, naquilo em
que se afastam e se aproximam. Por outro lado, observadas comparativamente as edições de
Bédier (1922) e Moignet (1985) – este que, embora sem assonância ou metrificação, apresenta
uma disposição versificada do texto e as traduções de Riquer (2003) e Vassalo (1988)
supratranscritas, confiamos, como melhor julgará o leitor, não haver prejuízo semântico em
nossa proposta de tradução poética. Agora vejamos, ainda comparativamente, a escansão
realizada sobre os versos do manuscrito de Oxford e sobre a proposta tradutológica:
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Car/leſ / li / reiſ // noſ/tre / em/ᵱe/ / ma(gneſ) 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Set / anz / tuz / pleinſ // ad / eſ/tet / en / eſ/pai(gne) 10 (4, 10)
28
Trabalho realizado a partir do arquivo digital da Coleção Western Medieval Manuscripts da Biblioteca Bodleain,
da Universidade de Oxford. Disponível em link permanente: https://digital.bodleian.ox.ac.uk/inquire/p/79097275-
ef1d-4107- 85d3-e8402120f365
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˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Treſ/quen / la / mer // c
̄
/quiſt / la / te /re_al/tai(gne). 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Ni / ad / caſ / tel // ki / de/uant / lui / re/mai(gne). 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Mur / ne / ci/tet // ni / eſt’/re/meſ / a / frain(dre). 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Forſ / ſar/ra/gu(ce) // ki_eſt / en / u/ne / mun/tai(gne). 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Li / reiſ / mar/ſi(lie) // la / tient / ki / deu / nen / ai(met). 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Ma/hu/met / ſert // y / a/po/llin / re/clei(met) 10 (4, 10)
˘ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˉ
Neſ / poet / guar/der // q
̃
/ malſ / ne / li / a/tei(gnet). 10 (4, 10)
(transcrição do Manuscrito Digby 23b, fl. 1r)
Aqui observamos versos decassílabos com assonância feminina, dois hemistíquios e
acentos na quarta e décima sílabas.
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
O / rei / Car(los), // nos/so / Ma/gno_Im/pe/ra/dor, 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
Se/te / a/nos, // na_Es/pa/nha, / já / fi/cou, 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
Des/de_o /mar //à_al/ta / ter/ra / con/quis/tou, 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
(não)
há / cas/te/lo // que / pos/sa / se / o/por. 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
As / ci/da/des // e_os / mu/ros, / der/ro/cou, 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
Sa/ra/go/ça, // no / al/to, / só / fi/cou. 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
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Rei / Mar/sí/lio // que_a / tem, / Deus / não / a/mou, 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
pois / o /cão (e) // Ma/o/mé, / os / in/vo/cou; 10 (3, 6, 10)
˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˘ ˉ
já / não / po/de_e//vi/tar / o / mal / e_a / dor. 10 (3, 6, 10)
(COSTA, op. cit., p. 94, vv. 1-9)
E, finalmente, observamos na tradução os versos igualmente decassílabos, a assonância
feminina, dois hemistíquios e o acento na terceira, na sexta e décima sílabas, que configuram o
ritmo de martelo agalopado. À guisa de conclusão, acreditamos ficar demonstrado, na análise
comparativa, o que de conservadorismo e o que de abertura na nossa tradução. O ritmo,
que é a principal característica de abertura, que acolhe uma estrutura essencialmente sertaneja,
no estrato social onde mais se enraizou a tradição carolíngia, é a ponte que se estende entre o
arquétipo e o epigenético, reatando a tradição no Brasil à Chanson de Roland, a partir de uma
estrutura não menos medieval, o contrafactum, que é a apropriação de uma estrutura ritmo-
melódica difundida a fim de propor e aproximar um elemento novo ou distante. Essa é a
abertura que propusemos; o resultado é um cantar tão brasileiro e contemporâneo quanto
românico e medieval.
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