BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504

PERFORMANCE POÉTICA E MUSICAL NA CANTIGA DE SANTA MARIA 20: LETRA E MÚSICA


POETIC AND MUSICAL PERFORMANCE IN CANTIGA DE SANTA MARIA 20: MUSIC AND LYRICS


GLADIS MASSINI-CAGLIARI1


RESUMO: Partindo do fato de que as músicas cantadas se baseiam em uma relação entre os níveis musical e linguístico, mediada pelo nível poético, este artigo objetiva analisar as estruturas métricas e melódicas da Cantiga de Santa Maria 20, de Afonso X, de modo a investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar a performance poética e musical dos trovadores medievais. A análise desenvolvida aponta para hipóteses de possíveis utilizações estilísticas da relação entre proeminências rítmicas linguísticas e musicais, da silabação e de processos fonológicos a ela relacionados (elisão), do padrão acentual de um nome próprio específico, das rimas e da acomodação de versos não isométricos à melodia padrão das estrofes.


PALAVRAS-CHAVE: Cantigas de Santa Maria. Ritmo. Melodia. Métrica.




ABSTRACT: Departing from the fact that music made to be sang is based on a relation between the musical and linguistic levels, mediated by the poetic level, this paper aims to analyze the metric and melodic structures of the Alfonso X’s Cantiga de Santa Maria 20, in order to investigate the possible contributions whether the musical notation is also considered, when the objective is to search for medieval troubadours’ poetic and musical performance, considering the relations between music and lyrics. The analysis points out to hypothesis of possible stylistic usages of the relation between linguistic and musical rhythmic prominences, syllable formation and related processes (such as elision), a specific proper name stress pattern, rhymes and the accommodation of non-isometric verses to the melody of the stanzas.


KEYWORDS: Cantigas de Santa Maria. Rhythm. Melody. Metrics.





Brea (1993, p. 132), no Dicionário da Literatura Medieval, define cantiga como “poesia composta para ser cantada; por isso, deve apresentar uma combinação harmoniosa de palavras (letra) e sons (música), característica geral de toda a lírica românica no seu início (salvo para a escola siciliana)”. Assim sendo, dado o fato de que as músicas cantadas se baseiam em uma relação entre os níveis musical e linguístico, mediada pelo nível poético, este artigo objetiva analisar as estruturas métricas e melódicas de uma das Cantigas de Santa Maria (de agora em diante, CSM), atribuídas a Afonso X (1221-1284), o Rei Sábio de Castela, de modo a investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, para além da estrutura métrico-poética, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar a performance poética e musical dos trovadores medievais, em uma época na qual não havia tecnologia suficiente para registros orais. Faz-se imprescindível a consideração desses três níveis de organização rítmico-melódica – língua, poesia metrificada e canção – quando se quer investigar os sons de nosso passado linguístico, em busca de pistas da organização prosódica da língua que dá suporte aos versos que, por sua vez, se combinam com a música. Para Rossell (2006, p. 244), no que diz respeito às CSM, “literatura e música são interdependentes”. O autor considera que as CSM seguem uma estratégia de composição textual e musical, na qual a métrica é o ponto nevrálgico. No nível da métrica, os aspectos literários e intertextuais se unem aos aspectos melódicos (ROSSELL, 2006, p. 229).

Fidalgo (2002, p. 177) considera que, dado o fato de que as CSM vêm, necessariamente, acompanhadas de música, a consideração de ambas as dimensões é a “característica esencial de onde debería saír a luz que despexara o camiño para o estudio das estructuras métricas que sosteñen as unidades narrativas das cantigas”. Entretanto, a autora considera que, por enquanto, a consideração de ambas não faz mais do que colocar dificuldades, uma vez que o rigoroso estudo da métrica está prejudicado pela falta de consenso entre filólogos e musicólogos e pela dificuldade de interpretação musical de uma notação que ainda não foi bem compreendida. Segundo a autora,


Se a medida dos versos estivera ben definida, teriamos unha parte do camiño andado para establecer a medida do ritmo musical. Por outra banda, a inseguridade con que se nos presenta a medida do verso pode quedar resolta, ás veces, pola fixeza métrica que amosa a notación musical mensural e as súas regras de aplicación, pero mentres a relación entre ambos aspectos non quede ben resolta non se poderán atopar os sons exactos da música das Cantigas. (FIDALGO, 2002, p. 202-203).


Drummond (2017, p. 5) considera que as questões interdisciplinares das relações entre texto e música nas CSM ainda não foram suficientemente abordadas. Para o autor, a forma como diferentes estruturas coexistem nas narrativas dos milagres indica que as relações entre texto e música nessas cantigas específicas são “muito mais íntimas e complicadas do que os estudiosos consideraram até o momento” (DRUMMOND, 2017, p. v-vi)

Colantuono (2012, p. 1) localiza o repertório mariano afonsino como pertencente ao gênero “poesia pela música”, que, à diferença da poesia pura, se vale do acompanhamento melódico e se caracteriza pela regularidade e simetria na disposição dos versos e na formação dos grupos estróficos. O pertencimento a esse gênero se reconhece na natureza interativa da linguagem musical, que requer uma regularidade análoga de versificação e de organização estrófica. Desta maneira, a autora considera a estrutura métrica como um anel de conjugação entre a construção melódica e o dimensionamento textual.

Em trabalhos anteriores desta autora (MASSINI-CAGLIARI, 2008, 2010, 2011) e de um de seus colaboradores (COSTA, 2010), foram analisadas cantigas medievais galego-portuguesas profanas e religiosas, em busca de pistas do acento e do ritmo na oralidade da época, seguindo a hipótese de que proeminências musicais combinam-se prioritariamente com proeminências linguísticas. De fato, esses trabalhos anteriores mostraram que, na grande maioria dos casos, proeminências musicais coincidem com proeminências linguísticas; entretanto, em alguns poucos casos, há a possibilidade de proeminências musicais serem ocupadas por sílabas que não correspondem a proeminências linguísticas. Porém, em termos estilísticos de reconhecimento de padrões métricos, isso acontece apenas em uma pequena parte dos casos porque, do contrário, não haveria a possibilidade de produção e reconhecimento de um padrão rítmico, já que os padrões de ritmo linguístico, poético e musical baseiam-se na repetição de estruturas.

É justamente esta possibilidade de desencontro entre proeminências rítmicas dos níveis musical e linguístico que motiva a escolha da CSM20, Virga de Jesse, para análise neste artigo. Como será mostrado, os vários momentos em que esse desencontro acontece fornecem oportunidades de reflexão a respeito de como poderia ter soado a cantiga na performance do seu intérprete, uma vez que as dúvidas de realização apontam para interessantes hipóteses estilísticas de construção dos versos e da música que os acompanha.


BREVES PALAVRAS SOBRE A LÍRICA RELIGIOSA AFONSINA


As Cantigas de Santa Maria (CSM), atribuídas a Afonso X, são uma coleção de 420 cantares, descontadas as repetidas (METTMANN, 1986, p. 7 e 24; PARKINSON, 1998, p. 179; BERTOLUCCI PIZZORUSSO, 1993, p. 142), correspondendo ao cancioneiro de louvor mariano mais rico da Idade Média. Mais do que isso, segundo Leão (2007, p. 21), as CSM são “de longe a maior e mais rica coleção produzida nos vernáculos românicos da Idade Média”, ecoando Lapa (1933, p. III), para quem correspondem a “um dos mais primorosos monumentos da língua e literatura galego-portuguesa”.

Apesar de as CSM serem atribuídas a Afonso X, sua composição é essencialmente uma atividade coletiva (PARKINSON, 2015, p. 11). Para Parkinson (2015, p. 16), retomando o que já havia sido mostrado anteriormente por Mettmann (1986), a autoria das CSM é atribuída a Afonso X tanto textualmente (a partir do uso do pronome de primeira pessoa do singular “eu”) quanto iconograficamente, a partir da inclusão da figura do rei em posições “didáticas” nas miniaturas iniciais dos códices Escorial rico (T) e Escorial (E).

Entretanto, mesmo havendo dúvidas quanto à autoria, de acordo com Leão (2007), indiscutivelmente, Afonso X é o “autor” das CSM, no sentido de que é o chefe do projeto. Essa opinião corrobora a de Montoya Martínez (1999, p. 35), para quem Alfonso X é indiscutivelmente o “autor” das CSM, dentro de um conceito “teológico” de autoria, no qual, a exemplo do que ocorre na autoria da Bíblia, em que Deus, o autor principal, se vale de “autores secundários” para registrar a sua palavra, Afonso X, o autor principal das CSM, teria se valido de uma vasta equipe de poetas, músicos, miniaturistas e outros para levar a cabo a sua obra.

As CSM sobreviveram em quatro os códices: dois deles pertencem à Biblioteca del Monasterio de El Escorial, na Espanha (T: El Escorial, Real Monasterio de San Lorenzo, MS T.I.1 - códice rico ou códice das histórias; e E: El Escorial, Real Monasterio de San Lorenzo, MS B.I.2 - códice dos músicos); o terceiro está conservado na Biblioteca Nacional de Madrid (To: Madrid, Biblioteca Nacional, MS 10.069, conhecido como códe de Toledo); e o último pertence à Biblioteca Nazionale Centrale de Florença, Itália (F: Firenze, Biblioteca Nazionale Centrale, Banco Rari, 20 - códice de Florença). O menor e o mais antigo é o códice de Toledo (To); o mais rico em conteúdo artístico é o códice rico de El Escorial (T), que forma um conjunto (os chamados códices das histórias) com o manuscrito de Florença (F); e o mais completo é o códice dos músicos – El Escorial (E) (PARKINSON, 1998, p. 180),

Embora sejam todos os quatro manuscritos datados do final do século XIII, a época de sua confecção não coincide exatamente. Embora Anglés (1943) e Mettmann (1986, p. 24) sejam vozes discordantes a este respeito, To é geralmente considerado um pouco anterior aos demais, enquanto F é considerado um pouco posterior.

Em termos de metrificação, segundo Parkinson (2015, p. 12), os versos cultivados nas CSM, quando comparados aos da lírica profana contemporânea, são “precisos” e de “métrica variada”, revelando grande virtuosismo em termos de estrutura de verso, de estrofe e de rima, no sentido de corresponder aos requisitos do modelo formal e de produzir uma grande variedade de estruturas, mesmo dentro de um conjunto restrito de possibilidades.

As rimas das CSM, na opinião de Parkinson (1999, p. 22) são “virtuosísticas”. O autor mostra exemplos de como o uso de coblas uníssonas, ou seja, do mesmo conjunto de rimas ao longo do poema todo, pode ser considerado um caso de “mestria”, ou seja, de grande habilidade em trovar. Colabora também como índice de mestria o uso de coblas doblas (sequências de pares de rimas), de palavras-rimas (em que a mesma palavra é usada para implementar uma dada rima em posições estruturais específicas do poema) e de outros efeitos de rima, tais como a rima insistente (em que a mesma rima é usada em três ou mais versos sucessivos) e a rima estendida (em que um verso da estrofe, geralmente o último, que antecede a retomada do refrão, rima com este).

A própria organização dos textos em torno do formato de rosário demonstra o profundo cuidado formal com que foi concebida a coleção: as cantigas são organizadas de dez em dez, sendo que as nove primeiras do grupo contam milagres ocorridos por intercessão da Virgem e a décima, identificada por um tipo diferente de rubrica (e por uma miniatura especial, em E), configura um louvor a Santa Maria. Segundo Mettmann (1986, p. 13), nos poemas narrativos (milagres), o estribilho ou refrão se repete depois de cada estrofe, apresentando a ideia principal, ou a “lição” que se quer passar. A primeira estrofe, a segunda ou até mesmo a terceira estrofes podem trazer indicações do tempo e do espaço da narrativa, e indicações vagas sobre a fonte na qual foi coletado o milagre. Também são nomeadas as personagens (pessoas que participam do milagre ou que o presenciam). Por sua vez, as cantigas não-narrativas (louvores) constituem hinos em que Maria é celebrada como auxiliadora, medianeira e procuradora (METTMANN, 1986, p. 14-15). Todas as cantigas são precedidas de epígrafes resumitivas de seu conteúdo.

A contagem das sílabas poéticas nas CSM é sensível ao processo de elisão, em que duas vogais seguidas são contadas em uma única sílaba poética. As elisões são geralmente representadas nos manuscritos pela omissão de uma das vogais envolvidas (notadamente a primeira, com pouquíssimas exceções), de modo que o registro escrito sempre contém o número de sílabas necessário à estrutura métrico-poética. As edições críticas modernas (como a de Mettmann, 1986, aqui considerada para a CSM20) costumam representar as elisões a partir do uso de apóstrofo, ao passo que as edições diplomáticas transcrevem o manuscrito de modo mais fiel, apenas suprimindo a vogal não grafada, e respeitando a segmentação adotada (MASSINI-CAGLIARI, 2007).

Com relação à elisão, autores como Massini-Cagliari (2015) e equipe (MIGLIORINI, 2012; CANGEMI, 2014) veem a elisão como um processo linguístico que dá base à sua utilização estilística, nas cantigas, ao contrário de Parkinson (2015), que considera este um mero recurso poético. Esta polêmica, no entanto, extrapola os limites deste artigo.

Segundo Parkinson (2015, p. 12), nas CSM não há liberdade de mesclar versos graves e agudos. Isso quer dizer que, considerando a posição de um verso dentro de uma estrofe, sendo este agudo, jamais poderia ser substituído por outro grave na estrofe seguinte (e vice versa), mesmo que esses contivessem a mesma quantidade de sílabas poéticas. É o que acontece na CSM20, focalizada neste artigo, uma vez que, nela, há apenas versos graves, isto é, finalizados por palavras paroxítonas.

A cantiga analisada neste artigo segue a estrutura estrófica padrão nas CSM, que se baseia na utilização de um refrão, que aparece em primeiro lugar, seguido das estrofes, às quais se interpõe o refrão, sempre repetido ao final de cada estrofe, cujo esquema métrico e rimático pode depender dos do refrão, encadeando-se a este. Em muitas das CSM, há uma combinação de linhas mais longas e mais curtas (PARKINSON, 2015, p. 15), como é o caso da CSM20 aqui analisada.

Embora muitos autores ressaltem a influência do zajal ou zéjel nas CSM, a CSM20, aqui considerada, como a maior parte das CSM, não segue esse modelo de modo estrito. Por este motivo, Fidalgo (2002, p. 180), seguindo María Morrás, prefere falar em “formas zejelescas”, uma etiqueta válida para agrupar todas as composições, de origem árabe ou romance, cuja característica em comum é o emprego da estrofe com volta. A volta consiste em um verso no final da estrofe que repete a rima do refrão, seguida do refrão propriamente dito. Segundo Fidalgo (2002, p. 180), o esquema típico da volta é AA // bbba. Já para Drummond (2017, p. 5), o esquema típico é aa|(bbba|aa), que se combina com o esquema musical padrão of ab|(ccab|ab).


A MÚSICA DAS CANTIGAS DE SANTA MARIA


A grandiosidade da coleção das CSM se estende ao nível musical, na opinião de Ferreira (1994, p. 58), para quem a coleção é especialmente notável entre a documentação remanescente de música medieval monódica, por duas razões: representam vinte anos de investimento composicional e editorial centralizado; utilizam dois sistemas notacionais semimensurais originais.

O que explica a possibilidade de diferenças na interpretação da notação musical da mesma cantiga, segundo os músicos que a executem, de acordo com Fidalgo (2002, p. 204-205), é o fato de que a notação musical da época não tinha a pretensão de reproduzir todos os parâmetros musicais da mesma maneira como a notação musical atual. O pensamento musicológico fundado por Anglés (1943) acreditava na representação exata da duração e do ritmo dos sons na notação das CSM; a esta tendência, opõe-se a que considera a interpretação rítmica das CSM em termos de liberdade e flexibilidade (FERREIRA, 1986, p. 188). López Elum (2010, p. 50-59) considera que o “primeiro projeto mariológico”, ou seja, To, não apresentava uma notação mensural, que se iniciou apenas a partir do segundo “projeto” (T e F), abrangendo o terceiro (E).

Costa (2010, p. 59) discute a questão da datação da notação musical dos manuscritos das CSM, relembrando que, muito embora To seja o manuscrito mais antigo, apresenta uma notação musical mais moderna. Essa “modernidade” da notação de To é observada por Anglés (1958), que afirma que a notação musical mais comum na época em que foram compostas as cem primeiras CSM tinha como notas fundamentais a longa e a breve, ao passo que To apresenta a breve e a semibreve como notas fundamentais.

Do ponto de vista rítmico, Fernández de la Cuesta (1999, p. 349) considera que as CSM e as cantigas medievais e renascentistas em geral possuem métrica e são agrupadas em estrofes mais ou menos isométricas; desse modo, o ritmo e a melodia seriam determinados pela métrica e, mais especificamente, pela isometria.

Drummond (2017, p. 220) analisa a estrutura musical das cantigas de milagre, mostrando que a combinação entre o que cíclico e o que é linear na estrutura musical das CSM é uma base fértil para a performance dramática da narrativa dos milagres. O autor considera que a música das CSM se estrutura a partir de um refrão sonicamente persistente, que, retomado após as estrofes, funciona no sentido de realçar a confiança na veracidade da narrativa do milagre. Assim, a recorrência do metro, das rimas e da melodia do refrão atua como um mecanismo de separação e realce da narrativa central, expondo o essencial da mensagem do milagre à audiência. Desta maneira, a estrutura poético-musical funciona como um veículo que guia auditivamente a performance e a audiência através da canção (DRUMMOND, 2017, p. 33).

Colantuono (2012, p. 10) compara o sistema de composição musical das CSM ao da construção arquitetônica: uma prática que requer profundo conhecimento musical e métrico e que parte do material preexistente, com o objetivo de reinventá-lo continuamente. Para a autora, a melodia é o elemento principal, sendo os intervalos simples e fáceis de entoar (COLANTUONO, 2012, p. 56). Porque a melodia da primeira estrofe se impõe aos demais versos, Colantuono (2012, p. 56) conclui que há “percursos melódicos independentes do desenvolvimento do texto literário”. Portanto, a melodia teria autonomia em relação ao texto, sendo o veículo de sua memorização e transmissão. A estrutura melódica, assim, assume uma expressão transcendente, que retorna incessantemente a si mesma, e que, com sua estrutura, determina o dimensionamento do texto (COLANTUONO, 2012, p. 56-57).

Para Colantuono (2012, p. 61), as CSM são composições modais (compostas a partir de um “motivo melódico”, uma porção “completa” de um ponto de vista modal e emitida em um único respiro, COLANTUONO, 2013, p. 82), em que a linha melódica gerencia a estrutura métrica (COLANTUONO, 2012, p. 197), a partir de uma visão que a própria autora (COLANTUONO, 2012, p. 201) denomina de “melódico-cêntrica”. Desta maneira, a análise desenvolvida pela autora procurou diferenciar a estrutura poética da estrutura melódica, sendo a primeira baseada na disposição da rima, importante elemento mnemônico, e a segunda sobre a partição em elementos significativos. Os dois sistemas se combinam, sem necessariamente coincidir (COLANTUONO, 2012, p. 209). A rigidez da constituição métrica não é parâmetro absoluto na valoração do “verso cantado”, que não se define somente em conformidade a uma rígida estruturação métrica, mas também sobre expedientes tais como paralelismos e recorrências fônicas (rimas, aliterações, assonâncias), com papel claramente estrutural (COLANTUONO, 2012, p. 168). Tal abordagem já havia sido ensaiada anteriormente pela autora (COLANTUONO, 2007, p. 1220), quando tratou da valorização do bon son, supondo uma ótica analítica que engloba tanto o aspecto métrico quanto o melódico.

Já em Colantuono (2013, p. 81-82), a autora desenvolve uma análise melódica dos componentes das CSM que mostra que a semelhança e a igualdade melódicas, consequências diretas da passagem de material melódico de um componente a outro, permitem a individuação das relações intertextuais entre os componentes. O elemento melódico reforça a função descritiva da composição, através da evocação dos mundos poético e sonoro, sendo veículo de transmissão e de memorização do repertório.

Em termos de sua execução, acredita-se que as estrofes eram cantadas por solistas, ao passo que o refrão estaria a cargo de um grupo maior de pessoas. O estudo da tessitura (intervalo entre a nota mais grave e a mais aguda de um trecho) reforça esta hipótese (FIDALGO, 2002, p. 201). A este respeito, Ferreira afirma que:


as Cantigas de Santa Maria são, por um lado, maioritariamente narrativas - o que torna mais provável a participação de um instrumento na sua execução - e, por outro, bastante mais permeáveis a influências andaluzas do que a lírica trovadoresca, o que justifica a ideia de que poderiam ser, com alguma probabilidade, objecto de um acompanhamento simultâneo de tipo heterofónico. (FERREIRA 2005, p. 42).


Escolhemos a edição de Anglés (1943) para a análise aqui desenvolvida, apesar de haver abordagens divergentes da de Anglés, quanto à concepção musical das CSM. Rossell (2006), por exemplo, difere de Anglés quanto à concepção da melodia das CSM. Ao analisar a CSM 72, Rossell (2006, p. 232) afirma que as relações melódicas internas dessa cantiga específica mostram que existe uma estrutura melódica interna, independentemente da forma musical apresentada por Anglés. A hipótese modal das melodias das CSM de Rossell (2006, p. 238) se baseia na aparição das mesmas estruturas melódicas em uma série de cantigas que apresentam uma estrutura melódica inicial comum. A abordagem de Colantuono (2014) é semelhante à de Rossell (2006), no que diz respeito à consideração da repetição de trechos melódicos. A autora mostra que, nas estrofes, é possível reconhecer a predominância melódica do movimento inicial e da fase final conclusiva, apesar de que a interação melódica não implica simplesmente em repetição, contemplando mudanças agógicas, dinâmicas e rítmicas, derivadas das peculiaridades fonéticas e expressivas do texto (COLANTUONO, 2014, p. 2).

Colantuono (2007, 2012, 2013) tem uma abordagem do ritmo das CSM bastante divergente da de Anglés (1943), considerando a notação musical das CSM como dependente da estruturação melódica. Colantuono (2012, p. 15) considera que todo processo de escrita musical implica um grau de relação variável com os processos de composição. Em muitos casos as estratégias de composição não podem ser atestadas apenas pelos testemunhos documentais, mas devem ser valorizados os processos de confluência dialética entre as dimensões oral e escrita. Assim sendo, a própria autora reconhece que propõe “um possível canal de acesso às estratégias de composição, que não quer ter a pretensão de ser o único sistema: a proclamação de haver chegado a um definitivo contribuiria somente à inércia e ao conformismo intelectual” (COLANTUONO, 2012, p. 6).

Apesar da divergência de concepção do ritmo das CSM entre Anglés, por um lado, Ferreira, por outro, e Colantuono e Rossell, por ainda outro, a ruptura entre esses autores se dá, principalmente, na concepção da composição melódica das cantigas, e menos com relação ao ritmo, embora tenha consequências para a concepção deste. Por considerar que, apesar das críticas, a edição de Anglés, que é ainda a mais popular em termos de performance musical, pode trazer interessantes dados para a discussão da relação texto-música das CSM, ela é aqui considerada. Uma revisão da análise aqui empreendida, a partir das concepções de Ferreira, Colantuono e Rossell, pode ser um interessante desenvolvimento futuro deste trabalho, uma vez que há variações quanto ao que cada um desses autores considera como “proeminência musical”.


A cantiga analisada: CSM20


Conforme já foi dito anteriormente, a CSM20 foi escolhida como objeto deste artigo justamente por apresentar, como será visto, momentos em que ocorre um verdadeiro desencontro rítmico entre proeminências musicais, poéticas e linguísticas. Tanto quanto os momentos em que proeminências musicais, poéticas e linguísticas coincidem, os momentos de desencontro fornecem oportunidades de reflexão a respeito das escolhas estilísticas dos poetas e de como poderia ter soado essa cantiga religiosa específica na performance do seu intérprete.

Transcrevemos, em (1), a CSM20, na edição de Metmann (1986, p. 109-110). Tendo sobrevivido em três manuscritos (To20, T20, E20), a CSM20 é um louvor a Santa Maria, comparada à Virga de Jesse (“ramo de Jessé”), que, apesar de padecer o tempo todo pelos nossos pecados, ainda assim ora sempre a seu Filho, intercedendo pelos pecadores, e realizando milagres “formosos” e “maravilhosos”, pelos quais desce do céu e cresce em honra aos humildes.

Esta é de loor de Santa Maria, por quantas mercees nos faz

Virga de Jesse,

quen te soubesse

loar como mereces,

e sen ouvesse

per que dissesse

quanto por nos padeces!


Ca tu noit' e dia

senpr' estás rogando

teu Fill', ai Maria,

por nos que, andando

aqui peccando

e mal obrand' -o

que tu muit' avorreces –

non quera, quando

sever julgando,

catar nossas sandeces.

Virga de Jesse...


E ar todavia

senpr' estás lidando

por nos a perfia

o dem' arrancando,

que, sossacando,

nos vai tentando

con sabores rafeces;

mas tu guardando

e anparando

nos vas, poi-lo couseces.

Virga de Jesse...


Miragres fremosos

vas por nos fazendo

e maravillosos,

per quant' eu entendo,

e corregendo

muit' e soffrendo,

ca non nos escaeces,

e, contendendo,

nos defendendo

do demo, que sterreces.

Virga de Jesse...


Aos soberviosos

d'alto vas decendo,

e os omildosos

en onrra crecendo,

e enadendo

e provezendo

tan santas grãadeces.

Poren m' acomendo

a ti e rendo,

que os teus non faleces.

Virga de Jesse...

(METMANN, 1986. p. 109-110).


Segundo Mettmann (1986, p. 109), a estrutura métrica da CSM 20 é: A4 A4 B6 A4 A4 B6 / c5 d5 c5 d5 d4 d4 b6 d4 d4 b6. Em outras palavras, o refrão é formado por seis versos, dos quais o primeiro, o segundo, o quarto e o quinto, que rimam entre si, são compostos por apenas quatro sílabas poéticas; os demais versos do refrão, o terceiro e o sexto, que também rimam entre si, contam com seis sílabas poéticas cada. As quatro estrofes contam com dez versos cada uma, sendo os quatro primeiros compostos por cinco sílabas poéticas; o quinto, o sexto, o oitavo e o nono versos têm quatro sílabas poéticas; e o sétimo e o décimo versos apresentam seis sílabas poéticas. O esquema de rima do refrão é o seguinte: o primeiro verso rima com o terceiro; o segundo, o quarto, o quinto, o sexto, o oitavo e o nono versos rimam entre si; o sétimo e o décimo versos rimam com o refrão.

Nas figuras 1, 2 e 3, aparecem os testemunhos da CSM20 nos três códices em que sobreviveu: Toledo (To), Escorial rico (T) e Escorial (E). Nos três códices, figura sob o número 20.






Figura 1. ToXX (CSM20).

Fonte: Cantigas de Santa María. Edición facsímile do Códice de Toledo (To). Biblioteca Nacional de Madrid (Ms. 10.069). Vigo: Consello da Cultura Galega, Galáxia, 2003. fólios 29r, 29v e 30r.




Figura 2. T20 (CSM20).

Fonte: Códice Escorial rico (microfilme cedido pela Biblioteca Real Monasterio de San Lorenzo, El Escorial, MS T.I.1). fólio 32r.



Figura 3. E20 (Cantiga CSM 20).

Códice dos músicos (Escorial), fólios 46r e 47v.

(Reproduzido de Anglés, 1964, 46r e 47v).




Na figura 4, apresenta-se a atualização da notação musical realizada na edição de Anglés (1943, p. 28) da CSM20, com base nos três manuscritos em que sobreviveu.









Figura 4. CSM20: notação musical. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).


A Tabela 1 traz o mapeamento dos tipos de sílabas que ocorrem nas posições de proeminência musical (aqui entendida como início de “compasso”, até onde este conceito pode ser estendido à música medieval), subdivididas quanto à sua pauta prosódica: tônica (acento principal de palavra); monossílabo tônico (definidos, para a língua retratada nas cantigas medievais galego-portuguesas, por Cunha, 1961, acrescidos dos casos apontados em Massini-Cagliari, 2015); monossílabo átono (clíticos); pretônicas (sílabas que ocorrem antes do acento principal no interior da palavra); átona final (sílaba final de palavra, sem proeminência prosódica).


Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição de proeminência musical – CSM20.


Pauta prosódica da sílaba em posição de proeminência musical

quantidade de unidades de tempo ( compassos)

Tônica

60 (34.5%)

monossílabo tônico

42 (24.1%)

monossílabo átono (clítico)

8 (4.6%)

pretônica

30 (17.2%)

átona final

34 (19.6%)

TOTAL

174 (100%)



A tabela 1 mostra que na maior parte dos “compassos” considerados (isto é, nos 60 compassos em que uma sílaba tônica ocorre na posição de proeminência musical, somados aos 42 compassos em que figura um monossílabo tônico nessa posição), há um encontro entre as proeminências dos níveis linguístico e musical (58.6%). Se considerarmos, como já mostrado em Costa (2010), que as pretônicas podem assumir proeminência rítmica relativa, compatível com a realização de um acento secundário, o índice de correspondência sobe para 75.9% (132 de 174 casos). Também considerando que, de acordo com Amaral (2017), os clíticos do galego-português podiam assumir uma proeminência rítmica mais acentuada, em comparação com o comportamento dos clíticos do português atual, neste caso, o índice de correspondência chega a 80.5% (140 de 174 casos).

Mesmo sendo bastante alto o índice de correspondência entre proeminências musicais e linguísticas, não há correspondência total. Em 19.6% dos casos (34 em 174), a proeminência musical coincide com uma sílaba átona final de palavra, a pauta prosódica mais fraca e o padrão menos esperado nessa posição. Quando se analisam os casos de coincidência de sílaba átona final com proeminências musicais, um fato que chama a atenção é que, em 26 dos 34 casos (76.5%), a sílaba átona final acontece em final de grupo prosódico, ou final de verso no nível poético. Do ponto de vista da realização fonética do verso cantado, essa coincidência pode marcar um alongamento típico em final de constituinte prosódico, para marcar o limite do constituinte. É justamente o que se pode observar na figura 5, em que as palavras paroxítonas mereces e padeces, que ocorrem rimando entre si no final do terceiro e do sexto versos do refrão, correspondem a notas de duração igual, tanto na sílaba tônica (acento principal da palavra), quanto na átona final, que se localiza em final de linha melódica.



Figura 5. CSM20: notação musical: linhas 2 e 3. Fonte: Anglés (1943, p. 28).


O mesmo pode ser observado na figura 6, em que as palavras paroxítonas sandeces, couseces, sterreces e faleces correspondem ao mesmo padrão musical na linha melódica verificado em relação a mereces/padeces na figura 5, ou seja, notas de duração (longa) igual na tônica e na postônica final. São justamente as palavras focalizadas na figura 6 que se localizam no final do verso da volta, ou seja, o verso final da estrofe, que, de acordo com o padrão desta cantiga específica, deve rimar com o terceiro e o sexto versos do refrão.



Figura 6. CSM20: notação musical: linha 6. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Este padrão, porém, pode ser encontrado em outros contextos, no interior das estrofes, como mostra a figura 7, que focaliza a sílaba átona final das palavras rogando, lidando, fazendo, decendo, Maria, perfia, maravillosos, omildosos, andando, arrancando, entendo e crecendo. Todas essas palavras são cantadas com a melodia registrada na linha 4 da edição musical de Anglés (1943, p. 28). Nos contextos específicos em que aparecem estas palavras, o padrão se repete: duas notas de valor longo igual, ambas em posição de proeminência musical, com a primeira correspondendo à sílaba tônica principal da palavra e a seguinte, à sílaba átona final. Tal recorrência pode indicar uma escolha estilística, em nível da combinação de letra e música, para marcar os limites dos constituintes prosódicos, tanto no nível musical quanto no linguístico.




Figura 7. CSM20: notação musical: linha 4. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Em termos da investigação da possível performance poética e musical dos trovadores medievais em relação à CSM20, a observação da notação musical é também muito importante para a confirmação da silabação de ditongos e hiatos e a realização fonética de processos tais como a elisão. Nesses casos, a notação musical pode confirmar as hipóteses de silabação realizadas a partir da estrutura métrico-poética da cantiga.

Por exemplo, a correspondência de uma sequência de vogais a duas notas na linha melódica indica a realização do encontro vocálico como um hiato. É o que está representado na figura 8, em relação às palavras que se encontram envolvidas por um retângulo de linha contínua: dia, todavia e aos (preposição a + artigo os). Por outro lado, quando uma mesma e única nota é indicada como alvo do canto de duas vogais, este fato indica a sua realização como ditongo. É o que ocorre na figura 8, nas sílabas envolvidas por uma forma oval: noite e soberviosos.



Figura 8. CSM20: notação musical: linha 3. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



Já as palavras envolvidas por retângulos de linhas pontilhadas exemplificam casos de elisão, quando há a supressão de uma vogal na escrita, em geral átona, ocorrendo em final de uma palavra seguida de outra iniciada por vogal. Xavier e Mateus (1990, p. 140) definem elisão como um “fenómeno de fonética sintáctica que consiste na supressão de uma vogal átona final quando a palavra seguinte começa por vogal”. A definição colhida em Xavier e Mateus (1990) coincide com definições anteriores desse processo, encontradas em dicionários de Linguística, por exemplo, Camara Jr. ([1973], p. 157), que chama atenção para o fato de a elisão também ser denominada, na literatura especializada, de “sinalefa”. É exatamente este o termo utilizado por Cunha (1961, p. 15), para quem, no entanto, o processo era definido como sendo do domínio estilístico da construção poética, não sendo necessária a queda da vogal, mas apenas a realização das duas vogais envolvidas em uma mesma emissão de voz.

Conforme pode ser notado a partir da figura 8, na notação musical, a ocorrência de apenas uma nota para a realização das duas sílabas (a final da primeira palavra e a inicial da palavra seguinte) dá pistas da realização do processo de elisão. Os casos focalizados na figura 8 são os seguintes: noit’e dia = noite + e; senpr’estás = senpre + estás (que se repete na segunda estrofe); d’alto = de + alto.

A observação da notação musical pode trazer contribuições significativas também à determinação da pauta prosódica de palavras específicas, dando pistas da sua realização na performance oral da cantiga. Logo no primeiro verso do refrão (figura 9), aparece o nome próprio Jesse, que corresponde ao atual Jessé, cuja etimologia, segundo Obata (1986, p. 178) remonta ao hebraico Ishair ou Yishay, significando “rico” (em vários sentidos), com realização fonética de oxítona, ou seja, com a proeminência prosódica principal (acento) na última sílaba. Contrariamente, os glossários construídos a partir das CSM consideram esse nome como paroxítono. Por exemplo, o rimário de Betti (1997, p. 176) considera o nome Jesse como paroxítono, justamente por sua rima com soubesse, ouvesse e dissesse. Por sua vez, Metmann (1972, p. 166) define Jesse como “Jessé (o pai de David)”, o que mostra que, embora também considere a sua realização fonética como paroxítona, baseado nas rimas da CSM20, tem como referência a forma atual desse nome, que é oxítona.



Figura 9. CSM20: notação musical: linha 1. Fonte: Anglés (1943, p. 28).



A observação da notação musical, neste caso, mostra que a linha melódica correspondente a esse nome no refrão observa o padrão que também se sobrepõe às palavras que com ele rimam: soubesse, ouvesse e dissesse. Nos quatro casos, a relação de duração entre a tônica e a postônica se inverte, sendo que à tônica corresponde apenas uma nota, enquanto que à átona final correspondem duas, cuja duração somada é o dobro da da nota que dá suporte à sílaba acentuada. Tal fato pode levar à hipótese de que, mesmo que o nome fosse já realizado como oxítono naquela época, as diferenças de tonicidade entre as duas sílabas (e também entre as duas sílabas finais de soubesse, ouvesse e dissesse) poderiam ser diluídas estilisticamente pela estrutura melódica, em que a maior duração da sílaba final torna-a musicalmente mais proeminente do que a própria tônica linguística, que ocupa a posição de proeminência musical.

Porém o caso mais interessante para o qual a observação da notação musical pode contribuir, no caso da performance oral da CSM20, é o que está retratado na figura 10, que traz a letra correspondente à linha melódica inicial da sexta linha da edição de Anglés (1943, p. 28). O que essa figura mostra é que, relativamente ao oitavo verso da última estrofe, “Poren m’acomendo”, há uma sílaba a mais do que postula a estrutura de Mettmann (1986, p. 109): A4 A4 B6 A4 A4 B6 / c5 d5 c5 d5 d4 d4 b6 d4 d4 b6. Em outras palavras, nessa posição da estrofe deveria aparecer um verso de quatro sílabas, enquanto o verso considerado tem cinco, desconsiderando a átona final: Po/ren/ m’a/co/men/do. É esta a lição que aparece em To20 e E20; em T20, aparece um ditongo entre mi e a primeira vogal de acomendo, fato que não afeta a quantidade de sílabas por verso, que continua a ser cinco. Este fato faz com que seja difícil a acomodação deste verso à linha melódica proposta, como mostra a figura 10. Neste caso, a própria notação musical traz a solução, uma vez que, entre as variantes encontradas por Anglés nos três manuscritos considerados para a sua edição, há a possibilidade de desdobramento em duas notas da que corresponde à sílaba final das palavras quando, guardando e contendendo. Desta forma, a nota final atribuída à última sílaba de acomendo poderia ser subdividida, acolhendo as sílabas men-do.


Figura 10. CSM20: notação musical: linha 6. Fonte: Adaptado de Anglés (1943, p. 28).



CONSIDERAÇÕES FINAIS


A análise da CSM20 desenvolvida neste artigo objetivou investigar contribuições que podem advir da consideração da notação musical, para além da estrutura métrico-poética, quando se busca, a partir das relações entre letra e música, perscrutar uma possível performance poética e musical dos trovadores daquela época. A partir da consideração das estruturas métricas, no nível linguístico e poético, e rítmicas e melódicas, no nível musical, foi possível construir hipóteses quanto a possíveis utilizações estilísticas, com finalidades de construção de versos a serem cantados, da relação entre proeminências rítmicas linguísticas e musicais, da silabação e de processos fonológicos a ela relacionados (elisão), do padrão acentual de um nome próprio específico, das rimas e da acomodação de versos não isométricos à melodia padrão das estrofes. Nesses casos, as hipóteses foram construídas a partir da consideração dos três níveis de organização rítmico-melódica envolvidos na construção de uma cantiga, língua, poesia metrificada e canção, com o objetivo de tentar “escutar” o atualmente inaudível, ou seja, a voz do poeta-trovador, cantando sua própria cantiga, aos nossos ouvidos futuramente longínquos, mas ainda ávidos.


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[Recebido: 26 fev. 2020 – Aceito: 24 mai. 2020]










1 Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil(1995). Professor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Araraquara). CNPq (Processo 302648/2019-4)




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