BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
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A REPRESENTAÇÃO DO BOI EM UMA ESTÓRIA DE AMOR, DE JOÃO
GUIMARÃES ROSA
THE REPRESENTATION OF THE OX IN UMA ESTÓRIA DE AMOR, BY
JOÃO GUIMARÃES ROSA
Maria Viana Schtine Pereira
1
RESUMO: Por meio deste ensaio, pretende-se demonstrar como o escritor João Guimarães
Rosa voz ao contador de estórias seu Camilo, personagem da novela “Uma estória de
amor”, do ciclo Corpo de Baile. Nesse sentido, estabelecerei relações entre as anotações e as
imagens encontradas nos diários de viagem do escritor, com destaque para a presença do boi
na cultura popular brasileira, para verificar em que medida pode-se estabelecer uma relação
entre esse animal e a própria linguagem. Nesse percurso analítico, dialogarei com ideias de
Derrida, apresentadas na obra A Farmácia de Platão, e conceitos sobre a memória, retomados
por Paul Ricoeur do pensamento aristotélico.
PALAVRAS-CHAVE: João Guimarães Rosa, Corpo de Baile, boi, oralidade, memória.
ABSTRACT: With this essay, we intend to demonstrate how the writer João Guimarães
Rosa gives voice to the storyteller Seu Camilo, a character in the novel “Uma Estória de
Amor”, from the Corpo de Baile cycle. In this sense, I establish relations between notes and
images shown in the writer's travel diaries, with an emphasis on his presence in Brazilian
popular culture, to see if the measure can establish a relationship between this animal and the
language itself. In this analytical path, you can dialogue with Derrida's ideas, examine in
Plato's Pharmacy and concepts about memory, adopted by Paul Ricoeur, of Aristotelian
thought.
KEYWORDS: João Guimarães Rosa, Corpo de Baile, ox, orality, memory.
INTRODUÇÃO
A grandeza do alcance da obra do escritor brasileiro João Guimarães Rosa deve-se,
sobretudo, ao apurado trabalho com a linguagem. Movido pelo desejo de registrar palavras,
expressões e o modo de vida dos vagueiros, o escritor realiza uma viagem pelo sertão de
Minas Gerais, em maio de 1952.
1
Doutoranda no Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa (UNL), assistente de investigação do CHAM-UNL e membro do IELT-UNL
,
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Certamente grande parte do conteúdo das cadernetas intituladas “A boiada 1” e “A
boiada 2” foi usada na tessitura de Uma estória de amor”. Matéria ruminada até tomar a
forma estabelecida na novela que faz parte do ciclo Corpo de Baile, conjunto composto por
sete histórias, publicado em 1956, mesmo ano em que veio a lume a obra mais conhecida do
escritor, Grande Sertão: Veredas.
Em carta endereçada a seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Rosa declara: Uma
estória de amor trata das “estórias”, sua origem, seu poder. Os contos folclóricos como
encerrando verdades sob forma de parábolas ou símbolos, e realmente contendo uma
‘revelação’. O papel quase sacerdotal dos contadores de estórias”. (ROSA, BIZARRI, 2003,
p. 91)
Nessas anotações são recorrentes transcrições não apenas de trechos de falas dos
vaqueiros, mas também listas de palavras a serem usadas nas obras, quadras populares,
provérbios; bem como informações a respeito da vida dos moradores da região, que
inspiraram a criação de várias personagens, inclusive o contador de estórias, seu Camilo.
O enredo de qualquer narrativa ficcional se constitui a partir de variados temas, dos
mais banais aos mais complexos. Todavia, “O verdadeiro tema de uma obra não é o assunto
tratado, assunto consciente e desejado, que se confunde com o que as palavras designam, mas
os temas inconscientes, os arquétipos involuntários em que as palavras, e também as cores e
os sons tomam seu sentido.” (BRUNEL, PICHOIS e ROUSSEAU, 1990, p. 121).
É sabido que João Guimarães Rosa tomava notas compulsivamente e disse que o fazia
por que “às vezes você tem uma ideia muito bonita, mas ela não se repete.” (SCHMIDT, A.
F., 2006). O volumoso acervo, com cerca de vinte mil documentos, entre cadernos, cartas,
documentos pessoais, projetos de livros e recortes de artigos de jornais e revistas,
colecionados e guardados pelo próprio escritor, atualmente arquivados no Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, são prova cabal disso.
Ao visitar esse acervo, durante o mês de julho de 2019, tive a oportunidade de ler os
35 manuscritos, composto por cadernos e cadernetas do escritor. Durante essa investigação,
constatei o que vários pesquisadores ressaltaram: a predileção de Rosa pela catalogação e
pelas listas. Por exemplo, o caderno de número 1, apresenta as seguintes informações na capa:
De março a dezembro. Aluno: J. Guimarães Rosa. Classe animais. Nela encontram-se
informações sobre onças, aves, borboletas e outros bichos. Entretanto, o fato que mais
surpreendeu-me durante a leitura desses documentos foi notar que o boi é tema recorrente em
vários cadernos e não apenas nas supracitadas cadernetas 6 e 7, de 1952, que, posteriormente,
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foram datilografadas, com inclusão de muitos dados (e supressão de outros) para compor os
arquivos A boiada 1 e A boiada 2, editados em 2011, sob o título A boiada.
nas anotações referentes às viagens feitas a Alsácia e Lorena, Borgonha e Rouen,
realizadas em 1950
2
, uma reprodução a lápis do rosto de um boi, copiado com cuidado
pelo escritor de um brasão, acompanhada de anotações, como cotas em uma figura, com as
seguintes informações: “Fundo amarelo, cara mais alongada”.
Durante a viagem à Itália (Milão, Veneza e Florença)
3
Rosa faz um desenho a partir da
obra Touro nos Alpes, de Eugène Burnand, de 1884, e escreve na marginália: “Grande quadro,
vale brumoso”, e sob ele inclui a legenda: “Touro malhado e marrom. A luz o colhe e
apresenta em plena imponência. Baba, bufa e muge para as montanhas. Touro com muito
movimento.”
Algumas páginas adiante, na mesma caderneta, mais um desenho, agora retratando a
obra O camponês, também de Eugène Burnand, de 1894. Com os seguintes dizeres: O
homem vem, chicote na mão, à frente de uma junta de bois vermelhos, de caras e pernas
brancas, bois de orelhas peludas, como um gato persa. Expressão felina. Patas em
movimento.”
O procedimento continua na caderneta 3
4
, com registro da passagem por Roma, que
inspira o escritor a desenhar esculturas de bois e um bezerro mamando. Sob a reprodução da
obra O rapto de Europa, escreve: “Muito belo! Touro = grinaldas nos chifres, lambe o
esquerdo de Europa. Belo céu, com nuvens mais nesgas de verde-azul”.
também a descrição de um retábulo, apreciado pelo escritor em alguma igreja de
Florença. Sobre essa obra anota: “Boi e burro destacados. Boi castanho, burro pardo. O boi
(quase que) apoia o queixo na mão de São José. A curva da cara do burro acompanha a do
chifre do boi.”
Além disso, em carta destinada ao amigo João Condé, Rosa explica que: “Uma
história de amor” (título grafado com h na carta), era um belo tema que não conseguira
desenvolver razoavelmente quando da publicação de Sagarana, em 1946. A narrativa foi,
então, retirada da antologia e desenvolvida posteriormente, depois da viagem realizada em
1952.
5
2
Caderneta 01, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).
3
Caderneta 02, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).
4
Caderneta 03, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).
5
Essa carta, destinada ao amigo João Condé, foi transcrita na obra: ROSA, V. G. Relembramentos: João
Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 333.
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Fico nesses exemplos, para não ser exaustiva. Fato é que Rosa trabalhava nesta
novela, onde a presença do boi é determinante, muito antes da famosa jornada ao sertão
mineiro.
“IA HAVER A FESTA”
Dada a importância da pecuária para a economia brasileira, é bastante elevado o
número de romances, xácaras, solfas, quadrinhas e festejos populares em que o boi é
personagem central. Ao pôr-do-sol, acabava-se a labuta do sertanejo e era comum a reunião
de trabalhadores para contar as façanhas realizadas durante o dia. Como apontado por Câmara
Cascudo (2005, p. 108): “Indispensavelmente havia um ou dois cantadores para divertir. O
cantador, analfabeto quase sempre, recordava outras apartações, outras vaquejadas famosas,
ressuscitando nomes de vaqueiros célebres e de cavalos glorificados pela valentia.” A lista de
nomes de bois homenageados também é enorme: Surubim, Rabicho da Geralda, Espácio,
Misterioso, Prata, Guerreiro, Chita, Estrela e muitos outros.
Por ter sido inspirada no vaqueiro Manuel Nardy, o condutor da célebre boiada, da
qual Rosa participou em 1952, os estudos sobre a novela “Uma estória de amor”, geralmente,
tomam como tema central, a personagem Manuelzão. Entretanto, o que me interessa
apresentar neste ensaio é a participação dos contadores de estórias, figuras fundamentais nessa
narrativa: Joana Xaviel e, sobretudo, o velho Camilo.
A estória transcorre durante os três dias de uma festa, organizada no mês de maio, para
marcar a inauguração de uma capela para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, erguida nas
proximidades do local onde fora enterrada a mãe de Manuelzão, dona Quilina, para honrar sua
memória.
De acordo com Marli Fantini (2004, p. 262), Manuelzão seria “um herói civilizador
que põe a tarefa de instruir normas para corrigir o cafarnaum do mundo do boi’”, mas, a meu
ver, a evocação do boi pode ter um significado também simbólico, como será demonstrado no
decorrer deste ensaio.
com sessenta anos, “espécie de começo de metade de terminar”, metera o boiadeiro
Manuelzão na cabeça o desejo de “assentar casa” (C.B, p. 144)
6
. “Seus homens, mais ou
menos velhos conhecidos, com ele vindos do Maquiné, para apego de companhia não
6
As referências à novela “Uma estória de amor” foram retiradas na primeira edição de Corpo de Baile, vol. 1.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. As referências a essa narrativa serão indicadas pela sigla CB, seguida da
respectiva numeração de página.
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bastavam? Ele calculava que não” (CB, p. 146). Para tanto, reúne em torno de si uma família
tardia, composta pelo filho Adelço, a nora Leonísia, o irmão dela, Promitivo, e os sete
netinhos. Ao núcleo familiar juntar-se-á mais adiante o velho Camilo, descrito na caderneta 6
7
da seguinte maneira: “Ele asséste mais é aqui. Às vezes descasca um milhozinho, busca um
balde d’água, mas tudo na vontade dele, ninguém manda não”. Trecho literalmente transcrito
da caderneta de viagem para a novela, mas, como poderá ser confirmado mais adiante, essa
personagem ganha grande importância no decorrer de toda a narrativa, não só devido ao papel
de contador que desempenha, mas por ser uma espécie de duplo do próprio Manuelzão,
aspecto apontado por Vasconcelos: “Nesse tecido de inquietações e lembranças, sobressai
ainda a figura do velho Camilo, um agregado da Samarra, cuja figura funciona como uma
espécie de espelho para Manuelzão” (1997, p. 31).
A despeito de as terras terem sido ocupadas quatro anos, a fundação do lugar é
determinada pela missa inaugural. Primeiro construiu-se o curral, depois a casa e, por último,
meses após a morte de dona Quilina, ergueu-se a igreja. O vaqueiro que maestrara durante a
construção da capela, no início da narrativa, espreita de longe, do alto do cavalo, a labuta das
mulheres, que decoram a igrejinha na antevéspera da festa. Solteirão, solitário, nómade como
um bom vagueiro, Manuelzão não percebia a importância do ir e vir do mulherio e falava de
supetão, com sua voz de comandar mil bois, mas que naquele momento não tinha qualquer
serventia: “Falta uma pia de água benta.” (CB, p. 140)
Sempre a cavalo, pois o lhe doía, percorre os dois quilômetros que distam a casa da
capela. Os preparativos ocuparam-no nos últimos dois meses, quando se deu o início da
construção da igreja, que, ao ser finalizada, exigia uma missa, com a benção do padre.
“O RIACHINHO DE SÓ SEGREDOS MAL CONTADOS
O lugar escolhido por Manuelzão para assentar pouso no Samarra, não fora casual.
Havia ali um riachinho. Os sertanejos têm pleno conhecimento das potencialidades produtivas
de cada espaço dos sertões secos. Vinculado a uma cultura peculiar, cada grupo humano tem
sua própria especialidade no terrão que lhe cabe. Uns são vaqueiros, outros agricultores nas
regiões alagadiças, os brejos. também os veredeiros, pessoas que trabalham nas ilhas de
umidade, as veredas, que pontilham a aridez dos sertões. E, acima de tudo, cada um se esforça
para conservar a água, a fim de aguentar os duros meses de estiagem. Portanto, não foi por
7
Caderneta 6, acervo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).
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acaso a escolha do local para construção da sede da casa por Manuelzão, nas terras adquiridas
por seu patrão, Federico Freyre. Todavia, pouco tempo depois de erguida a casa, o riacho,
subitamente, seca. Por certo não é fortuita, como se verá mais adiante, a personificação do
riachinho em frases como: “Era como se um menino sozinho tivesse morrido” (CB, p. 148).
Importa também ressaltar que é quando pensa no riachinho seco que Manuelzão recupera
muitas de suas lembranças.
A primeira menção ao riachinho já se reporta à sua ausência: “O lugar poderia merecer
outro nome “Seco riacho” (CB, p. 165). Há dúvida quanto a quem dera essa sugestão. Poderia
ter sido seu Camilo, mas Manuelzão sabia que o inventante dessa maldade havia sido mesmo
seu filho, Adelço, que escarnecia o pai pelo erro da escolha do lugar. Fato é que esse riacho,
que desembocava no córrego das Pedras, que acabava do rio De-janeiro, que, por sua vez,
mais adiante, fazia barra como o São Francisco, secou. Desde então, Chico Carreiro, atrelava
as suas quatro juntas de boi e descia até o córrego das Pedras para apanhar água, sempre
acompanhado pelas crianças, e, às vezes, pelo velho Camilo. Entretanto, a vala onde outrora
correra suas águas fora preservada, pois sempre havia a esperança de que elas voltassem a
correr.
ESSAS ESTÓRIAS DENTRO DA ESTÓRIA
O grande desafio dos escritores dos países colonizados que desejam incorporar os
saberes dos contadores tradicionais em suas narrativas é perceber que a passagem do oral para
o escrito exige uma zona de mistério criativo. Não é apenas imperativo escrever resgatando a
palavra narrada preservada pela memória, mas produzir uma criação artística capaz de
mobilizar a totalidade oferecida justamente pela peculiaridade do processo de colonização,
tanto do ponto de vista da oralidade, como da escrita. É preciso estar aberto às oposições e aos
paradoxos, conservados por essa amplitude, que tangenciam as diferentes matizes da palavra,
sobretudo em um caudal em que diferentes etnias, tanto ameríndias como africanas, se
entrelaçam à língua dominante do colonizador, que, por sua vez, comporta em suas origens
outras assimilações, adquiridas durante seu próprio processo formativo.
Não é difícil constatar a presença explícita de elementos recolhidos da tradição oral na
novela “Uma estória de amor”. Basta lembrar da participação de Chico Bráabóz
8
, rabequista,
que tinha muitas memórias de músicas, danças e cantigas, a quem vem se juntar seu Vevelho,
8
A personagem do violeiro Chico Bràabóz foi inspirada em Francisco Barbosa, a quem Rosa conheceu na
fazenda de Sirga, de onde partiu a boiada da qual o escritor participou em maio de 1952.
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sanfoneiro, e o filhos, tocadores de bandolim e viola. Ou o uso que o narrador faz da estrutura
do ABC, utilizada por seu Camilo para nomear os vaqueiros antes de começar sua estória,
indo de Antônios a Zusa, sem se esquecer do Til, “que para atilar: setenta joãos e joães”
(CB, p. 233). Talvez uma maneira encontrada pelo escritor, também um João, para juntar-se
ao bando.
Cabe lembrar que são chamados de ABC os versos organizados em ordem alfabética.
Esses poemas geralmente são usados para contar a história de um boi, um touro ou algum fato
histórico. também os ABC de exemplos, em que os versos são compostos para exaltar as
virtudes e o comportamento ou apresentar códigos de bem proceder. Outro tema bastante
comum são as histórias de amor. Nesse caso, geralmente, ele é composto como se fosse uma
carta endereçada à pessoa amada.
Esse tipo de composição tinha uma função mnemônica, pois lembrar a ordem das
letras do alfabeto facilitaria o exercício de declamação dos versos decorados. Quanto à
presença do acento ortográfico til, de acordo com Câmara Cascudo, essa prática deve ser em
decorrência dos exercícios de caligrafia, quando o aluno era estimulado a copiar o alfabeto.
Por ser o til um sinal gráfico de difícil representação, ele também era incluído nos exercícios e
talvez por isso fosse considerado como uma letra pelo sertanejo: “Como não é possível
arranjar-se um tema com ele, aproveitam para uma frase de ironia, uma despedida, um
motejo” (CASCUDO, 2005, p. 82). Como feito nesta passagem na recriação rosiana.
Mas desse volumoso caudal de gêneros da literatura oral, utilizados pelo escritor para
urdir essa narrativa, deter-me-ei nas estórias e seus contadores. A primeira estória que
Manuelzão escuta é relatada pelos dois vagueiros de seu grupo, Simão e seu irmão Januário,
que se atrasaram no retorno. Para justificar esse retardo, contam que estiveram a ajudar o
vaqueiro Uapa, o goiano, considerado o rei de todos, sempre montado no seu bonito Alazão:
“que vive em gica com os bois e seus mestres cavalos” (CB, p. 162). A audiência, era
composta por dois campeiros além de Manuelzão, que não conseguia ser mais forte do que
aquelas novidades. Portanto, trata-se de uma vaguejada que realmente acontecera. Mas que
também pode não ter ocorrido como relataram os vaqueiros, pois para se bem lembrar de uma
viagem, diz o narrador algumas linhas adiante: “quase que se tinha necessidade de inventar a
devoção de uma mentira” (CB, p. 162).
Da boca de Joana Xaviel, deitado no quarto aparedado com a cozinha, Manuelzão,
insone, ouve trechos da estória do Dom varão ou A donzela que vai à guerra.
9
Joana Xaviel
9
Esse mito é retomado por Rosa na tessitura de Grande Sertão, personificado na figura de Diadorim.
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narra também a história da Destemida, que deseja comer o boi do patrão e persuade o marido
a matar o animal preferido do fazendeiro. Todavia, se no final do auto ela é punida, a seu
gosto Joana Xaviel muda o final: a mulher do vagueiro, além de não ser castigada, sai da
estória “rica, e subida por si”, o que provoca a contestação da audiência.
Seu Camilo é a personagem que o narrador mais nos objetivamente a conhecer.
Dele sabe-se o nome completo: Camilo José dos Santos. Nome que tentou escrever, mas não
soube. Na verdade: “Não se alembrou mais”. Experimentou escrevê-lo com a ponta de um
tição na régua de um curral. Informou a idade: 80 para mais. Nascera no Riacho do Machado
e acabara de se criar em Coração de Jesus de Inconfidência” (CB, p. 152)
10
. A descrição física
também é detalhada. Até o traje, que Leonísia lhe mandara fazer para a festa, é descrito. “Ele
nada pedira. Mas apreciara a roupa: “que nem que um milagre o tivesse envolvido, mudou o
modo de sua seriedade, se alisava. Não sabia como se permanecer.” (CB, p. 180)
A estória da festa, que o próprio Manuelzão conta, por meio do discurso indireto livre,
fazendo emergir fragmentos de sua vida, possibilitando, portanto, o resgate do seu passado,
não poucas vezes é afetado pela narração dos contadores. Como o ponto de vista que
prevalece é o do vagueiro, se temos tantas descrições a respeito do velho Camilo, a questão
também aparece no seu fluxo de pensamento: “Por que era que ele, Manuelzão,
derradeiramente, reparava tanto no velho Camilo? E responde: “Porque, assim, clareada uma
festa, o velho Camilo se demonstrava a pessoa separada no desconforme pior: botada sozinha
no alto da velhice e da miséria” (CB, p. 163). Pode-se dizer, então, que essa relação que vai se
estreitando entre o vaqueiro e o homem 20 anos mais velho, espelha o medo que o próprio
Manuelzão tem de perder o que até ali conquistara, mas, sobretudo, da própria morte.
Não por acaso, a morte é tema recorrente na narrativa: o riacho que seca; a morte do
boi e da mãe do fazendeiro rico, que a Destemida envenena, na estória contada por Joana
Xaviel; a morte da mãe de Manuelzão. Também por certo não é casual que ao acompanhar de
longe a procissão, pois o lhe doía, e seria uma profanação fazer a peregrinação da casa à
capela a cavalo, Manuelzão está entretido a ver as chamas das velas deixadas pelos penitentes
nos mourões que cercam o cemitério, quando a luz de uma delas ilumina justamente o rosto
do velho Camilo, aumentando sua palidez. “Sem ser forte, mas com voz conhecível, ele
também cantava” (CB p. 165).
10
No datiloscritos do livro Boiada -se depois de uma sequência de quadras certamente declamadas por seo
Camilo: (Camilo José dos Santos, 80 anos, para fora. Tinha uns 8 ou 10 anos, por ocasião da alforria do
cativeiro. Nasceu no Riacho do Machado e acabou de se criar em Inconfidência), p. 41.
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Algumas linhas depois, seo Camilo, que até então pouco falara, é apresentado também
como declamador de quadras. Os mesmos temas que nas cadernetas são apresentados em
versos, quando atribuídos ao memorial de seu Camilo, aparecem integrados na narrativa na
estrutura de prosa. Procedimento que será recorrente mais adiante, quando essa personagem
realmente assumir seu papel de narrador.
Se Manuelzão escuta as estórias de Joana Xaviel durante uma noite de insônia a contra
gosto, o que não significa que não gostasse delas, mas não conseguia ouvi-las e cuidar da
festa ao mesmo tempo, pois para ele: “tempo de festa, era para festa, não pra o comum, a
cabeça da gente não pra tantas coisas” (CB, p. 185); é muito diferente sua relação com a
contação de seu Camilo. Essa narração só ocorre no desfecho da novela e, consequentemente,
da festa, quando Manuelzão não só se pergunta sobre o paradeiro do riachinho, como também
pensa novamente na própria morte: “A festa ia se acabar, ele ia ir com a boiada sentia que
para morrer, no caminho, no meio, desmaginava” (CB, p. 185).
Com o término da missa, e consequente retirada do padre, a parte sagrada da festa se
encerra. Desfecho bem marcado pela ação de Manuelzão, ao trancar a porta da capelinha,
guardar as chaves na algibeira e dirigir-se a um ponto da “cama do riachinho seco”, antes de
tentar se divertir na parte profana da festa. Todavia, Manuelzão não consegue se entregar aos
prazeres festivos. Entrementes a descrição dos ponteios de viola e os rodopios dos dançarinos,
o vaqueiro conversa sobre o boiadão que em pouco tempo vai guiar, especula sobre a
produção de mandioca de um, sobre o fabrico de rapadura de outro.
A presença tão próxima de seo Camilo, aquele que acompanhava o carreiro para
buscar água no Riacho das Pedras, que bebia água guardada num pote, que parecia até coisa
abandonada, água antiga, é, finalmente, explicada: o próprio Manuelzão havia solicitado a
presença dele por perto, caso precisasse, mas não se lembrava disso. Todavia, o velho não se
esquecera do comando e, por isso, o seguia por toda parte.
É a caminho do cemiteriozinho, para render honras à mãe, que essa situação é
revelada. Aquele seo Camilo com quem Manuelzão tanto se parece, que como ele não se
divertia com a festa e que quando perguntado sobre o que pensa dos festejos responde: “Eu
divêrto, não. Eu inteiro e semêlho…” (CB, p. 227). Teria o seo Camilo, como ele, medo de
morrer? Pergunta-se o boiadeiro.
A essa reflexão segue-se novamente uma alusão ao riachinho: “Havia de ser
abençoado a gente viver ainda muitos anos, residindo, ladeira abaixo, o sissipe do riachinho”
(CB, p. 227). Percebe-se, então, que Manuelzão e Camilo ficaram tão acamaradados no
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decorrer de toda a narrativa, só porque, mesmo não se divertindo, Manuelzão afastou-se
temporariamente do trabalho e pode notar a presença do agregado. No último dia da festa, à
noite, à volta da fogueira, antes de sair para conduzir a boiada, ao pensar que deveria
comandar que não judiassem do velho na sua ausência, decreta:
“— Seo Camilo, o senhor conte uma estória. O velho entendeu, obedeceu e contou,
para a roda de ouvintes que em torno dele logo se formou, a Décima do Boi Bonito e a do
cavalo. (CB, p. 228)
De acordo com Paul Ricouer a herança grega nos legou dois conceitos distintos e
complementares sobre memória, um platônico e um aristotélico: “O primeiro, centrado no
tema da eikõn, fala de representação presente de uma coisa ausente” (2014, 27). Aristóteles,
por sua vez, desenvolve o tema centrado “na representação de alguma coisa anteriormente
percebida, adquirida ou aprendida” (2014, 27). Portanto, preconiza a inclusão da problemática
da imagem da lembrança. Portanto, de acordo com Ricouer, em Aristóteles anamnésis seria
volta, retomada, recobramento do que anteriormente foi visto, experimentado ou aprendido.
Mas o elo entre esses dois eventos, esquecer e lembrar, é assegurado pela distância temporal.
É esse intervalo entre a impressão original e seu retorno que a recordação percorre. (cf.
Ricouer, 2014, p. 37).
Ao recordar-se do que pensava não mais saber, ou seja, de seu dom de contador, seu
Camilo contribui para a cura de Manuelzão, que se sente fortalecido para assumir o comando
da boiada ao término da festa. Mas também reumaniza João Uruquém, homem que não
sabia falar e vivia solitário no de uma serra. Afastado do convívio de todos, por ter sido
culpado por um crime que não cometera. Uruquém não apenas havia perdido a capacidade de
falar como os outros, mas “parecia que chorava, pensando que estava se rindo.”(CB, p. 154)
Entretanto, aquele que nem devia se lembrar mais do que o levara a afastar-se do convívio
com outros seres humanos, se aproxima com as quatro patas no chão, como um quadrúpede,
para também ouvir a estória contada pelo velho Camilo.
“Quem se aproxima do jacaré para ver o toco da língua dele, ele devorava a memória
da cabeça da pessoa” (CB, p. 155). -se essa analogia logo depois da descrição do que
acontecera a Uruguém. Ora, Rosa declara na entrevista concedida a Günter Lorenz
11
que
queria era ser um crocodilo. Portanto, não seria de todo errado dizer que nessa, e em outras
11
GÜNTER, Lorenz. “Diálogo com Guimarães Rosa”, in João Guimarães Rosa, Ficção Completa, vol. I, Rio de
Janeiro: Aguilar. 1994.
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narrativas, o escritor mineiro mimetiza-se em um crocodilo devorador de memórias, e as
rumina até conseguir devolvê-las na forma escrita.
Como visto, nesta novela, Rosa recupera da tradição oral narrativas que têm como
tema central o boi. Na versão de seu Camilo, o animal é vencido por um boiadeiro, até então
chamado de Menino, que revela seu nome no final da narrativa. Não poderemos ver nesse
boi sagrado, que, quando laçado pelo boiadeiro, bebe na companhia do cavaleiro das águas do
riachinho, que no cotidiano da vida do Samsarra fazia tanta falta, justamente porque secara,
mas que volta a correr na estória de seu Camilo, uma analogia com uma personificação do
deus Thot?
No ensaio A Farmácia de Platão (2015, p. 43), Derrida assinala que o deus Thot, na
civilização egípcia é alegorizado como um touro. Esse deus da escrita, que também é deus das
ciências e da aritmética, considerado o arquétipo de Hermes, pode bem ser associado ao Boi
Sagrado, guardador do espírito do riachinho, que depois de laçado pelo cavaleiro menino,
sorve de suas águas na companhia daquele que o derrotara. O vaqueiro, no entanto, rejeita
paga, mas pede como recompensa justamente a liberdade do boi, que, selvagem, poderá pastar
livremente.
De acordo com Derrida, a linguagem é a morada da escrita, que, por sua vez é
originalmente metafórica, posto que a metáfora é o traço que reporta a língua à sua origem:
“A escritura seria, então, a obliteração desse traço.” (2015, p. 330), mas abre-se uma outra
possibilidade quando se a língua como hieroglífica e apaixonada. Ouso dizer que é
justamente essa certa selvageria, que se mantém na máxima proximidade desta origem
passional da língua, que encontramos no manancial arcaico, que pode secar se não for
mantido pela tradição, como secara o riachinho, mas que foi recuperada por Rosa, por meio
de seus personagens contadores.
Indo mais além, o título Uma estória de amor, pode referir-se ao amor de Seo Camilo
pela Joana Xaviel, ou ao desejo interdito de Manuelzão pela nora, Leonísia, aspectos bastante
evidentes na leitura da obra, mas também pode referir-se à estória de amor de Rosa com a
palavra: cantada, declamada, contada e escrita, recuperada justamente nesse embate entre um
cavaleiro de nome menino e o deus da escrita Thot, alegorizado na figura do boi misterioso.
BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
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[Recebido: 29 fev. 2020 Aceito: 13 mai.]